STEVE ALTEN
O DOMÍNIO
Tradução
Michele Vartuli
SUMA de Letras
2010
Para Ken Atchity,
Agente Literário, Mentor, Amigo…
AGRADECIMENTOS
É com grande orgulho e gratidão que cito aqueles que
contribuíram para a realização de O Domínio.
Primeiro e mais importante, meu agente literário, Ken
Atchity, e sua equipe da Atchity Editorial/Entertainment
International, por seu trabalho duro e sua perseverança.
Parabéns aos editores Michael Wichman (AEI), por sua
visão, e Ed Stackler, da Stackler Editorial, por seus
excelentes comentários.
Muito obrigado a Tom Doherty e ao ótimo pessoal da TOR
Books, ao editor Bob Gleason e a Brian Callaghan, bem
como a Matthew Snyder, da Creative Arts Agency, em Los
Angeles, e a Danny Baror, da Baror International. Parabéns a
Bob e Sara Schwager por seu ótimo trabalho de edição do
texto.
Obrigado também às seguintes pessoas, cujo conhecimento
pessoal contribuiu de alguma forma com O Domínio: Gary
Thompson, dr. Robert Chitwood, e a excelente equipe do
Centro de Avaliação e Tratamento do Sul da Flórida, o
rabino Richard Agler, Barbara Esmedina, Jeffrey Moe, Lou
McKellan, Jim Kimball, Shawn Coyne e dr. Bruce Wishnov.
E aos autores Graham Hancock, John Major Jenkins e Erich
von Daniken, cujo trabalho certamente influenciou a
história.
Um agradecimento muito especial a Bill e Lori McDonald,
da Argonaut-Grey Wolf Productions/Website:
www.AlienUFOart.com, que contribuíram com a edição e
são responsáveis pelos incríveis desenhos encontrados neste
romance, e a Matt Herrmann, da VILLAINDESIGN, pelas
suas idéias gráficas e contribuições fotográficas.
Também devo muito a Donna e Justin Lahey, cuja
dedicação, criatividade e cujos conhecimentos técnicos
ajudaram a lançar meus romances pela Internet.
Por último, aos meus leitores: obrigado pela
correspondência. Seus comentários são sempre um prazer
bem-vindo, suas opiniões são muito importantes.
— STEVE ALTEN
Para mais informações sobre os romances de Steve Alten, ou
para entrar em contato com o autor pessoalmente, acesse
www.STEVEALTEN.com.
... e nessas terras antigas fechadas e inscritas como um
túmulo e com dezenas de marcas de mãos mortas, e narradas
com datas do Juízo... eu traço as vidas que tais cenas
encerram e suas experiências contam como minhas.
— THOMAS HARDY
A mais bela experiência que podemos ter é o mistério. E a
emoção fundamental que guarda o berço da verdadeira arte
e da verdadeira ciência.
—- ALBERT EINSTEIN
Medo e religião. Religião e medo. Os dois estão
historicamente entrelaçados, são os catalisadores da maioria
das atrocidades cometidas pelo homem. O medo do mal
alimenta a religião, a religião alimenta o ódio, o ódio
alimenta o mal, e o mal alimenta o medo nas massas. É um
ciclo diabólico, e nós fazemos o jogo do Diabo.
— JULIUS GABRIEL
Diário de Julius Gabriel
"Estou diante da vasta tela, compartilhando a sensação de
solidão que seu criador certamente experimentou há
milhares de anos. Diante de mim estão as respostas para os
enigmas — enigmas que podem determinar, no fim das con-
tas, se nossa espécie viverá ou morrerá. O futuro da espécie
humana — existe algo mais importante? No entanto, estou
aqui sozinho, pois minha busca me condenou a este purga-
tório de rochas e areia, onde procuro uma comunhão com o
passado para compreender o perigo que nos espera.
Os anos foram impiedosos e desgastantes. Que criatura
lastimável me tornei. Antes um arqueólogo de renome,
agora motivo de piada entre meus colegas. Marido, amante
— tudo isso apenas uma lembrança distante. Pai? Não
exatamente. Um mentor aflito, isso sim, um miserável
animal de carga que meu filho precisa conduzir. Cada passo
através do deserto pedregoso faz meus ossos doerem,
enquanto pensamentos para sempre agrilhoados em minha
mente repetem sem parar o mantra apocalíptico e enlou-
quecedor dentro do meu cérebro. Que poder superior
escolheu minha família, entre todas as outras, para torturar?
Por que fomos abençoados com olhos que conseguem
enxergar os avisos da morte, enquanto outros cambaleiam
adiante como se fossem cegos?
Será que estou louco? Essa pergunta nunca me sai da cabeça.
A cada nova manhã, preciso me obrigar a relar as passagens
principais das minhas crônicas, ainda que só para lembrar
que sou, acima de tudo, um cientista. Não, não apenas um
cientista, mas um arqueólogo – alguém em busca do passado
do ser humano, alguém em busca da verdade.
Mas, de que vale a verdade, se ela não pode ser aceita? Para
os meus colegas de trabalho, sem dúvida sou como um idiota
da aldeia, gritando avisos sobre icebergs aos passageiros do
Titanic enquanto o navio inafundável deixa o cais.
É meu destino salvar a humanidade ou simplesmente morrer
como um tolo? Será possível que passei toda uma vida
interpretando erroneamente os sinais?
O raspar de passos sobre sílica e pedra interrompe as
anotações desse tolo.
É meu filho. Batizado há 15 anos com o nome de um
arcanjo pela minha amada esposa, Michael acena para mim,
momentaneamente aquecendo o coração engelhado de seu
pai. Michael é o motivo pelo qual persevero, a razão de eu
não dar cabo de minha miserável existência. A loucura de
minha busca roubou-lhe a infância, mas muito pior foi meu
gesto hediondo, cometido anos antes. É para o futuro dele
que volto a me empenhar, é o destino dele que desejo
mudar.
Deus, permita que este coração fraco aguente o suficiente
para que eu obtenha êxito.
Michael aponta para a frente, me lembrando que a próxima
peça do quebra-cabeça nos espera. Pisando cuidadosamente
para não perturbar o pampa, chegamos ao que acredito ser o
início da mensagem de 3 mil anos de idade. No centro do
platô de Nazca, sagradamente disposto entre as misteriosas
linhas e os zoomorfos colossais, está ele — um círculo
perfeito, profundamente escavado entre as pedras cobertas
de patina preta. Estendendo-se desse misterioso círculo
central, como raios de sol num desenho de criança, estão 23
linhas equidistantes, todas, menos uma, com
aproximadamente 180 metros. Uma está alinhada com o
solstício; outra, com o equinócio, variáveis consistentes com
os outros sítios antigos que passei a vida toda explorando.
É a 23a linha a mais intrigante — um sulco desafiador que
corta o pampa, estendendo-se sobre rochedos e morros por
37 quilômetros!
Michael grita, seu detector de metais disparando ao nos
aproximarmos do centro da figura. Algo foi enterrado ali!
Com vigor renovado, cavamos através da gipsita e da pedra,
expondo a terra amarela abaixo. É um ato condenável,
especialmente para um arqueólogo, mas me convenço de
que o fim irá justificar os meios.
E lá está ele, brilhando sob o sol escaldante. Liso e branco,
um cilindro oco de metal de meio metro de comprimento,
tão fora de lugar no deserto de Nazca quanto eu. Um
desenho com três pontas, parecendo um candelabro, adorna
uma extremidade do objeto. Meu frágil coração trepida, pois
conheço aquele símbolo como a palma da minha mão
calejada. O Tridente de Paracas, o ícone característico de
nosso professor cósmico. Um ideograma similar, com 180
metros de comprimento e 60 metros de largura, cobre todo
um lado de uma montanha perto daqui.
Michael aponta a câmera enquanto abro o cilindro.
Tremendo, retiro o que parece ser um rolo de tela ressecada,
meus dedos sentindo sua desintegração assim que ela
começa a se desenrolar.
É um mapa antigo do mundo, similar àquele a que se referia
quinhentos anos antes o almirante turco Piri Reis. (Acredita-
se que esse misterioso mapa tenha sido a inspiração para a
corajosa expedição de Colombo em 1492.) Até hoje, o mapa
de Piri Re'is do século XIV continua sendo um enigma, pois
nele aparecem não só o território na época ainda não
descoberto da Antártida, mas também o solo do continente,
desenhado como se o gelo não o cobrisse. Radares de satélite
já confirmaram a inacreditável exatidão do mapa, intrigando
ainda mais os cientistas, que se perguntavam como alguém
poderia tê-lo desenhado sem a ajuda de um avião.
Talvez da mesma forma com que estas figuras em Nazca
foram desenhadas.
Como o mapa de Piri Reis, o pergaminho que seguro em
minhas mãos também foi desenhado usando um
conhecimento avançado de trigonometria esférica. Seria o
misterioso cartógrafo o nosso professor ancestral? Disso não
tenho dúvida. A verdadeira pergunta é: por que ele decidiu
nos deixar este mapa em especial?
Michael bate depressa uma Polaroid enquanto o documento
antigo se desfaz, pulverizando-se em minhas mãos.
Momentos depois, fitamos a fotografia, notando que um
objeto, obviamente de grande importância, foi claramente
destacado. E um pequeno círculo, desenhado nas águas do
Golfo do México, situado logo a noroeste da península de
Yucatán.
A localização do marco me assombra. Esse não é um dos
sítios antigos, é algo completamente diferente. Um suor frio
brota de minha pele, uma dormência familiar sobe pelo meu
braço.
Michael sente que a morte se aproxima. Ele vasculha meus
bolsos e rapidamente encontra o comprimido, colocando-o
sob a minha língua.
Meus batimentos cardíacos voltam ao normal, a dormência
diminui. Eu toco seu rosto, e então o convenço a voltar ao
trabalho. Com orgulho, observo-o examinando o recipiente
metálico, seus olhos negros, dois portais para uma mente
incrivelmente treinada. Nada escapa aos olhos do meu filho.
Nada.
Momentos depois, ele faz outra descoberta, que pode
explicar o local destacado no Golfo do México. O
espectrómetro do detector de metais analisou a estrutura
molecular do metal branco e denso — e sua composição
conta toda uma história.
O cilindro antigo é feito de irídio.
Puro irídio.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
14 de junho de 1990
PRÓLOGO
HÁ 65 MILHÕES DE ANOS
VIA LÁCTEA
Uma galáxia espiral – uma das 100 bilhões de ilhas de
estrelas que atravessam a matéria escura do universo.
Girando como um luminoso cata-vento cósmico na
imensidão do espaço, a galáxia arrasta mais de 200 bilhões de
estrelas e incontáveis outros corpos celestes em seu vórtice
titânico.
Examinemos este círculo galáctico. Observando a formação
dentro dos nossos limites tridimensionais, nosso olhar é
atraído inicialmente para o bojo da galáxia, composto de
bilhões de estrelas vermelhas e laranja, rodopiando dentro
de nuvens de poeira estelar de uns 15 mil anos-luz de
diâmetro (um ano-luz equivalendo aproximadamente a 9
trilhões e meio de quilômetros). Girando ao redor dessa
região de formato de lente está o disco achatado da galáxia,
com 2 mil anos-luz de espessura e 120 mil anos-luz de
diâmetro, que contém a maior parte da massa galáctica.
Percorrem esse disco os braços em espiral da galáxia, lares de
estrelas brilhantes e luminosas nuvens de gás e poeira —
incubadoras cósmicas que originam novas estrelas. Acima
desses braços, estende-se o halo galáctico, uma região
esparsamente povoada contendo aglomerados globulares que
sustentam os membros mais antigos da família galáctica.
Dali passamos para o verdadeiro coração da galáxia, uma
região complexa, rodeada por nuvens rodopiantes de gás e
poeira. Escondida dentro desse núcleo, está a verdadeira
central de energia da formação celeste — um monstruoso
buraco negro —, um vórtice denso de energia gravitacional,
3 milhões de vezes mais pesado que o Sol. Essa insaciável
máquina cósmica engole tudo o que está ao seu alcance
incomensurável — estrelas, planetas, matéria, até luz —,
enquanto movimenta os corpos celestes da galáxia em
espiral.
Agora vejamos a galáxia de uma dimensão superior — uma
quarta dimensão do tempo e do espaço. Ramificando-se
através do corpo galáctico como artérias, veias e capilares,
existem vasos invisíveis de energia, alguns tão imensos que
poderiam transportar uma estrela; outros, cordões delicados
e microscópicos. Todos são alimentados pelas inimagináveis
forças gravitacionais do buraco negro, localizado na Central
Galáctica. Atravesse o portal de um desses vasos e você terá
acesso a uma rodovia dimensional que cruza os limites do
tempo e do espaço, contanto, é claro, que o seu veículo
possa sobreviver à viagem.
Enquanto a galáxia gira ao redor de seu centro descomunal,
também esses fluxos de energia serpenteiam, sempre
circulando, e continuam sua eterna jornada ao redor da
planície galáctica, como peculiares raios de uma roda
cósmica em perene rotação.
Como um grão de areia apanhado na poderosa corrente de
um fluxo gravitacional, o projétil do tamanho de um
asteróide corre pelo canal dimensional, um portal do tempo
e do espaço atualmente localizado no braço de Órion da
espiral galáctica. A massa ovóide, com mais de 11
quilômetros de diâmetro, é protegida do abraço esmagador
do tubo por um campo de força antigravitacional verde-
esmeralda.
O viajante celestial não está só.
Escondida dentro do rastro do objeto esférico, que está
carregado de magnetismo, e imersa na cauda protetora do
campo de força, está outra nave — menor, esguia, seu
achatado casco em forma de adaga composto de brilhantes
painéis solares dourados.
Navegando através da dimensão do espaço e do tempo, a
rodovia cósmica deposita seus viajantes numa região da
galáxia localizada na borda interior do braço de Órion. À
frente deles, um sistema solar contendo nove corpos
planetários, governado por uma única estrela de um
amarelo-pálido.
Correndo impelida pelo campo gravitacional da estrela, a
imensa nave de irídio se aproxima rapidamente de seu alvo
— Vênus —, o segundo planeta a partir do Sol, um mundo
de calor intenso, envolto numa capa de densas nuvens
ácidas e de dióxido de carbono.
A nave menor se aproxima por trás, revelando sua presença
ao inimigo.
Imediatamente, o transporte de irídio altera o seu curso,
aumentando a velocidade graças à atração gravitacional do
terceiro planeta do sistema, um mundo azul e aquoso
contendo uma atmosfera tóxica de oxigênio.
Com um clarão brilhante, a nave menor emite um pulso
incandescente de energia de uma antena que se estende de
sua proa. A carga corre pelo feixe de íons da cauda
eletromagnética da esfera como um raio percorrendo um
cabo de metal.
A carga é detonada sobre o casco de irídio como uma
aurora, a explosão elétrica pondo em curto o sistema de
propulsão da nave, jogando violentamente o gigante para
fora de sua rota. Em poucos momentos, a massa avariada
sucumbe ao letal abraço do campo gravitacional do planeta
azul.
O projétil do tamanho de um asteróide se precipita rumo à
Terra, fora de controle.
Com um estrondo supersônico, a esfera de irídio viola a
hostil atmosfera. O casco exterior, semelhante a um espelho,
se racha e afunda. Então, se inflama brevemente numa
ofuscante bola de fogo antes de mergulhar num mar raso e
tropical. Sem sofrer quase nenhuma desaceleração pelas
centenas de metros de água, bate no fundo numa fração de
segundo, criando, por um momento surreal, um cilindro
sem água até o leito do oceano.
Um nanossegundo depois, o impacto do corpo celeste cria
uma detonação de um branco brilhante, liberando 100
milhões de megatons de energia.
A fragorosa explosão abala todo o planeta, gerando
temperaturas que excedem os 17 mil graus centígrados, mais
quentes que a superfície do Sol. Duas bolas de fogo gasosas
explodem simultaneamente. A primeira é uma nuvem de
poeira incandescente formada por rocha pulverizada e
irídio, proveniente da desintegração do casco exterior da
nave. Ela é seguida por enormes nuvens de vapor e dióxido
de carbono em alta pressão, os gases liberados na evaporação
do mar e do seu leito calcário.
Os fragmentos e gases superaquecidos sobem para a
atmosfera devastada, impelidos para cima através do vácuo
criado pela queda do objeto. Enormes ondas de choque se
espalham pelo mar, gerando monstruosos tsunamis que
atingem alturas de 90 metros ou mais ao alcançarem águas
rasas e correrem para a costa.
Costa Sul da América do Norte
Em silêncio mortal, o bando de velociraptors se aproxima da
presa, uma fêmea de Corythosaurus de 9 metros de
comprimento. Pressentindo o perigo, o réptil de pés
palmados levanta sua magnífica crista em forma de leque e
fareja o ar úmido, detectando o cheiro do bando. Soltando
um grito de aviso para o resto do grupo, a fêmea corre pela
floresta, galopando em direção ao mar.
Sem aviso, um clarão brilhante atordoa o animal em fuga. O
réptil cambaleia, agitando sua enorme cabeça, tentando
enxergar novamente. Quando sua visão clareia, dois raptors
saltam da vegetação e guincham, bloqueando sua fuga
enquanto o resto do bando pula sobre as costas da
Corythosaurus, perfurando-lhe a carne com as garras mortais
das patas traseiras. Um dos primeiros caçadores encontra a
garganta da fêmea e morde seu esôfago, afundando as garras
curvas na carne macia abaixo do esterno. O réptil ferido
emite um grito sufocado, engasgando-se com o próprio
sangue, ao mesmo tempo em que outro raptor morde seu
focinho achatado, afundando as garras dianteiras em seus
olhos. O pesado réptil é levado ao chão.
Em poucos momentos, tudo está acabado. Os predadores
rosnam, ameaçando-se mutuamente enquanto arrancam
bocados de carne de sua presa ainda trêmula. Ocupados com
a matança, os velociraptors ignoram o chão que treme sob
suas patas e o trovão que se aproxima.
Uma sombra escura passa acima deles. Os dinossauros olham
para cima ao mesmo tempo, o sangue pingando de suas
mandíbulas, e rosnam para a imensa parede de água.
A onda da altura de um prédio de 22 andares atinge seu
ápice — e então cai — esmagando os caçadores surpresos,
liquefazendo seus ossos sobre a areia com um estampido
ensurdecedor. A onda segue para o norte, sua energia ciné-
tica obliterando tudo o que encontra no caminho.
O tsunami inunda a terra, varrendo vegetação, sedimentos e
criaturas terrestres com seu volume estrondoso,
submergindo a costa tropical por centenas de quilômetros
em todas as direções. O pouco de floresta que permanece
fora do caminho do vagalhão pega fogo quando tórridas
ondas de choque transformam o ar numa verdadeira
fornalha. Um par de Pteranodons tenta fugir do holocausto.
Voando acima das árvores, suas asas reptilianas pegam fogo,
incinerando-se no vento térmico.
Lá no alto, fragmentos de irídio e rocha que foram lançados
ao céu começam a voltar para a atmosfera como meteoros
incandescentes. Dentro de horas, todo o planeta está
envolto numa nuvem densa de poeira, fumaça e cinzas.
As florestas arderão durante meses. Por quase um ano,
nenhuma luz solar penetrará o céu enegrecido para atingir a
superfície desse mundo que um dia foi tropical. A
interrupção temporária da fotossíntese vai obliterar milhares
de espécies de plantas e animais na terra e no mar, e à volta
do Sol vão se seguir anos de inverno nuclear.
Num momento cataclísmico, os 140 milhões de anos de
dominio dos dinossauros chegam abruptamente ao fim.
Durante dias, a esguia nave dourada permanece em órbita
acima do mundo devastado, seus sensores rastreando
continuamente o local do impacto. A estrada
quadridimensional para casa foi-se faz tempo, pois a rotação
da galáxia já moveu o ponto de acesso do canal para vários
anos-luz dali.
No sétimo dia, uma luz verde-esmeralda começa a brilhar
sob o leito rachado do oceano. Segundos depois, um potente
sinal de rádio subespacial é emitido, o pedido de ajuda
dirigido para os confins externos da galáxia.
Os seres a bordo da nave em órbita distorcem o sinal —
tarde demais.
O mal se enraizou em mais um jardim celestial. É só uma
questão de tempo até que ele acorde.
A nave dourada se move numa órbita geossíncrona
diretamente acima de seu inimigo. Um sinal automático de
hiperondas de rádio é ativado, bloqueando todas as
transmissões recebidas ou enviadas pelo planeta. Então a
nave se desativa, dirigindo sua energia para os casulos de
sobrevivência.
Para os habitantes da espaçonave, o tempo agora está
imóvel.
Para o planeta Terra, o relógio começou a andar...
1
8 DE SETEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
O Centro de Avaliação e Tratamento do Sul da Flórida é um
edifício de concreto branco de sete andares, decorado com
sempre-vivas e localizado num esquálido bairro latino a
oeste da cidade de Miami. Como a maioria dos prédios
comerciais da área, possui rolos de arame farpado ao redor
do teto. Diferentemente dos outros estabelecimentos, o
arame farpado não está lá para impedir a entrada de
ninguém, e sim a saída dos internos.
Dominique Vazquez, de 31 anos, costura em meio ao
trânsito da hora do rush, xingando alto enquanto acelera
pela Route 441. É o seu primeiro dia de residência e já está
atrasada. Desviando de um adolescente vindo na contramão
de skate motorizado, entra no estacionamento para
visitantes e para o carro. Enquanto corre para a entrada,
prende apressadamente seus longos cabelos negros num
coque.
Portas magnéticas se abrem, dando-lhe acesso a um saguão
com ar-condicionado.
Uma mulher latina de 40 e tantos anos está atrás do balcão
da recepção, lendo o noticiário matutino num computador
do tamanho de uma prancheta, fino como uma folha de
papelão. Sem levantar os olhos, ela pergunta:
— Posso ajudar?
— Sim. Tenho hora marcada com Margaret Reinike.
— Não tem, não. A dra. Reinike não trabalha mais aqui. —
A mulher aperta a tecla page down, visualizando outra
notícia no monitor.
— Mas isso não faz sentido. Falei com a dra. Reinike há duas
semanas.
A recepcionista finalmente olha para cima.
— Qual o seu nome?
— Vazquez, Dominique Vazquez. Vim fazer um ano de
residência como pós-graduanda da Universidade Estadual da
Flórida. A dra. Reinike seria minha supervisora. — Ela
observa a mulher pegar o telefone e teclar um ramal.
— Dr. Foletta, uma jovem chamada Domino Vass...
— Vazquez. Dominique Vazquez.
— Perdão. Dominique Vazquez. Não, senhor, ela está aqui
no saguão. Diz que vai fazer residência e que a dra. Reinike
seria sua supervisora. Sim, senhor. — Após desligar o
telefone, ela se volta para Dominique. — Pode sentar ali.
Daqui a alguns minutos o dr. Foletta vai descer para falar
com você. — A mulher gira a cadeira, dando as costas para
Dominique, e volta a ler no monitor.
Dez minutos se passam antes que um homem corpulento,
de uns 50 anos, desponte de um corredor.
Anthony Foletta destoaria menos num campo de futebol
americano, treinando quartos-zagueiros, do que andando
pelos corredores de uma instituição estatal para psicopatas
criminosos. Uma juba de cabelo grisalho cobre uma cabeça
enorme, que parece grudada diretamente nos ombros.
Acima de bochechas carnudas, seus olhos azuis piscam sob
pálpebras sonolentas. Embora esteja acima do peso, seu
tronco é firme, a barriga saltando um pouco do jaleco
aberto.
Abre um sorriso forçado e uma mão grossa é estendida.
— Anthony Foletta, novo chefe de psiquiatria. — A voz é
profunda e áspera, como um velho cortador de grama.
— O que aconteceu com a dra. Reinike?
— Problemas pessoais. Dizem que o marido dela tem câncer
em fase terminal. Acho que ela decidiu se aposentar mais
cedo. Mas ela me falou sobre você. Se não tiver nenhuma
objeção, vou supervisionar a sua residência.
— Nenhuma objeção.
— Ótimo.
Ele se vira e volta pelo corredor, e Dominique aperta o passo
para alcançá-lo.
— Dr. Foletta, há quanto tempo o senhor está na instituição?
— Dez dias. Fui transferido para cá da unidade estatal em
Massachusetts. Eles se aproximam de um vigia no primeiro
posto de verificação.
— Deixe a sua carteira de motorista com o vigia.
Dominique procura em sua bolsa e entrega ao homem o
cartão plastificado, recebendo em troca o crachá de
visitante.
— Use isto por enquanto — diz Foletta. — Não se esqueça
de devolvê-lo no fim do dia. Vamos providenciar um crachá
codificado de residente antes do fim da semana.
Ela prende o crachá na blusa e o segue até o elevador.
Foletta ergue três dedos para uma câmera montada acima de
sua cabeça. As portas se fecham.
— Você já esteve aqui? Conhece a planta do prédio?
— Não. Só falei com a dra. Reinike por telefone.
— São sete andares. A administração e a central de segurança
ficam no primeiro. A central controla os elevadores dos
funcionários e dos internos. O segundo andar tem uma
pequena unidade médica para idosos e doentes terminais.
No terceiro andar você encontra nosso refeitório e as salas
de convivência. Ele também dá acesso ao mezanino, ao
jardim e às salas de terapia. O quarto, quinto, sexto e sétimo
andares hospedam os internos. — Foletta ri. — O dr.
Blackwell os chama de "clientes". Eufemismo interessante,
considerando que todos vieram para cá algemados.
Eles saem do elevador, passando por um posto de segurança
idêntico ao do primeiro andar. Foletta acena e entra no
curto corredor para a sua sala. Caixas de papelão estão
empilhadas por toda parte, cheias de pastas, diplomas
emoldurados e artigos pessoais.
— Desculpe a bagunça, ainda estou me ajeitando. — Foletta
tira uma impressora de cima de uma cadeira, indicando que
Dominique se sente, e se aperta desconfortavelmente atrás
da escrivaninha, encostando-se na cadeira de couro para dar
espaço à sua barriga.
Ele abre o arquivo pessoal dela.
— Hum. Vejo que está completando seu doutorado na
Universidade Estadual da Flórida. Vai a muitos jogos de
futebol?
— Na verdade, não. — Aproveite a brecha. -— O senhor
parece já ter jogado.
É uma boa aposta e faz o rosto rechonchudo de Foletta
brilhar.
— Fighting Blue Hens of Delaware, turma de 1979. Zagueiro
avançado. Teria começado nas divisões de base da Liga
Nacional se não tivesse estourado o joelho contra o Lehigh.
— Por que o senhor optou pela psiquiatria criminal?
— Meu irmão mais velho sofria de uma obsessão patológica.
Vivia encrencado com a lei. O psiquiatra dele era formado
em Delaware e era fanático por futebol. Eu o levava para o
vestiário depois dos jogos. Quando machuquei o joelho, ele
mexeu os pauzinhos e eu fui admitido como aluno de
graduação. — Foletta inclina-se para a frente, colocando a
pasta sobre a mesa. — Vamos falar de você. Estou curioso.
Há várias outras instituições mais próximas da universidade.
O que trouxe você até aqui?
Dominique pigarreia.
— Meus pais moram em Sanibel. Fica a apenas duas horas
de Miami. Não consigo visitá-los com muita frequência.
Foletta corre seu indicador roliço pelas fichas do arquivo.
— Diz aqui que você nasceu na Guatemala.
— Sim.
— Como veio parar na Flórida?
— Meus pais... meus pais biológicos morreram quando eu
tinha 6 anos. Fui enviada para um primo em Tampa.
— Mas isso não durou muito?
— Isso é importante?
Foletta ergue os olhos, que não estão mais sonolentos.
— Não gosto muito de surpresas, residente Vazquez. Antes
de designar internos, gosto de conhecer a psique dos meus
funcionários. A maioria dos internos não nos dá muitos
problemas, mas é importante lembrar que lidamos com
alguns indivíduos violentos. Pra mim, a segurança é uma
prioridade. O que aconteceu em Tampa? Como foi que você
veio parar num lar adotivo?
— Basta dizer que as coisas não correram bem com meu
primo.
— Ele estuprou você?
Dominique fica chocada com a pergunta direta.
— Se você realmente quer saber, sim. Eu só tinha 10 anos na
época.
— Você ficou sob os cuidados de um psiquiatra?
Ela olha para Foletta. Mantenha a calma, ele está te testando.
— Sim, até os 17 anos.
— Tocar no assunto te incomoda?
— Aconteceu. Acabou. Com certeza influenciou a escolha
da minha carreira, se é o que quer saber.
— E os seus interesses também. Diz aqui que você tem faixa
preta de segundo grau em tae kwon do. Já teve que usá-la?
— Só em torneios.
As pálpebras se erguem muito, os olhos azuis provocando-a
com sua intensidade.
— Diga, residente Vazquez, você imagina o rosto do seu
primo quando golpeia seus oponentes?
— Às vezes. — Ela tira um cacho de cabelos dos olhos. —
Em quem você fingia que estava batendo quando jogava
futebol pelo Fighting Blue Hens?
— Touché. — Os olhos voltam para a pasta. — Você
namora muito?
— Minha vida social também interessa?
Foletta se recosta na cadeira.
— Experiências sexuais traumáticas muitas vezes levam a
desequilíbrios sexuais. Repito, só quero saber com quem
estou trabalhando.
— Não tenho aversão ao sexo, se é o que está perguntando.
Tenho, sim, uma desconfiança saudável de homens
enxeridos.
— Isso não é um retiro espiritual, residente Vazquez. Vai
precisar criar uma casca mais grossa pra lidar com internos
criminosos. Esses homens fizeram suas reputações deitando
e rolando com universitárias bonitas como você. Vindo da
Universidade Estadual, achei que iria agradecer o alerta.
Dominique respira fundo, relaxando seus músculos tensos.
Cacete, dê um jeito no seu ego e preste atenção.
— Tem razão, doutor. Peço
desculpas. Foletta fecha a pasta.
— A verdade é que estou pensando em indicar você para
um trabalho especial, mas preciso ter certeza de que estará à
altura.
Dominique volta a se animar.
—- Pode me colocar à prova.
Foletta retira um grosso envelope marrom da primeira
gaveta da escrivaninha.
— Como sabe, esta instituição acredita numa abordagem
multidisciplinar. Para cada interno são destacados um
psiquiatra, um psicólogo clínico, um assistente social, um
enfermeiro psiquiátrico e um terapeuta ocupacional. Minha
reação inicial, ao chegar aqui, foi achar tudo isso um pouco
excessivo, mas não posso contestar os resultados,
especialmente para pacientes viciados em drogas e na
preparação de indivíduos para julgamentos futuros.
— Mas não nesse caso?
— Não. O interno que quero pôr sob seus cuidados é
paciente meu, veio do sanatório onde eu era diretor de
serviços psicológicos.
— Não entendo. Ele veio para cá com você?
— Nossa instituição perdeu o financiamento há cerca de seis
meses. Ele certamente não está pronto para voltar à
sociedade e precisava ser transferido para algum lugar. Como
sou a pessoa mais familiarizada com o histórico dele, achei
que seria menos traumático para todos os envolvidos se ele
continuasse sob os meus cuidados.
— Quem é ele?
— Já ouviu falar do professor Julius Gabriel?
— Gabriel? — O nome parecia familiar. — Espere aí, não é o
arqueólogo que caiu morto no meio de uma palestra em
Harvard há alguns anos?
— Há mais de dez anos. — Foletta sorri. — Depois de três
décadas recebendo financiamento para suas pesquisas, o
Julius Gabriel voltou para os Estados Unidos e se apresentou
perante uma platéia repleta de colegas, alegando que os
egípcios antigos e os maias construíram as pirâmides com a
ajuda de extraterrestres para salvar a humanidade da
destruição. Consegue imaginar? Ele foi expulso do púlpito a
gargalhadas. Deve ter morrido de humilhação. — As
bochechas de Foletta tremem com sua risada. — O Julius
Gabriel era um caso clássico de paranóia esquizofrênica.
— E quem é o paciente?
— O filho dele. — Foletta abre o envelope. — Michael
Gabriel, 34 anos. Prefere ser chamado de Mick. Passou os
primeiros 20 e tantos anos de sua vida trabalhando ao lado
dos pais em escavações arqueológicas, o que deve bastar para
deixar qualquer criança psicótica.
— Por que ele foi preso?
— O Mick perdeu a cabeça durante a palestra do pai. O
tribunal o diagnosticou paranóico-esquizofrênico e o enviou
para o Hospital Psiquiátrico Estadual de Massachusetts. Lá
fui psiquiatra dele e continuei sendo mesmo depois de ser
promovido a diretor em 2006.
— Ele tem as mesmas ilusões que o pai?
-— Claro. Pai e filho estavam convencidos de que uma
calamidade terrível varrerá a humanidade do planeta. O
Mick também sofre das costumeiras manias paranoicas de
perseguição, a maioria causada pela morte do pai e por seu
próprio confinamento. Alega que uma conspiração do
governo o manteve trancado todos esses anos. Na mente do
Mick Gabriel, ele é a maior das vítimas, um inocente
tentando salvar o mundo, atingido pelas ambições imorais de
um político egocêntrico.
— Desculpe, me perdi nessa última parte.
Foletta folheia as fichas, retirando várias Polaroids de um
envelope. Este é o homem que ele atacou. Dê uma boa
olhada na foto. Trate de não baixar a guarda.
E um close-up do rosto de um homem, brutalmente
espancado. A órbita do olho direito está coberta de sangue.
— O Mick arrancou o microfone do pedestal e bateu na
vítima até ela desmaiar. O pobre homem acabou perdendo
um olho. Acho que vai reconhecer o nome. Pierre Borgia.
— Borgia? Está brincando? O secretário de Estado?
— Isso foi há quase 11 anos, antes que o Borgia fosse
nomeado delegado da ONU. Ele era candidato a senador, na
época. Há quem diga que a agressão o ajudou a se eleger.
Antes que a máquina política dos Borgia o empurrasse para a
vida pública, parece que o Pierre era um acadêmico e tanto.
Ele e o Julius Gabriel estavam no mesmo programa de
doutorado em Cambridge. Acredite se quiser, mas os dois
chegaram a trabalhar juntos depois de formados. Exploraram
ruínas antigas por uns cinco ou seis anos antes de terem um
desentendimento sério. A família de Borgia finalmente o
convenceu a voltar para os Estados Unidos e entrar na
política, mas o ressentimento nunca foi embora.
Foletta faz uma pausa e logo prossegue.
— O fato é que foi o Borgia que apresentou o Julius como o
principal palestrante. O Pierre provavelmente disse algumas
coisas que não deveria ter dito, que ajudaram a provocar o
público. O Julius Gabriel tinha coração fraco. Depois que ele
morreu nos bastidores, Mick foi à forra. Foram precisos seis
policiais para controlá-lo. Está tudo no arquivo.
— Isso me parece mais uma explosão emocional isolada,
provocada por...
— Esse tipo de fúria leva anos para se acumular, residente.
O Michael Gabriel era um vulcão à espera da erupção. Aqui
temos um filho único, criado por dois arqueólogos de
renome nas áreas mais desoladas do mundo. Ele nunca foi à
escola, nem teve a oportunidade de conviver com outras
crianças, e tudo isso contribuiu para um caso extremo de
distúrbio de personalidade antissocial. Caramba, acho que o
menino nunca nem namorou. Tudo o que ele aprendeu foi
ensinado por seus únicos companheiros, seus pais, e pelo
menos um dos dois era comprovadamente psicótico.
Foletta lhe entrega o arquivo.
— O que aconteceu com a mãe dele?
— Morreu de câncer no pâncreas enquanto a família
morava no Peru. Por algum motivo, sua morte ainda o
assombra. Uma ou duas vezes por mês ele acorda gritando.
Tem terrores noturnos pavorosos.
— Quantos anos Mick tinha quando ela morreu?
— Doze.
— Sabe por que a morte dela ainda causa tamanho trauma a
ele?
— Não. Mick se recusa a falar sobre isso. — Foletta se ajeita,
incapaz de ficar confortável na pequena cadeira. — A
verdade, residente Vazquez, é que Michael Gabriel não
gosta muito de mim.
— Transferência de neurose?
— Não. Mick e eu nunca tivemos esse tipo de
relacionamento médico-paciente. Eu me tornei seu
carcereiro, personagem de sua paranoia. Parte disso, sem
dúvida, se originou em seus primeiros anos como interno.
Ele teve dificuldades para se adaptar ao confinamento. Uma
semana antes de sua avaliação semestral, ele perdeu a cabeça
com um de nossos vigias. Quebrou os dois braços dele e deu
vários pontapés na virilha. Causou tantos danos que seus
dois testículos tiveram que ser removidos. Tem uma foto no
arquivo, se quiser...
— Não, obrigada.
— Como punição pela agressão, Mick passou a maior parte
dos últimos dez anos em confinamento solitário.
— Isso é um pouco severo, não é?
— A meu ver, não. Ele é muito mais esperto do que os
homens que contratamos para vigiá-lo. É melhor para todos
se ele for mantido em isolamento.
— Ele vai ter permissão para participar de atividades
coletivas?
— A instituição tem regras rígidas para a reintegração de
internos, mas por enquanto a resposta é não.
Dominique olha novamente as Polaroids.
— O quanto devo me preocupar com um provável ataque
desse paciente?
— No nosso ramo, residente, precisamos nos preocupar
sempre. Mick Gabriel pode atacar? Sempre. Será que ele vai
atacar? Duvido. Os últimos dez anos não foram fáceis para
ele.
— Ele vai ser reintegrado à sociedade um dia?
Foletta balança a cabeça.
— Nunca. Na estrada da vida, esta é a última parada de Mick
Gabriel. Ele nunca vai ser capaz de enfrentar os rigores da
sociedade. Tem medo.
— Medo de quê?
— De sua própria esquizofrenia. Mick diz que pode sentir a
presença do mal ficando mais forte, se alimentando do ódio
e da violência na sociedade. Sua fobia chega ao ponto de
explosão toda vez que um adolescente revoltado pega a arma
do pai e entra atirando numa escola. Esse tipo de coisa
realmente o afeta.
— Isso também me afeta.
— Não da mesma forma. Mick vira um tigre.
— Ele está sob medicação?
— Administramos Zyprexa duas vezes ao dia. Tira a maior
parte de seu ímpeto de luta.
— E o que você quer que eu faça com ele?
— A lei estadual exige que ele receba terapia. Use a
oportunidade para adquirir uma experiência valiosa.
Ele está escondendo alguma coisa.
— Agradeço a oportunidade, doutor. Mas por que eu?
Foletta se afasta da escrivaninha e fica de pé, a mobília
rangendo com seu peso.
— Como sou diretor desta instituição, muitas pessoas
interpretariam como um conflito de interesses se só eu
tratasse dele.
— Mas por que não destacar uma equipe completa para...
— Não. — A paciência de Foletta já se esgotava. — Michael
Gabriel ainda é meu paciente, e eu vou determinar que tipo
de terapia é melhor pra ele, não um conselho diretor. O que
você logo vai descobrir por si mesma é que Mick é uma
espécie de artista. É bastante esperto, muito eloquente e
inteligente. O QI dele é de quase 160.
— Isso é bastante incomum para um esquizofrênico, não é?
— Incomum, mas não inédito. O que quero dizer é que ele
só manipularia um assistente social ou um terapeuta
ocupacional. É preciso alguém com o seu preparo pra não
cair na dele.
— E quando vou conhecê-lo?
— Agora mesmo. Ele está sendo trazido para uma sala
isolada para que eu possa observar o primeiro encontro de
vocês. Contei a ele tudo sobre você hoje de manhã. Ele está
ansioso para conhecê-la. Mas tome cuidado.
Os quatro últimos andares da instituição, chamados de
unidades pelos funcionários do Centro, abrigam 48 internos
cada. As unidades são divididas em alas norte e sul, cada ala
contendo três núcleos. Um núcleo consiste em uma
pequena sala de convivência com sofás e um aparelho de TV
no centro de oito dormitórios particulares. Cada andar tem
segurança e enfermarias próprias. Não há janelas.
Foletta e Dominique tomam o elevador dos funcionários até
o sétimo andar. Um vigia afro-americano está conversando
com uma das enfermeiras no posto central. A sala isolada
fica à sua esquerda.
O diretor cumprimenta o guarda e apresenta a nova
residente. Marvis Jones tem quase 50 anos e olhos castanhos
gentis que transmitem a confiança adquirida com a
experiência. Dominique nota que o vigia está desarmado.
Foletta explica que armas nunca são permitidas nos andares
dos internos.
Marvis os leva por meio do posto central para um espelho de
segurança de um lado só, através do qual se vê a sala isolada.
Michael Gabriel está sentado no chão, com as costas
apoiadas na parede oposta à janela. Usa camiseta e calça
brancas, e seu físico está surpreendentemente em forma,
com o tórax bem definido. Ele é alto, com quase 1,96 metro,
e pesa 100 quilos. O cabelo é castanho-escuro, um tanto
longo e cacheado nas pontas. O rosto é bonito e bem
barbeado. Uma cicatriz de 7 centímetros se estende do lado
direito da mandíbula, perto da orelha. Seus olhos estão
pregados no chão.
— Ele é bonito.
— O Ted Bundy também era — diz Foletta. — Vou
observar você daqui. Tenho certeza de que Mick vai usar
todo o seu charme para te impressionar. Quando achar que
você aguentou o suficiente, mando a enfermeira entrar e dar
a medicação dele.
— Certo. — Sua voz treme.
Fica calma, caramba.
Foletta sorri.
— Está nervosa?
— Não, só um pouco na expectativa.
Ela sai do posto de segurança, acenando para que Marvis
destranque a sala isolada. A porta se abre, fazendo as
borboletas no seu estômago alçarem voo. Parando o
suficiente para que seu ritmo cardíaco volte ao normal, ela
entra, sentindo um calafrio ao ouvir o duplo clique da porta
se fechando atrás dela.
A sala isolada mede 3 por 4 metros. Tem uma cama de ferro
presa ao chão e à parede à sua frente, suportando um
colchão bem fino. Uma cadeira solitária, também parafusada
ao chão, está diante da cama. O vidro fume na parede, à sua
direita, é a janela de observação. O quarto cheira a
antisséptico.
Mick Gabriel se levanta. Sua cabeça está levemente
inclinada, e ela não consegue ver seus olhos.
Dominique estende a mão, forçando um sorriso.
— Dominique Vazquez.
Mick ergue o olhar, revelando olhos animalescos, tão
intensamente negros que é impossível determinar onde a
pupila termina e a íris começa.
— Dominique Vazquez. Dominique Vazquez. — O interno
pronuncia cada sílaba com cuidado, como que as gravando
na memória. — E um praze...
Seu sorriso desaparece de repente, a expressão sóbria e
analítica fica neutra.
O coração de Dominique lateja em seus ouvidos. Fique
calma. Não se mexa.
Mick fecha os olhos. Algo inesperado está acontecendo com
ele. Dominique vê sua mandíbula se levantar um pouco,
revelando a cicatriz. Suas narinas se abrem como as de um
animal farejando sua presa.
— Posso me aproximar, por favor? — As palavras são ditas
mansamente, quase sussurradas. Ela sente uma barragem
emocional se rompendo por trás da voz.
Dominique luta contra o ímpeto de correr para o vidro
fumê. Os olhos voltam a se abrir.
— Juro pela alma da minha mãe que não vou te machucar.
Vigie as mãos dele. Se ele avançar, mete o joelho.
— Pode se aproximar, mas sem movimentos bruscos, está
bem? O dr. Foletta está olhando.
Mick dá dois passos para a frente, ficando a meio braço de
distância. Ele aproxima o rosto, fechando os olhos e
inspirando — como se o rosto dela fosse uma garrafa de
excelente vinho.
A presença do homem está fazendo os pelos dos braços da
residente ficarem de pé. Ela observa que os músculos faciais
dele se relaxam, sua mente abandona a sala. Seus olhos
fechados se enchem d'água. Várias lágrimas escapam,
escorrendo livremente pelo seu rosto.
Por um breve momento, o instinto materno a faz baixar a
guarda. Será que ele está fingindo? Seus músculos se
retesam.
Mick abre os olhos, agora dois lagos negros. A intensidade
animalesca desapareceu.
— Obrigado. Acho que a minha mãe usava o mesmo
perfume. Ela dá um passo para trás.
— É Calvin Klein. Traz lembranças felizes?
— E algumas ruins também.
O encanto se quebra. Mick se dirige para o catre.
— Você prefere a cadeira ou a cama?
— Pode ser a cadeira mesmo. — Ele espera que ela se sente,
e então se posiciona na beirada da cama para se encostar na
parede. Mick se move como um atleta.
— Você conseguiu se manter em forma.
— Pra quem tem a mente disciplinada, esse pode ser um
resultado da vida na solitária. Faço mil flexões e abdominais
por dia. — Ela sente os olhos dele absorvendo sua silhueta.
— Você também parece malhar bastante.
— Eu tento.
— Vazquez. É com s ou com z?
— Z.
— Porto Rico?
— Sim. Meu... meu pai biológico cresceu em Arecibo.
— É a sede do maior radiotelescópio do mundo. Mas seu
sotaque parece da Guatemala.
— Fui criada lá. — Ele está controlando a conversa. —
Presumo que tenha visitado a América Central?
— Visitei muitos lugares. — Mick cruza as pernas,
assumindo a posição de lótus. — Então você foi criada na
Guatemala. Como veio parar nesta grande terra de
oportunidades?
— Meus pais morreram quando eu era criança. Fui enviada
para morar com um primo na Flórida. Mas vamos falar de
você agora.
— Você disse "pai biológico". Achou importante identificá-lo
assim. Quem é o homem que você considera seu verdadeiro
pai?
— Isadore Axler. Ele e a esposa me adotaram. Passei algum
tempo num orfanato depois de sair da casa dos meus primos.
Iz e Edith Axler são pessoas maravilhosas. Os dois são
biólogos marinhos. Operam uma estação SOSUS na ilha de
Sanibel.
— SOSUS?
— É um sistema submarino de vigilância sonora, uma rede
mundial de microfones submarinos. A Marinha usava o
SOSUS durante a guerra fria para detectar submarinos
inimigos. Agora os biólogos dominam o campo; usam o
sistema para bisbilhotar a fauna marinha. Ele é tão sensível
que permite ouvir grupos de baleias a centenas de
quilômetros de...
Os olhos penetrantes a interrompem.
— Por que você saiu da casa do seu primo? Algo
traumatizante deve ter acontecido, se você foi parar num
orfanato.
Ele é pior que o Foletta.
— Mick, estou aqui pra falar de você.
— Sim, mas talvez minha infância também tenha sido
traumatizante. Talvez sua história possa me ajudar.
— Duvido. Tudo acabou bem. Os Axler me devolveram
minha infância, e eu...
— Mas não sua inocência.
Dominique sente o sangue fugir de seu rosto.
— Muito bem. Agora que já sabemos que você aprende
rápido, vejamos se consegue concentrar esse incrível QI em
si próprio.
— Pra você então me ajudar?
— Pra que possamos nos ajudar
mutuamente. — Você ainda não leu meu
arquivo, leu?
— Não, ainda não.
— Sabe por que o Foletta me indicou pra você?
— Por que não me conta?
Mick olha para as próprias mãos, pensando numa resposta.
— Tem um estudo escrito por Rosenhan. Você já leu?
— Não.
— Se importa de ler antes da nossa próxima sessão? O dr.
Foletta com certeza tem uma cópia em alguma daquelas
caixas de papelão que ele chama de arquivos.
Ela sorri.
— Se é importante pra você, vou procurar.
— Obrigado. — Ele se curva para a frente. — Gosto de você,
Dominique. Sabe por que eu gosto de você?
— Não. — As lâmpadas fluorescentes dançam como o luar
nos olhos dele.
— Gosto de você porque sua mente ainda não está
institucionalizada. Você ainda é novata, e isso é importante
pra mim. Quero me abrir de verdade com você, mas não
posso, pelo menos não nesta sala com o Foletta olhando.
Também acho que você vai se identificar com alguns dos
percalços que enfrentei. Por isso, gostaria de falar com você
sobre muitas coisas, coisas muito importantes. Acha que
poderemos conversar em particular, da próxima vez? Talvez
no jardim?
— Vou pedir ao dr. Foletta.
— Quando perguntar, lembre o doutor das regras da
instituição. Pode também pedir o diário do meu pai? Se você
vai ser minha terapeuta, acho que é de vital importância que
o leia. Você se importaria?
— Será uma honra ler o diário.
— Obrigado. Poderia lê-lo logo, talvez no fim de semana?
Odeio passar dever de casa, afinal, hoje é seu primeiro dia,
mas é vital que você o leia o quanto antes.
A porta se abre, a enfermeira entra. O vigia está lá fora,
olhando para a porta.
— Hora do seu remédio, sr. Gabriel. — Ela lhe entrega o
copo descartável com água, depois o comprimido branco.
— Mick, preciso ir. Foi um prazer conhecê-lo. Farei o
melhor que puder pra terminar meu dever de casa até
segunda, está bem? — Ela fica de pé e se vira para ir embora.
Mick olha para o comprimido.
— Dominique, os seus parentes maternos são maias quiches,
não são?
— Maias? Eu... eu não sei. — Ele sabe que você está
mentindo. — Bem, é possível. Meus pais morreram quando
eu era muito...
Os olhos se erguem de repente, com um efeito desarmante.
— Quatro Ahau, três Kankin. Sabe que dia é esse, não sabe,
Dominique?
Merda...
— Vejo... vejo você mais tarde. — Dominique sai da sala,
esbarrando no vigia.
Michael Gabriel coloca cuidadosamente o comprimido na
boca. Esvazia o copo de água, depois o amassa com a mão
esquerda. Ele abre a boca, permitindo que a enfermeira a
inspecione com seu depressor de língua e sua mini-lanterna,
verificando se o comprimido foi engolido.
— Obrigada, sr. Gabriel. O vigia vai acompanhá-lo de volta
ao seu quarto daqui a alguns minutos.
Mick permanece no catre até a enfermeira fechar a porta.
Ele fica de pé, voltando para a parede oposta, de costas para
a janela. Casualmente, com o indicador da mão direita, tira o
comprimido do copo de papel e o esconde na palma da mão.
Voltando a se sentar no chão na posição de lótus, joga o
copo amassado sobre a cama e enfia o comprimido branco
no sapato.
O Zyprexa será jogado no vaso sanitário quando ele voltar
para a cela.
2
8 de setembro de 2012
CASA BRANCA
O secretário de Estado Pierre Robert Borgia olha para a sua
imagem no espelho do lavabo. Ele ajusta o tapa-olho sobre a
órbita direita, depois ajeita os curtos tufos de cabelo grisalho
dos dois lados da cabeça calva. O terno preto e a gravata
combinando estão imaculados, como de costume.
Borgia sai do lavabo executivo e vira para a direita, acenando
para os membros do gabinete enquanto anda pelo corredor
até o Salão Oval.
Patsy Goodman ergue o olhar do teclado. — Pode entrar.
Ele está esperando. Borgia balança a cabeça e entra. O rosto
magro e pálido de Mark Maller mostra o desgaste de quase
quatro anos no cargo de presidente. O cabelo negro
encaneceu ao redor das têmporas; os olhos, de um azul
penetrante, estão rodeados por mais rugas. Seu físico de 52
anos, notavelmente mais magro, ainda continua firme.
Borgia diz que o presidente parece ter perdido peso.
Maller sorri.
— É a chamada dieta do estresse de Viktor Grozny. Já leu o
relatório matinal da CIA?
— Ainda não. O que o novo presidente da Rússia aptontou
desta vez?
— Convocou uma reunião com os líderes militares da China,
Coréia do Norte, Irã e Índia.
— Com que propósito?
— Conduzir um exercício nuclear retaliatório conjunto, em
resposta aos nossos últimos testes envolvendo o Escudo
Antimíssil.
— Lá vai o Grozny tentando aparecer. Ele continua furioso
porque o FMI cancelou aquele pacote de 20 bilhões de
dólares em empréstimos.
— Seja qual for o motivo, ele está conseguindo inflamar a
paranoia nuclear na Ásia.
— Marko, a reunião do Conselho de Segurança é hoje à
tarde, sei que você não me chamou aqui para discutir
política externa.
Maller balança a cabeça e esvazia sua terceira xícara de café.
— O Jeb decidiu renunciar ao cargo de vice-presidente. Não
pergunte. Pode chamar de motivos pessoais.
Borgia congela.
— Meu Deus, a eleição é daqui a menos de dois meses...
— Já fiz uma reunião extraoficial com os líderes do partido. E
você ou o Ennis Chaney.
Jesus...
— Já falou com ele?
— Não. Quis avisar você primeiro, achei que te devia isso.
Borgia dá de ombros, sorrindo nervosamente.
— O senador Chaney é um bom homem, mas não chega
nem perto de mim quando o assunto é política externa. E
minha família ainda tem muita influência...
— Não tanto quanto você pensa, e as pesquisas mostram que
a maioria dos americanos não está interessada na
militarização da China. O povo vê o Escudo Antimíssil
como a solução final contra a guerra nuclear.
— Tenho que ser curto e grosso, senhor. O Comitê Nacional
Republicano acha mesmo que o país está pronto para um
vice-presidente republicano afro-americano?
— A eleição vai ser apertada. Veja como o Lieberman ajudou
o Gore. O Chaney nos daria a vantagem que precisamos
tanto na Pensilvânia quanto no Sul. Relaxe, Pierre.
Nenhuma decisão será tomada antes de pelo menos trinta a
45 dias.
— Me parece inteligente. A imprensa vai ter menos tempo
para nos massacrar.
— Precisamos nos preocupar com alguma mancha no seu
passado?
— Tenho certeza de que a sua equipe já está verificando isso.
Mark, diga a verdade, o Chaney leva vantagem no páreo?
— As pesquisas de opinião mostram que a popularidade dele
cruza fronteiras partidárias e raciais. Ele tem os pés no chão.
O público confia até mais nele do que no Colin Powell.
— Não confunda confiança com qualificações. — Borgia fica
de pé e anda de um lado para outro. — As pesquisas também
mostram que os americanos estão preocupados com o
colapso da economia russa, e como ele afetaria o mercado
europeu.
— Pierre, calma. Muita coisa pode acontecer em 45 dias.
Borgia expira.
— Desculpe, presidente. Já é uma grande honra ser levado
em conta. Escute, preciso ir. Tenho que me reunir com o
general Fecondo antes do pronunciamento de hoje à tarde.
Borgia aperta a mão do amigo e se dirige à porta camuflada
na parede revestida. Ele se vira antes de sair.
— Marko, você tem algum conselho?
O presidente suspira.
— Não sei. Mas Heidi falou uma coisa no café. Já pensou
em trocar esse tapa-olho por um olho de vidro?
Dominique sai do saguão do Centro, o calor do verão do sul
da Flórida atinge seu rosto em cheio. Um raio distante corta
o ameaçador céu vespertino. Passando o diário encadernado
em couro da mão direita para a esquerda, ela pressiona o po-
legar sobre a fechadura, destrancando a porta do motorista
de seu Pronto Spyder preto. O conversível, novinho em
folha, foi um presente adiantado de formatura de Edie e Iz.
Ela põe o diário no banco do passageiro, afivela o cinto de
segurança e aperta o polegar sobre a ignição, sentindo a
incômoda picada microscópica. O computador do painel
ganha vida, piscando a mensagem:
Ativando seqüência de Ignição.
Identidade Verificada. Sistema Antifurto Desativada.
Ela sente o familiar solavanco das travas da coluna de
direção se soltando.
Verificando Nível de Álcool no Sangue. Por Favor. Aguarde...
Dominique encosta a cabeça no banco de couro, olhando as
primeiras gotas pesadas de chuva que atingem a capota de
tereftalato de polietileno de seu carro esporte. Paciência é
uma necessidade com os novos recursos de ignição segura,
mas ela sabe que vale a pena esperar os três minutos a mais.
A embriaguez ao volante se tornou a principal causa de
mortes nos Estados Unidos. Até o outono do próximo ano,
todos os veículos deverão obrigatoriamente ter instalados os
dispositivos de medição de álcool no sangue.
A ignição é ativada.
Nível Aceitável de Álcool no Sangue. Por Favor, Dirija com Cuidado.
Dominique ajusta o ar-condicionado e em seguida aperta o
botão do CD player Digital DJ. O processador interno reage
ao tom de voz ou ao toque, interpretando o humor do
motorista e selecionando uma música adequada entre
centenas de combinações pré-programadas.
O baixo pesado do último disco dos Rolling Stones, Past Our
Prime, troveja dos alto-falantes do som surround. Ela sai do
estacionamento de visitantes e começa a viagem de quarenta
minutos até sua casa.
Não foi fácil convencer o dr. Foletta a ceder o diário de
Julius Gabriel. Sua objeção inicial foi que o trabalho do
falecido arqueólogo havia sido patrocinado pelas
Universidades de Harvard e Cambridge, e que, legalmente,
seria preciso obter permissão por escrito dos dois
departamentos de pesquisa antes de liberar quaisquer
documentos. Dominique argumentou que precisava ter
acesso ao diário, não só para fazer seu trabalho direito como
para conquistar a confiança de Michael Gabriel. Uma tarde
inteira ligando para chefes de departamento em Harvard e
Cambridge confirmou que o diário era mais um volume de
memórias do que um documento científico, e que ela
poderia usá-lo à vontade, contanto que não levasse a público
nenhuma informação. Foletta finalmente capitulou,
trazendo o caderno de 5 centímetros de espessura no fim do
dia. O acesso ao diário veio apenas depois de Dominique
assinar um acordo de confidencialidade de quatro páginas.
* * *
Já sem a presença da chuva, Dominique entra na garagem
escura da torre de apartamentos em Hollywood Beach. Ela
desliga o motor do carro, olhando para uma imagem
fantasmagórica que aparece no visor instalado no pára-brisa.
A imagem fornecida pela câmera do radiador do carro
confirma que a garagem está vazia.
Dominique sorri da própria paranóia. Toma o antiquado
elevador até o quinto andar, segurando a porta para que a
sra. Jenkins e seu poodle branco possam entrar.
O apartamento de um dormitório, propriedade de seus pais
adotivos, fica no fim do corredor. É o último à direita.
Enquanto ela digita o código de segurança, a porta às suas
costas se abre.
— Dominique, como foi seu primeiro dia de trabalho?
O rabino Richard Steinbetg a abraça, um sorriso terno se
abre por trás da barba grisalha. Steinberg e sua esposa,
Mindy, são grandes amigos de seus pais. Dominique
conhece o casal desde que foi adotada, há quase vinte anos.
— Mentalmente exaustivo. Acho que vou pular o jantar e
entrar numa banheira quentinha.
— Escute, Mindy e eu queremos te chamar pra jantar lá em
casa semana que vem. Pode ser na terça?
— Acho que sim. Obrigada.
— Que bom, que bom. Ah, falei com o Iz ontem. Sabia que
ele e sua mãe estão querendo vir pra cá nas Grandes Festas?
— Não, eu não...
— Olha, preciso ir, não posso me atrasar para o Shabbat.
Até semana que vem.
Ela acena, vendo-o andar apressado pelo corredor.
Dominique gosta de Steinberg e da esposa, acha os dois
afetuosos e autênticos. Ela sabe que Iz lhes pediu para dar
uma atenção paternal a ela.
Dominique entra no apattamento e abre as portas da sacada,
deixando a brisa do oceano encher a sala abafada com uma
lufada de ar marinho. O aguaceiro da tarde espantou a
maioria dos frequentadores da praia, e os últimos raios de sol
escapam de trás das nuvens, lançando um brilho rubro sobre
a água.
E sua hora favorita do dia, a hora da confortante solidão. Ela
pensa em andar sossegadamente pela praia, depois muda de
ideia. Enchendo um copo com vinho de uma garrafa aberta
na geladeira, ela tira os sapatos e volta para a sacada.
Deixando o copo sobre a mesa de plástico, junto com o
grosso diário, ela se deita na espreguiçadeira, esticando-se e
sentindo seu corpo afundar nas almofadas macias.
O mantra sincopado das ondas logo faz sua mágica. Ela toma
um gole de vinho e fecha os olhos, seus pensamentos
voltam mais uma vez ao encontro com Michael Gabriel.
Quatro Ahau, três Kankin. Dominique não ouve essas
palavras desde a infância.
Os pensamentos se transformam num sonho. Ela está de
volta às colinas da Guatemala, com 6 anos de idade, sua avó
materna ao seu lado. As duas estão de joelhos, labutando sob
o sol da tarde nas plantações de cebola. Uma brisa fresca, o
xocomil, sopra do lago Atitlán. A criança ouve com atenção
a voz áspera da velha. "O calendário nos foi passado por
nossos ancestrais olmecas, e sua sabedoria vem do nosso
mestre, o grande Kukulcán. Muito antes de os espanhóis
invadirem nossa terra, o grande mestre nos avisou sobre os
dias desastrosos que estavam por vir. Quatro Ahau, três
Kankin, o último dia do calendário maia. Cuidado com esse
dia, minha filha. Quando a hora chegar, você deve voltar
para casa, pois o Popol Vuh diz que somente aqui
poderemos voltar à vida."
Dominique abre os olhos, fitando o oceano negro. Cristas de
espuma cor de alabastro rolam sob o luar parcialmente
oculto.
Quatro Ahau, três Kankin — 21 de dezembro de 2012.
O dia do profetizado fim da humanidade.
Diário de Julius Gabriel
24 DE AGOSTO DE 2000
Meu nome é professor Julius Gabriel.
Sou um arqueólogo, um cientista que estuda relíquias do
passado para entender culturas antigas. Uso evidências
deixadas pelos nossos ancestrais para tecer hipóteses e
formular teorias. Peneiro milhares de anos de mitos para
encontrar isolados veios de verdade.
Através das eras, cientistas como eu aprenderam do jeito
mais difícil que o medo do homem muitas vezes suprime a
verdade. Rotulada como heresia, seu ímpeto é sufocado até
que a Igreja e o Estado, o juiz e o júri sejam capazes de
deixar seus medos de lado e aceitar o que é real.
Sou um cientista. Não sou um político. Não estou in-
teressado em apresentar anos de teorias apoiadas em fatos
para uma assembleia de autodenominados acadêmicos, para
que eles votem no que pode ou não pode ser uma verdade
aceitável sobre o destino da humanidade. A natureza da
verdade não tem nada a ver com o processo democrático.
Como um repórter investigativo, só me interessa o que real
mente aconteceu e o que pode de fato acontecer. E se a
verdade resultar tão inacreditável que me rotulem como
herege, que seja.
Afinal, estou em boa companhia: Darwin era um herege; e
Galileu antes dele; há quatrocentos anos, Giordano Bruno foi
condenado à fogueira por insistir que existiam outros
mundos além do nosso.
Como Bruno, estarei morto bem antes que o amargo fim da
humanidade chegue. Aqui jaz Julius Gabriel, vítima de um
coração doente. Meu médico impõe seus cuidados, avisando
que meu coração não passa de uma bomba-relógio que pode
explodir a qualquer momento. Que exploda, eu digo. Esse
órgão inútil só me fez sofrer desde que se rompeu, há 11
anos, quando minha amada se foi.
Estas são minhas memórias, o relato de uma jornada que
começou há uns 32 anos. Meus objetivos em coletar essas
informações são dois. Primeiro, a natureza da pesquisa é tão
polêmica, e seus desdobramentos, tão aterrorizantes, que
agora percebo que a comunidade científica fará tudo o que
estiver ao seu alcance para sufocar, abafar e negar a verdade
sobre o destino do homem. Por último, sei que há indiví-
duos em meio ao povo que, como meu próprio filho,
preferem lutar a ficar passivos enquanto o fim se aproxima.
Para vocês, meus "guerreiros da salvação", eu deixo este
diário, passando com ele o bastão da esperança. Décadas de
labuta e sofrimento se escondem nestas páginas, neste
pedacinho da história do homem, extraída de anos de
calcário. O destino da nossa espécie está agora nas mãos do
meu filho — e talvez nas suas. Na pior das hipóteses, vocês
não farão mais parte da maioria que Michael chama de
"inocentes ignorantes". Rezem para que homens como meu
filho possam resolver o antigo enigma dos maias. E rezem
por vocês mesmos.
Dizem que o medo da morte é pior do que a própria morte.
Eu acredito que testemunhar a morte de um ente querido
seja pior ainda. Ter visto a vida da minha alma gêmea
escapar diante de meus olhos, ter sentido o seu corpo esfriar
em meus braços — isso é desespero demais para um coração
aguentar. As vezes, chego a ficar grato por estar morrendo,
pois nem consigo imaginar a angústia de testemunhar toda
uma população sofrendo em meio ao holocausto planetário
que está por vir.
Para aqueles dentre vocês que riem de minhas palavras, um
aviso: o dia do acerto de contas se aproxima rapidamente, e
ignorar o fato não mudará em nada o resultado.
Hoje, aguardo nos bastidores, em Harvard, organizando
estes textos enquanto espero minha vez na tribuna. Tanta
coisa depende do meu discurso, tantas vidas. Minha maior
preocupação é que os egos dos meus colegas sejam grandes
demais para permitir que as minhas descobertas sejam
ouvidas com mente aberta. Se eu tiver a chance de
apresentar os fatos, sei que poderei instigá-los como
cientistas. Se eu for ridicularizado, meu medo é que tudo
estará perdido.
Medo. Não tenho dúvidas quanto ao efeito motivador que
essa emoção tem sobre mim agora. Porém, não foi o medo
que me pôs nesta jornada naquele fatídico dia de maio de
1969, e sim o desejo de conseguir fama e fortuna. Na época,
eu era jovem e imortal, ainda cheio de empáfia e cinismo,
tendo recebido recentemente meu título de doutor cum
laude da Universidade de Cambridge. Enquanto o resto dos
meus colegas estava ocupado protestando contra a guerra do
Vietnã, fazendo amor e lutando por igualdade, eu parti com
a herança do meu pai, acompanhado de dois colegas
arqueólogos e companheiros: meu (ex) melhor amigo, Pierre
Borgia, e a estonteante Maria Rosen. Nosso objetivo —
desvendar o grande mistério que cercava o calendário maia e
sua profecia de 2.500 anos que anunciava o fim do mundo.
Nunca ouviu falar da profecia do calendário maia? Não estou
surpreso. Hoje em dia, quem tem tempo para se preocupar
com um oráculo de morte originado numa antiga civilização
mesoamericana?
Daqui a 11 anos, quando vocês e seus entes queridos
estiverem se retorcendo no chão, lutando para puxar o
último hausto de ar, com sua vida passando diante de seus
olhos — pode ser que se arrependam de não ter tido tempo.
Vou até dizer o dia em que vocês vão morrer: 21 de
dezembro do ano de 2012.
Pronto, vocês foram oficialmente avisados. Agora podem
agir ou enfiar a cabeça na areia da ignorância, como o resto
de meus cultos colegas.
Naturalmente, é fácil para seres humanos racionais desprezar
a profecia maia do Juízo Final como uma mera bobagem
supersticiosa. Ainda me lembro da reação do meu professor
ao descobrir a área em que eu pretendia me especializar:
Está perdendo o seu tempo, Julius. Os maias eram bárbaros,
um bando de selvagens que moravam no mato e
acreditavam em sacrifícios humanos. Pelo amor de Deus,
eles não conheciam nem a roda...
Meu professor estava ao mesmo tempo certo e errado, e esse
é o paradoxo. Embora seja verdade que os antigos maias mal
entendiam a importância da roda, eles conseguiram, de fato,
adquirir conhecimentos avançados de Astronomia,
Arquitetura e Matemática que, de muitas maneiras,
rivalizavam e até superavam os nossos. Em termos laicos, os
maias eram equivalentes a uma criança de 4 anos que
consegue tocar a Sonata ao Luar de Beethoven no piano,
enquanto continua incapaz de martelar "O Bife".
Vocês acham difícil acreditar nisso, tenho certeza; a maioria
dos autodenominados "cultos"acha. Mas as evidências são
esmagadoras. E foi isso que me impeliu a começar minha
jornada, pois simplesmente ignorar a riqueza de
conhecimentos do calendário por causa de sua inimaginável
profecia teria sido um crime tão grande quanto menosprezar
sumariamente a teoria da relatividade porque Einstein já
trabalhou como contínuo.
Então, o que é o calendário maia?
Uma breve explicação:
Se eu pedisse para vocês explicarem a função de um
calendário, sua resposta imediata provavelmente seria
descrever o dispositivo como um meio de lembrar seus
compromissos semanais ou mensais. Indo além desse âmbito
limitado, vejamos o calendário como o que ele realmente
é— uma ferramenta projetada para determinar (tão
precisamente quanto possível) a órbita anual da Terra ao
redor do Sol.
Nosso calendário ocidental moderno foi introduzido pela
primeira vez na Europa, em 1582. Foi baseado no calendário
gregoriano, que calculava a órbita da Terra ao redor do Sol
com uma duração de 365,25 dias. Ele incorporava um
minúsculo erro de 0,0003 dia por ano para mais, algo
bastante impressionante para cientistas do século XVI.
Os maias derivaram seu calendário de seus ancestrais, os
olmecas, um povo misterioso cujas origens remontam a uns
3 mil anos atrás. Imaginem-se por um momento vivendo há
milhares de anos. Não existe televisão, rádio, telefones ou
relógios, e sua tarefa é mapear as estrelas para determinar a
passagem de tempo que equivale a uma órbita planetária. De
alguma forma, os olmecas, sem instrumentos de precisão,
calcularam a duração do ano solar em 365,2420 dias,
incorporando um erro ainda menor de 0,0002 por dia.
Deixe-me repetir para que vocês entendam as implicações: o
calendário maia tem 3 mil anos de idade e é um décimo
milésimo de dia mais preciso do que o calendário que o
mundo usa atualmente!
Tem mais. O calendário solar maia é só uma parte de um
sistema com três calendários. O segundo, o "calendário
cerimonial", funciona junto com ele e consiste em vinte
meses de 13 dias. A terceira parte, o "calendário venusiano"
ou "Contagem Longa", foi baseado na órbita do planeta
Vénus. Combinando esses três calendários num só, os maias
conseguiram determinar eventos celestiais ao longo de
enormes passagens de tempo, não só de milhares, mas de
milhões de anos. (Num monumento mesoamericano em
particular, uma inscrição se refere a um período de tempo
iniciado há 400 milhões de anos.)
Já estão impressionados?
Os maias acreditavam em Grandes Ciclos, períodos de
tempo que registravam as criações e destruições previstas do
mundo. O calendário demarcou os cinco Grandes Ciclos, ou
Sóis, da Terra. O ciclo atual, o último, começou em 4 Ahau
8 Cumku, data correspondente a 13 de agosto de 3.114 a.C.,
considerada pelos maias como a data de nascimento do
planeta Vênus. Está previsto que esse último Grande Ciclo
terminará com a destruição da humanidade em 4 Ahau 3
Kankin, data determinada como 21 de dezembro do ano de
2012 — o dia do solstício de inverno.
O Dia dos Mortos.
Quão convencidos estavam os maias da veracidade de sua
profecia? Depois da partida de seu grande mestre, Kukulcán,
os maias começaram a praticar rituais bárbaros envolvendo
sacrifícios humanos, arrancando os corações de dezenas de
milhares de homens, mulheres e crianças.
O sacrifício supremo — tudo para impedir o fim da
humanidade.
Não peço que vocês recorram a expedientes tão bizarros,
mas apenas que abram sua mente. O que não conhecemos
pode nos afetar, o que nos recusamos a enxergar pode nos
matar. Existem mistérios que nos cercam cujas origens não
podemos compreender, mas precisamos! As pirâmides de
Gizé e Teotihuacán, os templos de Angkor no Camboja,
Stonehenge, a incrível mensagem inscrita no deserto de
Nazca e, acima de tudo, a pirâmide de Kukulcán em
Chichén Itzá. Todos esses sítios antigos, todas essas
maravilhas magníficas e inexplicáveis não foram criados para
serem atrações turísticas, mas são peças de um único e
intrigante quebra-cabeça que pode evitar a aniquilação de
nossa espécie.
Minha jornada pela vida está quase no fim. Deixo essas
memórias, um resumo das provas esmagadoras que acumulei
durante três décadas, para o meu filho Michael e para todos
aqueles que querem continuar o meu trabalho ad finem —
até o fim. Enquanto apresento as pistas e a forma como as
encontrei, tentarei pintar um quadro histórico com os fatos
e seu acontecimento ao longo da linha do tempo da história
do homem.
Quero deixar registrado que não sinto satisfação nenhuma
por estar certo. Quero deixar registrado que peço a Deus que
eu esteja errado.
Eu não estou errado...
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo J G 1969-70 páginas 12-28
3
11 DE SETEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
Michael Gabriel está sonhando.
Mais uma vez, ele está sentado no chão, nos bastidores de
um auditório, a cabeça de seu pai apoiada em seu peito
enquanto esperam a ambulância. Julius acena para que o
filho aproxime o ouvido, para que ele possa sussurrar um
segredo que guarda desde a morte de sua esposa, 11 anos
antes.
— Michael... a pedra central.
— Não tente falar, papai. A ambulância está chegando.
— Escute, Michael! A pedra central, o marco do campo. Eu
coloquei de volta.
— Não estou entendendo. Que pedra?
— Em Chichén Itzá.
Os olhos cansados ficam baços, o peso do corpo do pai
amolece contra o seu peito.
— Pai... PAI!
Mick acorda com o corpo banhado de suor.
Dominique acena distraidamente para a recepcionista e
segue direto para o posto central da segurança. Um vigia
musculoso sorri quando ela se aproxima, o bigode ruivo do
homem se ergue e se espalha por seu lábio superior, revelan-
do dentes amarelados.
— Bom dia, gatinha. Meu nome é Raymond, e aposto que
você é a nova residente.
— Dominique Vazquez. — Ela aperta sua mão calejada,
notando gotículas de transpiração em seu antebraço grosso e
sardento.
— Desculpe, acabei de chegar da academia. — Raymond
enxuga os braços com uma toalha de mão, exagerando os
movimentos para flexionar os músculos. — Vou competir
no torneio regional pra Mister Flórida em novembro. Acha
que tenho chances?
— Hã, claro. — Meu Deus, por favor, tomara que ele não
comece a posar...
— Você podia ir junto e me ver competir, viu? Torcer por
mim? — Os pálidos olhos castanhos se abrem sob as
sobrancelhas curtas e avermelhadas.
Seja gentil.
— Muitos funcionários vão?
— Alguns, mas vou te garantir um lugar perto do palco. Vem
pros fundos, gatinha, preciso fazer o teu crachá e gravar uma
imagem térmica do teu rosto.
Raymond destranca o portão de aço e o segura aberto para
ela, flexionando o tríceps. Dominique sente os olhos dele
correndo pelo seu corpo ao passar.
— Senta aí, vamos fazer o crachá primeiro. Vou precisar da
sua carteira de motorista.
Ela entrega o documento e se senta numa cadeira reta,
posicionada diante de uma máquina preta do tamanho de
uma geladeira. Raymond enfia um disquete quadrado numa
fenda lateral, depois digita as informações no computador.
— Sorria. — O flash explode em seus olhos, deixando uma
mancha incômoda. — O crachá fica pronto no fim do dia.
— Ele devolve a carteira de motorista. — Certo, agora pode
sentar na frente desta câmera infravermelha. Já mapeou seu
rosto?
Já depilou suas costas?
— Hã, que eu saiba, não.
— A câmera infravermelha cria uma imagem única do seu
rosto, registrando o calor emitido pelos vasos sanguíneos sob
a pele. Até gêmeos idênticos têm padrões faciais diferentes
para o infravermelho, e esses padrões nunca mudam. O
computador registra 1.900 pontos térmicos distintos. O
rastreamento da pupila usa 266 características mensuráveis,
e as impressões digitais, só quarenta...
— Ray, tudo isso é fascinante, de verdade, mas é mesmo
necessário? Não vi ninguém usando sensores
infravermelhos.
— É porque você não esteve aqui à noite. A tarja magnética
do seu crachá é tudo que você precisa para entrar ou sair da
instituição durante o dia. Mas depois das sete e meia da
noite, vai precisar digitar sua senha e se identificar para o
sensor infravermelho. A máquina vai comparar sua imagem
térmica facial com as imagens que vamos registrar no seu
arquivo permanente. Ninguém entra ou sai deste prédio à
noite sem ser identificado, e nada engana a máquina. Sorria.
Dominique olha desanimadamente para a câmera esférica
por trás da chapa de vidro, sentindo-se boba.
— Certo, vire pra esquerda. Ótimo. Agora pra direita. Agora
olhe pra baixo. Acabou. Ei, gatinha, você gosta de comida
italiana?
Pronto.
— De vez em quando.
— Tem um restaurante ótimo aqui pertinho. A que horas
você sai?
— Hoje à noite não é um bom...
— Quando é bom?
— Ray, preciso ser sincera, eu nunca saio com colegas de
trabalho.
— Quem falou em sair? Só falei de jantar.
— Se é só pra jantar, então tudo bem, eu adoraria ir um dia,
mas hoje não dá mesmo. Me dê algumas semanas pra me
ajeitar. — E pra inventar outra desculpa. Ela abre um sorriso
doce, esperando diminuir a dor da rejeição. — Além do
mais, se você está treinando não pode se encher de comida
italiana.
— Tudo bem, então, mas vou te cobrar. — O ruivão sorri. —
Escute, se precisar de alguma coisa, é só chamar.
— Não vou precisar. Preciso ir. O dr. Foletta está
esperando...
— O Foletta só chega à tarde. Está na reunião mensal do
conselho. Ei, ouvi dizer que ele te destacou pra aquele
paciente dele. Como é o nome dele mesmo?
— Michael Gabriel. O que você sabe sobre ele?
— Não muito. Foi transferido de Massachusetts junto com o
Foletta. Eu sei que o conselho e a equipe médica ficaram
muito putos quando ele chegou. O Foletta deve ter mexido
uns pauzinhos.
— Como assim?
Raymond vira a cabeça, evitando o olhar dela.
— Ah, deixa pra lá.
— Vamos, me conte.
— Não, preciso aprender a fechar a matraca. O Foletta é o
seu chefe. Não quero dizer nada que possa causar uma má
impressão.
— Fica só entre nós dois.
Mais dois vigias entram, acenando para Raymond.
— Tudo bem, eu conto, mas não aqui. Ouvidos atentos e
bocas grandes demais. A gente conversa no jantar. Eu saio às
seis. — Os dentes manchados aparecem num sorriso
triunfante.
Raymond abre o portão para ela. Dominique sai do posto de
segurança e espera pelo elevador de funcionários sorrindo
amarelo. Parabéns, gatinha. Você devia ter imaginado que ia
dar nisso.
Marvis Jones a observa sair do elevador em seu monitor de
segurança.
— Bom dia, residente. Se está aqui para ver o interno
Gabriel, ele está confinado no quarto.
— Posso vê-lo?
O vigia ergue o olhar dos papéis.
— Talvez seja melhor esperar que o diretor volte.
— Não. Quero falar com ele agora. E não na sala isolada.
Marvis parece contrariado.
— Te aconselho a não fazer isso. Esse sujeito tem um
histórico de violência e...
— Não sei se eu caracterizaria um episódio em 11 anos
como um histórico.
Seus olhares se cruzam. Marvis percebe que Dominique não
vai ceder.
— Certo, moça, como quiser. Jason, acompanhe a residente
Vazquez ao quarto 714. Dê o seu transponder de segurança
para ela e tranque-a lá dentro.
Dominique segue o vigia por um corredor curto, entrando
no núcleo central de três situado na ala norte. A área da
entrada está vazia.
O vigia para diante do quarto 714 e fala no interfone do
corredor.
— Interno, sente na cama, onde eu possa vê-lo. — Ele
destranca a porta e entrega a Dominique o que parece uma
caneta grossa. — Se precisar de mim, dê dois cliques nesta
caneta. — Ele faz uma demonstração, e o receptor em sua
cintura vibra. — Mas tome cuidado. Não o deixe chegar
muito perto.
— Obrigada. — Ela entra no quarto.
A cela mede 3 metros por 4. A luz do dia entra por uma tira
de plástico de 8 centímetros de largura que percorre
verticalmente uma das paredes. Não há janelas. A cama é de
ferro, presa ao chão. Uma escrivaninha e alguns escaninhos
estão parafusados ao lado dela. Uma pia e uma privada de aço
ficam na parede à direita, fora do rumo do corredor para dar
ao ocupante alguma privacidade.
A cama está arrumada, o quarto imaculado. Michael Gabriel
está sentado sobre o colchão da espessura de uma revista.
Ele se levanta, cumprimentando-a com um sorriso afetuoso.
— Bom dia, Dominique. Vejo que o dr. Foletta ainda não
chegou. Que sorte.
— Como você sabe?
— Porque estamos conversando na minha cela, e não na
sala de entrevista. Por favor, sente na cama, eu fico no chão.
A menos que prefira sentar na privada?
Ela retribui o sorriso, sentando-se na beirada do colchão.
Mick se apoia na parede à esquerda. Seus olhos negros
brilham sob a luz fluorescente.
Ele não perde tempo para começar a interrogá-la.
— Como foi o seu fim de semana? Leu o diário do meu pai?
— Desculpe. Só consegui ler as primeiras dez páginas. Mas
terminei de ler o estudo do Rosenhan.
— Sobre ser são em lugares insanos. O que achou?
— Achei interessante, talvez até um pouco surpreendente. A
equipe dele teve bastante dificuldade em distinguir os
voluntários dos pacientes. Por que você quis que eu lesse?
— Por que você acha? — Os olhos de ébano cintilam para
ela, refletindo sua inteligência felina.
— Obviamente quer que eu considere a possibilidade de
você não ser louco.
— Obviamente. — Ele se endireita, cruzando os
calcanhares na posição de lótus. — Vamos fazer um jogo.
Volte no tempo 11 anos e imagine que você é o Michael
Gabriel, filho do arqueólogo Julius Gabriel, a poucos minutos
do ridículo e de uma morte fulminante. Você está nos
bastidores, na Universidade de Harvard, diante de uma
plateia lotada, ouvindo seu pai compartilhar uma vida de
informações com algumas das maiores mentes da
comunidade científica. Seu coração está acelerado pela
adrenalina, porque você trabalhou ao lado dele desde que
nasceu, e sabe o quanto essa palestra é importante, não só
para ele, mas para o futuro da humanidade. Aos dez minutos
da palestra, você vê o arqui-inimigo de longa data de Julius
cruzar o palco até outra tribuna. Pierre Borgia, o filho
pródigo de uma dinastia política, decide desafiar a pesquisa
do meu pai ali mesmo, no palco. Na verdade, a palestra toda
é uma grande cilada, preparada pessoalmente por Borgia para
promover um ataque verbal ao meu pai e destruir sua
credibilidade. Pelo menos 12 pessoas na plateia sabiam da
brincadeira. Depois de dez minutos, Julius mal conseguia se
fazer ouvir em meio às risadas dos colegas.
Mick para, momentaneamente perdido na lembrança.
— Meu pai era um homem altruísta e brilhante que dedicou
sua vida à busca da verdade. No meio do pronunciamento
mais importante de sua carreira, viu sua existência inteira
roubada, seu orgulho destruído, o trabalho de uma vida, 32
anos de sacrifício, desmoralizado num piscar de olhos. Pode
imaginar a humilhação que ele sentiu?
— O que aconteceu depois?
— Ele cambaleou para os bastidores e caiu nos meus braços,
com a mão no peito. Julius tinha o coração fraco. Com suas
últimas energias, murmurou algumas instruções pra mim e
morreu nos meus braços.
— E foi aí que você atacou o Borgia?
— O desgraçado ainda estava no palco cuspindo ódio. Apesar
do que com certeza te disseram, não sou um homem
violento. — Seus olhos escuros se arregalam. — Mas,
naquele momento, eu queria enfiar o microfone na garganta
dele. Lembro que andei em volta da tribuna, o mundo ao
meu redor se movendo em câmera lenta. Só conseguia ouvir
a minha respiração e só conseguia ver o Borgia, mas parecia
que eu estava olhando pra ele através de um túnel. Quando
dei por mim, ele estava no chão e eu estava amassando a
cabeça dele com o microfone.
Dominique cruza as pernas, disfarçando um calafrio.
— O corpo do meu pai foi parar no necrotétio municipal e
foi cremado sem nenhuma cerimônia. O Borgia passou as
três semanas seguintes num quarto de hospital particular, de
onde a família dirigia a campanha dele pro Senado,
construindo o que a imprensa chamou de "uma virada sem
precedentes". Eu estava apodrecendo numa cela de cadeia,
sem amigos ou família pra pagar a minha fiança, esperando
enfrentar uma acusação de agressão. Mas o Borgia tinha
outras idéias. Usou a influência política da família e
manipulou o sistema, entrando num acordo com o promotor
e o defensor público que foi indicado pra mim. No final, fui
declarado maluco e o juiz me mandou pra um sanatório
decrépito em Massachusetts, onde, com o perdão pelo
trocadilho, o Borgia podia ficar com um olho em mim.
— Você disse que o Borgia manipulou o sistema judiciário.
Como?
— Da mesma forma que ele manipula Foletta, meu guardião
nomeado pelo Estado. Pierre Borgia recompensa a lealdade,
mas que Deus ajude quem vai pra lista negra dele. O juiz que
me sentenciou foi promovido à Corte Suprema do Estado
três meses depois de me declarar criminalmente insano.
Pouco tempo depois, nosso bom doutor foi nomeado diretor
da instituição, de alguma forma saltando por cima de uma
dúzia de candidatos mais qualificados. Os olhos negros lêem
os pensamentos dela.
— Me diga o que está pensando, Dominique. Você acha que
eu sou um paranóico-esquizofrênico iludido.
— Eu não disse isso. E o outro incidente? Você nega ter
atacado brutalmente um vigia?
Mick olha para ela com uma expressão perturbadora.
— Robert Griggs era mais sádico do que homossexual, um
vigia cujos atos você provavelmente diagnosticaria como
estupro motivado por raiva e excitação. Foletta o indicou de
propósito pra ronda noturna na minha ala um mês antes da
minha primeira avaliação. O velho Griggsy costumava fazer
a ronda às duas da manhã.
Dominique sente seu coração bater mais forte.
— Trinta internos por ala, todos dormindo com um pulso e
um tornozelo algemados na cama. Uma noite, Griggs chegou
bêbado me procurando. Acho que tinha decidido me
acrescentar ao harém dele. Pra começar, me lubrificou um
pouco enfiando um cabo de vassoura...
— Pare! Onde estavam os outros vigias?
— Ele era o único. Como eu não podia fazer nada pra
impedi-lo, falei manso, tentando convencê-lo de que iria ser
mais prazeroso se minhas duas pernas estivessem livres. O
otário soltou a algema do meu tornozelo. Não vou te
entediar com detalhes do que aconteceu a seguir...
— Fiquei sabendo. Você fez ovos mexidos com ele, por
assim dizer.
— Eu podia tê-lo matado, mas não matei. Não sou um
assassino.
— E por causa disso passou o resto dos seus dias na solitária?
Mick faz que sim com a cabeça.
— Onze anos no útero de concreto. Duro e frio, mas
sempre lá. Agora me conte. Que idade você tinha quando
seu primo te sodomizou?
— Desculpe, mas não me sinto à vontade pra discutir isso
com você.
— Porque você é a terapeuta e eu sou o psicótico?
— Não. Quer dizer, sim. Porque sou a médica e você é meu
paciente.
— Somos mesmo tão diferentes? Você acha que a equipe do
Rosenhan saberia determinar qual de nós dois deve ocupar
esta cela? — Ele se apóia na parede. — Posso te chamar de
Dom?
— Pode.
— Dom, o isolamento na solitária pode esgotar um homem.
Posso estar sofrendo de privação sensorial, e talvez até
parecer um pouco assustador, mas sou tão são quanto você,
o Foletta e o vigia do outro lado da porta. O que posso fazer
pra te convencer disso?
— Não sou eu quem você precisa convencer. É o dr. Foletta.
— Já falei, o Foletta trabalha pro Borgia, e o Borgia nunca vai
me deixar sair daqui.
— Posso falar com ele. Forçá-lo a te dar os mesmos direitos e
privilégios dos outros internos. Com o tempo, posso...
— Nossa, já estou até ouvindo o Foletta: "Acorde, residente
Vazquez. Você já está caindo na famosa teoria da
conspiração do Gabriel." Ele deve ter te convencido de que
eu sou o novo Ted Bundy.
— De jeito nenhum. Mick, eu quis ser psiquiatra pra ajudar
gente como...
— Gente como eu. Malucos?
— Me deixa terminar. Você não é maluco, mas acho que
precisa de ajuda. O primeiro passo é convencer o Foletta a
designar uma equipe de avaliação pra você...
— Não. Ele não vai permitir uma coisa dessas. E mesmo se
permitir, não há tempo.
— Por que não há tempo?
— A avaliação e a audiência que tenho que fazer todo ano é
daqui a seis dias. Você ainda não entendeu por que o Foletta
te indicou pra cuidar de mim? Você é uma residente,
facilmente manipulável. "O paciente mostra sinais
encorajadores de melhora, residente Vazquez, mas ainda
não está pronto para voltar à sociedade." Você vai concordar
com o diagnóstico dele, e isso é tudo que a junta de
avaliação precisa ouvir.
O Foletta tem razão, ele é bom. Talvez não seja tão bom
quando não está controlando a conversa.
— Mick, vamos falar um pouco sobre o trabalho do seu pai?
Na sexta, você mencionou quatro Ahau, três Kankin...
— O dia do fim da humanidade. Eu sabia que você
reconheceria a data.
— É só uma lenda maia.
— Muitas lendas contêm verdades.
— Então você acredita mesmo que vamos todos morrer em
menos de quatro meses?
Mick olha para o chão, balançando a cabeça.
— Um simples sim ou não já basta.
— Sem joguinhos psicológicos, Dominique.
— Que joguinhos psicológicos?
— Você sabe muito bem que a pergunta, formulada desse
jeito, cheira a esquizofrenia paranóica e ilusões de...
— Mick, é uma pergunta simples. — Ele está ficando
nervoso. Ótimo.
— Você está me desafiando a uma batalha de intelectos pra
encontrar pontos fracos. Não faça isso. Não é muito eficaz e
você vai perder, o que significa que vamos todos perder.
— Você me pediu pra avaliar sua capacidade de voltar à
sociedade. Como posso fazer isso sem perguntar?
— Pergunte o que quiser, mas não arme ciladas. Terei prazer
em discutir as teorias do meu pai com você, mas só se
estiver realmente interessada. Se o seu objetivo é descobrir
qual o meu limite, me passe a porra do Teste de Rorschach
ou de Percepção Temática e acabe logo com isso.
— Que ciladas você acha que estou armando?
Mick fica de pé e se aproxima dela. O coração de Dominique
dispara. Ela pega a caneta.
— A própria natureza da pergunta me condena. É como
perguntar a um sacerdote se a esposa dele sabe que ele se
masturba. De um jeito ou de outro, fica ruim pra ele. Se eu
responder "não" sobre a previsão do Juízo Final, terei que
explicar por que mudei repentinamente de opinião depois
de 11 anos. O Foletta vai interpretar isso como uma farsa
destinada a enganar o comitê de avaliação. Se eu disser que
sim, você vai concordar que eu só sou mais um psicótico
que acredita que o céu vai desabar.
— Então como sugere que eu avalie a sua sanidade? Não
posso evitar esse assunto.
— Não, mas pode ao menos examinar as provas com a
cabeça aberta antes de tirar conclusões. Algumas das maiores
mentes da História foram chamadas de loucas, até que a
verdade foi revelada.
Mick se senta na outra ponta da cama. A pele de Dominique
formiga. Ela não sabe ao certo se está excitada ou assustada,
ou talvez ambas as coisas. Muda de posição, descruza as
pernas, segurando a caneta disfarçadamente. Ele está perto o
suficiente pra me estrangular, mas se estivéssemos num bar,
eu provavelmente já estaria dando em cima dele...
— Dominique, é muito importante, muito, muito importante
que a gente confie um no outro. Preciso da sua ajuda, e você
da minha, embora ainda não saiba disso. Juro pela alma da
minha mãe que jamais vou mentir pra você, mas precisa
prometer que vai me ouvir com a mente aberta.
— Tudo bem, vou ouvir objetivamente. Mas a pergunta
permanece. Você acredita que a humanidade vai ter fim em
21 de dezembro?
Mick se inclina para a frente, apoiando os cotovelos nos
joelhos. Ele olha para o chão, apertando o meio do nariz
com os dois dedos indicadores.
— Presumo que você seja católica?
— Nasci católica, mas fui criada numa família judaica desde
os 13 anos. E você?
— Minha mãe era judia, e meu pai, episcopal. Você se
considera uma pessoa religiosa?
— Não muito.
— Acredita em Deus?
— Sim.
— Acredita no mal?
— No mal? — A pergunta a surpreende. — Isso é meio
amplo. Pode explicar melhor?
— Não estou falando de homens cometendo assassinatos
brutais. Me refiro ao mal como uma entidade autônoma,
parte da própria trama da existência. — Mick ergue a cabeça,
fixando os olhos nela. — Por exemplo, a crença judaico-
cristã é de que o mal tomou forma pela primeira vez ao
entrar no Jardim do Éden disfarçado de serpente, tentando
Eva a morder a maçã.
— Como psiquiatra, não acredito que nenhum de nós nasça
mau, nem bom, aliás. Acredito que temos capacidade para
ambas as coisas. O livre-arbítrio nos permite escolher.
— E se... se algo estiver influenciando o seu livre-arbítrio
sem que você saiba?
— O que você quer dizer?
— Algumas pessoas acreditam que existe uma força maligna,
parte da natureza. Uma inteligência autônoma que existiu
neste planeta durante toda a história do homem.
— Estou meio perdida. O que tudo isso tem a ver com a
profecia do Juízo Final?
— Como pessoa racional, você me pergunta se acredito que a
humanidade está pra acabar. Como pessoa racional, peço que
você me explique por que toda civilização antiga e bem-
sucedida previa o fim da humanidade. Como pessoa racional,
peço que me diga por que todas as principais religiões
anunciam um apocalipse e esperam que um Messias volte
pra livrar nosso mundo do mal.
— Não posso responder. Como a maioria das pessoas, não
sei.
— Meu pai também não sabia. Mas por ser um homem
racional, um cientista, ele queria descobrir. E por isso
dedicou a vida e sacrificou a felicidade de sua família em
busca da verdade. Passou décadas investigando ruínas anti-
gas à procura de pistas. E no fim, o que ele encontrou era tão
insondável que literalmente o deixou à beira da loucura.
— O que ele encontrou?
Mick fecha os olhos e a inflexão de sua voz fica mais suave.
— Provas. Provas deliberadamente deixadas para nós com
grande sacrifício. Provas que apontam para a existência de
uma presença, uma presença tão maligna que o fim da
humanidade será marcado por sua ascensão.
— Mais uma vez, não entendo.
— Não posso explicar, só sei que, de alguma forma, sinto
essa presença ficando mais forte.
Ele está se esforçando pra continuar racional. Faça-o falar
mais.
— Você diz que essa presença é maligna. Como sabe?
— Simplesmente sei.
— Você não está me dando muitos dados. E o calendário
maia não é algo que eu chamaria de prova...
— O calendário é só a ponta do iceberg. Existem lugares
extraordinários, inexplicáveis, espalhados por este planeta,
maravilhas astronômicamente alinhadas, todas partes de um
único quebra-cabeça gigante. Nem os maiores céticos do
mundo podem refutar sua existência. As pirâmides de Gizé e
Chichén Itzá. Os templos de Angkor Wat e Teotihuacán,
Stonehenge, os mapas de Piri Reis e os desenhos do deserto
de Nazca. Foram necessárias décadas de trabalho intenso
para erguer essas maravilhas antigas, e o método de sua
construção ainda é um mistério para nós. Meu pai descobriu
uma inteligência unificada por trás de tudo isso, a mesma
inteligência responsável pela criação do calendário maia.
Mais importante ainda é o fato de que cada um desses locais
está ligado a um propósito comum, cujo significado se
perdeu no último milênio.
— E esse propósito é?
— A salvação da humanidade.
O Foletta tem razão. Ele realmente acredita nisso.
— Me deixe ver se entendi. Seu pai acreditava que cada um
desses locais antigos foi projetado pra salvar a humanidade.
Mas como uma pirâmide ou um monte de desenhos no
deserto podem nos salvar? E nos salvar de quê? Dessa
presença maligna?
Os olhos negros penetram-lhe a alma.
— Sim, mas é algo infinitamente pior. Algo que virá pra
destruir a humanidade no solstício de dezembro. Meu pai e
eu estávamos prestes a resolver o mistério quando ele
morreu, mas ainda faltam peças importantes do quebra-
cabeça. Se os códices maias não tivessem sido destruídos...
— Quem os destruiu?
Mick balança a cabeça, como que decepcionado.
— Você nem conhece a história dos seus próprios
ancestrais? O criador do calendário do Juízo, o grande
mestre, Kukulcán, deixou informações cruciais nos antigos
códices maias. Quatrocentos anos depois de sua partida, a
Espanha invadiu o Yucatán. Cortez era branco e usava barba.
Os maias o confundiram com Kukulcán, e os astecas com
Quetzalcoatl. Ambas as civilizações basicamente depuseram
as armas e se deixaram conquistar, achando que seu Messias
caucasiano havia voltado para salvar a humanidade. Os
padres católicos se apossaram dos códices. Devem ter ficado
bastante assustados com o que leram, porque os burros
queimaram tudo, essencialmente nos condenando à morte.
Ele está ficando exaltado.
— Não sei, Mick. As instruções pra salvar a humanidade
parecem importantes demais pra serem deixadas com um
bando de índios mesoamericanos. Se Kukulcán era tão sábio,
por que não deixou essas informações em outro lugar?
— Obrigado.
— Por quê?
— Por pensar. Por usar o hemisfério lógico do seu cérebro.
A informação realmente era importante demais pra ser
deixada com uma cultura vulnerável como a maia, ou com
qualquer outra cultura antiga, aliás. No deserto de Nazca, no
Peru, há uma mensagem visual, simbólica, inscrita no pampa
em ideogramas precisos, de 120 metros de largura. Meu pai
e eu estávamos quase chegando ao significado da mensagem
quando ele morreu.
Ela olha inocentemente para o relógio.
Mick salta de pé como um gato, assustando-a ao segurar seus
ombros.
— Pare de tratar isso como uma parte do seu currículo de
graduação e ouça o que estou dizendo. Tempo é um luxo
que nós não temos...
Ela o olha nos olhos enquanto ele esbraveja, seus rostos
separados apenas por centímetros.
— Mick, me solte... — Ela mexe na caneta.
— Me escute. Você perguntou se eu acredito que a
humanidade vai acabar daqui a quatro meses. A resposta é
sim, a menos que eu possa completar o trabalho do meu pai.
Caso contrário, vamos todos morrer.
Dominique clica a caneta sem parar, seu coração disparado,
sua mente cheia de medo.
— Dominique, por favor. Preciso que você me tire deste
hospício antes do equinócio de outono.
— Por quê? — Faça-o continuar falando...
— O equinócio é daqui a apenas duas semanas. Sua chegada
será anunciada em todos os locais que eu mencionei. A
pirâmide de Kukulcán, em Chitchén Itzá, vai marcar o
evento em sua balaustrada setentrional, com a descida da
sombra da serpente. Naquele momento, a Terra vai entrar
num alinhamento galáctico extremamente raro. Um portal
vai começar a se abrir no centro da faixa escura da Via
Láctea. Será o começo do nosso fim.
Ele está delirando... Lembrando-se da foto de Borgia com
um olho só, ela se move, preparando o joelho.
— Dominique, não sou maluco. Preciso que você me leve a
sério...
— Você está me machucando...
— Desculpe, desculpe... — Ele a solta. — Escute, isso é vital.
Meu pai acreditava que ainda é possível impedir a ascensão
do mal. Preciso da sua ajuda. Preciso que você me tire daqui
antes do equinócio...
Mick se vira e vê Marvis pondo o punho diante de seu rosto,
cegando-o com o spray de pimenta.
— Não! Não, não, não...
Agitada demais para falar, Dominique empurra o vigia para o
lado e sai correndo do quarto. Ela para no corredor, seu
coração disparado.
Marvis tranca o quarto 714 e a acompanha para fora do
núcleo.
Mick continua esmurrando a porta, gritando para ela como
um animal ferido.
DIÁRIO DE JULIUS GABRIEL
E aconteceu que, como os homens começaram a
multiplicar-se sobre a face da Terra, e lhes nasceram filhas,
viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram
formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que
escolheram... Naqueles dias, os NEFILINS estavam na Terra;
e também depois, quando os filhos de Deus entraram às
filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os
VALENTES que houve na ANTIGUIDADE, os HOMENS
DE FAMA.
— GÊNESIS, 6: 1 -2, 4
A Bíblia. O livro sagrado das religiões judaica e cristã. Para o
arqueólogo em busca da verdade, esse documento da
antiguidade pode oferecer pistas importantes para preencher
as lacunas na história da evolução do homem.
O capítulo 6 do Gênesis talvez seja a passagem menos
compreendida de toda a Bíblia, mas pode vir a ser a mais
reveladora. Ela se passa pouco antes de Deus dar instruções a
Noé e se refere aos filhos de Deus e aos Nefilins, um nome
que se traduz literalmente como "os caídos" ou "aqueles que
caíram do céu com o fogo".
Quem eram esses "caídos", esses "homens de fama"? Uma
pista importante pode ser encontrada na Apócrifa do
Gênesis, um dos textos antigos descobertos entre os
Manuscritos do Mar Morto. Numa passagem importante,
Lameque, pai de Noé, confronta sua esposa por achar que a
concepção de seu filho tinha sido o resultado de uma
copulação com um anjo ou com um de seus filhos, um
Nefilim.
Será que corria sangue extraterrestre nas veias de Noé? O
conceito de anjos "caídos" ou "homens de fama"
miscigenando-se com mulheres humanas pode parecer
mirabolante, mas deve haver algum elemento de verdade
nele, pois o relato, como a história de Noé e o Grande
Dilúvio, se repete em diferentes culturas e religiões de todo
o mundo.
Como já mencionei, passei a vida investigando maravilhas
misteriosas, estruturas magníficas, deixadas na face deste
planeta, que sobreviveram aos rigores do tempo. Acredito
que essas estruturas foram criadas por esses "homens da
antiguidade, homens de fama" com uma única finalidade:
salvar a nossa espécie da aniquilação.
Talvez nunca venhamos à saber quem eram os Nefilins, mas
provas geológicas nos permitem agora determinar o período
em que eles apareceram pela primeira vez. O fato é: houve
um grande dilúvio. A culpada foi a última era glacial da
Terra, um acontecimento que remonta há cerca de 115 mil
anos atrás. Na época, geleiras enormes cobriam a maior parte
dos hemiférios norte e sul, avançando e recuando,
finalmente atingindo o ápice há cerca de 17 mil anos. A
maior parte da Europa foi soterrada sob uma camada de gelo
de 3 quilômetros de espessura. As geleiras da América do
Norte avançaram para o sul até o vale do Mississipi,
atingindo o 37º paralelo.
Era a época do Homo sapiens neanderthalensis, o Homem
de Neandertal. Foi também por volta desse momento na
história dos nossos antepassados que os misteriosos "caídos"
chegaram.
Talvez os clãs dos primeiros Homo sapiens não tivessem
impressionado muito esses homens de fama. Talvez os
Nefilins achassem melhor devolver o esboço do homem à
prancheta evolutiva. Qualquer que tenha sido a reação deles,
só sabemos que, milagrosa e repentinamente, o mundo
começou a derreter.
Aconteceu rápido, em decorrência de algum desdobramento
desconhecido e cataclísmico. Milhões de quilômetros
cúbicos degelo que haviam levado mais de 40 mil anos para
avançar de repente derreteram em menos de dois milênios.
O mar subiu de 100 a 120 metros, inundando o solo. Partes
da Terra, antes comprimidas por bilhões de toneladas de
gelo, começaram a se elevar, causando terremotos terríveis.
Vulcões entraram em erupção, expelindo enormes
quantidades de dióxido de carbono na atmosfera,
aumentando o aquecimento global. Ondas gigantes varreram
selvas, dizimando animais e devastando a Terra.
O planeta se tornou um lugar muito hostil.
Entre 13.000 a.C. e 11.000 a.C., a maior parte do gelo havia
derretido, e o clima havia se estabilizado. E daquela gosma
lamacenta emergia uma nova subespécie: Homo sapiens
sapiens, o homem moderno.
Evolução ou criação bíblica — onde está a verdade sobre o
surgimento do homem moderno? Como cientista, me sinto
inclinado a acreditar no darwinismo, mas como arqueólogo,
também reconheço que a verdade muitas vezes se esconde
em mitos transmitidos ao longo de milênios. A profecia do
calendário maia se enquadra na mesma categoria. Como já
mencionei anteriormente, o calendário é um instrumento
científico preciso que utiliza princípios avançados de
Astronomia e Matemática para efetuar seus cálculos. Ao
mesmo tempo, as origens do calendário se concentram na
mais importante lenda da história maia — o Popol Vuh, o
livro maia da criação.
O Popol Vuh é a Bíblia dos índios mesoamericanos.
Segundo o Popol Vuh, escrito centenas de anos depois da
morte de Kukulcán, o mundo foi dividido em um Mundo
Superior (Paraíso), um Mundo Médio (Terra) e um Mundo
Inferior, um antro do mal conhecido como Xibalba. Ao
olharem para o céu noturno, os antigos maias viam a fenda
escura da Via Láctea e a interpretavam como sendo uma
serpente escura ou Estrada Negra (Xibalba Be), que levava ao
Mundo Inferior. Bem perto da fenda ficam as três estrelas do
cinturão de Orion. Para os maias, essas estrelas eram as três
pedras da criação.
Como disse anteriormente, o calendário maia se divide em
cinco Grandes Ciclos, o primeiro dos quais começou há
cerca de 25-800 anos. Esse período de tempo não é
arbitrário, mas o intervalo real, em anos, que a Terra leva
para completar um ciclo de precessão, a lenta oscilação do
nosso planeta sobre seu eixo. (Mais sobre isso depois.)
A história da criação contada no Popol Vuh começa há
cerca de 25.800 anos, quando o gelo ainda cobria boa parte
da Terra. O herói da história é um homem primitivo
conhecido como Hun (Um) Hunahpu, mais tarde
reverenciado pelos maias como "Primeiro Pai". A maior
paixão da vida de Hun Hunahpu era jogar o antigo jogo de
bola conhecido como Tlachtli. Um dia, os Senhores do
Mundo Inferior, falando através de Xibalba Be (a Estrada
Negra), desafiaram Hun Hunahpu e seu irmão para um jogo.
Hun Hunahpu aceitou e entrou no portal para a Estrada
Negra, que era representado nas lendas maias como a boca
de uma grande serpente.
Mas os Senhores do Mundo Inferior não tinham nenhuma
intenção de jogar. Usando truques e armadilhas, derrotaram
os irmãos e os decapitaram, pendurando a cabeça de Hun
Hunahpu no ramo de um cabaceiro. Os Senhores do Mal,
então, isolaram a árvore, proibindo a todos de visitá-la.
Depois de muitos e muitos anos, uma jovem corajosa
chamada Lua de Sangue se aventurou pela Estrada Negra
para ver se a lenda era verdade. Aproximando-se da árvore
para colher alguns frutos, ela se assustou ao encontrar a
cabeça de Hun Hunahpu, que cuspiu na palma da mão dela,
magicamente engravidando-a. A mulher fugiu, e os
Senhores do Mundo Inferior não conseguiram destruí-la
antes que escapasse.
Lua de Sangue (também conhecida como Primeira Mãe) deu
à luz filhos gêmeos. Com o passar dos anos, os meninos
cresceram, tornando-se guerreiros fortes e hábeis. Quando
chegaram à idade adulta, sua vocação genética os impeliu a
seguir pela Estrada Negra até Xibalba: desafiariam os
Senhores do Mal e vingariam a morte de seu pai.
Novamente, os Senhores do Mundo Inferior usaram
trapaças, mas dessa vez os Gêmeos Heróis triunfaram,
repelindo o mal e ressuscitando seu falecido pai.
O que podemos inferir do mito da criação? O nome, Hun ou
Um Hunahpu, refere-se à data de Um Ahau no calendário,
cujo nome significa primeiro sol. O primeiro sol do ano-
novo é o do solstício de dezembro. A data profetizada do
Juízo Final acontece no solstício de inverno do ano de
2.012, exatamente um ciclo precessional de 25-800 anos
depois do primeiro dia do calendário maia!
Usando um programa de computador que permite prever o
cosmos em qualquer momento da história, calculei como o
céu noturno estará em 2012. Começando na época do
equinócio outonal, um alinhamento astronômico
extremamente raro entre os planos galáctico e solar vai
acontecer. A fenda escura da Via Láctea parecerá estar na
altura do horizonte terrestre, e o Sol começará a entrar em
alinhamento com seu ponto central. Esse movimento estelar
vai culminar no dia do solstício de inverno, um dia
considerado pela maioria das culturas antigas como o Dia dos
Mortos. Nessa data, pela primeira vez em 25- 800 anos, o
Sol irá se mover em conjunto com o ponto de cruzamento
da Via Láctea com a eclíptica de Sagitário, marcando o
alinhamento do Equador Galáctico, o centro exato da
galáxia.
De alguma forma, o calendário maia previu com exatidão
esse evento celeste há mais de 3 mil anos. Interpretando o
mito da criação, o alinhamento galáctico culminará com a
abertura de um portal cósmico que cobre a distância entre o
nosso planeta e o Mundo Inferior maia, Xibalba.
Chamem de ficção, chamem de fato, mas de alguma forma
esse alinhamento intergaláctico resultará na morte de cada
homem, mulher e criança na face do nosso planeta.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1978-79 páginas 43-52
Catálogo 1998-99 páginas 11-75
4
11 DE SETEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
- Acorde, residente Vazquez. Você está caindo na famosa
teoria da conspiração do Gabriel.
— Eu discordo. — Dominique devolve o olhar frio que o
dr. Foletta lhe direciona do outro lado da mesa. — Não há
nenhum motivo para Mick Gabriel não receber uma equipe
de apoio completa.
Foletta se recosta na cadeira giratória, ameaçando romper as
molas com seu peso.
— Vamos nos acalmar um pouco. Olhe pra você. Falou com
o interno duas vezes e já está fazendo diagnósticos. Na
minha opinião, você está se envolvendo emocionalmente, e
nós falamos sobre isso na sexta. É exatamente por isso que
recomendei ao conselho não designar uma equipe neste
momento.
— Senhor, eu garanto que não estou emocionalmente
envolvida. Só me parece que as pessoas julgaram
precipitadamente este caso. Sim, concordo que ele tem
ilusões, mas elas poderiam facilmente ser atribuídas ao fato
de ele ter passado os últimos 11 anos na solitária. E quanto à
violência, não vi nada no arquivo que indicasse algo mais do
que um caso isolado de agressão.
— E quanto ao ataque ao vigia?
— Mick me disse que o vigia tentou estuprá-lo.
Foletta belisca o alto do nariz com dois dedos grossos,
sorrindo mansamente enquanto balança sua grande cabeça
para a frente e para trás.
— Ele te enganou, residente Vazquez. Eu avisei que ele era
esperto.
Dominique sente um tremor na boca do estômago.
— Está dizendo que é tudo mentira?
— Claro. Ele apostou no seu instinto materno e tirou a sorte
grande.
Dominique olha para baixo, sem palavras. Mick mentiu? Será
que ela foi realmente tão ingênua? Idiota! Você queria
acreditar nele. Caiu na armadilha.
— Residente, você não vai muito longe com seus pacientes
se acreditar em tudo que eles dizem. Só falta ele te
convencer de que o mundo está pra acabar.
Dominique se encolhe na cadeira, sentindo-se tola.
Foletta vê a expressão no rosto dela e ri alto, suas bochechas
rechonchudas corando e fazendo covinhas. Ele respira
fundo, enxugando os olhos, e mexe numa caixa de papelão
sob a mesa. Tira uma garrafa de uísque e duas canecas e
serve duas doses.
Dominique enxuga a caneca, sentindo o líquido ardendo na
mucosa de seu estômago.
— Está se sentindo melhor? — As palavras, murmuradas e
roucas, são ditas de maneira paternal.
Ela faz que sim.
— Apesar do que ele diz, residente, eu gosto do Mick.
Também odeio vê-lo na solitária.
O telefone toca. Foletta atende e olha para ela.
— É um dos vigias. Diz que está te esperando lá embaixo.
Merda.
— Pode dizer que estou numa reunião importante? Diga
que hoje à noite não posso.
Foletta dá o recado e desliga.
— Doutor, e quanto à avaliação anual do Mick? Também é
mentira?
— Não, é verdade. Aliás, está na minha lista de coisas a
discutir com você. Sei que é um tanto incomum, mas vou
precisar que você assine a avaliação pra mim.
— O que você recomenda?
— Depende de você. Se conseguir se manter objetiva, vou
recomendar que continue como psiquiatra do Mick durante
sua permanência aqui.
— O Mick está sofrendo de privação sensorial. Gostaria que
tivesse acesso ao jardim e ao resto das instalações de
reabilitação.
— Ele acabou de te atacar...
— Ele não me atacou. Só ficou um pouco agitado e eu me
desesperei.
Foletta relaxa e olha para o forro, como se estivesse
ponderando uma grande decisão.
— Bem, residente, façamos assim: assine a minha avaliação
anual e eu devolverei a ele todos os privilégios. Se ele
melhorar, designarei uma equipe completa de reabilitação
em janeiro. Certo?
Dominique sorri.
— Certo.
22 DE SETEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
O jardim do Centro de Avaliação e Tratamento do Sul da
Flórida é um gramado retangular cercado pelos quatro lados.
O formato em L do prédio principal fecha o perímetro a
leste e ao sul, e os lados norte e oeste são murados por uma
barreira de concreto branco de 6 metros de altura com
arame farpado no alto.
Não há portas para o jardim. Para sair do átrio gramado, é
preciso subir três lances de degraus de cimento que levam a
uma passarela aberta que percorre o lado sul do prédio. Esse
mezanino dá acesso ao ginásio do terceiro andar, às salas de
terapia de grupo, a um centro de artesanato, à sala de
informática e ao cinema.
Dominique se abriga sob o toldo de alumínio que se estende
da passarela do terceiro andar quando vê as nuvens
cinzentas chegando do leste. Duas dúzias de internos
abandonam o jardim quando os primeiros pingos de chuva
vespertina começam a martelar o toldo.
Uma figura solitária fica para trás.
Mick Gabriel continua percorrendo o perímetro do jardim,
com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos. Ele sente o ar
úmido esfriando quando as nuvens se abrem no céu. Em
segundos, está imerso no aguaceiro, seu uniforme branco
encharcado, aderindo ao corpo magro e definido.
Ele continua andando, seu ensopado tênis de lona
afundando na grama macia, suas meias molhadas fazendo
barulho ao andar. A cada passo, recita o nome de um ano do
calendário maia, um exercício mental que usa para manter
sua mente afiada. Três Ix, quatro Cauac, cinco Kan, seis
Muluc...
Os olhos escuros se concentram na parede de concreto,
procurando por falhas, sua mente, em busca de opções.
Dominique o observa através de um véu de chuva, sentindo
remorso. Você estragou tudo. Ele confiava em você. Agora
acha que você o traiu.
Foletta se aproxima. Acena para vários internos
curiosamente exultantes e vai falar com ela.
— Ele ainda se recusa a falar com você? Dominique balança
a cabeça.
— Já faz quase duas semanas. Todo dia é a mesma coisa. Ele
toma café, vai pra minha consulta e olha pro chão por uma
hora. Quando chega ao jardim, anda pra lá e pra cá até a
hora do jantar. Nunca se mistura com os outros internos e
nunca diz uma palavra. Só anda.
— Ele devia era ficar agradecido. Afinal, você é a
responsável pela nova liberdade dele.
— Isso não é liberdade.
— Não, mas depois de 11 anos na solitária é um grande
passo.
— Acho que ele realmente acreditava que eu podia tirá-lo
daqui. A expressão de Foletta o denuncia.
— O que foi, doutor? Ele tinha razão? Eu poderia...
— Ei, calma aí, residente. O Mick Gabriel não vai a lugar
nenhum, pelo menos não agora. Como você mesma viu, ele
ainda é muito instável e representa uma ameaça tanto pra si
próprio quanto para os outros. Continue trabalhando com
ele, o encoraje a participar da terapia. Tudo pode acontecer.
— Você ainda está pensando em designar uma equipe de
reabilitação, não está?
— Nosso acordo é pra janeiro, isso, se ele se comportar.
Você devia falar com ele sobre isso.
— Eu tentei. — Ela olha Mick passando pelo lance de
escadas diretamente abaixo deles. — Ele não confia mais em
mim.
Foletta lhe dá uns tapinhas no ombro.
— Conforme-se.
— Eu não estou fazendo bem a ele. Talvez ele precise de
alguém com mais experiência.
— Bobagem. Vou dizer aos enfermeiros para não deixá-lo
sair do quarto a menos que ele participe ativamente das
sessões de terapia.
— Forçá-lo a falar não vai ajudar em nada.
— Isso não é um clube de recreação, residente. Temos
regras. Se um interno se recusa a cooperar, perde os
privilégios. Já vi casos assim. Se você não agir agora, o Mick
vai se encolher dentro da própria mente e você vai perdê-lo
pra sempre.
Foletta chama um enfermeiro.
— Joseph, tire o sr. Gabriel da chuva. Não podemos deixar
que nossos internos fiquem doentes.
— Não, espere, ele é meu paciente. Eu vou buscá-lo. —
Dominique enrola o cabelo num coque, tira os sapatos e
desce os dois lances de escada até o jardim. Ela já está
encharcada ao alcançar Mick. — E aí, companheiro, posso
te fazer companhia?
Ele a ignora.
Dominique aperta o passo, a chuva bombardeando o seu
rosto.
— Vamos, Mick, fale comigo. Passei a semana inteira
pedindo desculpas. O que queria que eu fizesse? Eu
precisava assinar o relatório do Foletta.
Ela ganha um olhar duro.
A chuva aumenta, obrigando-a a gritar.
— Mick, espere.
Ele continua andando.
Ela corre, passando por ele, e fica em pose de luta, com os
punhos erguidos, impedindo a passagem.
— Não me obrigue a te dar porrada.
Mick pára. Ele ergue os olhos, a chuva escorrendo por seu
rosto anguloso.
— Você me decepcionou.
— Me desculpe — murmura ela, baixando os punhos. —
Por que mentiu pra mim sobre o ataque do vigia?
Com uma expressão de dor, ele responde.
— Então você não julga mais o que é verdade com seu
coração, mas com sua ambição. É isso? Pensei que fôssemos
amigos.
Ela sente um nó crescendo em sua garganta.
— Eu quero ser sua amiga, mas também sou sua psiquiatra.
Fiz o que pensei ser o melhor.
— Dominique, prometi que nunca mentiria pra você. —
Ele levanta a cabeça, apontando para a cicatriz em seu
maxilar. — Antes de tentar me estuprar, o Griggs ameaçou
cortar minha garganta.
Foletta, seu desgraçado.
— Meu Deus, Mick, me desculpe. Naquela consulta,
quando você perdeu o controle...
— Foi culpa minha. Fiquei agitado. Estou trancado há tanto
tempo... Às vezes... bom, às vezes é difícil me manter
calmo. Não sou muito sociável, mas juro que jamais
machucaria você.
Ela vê lágrimas nos olhos dele.
— Eu acredito em você.
— Sabe, poder sair um pouco me ajudou. Me fez pensar
sobre muitas coisas... meio egocêntricamente, na verdade.
Minha infância, o modo como fui criado... como vim parar
aqui e se um dia vou sair. Tem tanta coisa que eu nunca fiz...
tantas coisas que eu mudaria, se pudesse. Eu amava meus
pais, mas pela primeira vez me dei conta de que realmente
odeio o que eles fizeram. Odeio o fato de nunca terem me
dado uma chance de escolher...
— Não escolhemos nossos pais, Mick. O importante é que
você não se culpe. Nenhum de nós tem controle sobre o
jogo ou as cartas que recebemos. O que temos é total
responsabilidade sobre como jogamos com essas cartas.
Acho que posso ajudar você a recuperar esse controle.
Ele se aproxima, a chuva escorrendo dos lados do seu rosto.
— Posso te fazer uma pergunta pessoal?
— Pode.
— Você acredita em destino?
— Destino?
— Você acha que nossa vida, nosso futuro foi... Não, deixa
pra lá, esquece...
— Se eu acho que o que acontece com a gente está
predestinado?
— É.
— Acho que temos escolhas. Acho que depende de nós
escolhermos o destino certo.
— Você já se apaixonou por alguém?
Ela olha, involuntariamente, em seus olhos brilhantes e
carentes.
— Já cheguei perto algumas vezes. Mas nunca parecia dar
certo. — Ela sorri. — Acho que eles não faziam parte do
meu destino.
— Se eu não estivesse... aprisionado. Se a gente tivesse se
conhecido em circunstâncias diferentes. Você acha que
poderia me amar?
Merda... Ela engole em seco, sua pulsação fazendo o fundo
de sua garganta tremer.
— Mick, vamos sair da chuva. Venha...
— Tem alguma coisa especial em você. Não é só atração
física, é como se eu já te conhecesse, ou tivesse te
conhecido em outra vida.
— Mick...
— Às vezes eu tenho algumas premonições. Tive uma na
primeira vez em que vi você.
— Você disse que era o perfume.
— Era algo mais. Não consigo explicar. Só sei que gosto de
você, e os sentimentos são um pouco confusos.
— Mick, estou lisonjeada, de verdade, mas acho que você
tem razão. Seus sentimentos estão confusos, e...
Ele sorri tristemente, ignorando as palavras dela.
— Você é tão linda. — Inclinando-se, ele toca sua face,
depois estica o braço e solta os seus cabelos negros.
Ela fecha os olhos, sentindo o cabelo se desenrolar em suas
costas e tornar-se pesado com a chuva. Pare com isso! Ele é
seu paciente, um paciente psiquiátrico, meu Deus.
— Mick, por favor. O Foletta está olhando. Vamos entrar?
A gente pode conversar lá dentro...
Ele a olha com seus olhos melancólicos, revelando uma alma
torturada pela beleza proibida.
— "Ela é que ensina as tochas a brilhar. E no rosto da noite
tem um ar de joia rara em rosto de carvão..."
— O que você disse? — Dominique sente as rápidas batidas
de seu coração.
— Romeu e Julieta. Era o que eu lia pra minha mãe quando
ela estava de cama. — Ele levanta a mão dela, aproximando-
a dos seus lábios. — "Para com a mão dela, a minha
abençoar. Já amei antes? Não, tenho certeza; pois nunca
havia eu visto tal beleza."
A chuva para. Ela vê dois enfermeiros se aproximando.
— Mick, escute. Obriguei o Foletta a te designar uma
equipe de reabilitação. Você tem a chance de sair daqui em
seis meses.
Mick sacode a cabeça.
— A gente não vai ver esse dia, meu amor. Amanhã é o
equinócio de outono... — Ele se vira e fica ansioso ao avistar
os homens de branco. — Leia o diário do meu pai. O destino
do mundo está prestes a cruzar outro limiar, empurrando a
espécie humana pro alto da lista das espécies em extinção...
Os dois enfermeiros seguram seus braços.
— Ei, não o machuquem!
Mick se vira para olhá-la enquanto é arrastado, a umidade
saindo de seu corpo como vapor.
— "A voz do amor na noite é som de prata, parece música a
quem o escuta." Você está no meu coração, Dominique. O
destino nos uniu. Posso sentir. Posso sentir...
Diário de Julius Gabriel
Antes de continuarmos nossa viagem pela história do
homem, me permitam apresentar um termo desconhecido
da maioria do público: arqueologia proibida. Parece que,
quando o assunto é a origem e a antiguidade do homem, a
comunidade científica nem sempre tem a mente aberta para
provas que possam contradizer os modelos de evolução já
estabelecidos. Em outras palavras, às vezes é mais fácil
simplesmente refutar os fatos do que tentar pensar numa
explicação plausível ao que não pode ser explicado.
Ainda bem que Colombo usou um mapa de Piri Reis em vez
da versão aceita na Europa, senão ele teria navegado para
fora da beira do mundo.
Quando o homem acha que sabe tudo, ele para de aprender.
Essa infeliz realidade levou à supressão de muitas pesquisas
importantes. Como ninguém consegue publicar nada sem a
aprovação de uma grande universidade, torna-se quase
impossível desafiar as visões dominantes de uma época. Vi
colegas cultos tentarem fazê-lo e amargarem o ostracismo,
suas reputações destruídas e suas carreiras arruinadas,
embora as provas que corroboravam seus polêmicos pontos
de vista parecessem irrefutáveis.
Os egiptólogos egípcios são os piores. Odeiam quando
cientistas tentam desafiar a história aceita de seus sítios
arqueológicos, e se tornam especialmente perversos quando
estrangeiros questionam a idade e a origem de suas
estruturas monolíticas.
Isso nos traz para os métodos de datação, o aspecto mais
polêmico da Arqueologia. O uso da datação por carbono-14
em ossos e resíduos de carvão é tão fácil quanto exato, mas a
técnica não pode ser aplicada à pedra. Em decorrência disso,
os arqueólogos muitas vezes datam um sítio de acordo com
outros achados mais datáveis encontrados nos arredores da
escavação ou, quando nenhum é encontrado, datam
meramente por conjectura, levando a uma larga margem de
erro humano.
Tendo afirmado isso, voltemos à nossa viagem através da
História e do tempo.
Foi algum tempo depois do Grande Dilúvio que as primeiras
civilizações começaram a aparecer por todo o mundo. O que
aceitamos agora como verdade ê que a História escrita
começou na Mesopotâmia, no vale dos rios Tigre e Eufrates,
por volta de 4.000 a.C., com alguns dos mais antigos restos
urbanos encontrados em Jericó remontando até 7.000 a.C.
Mas novas evidências indicam agora que outra civilização,
uma civilização superior, havia florescido ainda antes, às
margens do rio Nilo. E foi essa cultura mais antiga e seu
sábio líder que nos deixaram a primeira das misteriosas
maravilhas que podem salvar nossa espécie da aniquilação.
Há muitos templos, pirâmides e monumentos espalhados
pela paisagem egípcia, mas nenhum se compara às
maravilhas magníficas construídas em Gizé. E aqui, na
margem ocidental do Nilo, que um plano arquitetônico
incrível foi traçado, consistindo na Esfinge, seus dois
templos e as três grandes pirâmides do Egito.
For que estou falando das grandes pirâmides de Gizé? Como
esses monumentos antigos podem estar relacionados com o
calendário maia e a cultura mesoamericana, situada do outro
lado do mundo?
Depois de três décadas de pesquisa, finalmente percebi que,
para desvendar o profético enigma do Juízo Final, é preciso
deixar de lado as idéias preconcebidas de tempo, distância,
culturas e impressões superficiais, para assim analisar as
pistas antigas que cercam o grande mistério da humanidade.
Permitam-me um momento para me aprofundar.
As maiores e mais inexplicáveis estruturas já erguidas pelo
homem são as pirâmides de Gizé, os templos de Angkor,
localizados nas selvas do Camboja, as pirâmides na antiga
cidade mesoamericana de Teotihuacán (também conhecida
como "lugar dos deuses"), Stonehenge, os desenhos de
Nazca, as ruínas de Tiahuanaco e a pirâmide de Kukulcán
em Chichén Itzá. Cada uma dessas maravilhas antigas,
construídas por diferentes culturas, em diferentes partes do
mundo, durante períodos muito diferentes da pré-história
do homem, está, ainda assim, ligada ao fim da humanidade
mencionado no calendário maia. Todos os arquitetos e
engenheiros que construíram essas cidades possuíam um
vasto conhecimento de Astronomia e Matemática, que
facilmente excedia o cabedal existente em sua época. Além
disso, a localização de cada uma das estruturas antigas foi
cuidadosamente planejada de acordo com o equinócio e o
solstício e, por incrível que pareça, com as outras estruturas,
pois se alguém desejasse dividir a superfície do nosso planeta
usando marcos distintos, essas estruturas facilmente
cumpririam a tarefa.
Mas é aquilo que não podemos ver que eternamente liga
essas estruturas maciças umas às outras, pois no âmago de
seu projeto reside uma equação matemática comum que
demonstra um conhecimento avançado — o conhecimento
da precessão.
Mais uma vez, uma breve explicação:
À medida que flutua pelo espaço em sua jornada anual ao
redor do Sol, nosso planeta gira sobre seu eixo uma vez a
cada 24 horas. Quando a Terra gira, a atração gravitacional
da Lua a faz inclinar-se aproximadamente 23,5 graus na
vertical. Somando a atração gravitacional do Sol sobre a
saliência equatorial do nosso planeta, temos uma oscilação
do eixo da Terra, parecida com a de um pião girando. Essa
oscilação é chamada de precessão. Uma vez a cada 25.800
anos, o movimento do eixo traça um círculo no céu,
relocalizando a posição dos poios e equinócios celestiais.
Esse desvio gradual para o oeste também faz com que os
signos do zodíaco não correspondam mais às suas
respectivas constelações.
O astrônomo e matemático grego Hiparco é considerado o
descobridor da precessão em 127 a.C. Hoje sabemos que os
egípcios, maias e hindus já entendiam a precessão centenas,
se não milhares, de anos antes.
No início da década de 1990, a arqueoastrônoma Jane Sellers
descobriu que o mito de Osíris do Egito antigo continha
chaves numéricas que os egípcios usavam para calcular os
vários graus de precessão da Terra. Dessas chaves, um
conjunto de dígitos em particular se destacava: 4320.
Mais de mil anos antes do nascimento de Hiparco, os
egípcios e maias, de alguma forma, haviam conseguido
calcular o valor de pi, a razão do diâmetro de um círculo,
uma esfera ou um hemisfério para a sua circunferência. Com
146,729 metros, a altura da Grande Pirâmide, multiplicada
por 2pi, éprecisamente igual à sua base (921,46 metros). Por
incrível que pareça, o perímetro da pirâmide equivale ao
diâmetro da Terra com um erro de 6 metros, quando as
dimensões do nosso planeta são reduzidas numa razão de
1:43.200, números que representam nosso código
matemático de precessão. Usando a mesma razão, o raio
polar da Terra equivale à altura da pirâmide.
Resulta que a Grande Pirâmide é um marcador geodésico
localizado quase exatamente no 30º paralelo. Se suas
medidas fossem projetadas numa superfície plana (com o
ápice representando o Polo Norte e o perímetro, o equador)
as dimensões do monumento equivaleriam ao Hemisfério
Norte, reduzido para, mais uma vez, 1:43.200.
Sabemos que o Sol equinocial leva 4.320 anos para
completar um movimento precessional de duas constelações
zodiacais ou 60 graus. Esse número multiplicado por cem é
igual 43.200, o número de dias que no Calendário Longo
Maia equivale a 6 Katuns, um dos valores numéricos chave
que os antigos maias usavam quando eles calculavam a
precessão. Um ciclo completo de precessão leva 25.800
anos. Se somarmos todos os anos dos cinco ciclos do Popol
Vuh, o período de tempo equivale exatamente a um ciclo
precessional.
Escondidos dentro da densa selva de Kampuchea, no
Camboja, estão os magníficos Templos Hindus de Angkor.
Os baixos-relevos e estátuas que abundam no conjunto
incluem símbolos precessionais, sendo os mais populares
uma serpente gigante (Naga), com seu corpo enrolado em
volta de uma montanha sagrada no oceano leitoso, ou Via
Láctea. As duas extremidades da serpente estão sendo usadas
como corda numa competição cósmica de cabo de guerra
entre duas equipes: uma representando a luz e o bem, a
outra, as trevas e o mal. Esse movimento, combinado com a
rotação da Via Láctea, representa a interpretação hindu da
precessão. As Puranas, escrituras sagradas dos hindus,
referem-se às quatro idades da Terra como Yugas. Nossa
Yuga atual, a Kali Yuga, tem uma duração de 432 mil anos
mortais. No final dessa época, as escrituras dizem que a
humanidade irá ao encontro da destruição.
Egípcios, maias e hindus antigos — três culturas distintas
localizadas em partes distintas do mundo, cada uma
existindo num período diferente do nosso passado. Três
culturas que compartilhavam um conhecimento avançado
da ciência, cosmologia e matemática, e usavam sua sabedoria
para criar misteriosas maravilhas arquitetônicas, cada
estrutura construída para um único propósito oculto.
As mais velhas entre essas estruturas são as grandes
pirâmides de Gize e sua guardiã atemporal, a Esfinge.
Localizada a noroeste do templo conhecido como Casa de
Osíris, a magnífica figura de calcário do leão com cabeça de
gente é a maior escultura do mundo, com a altura de um
prédio de seis andares e 73 metros de comprimento. A
própria criatura é um marco cósmico, com seu olhar
orientado precisamente para o leste, como se esperando o
Sol nascer.
Qual a idade do complexo de Gizé? Egiptólogos garantem a
data de 2.475 a.C. (um período que, por acaso, se encaixa no
folclore egípcio). Por muito tempo, foi difícil discutir isso,
pois nem as Grandes Pirâmides nem a Esfinge deixaram
nenhum marco determinante.
Era o que pensávamos.
Aparece o estudioso americano John Anthony West. West
descobriu que a vala de 7 metros e meio de profundidade
que rodeia a Esfinge exibe sinais inconfundíveis de erosão.
Investigando mais, um grupo de geólogos determinou que
os danos não haviam sido causados pelo vento ou pela areia,
mas unicamente pela chuva.
A última vez que o vale do Nilo viu esse tipo de clima foi há
uns 13 mil anos, resultado da Grande Inundação que
aconteceu no final da última era glacial. No ano 10.450 a.C.,
Gizé não era apenas fértil e verde, mas seu céu oriental
também ficava em frente à própria figura que a Esfinge
retrata, a constelação de Leão.
Enquanto tudo isso acontecia, Robert Bauval, engenheiro
civil belga, percebeu que as três pirâmides de Gizé (quando
vistas do alto) estavam precisamente alinhadas com as três
estrelas do cinturão de Órion.
Usando um sofisticado programa de computador projetado
para calcular todos os movimentos precessionais de qualquer
vista do céu noturno em qualquer localização geográfica,
Bauval descobriu que, embora as pirâmides de Gizé e as
estrelas do cinturão de Órion estivessem um tanto alinhadas
em 2.475 a.C., um alinhamento infinitamente mais preciso
havia acontecido em 10.450 a.C. Nessa época, a faixa escura
da Via Láctea não só aparecia sobre Gizé, mas espelhava o
curso meridional do rio Nilo.
Conforme já mencionei, os antigos maias consideravam a
Via Láctea uma serpente cósmica, e chamavam sua faixa
escura de Xibalba Be, a Estrada Negra para o Mundo Inferior.
Tanto o calendário maia quanto o Popol Vuh se referem aos
conceitos de criação e morte como originários desse canal
cósmico de nascimento.
Por que as três pirâmides de Gizé estão alinhadas com o
cinturão de Órion? Qual o significado do número
precessional 4.320? Qual foi a verdadeira motivação que
impeliu nossos ancestrais a construir os monumentos de
Gizé, as pirâmides de Teotihuacán e os templos de Angkor?
Como esses três locais estão ligados à profecia maia do Juízo
Final?
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1993-94 páginas 3-108
Disquete 4: Nome do arquivo: ORION-12
5
23 DE SETEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
3h30
O sonho de Michael Gabriel se transforma em terror
noturno. Pior do que qualquer pesadelo, é um sonho
violento e recorrente que toma conta de seu subconsciente
— um murmúrio em seu cérebro que o leva de volta a um
momento crucial de seu passado.
Ele está de volta ao Peru, um menino de novo, com menos
de 12 anos. Olhando pela janela de seu quarto para a
sonolenta aldeia de Ingenio, ele escuta as vozes abafadas que
vêm do quarto ao lado. Ouve seu pai falando com o médico
em espanhol. Ouve seu pai soluçando. A porta se abre. —
Michael, entre, por favor.
Mick sente o cheiro da doença. E um cheiro rançoso, um
odor de lençóis suados e frascos de soro, de vômito, dor e
angústia.
Sua mãe jaz na cama, seu rosto amarelado. Ela o olha com
seus olhos melancólicos e aperta-lhe a mão fracamente.
— Michael, o médico vai te ensinar a administrar os
remédios da sua mãe. É muito importante que você preste
bastante atenção e faça tudo corretamente.
O médico de cabelos prateados olha para ele.
— Ele é um pouco jovem, Señor...
— Mostre a ele.
O médico puxa os lençóis, revelando um cateter venoso
central saindo do ombro direito enfaixado de sua mãe. Mike
vê o tubo e sente medo.
— Papai, por favor, a enfermeira não pode...?
— Não podemos mais pagar a enfermeira, e eu preciso
completar o meu trabalho em Nazca, já conversamos sobre
isso, filho. Você consegue. Eu vou estar em casa toda noite.
Agora se concentre e preste atenção no que o médico vai
mostrar.
Mick fica ao lado da cama, olhando de perto o médico
enchendo a seringa com morfina. Ele memoriza a dose e
sente seu estômago revirar quando a agulha é injetada no
cateter, os olhos da mãe virando para cima...
— Não! Não! Não!
Os gritos de Michael Gabriel acordam todos os internos do
núcleo.
Espaço Profundo
A sonda leve Expresso Plutão-Kuiper voa pelo espaço, há
oito anos, dez meses e 13 dias de casa, a apenas 58 dias e 11
horas de seu destino: o planeta Plutão e sua lua, Caronte.
Com a aparência de uma antena parabólica high-tech, o
aparato científico continua a transmitir seu sinal não
codificado para a Terra através de sua antena de alto ganho
de um metro e meio.
Sem aviso, um imenso oceano de energia eletromagnética
radiante corta o espaço na velocidade da luz, e a porção
inferior de um pulso de hiperondas banha o satélite em sua
transmissão de alta potência. Num nanossegundo, o
subsistema de telecomunicações e os circuitos integrados
monolíticos de micro-ondas (CIMMs) são completamente
torrados.
NASA:
Laboratório de Rede do Espaço Profundo
14h06
Jonathan Lunine, chefe da equipe científica da Expresso
Plutão, se apoia numa fileira de bancadas de controles da
missão, ouvindo distraidamente oengenheiro, dr. Jeremy
Armentrout, dirigindo-se aos novos membros da equipe de
terra.
— ... a antena de alto ganho da EPK transmite
continuamente um entre três tons possíveis. Eles se
traduzem, essencialmente, como: está tudo bem, os dados
estão prontos para a transmissão, ou há um problema sério
que precisa de atenção imediata. Nos últimos oito anos, esses
sinais foram monitorados por...
Lunine suprime um bocejo. Os três turnos consecutivos de
18 horas se fazem sentir, e ele está mais do que pronto para
começar o fim de semana. Mais uma hora na sala de
reuniões, depois casa e cochilo. O Redskins pega o Eagles
amanhã, esse jogo vai ser bom...
— Jon, posso falar com você, por favor?
Um técnico está de pé ao lado de seu console, fazendo sinais
urgentes. Lunine nota gotas de suor na testa do homem. Os
operadores dos dois lados parecem trabalhar febrilmente.
— Qual a situação?
— Perdemos contato com a EPK.
— Vento solar?
— Desta vez não. Meu painel mostra uma sobrecarga
maciça de energia que afeta todo o sistema de comunicações
do SDST e dos dois computadores de voo. Sensores,
dispositivos eletrônicos, corretores de atitude... tudo
inoperante. Pedi uma análise completa de sistemas, mas só
Deus sabe como isso está afetando a trajetória da EPK.
— E os sistemas de reserva?
— Todos inoperantes.
— Droga. — Armentrout esfrega a têmpora. — A
prioridade, claro, é restabelecer contato. Também é
fundamental relocalizar e continuar rastreando a sonda antes
que passe muito tempo e a gente perca a EPK no espaço.
— Você tem alguma sugestão?
— Lembra quando perdemos contato por um mês com o
SOHO no verão de 1998? Conseguimos localizá-lo antes de
restabelecer contato. Transmitimos sinais de rádio para o
satélite com a antena grande de Arecibo e captamos os ecos
com a antena da NASA na Califórnia.
— Vou ligar para Arecibo.
Centro Nacional de Astronomia e Ionosfera
Arecibo, Porto Rico
— Entendido, Jon. — Robert Pasquale, diretor de operações
de Arecibo, desliga o telefone, depois assoa o nariz pela
enésima vez antes de interfonar para seu assistente. —
Arthur, venha aqui, por favor.
O astrofísico Arthur Krawitz entra no escritório do diretor.
— Meu Deus, Bob, você está um trapo.
— É essa maldita sinusite. Primeiro dia do outono e a minha
cabeça já está latejando. Aqueles astrônomos russos já
terminaram com a antena grande?
— Há uns dez minutos. O que aconteceu?
— Acabei de receber um chamado de emergência da
NASA. Parece que eles perderam contato com a Plutão-
Kuiper e querem que a gente ajude a localizá-la. Estão
mandando as últimas coordenadas válidas da sonda pro seu
computador e pedem que a gente use a antena grande pra
mandar um feixe de rádio pro espaço. Com sorte, a NASA
vai conseguir detectar um eco usando a antena grande de
Goldstone.
— Vou cuidar disso. Ah, e a SETI? Você sabe que o Kenny
Wong vai querer ficar na escuta usando os receptores da
SERENDIP. Não vai dar problema se...?
— Ah, Arthur, estou me lixando. Se o garoto quer passar o
resto da vida esperando o ET ligar, não tenho nada a ver
com isso. Se você precisar de mim, estarei no meu quarto
enchendo a cara de remédio.
Quando a Escola de Engenharia da Universidade de Cornell
teve a idéia de construir o radiotelescopio mais potente do
mundo, procurou durante anos um local que oferecesse uma
depressão geológica natural com as dimensões aproximadas
de um gigante prato refletor. O local precisava estar sob a
jurisdição dos Estados Unidos, e como o prato não se
mexeria, sua localização também precisava estar o mais perto
possível do equador, para que a Lua e os planetas
aparecessem quase totalmente a pino. Essa busca levou ao
desfiladeiro de montanhas calcárias de carste do norte de
Porto Rico, uma área verdejante e isolada, com vales
profundos rodeados por enormes colinas que protegeriam o
telescópio de qualquer radiointerferência.
Completado em 1963, com reformas em 1974, 1997 e 2010,
o telescópio de Arecibo parece, para quem o visita pela
primeira vez, uma enorme estrutura alienígena de aço e
concreto. O prato de 300 metros de diâmetro, formado por
quase 40 mil painéis perfurados de alumínio, tem o lado
côncavo para cima, preenchendo toda a bacia de carste
como uma gigante saladeira de 51 metros de profundidade.
Pendurados 130 metros acima do centro do prato estão o
braço de azimute do radiotelescopio, o telescópio gregoriano
e as antenas secundária e terciária. Essa teia de aço de 600
toneladas é mantida suspensa por 12 cabos presos a três
imensos obeliscos de sustentação e numerosos blocos de
ancoragem localizados no perímetro do vale.
Construído na encosta calcária montanhosa que tem vista
para o telescópio, o laboratório de Arecibo é um prédio de
concreto que abriga os computadores e equipamentos
técnicos usados para controlar a instalação. Ao lado do
laboratório ficam quatro andares de dormitórios com
refeitório e biblioteca, bem como uma piscina aquecida e
uma quadra de tênis.
O gigantesco telescópio de Arecibo foi projetado para ser
usado por cientistas em quatro campos diferentes.
Radioastrônomos usam a antena para analisar as
radioemissões naturais de galáxias, pulsares e outros corpos
celestes a até 10 milhões de anos-luz de distância.
Astrônomos especializados em radar vêm a Arecibo para
lançar poderosos feixes de rádio contra objetos dentro do
nosso sistema solar e depois gravar e estudar os ecos.
Cientistas atmosféricos e astrônomos usam o telescópio para
estudar a ionosfera da Terra, analisando a atmosfera e sua
relação dinâmica com o nosso planeta.
O último campo de estudo envolve o programa SETI, ou
Busca de Inteligência Extraterrestre. O objetivo da SETI é
localizar vida inteligente no cosmos usando a abordagem em
duas frentes. A primeira é lançar transmissões de rádio para
o espaço profundo na esperança de que um dia alguma
espécie inteligente receba nossa mensagem de paz. A
segunda usa o telescópio gregoriano e suas duas antenas
menores para receber ondas de rádio vindas do espaço
profundo, tentando distinguir nelas padrões inteligíveis para
provar que não estamos sós no universo.
Os astrônomos se referem à tarefa de buscar sinais de rádio
na imensidão do espaço como procurar uma agulha no
palheiro cósmico. Para simplificar a busca, o prof. Frank
Drake e seus colegas do Projeto Ozma, fundadores da SETI,
concluíram que qualquer vida inteligente existente no
cosmos teria (logicamente) que ser associada à água. Com
tantas frequências de rádio à disposição, os astrônomos
supuseram que uma inteligência extraterrestre emitiria seus
sinais de rádio em 1,42 gigahertz, o ponto do espectro
eletromagnético no qual a energia é liberada pelo
hidrogênio. Drake batizou essa região de espectro de olho-
d'água, e desde então ela tem sido o único alvo da caça por
sinais de rádio interestelares.
Um projeto adjunto da SETI é a SERENDIP, ou Busca por
Emissões de Rádio Extraterrestre de Populações Próximas
Desenvolvidas e Inteligentes. Como o tempo de telescópio é
caro e difícil de se obter, a SERENDIP simplesmente acopla
seus receptores à antena maior durante todas as observações.
A principal limitação desses cientistas da SETI é que eles não
escolhem o que vão escutar. Seus alvos são escolhidos pelo
anfitrião.
Kenny Wong está no terraço localizado à frente das grandes
janelas panorâmicas do laboratório. Emburrado, o estudante
de graduação de Princeton se apoia no balaústre e olha para
o emaranhado de metal e cabos suspensos sobre o centro da
grande antena.
Essa porra de NASA. Além de cortar o nosso orçamento,
fica monopolizando o telescópiopra localizar aquela droga de
sonda...
— Ei, Kenny...
Captar sinais é perda de tempo se não for no olho-d'água. Eu
devia ir à praia, não adianta porra nenhuma ficar aqui...
— Kenny, vem pra cá, caramba. O seu equipamento está
me dando dor de cabeça!
— Hã?
O estudante corre para dentro do laboratório, seu coração
batendo forte quando ele ouve um som que jamais ouviu
antes.
— Essa droga de computador está tocando esse bipe faz
cinco minutos. — Arthur Krawitz tira os óculos bifocais e
lhe lança um olhar furioso. — Dá pra desligar essa merda?
Está me deixando louco.
Kenny o empurra e digita comandos freneticamente para
ativar o programa de busca e identificação do computador. O
programa SERENDIP-IV consegue examinar
simultaneamente 168 milhões de frequências a cada 1,7
segundo.
Em segundos, uma resposta surge na tela, deixando-o sem
fôlego.
Sinal Candidato: Detectado
— Meu Deus do céu...
Kenny corre para o analisador de espectro, com o coração
latejando em seus ouvidos. Ele verifica que o sinal analógico
está sendo gravado e formatado digitalmente.
Sinal Candidato: Não Aleatório
— Jesus Cristo... é um sinal de verdade! Puta que pariu,
Arthur, preciso ligar pra alguém, preciso verificá-lo antes
que a gente o perca!
Arthur cai na gargalhada.
— Kenny, é só a sonda Plutão. A NASA deve ter
restabelecido a comunicação.
— O quê? Ah, merda. — Kenny desmorona numa cadeira,
sem fôlego. — Meu Deus, por um momento achei...
— Por um momento, você pareceu o Curly, dos Três
Patetas. Fique sentado aí e se acalme enquanto eu ligo pra
NASA e verifico, certo?
— Certo.
O físico aperta uma tecla pré-programada em seu
videocomunicador, que o coloca em ligação direta com a
NASA. O rosto do dr. Armentrout aparece no monitor.
— Arthur, é bom ver você. Ei, obrigado por nos ajudar.
— Obrigado por quê? Vi que já restabeleceram contato com
a EPK.
— Negativo, continua tudo morto aqui. O que te fez pensar
isso?
Kenny pula da cadeira.
— NASA, aqui é Kenny Wong, da SETI. Estamos
recebendo uma transmissão de rádio do espaço profundo.
Achamos que fosse a EPK.
— O sinal não é nosso, mas não se esqueça que a sonda
Plutão usa onda portadora não codificada. Tem muito
engraçadinho por aí, SETI. Qual a frequência do sinal?
— Um momento. — Kenny volta para o seu computador e
digita uma série de comandos. — Caramba, é em 4.320
MHz. Porra, Arthur, essa faixa de micro-ondas é alta demais
pra ser de qualquer telecomunicação terrestre, ou mesmo de
um satélite geossíncrono. Espere um pouco, vou pôr o sinal
nos alto-falantes pra gente ouvir.
— Kenny, espere...
Um tom agudo perfurante sai dos alto-falantes, a explosão
sonora pulveriza os óculos de Arthur e faz as vidraças
trepidarem nos caixilhos.
Kenny puxa o cabo, esfregando os ouvidos.
Arthur olha para os cacos de vidro em suas mãos.
— Inacreditável. Qual a potência do sinal? De onde está
vindo?
— Ainda estou calculando a origem, mas a potência está
totalmente fora da minha escala. E um brilho de rádio cerca
de mil vezes mais forte do que qualquer coisa que podemos
transmitir de Arecibo. — Um arrepio percorre a espinha de
Kenny. — Cacete, Arthur, é pra valer, é de verdade!
— Calma aí um minuto. Antes que a gente vire os Patetas
do milênio, comece a verificar o sinal. Comece com o Very
Large Array, no Novo México. Vou entrar em contato com
a Universidade de Ohio...
— Arthur...
Krawitz se vira para o videocomunicador.
— Pode falar, Jeremy.
Meia dúzia de técnicos se aglomeram em volta de um pálido
dr. Armentrout.
— Arthur, acabamos de confirmar o sinal.
— Vocês confirmaram... — Krawitz se sente meio zonzo,
como se estivesse vivendo um sonho. — Já localizaram a
origem?
— Ainda estamos tentando. Estamos recebendo muita
interferência por causa da...
— Arthur, já tenho uma trajetória preliminar! — Kenny
está de pé, empolgado. — O sinal está vindo da constelação
de Órion, em algum lugar nas proximidades do cinturão.
Chichén Itzá
Península de Yucatán
16h00
A antiga cidade maia de Chichén Itzá, localizada nas terras
baixas da península de Yucatán, é uma das grandes
maravilhas arqueológicas do mundo. Várias centenas de
construções ocupam esse sítio de 1.200 anos cercado pela
selva, incluindo alguns templos e santuários com as
esculturas mais intrincadas de toda a Mesoamérica.
As verdadeiras origens da cidade conhecida como Chichén
remontam a 435 d.C. Depois de um período de abandono, a
cidade foi redescoberta pelos itzás, uma tribo que falava o
idioma maia e ocupou a região até o final do século VIII,
quando os toltecas migraram para o leste de Teotihuacán.
Sob a tutela e liderança do grande mestre, Kukulcán, as duas
culturas se fundiram e a cidade floresceu, dominando a
região como um centro religioso, cerimonial e cultural. A
partida de Kukulcán no século XI levaria à decadência da
cidade, seu povo perdido, levado por sua depravação a
formas diabólicas de sacrifício humano. Por volta do século
XVI, o pouco que restava da cultura havia caído
rapidamente sob o domínio dos espanhóis.
Dominando Chichén Itzá está, possivelmente, a estrutura
mais magnífica de toda a Mesoamérica: a pirâmide de
Kukulcán. Apelidada de El Castillo pelos espanhóis, esse
imponente zigurate de nove terraços se ergue quase 30
metros acima de um campo aberto de grama baixa.
Kukulcán é bem mais do que uma pirâmide — é um
calendário de pedra. Cada um de seus quatro lados tem 91
degraus. Com a plataforma, o total perfaz 365, igual aos dias
do ano.
Para arqueólogos e cientistas, a pirâmide de cor encarnada
continua um enigma, pois seu projeto revela um
conhecimento de Astronomia e Matemática que rivaliza
com o do homem moderno. A estrutura foi geologicamente
alinhada de tal maneira que duas vezes ao ano, nos
equinócios da primavera e do outono, estranhas sombras
começam a ondular ao longo da balaustrada norte. À medida
que o sol do fim de tarde se põe, a enorme sombra de um
corpo de serpente começa a deslizar pelos degraus até se
encontrar com sua cabeça esculpida, que jaz na base da
estrutura. (Na primavera, a serpente desce a balaustrada; no
outono, a ilusão é invertida.)
No alto da pirâmide fica um templo de quatro lados,
inicialmente usado para adoração, e somente mais tarde,
depois da partida de Kukulcán, para sacrifícios humanos.
Erguida, segundo se acredita, em 830 d.C., Kukulcán foi
originalmente construída sobre uma estrutura muito mais
antiga, cujas ruínas só podem ser acessadas por meio de um
portão localizado na base norte. Uma passagem
claustrofóbica leva a uma escada estreita, cujos degraus de
calcário ficam lisos com a umidade. Subindo a escada, chega-
se a duas pequenas câmaras interiores. A primeira contém a
figura reclinada de um Chac Mool, uma estátua maia
segurando uma bandeja cerimonial cuja função era conter os
corações das vítimas dos sacrifícios. Atrás da cerca de
segurança da segunda câmara fica o trono de um jaguar
vermelho, com verdes olhos brilhantes de jade.
Brent Nakamura aperta a tecla que elimina imagens
tremidas, e então, com sua câmera de vídeo Sony, faz uma
panorâmica pelo mar de corpos suados. Meu Deus, deve ter
umas 100 mil pessoas aqui. Vou ficar um tempão preso no
trânsito.
O rapaz de San Francisco aponta a câmera para a balaustrada
norte, fechando o zoom na sombra da cauda da serpente,
que continua sua jornada de 202 minutos pela parede
calcária da pirâmide de 1.200 anos.
O aroma acre de suor humano paira pesadamente na tarde
úmida. Nakamura grava um casal canadense discutindo com
dois funcionários do parque, depois desliga a câmera quando
um turista alemão e sua família se apertam para passar por
ele.
Olhando para o relógio, Nakamura decide que é melhor
fazer algumas imagens do cenote sagrado antes que
escureça. Depois de passar por cima de uma miríade de
pessoas fazendo piquenique, ele ruma para o norte pelo
antigo sacbe, um caminho elevado de terra bem perto da
face norte de Kukulcán.
O sacbe é o único meio de correr pela densa selva para
chegar ao segundo lugar mais sagrado de Chichén Itzá —
um poço de água doce conhecido como cenote, ou poço
maia de sacrifício.
Cinco minutos de caminhada o levam até a boca do abismo
de 58 metros de largura, um lugar onde milhares de virgens
morreram sacrificadas. Ele olha para baixo. Dezoito metros
abaixo, as águas escuras e infestadas de algas fedem à
estagnação.
O som de um trovão distante atrai sua atenção para o céu.
Que estranho, não tem uma nuvem no céu. Será que foi um
avião a jato? O som fica mais alto. Centenas de turistas se
entreolham, inquietos. Uma mulher grita.
Nakamura sente seu corpo tremer. Ele olha para o poço.
Círculos estão se formando na superfície antes tranquila.
Puta que pariu, é um terremoto1.
Sorrindo entusiasmado, Nakamura aponta a câmera para a
boca do cenote. Depois de sobreviver ao grande terremoto
de 2005, a psique desse nativo de San Francisco precisa de
muito mais do que alguns tremores para se abalar.
A multidão retrocede à medida que o tremor aumenta.
Muitos correm pelo sacbe para a saída do parque. Outros
gritam quando o chão sob seus pés pula como um
trampolim.
Nakamura para de sorrir. Que porra...?
A água dentro do poço forma um redemoinho.
E então, tão abruptamente como começaram, os tremores
cessam.
Hollywood Beach, Flórida
A sinagoga está lotada neste Yom Kippur, o dia mais sagrado
do calendário judaico.
Dominique está sentada entre seus pais adotivos, Edie e Iz
Axler. O rabino Steinberg está de pé no púlpito, ouvindo a
voz angelical de sua chazan, que entoa uma pungente prece
para a congregação.
Dominique está com fome, depois de jejuar quase 24 horas
desde o início do Dia do Perdão. Ela também está no
período pré-menstrual. Talvez por isso esteja tão
emocionada, incapaz de se concentrar. Talvez por isso seus
pensamentos fiquem voltando para Michael Gabriel.
O rabino começa a ler de novo:
— No Rosh Hashana, nós refletimos. No Yom Kippur,
consideramos. Quem viverá pelo bem dos outros? Quem,
morrendo, deixará uma herança de vida? Quem arderá no
fogo da ganância? Quem se afogará nas águas do desespero?
Quem passará fome para fazer o bem? Quem terá sede de
justiça e retidão? Quem sofrerá com o medo do mundo?
Quem sufocará por falta de amigos? Quem descansará no
final do dia? Quem ficará insone num leito de dor?
Suas emoções se agitam ao imaginar Mick deitado em sua
cela. Pare com isso...
— A língua de quem será uma espada em riste? As palavras
de quem vão trazer a paz? Quem seguirá em busca da
verdade? Quem ficará trancado na prisão do ego?
Em sua mente, ela vê Mick andando pelo jardim enquanto o
sol do equinócio se põe atrás da muralha de concreto.
— ... os anjos, tomados pelo medo e por tremores,
declaram, assombrados: Este é o Dia do Juízo! Pois até as
hostes celestes serão julgadas, como todos que habitam a
Terra agora estão diante de Vós.
A barragem emocional se abre, as lágrimas quentes
mancham seu rosto com a maquiagem. Confusa, ela passa
por Iz e corre pelo corredor para fora do templo.
6
25 DE SETEMBRO DE 2012
WASHINCTON, DC
Ennis Chaney está exausto. Já se passaram dois anos desde
que o senador republicano da Pensilvânia enterrou a mãe, e
ele ainda sente imensamente sua falta. Sente falta das visitas
ao lar de idosos, onde sempre levava para a mãe seu leitão
assado especial, e sente falta de seu sorriso. Também sente
falta da irmã, que morreu 11 meses depois de sua mãe, e de
seu irmão mais novo, que o câncer lhe roubou no mês
passado.
Ele aperta as mãos com força, sua filha mais nova tenta
confortá-lo com um carinho nas costas. Quatro longos dias
se passaram desde que ele recebeu o telefonema no meio da
noite. Quatro dias desde que seu melhor amigo, Jim, morreu
de um ataque cardíaco fulminante.
Ele vê, através da janela do salão de jantar, a limusine e o
carro dos seguranças parando na entrada. Solta um suspiro.
Nenhum descanso para os exaustos, nenhum descanso para
os enlutados. Ele puxa para si a esposa e as três filhas, abraça
a viúva de Jim mais uma vez e sai da casa, acompanhado
pelos dois guarda-costas. Enxuga uma lágrima de seus olhos
fundos, o pigmento escuro ao redor das órbitas criando a
sombra da máscara de um guaxinim. Os olhos de Chaney são
o espelho de sua alma. Eles revelam sua paixão de homem,
sua sabedoria de líder. Contrarie-o, e os olhos se tornam
adagas fixas.
Ultimamente, os olhos de Chaney têm estado vermelhos de
tanto chorar.
Com relutância, o senador se senta no banco de trás da
limusine que o aguardava, enquanto os dois guarda-costas
entram no outro carro.
Chaney odeia limusines. Aliás, odeia tudo que chama
atenção para si ou cheira ao tipo de tratamento preferencial
que se associa ao privilégio político. Ele olha pela janela e
pensa na sua esposa, perguntando-se se está para cometer
um grande erro.
Ennis Chaney nasceu há 67 anos no bairro negro mais pobre
de Jacksonville, na Flórida. Foi criado pela mãe, que
sustentava a família fazendo faxina nas casas dos brancos, e
pela tia, que muitas vezes ele chama de mãe. Nunca
conheceu seu verdadeiro pai, um homem que saiu de casa
poucos meses depois que ele nasceu. Quando ele tinha 2
anos, sua mãe se casou de novo, e seu padrasto se mudou
com a família para New Jersey. Foi ali que o jovem Ennis
cresceu. Foi ali que desenvolveu suas habilidades de líder.
A quadra era o único lugar onde Chaney se sentia em casa, o
único lugar onde a cor não importava. Embora fosse menor
que seus colegas, não se deixava intimidar por ninguém.
Depois das aulas, forçava-se a cumprir milhares de horas de
treinos, canalizando sua agressão para o desenvolvimento de
suas habilidades atléticas, aprendendo também disciplina e
autocontrole. Nos últimos anos do colégio, fazia parte do
segundo time municipal de futebol como zagueiro e da
seleção estadual de basquete. Poucos defensores se atreviam
a desafiar o pequeno e valente armador, que preferia lhes
quebrar os tornozelos a deixar que roubassem a bola; mas,
fora das quadras, não se podia encontrar um jovem mais
gentil e afetuoso.
Sua carreira no basquete acabou quando ele lesionou o
tendão patelar em seu primeiro ano na universidade.
Embora estivesse mais interessado na carreira de treinador,
permitiu que sua mãe, uma mulher que crescera na época da
segregação, o convencesse a ingressar na arena política. Por
também ter convivido o suficiente com o racismo, Ennis
sabia que a política era o principal ambiente que precisava
de mudanças.
Seu padrasto tinha contatos no Partido Republicano na
Filadélfia. Apesar de democrata ferrenho, Chaney acreditava
que poderia produzir mais mudanças como candidato
republicano. Aplicando a mesma ética de trabalho, a paixão
e a intensidade que lhe permitiram brilhar nas quadras
esportivas, Ennis rapidamente galgou os degraus mais baixos
da política municipal, nunca temendo expressar sua opinião,
sempre disposto a se arriscar para ajudar os oprimidos.
Desprezando a preguiça e a falta de autocontrole dos seus
pares, ele se tornou uma brisa de ar fresco e uma espécie de
herói popular na Filadélfia. O vice-prefeito Chaney logo se
tornou o prefeito Chaney. Anos depois, concorreu ao cargo
de senador pela Pensilvânia e ganhou disparado.
E agora, a menos de dois meses da eleição de novembro de
2012, o presidente dos Estados Unidos liga para pedir que
ele concorra em sua chapa. Ennis Chaney — o garoto
miserável de Jacksonville, Flórida —, a um passo do cargo
mais poderoso do mundo.
Ele olha pela janela enquanto a limusine vira para a Capital
Beltway. A morte apavora Ennis Chaney. Não há como se
esconder dela ou argumentar com ela. Ela não traz nenhuma
resposta, apenas perguntas e confusão, lágrimas e tributos no
enterro, tributos até demais. Como resumir a vida de um
ente querido em vinte minutos? Como esperar que se
traduza uma vida de afeto em meras palavras?
Vice-presidente. Chaney balança a cabeça, deixando sua
mente às voltas com o seu futuro.
Não é o seu futuro que o preocupa, mas o fardo que a
candidatura representaria para a sua esposa e a sua família.
Ser eleito senador é uma coisa, aceitar a indicação
republicana como o primeiro vice-presidente afro-
americano é algo totalmente diferente. O último e único
negro que teve uma chance legítima de ser eleito para a Casa
Branca foi Colin Powell, e o general acabou desistindo,
alegando preocupações familiares. Se Maller for reeleito,
Chaney será o candidato favorito para 2016. Como Powell,
ele sabe que sua popularidade cruza fronteiras políticas e
raciais, mas há sempre uma pequena parte da população que,
como a morte, não aceita argumentos.
E ele já fez sua família enfrentar tanta coisa.
Chaney também sabe que Pierre Borgia deseja entrar na
chapa, e se pergunta até onde o secretário de Estado está
disposto a ir para conseguir o que quer. Borgia é tudo o que
Chaney não é: impulsivo, interesseiro, motivado
politicamente, egoísta, solteiro, pró-guerra — e branco.
Os pensamentos de Chaney voltam para o seu melhor amigo
e sua família. Ele chora abertamente, sem se importar nem
um pouco com a presença do motorista.
Ennis Chaney demonstra suas emoções facilmente, algo que
aprendeu há muito tempo com a mãe. A força interior e a
tenacidade para comandar são inúteis se alguém não se
permite ter sentimentos, e Chaney tudo sente. Pierre Borgia
não sente nada. Criado entre os ricos, o secretário de Estado
tem uma visão bitolada da vida, jamais parando para pensar
no que o outro lado pode estar sentindo. Esse último fato
tem um grande peso para o senador. O mundo se torna um
lugar mais complicado e perigoso a cada dia. A paranóia
nuclear na Ásia está aumentando. Borgia é a última pessoa
que ele quer ver comandando o país numa situação de crise.
— O senhor está bem, senador?
— Claro que não. Que pergunta idiota é essa? — A voz de
Chaney é áspera e grave, a menos que ele esteja gritando,
algo que faz com freqüência.
— Desculpe, senhor.
— Cale a boca e dirija.
O motorista sorri. Dean Disangro trabalha para o senador
Chaney há 16 anos e o ama como a um pai.
— Deano, que diabos pode ser tão importante pra NASA
me querer no Goddard num domingo?
— Não faço idéia. O senhor é o senador, eu sou só um
subalterno mal pago...
— Ah, fica quieto. Você é mais bem-informado que a
maioria daqueles tontos no Congresso.
— O senhor é adido da NASA, senador. Se tiveram coragem
de convocá-lo durante o fim de semana, é óbvio que algo
importante aconteceu.
— Obrigado, Sherlock. Você tem um monitor de notícias
aí?
O motorista lhe passa o aparelho do tamanho de uma
prancheta, já ligado no Washington Post. Chaney corre os
olhos pelas manchetes e vê os preparativos para os testes
nucleares retaliatórios na Ásia. Grozny marcou os testes uma
semana antes do Natal. Muito esperto. Sem dúvida queria
estragar o espírito natalino.
Chaney joga o monitor para o lado.
— Como está sua esposa? Está pra dar à luz, não é?
— Daqui a duas semanas.
— Maravilha. — Chaney sorri, enxugando outra lágrima de
seus olhos injetados.
NASA: Centro de Vôo Espacial Goddard
Greenbelt, Maryland
O senador Chaney sente sobre si os olhos ansiosos da
NASA, da SETI, de Arecibo, e só Deus sabe de quem mais.
Ele termina de folhear o relatório de vinte páginas e
pigarreia, silenciando a sala de conferências.
— Vocês têm certeza absoluta de que o sinal de rádio veio
do espaço?
— Sim, senador. — O tom de Brian Dodds, diretor
executivo da NASA, é quase de desculpas.
— Mas não conseguiram determinar a origem exata do
sinal?
— Não, senhor, ainda não. Temos quase certeza de que a
fonte está localizada no braço de Órion, o nosso braço na
espiral da galáxia. O sinal atravessou a Nebulosa de Órion,
uma enorme fonte de interferência, o que torna difícil
determinar exatamente quanto viajou. Presumindo que
tenha vindo de um planeta dentro do cinturão de Órion,
podemos considerar uma distância mínima entre 1.500 e
1.800 anos-luz da Terra.
— E esse sinal durou três horas?
— Três horas e 22 minutos, para ser exato, senador —
Kenny Wong exclama, levantando-se.
Chaney, com um gesto, indica que ele se sente.
— E não houve outros sinais, sr. Dodds?
— Não, senhor, mas continuaremos monitorando a
freqüência e a direção do sinal.
— Muito bem. Imaginando que o sinal seja real, quais são as
implicações?
— Bem, senhor, a implicação mais óbvia e entusiasmante é
que agora temos a prova de que não estamos sós, de que
existe pelo menos mais uma forma de vida inteligente em
algum lugar da nossa galáxia. Nosso próximo passo é
determinar se padrões ou algoritmos específicos estão
ocultos dentro do próprio sinal.
— Você acha que o sinal pode conter alguma espécie de
comunicação?
— Achamos bastante possível. Senador, este não é um sinal
aleatório viajando pela galáxia. O feixe foi propositalmente
direcionado para o nosso sistema solar. Existe outra
inteligência que sabe que estamos aqui. Dirigindo o sinal
para a Terra, estão nos avisando que existem.
— Uma espécie de "Oi, como vai" entre vizinhos, é isso?
O diretor da NASA sorri.
— Sim, senhor.
— E quando o seu pessoal vai terminar a análise?
— Difícil dizer. Se um algoritmo alienígena existe, estou
confiante que nossos computadores e nossa equipe de
matemáticos e criptógrafos vai encontrá-lo. Mesmo assim,
pode levar meses, anos. Ou pode nunca acontecer. Como
pensar como um extraterrestre? Tudo isso é entusiasmante,
mas é muito novo para nós.
— Isso não é exatamente verdade, certo, sr. Dodds? — Os
olhos de guaxinim fitam o diretor. — O senhor e eu
sabemos que a SETI vem usando o grande radiotelescópio de
Arecibo para transmitir mensagens para o espaço há algum
tempo.
— E as redes de televisão têm lançado sinais de TV para o
espaço na velocidade da luz desde a estréia do I Love Lucy.
— Não faça piadinhas, sr. Dodds. Não sou astrônomo, mas li
o suficiente para saber que os sinais de TV são fracos demais
para chegar a Orion. Quando essa descoberta for anunciada,
muita gente vai ficar furiosa e com medo, e insistir que a
SETI atraiu esse terror desconhecido.
Dodds silencia as objeções de seus assistentes.
— Tem razão, senador. As transmissões da SETI são mais
potentes, mas os sinais de TV são infinitamente mais
amplos, espalhando-se pelo espaço em todas as direções.
Entre os dois, é muito mais provável que os sinais de TV
alcancem aleatoriamente um receptor do que o feixe estreito
de Arecibo. Não se esqueça que o sinal de rádio que
detectamos foi produzido por um transmissor alienígena
muito superior ao nosso. Precisamos presumir que a
inteligência por trás do sinal também tenha receptores
capazes de detectar nossos sinais mais fracos.
— Mesmo assim, sr. Dodds, a realidade da situação é que
milhões de pessoas ignorantes vão acordar amanhã
morrendo de medo, esperando que homenzinhos verdes
invadam suas casas, estuprem suas esposas e raptem seus
bebês. Essa situação precisa ser controlada com delicadeza
ou vai explodir na nossa cara.
O diretor da NASA balança a cabeça.
— Por isso chamamos o senhor, senador.
Os olhos fundos perdem um pouco de sua dureza.
— Muito bem, vamos falar desse novo telescópio que vocês
estão propondo. — Chaney folheia sua cópia do relatório. —
Aqui diz que a antena teria 48 quilômetros de diâmetro e
seria construída no lado escuro da Lua. Isso vai custar uns
trocados. Por que diabos precisam construí-lo na Lua?
— Pelo mesmo motivo que lançamos o Telescópio Hubble.
A Terra libera radiointerferência demais. O outro lado da
Lua está sempre oposto à Terra, oferecendo uma zona
naturalmente livre de sinais de rádio. A idéia é construir a
concha no fundo de uma cratera imensa, como foi feito com
a concha de Arecibo, só que milhares de vezes maior. Já
escolhemos um local: a cratera Saha, que fica só três graus
dentro do lado escuro da Lua, perto do equador lunar. Um
telescópio lunar vai permitir que nos comuniquemos com a
inteligência que fez contato conosco.
— E por que iríamos querer esse tipo de contato? — A voz
de Chaney ecoa pela sala de conferências, perdendo a
aspereza ao ficar mais alta. — Sr. Dodds, esse sinal de rádio
pode ser a descoberta mais importante da história da
humanidade, mas o que a NASA propõe vai assustar a
população. E se o povo americano disser que não? E se ele
disser que não quer gastar alguns bilhões de dólares pra falar
com um ET? Vocês querem enfiar um comprimido bem
grande na goela do Congresso.
Brian Dodds conhece Ennis Chaney, e sabe que o homem
quer testar sua convicção.
— Senador, o senhor tem razão. Essa descoberta vai
amedrontar muita gente. Mas me deixe dizer o que apavora
muitos de nós mais ainda. Temos medo quando pegamos o
monitor de notícias e lemos a respeito das armas nucleares
do Irã. Temos medo quando lemos sobre a crescente carestia
na Rússia ou sobre a acumulação de armas estratégicas na
China, outro país capaz de destruir o mundo. Parece que
toda nação que sofre de instabilidade política e econômica
está armada até os dentes, senador Chaney, e essa realidade é
muito mais apavorante do que qualquer sinal de rádio vindo
de 1.800 anos-luz de distância.
Dodds fica de pé. Com pouco mais de 1,85 metro e pesando
100 quilos, parece mais um lutador do que um cientista.
— O que o público precisa entender é que estamos lidando
com uma espécie inteligente, muito mais avançada que a
nossa, e que conseguiu fazer o primeiro contato. Sejam o
que forem, estejam onde estiverem, estão longe demais para
nos fazer uma visita. Construindo esse radiotelescópio,
poderemos nos comunicar com outra espécie. Com o
tempo, poderemos aprender com eles, compartilhar nossas
tecnologias e entender melhor o universo, talvez até nossa
própria origem. Essa descoberta pode unir a humanidade.
Esse projeto pode ser o catalisador que afastará a
humanidade da aniquilação nuclear.
Dodds olha Chaney diretamente nos olhos.
— Senador, um ET ligou, e é de suma importância para o
futuro da humanidade que retornemos a ligação.
7
26 DE SETEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
Cinco internos estão reunidos no núcleo conhecido como
7-C. Dois estão sentados no chão, jogando o que pensam ser
xadrez, e outro está dormindo no sofá. O quarto está perto
da porta, esperando que um membro de sua equipe de
reabilitação chegue para levá-lo até sua sessão matinal de
terapia.
O último interno do 7-C está parado diante de um aparelho
de TV suspenso acima de sua cabeça. Ele ouve o presidente
Maller elogiar o tremendo trabalho dos homens e mulheres
da NASA e da SETI. Ouve o presidente falando, empolgado,
de paz mundial e cooperação, do programa espacial
internacional e o seu impacto sobre o futuro da humanidade.
A aurora de uma nova era está chegando, ele anuncia. Não
estamos mais sós.
Diferente dos outros bilhões de espectadores que assistem à
coletiva ao vivo em todo o mundo, Michael Gabriel não está
surpreso com o que está ouvindo, só entristecido. Os olhos
de ébano não piscam, o corpo, rígido, não se move. Sua
expressão neutra não muda, nem mesmo quando o rosto de
Pierre Borgia aparece na tela sobre o ombro esquerdo do
presidente. E difícil até saber se Mick está respirando.
Dominique entra no núcleo. Ela para por um momento para
observar seu paciente assistindo ao boletim extraordinário
enquanto verifica se o gravador preso sob sua camiseta está
escondido pelo jaleco branco.
Ela fica ao lado dele, os dois ombro a ombro, agora, diante
da televisão, a mão direita dela perto da esquerda dele.
Seus dedos se entrelaçam.
— Mick, quer ver o resto da coletiva ou podemos
conversar?
— No meu quarto.
Ele a leva pelo corredor e entra no quarto 714. Mick anda
pela cela como um animal enjaulado, sua mente
sobrecarregada tentando organizar mil detalhes de uma vez.
Dominique se senta na beira da cama, olhando para ele.
— Você sabia que isso ia acontecer, não sabia? Como?
Como você sabia? Mick...
— Eu não sabia o que ia acontecer, só que algo ia acontecer.
— Mas você sabia que seria um evento celeste, alguma coisa
a ver com o equinócio. Mick, pare de andar, é difícil
conversar assim. Venha cá. Senta perto de mim.
Ele hesita, e então se senta ao lado dela. Ela pode ver suas
mãos tremendo.
— Fale comigo.
— Eu posso sentir, Dom.
— O que você pode sentir?
— Não sei... não consigo descrever. Algo está vindo, uma
presença. Ainda está distante, mas está se aproximando. Já
senti isso antes, mas nunca assim.
Ela toca o cabelo que cobre o pescoço dele, enrolando um
grosso cacho castanho em seu dedo.
— Tente relaxar. Vamos falar dessa transmissão de rádio do
espaço. Quero que me conte como sabia que o maior evento
na história da humanidade estava pra acontecer.
Ele olha para ela, medo em seus olhos.
— Isso não é nada. É só o começo do último ato. O maior
evento vai acontecer no dia 21 de dezembro, quando
bilhões de pessoas vão morrer.
— E como você sabe? Eu sei o que o calendário maia diz,
mas você é inteligente demais pra simplesmente aceitar uma
profecia de 3 mil anos sem provas científicas. Me explique
os fatos, Mick. Nada de folclore maia, apenas as evidências
que comprovam. Ele balança a cabeça.
— Por isso pedi que você lesse o diário do meu pai.
— Eu comecei a ler, mas prefiro que você mesmo me
explique. Da última vez que conversamos, você me alertou
sobre algum tipo de alinhamento galáctico raro em que a
Terra ia entrar, começando no equinócio de outono. Me
explica isso.
Mick fecha os olhos, respirando lentamente para obrigar
seus músculos carregados de adrenalina a se acalmarem.
Dominique consegue ouvir o zumbido do gravador. Ela
pigarreia, acobertando o ruído.
Ele reabre os olhos, seu olhar mais suave, agora.
— Você conhece o Popol Vuh?
— Eu sei que é o livro maia da criação, o equivalente à
nossa Bíblia pra eles.
Ele concorda com a cabeça.
— Os maias acreditavam em cinco sóis ou cinco Grandes
Ciclos da criação, sendo que o quinto e último deve
terminar em 21 de dezembro, o dia do solstício de inverno
deste ano. De acordo com o Popol Vuh, o universo foi
dividido em um Mundo Superior, um Mundo Médio e um
Mundo Inferior. O Mundo Superior representa o céu, o
paraíso, e o Mundo Médio representa a Terra. Os maias se
referiam ao Mundo Inferior como Xibalba, um lugar escuro
e terrível que seria governado por Hurakan, o deus da
morte. A lenda maia diz que o grande mestre, Kukulcán,
estava empenhado numa longa batalha cósmica contra
Hurakan, lançando as forças do bem e da luz contra as trevas
e o mal. Está escrito que o quarto ciclo teve um fim abrupto
quando Hurakan fez um grande dilúvio inundar o mundo. A
palavra "furacão" vem do nome maia "Hurakan". Os maias
acreditavam que essa entidade demoníaca existia dentro de
um violento redemoinho. Os astecas acreditavam na mesma
lenda, só que o nome deles para o grande mestre era
Quetzalcoatl, e a divindade do mundo inferior era conhecida
como Tezcatilpoca, um nome que se traduz como "espelho
enfumaçado".
— Mick, espere. Pare um momento, está bem? Esqueça o
mito maia. Preciso que você se concentre nos fatos
referentes ao calendário e em como ele se relaciona com
essa transmissão do espaço.
Os olhos negros chispam para ela como lasers de ônix, e o
olhar faz Dominique se encolher.
— Não posso discutir os aspectos científicos que confirmam
a profecia do Juízo Final sem explicar o mito da criação.
Tudo está relacionado. Um paradoxo envolve os maias. A
maioria das pessoas acha que os maias eram só um bando de
selvagens que moravam na floresta e construíam umas
pirâmides legaizinhas. A verdade é que os maias eram
astrônomos e matemáticos incríveis, que tinham uma
incomensurável compreensão da existência do nosso planeta
dentro da galáxia. E foi esse conhecimento que permitiu que
eles previssem o alinhamento celeste que levou ao sinal de
ontem.
— Não entendo...
Mick se agita, depois começa a andar pelo quarto de novo.
— Temos provas que mostram que os maias e seus
antepassados, os olmecas, usavam a Via Láctea como um
marcador celestial pra calcular o calendário maia. A Via
Láctea é uma galáxia espiral com cerca de 100 mil anos-luz
de diâmetro, formada por aproximadamente 200 bilhões de
estrelas. O nosso Sol está localizado num dos braços espirais,
o braço de Orion, a cerca de 35 mil anos-luz do centro da
galáxia, que os astrônomos agora acreditam ser um
gigantesco buraco negro que atravessa a constelação de
Sagitário. O centro da galáxia funciona como uma espécie de
ímã celeste, movendo a Via Láctea num vórtice poderoso.
Neste exato momento, nosso sistema solar está voando ao
redor do ponto central da galáxia a uma velocidade de 217
quilômetros por segundo. Apesar dessa velocidade, a Terra
leva 226 milhões de anos pra completar uma revolução ao
redor da Via Láctea.
A fita está acabando.
— Mick, o sinal...
—Tenha paciência. Ao se mover pela galáxia, nosso sistema
solar segue uma trajetória de 14 graus de largura chamada de
eclíptica. A eclíptica cruza a Via Láctea de tal forma que
periodicamente se alinha com a saliência central da galáxia.
Quando olhavam pro céu noturno, os maias viam uma fenda
escura, uma faixa escura alongada de densas nuvens
interestelares que começava onde a eclíptica cruza a Via
Láctea, na constelação de Sagitário. O mito da criação do
Popol Vuh se refere a essa fenda escura como Estrada Negra,
ou Xibalba Be, um nexo na forma de uma grande serpente
que liga a vida e a morte, a Terra e o Mundo Inferior.
— Já falei, tudo isso é fascinante, mas que relação tem com
o sinal de rádio vindo do espaço?
Mick para de andar.
— Dominique, esse sinal de rádio não foi só uma
transmissão aleatória lançada através do universo. Foi
propositalmente direcionado pro nosso sistema solar. Do
ponto de vista tecnológico, você não pode simplesmente
transmitir um feixe de rádio do outro lado da galáxia e torcer
pra que ele alcance um determinado grão de poeira
planetário como a Terra. Quanto mais o feixe viaja, mais o
sinal se distorce e perde a força. A transmissão de rádio que
a SETI detectou era um feixe muito poderoso, preciso e
estreito. Pelo menos pra mim, isso indica que quem quer, ou
o que quer que o tenha mandado precisou de um
alinhamento galáctico particular, uma espécie de corredor
celeste que dirigisse a transmissão de sua origem até a Terra.
Essencialmente, o sinal viajou dentro de uma espécie de
corredor cósmico. Não sei explicar por que nem como, mas
senti quando o portal desse corredor começou a se abrir.
Dominique vê o medo nos olhos dele.
— Você sentiu que ele se abria? O que sentiu?
— Era uma sensação repugnante, como de dedos gelados se
movendo dentro do meu intestino.
— E você acredita que esse corredor cósmico se abriu só o
suficiente pra permitir a passagem do sinal?
— Sim, e o portal está se alargando um pouco mais a cada
dia. No solstício de dezembro, vai se abrir completamente.
— O solstício de dezembro. O Dia do Juízo maia?
— Isso mesmo. Os astrônomos já sabem há anos que o
nosso Sol vai se alinhar com o ponto exato do centro da
galáxia em 21 de dezembro de 2012, o último dia do quinto
ciclo do calendário. Ao mesmo tempo, a fenda escura da Via
Láctea vai entrar em alinhamento com o nosso horizonte
oriental, aparecendo diretamente sobre a cidade maia de
Chichén Itzá à meia-noite do solstício. Essa combinação de
eventos galácticos acontece somente uma vez a cada 25.800
anos, e mesmo assim, de alguma forma, os maias foram
capazes de prever o alinhamento.
— E a transmissão vinda do espaço, qual a finalidade dela?
— Não sei, mas é um presságio de morte. Justifique a
esquizofrenia dele. Culpe os pais.
— Mick, eu acho que, à parte um episódio isolado de
violência, seu aprisionamento constante tem mais a ver com
sua crença fanática no apocalipse, que é uma crença
compartilhada por dezenas de milhões de pessoas. Quando
você diz que a humanidade está perto do fim, o que eu ouço
é um credo que provavelmente foi martelado em você desde
que nasceu. Não seria possível que seus pais...
— Meus pais não eram fanáticos religiosos nem arautos do
milênio. Não passavam o tempo construindo abrigos
subterrâneos. Não amontoavam armamentos pesados e
comida se preparando pro Dia do Juízo. Aliás, eles não
acreditavam no Segundo Advento de Cristo, nem do
Messias, e não acusavam qualquer líder mundial autocrático
de bigodinho de ser o Anticristo. Eles eram arqueólogos,
Dominique. Cientistas inteligentes o bastante pra não
ignorar os marcos que apontam pra um desastre que
aniquilará toda a nossa espécie. Chame de Armagedom,
chame de Apocalipse, de profecia maia, do que você
preferir, mas me tire daqui pra que eu possa fazer alguma
coisa pra impedi-lo!
— Mick, fique calmo. Sei que você está frustrado, mas estou
tentando te ajudar, mais do que imagina. Só que pra
conseguir sua alta, preciso pedir outra avaliação psiquiátrica.
— Quanto tempo isso vai levar?
— Não sei.
— Meu Deus... — Ele anda mais rápido.
— Digamos que você fosse solto amanhã. O que faria? Pra
onde iria?
— Pra Chichén Itzá. A única chance que temos de nos
salvar é conseguir entrar na pirâmide de Kukulcán.
— O que há dentro da pirâmide?
— Não sei. Ninguém sabe. Nunca ninguém encontrou a
entrada.
— Então como...
— Porque sinto que há algo lá dentro. Não me pergunte
como, eu sinto e pronto. É como quando você está andando
na rua e consegue sentir que alguém está te seguindo.
— Os membros da junta vão querer algo mais palpável do
que uma sensação.
Mick pára de andar e lhe lança um olhar exasperado.
— Por isso pedi que você lesse o diário do meu pai. Duas
estruturas em Chichén Itzá estão ligadas à nossa salvação. A
primeira é o Grande Campo, que foi alinhado precisamente
pra espelhar Xibalba Be, a fenda escura da Via Láctea, do
jeito como ela vai aparecer em 4 Ahau, 3 Kankin. A segunda
é a pirâmide de Kukulcán, a estrutura mais importante de
toda a profecia do fim do mundo. A cada equinócio, a
sombra de uma serpente aparece na balaustrada norte da
pirâmide. Meu pai acreditava que esse efeito era um aviso
que Kukulcán nos deixou, representando a ascensão do mal
sobre a humanidade. A sombra dura exatamente três horas e
22 minutos. O mesmo intervalo de tempo da transmissão
vinda do espaço.
— Tem certeza disso? — Lembre-se de verificar esses fatos
no seu relatório.
— A mesma certeza de que estou aqui, na sua frente,
apodrecendo nesta cela. — Ele começa a andar de novo.
Ela ouve o clique do gravador se desligando quando a fita
chega ao fim.
— Dom, a CNN deu outra notícia, só peguei o final dela.
Algo sobre um terremoto na bacia de Yucatán. Preciso
descobrir o que aconteceu. Preciso saber se o terremoto se
originou em Chichén Itzá ou no Golfo do México.
— Por que o Golfo?
— Você não leu nem a parte do diário que fala dos mapas
de Piri Reis?
— Desculpe. Estou muito sem tempo.
— Meu Deus, Dom, se você fosse minha residente, já tinha
te mandado embora. Piri Reis era um famoso almirante
turco que, no final do século XIV, de alguma forma teve
acesso a uma série de misteriosos mapas do mundo. Usando-
os como referência, o almirante criou um conjunto de
mapas que os historiadores agora acreditam que foram
usados por Cristóvão Colombo pra navegar pelo Atlântico.
— Espere, esses mapas existiram mesmo?
— Claro que existiram. E revelam detalhes topográficos que
só poderiam ter sido detectados usando sondas sísmicas
sofisticadas. Por exemplo, a costa da Antártida aparece como
se não existisse nenhuma calota polar.
— O que tem de tão significativo nisso?
— Dom, o mapa tem mais de quinhentos anos. A Antártida
só foi descoberta em 1818.
Ela olha para ele, sem saber em que acreditar.
— Se duvida de mim, fale com a Marinha dos Estados
Unidos. Foi a análise deles que confirmou a precisão da
cartografia.
— E o que esse mapa tem a ver com o Golfo ou com a
profecia do fim do mundo?
— Há 15 anos, meu pai e eu localizamos um mapa parecido,
só que esse era um original de milhares de anos atrás, como
aquele que Piri Reis encontrou. Ele estava selado num
recipiente de irídio, enterrado num local preciso do platô de
Nazca. Consegui tirar uma Polaroid antes que o pergaminho
se desfizesse. Você pode ver a foto no final do diário do meu
pai. Quando a vir, você vai notar uma área com um círculo
vermelho, no Golfo do México, um pouco ao norte da
península de Yucatán.
— O que o círculo representa?
— Não sei. Encerre a conversa.
— Mick, não duvido de nada que você me contou, mas e
se... bom, e se essa transmissão não tiver nada a ver com a
profecia maia? A NASA diz que o sinal se originou em
algum ponto distante, a mais de 1.800 anos-luz daqui.
Isso deve te tranqüilizar, certo? Afinal, convenhamos — ela
sorri —, é meio improvável que algum extraterrestre chegue
do cinturão de Órion nos próximos sessenta dias.
Os olhos de Mick ficam esbugalhados, enormes. Ele recua,
apertando as têmporas com as duas mãos.
Merda, ele surtou. Você o pressionou demais.
— Mick, o que foi? Você está bem?
Ele ergue um dedo, pedindo que ela se afaste, que fique em
silêncio.
Dominique o vê ajoelhando-se no chão, seus olhos —
janelas escuras para uma mente que rodopia a mil
quilômetros por hora. Talvez você esteja enganada sobre ele.
Talvez ele seja mesmo doido.
O longo momento passa. Mick ergue a cabeça, e a
intensidade de seu olhar é positivamente assustadora.
— Tem razão, Dominique. Você tem toda a razão —
murmura ele. — Seja o que for, aquilo que está predestinado
a erradicar a humanidade não vai chegar do espaço. Está no
Golfo. Já está aqui.
Diário de Julius Gabriel
Para melhor entender e finalmente desvendar os mistérios
que cercam o calendário maia e sua profecia do fim do
mundo, é preciso explorar as origens das primeiras culturas
que ganharam destaque no Yucatán.
Os primeiros mesoamericanos eram seminômades e
apareceram na América Central por volta de 4.000 a.C.
Finalmente, tornaram-se fazendeiros, desenvolvendo o
milho, um híbrido da grama selvagem, bem como abacate,
tomates e abóbora.
Então, por volta de 2.500 a.C., Ele chegou.
Ele era um caucasiano de rosto alongado, com barba e
cabelo brancos e compridos, um sábio que, de acordo com a
lenda, chegou por mar às planícies tropicais do Golfo do
México para educar e transmitir grande sabedoria aos nativos
da região.
Atualmente nos referimos a esses nativos educados como os
olmecas (que significa: moradores da terra da borracha), e
eles acabaram se tornando a "Cultura Mãe" de toda a
Mesoamérica, a primeira sociedade complexa das Américas.
Sob a influencia do "homem barbado", os olmecas
unificaram a região do Golfo, e suas realizações na
Astronomia, Matemática e Arquitetura influenciaram os
zapotecas, maias, toltecas e astecas — culturas que acabaram
tomando o poder nos milênios seguintes.
Quase da noite para o dia, esses simples fazendeiros que
moravam na selva começaram a estabelecer estruturas
complexas e grandes centros cerimoniais. Técnicas
avançadas de Engenharia foram incorporadas aos projetos
arquitetônicos e obras públicas de arte. Foram os olmecas
que originaram o antigo jogo de bola, bem como o primeiro
método de registrar os eventos. Eles também criaram
grandes cabeças monolíticas de basalto, de 3 metros de
altura, muitas delas pesando até 30 toneladas cada. Como
essas enormes cabeças olmecas eram transportadas continua
sendo um mistério.
Mais importante, os olmecas foram a primeira cultura
mesoamericana a erguer pirâmides usando um
conhecimento avançado de Astronomia e Matemática. São
essas estruturas, alinhadas com as constelações, que revelam
o entendimento que os olmecas tinham da precessão, uma
descoberta que deu origem ao mito da criação registrado no
Popol Vuh.
Portanto, foram os olmecas, e não os maias, que usaram seus
inexplicáveis conhecimentos de Astronomia para criar o
Calendário Longo e sua fatídica profecia.
No âmago do calendário do fim do mundo está o mito da
criação, o relato histórico de uma batalha contínua da luz e
do bem contra as trevas e o mal. O herói da história, Um
Hunahpu, é um guerreiro capaz de acessar a Estrada Negra
(Xibalba Be). Para os indígenas mesoamericanos, Xibalba Be
equivalia à fenda escura da Via Láctea. O portal para Xibalba
Be era representado, tanto nos artefatos olmecas quanto nos
maias, como a boca de uma grande serpente.
Podemos imaginar os olmecas primitivos olhando para o céu
noturno, apontando para a fenda escura da galáxia como
uma serpente cósmica.
Por volta de 100 a.C., por motivos ainda desconhecidos, os
olmecas decidiram abandonar suas cidades e se dividir em
dois acampamentos, diversificando-se em duas regiões
distintas. Aqueles que se mudaram para o oeste, na direção
do centro do México, ficaram conhecidos como toltecas.
Aqueles que foram para o leste ocuparam as selvas do
Yucatán, Belize e Guatemala, e se denominaram maias. Só
em 900 d.C. as duas civilizações se reunificaram sob a
influência do grande mestre, Kukulcán, em sua majestosa
cidade de Chichón Itzá.
Mas estou me adiantando demais.
Cambridge, 1969. Foi dali que meus dois colegas e eu
partimos para desvendar os mistérios da profecia maia. Por
unanimidade, decidimos que nossa primeira parada deveria
ser o sítio olmeca de La Venta, pois foi ali, vinte anos antes,
que o arqueólogo americano Matthew Stirling trouxe à luz a
sua mais assombrosa descoberta, uma enorme fortificação
olmeca, consistindo numa muralha de seiscentas colunas,
cada uma pesando mais de 2 toneladas. Adjacente a essa
estrutura, o explorador havia localizado uma rocha
magnífica, coberta de intrincados entalhes olmecas. Depois
de dois dias de trabalho intenso, Stirling e seus homens
conseguiram desenterrar a monumental escultura, de 4
metros de altura e 2 metros de largura, e quase um metro de
espessura. Embora alguns dos entalhes tivessem sido
danificados pela erosão, a imagem de uma figura magnífica
permanecia: um grande homem caucasiano de cabeça
alongada, nariz adunco e barba branca comprida.
Imagine o choque entre meus colegas arqueólogos ao
encontrar uma estátua de 2 mil anos claramente retratando
um caucasiano, um artefato criado 1.500 anos antes que o
primeiro europeu pusesse o pé nas Américas! Igualmente
intrigante era o retrato de um homem barbado entre os
olmecas, pois é um fato genético que os ameríndios de
sangue puro não têm barba. Como todas as formas de
expressão artística devem ter raízes em algo, a identidade do
branco barbado era mais um enigma a ser resolvido.
Quanto a mim, imediatamente expus a teoria de que o
caucasiano era um ancestral do grande mestre maia
Kukulcán.
Não sabemos muito sobre Kukulcán ou seus ancestrais,
embora todo grupo mesoamericano pareça ter idolatrado
uma divindade masculina que se encaixa na mesma
descrição física. Para os maias, ele era Kukulcán, para os
astecas, Quetzalcoatl — um lendário sábio barbado que
trouxe paz, prosperidade e grande sabedoria para o povo.
Registros indicam que, por volta de 1.000 d.C.,
Kukulcán/Quetzalcoatl foi obrigado a abandonar Chichón
Itzá. Reza a lenda que, antes de ir embora, o misterioso sábio
prometeu ao seu povo que um dia voltaria para livrar o
mundo do mal.
Depois da partida de Kukulcán, uma influência demoníaca
se espalhou rapidamente pela região. Tanto os maias quanto
os astecas se voltaram para os sacrifícios humanos, matando
com selvageria dezenas de milhares de homens, mulheres e
crianças, tudo num esforço para invocar o retorno de seu
amado deus-rei e impedir o fim profetizado da humanidade.
Foi no ano de 1519 que o conquistador espanhol Hernán
Cortez chegou da Europa para invadir o Yucatán. Embora
em vantagem numérica sobre o inimigo, os indígenas
mesoamericanos confundiram Cortez (um branco barbado)
com o Segundo Advento de KukulcánlQuetzalcoatl e
depuseram as armas. Depois de conquistar os selvagens,
Cortez mandou chamar os padres espanhóis, os quais, ao
chegarem, ficaram horrorizados ao saber dos sacrifícios
humanos e de outro ritual chocante: as mães maias estavam
atando tábuas de madeira na cabeça dos bebês, na tentativa
de deformar o crânio em desenvolvimento dos recém-
nascidos. Com o crânio alongado, os maias pareceriam mais
divinos, uma crença inspirada, sem dúvida, por indícios de
que o grande mestre, Kukulcán, tinha o crânio igualmente
alongado.
Proclamando rapidamente a prática maia como uma
influência do demônio, os padres espanhóis mandaram
queimar vivos os xamãs e converteram o resto dos indígenas
ao cristianismo — sob ameaça de morte. Em seguida, os
tolos supersticiosos jogaram na fogueira todos os códices
maias importantes que existiam. Milhares de volumes de
textos foram destruídos — textos que sem dúvida se
referiam à profecia do fim do mundo, e poderiam conter
instruções vitais, deixadas por Kukulcán, para salvar nossa
espécie da aniquilação.
E foi assim que a Igreja, há uns quinhentos anos, tentando
salvar nossas almas do diabo, muito provavelmente
condenou nossa espécie à ignorância.
Enquanto Borgia e eu discutíamos a identidade do homem
barbado retratado na escultura olmeca, nossa colega, a bela
Maria Rosen, fez uma descoberta que redirecionaria nossos
esforços para longe da América Central, rumo ao trecho
seguinte da nossa jornada.
Enquanto escavava um sítio olmeca em La Venta, Maria
descobriu um túmulo real e desenterrou os restos de um
crânio alongado. Embora esse bizarro crânio, aparentemente
não humano, não tivesse sido o primeiro do tipo localizado
na Mesoamérica, resultaria ser o único encontrado na pátria
olmeca chamada de Santuário da Serpente.
Maria decidiu doar o crânio ao Museu de Antropologia em
Mérida. Ao falarmos com o curador, descobrimos, para
nossa grande surpresa, que crânios parecidos haviam sido
recentemente encontrados em escavações localizadas no
platô de Nazca, no Peru.
Será que havia uma ligação entre as civilizações maia e inca?
Nós três nos vimos numa encruzilhada arqueológica.
Deveríamos seguir para Chichén Itzá, uma antiga cidade
maia crucial para a profecia do fim do mundo, ou deixar o
México e seguir a pista no Peru?
O instinto de Maria foi de viajar para a América do Sul, por
acreditar que o calendário maia não era senão uma peça
importante do quebra-cabeça da profecia. E assim, nós três
tomamos um avião para Nazca, sem saber aonde nossa
jornada nos levaria.
Enquanto sobrevoávamos o Atlântico, eu refletia sobre algo
que o médico em Mérida me revelara. Ao examinar o crânio
alongado, o perito médico, homem de boa reputação,
declarara, com bastante ênfase, que a maciça deformação
óssea daquele espécime em particular não poderia ter sido
causada por nenhuma técnica conhecida de alongamento.
Para corroborar sua tese, ele pediu que um dentista
examinasse os restos dos dentes, e o resultado mostrou algo
ainda mais aterrador.
Artefato no 114:
crânio alongado — descoberto por Maria Rosen, La Venta,
1969
É fato que os adultos humanos têm 14 dentes na arcada
inferior. O crânio alongado que Maria encontrara tinha
apenas dez.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1969-73 páginas 13-347
Diário Fotográfico, Disquete 4: Nome do arquivo:
OLMECA-1-7
8
9 DE OUTUBRO DE 2012
WASHINGTON, DC
O presidente Mark Maller entra no Salão Oval, vindo de seu
escritório particular, e assume seu lugar atrás da mesa.
Sentados diante dele estão os membros de gabinete da Casa
Branca.
— Bem, pessoal, vamos lá. Vamos começar falando sobre a
indicação de um novo candidato à vice-presidência. Kathie?
A chefe de gabinete, Katherine Gleason, lê de seu laptop.
— Estes são os resultados de uma pesquisa de opinião
pública realizada na última quinta. Quando perguntamos
quem eles preferiam ver na chapa do partido, os eleitores
registrados preferiram Ennis Chaney a Pierre Borgia por
53% contra 39%. O quesito confiança parece ser o principal
fator de motivação. No entanto, quando pedimos que
identificassem aquela que achavam a questão central para a
eleição de novembro, 89% do público citou o acúmulo de
armas estratégicas na Rússia e na China como sua
preocupação principal, com apenas 34% dos eleitores
registrados interessados na construção de um radiotelescópio
na Lua. Numa tradução livre: Chaney vai para a chapa, nós
concentramos nossa campanha na estabilização das relações
com a Rússia e a China, e o senhor se mantém neutro sobre
o radiotelescópio, pelo menos até ser reeleito.
— De acordo. Alguma novidade na NASA?
— Sim, senhor — diz Sam Blumner, o principal assessor
econômico do presidente. — Analisei o orçamento
preliminar da NASA para a construção dessa geringonça na
Lua.
— Qual o tamanho do estrago?
— Deixe-me colocar a questão desta forma, presidente: o
senhor tinha duas chances de ganhar aprovação do
Congresso: pouca e nenhuma. E "pouca" foi embora junto
com o ex-vice-presidente.
— Pensei que a NASA tivesse embutido o projeto na
proposta da base lunar que já passou pela Comissão de
Orçamento.
— Eles tentaram. Infelizmente, aquela base lunar foi
projetada para ser construída do lado de cá da Lua, perto da
região polar, onde a NASA localizou formações de gelo, e
não do lado escuro. Desculpe o trocadilho, mas em termos
orçamentários, a diferença é igual à do dia pra noite, pois os
painéis solares não serão mais uma alternativa quando o Sol
não estiver brilhando.
Kathie Gleason balança a cabeça em desaprovação.
— Sam, um dos motivos de o público americano ser tão
contrário a essa empreitada é o fato de que a vêem como um
projeto internacional. O sinal de rádio não foi transmitido só
para os Estados Unidos. Foi recebido por todo o planeta.
— E no final, ainda serão os Estados Unidos que arcarão
com a maior parte da conta.
Cal Calixte, secretário de Imprensa do presidente, levanta a
mão.
— Presidente, na minha opinião, o radiotelescópio nos dá
um meio de transferir fundos para a economia da Rússia,
especialmente em vista dos cortes recentes do FMI. Talvez o
senhor pudesse até ligá-lo ao novo tratado START-V.
— Disseram a mesma coisa da Estação Espacial
Internacional — interrompe Blumner. — Aquele
brinquedinho gigante custou 20 bilhões de dólares aos
Estados Unidos, mais os bilhões que emprestamos aos russos
para que eles pudessem participar. E no fim são os russos
que ficam atrasando a conclusão do projeto.
— Sam, pare de ver tudo do ponto de vista financeiro — diz
Kathie. — Essa é uma questão política, não é só um
programa espacial. Proteger a democracia russa vale mais do
que o próprio telescópio.
— Democracia? Que democracia? — Blumner afrouxa a
gravata. — Uma rápida lição de direitos civis pra você,
Kathie. O que nós criamos foi uma economia de extorsão,
em que os russos ricos ficam mais ricos, os pobres morrem
de fome, e todos parecem estar cagando, contanto que
chamemos aquilo de democracia. Os Estados Unidos e o
FMI deram bilhões de dólares aos russos. Pra onde foi todo o
dinheiro? Do ponto de vista fiscal, minha filha de 3 anos é
mais responsável do que o Yeltsin ou o Viktor Grozny
jamais foram.
Blumner se vira para o presidente, seu rosto rechonchudo,
em tom de vermelho.
— Antes de começar a distribuir bilhões, temos que ter em
mente que esse sinal de rádio vindo do espaço pode muito
bem não dar em nada. Pelo que entendi, a NASA ainda não
encontrou um padrão subjacente que indique que a
transmissão seja uma tentativa genuína de comunicação. E
por que ainda não houve nem sinal de uma segunda
transmissão?
Cal balança a cabeça.
— Você não está enxergando a importância disso. O povo
de Grozny está com fome. Os tumultos populares estão
atingindo proporções perigosas. Não podemos dar as costas
pra uma nação desesperada que tem um arsenal nuclear
capaz de destruir o mundo uma dúzia de vezes.
— Pra mim, ainda é extorsão — diz Blumner. — Estamos
criando um projeto de fachada como meio de pagar bilhões
de dólares a uma superpotência capenga e aos seus líderes
corruptos. E isso só pra que não nos desafiem pra uma
guerra nuclear que eles jamais poderiam vencer.
O presidente levanta a mão para fazer um aparte.
— Mesmo assim, acho que o argumento de Cal tem mérito.
O FMI já deixou claro que não dará mais um centavo à
Rússia, a menos que o dinheiro seja investido em
tecnologias que possam ajudar a impulsionar sua economia.
Mesmo se esse sinal de rádio se mostrar inútil, o telescópio
dará aos cientistas uma verdadeira oportunidade para
explorar o espaço profundo.
— A gente ajudaria mais o povo russo se abrisse alguns
milhares de McDonald's e deixasse todo mundo comer de
graça.
Mailer ignora o comentário de Blumner.
— A reunião do G-9 é daqui a duas semanas. Quero que
você e Joyce preparem uma proposta preliminar, usando o
radiotelescópio como veículo para direcionar divisas para a
Rússia. Na pior das hipóteses, talvez possamos aplacar um
pouco a paranóia provocada pelos exercícios nucleares
retaliatórios na Ásia.
O presidente se levanta.
— Cal, pra que hora está marcada a coletiva de hoje à noite?
— Nove horas.
— Ótimo. Vou me reunir com o novo vice-presidente
daqui a uma hora, depois quero que você faça a ele um
relatório sobre a reeleição. E diga pra ele fazer a mala. Quero
que o Chaney comece a seguir o itinerário da campanha a
partir de hoje à noite.
Universidade Estadual da Flórida
Dominique está sentada no corredor, na porta da sala de sua
orientadora, remexendo-se desconfortavelmente sobre um
banco de madeira sem estofamento. Ela pondera se deve
arriscar mais uma ida ao banheiro, quando a porta da sala se
abre.
A dra. Marjorie Owen, com o celular encostado a uma
orelha, convida-a a entrar com um gesto apressado.
Dominique entra no santuário do atulhado escritório da
chefe do departamento e se senta, esperando que sua
professora termine de falar ao telefone.
Marjorie Owen leciona psiquiatria clínica há 27 anos. E
solteira e livre de compromissos, e seu físico magro e forte
de 57 anos é conservado razoavelmente em forma pelo
alpinismo. Mulher de poucas palavras, é respeitada e um
tanto temida por seus funcionários não efetivados, e tem a
reputação de ser rígida com seus alunos de graduação.
A última coisa que Dominique quer é entrar na lista negra
dela.
A dra. Owen desliga o telefone, ajeitando seu curto cabelo
grisalho atrás da orelha.
— Muito bem, mocinha, já ouvi sua fita e li seu relatório
sobre Michael Gabriel.
— E?
— E o quê? Ele é exatamente o que o dr. Foletta diz, um
paranóico-esquizofrênico com um QI incomumente alto. —
Ela sorri. — Mas devo acrescentar que é alguém que produz
algumas ilusões deliciosas.
— Mas isso justifica mantê-lo trancafiado? Ele está preso há
11 anos, e não vi nenhuma prova de comportamento
criminoso.
— De acordo com o dossiê que você me mostrou, o dr.
Foletta acaba de completar sua avaliação anual, uma
avaliação que você assinou. Se tinha alguma objeção, deveria
tê-la apresentado na ocasião.
— Só depois percebi isso. Tem alguma coisa que você possa
me recomendar, algo que eu possa fazer para questionar as
recomendações de Foletta?
— Quer questionar a avaliação do seu supervisor? Baseada
em quê?
Lá vamos nós...
— Baseada na minha convicção pessoal de que... bem, de
que as alegações do paciente merecem ser investigadas.
A dra. Owen encara Dominique com seu famigerado "olhar
perplexo", um olhar que já destruiu as esperanças de
formatura de muitos alunos.
— Mocinha, está me dizendo que o sr. Gabriel realmente te
convenceu de que o mundo vai acabar?
Meu Deus, estou ferrada...
— Não, senhora, mas ele parecia saber sobre o sinal de rádio
vindo do espaço e...
— Não, na verdade, de acordo com a fita, ele não fazia idéia
do que ia acontecer, só de que algo ia acontecer no
equinócio.
O olhar silencioso volta, fazendo gotas de suor aparecerem
nas axilas de Dominique.
— Dra. Owen, minha única preocupação é garantir que
meu paciente esteja recebendo os melhores cuidados
possíveis. Ao mesmo tempo, também me preocupa que...
bom, que ele talvez não tenha sido avaliado com justiça.
— Entendo. Então me deixe recapitular. Depois de trabalhar
com seu primeiro paciente por quase um mês... — Owen
verifica suas anotações. — Não, espere, engano meu, na
verdade faz mais de um mês. Cinco semanas, pra ser exata.
— A dra. Owen anda até a porta da sala e a fecha com
autoridade. — Cinco semanas inteiras de trabalho, e você
não só questiona os últimos 11 anos do tratamento do
paciente, mas está disposta a desafiar o diretor do Centro,
esperando devolver o sr. Gabriel à sociedade.
— Sei que sou só uma residente, mas, se vejo algo que não
está certo, não tenho a obrigação moral e profissional de
denunciar?
— Certo. Então, baseada em sua infinita experiência na área,
você acha que o dr. Anthony Foletta, um psiquiatra clínico
respeitado, é incapaz de avaliar adequadamente o seu
paciente. É isso?
Não responda. Morda a língua.
— Não fique aí mordendo a língua. Responda.
— Sim, senhora.
Owen se senta na beirada de sua mesa, posicionando-se
propositalmente acima de sua aluna.
— Me deixe dizer o que eu acho, mocinha. Eu acho que
você perdeu a sua objetividade. Acho que cometeu o erro de
se envolver emocionalmente com o paciente.
— Não, senhora, eu...
— Ele é esperto, não resta dúvida. Ao contar pra sua nova e
jovem psiquiatra, uma mulher, que foi molestado
sexualmente na prisão, ele esperava atingir um ponto fraco,
e atingiu. Acorde, Dominique. Não percebe o que está
acontecendo? Você está se identificando emocionalmente
com o seu paciente por causa do seu próprio trauma de
infância. Mas o sr. Gabriel não foi sodomizado por um primo
durante três anos, foi? Ele não foi espancado quase até a
morte...
Cala a boca, cala a porra da boca...
— Muitas mulheres que passaram por experiências como a
sua costumam lidar com os sintomas pós-traumáticos
aderindo a movimentos feministas ou aprendendo defesa
pessoal, como você fez. Escolher a psiquiatria clínica como
profissão foi um erro se você planeja usá-la como sua terapia
alternativa. Como pode esperar ajudar seus pacientes se você
se deixa envolver emocionalmente?
— Sei o que está dizendo, mas...
— Mas nada. — Owen balança a cabeça. — Na minha
opinião, você já perdeu a objetividade. Pelo amor de Deus,
Dominique, esse maluco te convenceu de que todas as
pessoas do mundo vão morrer daqui a dez semanas.
Dominique enxuga as lágrimas dos olhos e sufoca uma
risada. É verdade. Mick mexeu tanto com ela
emocionalmente que ela não estava mais apenas ouvindo o
que ele dizia como parte da terapia. Estava se deixando
cooptar pelas ilusões apocalípticas do paciente.
— Estou me sentindo envergonhada.
— É pra ficar envergonhada mesmo. Ao sentir pena do sr.
Gabriel, você estragou a dinâmica do relacionamento
médico-paciente. Isso me obriga a falar com o dr. Foletta e
intervir em nome do sr. Gabriel.
Cacete.
— O que a senhora vai fazer?
— Vou solicitar que o Foletta transfira você para outro
interno. Imediatamente.
Miami, Flórida
Mick Gabriel está andando no jardim há seis horas.
Andando no piloto automático, ele desvia dos mentalmente
incapazes e criminalmente loucos enquanto sua mente se
concentra em reorganizar as peças do quebra-cabeça da
profecia que flutuam em seu cérebro.
O sinal de rádio e a descida da serpente emplumada. A fenda
escura e Xi-balba. Não cometa o erro de amontoar tudo
junto. Separe causas e ações, morte e salvação, bem e mal.
Duas facções estão agindo aqui, duas entidades diferentes
envolvidas na profecia maia. O bem e o mal, o mal e o bem.
O que é bom? Avisos são bons. O calendário maia é um
aviso, como também são os desenhos de Nazca e a sombra
equinocial da serpente na pirâmide de Kukulcán. Cada um
desses avisos deixado por um sábio caucasiano barbado, e
todos anunciando a chegada do mal. Mas o mal já está aqui,
já estava aqui. Já o senti antes, mas nunca assim. Será que
essa transmissão do espaço o ativou? Reforçou-o de alguma
forma? Nesse caso, onde ele está?
Ele pára, deixando o sol do fim de tarde aquecer seu rosto.
Xibalba — o Mundo Inferior. Posso sentir a Estrada Negra
que leva ao Mundo Inferior ficando mais forte. O Popol Vuh
alega que os Senhores do Mundo Inferior influenciaram o
mal na Terra. Como isso é possível... a menos que a
presença malévola na Terra tenha estado sempre aqui?
Mick abre os olhos.
E se ela não esteve sempre aqui? E se chegou há muito
tempo, antes da evolução do homem? E se estava dormente,
esperando que essa transmissão a acordasse?
O alarme das cinco no alto-falante, anunciando o jantar,
desperta uma lembrança distante. Mick se imagina de volta
ao deserto de Nazca, vasculhando o platô com seu detector
de metais. O alarme elétrico do detector o fez cavar na areia
macia e amarela, com seu pai, adoentado, ao seu lado.
Em sua mente, ele desenterra o recipiente de irídio,
retirando dele o antigo mapa. Concentrando-se no círculo
vermelho... Demarcando o misterioso local no Golfo do
México.
O Golfo do México... o recipiente — feito de irídio! Seus
olhos se arregalam, incrédulos.
— Puta merda, Gabriel, como você pôde ser tão cego!
Mick sobe correndo os dois lances da escada de concreto até
o mezanino e anexo de terapia do terceiro andar. Ele
empurra vários internos e entra na sala de computadores.
Uma mulher de meia-idade o recebe.
— Olá. Meu nome é Dorothy, sou a...
— Preciso usar um dos computadores!
Ela vai até o seu laptop.
— Qual o seu nome?
— Gabriel. Michael Gabriel. Procure por Foletta.
Mick vê um terminal ligado. Sem esperar, se senta, e então
nota que o sistema de comando de voz não está
funcionando. Usando o mouse, ele ativa a conexão com a
Internet.
— Um momento, sr. Gabriel. Temos regras aqui. Não pode
simplesmente ir usando o computador. Precisa obter
permissão do seu...
Acesso Negado. Por Favor. Digite a Senha.
— Preciso da senha, Dorothy. Só vai levar um minuto.
Pode me dar sua senha, por favor?
— Não, sr. Gabriel, nada de senha. Há três internos na sua
frente, e vou precisar falar com o seu terapeuta. Depois
posso...
Mick olha para o crachá da mulher: DOROTHY HIGGINS,
No G45927. Ele começa a digitar senhas.
—... marcar um horário pro senhor. Está me ouvindo, sr.
Gabriel? O que está fazendo? Ei, pare com...
Uma dúzia de senhas não dão resultado. Ele olha novamente
para o crachá.
— Dorothy. Que nome bonito. Seus pais gostam de O
Mágico de Oz, Dorothy?
Sua expressão de assombro a denuncia. Mick digita
OZG45927.
Senha Inválida.
— Pare com essa bobagem agora mesmo, sr. Gabriel, ou vou
chamar a segurança.
— A Bruxa Má, o Homem de Lata, o Espantalho... Vamos
perguntar ao Mágico. — Ele digita MAG45927.
Conectando à Internet...
— Já chega. Vou chamar a segurança!
Mick a ignora enquanto busca na Web, digitando CRATERA
DE CHICXULUB enquanto se lembra das palavras que disse
a Dominique. O maior evento da História vai acontecer em
21 de dezembro, quando a humanidade vai ao encontro da
destruição. Não é exatamente verdade, ele percebe agora. O
maior evento da História, pelo menos até agora, aconteceu
há 65 milhões de anos, e o local foi o Golfo do México.
O primeiro arquivo aparece na tela. Sem se dar ao trabalho
de ler, ele aperta IMPRIMIR TUDO.
Ele ouve a segurança se aproximando no corredor ao lado.
Vamos, vamos...
Mick arranca as três páginas impressas e as enfia no bolso da
calça enquanto vários vigias entram na sala de
computadores.
— Pedi três vezes que ele se retirasse. Ele conseguiu até
roubar minha senha.
— A gente cuida disso, madame. — O ruivo musculoso
acena para seus dois homens, que agarram Mick pelos
braços.
Mick não oferece resistência e o ruivo se adianta, seu rosto
bem próximo ao dele.
— Interno, pediram que você saísse desta sala. Algum
problema com isso?
Mick vê com o canto do olho o dr. Foletta entrar na sala. Ele
olha para o crachá do vigia e abre um sorriso para o ruivo.
— Sabe, Raymond, não adianta ficar se matando na
academia, você nunca vai pegar mulher com esse bafo de
alho...
Foletta se aproxima.
— Raymond, não...
O soco atinge em cheio o plexo solar de Mick, expulsando o
ar de seus pulmões. Ele cai para a frente, dobrado pela dor,
seu corpo ainda sustentado pelos dois vigias.
— Caramba, Raymond, mandei esperar!
— Desculpe, achei que o senhor...
Mick recobra o equilíbrio e num só movimento curva as
costas, levanta os joelhos até o peito antes de estender as
pernas para a frente e enfia os calcanhares de seus tênis com
toda a força no rosto do ruivo, esmaga o nariz e o lábio
superior do homem, fazendo o sangue espirrar longe.
Raymond desaba no chão de uma vez.
Foletta se inclina sobre o vigia aturdido, olhando para o
rosto dele.
— Isso foi desnecessário, Mick.
— Olho por olho, doutor.
Mais dois enfermeiros entram, empunhando Tasers. Foletta
balança a cabeça.
— Acompanhem o sr. Gabriel para o seu quarto, depois
mandem um médico cuidar deste idiota.
* * *
Já é tarde quando Dominique pára seu Pronto Spyder preto
no estacionamento do Centro. Ela entra no saguão e passa o
crachá magnético no primeiro bloqueio de segurança.
— Não vai funcionar, gatinha. A voz é fraca e um tanto
abafada.
— Raymond, é você? — Dominique mal consegue ver o
ruivo grandalhão pelo portão da segurança.
— Use a varredura facial.
Ela digita o código, pressiona o rosto contra a moldura de
borracha e o raio infravermelho percorre seu rosto. O portão
se abre.
Raymond está jogado em sua cadeira. Uma bandagem pesada
envolve o seu rosto, cobrindo o nariz. Seus dois olhos estão
pretos.
— Meu Deus, Ray, o que aconteceu com você?
— A porra do teu paciente surtou na sala de computadores
e me deu um pontapé na cara. O filho da puta quebrou o
meu nariz e amoleceu dois dentes.
— O Mick fez isso? Por quê?
— Como é que eu vou saber? O cara é um psicopata, cacete.
Olha pra mim, Dominique. E agora, como vou competir no
concurso de Mr. Flórida deste jeito? Juro por Deus que pego
aquele filho da puta, nem que seja a última coisa que eu...
— Não, senhor. Não vai fazer nada com ele. E se algo
acontecer, não vou pensar duas vezes antes de te entregar à
polícia.
Raymond se inclina para a frente, ameaçador.
— É assim que vai ser entre a gente? Primeiro você me
despreza, depois manda me prender?
— Ei, não desprezei você. Eu estava em reunião com o
Foletta. Você é que foi transferido pro turno da noite.
Quanto ao Michael Gabriel, ele é meu paciente, e não vou
permitir...
— Não é mais. O Foletta recebeu um telefonema da tua
orientadora hoje à tarde. Parece que o teu rol de pacientes
aqui vai mudar.
Cacete, Owen, precisa ser sempre tão eficiente?
— O Foletta ainda está aqui?
— A esta hora? Você está brincando.
— Ray, escute, sei que você está bravo com o Mick, mas...
quero fazer um acordo com você. Fique longe dele e... e eu
te ajudo a se preparar pro concurso de fisiculturismo. Vou
até aplicar maquiagem nesses seus olhos de guaxinim pra
não assustar os juízes.
Raymond cruza os braços sobre o peito inchado.
— Não basta. Você ainda me deve um encontro. — Ele
abre um sorriso mostrando os dentes amarelos. — E não vai
ser só um jantarzinho italiano. Quero me divertir, sabe,
dançar um pouco, namorar um pouco...
— Um encontro, só isso, e não quero saber de namorar.
— Me dá uma chance, gatinha. Eu acabo envolvendo as
pessoas.
Como micose de pele.
— Um encontro, e você fica longe do Gabriel.
— Combinado.
Ela passa pelo bloqueio de segurança e entra no elevador.
Raymond a admira indo embora, seus olhos cheios de desejo
focados no contorno dos glúteos dela.
Só um vigia está de serviço no sétimo andar, e sua atenção
está concentrada no campeonato da Liga Nacional.
— Olá, Marvis. Quem está ganhando?
Marvis Jones desvia o olhar da TV.
— O Cubs está com dois de vantagem no final do oitavo
inning. O que faz aqui tão tarde?
— Vim ver meu paciente.
Marvis parece preocupado.
— Não sei, Dom. É meio tarde... — O barulho da multidão
o obriga a olhar para a tela. — Que bosta, o Phillies acaba de
empatar.
— Vamos, Marvis.
Marvis olha para o relógio.
— Já sei. Vou fechar você na cela dele por 15 minutos, mas
você sai quando a enfermeira entrar pra dar a medicação.
— Combinado.
O vigia a acompanha até o quarto 714 e lhe entrega a caneta
transmissora que aciona o seu bipe.
— É melhor você levar. Ele estava violento hoje.
— Não, eu vou ficar bem.
— Leve a caneta, Dominique, senão não entra.
Ela sabe que não adianta discutir com Marvis, que é tão
meticuloso quanto gentil, e enfia o dispositivo no bolso.
Marvis ativa o interfone.
— Interno, você tem visita. Vou deixá-la entrar assim que
vir você vestido e sentado na cama. — Marvis olha pela
janelinha. — Ele está pronto. Pode entrar. — Marvis abre a
porta e a tranca atrás de Dominique.
As luzes no quarto estão fracas. Ela vê uma silhueta escura
sentada na cama.
— Mick, sou eu, Dom. Você está bem?
Mick está apoiado na parede. Dominique vê o rosto dele ao
se aproximar, a face esquerda com um feio hematoma e o
olho fechado de tão inchado. O coração dela dispara.
— Meu Deus, o que fizeram com você? — Ela pega uma
toalha de rosto, molha na água fria e a aperta contra o rosto
dele.
— Ai.
— Desculpe. Ponha isto no seu olho. O que aconteceu?
— De acordo com o relatório oficial, escorreguei no
chuveiro. — Ele olha para ela, seu meio sorriso causando
dor. — Senti sua falta. Como foram as coisas na
universidade?
— Nada boas. Minha orientadora não acha que estou
lidando com as minhas responsabilidades de maneira
profissional.
— Ela acha que eu te perturbo emocionalmente. É isso?
— Sim. A partir de amanhã vou trabalhar com outro
interno. Sinto muito, Mick.
Ele aperta a mão dela e a coloca sobre seu coração.
— Se faz alguma diferença — ele sussurra —, você foi a
única pessoa que conseguiu mexer comigo.
Ela engole o nó na garganta. Não desmorone de novo,
— O que aconteceu hoje? Vi o que você fez com o
Raymond.
— Ele atacou primeiro.
— Ouvi dizer que você não queria sair da sala de
computadores.
— Eu precisava entrar na Internet. — Ele solta a mão dela e
tira várias folhas impressas amassadas do bolso. — Hoje
descobri uma peça importante do quebra-cabeça da profecia.
É tão inacreditável que eu precisava verificar os fatos antes
de aceitá-la.
Ela pega as páginas da mão dele e começa a ler.
A CRATERA DE CHICXULUB
Em 1980, o físico ganhador do Nobel Luis Alvarez propôs
que um impacto extraterrestre acontecido 65 milhões de
anos atrás foi a causa da extinção em massa que acabou por
encerrar o reinado dos dinossauros, mudando para sempre o
rumo evolucionário da vida na Terra. Essa ousada teoria
resultava da descoberta de Alvarez de uma camada de argila
sedimentar de um centímetro de espessura depositada sobre
toda a superfície do planeta na época do impacto do
asteróide, entre os períodos geológicos cretáceo (K) e
terciário (T). Verificou-se que essa camada de argila K/T
contém altas concentrações de irídio, um metal
extremamente raro que, acredita-se, existe no centro da
Terra. O irídio é o único metal capaz de sobreviver a
temperaturas acima dos 2.200 graus centígrados, e é
praticamente invulnerável à corrosão, mesmo aos ácidos
mais fortes. O fato de altas concentrações de irídio terem
sido encontradas em meteoritos levou Alvarez a propor sua
teoria de que o sedimento K/T era formado pelos resíduos
de uma nuvem de poeira criada pelo impacto de um grande
asteróide (11 quilômetros de diâmetro) que atingiu a Terra
65 milhões de anos atrás. Tudo que Alvarez precisava para
provar sua teoria era encontrar o local do impacto.
Em 1978, um piloto de helicóptero e geofísico chamado
Glenn Pennfield estava sobrevoando o Golfo do México,
fazendo um rastreamento aéreo para medir tênues variações
no campo magnético terrestre que poderiam indicar a
presença de petróleo. Ao sobrevoar uma área do mar a
noroeste da península de Yucatán, Pennfield detectou um
anel simétrico de material altamente magnético, com 160
quilômetros de diâmetro, um quilômetro e meio sob o leito
do oceano. A análise desse imenso anel magnético veio a
confirmar, mais tarde, que a área, cobrindo tanto mar
quanto terra firme, era uma cratera — o local do impacto de
um asteróide gigante.
Batizada com o nome da cidade do Yucatán, localizada entre
Progreso e Mérida, a cratera de Chicxulub é a maior bacia de
impacto que se formou no nosso planeta no último bilhão de
anos. O centro aproximado da área fica debaixo d'água, a
21,4 graus de latitude norte por 89,6 graus de longitude
oeste, enterrado sob 300 a 900 metros de calcário.
A cratera é imensa, com diâmetro entre 175 e 290
quilômetros, estendendo-se pela costa noroeste da península
de Yucatán e o Golfo do México. Ao redor da porção
terrestre da cratera, há um anel de poços naturais. Acredita-
se que essas fontes de água doce, chamadas de cenotes pelos
mexicanos, tenham se formado na geografia do Yucatán
como resultado das enormes fraturas que a bacia de calcário
sofreu durante o impacto do asteróide.
Há 65 milhões de anos, o território da América Central
ainda estava debaixo d'água.
Dominique ergue os olhos, levemente irritada.
— Não entendo. Onde está a grande pista?
— No mapa de Piri Reis, aquele que achei no platô de
Nazca. Eu o encontrei selado num recipiente de irídio. O
mapa indicava o local da cratera de Chicxulub. Chichén Itzá
fica bem no perímetro do círculo do impacto. Quando você
traça uma linha da pirâmide de Kukulcán até o centro da
cratera, o ângulo mede 23,5 graus, exatamente o ângulo do
eixo de rotação da Terra, a inclinação que nos dá as estações
do ano.
Pronto, lá vamos nós de novo.
— Tá, e o que isso tudo significa?
— O que isso significa? — Mick faz uma careta de dor ao se
levantar. — Significa que a pirâmide de Kukulcán foi
intencional e cuidadosamente posicionada na península de
Yucatán, em relação com a cratera de Chicxulub. Não pode
ser outra coisa, Dominique. Não existe nenhuma outra
estrutura antiga perto do local do impacto, e o ângulo é
exato demais pra ser acidental.
— Mas como os antigos maias saberiam do impacto de um
asteróide há 65 milhões de anos? Olhe o tempo que o
homem moderno levou pra descobri-lo.
— Não sei. Talvez tivessem a mesma tecnologia que o autor
do mapa de Piri Reis usou pra desenhar a topografia da
Antártida, mesmo ela estando toda encoberta por gelo.
— Então qual é a sua teoria: a humanidade vai ser destruída
por um asteróide em 21 de dezembro?
Mick se ajoelha aos pés dela, com agonia em seu rosto
inchado.
— A ameaça à humanidade não é um asteróide. A
probabilidade de outro asteróide passar pelo mesmo local é
astronômica demais pra ser levada em conta. Além disso, a
profecia maia aponta pra fenda escura, não pra um projétil
celeste.
Ele apóia a cabeça dolorida sobre o joelho dela. Dominique
alisa sua longa cabeleira castanha, suja de suor e oleosa.
— Talvez seja melhor você descansar um pouco.
— Não consigo, minha mente não deixa. — Ele fica de pé,
apertando a compressa sobre o olho inchado. — Algo
sempre me incomodou na localização da pirâmide de
Kukulcán. Diferente de suas similares no Egito, no Camboja
e em Teotihuacán, a estrutura sempre pareceu fora de lugar.
Como um belo polegar, geograficamente situado sem razão,
enquanto os outros dedos ficam a intervalos regulares sobre
a face da Terra. Agora acho que entendi.
— Entendeu o quê?
— O bem e o mal, Dominique, o bem e o mal. Em algum
lugar dentro da pirâmide de Kukulcán está o bem, a chave
pra nossa salvação. Em algum lugar da cratera de Chicxulub
está uma força maligna que se torna cada vez mais forte com
a aproximação do solstício.
— Como sabe...? Não, esqueci, desculpe. Você sente.
— Dom, preciso da sua ajuda. Você tem que me tirar daqui.
— Eu tentei...
— Esqueça das apelações, não há tempo. Preciso sair agora!
Ele está perdendo o controle.
Mick a segura pelo pulso.
— Me ajude a fugir. Preciso chegar a Chichén Itzá...
— Me solta! — Ela pega a caneta com a outra mão.
— Não... espere, não chame o vigia...
— Então se afaste, assim você me assusta.
— Desculpe. Desculpe. — Ele a solta. — Só me escuta, está
bem? Não sei como a humanidade vai sucumbir, mas acho
que sei qual a finalidade daquela transmissão do espaço.
— Continue.
— O sinal era um despertador, viajando pela Estrada Negra,
um corredor celestial que está se alinhando com o que quer
que esteja soterrado no Golfo.
Foletta tinha razão. As ilusões dele estão piorando.
— Mick, calma. Não tem nada ali...
— Você está errada! Eu consigo sentir, como consigo sentir
a Estrada Negra pra Xibalba se abrindo. O caminho está
ficando mais pronunciado...
Ele está delirando...
— Sinto que se espalha. Não sei como, mas consigo sentir,
eu juro! E tem outra coisa...
Ela vê lágrimas de frustração brotando nos olhos dele, ou
será realmente medo?
— Sinto uma presença na outra ponta da Estrada Negra. E
ela consegue me sentir!
A enfermeira entra, seguida por três enfermeiros
corpulentos.
— Boa noite, sr. Gabriel. É hora do seu remédio.
Mick vê a seringa.
-— Isso não é Zyprexa!
Dois enfermeiros agarram seus braços, e o terceiro lhe
segura as pernas. Dominique assiste a tudo, impotente,
enquanto ele luta.
— Enfermeira, o que está acontecendo?
— O sr. Gabriel deve receber três injeções de Thorazine por
dia.
— Três?
— O Foletta quer me transformar num vegetal! Dom, não
deixe... — Mick se agita com violência sobre a cama, os
enfermeiros se esforçando para controlado. — Não deixe
que façam isso. Dominique, por favor...
— Enfermeira, sou a psiquiatra do sr. Gabriel e...
— Não é mais. O dr. Foletta assumiu o seu lugar. Amanhã
você pode conversar com ele sobre isso. — A enfermeira
passa álcool no braço de Mick. — Imobilizem o paciente.
— Estamos tentando. Dê logo a injeção...
Mick levanta a cabeça, as veias saltando do seu pescoço.
— Dom, você precisa fazer alguma coisa! A cratera de
Chicxulub... o relógio está andando... o relógio...
Dominique vê os olhos negros rodando nas órbitas, sua
cabeça caindo sobre o travesseiro.
— Pronto, assim está melhor — diz a enfermeira
suavemente, retirando a seringa. — Pode ir, residente
Vazquez. O sr. Gabriel não precisa mais dos seus serviços.
9
21 DE OUTUBRO DE 2012
PENTÁGONO
ARLINGTON, VIRGÍNIA
Pierre Borgia entra na sala de reuniões e toma o seu lugar à
mesa oval de conferências entre o secretário de Defesa, Dick
Przystas, e o chefe de gabinete do Exército, general James
Adams. Sentados do outro lado da mesa estão o diretor da
CIA, Patrick Hurley, o chefe de gabinete da Aeronáutica,
general Arne Cohen, e o chefe de operações navais, Jeffrey
Gordon. Este último, um homenzarrão de 1,98 metro,
cumprimenta Borgia com um rápido aceno de cabeça.
O general "Big Mike" Costolo, comandante dos fuzileiros
navais, entra depois de Borgia e se senta à direita de Gordon.
À cabeceira da mesa está o general Joseph Fecondo. O
comandante do Estado-Maior das Forças Armadas e
veterano das guerras do Vietnã e do Golfo passa a mão bem
cuidada por sua careca incipiente e bronzeada e olha para
Borgia e Costolo com ar aborrecido.
— Bem, agora que estamos todos aqui, acho que finalmente
podemos começar. Diretor Hurley?
Patrick Hurley assume seu lugar na tribuna. Magro e em
forma, o ex-armador da seleção de Notre Dame, de 52 anos,
parece ainda jogar basquete profissional.
Hurley aperta um botão na tribuna. As luzes diminuem e
uma foto aérea em preto e branco aparece na grande tela à
direita do diretor da CIA.
Borgia reconhece a qualidade da imagem. A foto digitalizada
é da câmera térmica de alta resolução C-8236, montada no
avião ultrassecreto Darkstar, da Aeronáutica. O Veículo
Aéreo Não Tripulado (VANT), camuflado, é uma aeronave
fina, em forma de concha e com enormes asas. O Darkstar
opera em altitudes de 20 mil metros e pode transmitir
imagens detalhadas em qualquer condição climática, de dia
ou à noite.
Um quadrado computadorizado aparece em vermelho.
Hurley o posiciona, depois amplia a imagem dentro dele.
Detalhes de uma pequena escola com playground ficam
visíveis. Ao lado da escola, um estacionamento de concreto
bem cercado.
O diretor da CIA pigarreia.
— As fotografias que vocês vão ver foram tiradas sobre uma
área a nordeste de Pyongyang, na costa oeste da Coréia do
Norte. Aparentemente, o local é apenas uma escola
elementar. Mas 1,3 quilômetros abaixo deste
estacionamento fica a instalação subterrânea de armas
nucleares de Kim Jong II, a mesma instalação que os norte-
coreanos usaram quando começaram a testar mísseis de
médio alcance de dois estágios em 1998. Suspeitamos que o
local também possa abrigar o novo míssil Taepo Dong-2, um
ICBM com alcance de 3.540 quilômetros, capaz de carregar
ogivas nucleares múltiplas.
Hurley clica na foto seguinte.
— O Darkstar está monitorando a instalação há duas
semanas. As fotografias que vou mostrar foram tiradas
ontem à noite, entre 23 horas e uma da manhã, horário de
Seul.
Hurley amplia a imagem para revelar dois homens saindo de
um Mercedes-Benz preto.
— O cavalheiro da direita é o presidente iraniano, Ali
Shamkhani. O da esquerda é o novo líder do Partido
Comunista chinês e ex-comandante militar, general Li
Xiliang. Como Pierre pode atestar, o general é um comunista
linha-dura.
Hurley clica em várias outras fotos, parando na de um
homem vestindo um longo casaco de couro preto, que olha
para o céu como se soubesse que alguém o está
fotografando.
— Meu Deus — murmura Borgia —, é Viktor Grozny.
— Parece até que está olhando pra nossa câmera —
acrescenta o general Cohen.
— A lista de chamada ainda não está completa. — O diretor
da CIA muda a imagem. — E o anfitrião da noite...
O coração de Borgia bate mais forte.
— Kim Jong II.
Hurley reacende as luzes e volta para o seu lugar à mesa.
— A reunião de cúpula com Viktor Grozny pela não
proliferação de armas nucleares aconteceu semanas atrás.
Então por que os líderes de quatro países que representam
38% das armas nucleares do planeta se reuniriam em
segredo naquele lugar específico?
O secretário de Defesa, Dick Przystas, se recosta na cadeira e
alisa seu topete de cabelo branco.
— Almirante Gordon, pode divulgar a informação sobre a
qual conversamos antes?
O magro almirante aperta uma tecla em seu laptop.
— Nossa vigilância por satélite mais recente indica que os
iranianos reforçaram sua presença militar na costa norte do
Golfo Pérsico. Além de reposicionar seus canhões
Howitzers e suas plataformas de mísseis terra-ar móveis, o
Irã adquiriu recentemente da China mais 46 barcos de
patrulha da classe Hudong. Cada um desses barcos é
equipado com mísseis de cruzeiro antinavio C-802. Os
iranianos também estão duplicando seus silos de mísseis
chineses Bicho da Seda no litoral e, apesar dos protestos da
ONU, continuaram a fortalecer suas baterias de mísseis
terra-ar e terra-terra em Qeshm, Abu Musa, e nas ilhas Sirri.
Essencialmente, o Irã está se preparando para efetuar um
bloqueio na parte reduzida de Hormuz, que tem apenas 50
quilômetros de largura.
— Os iranianos alegam que a escalada militar é uma
preparação para as manobras militares de Grozny em
dezembro — diz o secretário de Defesa Przystas. —
Naturalmente, se eclodissem hostilidades no Oriente Médio,
o bloqueio iraniano impediria que nossa frota chegasse ao
Golfo Pérsico.
— Sem querer aumentar a paranóia geral, mas e as bombas
nucleares? — O general Costolo se afasta da mesa. — Os
israelenses dizem que Grozny vendeu mísseis Sickle com
ogivas nucleares aos iranianos quando ajudou a negociar o
Acordo de Paz no Oriente Médio de 2007.
O almirante Gordon vira-se para Costolo.
— O Irã tem a força e a posição geográfica para estabelecer
um novo domínio no Oriente Médio. Se uma guerra
começasse, a Rússia teria condições de consolidar o Oriente
Médio como uma hegemonia.
— Grozny parece mesmo estar se preparando para uma
guerra nuclear — declara Borgia.
— Pierre, a Rússia está se preparando para a guerra nuclear
há sessenta anos — interrompe o general Fecondo. — Não
podemos esquecer que foi nossa própria antecipação, ao
construir o Escudo Antimíssil, que aumentou a paranóia
deles.
— Pode haver mais uma variável oculta a se considerar,
general — diz o diretor da CIA. — A Agência de Segurança
Nacional interceptou uma comunicação entre o premier
russo, Makashov, e o ministro chinês da Defesa. A conversa
falava de algum novo tipo de arma de alta tecnologia.
— Que tipo de arma? — pergunta Przystas.
— Eles mencionaram fusão, nada mais.
Ilha de Sanibel,
Costa Oeste da Flórida
Dominique diminui a velocidade do Pronto Spyder
conversível preto, conservando o carro esporte abaixo dos
80 km/h ao passar pela cabine de pedágio da ilha de Sanibel.
Sensores eletrônicos gravam a placa e o número de
identificação do veículo de seu carro e a informação é
passada instantaneamente para o Departamento de Trânsito,
que soma o valor do pedágio à sua conta mensal. Ela
mantém o carro abaixo de 80 km/h por mais um quilômetro
e meio, sabendo que ainda está ao alcance do radar
automático do sistema.
Dominique dirige o Spyder sobre a ponte para a ilha de
Sanibel e Captiva, uma área residencial e de lazer aninhada
numa pequena ilha na costa do Golfo da Flórida. Ela ruma
para o norte por uma estrada bastante arborizada de uma
pista, depois segue para o oeste, passando por vários hotéis
grandes antes de entrar numa área residencial.
Edith e Isadore Axler moram numa casa de praia cúbica de
dois andares, situada num terreno de esquina de um quinto
de hectare com vista para o Golfo do México. À primeira
vista, as pranchas de sequóia do exterior que envolvem a
casa lhe dão o aspecto de uma enorme lanterna de festa,
especialmente à noite. Essa camada exterior protege a
estrutura dos furacões, criando, efetivamente, uma casa
dentro da casa.
A ala sul da residência dos Axler foi reformada para abrigar
um sofisticado laboratório acústico, um dos únicos três na
costa do Golfo interligados com o SOSUS, o Sistema de
Vigilância Sonora Submarina da Marinha dos Estados
Unidos. A rede de microfones submersos de 16 bilhões de
dólares, construída pelo governo federal durante a guerra
fria para espionar submarinos inimigos, é uma teia global
conectada às estações terrestres da Marinha por uns 45 mil
quilômetros de cabos submarinos.
Quando a importância militar do SOSUS começou a
diminuir, no inicio da década de 1990, cientistas,
universitários e empresas privadas pediram à Marinha e
receberam acesso à rede acústica. Para os oceanógrafos, o
SOSUS se tornou o Telescópio Hubble da exploração
submarina. Os cientistas podiam agora ouvir as vibrações de
freqüência super baixa produzidas por blocos de gelo se
partindo, leitos tremendo e vulcões submarinos entrando
em erupção, sons que normalmente ficam bem abaixo do
espectro da audição humana.
Para biólogos marinhos como Isadore Axler, o SOSUS
proporcionou uma nova maneira de estudar as formas de
vida mais inteligentes do oceano: os cetáceos. Com o apoio
da Fundação Nacional para a Pesca e Vida Selvagem, o lar
dos Axler se tornou uma estação acústica SOSUS, voltada
especificamente para os habitantes cetáceos do Golfo do
México. Usando o SOSUS, os Axler podiam agora gravar e
analisar vozes de baleias, identificar espécies, contar
populações, até rastrear espécimes individuais por todo o
Hemisfério Norte.
Dominique vira à esquerda numa rua sem saída, depois à
direita na última casa, reconfortada pelo som familiar do
cascalho sendo esmagado pelo peso do carro.
Edith Axler a cumprimenta enquanto a capota do
conversível se fecha. Edie é uma mulher de ar astuto e
cabelo grisalho, de 70 e poucos anos, com olhos castanhos
que transpiram a sabedoria de uma professora e um sorriso
meigo que transmite amor de mãe.
— Olá, querida. Como foi a viagem?
— Tudo bem. — Dominique abraça apertado sua mãe
adotiva.
— Algum problema? — Edith recua, notando as lágrimas.
— O que foi?
— Nada. Só estou feliz por estar em casa.
— Não me trate feito uma velha caduca. É aquele seu
paciente, não é? Qual o nome dele, Mick?
Dominique balança a cabeça.
— Meu ex-paciente.
— Venha, vamos conversar um pouco antes que o Iz
apareça. — Edith a leva pela mão para o canal de acesso ao
Golfo localizado no lado sul da propriedade. Dois barcos
estão atracados na doca de concreto, sendo que o menor é
um pesqueiro de 35 pés pertencente aos Axler.
Elas se sentam, de mãos dadas, num banco de madeira de
frente para a água.
Dominique olha para um pelicano cinza e branco que alisa
as penas sobre um dos mourões de madeira.
— Lembro que quando eu era criança, sempre que eu tinha
um dia ruim, você me trazia pra sentar aqui.
Edie faz que sim.
— Este sempre foi o meu lugar favorito.
— Você dizia: "As coisas não podem estar tão ruins se ainda
podemos apreciar uma vista tão linda." — Ela aponta para a
traineira rústica de 48 pés atracada atrás do pesqueiro dos
Axler. — De quem é aquele barco?
— Pertence ao Clube dos Caçadores de Tesouros de Sanibel.
Você deve se lembrar do Rex e da Dory Simpson. O Iz aluga
a vaga pra eles. Está vendo aquela lona? Tem um
minissubmarino de dois lugares preso ao convés debaixo
dela. Amanhã o Iz pode te levar pra dar uma volta, se quiser.
— De minissubmarino? Vai ser divertido.
Edie aperta a mão da filha.
— Me fale do Mick. Por que você está tão chateada?
Dominique enxuga uma lágrima.
— Desde que aquele gordo de merda do Foletta me trocou
de paciente, ele vem mantendo o Mick sob doses maciças de
Thorazine. Meu Deus, Edie, é muita crueldade, não
consigo... não agüento nem olhar pra ele mais. Está tão
drogado. Fica só sentado, amarrado numa cadeira de rodas,
como um vegetal babão. Todas as tardes o Foletta o empurra
pro jardim e o deixa lá, parado na área de artesanato, como
se fosse um paciente geriátrico irrecuperável.
— Dom, sei que você se preocupa muito com o Mick, mas
precisa se lembrar que você é uma só. Não pode achar que
vai salvar o mundo.
— O quê? O que você disse?
— Só quis dizer que, como psiquiatra, não pode achar que
pode ajudar todo interno com o qual tem contato. Você
trabalhou com o Mick por um mês. Gostando ou não, ele
não é mais responsabilidade sua. Você precisa saber quando
deve se afastar.
— Você sabe que não sou assim. Não consigo simplesmente
me afastar quando alguém está sofrendo abusos.
Edie aperta a mão da filha de novo. Elas ficam em silêncio,
observando o pelicano bater as asas para manter o equilíbrio
precário sobre o mourão.
Quando alguém está sofrendo abusos. Ao ouvir essas
palavras, Edie se lembra da primeira vez que viu a garotinha
assustada da Guatemala. Ela trabalhava meio período como
enfermeira escolar e orientadora pedagógica. A menina de
10 anos havia sido trazida para ela, queixando-se de cãibras
no estômago. Edith segurou a mão da garotinha até que a
dor diminuiu. Esse gesto singelo de amor maternal ligaria
Dominique para sempre à mulher, cujo coração se partiu
quando soube do abuso sexual praticado pelos primos mais
velhos da criança. Edie deu queixa e providenciou um lar
temporário. Ela e Iz adotaram Dominique seis meses depois.
— Tudo bem, querida, me diga o que podemos fazer pra
ajudar o Mick.
— Só há uma solução. Precisamos tirá-lo dali.
— Por "tirar", presumo que queira dizer levar pra outro
hospital.
— Não, quero dizer tirar mesmo, pra sempre.
— Uma fuga?
— Bem, sim. O Mick pode estar um pouco confuso, mas
não é louco. O lugar dele não é num hospício.
— Tem certeza? Porque nem você me parece muito
convencida. Você não me disse que o Mick está certo de
que o mundo vai acabar?
— Não o mundo, a humanidade, e sim, ele acredita nisso.
Está só um pouco paranóico, mas quem não estaria, depois
de passar 11 anos na solitária?
Edie vê Dominique se remexer.
— Tem alguma coisa que você não está me contando.
Dominique se vira para ela.
— Você vai achar loucura, mas parece que muitas das
ilusões do Mick têm um fundo de verdade. A teoria do fim
do mundo dele se baseia numa profecia maia de 3 mil anos
atrás. Estou lendo o diário do pai dele, e alguns dos achados
são inacreditáveis. O Mick praticamente previu a chegada
daquele sinal de rádio vindo do espaço no equinócio de
outono. Edie, quando eu morava na Guatemala, minha avó
costumava me contar histórias sobre meus ancestrais
maternos. As coisas que ela dizia eram bastante assustadoras.
Edie sorri.
— Você está começando a me dar medo.
— Eu sei que são só bobagens supersticiosas, mas sinto que
estou em dívida com o Mick, que devo ao menos verificar
essas coisas. Pode ajudar a aliviar os temores dele.
— Que coisas?
— Ele está convencido de que aquilo que vai destruir a
humanidade está escondido no Golfo do México. —
Dominique enfia a mão no bolso do jeans e tira várias
páginas dobradas, passando-as a Edie.
Edie corre os olhos pelas folhas.
— A cratera de impacto de Chicxulub? Como uma
depressão enterrada um quilômetro e meio abaixo do leito
do oceano vai matar a humanidade?
— Não sei. O Mick também não. Mas eu esperava...
— Você esperava que o Iz pudesse verificar usando o
SOSUS.
Dominique sorri.
— Faria com que eu me sentisse muito melhor.
Edie abraça a filha.
— Vamos. O Iz está no laboratório.
O professor Isadore Axler está sentado na estação SOSUS,
com fones de ouvido e de olhos fechados. Seu rosto
manchado pela idade está sereno enquanto ele ouve os
pungentes ecos dos cetáceos. Dominique bate no ombro
dele.
Iz abre os olhos, seu ralo cavanhaque grisalho se abrindo
num sorrisinho, e tira os fones.
— Jubarte.
— É assim que você me cumprimenta, Jubarte?
Iz se levanta e a abraça.
— Você parece cansada, menina.
— Estou bem.
Edie se aproxima.
— Iz, a Dominique quer pedir um favor.
— O que, mais um?
— Quando foi a última vez que eu pedi um favor?
— Quando você tinha 16 anos. Pediu o carro emprestado.
Foi a noite mais traumatizante da minha vida. — Iz lhe dá
um tapinha carinhoso no rosto. — Diga lá.
Ela lhe entrega as informações sobre a cratera de Chicxulub.
— Preciso que você use o SOSUS e me diga se ouve algo lá
embaixo.
— E o que eu devo procurar?
— Não sei. Qualquer coisa fora do comum, eu acho.
Iz faz o seu famoso olhar de "pare de desperdiçar meu
tempo" franzindo o cenho grisalho.
— Iz, pare de olhá-la desse jeito e faça o que ela pediu —
ordena Edie.
O velho biólogo volta a se sentar, resmungando.
— Qualquer coisa fora do comum, é? Talvez a gente ouça
uma baleia peidando. — Ele digita as coordenadas no
computador e recoloca os fones.
Dominique o abraça por trás e beija-lhe a bochecha.
— Tudo bem, tudo bem, chega de subornos. Escute, minha
filha, não sei o que você quer com isso, mas a cratera cobre
uma área imensa. Vou calcular o centro dela, que parece
ficar perto do atol de Campeche, a sudoeste do recife de
Alacan. Vou programar o computador pra fazer uma busca
nas baixas freqüências. Começaremos na faixa de um a 50
hertz e aumentaremos gradualmente os ciclos. O problema é
que você visa uma área cheia de jazidas de petróleo e gás. A
bacia do Golfo é toda feita de calcário e aloés, e contém
bolsões geológicos porosos. Petróleo e gás vazam
constantemente das rachaduras no leito, e o SOSUS vai
registrar cada um desses vazamentos.
— O que você sugere, então?
— Que a gente vá almoçar. — Iz termina de programar o
computador. — O sistema vai automaticamente analisar
quaisquer perturbações na área.
— Quanto tempo você acha que o SOSUS vai levar pra
encontrar alguma coisa? — A pergunta de Dominique
provoca mais um olhar.
— Quem você acha que eu sou, Deus? Horas, dias, semanas,
a vida toda, talvez. Que diferença faz? No final,
provavelmente só vamos ter um monte de ruídos de fundo
inúteis.
Washington, DC
O maître abre um sorriso ao ver a quarta pessoa mais
poderosa dos Estados Unidos entrando no luxuoso
restaurante francês.
— Bon soir, monsieur Borgia.
— Bon soir, Felipe. Acho que estão me esperando.
— Oui, certainement. Venha comigo, por favor. — O
maître o conduz entre mesas iluminadas por candelabros até
uma saleta particular ao lado do balcão. Ele bate duas vezes
na porta dupla e se vira para Borgia. — O seu grupo já está lá
dentro.
— Merci. — Borgia põe uma nota de vinte na mão
enluvada, e a porta é aberta por dentro.
— Pierre, entre. — O co-presidente do Partido
Republicano, Charlie Myers, aperta a mão de Borgia e bate
em seu ombro com afeição. —Atrasado, como sempre. Já
estamos duas rodadas na sua frente. Bloody Mary, certo?
— Sim, pode ser.
A sala particular de reuniões é, como o resto do restaurante,
revestida por painéis de nogueira escura. Meia dúzia de
mesas com toalhas brancas preenchem o recinto à prova de
som. Sentados à mesa central estão dois homens. O
cavalheiro mais velho, de cabelo branco, é Joseph H.
Randolph, Sr., um bilionário texano, amigo e figura paterna
para Borgia há mais de vinte anos. Borgia não reconhece o
homem corpulento sentado à frente dele. Randolph fica de
pé para abraçado.
— Pierre, seu sortudo, é bom te ver, filho. Deixe-me ver.
Engordou uns quilinhos?
Borgia enrubesce.
— Talvez alguns.
— Junte-se aos bons.
O homem corpulento se levanta e estende uma mão roliça.
— Pete Mabus, da Mabus Tech Industries.
Borgia reconhece o nome da empresa licitada pela Defesa.
— Prazer em conhecê-lo.
— O prazer é todo meu. Sente-se e relaxe.
Charlie Myers traz a bebida de Borgia.
— Cavalheiros, com licença, preciso ir ao toalete.
Randolph espera que Myers saia da sala para falar.
— Pierre, estive com sua família semana passada em
Rehobeth. Estamos todos muito chateados por você não ter
sido indicado a vice. O Maller está prestando um desserviço
a todo o partido.
Borgia balança a cabeça.
— A preocupação do presidente é se reeleger. As pesquisas
mostram que o Chaney vai trazer o apoio que o partido
precisa no Sul.
— O Maller não está pensando a longo prazo. — Mabus
aponta com seu grosso dedo. — O que este país precisa
agora é de liderança forte, não de mais um cordeirinho que
nem o Chaney como segundo em comando.
— Concordo plenamente, mas não tenho nenhuma
influência na escolha.
Randolph curva-se para a frente.
— Talvez não agora, filho, mas daqui a quatro anos vai ter
uma grande influência. Já falei com alguns figurões, e o
consenso é que você vai representar o partido em 2016.
Borgia reprime um sorriso.
— Joe, é ótimo ouvir isso, mas quatro anos é muito tempo.
Mabus balança a cabeça.
— Você precisa se preparar agora, filho. Vou te dar um
exemplo. O meu menino, Lucien, é um gênio. Sem
brincadeira, o moleque tem 3 anos e já sabe mexer na
Internet. Estou criando-o pra assumir a Mabus Tech quando
tiver 16 anos. Se a gente der as cartadas certas na política,
ele vai ser trilionário quando tiver a sua idade. O que quero
dizer é que todos nós precisamos estar preparados bem antes
da oportunidade bater à porta, e pra você ela já está batendo.
Veja esse exercício militar conjunto dos russos e dos
chineses que vem por aí. Muitos eleitores registrados estão
putos da vida, o que torna essa picuinha algo que pode
decidir a sorte de um candidato à presidência.
— O Pete tem razão, Pierre. O modo como o público
enxergar a sua presença de comando nos próximos meses
pode ajudar a determinar o resultado da próxima eleição. O
povo precisa ver um cara que toma as rédeas, um líder
agressivo que não vai deixar as porras dos russos ou os
crioulos das Arábias ditarem as regras do nosso governo.
Caramba, a gente não tem uma presença forte na Casa
Branca desde que Bush saiu de lá.
Mabus agora está tão perto que Borgia consegue saber o que
ele comeu no almoço pelo cheiro.
— Pierre, esse conflito nos dá uma excelente oportunidade
pra mostrar ao público a força do seu caráter.
Borgia se apóia na cadeira.
— Entendido.
— Ótimo, ótimo. Agora temos um último item na nossa
pauta, algo que precisamos passar a limpo.
Mabus mexe em sua cutícula.
— Um esqueleto no seu armário, digamos assim.
Randolph balança a cabeça enquanto acende um cigarro.
— É esse tal de Gabriel, Pierre, o cara que você mandou
internar depois do seu acidente. Assim que anunciarmos a
sua candidatura, a imprensa vai começar a cavucar. Logo vão
descobrir o que você fez pra manipular as coisas em
Massachusetts. Pode dar uma encrenca danada.
O rosto de Borgia fica rubro.
— Está vendo este olho, sr. Mabus? Aquele doido filho da
puta fez isso comigo. Agora querem que eu o solte?
— Preste atenção, filho. O Pete não falou nada de você
soltá-lo. Apenas amarre essa merda de fio solto antes que a
campanha comece. Porra, todos nós que valemos alguma
coisa na política guardamos nossos esqueletos. Só queremos
que você enterre o seu... presidente.
Borgia respira fundo para se acalmar e balança a cabeça.
— Entendo o que querem dizer, cavalheiros, e agradeço o
seu apoio. Acho que sei o que precisa ser feito.
Mabus estende a mão.
— E nós agradecemos, secretário. Também sabemos que,
quando chegar a hora, o senhor não vai esquecer quem são
seus amigos.
Borgia aperta a mão suada de Mabus.
— Me digam sinceramente, cavalheiros, à parte a presença
política da minha família. Quando me escolheram, quanto
pesou o fato de o senador Chaney ser negro?
Randolph abre um sorriso matreiro.
— Bem, filho, digamos que o lugar não se chama Casa
Branca à toa.
Diário de Julius Gabriel
O platô deNazca, no sul do Peru, é um deserto árido, com
64 quilômetros de comprimento e 10 quilômetros de
largura. E uma planície desolada e inóspita, uma zona morta
aninhada nos Andes. Ele também tem uma geologia
extraordinariamente peculiar, pois o subsolo de Nazca
contém altos níveis de gipsita, um adesivo natural.
Reumidificada todo dia pelo orvalho da manhã, a gipsita
literalmente mantém as pedras locais de ferro e sílica, que se
espalham pelo deserto, grudadas à sua superfície. Essas
pedras escuras retêm o calor do sol, fazendo surgir um
escudo protetor de ar quente que virtualmente elimina os
efeitos do vento. Ele também toma o platô um dos lugares
mais secos da Terra, com menos de 25 milímetros de chuva
por década.
Para o artista que deseja se expressar na mais grandiosa das
escalas, o platô de Nazca se torna a tela perfeita, pois o que é
desenhado naquele platô tende a ficar ali. No entanto, só
quando um piloto o sobrevoou em 1947 o homem moderno
descobriu os misteriosos desenhos e linhas geométricas
entalhadas nessa paisagem peruana há milhares de anos.
Mais de 13 mil linhas cruzam o deserto de Nazca. Alguns
desses marcos se estendem por mais de 8 quilômetros,
riscando terrenos acidentados e se mantendo milagrosa e
perfeitamente retos. Embora alguns queiram crer que as
linhas representam pistas de pouso pré-históricas para
antigos astronautas, agora sabemos que elas são
astronomicamente alinhadas, marcando as posições do
solstício de inverno, do equinócio, da constelação de Órion
e talvez de outros corpos celestes ainda desconhecidos para
nós.
Mais bizarras são as centenas de ícones ilustrando animais.
Ao nível do chão, esses zoomorfos colossais parecem apenas
sulcos aleatórios causados pela remoção de toneladas de
pedras vulcânicas pretas, o que seria feito com a intenção de
expor a gipsita amarela subjacente. Mas, quando vistos do
alto, os desenhos de Nazca tomam vida, representando uma
visão artística unificada e uma façanha de engenharia que
sobreviveu sem danos por milhares de anos.
A arte do platô de Nazca foi completada em dois intervalos
de tempo bastante distintos. Embora isso contrarie nossa
idéia de evolução, os desenhos mais antigos são de longe
superiores. Eles incluem o macaco, a aranha, a pirâmide e a
serpente. Não só as formas retratadas são incrivelmente
precisas, mas as próprias figuras, muitas delas maiores que
um campo de futebol, foram desenhadas usando uma linha
contínua, sem interrupções.
Quem eram os artistas misteriosos que criaram essas imagens
no deserto? Como foram capazes de realizar uma façanha tão
magnífica, numa escala tão grandiosa? E o mais importante:
qual foi a motivação para entalhar as figuras no platô?
Foi no verão de 1972 que Maria, Pierre e eu chegamos pela
primeira vez a esse deplorável deserto sul-americano. Na
época, não estávamos nem um pouco interessados nos
desenhos; nosso propósito era unicamente determinar a
relação entre os crânios alongados da Mesoamérica e aqueles
encontrados em Nazca. Ainda me lembro da primeira
semana trabalhando no platô, amaldiçoando o perverso sol
peruano que me torturava diariamente, cobrindo meu rosto
e meus braços de bolhas. Se alguém me dissesse, então, que
eu acabaria voltando para aquele purgatório de areia e pedras
para viver o resto dos meus dias, eu o chamaria de louco.
Louco.
Luto até para escrever essa maldita palavra. A esta altura,
muitos de vocês devem estar se perguntando se estão lendo
o relato de um cientista ou de um lunático. Devo confessar
que não há um dia que passe sem que eu mesmo debata essa
questão. Se perdi mesmo o juízo, foi Nazca que me levou a
isso, seu incessante calor fazendo o meu cérebro inchar, sua
superfície inóspita martelando a artrite nos meus ossos
durante décadas. Qualquer chance de atingir a paz interior
me escapou no dia em que condenei minha família àquele
deserto. Rezo para que Michael me perdoe por tê-lo criado
naquele inferno, e pelas outras injustiças que infligi à sua
alma torturada na infância.
Do verão de 1972 ao inverno de 1974, nosso pequeno trio
labutou em Nazca, desenterrando centenas de crânios
deformados encontrados em túmulos cerimoniais
localizados perto das montanhas andinas. Um exame
completo de cada crânio revelou que as deformações haviam
sido causadas pelo uso de tábuas de madeira sobre a cabeça
da criança em tenra idade.
Foi em janeiro de 1974 que descobrimos um túmulo real
situado perto dos Andes. As paredes dessa incrível tumba
eram feitas de enormes colunas de pedra, cada uma pesando
entre 10 e 20 toneladas. Dentro da câmara subterrânea havia
13 múmias de homens, o crânio de cada uma delas
alongado. Nosso entusiasmo atingiu novas proporções
depois que radiografias meticulosas e outros testes revelaram
que os mortos, como o crânio de La Venta que Maria havia
encontrado, tinham o crânio nesse formato puramente
como resultado da genética!
Descobrir uma nova raça de homens provou ser tão
polêmico quanto estarrecedor. Ao ficar sabendo da nossa
descoberta, o presidente do Peru ordenou que todos os
nossos artefatos fossem colocados numa câmara subterrânea
do Museu Arqueológico de Lea, longe dos olhos do público.
(Até hoje, os crânios só podem ser vistos pelos portadores
de um convite especial.)
Que raça misteriosa era aquela? O que a fazia nascer com
crânios duas vezes o tamanho normal?
Sabemos que as primeiras pessoas a chegarem à região
andina eram caçadores e pescadores que se estabeleceram ao
longo da costa peruana por volta de 10.000 a.C. Então, por
volta de 400 a.C., outro grupo chegou ao platô de Nazca.
Pouco sabemos sobre esse povo misterioso, só que
chamavam seus líderes de Viracochas, semideuses que
diziam ter migrado para a América do Sul logo depois do
Grande Dilúvio. Os Viracochas eram descritos como sábios
pálidos com olhos de um azul profundo como o do oceano,
e longa barba e cabelo brancos. Esses antigos governantes,
aparentemente, possuíam inteligência superior e crânios
maiores do que o normal, sua aparência bizarra sem dúvida
influenciou seus seguidores a praticar a arte da deformação
dos crânios numa tentativa de emular seus nobres líderes.
A semelhança física entre os Viracochas e o grande mestre
maia, Kukulcán, é incrível demais para ser ignorada. O fato
de caucasianos altos e barbados aparecerem também nas
lendas de várias outras culturas andinas dá mais pistas de
uma ligação entre os indígenas mesoamericanos e aqueles da
América do Sul.
Fortaleza de Sacsayhuaman — Foto no 109 de Nazca,
Julius Gabriel, 1972
A civilização indígena mais dominante que surgiu nas selvas
montanhosas da América do Sul foi a inca. Como os maias,
eles também idolatravam um grande mestre, um sábio que
fez o seu povo progredir através do ensino da Ciência,
Agricultura e Arquitetura. Embora saibamos agora que a
maioria das façanhas creditadas à genialidade inca na
verdade tenha se originado de grupos étnicos mais antigos,
relatos escritos nos contam que foi esse caucasiano barbado
que inspirou a criação das grandes estradas incas, bem como
dos famosos terraços agrícolas construídos em encostas
íngremes. Acredita-se que o barbado também tenha sido o
artista criador dos desenhos mais antigos e sofisticados de
Nazca. Embora fosse conhecido por vários nomes entre as
culturas andinas, os incas o idolatravam simplesmente como
Viracocha, que significa "espuma do mar".
Como Kukulcán entre os maias e Quetzalcoatl para os
astecas, Viracocha é a figura mais reverenciada da história
inca. Seriam os Viracochas de 400 a.C. seus ancestrais? Seria
ele um parente distante de Kukulcán? Nesse caso, sua
presença na antiga América do Sul teria algo a ver com o
calendário maia e sua previsão de fim do mundo?
Em busca de respostas, abandonamos o deserto de Nazca e
rumamos para os Andes, determinados a explorar dois sítios
antigos que se acreditava terem sido criados pela divindade
inca. O primeiro deles era a fortaleza de Sacsayhuaman, uma
monstruosa estrutura erguida ao norte de Cuzco. Como o
túmulo real, as muralhas dessa assombrosa cidadela são
formadas por blocos de granito de formas irregulares que
foram milagrosamente encaixados tão perfeitamente que eu
não conseguia enfiar a lâmina de meu canivete entre as
pedras.
Sobrecarrega a imaginação pensar como os indígenas
andinos conseguiram transportar pedras pesando 100
toneladas ou mais por 15 quilômetros de terreno
montanhoso da pedreira distante, depois encaixá-las
perfeitamente no lugar em volta da fortificação. (Um desses
monstros, de 8 metros e meio de altura, pesa mais de 320
toneladas.) Arqueólogos, ainda procurando explicar essa
façanha indecifrável, tentaram duplicar uma pequena parte
do legado de Viracocha, transportando um bloco de
tamanho médio de uma pedreira distante usando princípios
avançados de engenharia e um pequeno exército de
voluntários. Até hoje, todas as tentativas fracassaram
miseravelmente.
Sabemos que a fortaleza de Sacsayhuaman foi construída
para proteger seus habitantes de forças hostis. O verdadeiro
propósito por trás do projeto da outra estrutura de
Viracocha, a antiga cidade andina de Tiahuanaco, continua
um mistério.
Situadas 380 metros acima do Pacífico, nos Andes
bolivianos, as ruínas de Tiahuanaco repousam na antiga
margem do lago Titicaca, o mais alto lago navegável do
mundo. Depois de examinar as façanhas impossíveis de
engenharia de Sacsayhuaman, eu poderia jurar que nada
mais me surpreenderia. Apesar disso, o sítio de Tiahuanaco
era simplesmente aterrador. A planta dessa cidade antiga
consiste em três templos de calcário e quatro outras
estruturas, todas colocadas sobre uma série de plataformas
elevadas e retângulos escavados. Como em Sacsayhuaman, a
maior parte da construção consiste em blocos de pedra
impossivelmente grandes, encaixados com perfeição.
Mas há claramente mais coisas em Tiahuanaco do que o olho
pode enxergar. Um plano secreto está presente ali — um
plano que pode ter relação com a salvação da nossa espécie.
Os restos de Akapana, uma pirâmide em degraus cujos
quatro lados, direcionalmente orientados, medem 210
metros cada, dominam a cidade. A função de Akapana,
infelizmente, permanecerá um mistério, pois os invasores
espanhóis usaram a estrutura como uma pedreira, roubando
o templo de 90% de seu revestimento.
A estrutura mais maravilhosa de Tiahuanaco é o Portal do
Sol, um único bloco maciço de pedra pesando 100
toneladas. Essa monumental obra de arte fica no canto
noroeste do complexo, como um Arco do Triunfo pré-
histórico. De alguma forma, seu criador conseguiu
transportar esse enorme bloco de pedra de uma pedreira a
quilômetros de distância, escavar um portal perfeito usando
só Deus sabe que tipo de ferramenta e depois alinhar
verticalmente a peça.
Colunas gigantes se espalham por toda a cidade. No meio de
uma bacia retangular ao ar livre fica uma escultura de 2
metros, em pedra vermelha, do próprio Viracocha. O crânio
alongado está presente, bem como a testa pronunciada, o
nariz fino e reto, e o queixo coberto de barba. Os braços e as
mãos estão cruzados. Uma última característica digna de
nota: dos dois lados da túnica do sábio surgem duas
serpentes, parecidas com aquelas retratadas por toda a
Mesoamérica.
A estrutura mais polêmica de Tiahuanaco é o Kalasasaya, um
templo subterrâneo localizado no centro da cidade, rodeado
por grandes muralhas. Blocos de pedra de 3 metros e meio
foram erguidos dentro de seus limites. Embora Pierre tivesse
concluído que o Kalasasaya deveria ter sido uma fortaleza,
Maria discordava, reconhecendo que o alinhamento dos
monolíticos blocos verticais era similar àqueles encontrados
em Stonehenge.
Como de costume, Maria estava correta. O Kalasasaya não é
uma fortaleza, e sim um observatório celeste, o mais antigo
do mundo, talvez.
Então, o que tudo isso significa?
Cinco anos depois de sair de Cambridge, meus colegas
arqueólogos e eu havíamos encontrado provas esmagadoras
que indicavam que uma raça caucasiana superior
influenciara o desenvolvimento tanto dos indígenas
mesoamericanos como dos sul-americanos. Esses homens
barbados, com seus crânios geneticamente deformados, de
alguma forma projetaram e supervisionaram a construção de
monumentos magníficos, cuja finalidade ainda nos intrigava.
Maria estava convencida de que o projeto do observatório
de Kalasasaya era parecido demais com o de Stonehenge
para ser uma simples coincidência. Ela acreditava que era
imperativo continuarmos seguindo o rastro dessa raça
caucasiana e sua sabedoria antiga para o leste para ver aonde
isso nos levaria.
Pierre Borgia não estava contente com isso. Dois anos em
Nazca haviam sido mais do que suficientes para saciar seu
apetite pela Arqueologia, e ele estava sendo pressionado por
sua abastada família para retornar aos Estados Unidos e fazer
carreira na política. O problema era que ele amava Maria;
aliás, os dois iam se casar na primavera.
Por mais que gostasse de Pierre, Maria não estava preparada
para abandonar sua busca pela solução da profecia maia,
insistindo que continuássemos a seguir o rastro dos barbados
até Stonehenge.
A idéia de voltar à Inglaterra era toda a motivação de que
precisávamos, e assim reservei as passagens e voamos para a
perna seguinte da nossa jornada, a qual, eu sabia, estava
destinada a dissolver nosso pequeno triunvirato para sempre.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1972-75 páginas 6-412
Diário Fotográfico, Disquete 2: Nome do arquivo: NAZCA,
Foto 109
10
26 DE OUTUBRO DE 2012
ILHA DE SANIBEL, FLÓRIDA
DOMINGO, 5h20
Acorde, querida! Dominique abre os olhos, bocejando.
— O que aconteceu?
— O Iz quer que você vá para o laboratório. O SOSUS
localizou alguma coisa.
Com a adrenalina subindo, ela joga longe o cobertor e segue
Edie pela escada dos fundos até o laboratório acústico.
Iz está sentado no terminal do SOSUS com os fones de
ouvido, de costas para ela. Dominique nota que o sistema de
som está gravando dados.
Ele gira na cadeira para olhá-la. Ela vê que ele está só de
roupão e chinelos. Tufos de seu cabelo ralo e grisalho
brotam ao redor dos fones. A expressão séria em seu rosto
sufoca a risada de Dominique.
— Verifiquei o sistema ontem à noite, antes de ir dormir. A
única coisa fora do comum que o SOSUS havia localizado
era o que chamamos de uma "zona morta", uma área sem
vida marinha. Isso não é tão fora do comum assim. O Golfo
sofre zonas mortas anuais todo verão, quando proliferações
de plâncton criadas pelo despejo de fertilizantes privam a
água de oxigênio. Mas essas zonas mortas costumam ocorrer
na costa do Texas e da Louisiana, e nunca em águas tão
fundas. De qualquer forma, reprogramei o SOSUS pra se
concentrar nessa área e deixei o sistema em modo de busca a
noite toda. O alarme tocou há uns 15 minutos. — Iz tira os
fones e passa para ela. — Escute isso.
Ela ouve estática, como o som que uma lâmpada
fluorescente faz antes de queimar.
— Parece só ruído.
— Foi o que eu disse. Continue escutando. — Iz muda o
ajuste para uma freqüência mais alta.
O ruído desaparece. Agora Dominique ouve um som
incessante de batidas surdas, metálicas.
— Uau. Parece um mecanismo hidráulico.
Iz balança a cabeça.
— Pergunte pra sua mãe. Eu falei a mesma coisa. Aliás,
achei que o SOSUS tivesse captado um submarino parado no
fundo do mar. Aí verifiquei de novo a posição. — Iz lhe
entrega uma folha impressa pelo computador. — Os sons
não estão vindo do fundo do mar, estão vindo de baixo do
fundo do mar. De 1.426 metros abaixo do fundo do mar, pra
ser exato.
O coração de Dominique está batendo feito um tambor.
— Mas como isso é possível...
— Me diga você! O que estou ouvindo, Dominique? E
alguma brincadeira? Porque se for...
— Iz, pare de dizer bobagens. — Edie passa um braço
protetor pela cintura de Dominique. — Dom não fazia idéia
do que você iria encontrar. A informação foi dada a ela por
um... bom, por um amigo.
— Quem é esse amigo? Quero conhecê-lo.
Dominique esfrega os olhos sonolentos.
— Não pode.
— Por que não? Edie, o que está acontecendo?
Dominique olha para Edie, que balança a cabeça.
— Ele... ele é um ex-paciente meu.
Iz olha de Dominique para a esposa, depois para Dominique
de novo.
— Seu amigo é doente mental? Oy vey...
— Iz, que diferença faz? Tem algo lá embaixo, não tem?
Precisamos investigar...
— Calma aí, menina. Não posso simplesmente ligar pra
Administração Oceânica e Atmosférica Nacional e dizer que
localizei sons hidráulicos um quilômetro e meio abaixo do
atol de Campeche. A primeira coisa que vão querer saber é
como eu descobri os sons. O que devo dizer, que um
maluco deu as coordenadas pra minha filha de sua cela em
Miami?
— Faria alguma diferença se o Stephen Hawking te desse as
coordenadas?
— Sim, faria, na verdade, faria muita diferença. — Iz esfrega
a testa. — A velha história do touro na loja de porcelanas
não funciona mais, Dominique, pelo menos não com o
SOSUS. Há uns três anos, usei o sistema pra detectar
vibrações que vinham de baixo do leito do Golfo e pareciam
sinais de um maremoto. — Iz balança a cabeça ao se
lembrar. — Conte a ela, Edie.
Edie sorri.
— Seu pai achou que a gente estava a minutos de ser
atingido por um enorme tsunami. Ele entrou em pânico e
mandou a Guarda Costeira evacuar todas as praias.
— Eu tinha calibrado o sistema com sensibilidade demais. O
que pensei ser um maremoto era a companhia telefônica
dragando cabos a 100 quilômetros da costa. Eu me senti um
imbecil. Pedi favores a muita gente pra ligar nossa estação ao
SOSUS. Não posso me dar ao luxo de fazer outra merda
dessas.
— Então não vai investigar?
— Eu não disse isso. Vou abrir um dossiê e continuar a
gravar e monitorar a área com atenção, mas não vou entrar
em contato com nenhum órgão federal até ter certeza
absoluta de que essa sua descoberta justifica uma atitude
dessas.
Miami, Flórida
22h17
Mick Gabriel está sentado em sua cama, balançando-se em
silêncio. Seus olhos negros estão perdidos, seus lábios
levemente abertos. Um fio fino de saliva escorre de seu
queixo barbado.
Tony Barnes entra no quarto de Mick. O enfermeiro acaba
de voltar de uma suspensão de três semanas.
— Doce ou travessura, vegetal? Hora da sua injeção
noturna. — Ele levanta o braço direito de Mick, que está
inerte em seu colo, e examina a série de hematomas roxos
no lado de dentro do antebraço.
— Ah, foda-se. — O enfermeiro espeta a agulha no braço
de Mick, injetando o Thorazine numa veia já estourada.
Os olhos de Mick rolam para cima e seu corpo cai para a
frente, amontoando-se aos pés do enfermeiro.
O enfermeiro cutuca a cabeça dele com seu tênis. Olha para
trás, verificando que estão a sós, e lambe a orelha de Mick.
Barnes ouve Marvis fazendo sua ronda.
— Bons sonhos, amor. — Ele sai apressadamente.
A porta se fecha com um clique duplo. As luzes do núcleo
diminuem. Mick abre os olhos.
Ele cambaleia até a pia e lava o rosto e a orelha com água
fria. Xingando baixinho, aperta a veia ensangüentada e
arroxeada com o polegar. Então, sentindo a tontura se
aproximando, cai dolorosamente de joelhos e fica em
posição de flexão de braço.
Nas duas horas seguintes, Mick submete seu corpo a um
agonizante ritual de ginástica. Flexões de braço, abdominais,
polichinelos, correr sem sair do lugar — qualquer coisa para
manter seu metabolismo acelerado, qualquer coisa para
neutralizar o tranqüilizante antes que ele possa afetar seu
sistema nervoso central.
Das três, a dose matinal era sempre a pior. O próprio Foletta
a administrava, monitorando o paciente e murmurando
suavemente no ouvido de Mick de forma zombeteira.
Quando a droga fazia efeito, punha Mick numa cadeira de
rodas e o empurrava de núcleo em núcleo durante sua ronda
matinal, mandando um aviso para os outros internos de que
nenhuma dissidência seria tolerada.
Os exercícios noturnos depois da terceira dose do dia eram
um esforço válido. Acelerando seu metabolismo, Mick
descobriu que era capaz de neutralizar mais rapidamente os
efeitos da droga, reconquistando gradualmente sua sanidade.
Na quarta manhã, havia recobrado seu equilíbrio mental o
suficiente para se concentrar num plano.
Daquele momento em diante, representou o papel de
morto-vivo. Os enfermeiros do sétimo andar o encontravam
toda manhã deitado no chão da cela, num estupor profundo,
totalmente incoerente. Isso enfurecia os funcionários, que
agora eram obrigados a alimentar o paciente incapacitado e,
para total asco deles, até trocar sua roupa quando ele se
sujava. Depois de uma semana dessa rotina, Foletta se viu
obrigado a reduzir a dosagem de Mick de três vezes ao dia
para apenas duas injeções, uma à tarde e outra à noite.
Nas últimas semanas, a agenda de Foletta ficou tomada por
outros assuntos. Ele parou de visitar Mick, confiando seus
cuidados aos enfermeiros.
Pela primeira vez em seus 11 anos de cativeiro, a segurança
ao redor de Michael Gabriel ficou relaxada.
NASA: Centro de Vôo Espacial Goddard
Greenbelt, Maryland
O diretor da NASA, Brian Dodds, olha, incrédulo, para o
imenso rolo de papel de impressora estendido sobre sua
mesa.
— Me explique de novo, Swicky.
O assistente de Dodds, Gary Swickle, aponta com o grosso
indicador para o padrão xadrez, consistindo em 13
quadrados pretos cobrindo a largura da impressão, que
continua por milhares de folhas de papel.
— O sinal de rádio é formado por 13 harmônicos
diferentes, representados aqui por estas 13 colunas. Cada
harmônico pode ser tocado em qualquer uma de vinte
freqüências distintas e consecutivas. Isso permite a
combinação de 260 trechos sonoros ou comandos
diferentes.
— Mas você diz que o padrão não se repete?
— Só no início. — Swickle localiza a primeira página da
impressão. — Quando o sinal começa, os harmônicos são
bem simples, algumas notas tocadas em uma só freqüência,
mas repetidas várias vezes. Agora veja aqui. Na marca de 17
minutos, tudo muda, todos os 13 harmônicos e as vinte
freqüências começam a ser usadas de repente. Desse ponto
em diante, o sinal nunca se repete. Os 185 minutos restantes
usam todas as 260 combinações de trechos sonoros,
indicando uma comunicação altamente estruturada.
— Tem certeza de que não há nenhuma base nos primeiros
17 minutos? Nenhuma equação matemática? Nada que
indique algum tipo de instruções para tradução?
— Nada.
— Droga. — Dodds esfrega os olhos avermelhados.
— O que está pensando, chefe?
— Lembra quando perdemos contato com o SOHO no
verão de 1998? Antes que Arecibo localizasse de novo o
satélite, ficamos repetindo o mesmo sinal de rádio simples,
tentando restabelecer contato com o computador principal
do satélite. É isso que os primeiros 17 minutos desse sinal
lembram. Nenhuma base, nenhuma instrução ou código, só
um sinal vindo do espaço se repetindo como um telefone
que toca, esperando que o outro lado atenda pra que a
informação possa ser transmitida.
— Concordo, mas não faz sentido. Os extraterrestres que
transmitiram esse sinal não poderiam esperar que nossa
espécie fosse capaz de traduzir todas essas informações sem
uma base.
Swickle nota que o rosto do diretor ficou pálido.
— O que foi?
— Só uma idéia maluca. Esqueça, estou muito cansado.
— Vamos, chefe.
— Bem, eu estava pensando no SOHO. Nossa transmissão
obviamente não precisava de uma base, pois o computador
do SOHO já tinha sido programado pela gente. Talvez esse
sinal não contenha uma base porque ela não é necessária.
— Quer dizer que o sinal não foi enviado pra ser traduzido?
— Não, Swick. — Dodds lança um olhar preocupado para o
seu assistente. — Quero dizer, e se o sinal não foi enviado
para nós?
5 de Novembro de 2012
Ilha de Sanibel, Flórida
O cântico de "mais quatro anos — mais quatro anos" acorda
Edith Axler. Ela se apruma e olha para o relógio, depois
desliga a TV e desce para o laboratório. Isadore ainda está
curvado sobre a estação SOSUS, escutando.
— Iz, pelo amor de Deus, são 11 e meia da...
— Shhh. — Ele tira os fones e liga o alto-falante. — Escute.
Ela ouve um zumbido grave.
— Parece um gerador.
— Isso não é nada. Espere.
Momentos se passam, e então o gemido agudo do que
parece ser uma broca hidráulica sai do alto-falante, seguido
imediatamente por batidas metálicas que continuam por
vários minutos.
Iz sorri para a esposa.
— Não é incrível?
— Parece o som de algo sendo montado. Provavelmente é
uma plataforma petrolífera se preparando pra perfurar.
— Ou isso, ou é mais uma daquelas expedições geológicas
investigando a cratera. Seja o que for, o nível de atividade se
intensificou nas últimas trinta horas. Mandei um e-mail
pedindo que a Administração Oceânica e Atmosférica
Nacional verifique ambas as possibilidades, mas ainda não
recebi resposta. Quem ganhou a eleição?
— O presidente Maller.
— Ótimo. Agora que isso acabou, talvez alguém do
Departamento de Estado me responda.
— E se não responderem?
Iz olha para a esposa e dá de ombros.
— Não importa. Como você disse, deve ser só uma
plataforma petrolífera. O Carl e eu vamos fazer nossa
pescaria anual nas próximas duas semanas. Talvez a gente
estique a viagem até lá pra dar uma olhada mais de perto, só
pra ter certeza.
Miami, Flórida
Dominique olha, enojada, o grandalhão ruivo enfiando mais
uma garfada de berinjela na boca. Talvez ele morra
engasgado.
— E então, gatinha, está orgulhosa de mim?
Uma gota de molho de tomate cuspido a atinge na
bochecha.
— Meu Deus, Ray, sua mãe não te ensinou a não falar de
boca cheia?
Ele sorri, revelando um naco de berinjela preso entre os
dentes amarelados. — Desculpe. Estou de dieta há seis
meses. É bom voltar a comer. E então, o que acha?
— Já falei, achei o sexto lugar ótimo, especialmente
considerando que é o seu primeiro concurso.
— O que posso dizer? Você foi minha inspiração.
— Agora me fale do Foletta. Quando nos conhecemos,
você disse que o conselho diretor e a equipe médica não
gostaram nada quando ele chegou de Massachusetts. O que
você quis dizer?
— Isso fica só entre nós, certo?
— Certo.
Raymond empurra a comida goela abaixo com um gole de
cerveja.
— O pai de um grande amigo meu faz parte do conselho
regional. Aliás, foi ele que me ajudou a conseguir o emprego
no Centro. Bom, dizem que a dra. Reinike, que trabalhava lá
antes do Foletta, vai voltar mês que vem pra reassumir o
comando.
— É mesmo? Achei que ela tivesse se aposentado. O Foletta
me disse que o marido dela estava morrendo de câncer.
Ray balança a cabeça, enfiando mais comida na boca.
— Tudo mentira. Meu amigo me contou que a Reinike está
de licença remunerada desde setembro. Ao que parece, um
asilo novinho em folha vai ser inaugurado em Tampa daqui a
três semanas, e prometeram o cargo de diretor pro Foletta.
— Espere aí. Se o Foletta vai embora daqui a três semanas,
então ele já devia saber antes de vir pra Miami que ia
conseguir o emprego em Tampa. Por que tirar a dra. Reinike
do cargo pro Foletta ficar só por três meses?
Ray aponta o garfo para ela.
— Por causa do teu ex-paciente. O instituto de
Massachusetts ia fechar e o de Tampa ainda não estava
pronto. A Reinike é louca por detalhes. Parece que alguém
bem poderosão queria o Foletta no comando pra não ter
risco do teu queridinho Gabriel ser reposicionado no
sistema.
Ou receber uma avaliação decente. Foletta, seu desgraçado.
— O que foi, gatinha?
— Fiz um acordo com o Foletta. Ele me prometeu que o
Mick seria colocado sob os cuidados de uma das equipes de
reabilitação até janeiro, no máximo.
Os dentes amarelados aparecem de novo.
— Acho que mentiram pra você, garota. Daqui a três
semanas o Michael Gabriel já vai estar longe.
O motor elétrico do arrojado Dodge Intrepid ESX2
vermelho zumbe ao ser ativado, auxiliando o motor diesel
1.5 de três cilindros a acelerar pela rampa íngreme da 1-95.
Dominique olha pela janela do passageiro enquanto
Raymond costura no trânsito. Ela range os dentes, furiosa
com a mentira de Foletta. Eu devia ter imaginado. Devia ter
acreditado no que meu coração dizia.
Ela fecha os olhos, lembrando-se de uma das primeiras
conversas que teve com Mick.
"O Pierre Borgia manipulou o sistema judiciário. O promotor
fez um acordo com o defensor público que foi indicado pra
mim e me mandou pra um sanatório em Massachusetts. O
Foletta se tornou meu guardião nomeado pelo Estado. O
Pierre Borgia recompensa a lealdade, mas que Deus ajude
quem vai pra lista negra dele."
Ela foi manipulada, e mais uma vez Michael Gabriel sofrerá
as conseqüências.
— Ray, não estou a fim de dançar. Você se importa de me
levar pra casa?
— Pra casa? Já estamos quase em South Beach.
— Por favor.
Raymond olha para as pernas bronzeadas e esculturais
saindo da saia preta, imaginando-as cruzadas ao redor do seu
tronco musculoso.
— Certo, gatinha, pra casa, então.
O Intrepid para no estacionamento do prédio de Dominique
vinte minutos depois.
Ela sorri.
— Obrigada pelo jantar. Desculpe por estragar a noite, mas
não estou me sentindo bem mesmo. Da próxima vez eu
convido, está bem?
Ele desliga o motor.
— Eu te acompanho.
— Não precisa, estou bem. Te vejo no trabalho. — Ela abre
a porta e ruma para o elevador.
Ray corre atrás dela.
Droga.
— Ray, já falei, não precisa me acompanhar.
— Ei, não tem problema. Eu adoraria conhecer a tua casa.
— Ele espera que ela chame o elevador.
— Ray, esta noite não.
— Não foi isso que combinamos — diz ele, passando o
grosso braço pela sua cintura, puxando-a para perto.
— Não...
Antes que ela possa impedi-lo, ele a empurra para a parede
de concreto, enfiando a língua em sua boca, apertando seus
seios com a pata direita.
Uma onda de pânico incandescente toma conta dela quando
dezenas de lembranças da infância passam por sua mente de
uma só vez.
Reaja! Ela sente ânsia de vômito com o gosto em sua boca,
depois morde a língua intrusa, tirando sangue.
— Ai! Puta que pariu... — Raymond lhe dá um tapa na cara,
depois a pressiona contra a parede com uma mão enquanto
rasga a sua saia com a outra.
— Solta ela!
Dominique vê o rabino Steinberg e a esposa se
aproximando. Raymond continua segurando o braço dela.
— Cai fora, isso não é da tua conta.
— Solte ela, ou vamos chamar a polícia. — Mindy Steinberg
mostra o alarme portátil.
Raymond dá um passo ameaçador na direção do casal,
arrastando Dominique com ele.
— Não seja burro — diz Steinberg, apontando para as
câmeras de segurança.
— Ei, Ray...
Raymond se vira.
A ponta do salto alto de Dominique esmaga com força o
dedão de Raymond. Ele geme de dor, soltando-a. Num só
movimento, o lado do pulso dela atinge o halterofilista em
cheio no pomo de adão, silenciando seu grito.
Raymond põe as mãos na garganta, lutando para respirar.
Enquanto ele cai de joelhos, Dominique gira o corpo,
preparando-se para atingi-lo na nuca exposta com o salto.
— Dominique, não. — Steinberg a segura pelo braço antes
que ela dê o pontapé. — Deixe a polícia cuidar dele.
Mindy abre o elevador e os três entram.
Raymond luta para ficar de pé. Ele se vira para Dominique,
seus olhos enlouquecidos, sua boca tentando emitir sons.
Quando as portas do elevador começam a se fechar, ele
forma a palavra "Gabriel" com os lábios e passa um dedo
sobre a garganta, simulando o movimento de uma faca.
11
18 DE NOVEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
As salas de terapia em grupo do Centro de Avaliação e
Tratamento do Sul da Flórida ficam no terceiro andar, em
frente à sala de ginástica, entre o cinema e a sala de
computadores.
Dominique está sentada no fundo da sala 3-B, ouvindo
distraidamente a sessão vespertina de terapia de grupo do dr.
Blackwell, quando nota um enfermeiro empurrando
Michael Gabriel, semi-consciente na cadeira de rodas, para
dentro do cinema. Ela espera o enfermeiro ir embora e sai
da sala.
O cinema está às escuras. A única luz vem do telão de TV.
Oito internos, espalhados pelas três dúzias de cadeiras
dobráveis, estão assistindo ao último filme de Jornada nas
Estrelas.
A cadeira de rodas está na última fila. Dominique se senta,
deslizando sua cadeira para perto de Mick. Ele está apoiado
de lado, curvado para a frente. Um cinto preso sobre seu
peito é a única coisa que o impede de cair de cara no chão.
Os olhos negros, antes faróis intensos, agora são poças sem
vida que refletem a tela da TV. O longo cabelo castanho de
Mick está preso num rabo de cavalo. Dominique sente o
cheiro do cabelo sujo e o fedor que emana de suas roupas
imundas. A barba incipiente só não cobre a cicatriz em seu
maxilar.
Foletta, seu desgraçado. Ela tira um lenço de papel do bolso
do jaleco e enxuga a baba que escorre de seu lábio inferior.
— Mick, não sei se pode me entender, mas sinto sua falta,
de verdade. Odeio o que o Foletta fez com você. Você tinha
toda a razão sobre ele, e me sinto muito culpada por não ter
acreditado. — Ela põe sua mão sobre a dele.
— Queria que você pudesse me entender.
Para sua surpresa, Mick vira a mão esquerda, cruzando seus
dedos com os dela.
— Meu Deus — ela sussurra.
Mick pisca.
Ela mal consegue conter seu entusiasmo.
— Mick, preciso te contar tantas coisas...
— Shhh. — Seus olhos continuam perdidos.
Ela se inclina para a frente distraidamente, fingindo interesse
pelo filme.
— O Raymond, o vigia que te atacou, tentou me estuprar.
Foi suspenso, mas ouvi dizer que talvez volte a trabalhar já
na semana que vem. Tome cuidado, ele ameaçou te
machucar pra se vingar de mim. — Ela aperta a mão dele. —
Lembra que eu falei do SOSUS? Convenci o Iz a usar o
sistema pra verificar as coordenadas no Golfo que você me
deu. Mick, você tinha razão. Realmente tem alguma coisa lá,
enterrado mais ou menos um quilômetro e meio abaixo do
leito do oceano. O Iz prometeu que iria investigar.
Mick aperta mais a mão dela.
— Perigoso demais — ele murmura, praticamente sem
mexer os lábios.
— Perigoso demais? Por quê? O que você acha que tem lá
embaixo? — Ela solta a mão dele quando a sessão de terapia
do dr. Blackwell termina. — Mick, o Foletta mentiu a
respeito de tudo. Descobri que ele vai pra Tampa dirigir um
novo sanatório de segurança máxima. Você vai ser
transferido semana que vem.
— Me ajude a fugir.
— Não posso...
Ela se levanta quando o dr. Blackwell se aproxima.
— Residente, não sabia que você era tão fã de Jornada nas
Estrelas. Presumo que este filme seja mais importante do
que minha sessão de terapia?
— Não, senhor. Só... só vim olhar este paciente. Ele estava
caindo da cadeira de rodas.
— Temos enfermeiros pra isso. Tome. — Ele lhe entrega
um grosso maço de fichas de pacientes e a afasta de Mick. —
Quero que atualize todas as planilhas e as envie para o
faturamento em uma hora. Não se esqueça de anotar a sessão
de hoje. Quando terminar, pode ir para a nossa reunião no
segundo andar.
— Sim, doutor.
— E fique longe do paciente do dr. Foletta, residente.
Golfo do México
O pesqueiro Manatee, de 48 pés, singra os mares rumo ao
sudoeste através de ondas de meio a um metro, sua proa
banhada pela luz dourada do sol que se põe, beijando o
horizonte.
Na cabine, Iz Axler enche sua caneca de café enquanto o
seu melhor amigo, Carl Reuben, prepara o jantar na pequena
cozinha.
O dentista aposentado passa uma toalha de mão por sua
careca incipiente, depois enxuga o vapor das grossas lentes
bifocais.
— Meu Deus, como está quente aqui. Estamos perto desse
seu local misterioso?
— Mais 5 quilômetros. O que vamos comer no jantar?
— Já falei, dourado-do-mar grelhado.
— Comemos isso no almoço.
— Pesque lagosta e comerá lagosta. Me fale desse local.
Você disse que lá não tem peixe?
— Isso mesmo. É o que chamamos de zona morta.
— Por que está morta?
— Não sei. Por isso quero dar uma olhada.
— E por quanto tempo pretende nos manter nessa zona
morta?
— Daqui a quanto tempo sai o jantar?
— Vinte minutos.
— Bem, se tiver uma plataforma petrolífera na área como
eu desconfio que tenha, sairemos de lá antes da sobremesa.
Iz sai da cabine e sobe no convés, saboreando o cheiro do ar
salgado temperado pelo aroma do peixe grelhado. Para ele,
Carl e Rex Simpson, os cinco dias anuais de pescaria são o
ponto alto do ano. Depois de uma longa temporada de
furacões, as águas do Golfo se acalmaram e o tempo se
abrandou, oferecendo condições ideais para passeios de
barco. Em dois dias, eles pescaram uma dúzia de dourados-
do-mar, oito olhos-de-boi e uma garoupa. Virando-se para o
sol poente, Iz fecha os olhos e inspira, deixando os haustos
tépidos do vento aliviarem seu rosto queimado pelo sol.
Uma pancada seca o faz virar. Rex recoloca o tanque de ar e
termina de afivelado nas costas do colete com o
compensador de flutuação.
— Vai mergulhar um pouco, Rex?
O proprietário do Clube dos Caçadores de Tesouros de
Sanibel, de 52 anos, olha por cima do ombro.
— Por que não? Já que não podemos pescar nesse seu lugar
secreto, pensei em fazer um mergulho noturno.
— Não sei se vai ter muita coisa pra ver. — Iz retoma seu
lugar no assento do capitão. Ele pega os binóculos e vasculha
o horizonte vazio, depois verifica a posição do barco no
GPS. — Que estranho.
— O que é estranho?
Iz desativa o piloto automático e desliga os motores do
Manatee.
— Chegamos. É aqui, este é o lugar que eu falei.
— Aqui só tem água. — Rex enrola seu longo cabelo
grisalho num rabo de cavalo. — Você não disse que teria
uma plataforma petrolífera?
— Devo ter me enganado. — Iz ativa o rádio para falar com
a costa. — Manatee chamando Alfa-Zulu-três-nove-seis.
Alfa-Zulu, responda. Edie, está me ouvindo?
— Prossiga, Manatee. Como vai a pescaria?
— Vai bem. Muitos olhos-de-boi e dourados-do-mar. O Rex
pegou uma garoupa hoje de manhã. Edie, acabamos de
chegar ao local acima da cratera de Chicxulub. Não tem nada
aqui.
— Nenhuma plataforma?
— Nada. Mas o tempo está perfeito e o mar está calmo.
Acho que vamos passar a noite aqui enquanto faço alguns
testes.
— Tome cuidado.
— Pode deixar. Falo com você mais tarde.
O Sol, agora, é uma bola vermelha de lava pondo-se
espetacularmente a bombordo da proa. Iz esvazia a caneca
de café e ativa o sonar do barco para verificar a profundidade
do mar.
Pouco mais de 600 metros.
Rex vê Isadore fuçando num compartimento estanque.
— Ei, Iz, olhe a sua bússola, está dançando mambo.
— Eu sei. Tem uma cratera enorme sob o leito do oceano,
de uns 100 quilômetros de diâmetro. Estamos perto do
centro, que possui um campo magnético muito forte.
— O que você está fazendo?
Iz termina de conectar um microfone submarino a um
grande carretel de cabo de fibra óptica.
— Quero ouvir o que está acontecendo lá embaixo. Pegue
esse microfone e coloque do lado de estibordo da proa. Vá
soltando o cabo devagar.
Iz pega a outra ponta do cabo e a conecta a um modulador
de amplitude. Ele liga o computador, enfia o plugue dos
fones na tomada do sistema acústico e escuta.
Jesus Cristo...
Rex volta.
— Já baixei o microfone. O que está ouvindo? Sinatra?
Iz lhe passa os fones.
Sons mecânicos metálicos, como de estridentes pistões
hidráulicos e engrenagens inundam os ouvidos de Rex.
— Que porra é essa?
— Não sei. O SOSUS detectou os sons há algumas semanas.
Estão vindo de uns 1.500 metros abaixo do fundo do mar.
Achei que fosse uma plataforma petrolífera.
— Coisa bizarra. Falou com alguém a respeito disso?
— Fiz um relatório pra Marinha e pra Administração
Nacional, mas ninguém me deu nenhuma resposta ainda.
— Pena que não trouxemos o Barnacle.
— Não sabia que o seu submarino podia descer tanto.
— Claro que pode. Já desci 1.800 metros com ele nas
Bahamas.
Carl aparece no convés, seu rosto rubro.
— Ei, vocês vêm comer ou não?
21h22
Uma tapeçaria de estrelas cobre o limpo céu noturno.
Carl está debruçado sobre a travessa da popa, organizando
sua caixa de pesca pela terceira vez naquele dia. Rex está na
cabine, lavando a louça, enquanto Iz escuta os sons
submarinos no posto do piloto.
— Manatee, responda.
— Prossiga, Ead.
— Eu estava monitorando o SOSUS. Os ruídos estão ficando
mais altos e mais rápidos.
— Eu sei. Parece quase uma locomotiva desgovernada.
— Iz, acho que vocês deviam sair daí. Iz?
O silvo hiper agudo queima o seu canal auditivo como um
ferro em brasa. Iz arranca os fones da cabeça e cai de
joelhos, desorientado, com um insuportável zumbido nos
ouvidos.
— Rex! Carl! — Ele ouve só um eco abafado.
Uma fantasmagórica luz verde o faz erguer os olhos. O
interior da cabine está brilhando com um halo esmeralda
iridescente que irradia da água. Rex ajuda Iz a ficar de pé.
— Você está bem?
Iz faz que sim, com os ouvidos ainda zumbindo um pouco.
Os dois homens cambaleiam por cima dos trajes de
mergulho e vão para a proa, onde está Carl, atento demais à
luz brilhante para notar a fumaça saindo dos circuitos
eletrônicos torrados do modulador de amplitude.
Santo Deus. Iz e seus dois amigos olham estarrecidos para o
mar, seus rostos banhados no verde fantasmagórico do
brilho luminoso.
O Manatee está flutuando na superfície de uma porção
circular de mar luminescente, com pelo menos 1.500
metros de diâmetro. Iz se curva sobre a água, estupefato pela
visibilidade surreal criada pelo feixe incandescente, vindo de
algum lugar no fundo do mar, uns 600 metros abaixo do
barco.
— Iz, Rex, o cabelo de vocês!
Carl aponta para o cabelo dos amigos, que está de pé. Rex
toca seu rabo de cavalo, ereto como a pena de um índio. Iz
esfrega a palma da mão nos pelos do seu antebraço,
provocando faíscas de eletricidade estática.
— Que diabos está acontecendo? — murmura Carl.
— Não sei, mas vamos sair daqui agora. — Iz volta
rapidamente para a cabine e aperta o botão da ignição.
Nada.
Ele aperta o botão mais três vezes. Verifica o rádio e o
sistema de navegação por GPS.
— Qual o problema? — Carl pergunta nervosamente.
— Nada funciona. Aquilo que está brilhando lá embaixo pôs
todos os nossos dispositivos eletrônicos em curto. — Iz se
vira e vê Rex vestindo o traje de mergulho. — O que está
fazendo?
— Quero ver o que tem lá embaixo.
— É perigoso demais. Pode ser radioativo.
— Então estarei mais seguro no traje de mergulho do que
vocês dois aqui em cima. — Ele afivela o colete com o
tanque de ar, verifica os manômetros e calça os pés de pato.
— Carl, minha câmera submarina está perto de você.
Carl joga-lhe a câmera.
— Rex...
— Iz, emoções fortes são meu hobby. Vou tirar umas fotos
rapidinho e voltar pra cá em cinco minutos.
Iz e Carl veem Rex se jogar da lateral, impotentes.
— Carl, pegue um remo. Vamos mover o barco.
O mar está tão visível que Rex se sente nadando em direção
às luzes submersas de uma piscina profunda. Ele paira 2
metros abaixo do casco, sentindo-se totalmente em paz, seu
corpo e as bolhas de ar que escapam imersos no suave brilho
verde-esmeralda.
O movimento acima de sua cabeça o faz olhar para cima.
Meu Deus...
Rex pisca duas vezes, olhando incredulamente para a
criatura grotesca que grudou por todo o comprimento bem
no centro da quilha do Manatee. Dez metros de tentáculos
fibrosos ondulam de um cilindro gelatinoso que lembra uma
lagarta. Nada menos que cem estômagos em forma de sino
atravessam o corpo encordoado e cor creme da criatura,
cada abertura digestiva contendo sua própria boca hedionda
e projeções venenosas parecidas com dedos.
Incrível. Rex nunca viu um espécime vivo, mas sabe que a
criatura é uma Apolemia, uma espécie de sifonóforo. Esses
seres bizarros, que podem medir de 25 a 30 metros de
comprimento, habitam apenas as águas mais profundas e, em
decorrência disso, raramente são vistos pelo homem.
A luz deve tê-la afugentado para a superfície.
Ele tira várias fotos, mantendo o que espera ser uma
distância segura dos tentáculos venenosos da criatura, e em
seguida solta ar de seu compensador de flutuação e afunda.
A iluminação surreal lhe dá a estranha sensação de estar
caindo em câmera lenta. Rex bate as pernas a 18 metros para
diminuir a velocidade da descida, a pressão aumentando em
seus ouvidos. Ele aperta o nariz e equaliza, mas fica surpreso
ao descobrir que a dor está piorando. Então, olhando para
baixo, nota algo subindo em sua direção, vindo do vazio
luminoso.
Rex sorri e estende os braços. Milhares de bolhas de ar do
tamanho de Fuscas sobem ao redor dele.
Incrível.
A dor nos seios nasais o obriga a se concentrar. Um rugido
abafado de barítono enche seus ouvidos, reverberando em
sua máscara, que faz cócegas no seu nariz.
Rex Simpson para de sorrir ao notar uma sensação torturante
no fundo do seu estômago, parecida com os efeitos de estar
suspenso no ponto mais alto de uma imensa montanha-
russa. O rugido fica mais alto.
E um terremoto submarino!
Seiscentos metros abaixo, uma enorme seção do leito de
calcário desmorona, revelando uma abertura enorme em
forma de túnel. O mar começa a girar ao ser sugado para o
buraco crescente, a correnteza puxando tudo para o
redemoinho que afunda.
A luz verde-esmeralda se intensifica, quase deixando-o cego.
Iz e Carl conseguiram remar com o Manatee até o perímetro
da área brilhante do mar quando uma força invisível parece
agarrar a proa, puxando o pesqueiro para trás. Os dois
homens se viram, horrorizados, e vêem o mar se abrindo
num grande vórtice que gira no sentido anti-horário. — E
um redemoinho! Reme mais rápido!
Em segundos, o Manatee é capturado, movendo-se para trás
na borda exterior do redemoinho.
A poderosa sucção aferrou o corpo de Rex com uma força
assustadora, puxando-o para águas mais fundas. Ele mexe as
pernas mais depressa, a pressão aumentando em seus
ouvidos enquanto ele luta para soltar seu cinturão de pesos
com uma das mãos e agarrar a mangueira descontrolada atrás
de sua cabeça com a outra.
O cinturão escorrega da sua cintura, desaparecendo na luz
intensa. Rex tateia o dispositivo do compensador de
flutuação e aperta uma alavanca, inflando-o.
Sua descida fica mais lenta, mas não para.
Uma corrente indescritivelmente forte o joga para o lado de
repente, como se ele estivesse sendo sugado para fora de um
avião. Ele se agita, a corrente ameaçando arrancar o
respirador e a máscara de seu rosto. Ele morde com força e
segura sua preciosa máscara, lutando futilmente contra a
irresistível turbulência.
O mar se abre abaixo dele. Ele olha como se estivesse do alto
de cem andares lá para baixo, para o brilhante olho verde do
vórtice, um buraco no mar cuja força centrífuga agora o
mantém grudado à parede interior de seu crescente funil
giratório.
O medo faz o coração de Rex bater loucamente. A força
sobre o seu tronco aumenta, forçando as fivelas de velcro,
que é tudo o que evita que o tanque de ar seja arrancado do
colete. Ele fecha os olhos, sentindo náusea, enquanto o
redemoinho o gira em sua parede interior numa velocidade
estonteante, ao mesmo tempo que o suga cada vez mais
fundo para a sua bocarra.
Eu vou morrer, meu Deus, por favor, me ajude...
O vidro da máscara racha. A pressão de uma morsa lhe
espreme o rosto. Sangue escorre de suas narinas. Ele sufoca,
depois fecha os olhos com todas as forças, gritando no
respirador, sentindo que seus globos oculares estão sendo
arrancados dos nervos ópticos, saltando das órbitas. Um
grito final é obliterado quando o cérebro de Rex Simpson
implode.
As monstruosas forças G criadas pelo funil de água empalam
o casco do Manatee contra as paredes íngremes e
rodopiantes, destroçando partes do barco a cada revolução.
A força centrífuga pregou o corpo inconsciente de Carl
Reuben sobre a parte de trás das pernas de Iz, esmagando o
apavorado biólogo contra o convés de fibra de vidro.
Iz se segura ao balaústre diante dele com as duas mãos. O
redemoinho ruge em seus ouvidos, sua velocidade
estonteante empurrando-o para a inconsciência.
Ele se força a abrir os olhos, dirigindo-os para a fonte da luz
verde. A morte está a poucos minutos dali, e de alguma
forma a idéia é simultaneamente assustadora e
reconfortante.
O feixe brilhante fica mais fraco de repente. Iz estica o
pescoço para a frente, inclinando-se precariamente sobre
uma viga. Ele vê uma gosma borbulhante como alcatrão
esguichando de um enorme buraco no fundo do oceano. A
substância negra arrota — Iz pode sentir o seu fedor pútrido
e sulfuroso — e depois termina de recobrir o brilho
esmeralda enquanto continua a subir pelo funil de água,
escurecendo o mar ainda revolto.
Iz fecha os olhos, obrigando-se a pensar em Edie e
Dominique enquanto a correnteza enlouquecida empurra o
Manatee para o fundo do vórtice.
Meu Deus, que seja rápido.
Carl estica o braço. Ele aperta a mão de Iz quando a gosma
preta sobe para engoli-los.
O barco bate no líquido espesso como piche e vira, jogando
Iz e Carl de cabeça na garganta do redemoinho de tinta.
12
23 DE NOVEMBRO DE 2012
PRAIA DE PROCRESO
PENÍNSULA DE YUCATÁN
6h45
Bill Godwin beija o rosto de sua esposa adormecida, pega seu
microdisc player e sai do quarto de hotel no segundo andar
do Holiday Inn. Mais uma manhã perfeita.
Ele desce a escadaria de alumínio e concreto até a piscina,
depois sai da área cercada e atravessa a Route 27 até a praia, a
luz da manhã forçando-o a cerrar os olhos. Diante dele se
estendem quilômetros de imaculadas areias brancas virgens
e águas azuladas transparentes como cristal.
Lindo...
Fiapos dourados brilham sobre uma faixa de nuvens no
horizonte oriental quando ele chega à beira da água. Uma
adolescente mexicana desliza sobre as águas serenas do
Golfo num jet ski roxo e branco. Bill admira a silhueta da
moça enquanto se alonga, depois coloca os fones e começa a
correr num ritmo suave.
O analista sênior de mercado da Waterford-Leeman, de 46
anos, começou a correr três vezes por semana depois de se
recuperar de seu segundo ataque cardíaco, há seis anos. Ele
calcula que a "corridinha matinal", como sua esposa a
chama, deve ter somado mais uns dez anos à sua expectativa
de vida, e está mantendo seu peso sob controle pela primeira
vez desde a época da universidade.
Bill passa por outro corredor e acena, momentaneamente
apertando o passo. Uma semana de férias no Yucatán fez
maravilhas por sua pressão arterial, mas a farta cozinha
mexicana não ajudou sua cintura. Ele chega ao posto de
salva-vidas deserto, mas decide ir um pouco além. Cinco
minutos e 800 metros depois ele para, totalmente exausto.
Curvando-se, tira os tênis, enfia o player num deles e vai
para as convidativas águas do Golfo para o seu mergulho
matinal.
Bill entra na água até que as ondas batam em seu peito. Ele
fecha os olhos e relaxa no mar morno, organizando
mentalmente o seu dia.
— Filha da puta... — Bill salta para o lado, segurando o
braço, procurando a água-viva que o queimou. — Mas que
porra...?
Uma substância preta como alcatrão grudou em seu
antebraço, queimando-lhe a carne.
— Malditas companhias petrolíferas. — Ele balança o braço
para a frente e para trás na água, sem conseguir limpar a
gosma.
A dor ardente aumenta.
Xingando alto, Bill se vira e dá vários passos em direção à
terra. Quando ele finalmente cambaleia até a praia, sangue já
está escorrendo de suas duas narinas. Manchas vermelhas
tiram-lhe a visão. Sentindo-se zonzo e confuso, ele cai de
joelhos na areia.
— Preciso de ajuda! Alguém pode me ajudar? Um velho
casal mexicano se aproxima e pára.
— Qué pasó, Señor?
— Sinto muito, não falo espanhol. No hablo. Preciso de um
médico. El doctor.
O homem olha para ele.
— El doctor?
Uma dor penetrante inflama os olhos de Bill. Ele grita,
agonizante, e enfia os punhos cerrados nos olhos.
— Meu Deus, minha cabeça!
O homem olha para a esposa.
— Por favor, llame a un médico.
A mulher sai correndo.
Bill Godwin sente como se seus olhos tivessem sido
perfurados. Ele arranca tufos de cabelo, depois se curva e
vomita uma bílis negra ensangüentada e ácida.
O velho mexicano está abaixado, tentando inutilmente
ajudar o americano doente quando recua de repente e segura
seu tornozelo.
— Hijo de la chingada!
O vômito fumegante respingou no pé do homem,
queimando-lhe a carne.
Casa Branca
Washington, DC
Ennis Chaney sente sobre si os olhos do presidente Maller e
de Pierre Borgia ao ler o relatório de duas páginas.
— Nenhuma pista de onde veio essa porcaria tóxica?
— Veio do Golfo, provavelmente de um dos campos
petrolíferos da PEMEX — diz Borgia. — O mais importante
é que uma dúzia de americanos e várias centenas de
mexicanos morreram. As correntes confinaram a maré
negra à costa do Yucatán, mas é importante que
monitoremos a situação para garantir que o vazamento não
chegue à costa americana. Também achamos importante
manter uma presença diplomática no México durante essa
crise ambiental.
— Traduzindo?
Chaney nota o desconforto de Maller.
— O Pierre acha que seria melhor você liderar a
investigação. O problema do tráfico de drogas desgastou
nossa relação com o México. Achamos que essa situação
pode nos dar a oportunidade de consertar a cerca, por assim
dizer. A imprensa acompanhará você...
Chaney suspira. Embora seu mandato oficial como vice-
presidente só comece em janeiro, o Congresso já confirmou
sua indicação para o posto vago. O novo cargo e a tarefa de
ajudar seu gabinete a preparar sua saída do Senado o estão
esgotando.
— Deixe-me ver se entendi. Estamos nos preparando para
um potencial conflito no Golfo Pérsico, mas o senhor quer
que eu chefie uma missão diplomática no México? —
Chaney balança a cabeça. — Que diabos posso fazer lá, além
de oferecer minhas condolências? Com todo o respeito,
presidente, nosso embaixador no México pode cuidar disso.
— Isso é mais importante do que você imagina. Além disso
— diz o presidente abrindo um sorriso forçado —, quem
mais teria estômago para tanto? Você já trabalhou no Centro
de Controle de Doenças Infectocontagiosas. E o seu trabalho
durante a epidemia de dengue em Porto Rico há três anos
foi uma tremenda cartada de relações públicas.
— Minha participação não teve nada a ver com relações
públicas.
Borgia fecha sua valise com estrondo.
— O presidente dos Estados Unidos acaba de lhe dar uma
ordem, vice-presidente. O senhor pretende cumprir o seu
dever ou está pensando em renunciar?
Os olhos de guaxinim se arregalam, lançando setas contra
Borgia.
— Pierre, pode nos dar uns minutos?
O secretário de Estado tenta devolver o olhar de Chaney
com seu único olho sadio, mas está em desvantagem.
— Pierre, por favor.
Borgia sai.
— Ennis...
— Presidente, se está pedindo que eu vá, naturalmente eu
irei.
— Obrigado.
— Não precisa me agradecer. Apenas informe àquele
ciclope que Ennis Chaney não renuncia pra ninguém.
Aquele moleque acaba de ir pro alto da minha lista negra.
O vice-presidente sobe a bordo do Sikorsky MH-60 Pave
Hawk duas horas depois. Seu recém-promovido assistente,
Dean Disangro, já está a bordo, junto com dois agentes do
Serviço Secreto e meia dúzia de jornalistas.
Chaney está furioso. Durante toda a sua carreira política, ele
jamais permitiu que o tratassem como um lacaio de relações
públicas. As fronteiras partidárias e o politicamente correto
nada significam para ele. Pobreza e violência, educação e
igualdade racial, essas são as lutas que vale a pena travar. Ele
costuma se imaginar como um Dom Quixote moderno —
lutando contra os moinhos de vento. Aquele caolho de
merda pode achar que me controla, mas acabou de comprar
briga com um cara que não pensa duas vezes antes de pisar
em cima.
Dean traz para o vice-presidente um copo de café
descafeinado. Ele sabe que Chaney detesta voar,
especialmente em helicópteros.
— O senhor parece nervoso.
— Cale a boca. O que é isso que eu ouvi sobre sairmos da
rota?
— Vamos parar no Forte Detrick pra pegar o pessoal do
USAMRIID antes de ir para Yucatán.
— Maravilha. — Chaney fecha os olhos e segura o braço da
poltrona quando o Sikorsky salta para o céu.
Treze minutos depois, o helicóptero pousa no Instituto. De
sua janela, Chaney vê dois homens supervisionando o
carregamento de várias caixas grandes.
Os dois homens sobem a bordo. Um oficial de cabelo
prateado se apresenta.
— Vice-presidente, sou o coronel Jim Ruetenik, um
especialista militar em ameaças biológicas destacado para a
sua equipe. Este é o meu colega, dr. Marvin Teperman, um
exobiólogo emprestado de Toronto.
Chaney examina o canadense baixinho, de bigode fininho e
irritante sorriso amigável.
— O que é um exobiólogo, exatamente?
— A exobiologia trata do estudo da vida fora do nosso
planeta. Essa gosma pode conter uma cepa de vírus que
jamais vimos antes. O AMRIID achou que eu poderia ajudar.
— O que há nas caixas?
— Trajes anti-contaminação — responde o coronel. —
Trajes espaciais portáteis e pressurizados que usamos quando
saímos a campo e lidamos com agentes potencialmente
ativos.
— Já conheço os trajes, coronel.
— É verdade, o senhor esteve em Porto Rico durante a
epidemia de dengue de 2009.
— Temo que isto vá ser um pouco mais nojento — diz
Marvin. — Pelo que fiquei sabendo, o contato físico com a
substância causa hemorragia generalizada por todos os
orifícios do corpo.
— Eu agüento. — Chaney se segura no assento durante a
decolagem. — É a porcaria do helicóptero que me dá enjôo.
O coronel sorri.
— Assim que pousarmos, nossa primeira preocupação será
ajudar os mexicanos a estabelecer zonas cinza, quer dizer,
áreas intermediárias entre os locais contaminados e o resto
da população.
Chaney ouve um pouco mais, depois reclina o assento da
poltrona e fecha os olhos. Trajes anti-contaminação.
Hemorragia generalizada. Que diabos estou fazendo aqui?
Quatro horas depois, o Sikorsky diminui a velocidade e paira
sobre uma praia branca, manchada por uma substância preta
como alcatrão. Partes infectadas do litoral foram isoladas
com barreiras de madeira laranja.
O helicóptero percorre a praia deserta para o leste,
aproximando-se de uma série de barracas da Cruz Vermelha
que foram erguidas num trecho isolado. Uma fogueira
gigantesca arde a 50 metros do local, sua fumaça marrom
deixando um rastro espesso de quilômetros no céu sem
nuvens.
O Sikorsky voa lentamente e pousa num estacionamento
cercado adjacente à área das barracas.
— Vice-presidente, acho que este traje é do seu tamanho.
— O coronel Ruetenik lhe entrega um traje laranja de
astronauta.
Chaney vê Dean vestindo um traje.
— Errado. Sente a bunda aí, vovô, você fica aqui. A
imprensa e os seguranças também.
— Meu trabalho é ajudar o senhor...
— Me ajude ficando aqui.
Chaney sai do helicóptero vinte minutos depois,
acompanhado por Teperman e pelo coronel. Os três estão
usando os volumosos trajes laranja e os tanques de ar.
Um médico os recebe na entrada da barraca principal.
Chaney nota uma gosma verde pingando do traje branco do
homem.
— Sou o dr. Juarez. Obrigado por virem tão rápido. O
coronel Ruetenik faz as apresentações.
— Isso é a substância tóxica no seu traje, doutor? — Chaney
pergunta, apontando para o líquido verde.
— Não, senhor. É Envirochem, uma aliada nossa. Usamos
como desinfetante. Não deixe de borrifá-la no seu traje antes
de se trocar. Venham comigo, vou mostrar a nossa inimiga.
Chaney sente gotas de suor escorrendo dos lados do seu
rosto ao seguir os outros para a área de quarentena.
Dúzias de pessoas jazem em macas de plástico na barraca da
Cruz Vermelha. A maioria usa trajes de banho. Todas estão
cobertas de manchas negras de sangue e bílis. Os que estão
conscientes gemem de dor. Trabalhadores usando trajes de
plástico e pesadas botas e luvas de borracha estão
removendo sacos com cadáveres da barraca no mesmo
ritmo em que novas vítimas são trazidas para dentro.
O dr. Juarez balança a cabeça.
— Este lugar virou uma zona de guerra. O maior estrago
aconteceu nas primeiras horas da manhã, antes que se
percebesse o quanto a gosma era contagiosa. Isolamos as
praias ao meio-dia, mas a primeira leva de médicos e
voluntários se contaminou, o que piorou muito as coisas.
Começamos a identificar as vítimas e queimar os cadáveres
para diminuir o alastramento.
Eles entram na barraca adjacente. Uma bonita enfermeira
mexicana de traje anti-contaminação está sentada ao lado de
uma maca, segurando a mão de um americano de meia-idade
em sua mão enluvada.
O dr. Juarez dá um tapinha afetuoso no ombro dela.
— Enfermeira, quem é esse cavalheiro?
— É o sr. Ellis, um artista da Califórnia.
— Sr. Ellis, está me ouvindo?
O sr. Ellis está de costas, com o olhar perdido, os olhos
arregalados. Ennis Chaney estremece. Os globos oculares do
homem estão completamente pretos.
O coronel puxa o médico para o lado.
— Como a infecção está se espalhando?
— Pelo contato físico com a maré negra ou com as
excreções de alguém contaminado. Não há nada que sugira
que o vírus se espalhe pelo ar.
— Marvin, pegue o gravador de microfita, por favor, e fique
a postos com a caixa de amostras.
O coronel pega o gravador em miniatura da mão de
Teperman e começa a falar enquanto assiste o dr. Juarez
com o exame.
— O paciente parece ter entrado em contato com a
substância no polegar, indicador e médio direitos. A carne
dos três dedos foi corroída até o osso. Os globos oculares
estão imóveis, sangrando e completamente enegrecidos. O
paciente parece em choque. Enfermeira, há quanto tempo o
sr. Ellis entrou em contato com a maré negra?
— Não sei, senhor. Duas horas, talvez.
Marvin fala ao ouvido de Chaney.
— Essa coisa age bem rápido.
O coronel ouve o comentário e balança a cabeça.
— A pele do paciente está úmida, amarelada, com manchas
negras aparecendo nos membros superiores e inferiores. —
O coronel Ruetenik toca com cuidado as bolhas de sangue
sob a pele de Ellis. — Bolhas são evidentes em ambos os
membros superiores...
O dr. Juarez se senta ao lado do paciente, que parece estar
saindo do estupor.
— Tente não se mexer, sr. Ellis. O senhor entrou em
contato com alguma espécie de...
— Minha cabeça está me matando. — Ellis levanta o corpo
de repente, o sangue negro pingando das narinas. — Quem
são vocês, caralho? Ai, meu Deus... — Sem aviso, uma
enorme quantidade de sangue negro e espesso, misturado
com tecidos, esguicha com força da boca de Ellis. A bílis
fumegante escorre pelo seu peito e espirra nos capacetes de
Teperman e da enfermeira.
Chaney se afasta vários passos, a visão da bílis negra causa-
lhe ânsia. Ele engole o vômito que sobe pela sua garganta e
desvia o olhar, tentando se recompor.
A enfermeira continua ajoelhada diante do paciente,
segurando as duas mãos de Ellis, a compaixão impedindo-a
de desviar o olhar do rosto horrorizado do moribundo.
O sr. Ellis olha para o dr. Juarez e o coronel com dois
buracos negros, uma expressão inerte em seu rosto
ensangüentado, sentado rigidamente, como se temesse se
mover.
— Estou derretendo por dentro — ele geme.
Chaney vê o tronco do homem começando a tremer e se
retorcer. Com um estertor revoltante, ele vomita mais bílis
negra, que desta vez flui também das narinas e dos olhos. Ela
escorre pelo pescoço de Ellis, seguida por um rio de sangue
rubro e brilhante.
O dr. Juarez segura o corpo pelos cotovelos e o tronco da
vítima sofre violentos espasmos. Chaney fecha os olhos e
reza.
O médico e a enfermeira deitam o saco inerte de órgãos
infectados sobre a maca.
O coronel Ruetenik continua de pé ao lado do cadáver
ensangüentado e prossegue friamente com o exame.
— O paciente aparenta ter sofrido uma hemorragia
generalizada e maciça. Marvin, traga a caixa de amostras.
Quero várias ampolas desse excremento negro, bem como
amostras de tecido e órgãos.
Ennis Chaney precisa de toda a sua força de vontade para
não vomitar dentro do capacete. Suas pernas estão tremendo
visivelmente enquanto vê Marvin Teperman ajoelhado ao
lado do morto, enchendo vários pequenos recipientes com o
sangue contaminado. Cada amostra é cuidadosamente
colocada na caixa, um cilindro de papelão encerado.
Chaney sua profusamente. Ele se sente sufocar dentro do
traje.
Os quatro homens deixam a enfermeira fazendo a limpeza.
O coronel puxa Chaney para o lado.
— O Marvin vai voltar pra Washington com o senhor pra
completar a análise dessas amostras. Eu gostaria de ficar um
pouco mais. Se o senhor pudesse providenciar...
— Diego! — A enfermeira sai da barraca de isolamento,
cambaleando e gritando em espanhol. O dr. Juarez segura-a
pelos pulsos.
— Carajo! — Juarez olha para o pequeno rasgo no cotovelo
esquerdo do traje dela. A pele do braço exposto está
fumegando, uma mancha de vômito preto do tamanho de
uma moeda já queimando a maior parte da carne até o osso.
O coronel Ruetenik lava o braço dela com o desinfetante
verde.
— Calma, Isabel, acho que agimos a tempo. — O dr. Juarez
olha para o vice-presidente, seu rosto desesperado, com
lágrimas nos olhos. — Minha esposa...
Chaney sente um nó crescendo em sua garganta ao olhar
nos olhos apavorados da mulher condenada.
— Diego, ampute o meu braço!
— Isa...
— Diego, vai infectar o bebê!
Chaney fica o suficiente para ver Juarez e Ruetenik levando
a mulher aos gritos para a cirurgia. Depois sai correndo da
barraca, tentando tirar o capacete e tropeçando num monte
de areia. Ele cai de joelhos, procurando o zíper na gola do
traje, sentindo a bílis subindo em sua garganta.
— NÃO! — Marvin segura Chaney pelo pulso, impedindo
por um triz que ele retire o capacete. O exobiólogo borrifa
desinfetante verde no traje laranja do vice-presidente, que
vomita sobre a viseira do capacete.
Marvin espera-o terminar, depois o pega pelo braço e o
conduz até os chuveiros químicos. Os dois homens entram
debaixo do jato de desinfetante com os trajes anti-
contaminação, depois passam para um segundo chuveiro de
água, onde tiram os trajes.
Chaney joga a camisa suja num saco plástico. Ele lava o rosto
e o pescoço, depois se senta num banquinho, sentindo-se
fraco e vulnerável.
— O senhor está bem?
— Merda. Estou muito longe disso. — Ele balança a cabeça.
— Perdi o controle.
— O senhor se saiu bem. Esta é a quarta vez que visito uma
zona de contágio. O coronel já esteve em pelo menos uma
dúzia.
— Como vocês agüentam? — ele arfa, suas mãos ainda
tremendo.
— Fazemos o melhor que podemos para nos distanciar
enquanto estamos ali, depois vamos pro chuveiro, tiramos o
traje e vomitamos.
Distanciar. Malditos moinhos de vento. Estou ficando velho
demais pra lutar contra eles.
— Vamos pra casa, Marvin.
Chaney segue Teperman de volta para o helicóptero. Ao
subir a bordo, ele se vira e vê dois homens jogando mais um
cadáver na pira funerária.
É a enfermeira.
13
24 DE NOVEMBRO DE 2012
HOLLYWOOD BEACH, FLÓRIDA
As lágrimas escorrem tão copiosamente de seus olhos que
Dominique mal consegue ver a imagem de Edie no vídeo-
comunicador. O rabino Steinberg aperta com mais força a
sua mão enquanto a esposa dele esfrega as suas costas.
— Edie, não entendo. O que aconteceu? O que o Iz estava
fazendo lá?
— Investigando aqueles sons vindo da cratera.
Um uivo sobe de sua garganta. Ela esconde o rosto no peito
do rabino, soluçando incontrolavelmente.
— Dominique, olhe pra mim! — Edie ordena.
— É minha culpa.
— Pare. Isso não teve nada a ver com você. O Iz estava lá
fazendo o trabalho dele. Foi um acidente. A Guarda Costeira
mexicana está investigando...
— E a autópsia?
Edie desvia olhar, lutando para conter sua própria dor.
O rabino Steinberg encara Dominique.
— Os três corpos foram infectados pela maré negra.
Tiveram que ser queimados.
Dominique fecha os olhos, seu corpo tremendo.
O rosto de Edie volta a ocupar a tela.
— Escute, querida. Vamos fazer o funeral daqui a dois dias.
Quero que você venha pra casa.
— Eu vou. Vou ficar em casa por uns tempos. Tudo bem?
— E a sua residência?
— Já não importa mais. — Ela enxuga as lágrimas. — Edie,
eu sinto muito...
— Apenas venha pra casa.
O céu cinza da tarde está ameaçador quando Dominique sai
do portão térreo do prédio em Hollywood Beach. Ela
atravessa a A-l-A e destranca a porta do Pronto Spyder,
jogando sua valise no banco do passageiro. Ela inspira
profundamente, sentindo o cheiro do mar e da chuva
iminente, depois entra no carro.
Dominique gira a chave na ignição e aperta o botão da
partida, apoiando a testa no volante enquanto espera que o
sistema antifurto e de segurança complete sua análise.
Iz morreu. Ele morreu, e a culpa é minha. Ela fecha os olhos
e balança a cabeça. A culpa é toda minha.
O CD player liga.
O aparelho está programado no modo Digital DJ. O
computador de bordo do carro esporte registra a
temperatura de suas mãos no volante, interpretando o seu
humor.
O CD Best of the Doors é selecionado.
Pense bem. O tempo estava calmo, e Iz era experiente
demais no mar pra deixar o barco simplesmente afundar.
Algo terrível e imprevisto deve ter acontecido.
O som familiar de baquetas dançando sobre o prato da
bateria se entrelaça com seus pensamentos. Notas pungentes
de uma guitarra oriental a tocam, alimentando o seu
sofrimento, mas de alguma forma também a acalmam.
Lembranças de Iz cruzam sua mente. Uma profunda tristeza
recarrega suas emoções esgotadas quando a letra da música
chega ao seu coração, empurrando-a mais uma vez para o
abismo. Lágrimas quentes a cegam quando a estrofe
melódica de Jim Morrison ecoa em seus ouvidos.
This is the End... beautiful friend,
This is the End... my only friend, the End.
Hipnotizada pelo surreal epitáfio, ela levanta a cabeça do
volante e vê os primeiros pingos de chuva batendo no pára-
brisa. Ela fecha os olhos para o aguaceiro, e as lembranças de
Iz, Edie e Mick rodopiam em sua mente, fora de controle.
— Você parece cansada, menina...
— Apenas venha pra casa...
Lost in a romance, wilderness of pain.
— Se eu não estivesse... aprisionado... você acha... você
acha que poderia me amar?
And all... the children... are insane,
Waiting for the summer rain, yeahhh...
— Quatro Ahau, três Kankin. Você sabe que dia é esse, não
sabe, Dominique?
— Você acredita em Deus?
— Você parece cansada, menina...
— Você acredita no mal?
There's danger on the edge of town...
— Você precisa fazer alguma coisa! A cratera de
Chicxulub... o relógio está andando...
— Querida, você é uma só. Não pode achar que vai salvar o
mundo...
— O relógio está andando... e nós vamos todos morrer!
— Não pode achar que vai salvar o mundo...
— O relógio está andando...
Father, I want to kill you...
Dominique cai sobre o volante, seus soluços competindo
com as vociferações de luxúria edipiana de Jim Morrison.
Abrandando-se de novo, as notas orientais retomam o
controle.
This is the End... beautiful friend,
This is the End... my only friend, the End.
— Nenhum de nós tem controle sobre o jogo ou as cartas
que recebemos. O que temos é responsabilidade total sobre
como jogamos com essas cartas.
O motor do Spyder arranca, assustando-a.
This is the End...
Ela desliga o som e enxuga as lágrimas, enquanto a chuva
continua bombardeando o pára-brisa. Ela olha para cima e se
vê no espelho retrovisor. Jogar com as cartas que
recebemos.
Por vários minutos, ela continua a olhar para a frente, a
determinação substituindo a dor, sua mente se
concentrando num plano. Então ela ativa o telefone do
carro e tecla o número do rabino Steinberg.
— Sou eu. Não, ainda estou aqui embaixo. Tenho que fazer
uma coisa importante antes de ir pra Sanibel, mas vou
precisar da sua ajuda.
14
25 DE NOVEMBRO DE 2012
MIAMI, FLÓRIDA
21h54
O Pronto Spyder preto vira à direita na 23rd Street, faz uma
conversão e estaciona ao lado de um poste telefônico na
calçada, em frente ao muro de concreto branco de 6 metros
de altura. A rua lateral, que ladeia o sanatório ao norte, vira
para o oeste por mais duas quadras antes de terminar numa
tecelagem abandonada. O bairro é esquálido e a rua está
deserta, exceto por um furgãozinho Dodge estacionado no
fim da quadra.
Dominique sai do carro, sentindo a adrenalina. Ela abre o
porta-malas, olha se não há ninguém por perto, e tira 15
metros de uma corda branca de náilon de um centímetro e
meio de espessura. A corda tem nós a intervalos de meio
metro. Abaixando-se como se quisesse verificar o pneu
traseiro direito, ela amarra uma ponta da corda na base do
poste, voltando depois para o porta-malas.
Ela abre a caixa grande de papelão e tira dela o modelo de
helicóptero de controle remoto de 80 centímetros. Ele tem
uma garra mecânica sob o minúsculo trem de pouso.
Dominique posiciona o último nó da ponta solta da corda na
garra e a fecha.
Certo, não estrague tudo agora. Mantenha a corda longe do
arame farpado.
Ela liga o motor à bateria do helicóptero, fazendo uma careta
ao ouvir o zumbido agudo e barulhento dos rotores. O
brinquedo decola, balançando ao lutar para puxar a corda.
Dominique manobra o aeromodelo numa subida em vertical
bem acima do muro de concreto, usando todo o
comprimento da corda.
Isso, com calma...
Usando o controle, ela guia o helicóptero para além do
muro, sobre o jardim, e, acionando a garra, solta a corda.
A ponta livre cai no jardim e o resto da corda cai entre as
voltas de arame farpado, pousando no topo da barreira de
concreto.
Perfeito. Vai! Dominique empurra o controle para a direita.
O aeromodelo voa para a tecelagem no fim da rua e
desaparece por cima do telhado do imóvel abandonado. Ela
desliga o controle remoto e ouve o som revelador do
plástico se despedaçando a distância.
Fechando o porta-malas, ela volta para o carro e entra no
estacionamento dos funcionários.
Dominique olha o relógio: 22:07. Quase na hora. Ela tira do
porta-luvas, a vela queimada e a chave de vela, desliga o
motor do carro e abre o capô.
Fecha o capô três minutos depois, usando um pano úmido
para limpar a graxa das mãos. Depois de retocar a
maquiagem, ajeita por um momento o top aderente e cobre
seu decote revelador com o suéter de cashmere cor-de-rosa.
Certo, Mick, agora é com você.
Ela corre para a entrada do Centro, rezando para que Mick
estivesse lúcido quando eles conversaram naquela tarde.
22h14
Michael Gabriel está sentado na beirada do colchão fino,
seus olhos negros perdidos, olhando para o chão. Sua boca
está aberta e a saliva pinga do lábio inferior. O lado de
dentro do antebraço esquerdo, coberto de hematomas, está
virado para cima, apoiado na coxa, um convite ao
açougueiro. O braço direito está ao lado do corpo, o punho
semicerrado. Ele ouve o enfermeiro se aproximando.
— Ei, Marvis, é verdade? É a última noite do vegetal aqui?
Mick respira fundo, tentando acalmar seu coração acelerado.
A presença do vigia do sétimo andar complica as coisas.
Você tem só uma chance. Derrube os dois, se precisar.
Marvis desliga o televisor do núcleo e termina de limpar as
manchas de suco de uva da mesinha de café.
— Sim. Amanhã o Foletta vai levá-lo pra Tampa.
As portas se abrem. Com sua visão periférica, Mick vê o
sádico se aproximando, a sombra do outro homem
esperando perto da porta.
Ainda não. O Marvis vai fechar a porta se você pular. Espere
até ele ir embora. Deixe o animal te espetar.
O enfermeiro segura o pulso esquerdo de Mick e empurra a
seringa na veia inchada, quase quebrando a ponta da agulha
ao injetar o Thorazine no vaso sanguíneo danificado.
Mick contrai os músculos abdominais com a dor, forçando
seu tronco a não se encolher.
— Ei, Barnes, vá devagar com ele, ou eu te denuncio de
novo.
— Vá se foder, Marvis.
Marvis balança a cabeça e se afasta.
Os olhos de Mick giram para o alto. Seu corpo vira gelatina e
ele desaba sobre o lado esquerdo, olhando para o teto, como
um zumbi.
Barnes verifica que Marvis foi embora e abre o zíper da
calça.
— Ei, amor, quer provar uma coisa? — Ele se curva e se
aproxima do rosto de Mick. — Por que não abre essa
boquinha linda e...
O enfermeiro não vê o punho, só a explosão de luz
avermelhada quando os nós dos dedos médio e anular de
Mick atingem sua têmpora exposta. Barnes desaba no chão,
abalado, mas ainda consciente. Mick o puxa pelo cabelo e o
olha nos olhos.
— Doce ou travessura, filho da puta? — Ele enfia o joelho
no rosto de Barnes, tomando cuidado para não deixar o
sangue espirrar no uniforme do enfermeiro.
22h18
Dominique digita a senha numérica e espera que a câmera
infravermelha percorra o seu rosto. A luz vermelha se torna
verde, deixando-a entrar no posto central da segurança.
Raymond se vira para encará-la.
— Ora, olha só quem está aqui. Veio se despedir do seu
namorado psicótico?
— Você não é meu namorado.
Raymond dá um murro nas barras de ferro da porta.
— Nós dois sabemos de quem eu estou falando. Daqui a
pouco vou fazer uma visitinha pra ele. — Os dentes
amarelos aparecem. — E, gatinha, eu e o seu garoto vamos
nos divertir.
— Faça o que quiser — diz ela, se encaminhando para o
elevador.
— Que história é essa?
— Eu vou embora. — Dominique tira um envelope da
bolsa. — Está vendo isto? É uma carta de demissão. Vou
largar a residência e abandonar o curso. O Foletta está na sala
dele?
— Você sabe que não.
— Ótimo, então vou deixar isso com o Marvis. Se não for
muito além das suas capacidades, libere o acesso pro sétimo
andar.
Raymond a olha com desconfiança. Ele ativa o elevador,
apertando o botão do sétimo andar no seu painel, depois fica
olhando para ela no monitor das câmeras de segurança.
Marvis está para deixar sua mesa e ir procurar Barnes quando
as portas do elevador se abrem.
— Dominique? O que você está fazendo aqui?
Ela pega Marvis pelo braço e dá a volta na mesa com ele,
virando-o de costas para o elevador e o corredor até o
núcleo de Mick.
— Eu queria falar com você, mas não queria que aquele
enfermeiro, o Barnes, ouvisse.
— Ouvisse o quê?
Dominique lhe mostra o envelope.
— Estou indo embora.
— Por quê? O semestre está quase acabando.
Seus olhos se enchem de lágrimas.
— Meu... meu pai morreu num acidente de barco.
— Caramba. Eu sinto muito.
Ela soluça e deixa que Marvis a console, encosta a cabeça no
ombro dele, seus olhos sempre no corredor que leva para o
núcleo 7-C.
Mick cambaleia para fora do seu quarto, usando o uniforme
e o boné de beisebol de Barnes. Ele bate a porta e se dirige
para o elevador.
Dominique põe a mão no pescoço de Marvis, como se o
estivesse abraçando, impedindo que ele se vire.
— Você me faria o favor de entregar esta carta pro dr.
Foletta?
— Claro. Você quer sair, conversar, fazer alguma coisa?
As portas do elevador se abrem. Mick cambaleia para
dentro. Ela se afasta.
— Não, já estou atrasada. Preciso pegar a estrada. O funeral
é amanhã de manhã. Barnes, segure o elevador, por favor...
Um braço impede que as portas se fechem. Dominique dá
um beijo no rosto de Marvis.
— Se cuida.
— Você também.
Dominique entra no elevador e as portas se fecham atrás
dela. Em vez de olhar para Mick, ela dirige o olhar
diretamente para a câmera localizada no canto do teto do
elevador.
Distraidamente, ela mexe na bolsa.
— Qual o andar, sr. Barnes?
— Terceiro.
Ela ouve o cansaço na voz dele. Ergue três dedos para a
câmera, depois um dedo, e continua a olhar para a lente
enquanto Mick pega o pesado alicate de corte da outra mão
dela e o enfia no bolso.
O elevador para no terceiro andar. As portas se abrem.
Mick sai, trôpego, quase caindo de cara no chão.
As portas se fecham.
Mick se vê sozinho no corredor. Cambaleia para a frente, os
azulejos verdes do corredor girando em sua cabeça. A dose
maciça de Thorazine o está derrotando, e não há nada que
ele possa fazer para reagir, agora. Cai duas vezes, depois se
apóia na parede e usa todas as forças para sair no jardim.
O ar noturno o reanima momentaneamente. Ele consegue
alcançar os degraus de concreto e abraçar o corrimão de aço.
Três lances íngremes de escada rodopiam em sua visão. Ele
pisca com força, incapaz de desanuviar os olhos. Muito bem,
você consegue. Um passo... agora ponha o pé no chão. Ele
tropeça ao descer os três primeiros degraus, depois consegue
se segurar. Se concentra! Um de cada vez. Não se incline...
Ele rola os últimos 3 metros, batendo dolorosamente com as
costas no chão.
Por um momento perigoso, ele deixa que seus olhos se
fechem, dando ao sono uma oportunidade de tomar conta.
Não! Ele se vira, fica de pé e arrasta as pernas dolorosamente
rumo ao monstro de concreto que rodopia à sua frente.
* * *
Dominique desabotoa o suéter de cashmere, respira fundo e
sai do elevador. Ao se aproximar do posto de segurança,
corre os olhos pela dúzia de monitores às costas de
Raymond, que mostram continuamente imagens de vários
pontos do prédio.
Ela avista a câmera do jardim. Uma figura de uniforme está
lutando para escalar o muro nu de concreto.
Raymond ergue a cabeça e olha para o seu decote.
Os braços de Mick parecem de borracha. Por mais que ele
tente, não consegue fazer os músculos obedecerem aos seus
comandos.
Ele sente o nó da corda escorregar dos seus dedos e cai de 2
metros e meio de altura, quase quebrando os dois tornozelos
na terra dura.
Dominique vê Mick cair e sufoca um grito. Antes que
Raymond possa reagir, ela tira o suéter, revelando o seu
decote.
— Meu Deus, por que vocês deixam isso aqui tão quente?
Os olhos de Raymond estão saltados. Ele se levanta da
cadeira e fica de pé ao lado da porta.
— Você gosta de me provocar, não gosta?
Com a visão periférica, ela vê Mick ficar de pé. Ele começa a
subir de novo. A imagem muda.
— Ray, vamos ser francos, com tantos anabolizantes nesse
seu corpo, você não consegue ficar de pau duro tempo
suficiente pra me dar prazer.
Raymond abre a porta.
— Pra alguém que quase quebrou meu pescoço há três
semanas você tem uma boca bem suja.
— Você não entende mesmo, não é? Nenhuma mulher
gosta de ser forçada.
— Sua vagabundinha. Você quer me fazer violar a
condicional, não quer?
— Talvez eu só esteja tentando pedir desculpas.
Vamos, Mick, mexa-se...
A dor o mantém consciente.
Mick cerra mais os dentes, gemendo ao se puxar para cima,
andando na parede como um alpinista. Mais três passos. Só
mais três, seu babaca, vamos. Dois agora. Mais dois, mexa
esses braços, aperte mais a corda. Isso, isso. Pare, respire
fundo. Certo, o último, vamos...
Ele chega ao alto do muro. Segurando-se de forma precária,
enrola rapidamente algumas voltas da corda no braço
esquerdo para não cair. O rolo de arame farpado está a
centímetros de sua testa. Mick pega o alicate do bolso de trás
e abre as lâminas sobre uma parte do arame à direita da
corda.
Ele aperta o alicate com toda a força, até que o aço se
quebra. Reposicionando o alicate, luta para se concentrar na
outra parte do arame através do nevoeiro do Thorazine, que
já toma conta de sua visão periférica.
Raymond se apóia na parede e olha para os dois volumes
perfeitos sob o top de Dominique.
— O acordo é o seguinte, gatinha. A gente faz bem gostoso,
e eu prometo que deixo teu garoto em paz.
Ela finge se coçar e olha rapidamente para o monitor através
das barras da porta. Mick ainda está cortando o arame
farpado.
Enrole esse porco.
— Quer fazer aqui mesmo?
A mão dele lhe sobe pelo braço.
— Você não vai ser a primeira.
Uma onda de náusea toma conta dela quando ele passa a
ponta do indicador na auréola do seu mamilo.
Mick retira a seção do arame farpado e sobe no alto do
muro, equilibrando-se precariamente sobre o peito. Ele se
aproxima da beirada e olha para o outro lado, para a queda de
6 metros.
— Caramba...
Grunhindo, ele puxa a ponta livre da corda em sua direção e
a enrola várias vezes nas outras voltas de arame farpado,
cortando-se nas farpas. Enrolando a corda nos pulsos, ele
passa por cima do muro — e cai.
Mick cai 3 metros e meio antes que a corda se enrosque no
arame farpado, detendo a sua queda. Pendurado pelos
pulsos, sente seu peso puxando as voltas de arame do alto do
muro enquanto cai para a calçada.
Segundos depois, ele está de quatro, olhando para os faróis
que se aproximam como um animal desorientado.
— Espere, Ray, eu disse pra parar! — Dominique tira a mão
dele de seu seio e puxa uma latinha de spray de pimenta da
bolsa.
— Sua puta, você está brincando comigo!
Ela recua.
— Não, apenas decidi que a vida do Mick não vale o que
você está pedindo.
— Sua piranha...
Ela se vira e apóia o rosto sobre o sensor. Vamos... Ela
espera pelo barulho da trava, depois abre a porta e sai.
— Tudo bem, gatinha, você fez sua escolha. Agora o seu
garoto vai ter que agüentar. — Raymond abre a gaveta da
escrivaninha, tira uma mangueira de um centímetro e meio
de espessura e vai para o elevador.
Dominique chega ao estacionamento, aliviada ao ver o
furgãozinho Dodge pegando a Route 441. Ela abre o capô do
carro e aperta a tecla pré-programada com o número do
serviço mecânico de emergência.
O elevador para no sétimo andar. Raymond desliga a energia
e sai dele.
Marvis ergue o olhar.
— Algum problema?
— Continue vendo TV, Marvis. — Raymond anda pelo
núcleo 7-C, parando no quarto 714. Ele digita a senha.
O quarto está mal iluminado. O cheiro azedo de desinfetante
e roupas sujas enche o ar.
O ocupante da cela está deitado no colchão, de costas para
Raymond, com o lençol puxado até as orelhas.
— Boa noite, babaca. Estou trazendo um presentinho da tua
namorada.
Raymond desce a mangueira com força no rosto do homem
adormecido.
Um grito agonizante. O homem tenta se levantar. O
grandalhão o derruba de novo com um pontapé, depois
espanca suas costas e seus ombros várias vezes, até
descarregar toda a testosterona.
Raymond fica perto do corpo, ofegante com o esforço.
— Foi bom pra você, seu merda? Espero que tenha sido,
porque foi muito bom pra mim.
Ele puxa o lençol.
— Puta que pariu...
O rabino Steinberg para o furgãozinho Dodge no
acostamento, perto do latão de lixo atrás da loja de
conveniência. Ele abre a porta lateral, tira a corda de náilon
e a joga rapidamente no lixo. Depois, entra na traseira e
ajuda Mick a se levantar e a se sentar no assento.
— Você está bem?
Mick lhe dirige um olhar sem foco.
— Thorazine.
— Eu sei. — O rabino levanta a cabeça de Mick e lhe dá um
gole d'água, fazendo uma careta ao ver os hematomas no seu
braço. — Você vai ficar bem. Descanse, a viagem é longa.
Mick está inconsciente antes que sua cabeça pouse no banco
do carro.
O guincho já está puxando o Pronto Spyder sobre a sua
traseira quando as primeiras viaturas da polícia de Dade
County chegam.
Raymond sai do prédio para recebê-los e vê Dominique.
— É ela! Prendam essa mulher! Dominique finge surpresa.
— Do que você está falando?
— Vá se foder, você sabe do que estou falando. Gabriel
fugiu.
— O Mick fugiu! Meu Deus, como? — Ela olha para os
policiais. — Não podem achar que eu tive alguma coisa a ver
com isso. Estou parada aqui há vinte minutos.
O motorista do guincho balança a cabeça.
— É verdade, agente. Eu sou testemunha. E nós não vimos
nada.
Um Lincoln Continental freia diante da entrada principal.
Anthony Foletta sai do carro usando um agasalho esportivo
amarelo-claro.
— Raymond, o que... Dominique, que diabos você está
fazendo aqui?
— Vim entregar minha carta de demissão. Meu pai morreu
num acidente de barco. Estou largando a residência. — Ela
olha para Raymond. — Parece que o seu capanga aqui fez
uma besteira e tanto.
Foletta olha para ela e puxa um dos policiais para o lado.
— Agente, sou o dr. Foletta, diretor deste Centro. Essa
mulher trabalhava com o interno que fugiu. Se os dois
planejaram isso juntos e ela ia dar carona pra ele, é bem
provável que ele ainda esteja aqui dentro.
O policial instrui seus homens a entrarem no Centro com os
cães, depois volta a sua atenção para Dominique.
— Moça, pegue suas coisas, você vem comigo.
Diário de Julius Gabriel
Foi no final do outono de 1974 que meus dois colegas e eu
chegamos à Inglaterra, todos muito felizes por voltar para a
"civilização". Eu sabia que Pierre havia perdido o apetite
pelo trabalho e queria voltar para os Estados Unidos. A
pressão de sua família politicamente poderosa estava
finalmente persuadindo-o a se candidatar. O que eu mais
temia era que ele insistisse que Maria o acompanhasse.
Sim, temia. Para dizer a verdade, eu estava apaixonado pela
noiva do meu melhor amigo.
Como alguém permite que algo assim aconteça? Ponderei
essa questão mil vezes. Os assuntos do coração são difíceis
de justificar, embora, de início, eu tenha certamente
tentado. Era luxúria, me convenci, causada pela própria
natureza do nosso trabalho. A arqueologia tende a ser uma
profissão isolada. Equipes muitas vezes são obrigadas a morar
e trabalhar em condições primitivas, abrindo mão dos
prazeres mais simples da privacidade e da higiene para poder
completar suas tarefas. O pudor perde lugar para a
praticidade. O banho noturno numa fonte de água doce, o
ritual diário de se vestir e se despir — a própria coabitação
pode se tornar um festim para os sentidos. Um ato
aparentemente inocente pode inflamar as gônadas e ativar o
coração, enganando facilmente a mente enfraquecida.
No meu íntimo, eu sabia que tudo isso eram desculpas, pois
a beleza morena de Maria havia me intoxicado desde que
Pierre nos apresentara, no nosso primeiro ano juntos em
Cambridge. Aquelas maçãs do rosto altas, o longo cabelo
negro, aqueles olhos de ébano que irradiavam uma
inteligência quase animal — Maria era uma visão que
capturou a minha alma, um relâmpago que atingiu o meu
ser, mas me proibia de agir, sob pena de destruir minha
amizade com Borgia.
Mas eu não me entreguei. Convencido de que Maria devia
continuar sendo uma garrafa de vinho delicioso que eu
ansiava por saborear, mas jamais poderia abrir, trancafiei
minhas emoções e joguei fora a chave diabólica — ou pensei
ter feito isso.
Ao viajarmos de Londres para Salisbury naquele dia de
outono, senti que uma bifurcação na estrada esperava o
nosso trio, e que um de nós, provavelmente eu, seguiria por
um caminho solitário.
Stonehenge é sem dúvida um dos lugares mais misteriosos
da Terra, um templo bizarro de monumentais pedras
verticais, dispostas num círculo perfeito como que por
gigantes. Como havíamos visitado o sítio durante nosso
curso de graduação, nenhum de nós esperava realmente
encontrar qualquer nova revelação naquelas extensas
planícies verdejantes do sul da Inglaterra.
Estávamos enganados. Mais um pedaço do quebra-cabeça
estava lá, olhando-nos de frente.
Embora nem de longe tão antigo quanto Tiahuanaco,
Stonehenge incorpora as mesmas façanhas aparentemente
impossíveis de Engenharia e Astronomia que já vimos antes.
Acredita-se que o próprio local fosse um ímã espiritual para
os fazendeiros que chegaram às planícies depois do fim da
última Era do Gelo. A encosta da colina devia certamente
ser considerada sagrada, pois num raio de 3 quilômetros do
monumento ficam nada menos que trezentos túmulos,
vários dos quais nos forneceriam pistas vitais ligando a área a
artefatos encontrados nas Américas Central e do Sul.
A datação por carbono nos conta que Stonehenge foi
construído aproximadamente 5 mil anos atrás. A primeira
fase da construção começou com um traçado preciso e
circular de 56 mastros de madeira parecidos com totens,
cercados por uma vala e uma lombada. Pequenas pedras
azuis, transportadas de uma cordilheira a 150 quilômetros
dali, substituiriam mais tarde esses marcos de madeira.
Elas, por sua vez, seriam substituídas por pedras
monumentais, cujos restos ainda estão presentes nos dias de
hoje.
As monstruosas pedras verticais que formam Stonehenge
são chamadas pedras sarsan. São feitas da rocha mais dura da
região e são encontradas na cidade de Avery, uns 30
quilômetros ao norte. A planta original de Stonehenge
consistia em trinta dessas pedras, cada uma pesando
incríveis 25 a 40 toneladas. Cada uma das grandes colunas
de pedra precisava ser transportada por muitos quilômetros
de terreno acidentado, depois posta de pé para formar um
círculo perfeito de 30 metros de diâmetro. Lintéis de 9
toneladas ligavam o alto dos sarsans, trinta ao todo. Cada
lintel precisou ser erguido a 6 metros do chão, depois
colocado no lugar sobre os sarsans. Para assegurar um
encaixe perfeito, os engenheiros antigos escavaram
projeções arredondadas no alto de cada coluna. Esses
"plugues" se encaixavam em "soquetes" ocos na parte
inferior de cada lintel, permitindo que as peças se unissem
como blocos de Lego gigantescos.
Depois que o monumental círculo de pedra estava
completo, os construtores ergueram cinco conjuntos de
trilithons, dois sarsans verticais unidos por um só lintel.
Cada um desses trilithons, formados pelas maiores pedras do
complexo, tem 7 metros e meio de altura, com mais um
terço de sua massa enterrado no chão.
Cinco trilithons foram dispostos dentro do círculo,
formando uma ferradura cuja boca dá para um altar de pedra
alinhado com o solstício de verão. O trilithon central, o
maior de todos, foi alinhado com o solstício de inverno, 21
de dezembro, o dia da profecia maia, um dia que a maioria
das culturas antigas associa com a morte.
Como os aldeões da Idade da Pedra, na Inglaterra antiga,
foram capazes de arrastar sarsans de 36 toneladas por 30
quilômetros de terreno acidentado, irregular? Como
conseguiram levantar lintéis de 8 mil quilos a 6 metros do
chão e encaixá-los perfeitamente no lugar? Além disso, que
missão poderia ser importante a ponto de motivar esse povo
pré-histórico a completar uma tarefa tão incrível?
Não sobreviveram registros escritos que identificassem os
construtores de Stonehenge, mas uma lenda popular
(embora absurda) aponta Merlin, o mago da corte do rei
Artur, como o cérebro por trás da empreitada. Diz-se que o
sábio barbado projetou o templo para funcionar como
observatório cósmico e calendário celestial, além de um
lugar de comunhão e adoração, até que foi misteriosamente
abandonado em 1.500 a.C.
Enquanto Pierre voltava para Londres, Maria e eu saímos de
Stonehenge para explorar os grandes túmulos em formato de
morros que rodeiam o monumento, esperando encontrar os
restos de crânios alongados que ligariam os sítios das
Américas Central e do Sul àquele cemitério antigo. O maior
túmulo da área é um subterrâneo de 100 metros, também
construído com sarsans. Dentro desse túmulo estão os
esqueletos de 47 indivíduos. Por algum motivo, os ossos
foram anatomicamente separados em câmaras diferentes.
O que encontramos não foi tão surpreendente quanto o que
não encontramos — faltavam ao menos uma dúzia de
crânios dos maiores indivíduos!
Passamos os quatro meses seguintes indo de túmulo em
túmulo, sempre com os mesmos resultados. Finalmente,
chegamos ao que muitos arqueólogos consideravam o mais
sagrado deles, uma fortificação de pedra localizada sob um
túmulo em Loughcrew, região remota do centro da Irlanda.
Entalhados nas paredes de sarsan desse túmulo estão
hieróglifos magníficos, o principal desenho sendo uma
espiral. Eu me lembro do rosto de Maria, iluminado pela
lanterna, quando seus olhos escuros examinaram os bizarros
emblemas. Meu coração pulou quando seu rosto se acendeu,
reconhecendo-os. Arrastando-me da tumba para a luz do
dia, ela correu até o nosso carro e começou a abrir caixas
contendo centenas de fotos que tiramos juntos,
sobrevoando o deserto de Nazca num balão de ar quente.
— Julius, olhe, é aqui!— ela proclamou, enfiando-me uma
fotografia em preto e branco sob os olhos.
A foto era da pirâmide de Nazca, um dos desenhos mais
antigos do deserto, que acreditávamos ser de extrema
importância. Dentro de seus contornos triangulares estão
duas figuras: uma, um animal invertido de quatro patas, a
outra, uma espiral.
A espiral era idêntica à dos entalhes encontrados dentro do
túmulo.
Maria e eu estávamos empolgados com a descoberta. Ambos
compartilhávamos havia algum tempo a convicção de que os
desenhos de Nazca representavam uma mensagem antiga de
salvação relacionada com a profecia do fim do mundo, a qual
era destinada ao homem moderno. (Por que outro motivo o
artista misterioso desenharia figuras tão grandes que só
poderiam ser vistas de uma aeronave?)
Nosso entusiasmo foi esvaziado pela próxima pergunta
lógica: Que pirâmide o desenho de Nazca representava?
Maria insistia que a estrutura tinha que ser a Grande
Pirâmide de Gizé, o maior templo de pedra do mundo. Pela
sua lógica, Gizé, Tiahuanaco, Sacsayhuaman e Stonehenge
eram todos formados por pedras colossais, suas datas de
construção eram próximas (ou nós pensávamos que fossem)
e o ângulo da pirâmide de Nazca se parecia muito com as
laterais íngremes da pirâmide egípcia.
Eu não me convenci tão facilmente. Minha teoria era de que
muitos dos desenhos mais antigos de Nazca serviam como
marcos de navegação, referências para nos apontar a direção
certa. Ao redor da pirâmide de Nazca havia várias pistas que
eu acreditava terem sido deixadas para que identificássemos
a misteriosa figura triangular.
O mais importante desses ícones aparece dentro da borda da
pirâmide, abaixo da espiral. É a imagem de um animal
invertido de quatro patas, que eu supus ser um jaguar, talvez
o bicho mais reverenciado de toda a Mesoamérica.
A segunda pista é o macaco de Nazca. Esse imenso ícone,
desenhado numa só linha ininterrupta, tem uma cauda que
termina em espiral, idêntica à forma que aparece dentro da
pirâmide.
Os maias glorificavam o macaco, tratando-o como outra
espécie de pessoa. O mito da criação do Popol Vuh diz que o
quarto ciclo do mundo foi destruído por um grande dilúvio.
As poucas pessoas que sobreviveram, acredita-se, foram
transformadas em macacos. O fato de macacos não existirem
em Gizé e na região sul do Peru indica, para mim, que a
pirâmide retratada nos pampas de Nazca deve se localizar na
Mesoamérica.
Baleias tampouco existem no deserto, no entanto, há
desenhos de três desses animais majestosos no platô de
Nazca. Expondo a teoria de que o misterioso artista usara as
baleias para representar no pampa a água cercando três
lados, tentei convencer Maria de que a pirâmide em questão
devia representar um dos templos maias localizados na
península de Yucatán.
De sua parte, Pierre Borgia não estava interessado em
nenhuma das teorias. Perseguir fantasmas maias não
importava mais para o noivo de Maria; o que importava era o
poder. Como já falei, eu previra esse fato havia algum
tempo. Enquanto Maria e eu estávamos ocupados
explorando os túmulos, Pierre concluía seus planos de voltar
aos Estados Unidos e se candidatar ao Congresso. Dois dias
depois de termos feito nossa descoberta, ele anunciou, com
grande pompa e circunstância, que já era tempo, para ele e a
futura sra. Borgia, de se dedicarem a coisas mais importantes.
Aquilo partiu o meu coração.
Os planos para o casamento foram feitos rapidamente. Pierre
e Maria se casariam na Catedral de São João, e eu seria o
padrinho.
O que eu podia fazer? Me sentia desesperado, acreditando de
todo coração que Maria estava destinada a ser minha alma
gêmea. Pierre a tratava como uma posse, não como sua
parceira. Ela era o seu troféu, a sua Jackie Onassis — um
enfeite para o seu braço, que ele achava útil para suas
ambições políticas como primeira-dama. Ele a amava?
Talvez, pois que homem seria capaz de não amá-la? Mas será
que ela o amava de verdade?
Isso eu precisava saber.
Foi só na véspera do dia do casamento que consegui tomar
coragem de confessar-lhe o meu amor em voz alta. Olhando
naqueles lindos olhos, nadando em lagos negros de veludo,
eu podia imaginar os deuses sorrindo para a minha alma
torturada quando Maria puxou minha cabeça para o seu
peito e soluçou.
Ela sentia a mesma coisa por mim! Maria confessou que
vinha rezando para que eu tomasse a iniciativa e a salvasse
de uma vida com Pierre, que tinha o seu carinho, mas não o
seu amor.
Naquele momento abençoado, eu me tornei sua salvação e
ela, a minha. Como amantes desesperados, fugimos naquela
noite, cada um deixando um bilhete para Pierre, pedindo
perdão por nossos atos e nossas intenções imperdoáveis,
nenhum dos dois forte o suficiente para encarar o homem.
Vinte horas depois, chegamos ao Egito — o sr. e a sra. Julius
Gabriel.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1974-75 páginas 45-62
Diário Fotográfico, Disquete 2: Nome do arquivo: NAZCA,
Fotos 34 & 65
Diário Fotográfico, Disquete 3: Nome do arquivo:
STONEHENGE, Desenho 6
15
27 DE NOVEMBRO DE 2012
ILHA DE SANIBEL, FLÓRIDA
O grasnar agudo de uma gaivota faz Mick abrir os olhos.
Ele está deitado numa cama de casal, com os dois pulsos
atados às laterais do estrado. Seu antebraço esquerdo está
enfaixado. Um tubo de soro está espetado no direito.
Ele está num quarto residencial. Faixas de sol dourado
refletem-se na parede oposta, entrando pelas venezianas que
se agitam sobre sua cabeça. Ele sente o cheiro de sal no ar.
Consegue ouvir o som da arrebentação do oceano entrando
pela janela aberta.
Uma mulher grisalha, de uns 70 anos, entra no quarto.
— Então você acordou. — Ela abre o velcro de seu pulso
direito e verifica o frasco de soro.
— A senhora é a Edie?
— Não, sou Sue, esposa do Carl.
— Quem é Carl? O que estou fazendo aqui?
— Achamos perigoso levar você pra casa da Edie. A
Dominique está lá, e...
— Dominique? — Mick se esforça para erguer o corpo, mas
a tontura o empurra para baixo de novo como uma mão
pesada e invisível.
— Calma aí, amigo. Você logo, logo, vai ver a Dominique.
No momento, a polícia está de olho nela, esperando que
você apareça. — Ela retira o tubo de soro e aplica um Band-
Aid no seu braço.
— A senhora é médica?
— Fui assistente no consultório odontológico do meu
marido por 38 anos. — Metodicamente, ela enrola o tubo no
frasco de soro.
Mick nota seus olhos vermelhos.
— O que tinha no soro?
— Sobretudo vitaminas. Você estava mal quando chegou,
dois dias atrás. Nada mais do que desnutrição, embora o seu
braço esquerdo estivesse num estado deplorável. Você
dormiu por quase 48 horas. Na noite passada, teve um
pesadelo feio, gritava no sono. Tive que prender seus braços
para que não arrancasse o soro.
— Obrigado. E obrigado por me tirar daquele hospital.
— Agradeça à Dominique. — Sue enfia a mão no bolso do
casaco.
Mick fica surpreso ao vê-la puxar um revólver Magnum .44.
Ela aponta a arma para a sua virilha.
— Ei, espere aí...
— Meu marido se afogou há alguns dias, a bordo do barco
do Isadore. Três homens morreram enquanto investigavam
o lugar do Golfo que você falou à Dominique. O que tem lá
embaixo?
— Não sei. — Ele olha para a arma, que treme nas mãos da
idosa. — A senhora poderia mirar num órgão menos vital?
— A Dominique contou tudo a seu respeito; por que você
estava preso, sobre o biruta do seu pai e suas histórias do fim
do mundo. Pessoalmente, estou me lixando se você acredita
nessas maluquices apocalípticas, a única coisa que me
importa é descobrir o que aconteceu com meu Carl. Pra
mim, você é um fugitivo perigoso. Basta que me olhe torto e
vou meter bala em você.
— Entendi.
— Não entendeu não. A Dominique se arriscou muito pra
te libertar. Até agora, tudo na sua fuga aponta pra uma falha
do enfermeiro, e não pra ela, mas a polícia ainda está
desconfiada. Estão vigiando a Dominique de perto, o que
significa que estamos todos em risco. Esta noite vamos te
levar pro barco do Rex. Tem um minissubmarino a bordo...
— Um minissubmarino?
— Isso mesmo. O Rex o usava pra procurar navios
naufragados. Você vai usá-lo pra descobrir o que está
enterrado no leito do oceano. Até lá, vai ficar neste quarto e
descansar. Se tentar fugir, te mato e entrego seu corpo à
polícia pra pegar o dinheiro da recompensa.
Ela levanta o lençol. O tornozelo esquerdo de Mick está
algemado ao estrado.
— Agora você entendeu.
NASA: Centro de Vôo Espacial Goddard
Greenbelt, Maryland
Ennis Chaney, contrariado, segue o técnico da NASA pelo
corredor antisséptico de azulejos brancos.
O vice-presidente não está de bom humor. Os Estados
Unidos estão à beira da guerra, e seu lugar é com o
presidente e o Estado-Maior, não à disposição do diretor da
NASA. Maldito caolho, com certeza me botou em mais uma
de suas canoas furadas...
Ele fica surpreso ao ver um vigia parado à porta da sala de
reuniões.
Ao ver Chaney, o vigia digita uma senha e abre a porta.
— Pode entrar, senhor, estão à sua espera.
O diretor da NASA, Brian Dodds, está sentado à cabeceira da
mesa de reuniões. Ao seu lado estão Marvin Teperman e
uma mulher de 30 e tantos anos, de jaleco branco.
Chaney nota as olheiras escuras de Dodds.
— Vice-presidente, entre. Obrigado por ter vindo tão
prontamente. Esta é a dra. Debra Aldrich, uma das principais
geofísicas da NASA, e acho que já conhece o dr. Teperman.
— Olá, Marvin. Dodds, é bom que isso seja importante...
— É. Sente-se, senhor. Por favor.
Dodds toca num botão do teclado à sua frente. As luzes da
sala enfraquecem e uma imagem holográfica do Golfo do
México aparece sobre a mesa.
— Esta imagem vem do satélite de observação
oceanográfica SEASAT, da NASA. Como o senhor pediu,
começamos a rastrear o Golfo para tentar isolar as origens da
maré negra.
Chaney observa a imagem mudar, passando para um trecho
de mar rodeado pela sobreposição de um círculo pontilhado
branco.
— Usando o Radar de Abertura Sintética da Faixa X,
conseguimos rastrear a maré negra até estas coordenadas,
uma área localizada a uns 56 quilômetros a noroeste da
península de Yucatán. Agora observe.
Dodds aperta outro botão. O mar holográfico se dissolve em
manchas brilhantes verdes e azuis, no centro das quais está
um círculo branco brilhante, sua borda se esfumando em
tons mais frios de amarelo, depois vermelho.
— Estamos vendo uma imagem térmica da área em questão.
Como pode ver, algo muito grande está lá embaixo,
irradiando um calor tremendo.
— De início, pensamos ter encontrado um vulcão
submarino — acrescenta a dra. Aldrich —, mas o
levantamento geológico realizado pela Companhia
Petrolífera Nacional do México confirma que não há vulcões
na região. Fizemos mais alguns testes e descobrimos que o
local libera muita energia eletromagnética. Isso não é tão
surpreendente. Ele fica quase no centro da cratera de
impacto de Chicxulub, uma área com fortes campos
magnéticos e gravitacionais...
Chaney levanta a mão.
— Desculpe interromper, doutora. Sei que certamente esse
assunto é fascinante para vocês, mas...
Marvin segura o pulso do vice-presidente.
— Eles estão tentando dizer que há algo lá embaixo, Ennis.
Algo mais importante do que a sua guerra. Brian, o vice-
presidente é um homem ocupado. Por que não pula as
leituras de gradientes gravitacionais e vai direto para as
imagens de tomografia acústica?
Dodds muda o holograma. As manchas coloridas se
transformam numa imagem em preto e branco do leito do
oceano. Uma abertura profunda e bem definida, como um
túnel, aparece em preto no cinza cheio de rachaduras do
leito.
— Senhor, a tomografia acústica é uma técnica sensorial
remota que lança pro leito do oceano feixes de radiação
acústica, neste caso, pulsos de ecos ultrassônicos, permitindo
que vejamos objetos enterrados.
Chaney observa, intrigado, um enorme objeto ovóide
tridimensional começando a se definir sob o buraco maior.
Dodds manipula a imagem, tirando o objeto do leito do
oceano e fazendo-o flutuar sobre suas cabeças.
— Que diabos é isso? — diz Chaney, com voz rouca.
Marvin sorri.
— Simplesmente a descoberta mais magnífica da história da
humanidade. O sólido ovóide flutua acima da cabeça de
Chaney.
— Que papo-furado é esse, Marvin? O que é essa porcaria?
— Ennis, há 65 milhões de anos, um objeto de uns 11 ou
12 quilômetros de diâmetro, pesando cerca de um trilhão de
toneladas e voando a 56 quilômetros por segundo, caiu num
raso mar tropical que hoje é o Golfo do México. O que
estamos vendo são os restos do próprio objeto que atingiu
nosso planeta e matou os dinossauros.
— Ora, Marvin, essa coisa é imensa. Como algo tão grande
pode sobreviver a um impacto assim?
— A maior parte não sobreviveu. O objeto que vemos só
tem aproximadamente um quilômetro e meio de diâmetro,
mais ou menos um oitavo do tamanho original. Cientistas
debatem há anos se o objeto que atingiu a Terra era um
cometa ou um asteróide. Mas e se não fosse nenhum dos
dois?
— Pare de fazer charadas.
Marvin olha para a imagem holográfica em rotação como se
estivesse hipnotizado.
— O que estamos vendo é uma estrutura uniforme, feita de
irídio e só Deus sabe que outros materiais compostos,
enterrada um quilômetro e meio abaixo do fundo do mar. O
casco é grosso demais para ser penetrado pelos sensores do
satélite...
— O casco? — Os olhos de guaxinim estão esbugalhados. —
Está me dizendo que esse objeto enterrado é uma
espaçonave?
— Os restos de uma nave, talvez até um casulo interno
separado, posicionado dentro da nave como o núcleo de
uma bola de golfe. O que quer que seja, ou fosse, conseguiu
sobreviver enquanto o resto do aparelho se desintegrou com
o impacto.
Dodds levanta a mão.
— Um momento, dr. Teperman. Vice-presidente, essas são
todas suposições.
Chaney olha para Dodds.
— Sim ou não, diretor. Essa coisa é uma espaçonave?
Dodds enxuga o suor da testa.
— No momento, não sabemos...
— Esse buraco no fundo do oceano... ele leva até a nave?
— Não sabemos.
— Por Deus, Dodds, o que é que vocês sabem, afinal?
Dodds respira fundo.
— Pra começar, sabemos que é imperativo mandar nossos
navios pra área antes que outro país encontre o objeto
enterrado.
— Você está se esquivando pra todo lado feito um político,
diretor, e sabe que isso me irrita. Tem alguma coisa que não
está me contando. O que é?
— Sinto muito, tem razão. Tem mais, muito mais. Acho que
eu mesmo ainda estou meio atordoado. Alguns de nós,
inclusive eu, acreditamos agora que o sinal de rádio que
recebemos do espaço não era pra nós. Pode... pode ter sido
transmitido pra ativar algo dentro dessa estrutura alienígena.
Chaney olha para Dodds, incrédulo.
— Com "ativar", você quer dizer despertar?
— Não, senhor. Ativar mesmo.
— Explique.
Debra Aldrich tira um relatório de seis páginas de sua pasta.
— Senhor, isto é uma cópia de um relatório do SOSUS
enviado mês passado para a Administração Oceânica e
Atmosférica Nacional por um biólogo da Flórida. Ele dá
detalhes de sons não identificados vindos do subsolo
oceânico dentro da cratera de impacto de Chicxulub.
Infelizmente, o diretor da Administração em exercício foi
um pouco lento em verificar as informações, mas agora
confirmamos que os sons agudos estão se originando dentro
dessa estrutura ovóide enterrada. Muita atividade complexa
parece estar acontecendo dentro do objeto, sobretudo de
natureza mecânica.
O diretor da NASA balança a cabeça.
— Em seguida, pedimos que a estação receptora central da
Marinha em Dam Neck fizesse uma análise completa de
todos os picos acústicos registrados na área do Golfo nos
últimos seis meses. Embora os sons pareçam ser só estática,
os dados confirmam que os ruídos subterrâneos começaram
em 23 de setembro, exatamente no mesmo momento em
que o sinal de rádio chegou à Terra.
Chaney fecha os olhos e massageia as têmporas, sentindo-se
sobrecarregado.
— Tem mais uma coisa, Ennis.
— Meu Deus do céu, Marvin. Não posso ter nem um
minuto pra engolir isso antes de... deixa pra lá, pode falar.
— Desculpe, eu sei que tudo isso é demais pra cabeça.
— Continue...
— Completamos a análise da maré negra. Quando a toxina
entra em contato com tecidos orgânicos, ela não decompõe
simplesmente as paredes da célula, mas altera sua
composição química básica no nível molecular, levando a
uma perda total da integridade das paredes. A substância age
como ácido, e o resultado, como vimos, é uma hemorragia
total. Mas o interessante é isto: a substância não é um vírus,
nem mesmo um organismo vivo, porém contém grandes
quantidades de silício e um DNA bizarro.
— DNA? Meu Deus, Marvin, o que está dizendo?
— É só uma teoria...
— Chega de joguinhos. O que é?
— Resíduos animais. Fezes.
— Fezes? Está dizendo que é merda?
— Ha, sim, mas merda alienígena, mais precisamente.
Merda alienígena muito velha. A gosma contém traços de
elementos que acreditamos terem origem num organismo
vivo, um ser baseado em silício.
Chaney desmorona na cadeira, mentalmente esgotado.
— Dodds, por favor, desligue essa bosta de holograma, está
me dando dor de cabeça. Marvin, você está dizendo que
algo pode ainda estar vivo lá embaixo?
— Não, de maneira alguma, senhor — interrompe Dodds.
— Perguntei ao dr. Teperman. Marvin sorri.
— Não, vice-presidente, não estou insinuando nada disso.
Como falei, as fezes, se são mesmo fezes, são muito velhas.
Ainda que uma forma de vida alienígena tivesse conseguido
sobreviver ao impacto, com certeza está morta há mais
tempo do que nossa própria espécie habita o planeta. E uma
espécie baseada em silício como essa provavelmente nem
poderia existir num ambiente com oxigênio.
— Então me explique que diabos está acontecendo.
— Certo. Por mais incrível que pareça, uma nave
alienígena, obviamente anos-luz à frente da nossa
tecnologia, caiu na Terra há 65 milhões de anos. Esse
impacto foi um acontecimento tremendo na história
humana, pois o cataclisma, dizimando os dinossauros, levou
à eventual evolução da nossa espécie. Fosse qual fosse a
forma de vida dentro dessa nave, ela provavelmente
mandou um SOS para o seu planeta natal, que acreditamos
estar localizado em algum lugar dentro da constelação de
Órion. Isso seria um procedimento padrão. Nossos
astronautas fariam a mesma coisa se se vissem isolados em
Alfa Centauri ou algum outro mundo a anos-luz daqui.
Naturalmente, as distâncias envolvidas deixavam uma missão
de resgate fora de questão. Quando nossos equivalentes do
Controle da NASA alienígena receberam o SOS, sua única
atitude podia ser tentar reativar os computadores alienígenas
a bordo da espaçonave e coletar os dados que pudessem.
A dra. Aldrich balança a cabeça, concordando.
— A gosma preta provavelmente foi liberada
automaticamente quando o sinal reativou algum tipo de
sistema vital alienígena.
O diretor da NASA mal consegue conter o entusiasmo.
— Esqueça o transmissor na Lua. Se o Marvin estiver certo,
podemos acessar a nave e talvez até nos comunicarmos
diretamente com a inteligência alienígena usando o próprio
equipamento deles.
— Você está presumindo que o planeta alienígena ainda
existe — diz Marvin. — O sinal do espaço teria sido
transmitido há milhões de anos. Até onde sabemos, o sol do
planeta pode ter se tornado uma supernova...
— Sim, sim, claro que você tem razão quanto a isso. A
questão é que temos uma oportunidade incrível de acesso a
tecnologias avançadas que podem ter sobrevivido dentro da
nave. A potencial riqueza de conhecimentos lá embaixo
pode acelerar nossa civilização um milênio ou mais.
O vice-presidente sente suas mãos tremendo.
— Quem mais sabe disso?
— Só as pessoas nesta sala e um punhado de diretores da
NASA.
— E o tal biólogo do SOSUS, aquele da Flórida?
— O biólogo está morto — Aldrich declara. — A Guarda
Costeira Mexicana tirou seu corpo do Golfo no começo
desta semana, recoberto da gosma.
Chaney xinga baixinho.
— Muito bem. Obviamente, preciso pôr o presidente a par
disso o quanto antes. Enquanto isso, quero todo acesso
público ao SOSUS vedado imediatamente. Informações só
devem ser passadas a quem precisa saber. De agora em
diante, esta operação é secreta, entenderam?
— E as fotos de satélite? — pergunta Aldrich. — O objeto
pode representar apenas um pontinho no Golfo, mas é um
pontinho bem brilhante. Um satélite GOES ou SPOT vai
acabar por encontrá-lo. Assim que mandarmos um navio da
Marinha ou mesmo uma embarcação científica para a área,
vamos revelar nosso segredo para o resto do mundo.
O diretor da NASA balança a cabeça concordando.
— Senhor, a Debra tem razão. No entanto, acho que sei um
jeito de manter a operação em segredo, mesmo permitindo
que nossos cientistas tenham acesso ilimitado ao que está lá
embaixo.
Washington, DC/Miami, Flórida
Anthony Foletta tranca a porta da sua sala antes de se sentar
para atender a comunicação de longa distância.
A imagem de Pierre Borgia aparece no telemonitor.
— Alguma novidade, diretor?
Foletta fala baixinho.
— Não, senhor, mas a polícia está vigiando a garota de
perto. Tenho certeza de que ele vai procurá-la a qualquer
momento...
— A qualquer momento? Escute, Foletta, deixe bem claro
que o Gabriel é perigoso, entendeu? Instrua a polícia a atirar
pra matar. Eu o quero morto, ou pode dizer adeus ao cargo
de diretor em Tampa.
— O Gabriel não matou ninguém. Nós dois sabemos que a
polícia não vai matá-lo...
— Então contrate alguém que esteja disposto a fazê-lo.
Foletta olha para baixo, como se estivesse absorvendo as
palavras do secretário de Estado. Na verdade, ele já previa
essa diretriz desde que seu interno fugiu.
— Acho que sei de alguém que poderia fazer isso, um
serviço benfeito vai custar caro.
— Quanto?
— Trinta. Mais despesas.
Borgia ri.
— Você é um péssimo jogador de pôquer, Foletta. Vou
mandar vinte, nem um centavo a mais. Vai receber o
dinheiro dentro de uma hora.
O sinal de linha aparece no telemonitor.
Foletta desliga o sistema, depois se certifica de que a
conversa foi gravada. Por um longo momento, pensa em sua
próxima ação. Então tira o celular da gaveta da escrivaninha
e liga para o pager de Raymond.
Ilha de Sanibel, Flórida
O Lincoln branco para sobre o cascalho. Karen Simpson, de
31 anos, uma loura oxigenada e bronzeada usando vestido
azul-claro, sai do carro e anda cerimoniosamente até a porta
do passageiro para ajudar sua mãe, Dory, a descer.
À meio quarteirão dali, um policial à paisana vê, do furgão
de campana, as duas mulheres enlutadas, de braço dado,
caminharem lentamente para os fundos do lar dos Axler,
onde a shivah, a reunião do luto judaico, está acontecendo.
Mesas com comida foram montadas para os familiares e
amigos dos falecidos. Três dúzias de convidados circulam,
conversando, comendo, contando histórias — fazendo o
que podem para consolar uns aos outros.
Dominique e Edie estão sentadas a sós num banco estofado
de frente para o Golfo, olhando o sol que começa a se pôr
no horizonte.
A uns 800 metros da costa, um pescador a bordo do
pesqueiro Hatteras, de 52 pés, luta para puxar sua linha.
Edie aponta.
— Parece que finalmente pegaram alguma coisa.
— E só o que vão pegar.
— Querida, prometa que vai tomar cuidado.
— Prometo.
— E você tem certeza de que sabe como operar o
minissubmarino?
— Sim, o Iz me mostrou... — Seus olhos se enchem de
lágrimas com a lembrança. — Tenho certeza.
— A Sue acha que você devia levar a arma dela.
— Não tive tanto trabalho pra libertar o Mick só pra atirar
nele.
— Ela acha que você não deve confiar tanto.
— A Sue sempre foi paranóica.
— E se ela estiver certa? E se o Mick for realmente um
psicótico? Ele pode ficar violento e te estuprar. Afinal, está
preso há 11 anos e...
— Ele não vai fazer isso.
— Leve ao menos o meu Taser. É pequeno, parece um
isqueiro. Cabe na palma da mão.
— Tudo bem. Vou levar, mas não vou precisar dele.
Edie se vira e vê Dory Simpson se aproximando e sua filha,
Karen, entrando na casa.
Dominique se levanta e abraça a senhora.
— Quer tomar alguma coisa?
Dory se senta perto de Edie.
— Sim, aceito uma soda diet. Infelizmente, não podemos
ficar por muito tempo.
A bordo do Hatteras, o detetive Sheldon Saints vê
Dominique rumar para a casa através de um potente
binóculo montado num tripé dentro da cabine do barco.
Outro detetive, usando bermuda jeans, camiseta do Tampa
Bay Buccaneers e um boné de beisebol, entra na cabine.
— Ei, Ted, acabei de pegar um peixe.
— Já era tempo. Estamos aqui há oito horas, cacete. Me
passa o binóculo noturno, está ficando escuro demais.
Saints encaixa o binóculo ITT Night Mariner-260 no tripé e
olha, ajustando o controle que transforma a luz fraca em
tons de verde, permitindo que ele enxergue. Cinco minutos
depois, ele observa a bela suspeita, com seu comprido cabelo
preto, sair da casa, levando uma lata de soda em cada mão.
Ela se aproxima do banco, oferece uma lata para cada mulher
e se senta entre as duas.
Mais vinte minutos se passam. Agora o detetive vê a loura
bronzeada de vestido azul sair da casa e se juntar às três
mulheres. Ela abraça a sra. Axler, depois ajuda a mãe a se
levantar do banco e acompanha até a entrada.
Saints olha por um momento, depois volta a apontar o
binóculo para o banco, onde a mulher mais velha e a bela
morena estão sentadas, de mãos dadas.
Dory Simpson se senta no banco da frente do Lincoln
enquanto a jovem dá a partida. A loura dá ré sobre o
cascalho e ruma para sudoeste, para a estrada principal da
ilha.
Dominique enfia a mão por baixo da peruca para coçar a
cabeça.
— Eu sempre quis ser loura.
— Não tire até sairmos do cais. — Dory lhe entrega o
pequeno Taser, do tamanho de um isqueiro a gás. — A Edie
pediu que você sempre carregasse isso com você. Prometi
que te faria obedecer. Tem certeza de que vai conseguir
operar o minissubmarino?
— Vou, sim.
— Eu posso ir com vocês.
— Não, fico mais tranqüila sabendo que você e a Karen
estão aqui, cuidando da Edie pra mim.
É tarde quando elas chegam ao cais particular em Captiva.
Dominique se despede da idosa com um abraço, depois anda
pelo molhe de madeira até o barco a motor Grady-White de
24 pés.
Sue Reuben pede que ela desamarre a corda da popa.
Segundos depois, eles estão cruzando o Golfo.
Dominique tira a peruca antes que o vento a arranque,
depois puxa a lona cinza.
Mick está deitado de costas, seu pulso direito algemado ao pé
do banco do passageiro. Ele sorri para ela, depois faz uma
careta quando a proa salta sobre as ondas de meio a um
metro, fazendo-o bater a cabeça dolorosamente no convés
de fibra de vidro.
— Sue, onde está a chave?
— Acho que você devia deixá-lo aí mesmo até chegarmos
ao barco. Não faz sentido se arriscar...
— Desse jeito ele vai enjoar antes de chegarmos lá. Me dê a
chave. — Dominique abre a algema e o ajuda a se sentar. —
Como você está?
— Melhor. A enfermeira Ratched aí fez um bom trabalho.
Eles chegam à traineira de 48 pés. Sue desliga o motor,
deixando que o impulso termine de aproximar o barco. Mick
sobe a bordo. Sue abraça Dominique.
— Tome cuidado. — Ela enfia o revólver na mão da garota.
— Sue...
— Quieta. Não faça estardalhaço. Estoure os miolos dele se
tentar alguma coisa.
Dominique enfia a arma no bolso da jaqueta, depois sobe a
bordo, acenando enquanto o barco a motor se afasta
velozmente.
Agora tudo está tranqüilo, a traineira balançando num mar
negro sob um céu estrelado.
Dominique olha para Mick, sem conseguir ver seus olhos no
escuro.
—Acho melhor a gente ir, não é? — Relaxe, você parece
uma pilha de nervos.
— Dom, antes preciso dizer uma coisa.
— Esqueça. Pode me agradecer me ajudando a descobrir o
que aconteceu com o Iz.
— Farei isso, mas não era o que eu ia dizer. Sei que você
ainda tem dúvidas a meu respeito. Precisa saber que pode
confiar em mim. Sei que já te pedi muita coisa, mas juro pela
alma da minha mãe que prefiro me machucar a deixar que
qualquer coisa aconteça com você.
— Eu acredito.
— E eu não sou louco. Sei que às vezes pareço, mas não
sou. Dominique desvia o olhar.
— Eu sei. Mick, realmente precisamos ir, a polícia vigiou a
casa o dia todo. As chaves devem estar na cabine, debaixo da
almofada do passageiro. Você pega?
Mick vai para a cabine. Ela espera até ele desaparecer antes
de tirar a arma do bolso da jaqueta. Ela olha para o revólver,
lembrando o alerta de Foletta. Tenho certeza de que Mick
vai usar todo o seu charme para te impressionar.
O motor parte.
Ela olha para a arma, hesita, depois a joga no mar.
Meu Deus, me ajude...
16
29 DE NOVEMBRO DE 2012
GOLFO DO MÉXICO
5h14
A traineira Jolly Roger, de 48 pés, continua sua viagem para
o oeste sob o céu estrelado da madrugada. Dominique está
no banco do piloto, lutando para se manter acordada, suas
pálpebras ficando pesadas. Exausta, ela encosta a cabeça no
banco de vinil e volta a forçar a atenção para o livro que está
lendo. Depois de reler a mesma frase pela quarta vez, decide
dar um momento de descanso a seus olhos vermelhos.
Só alguns segundos. Não durma...
O livro cai de sua mão e o barulho a acorda. Ela inspira o ar
fresco e olha para a entrada escura que leva à cabine sob o
convés. Mick está lá dentro, dormindo nas sombras. A idéia
a reconforta e ao mesmo tempo a apavora. Apesar de o
barco estar no piloto automático, ela se recusou a dormir.
Sozinha na cabine do piloto, sua imaginação deixou que seus
medos mais secretos tomassem conta dela.
Isso é ridículo. Ele não é o Ted Bundy. Jamais te
machucaria...
Ela nota que o horizonte está ficando cinza atrás dela. O
medo a convenceu de que dormir durante o dia é a melhor
opção. Ela decide acordar Mick ao amanhecer.
— Jolly Roger, responda. Alfa-Zulu-três-nove-seis
chamando Jolly Roger, responda por favor...
Dominique pega o microfone.
— Jolly Roger, prossiga, Alfa-Zulu.
— Como você está aí, querida?
— Agüentando. O que aconteceu? Você parece nervosa.
— Os federais fecharam o SOSUS. Dizem que é só um
problema técnico, mas eu não acredito.
— Droga. Por que você acha...
— Ahhhhh... Ahhhhhh... — O grito de Mick faz o coração
de Dominique pular no peito. — Meu Deus, Edie, eu falo
com você depois...
— Isso é alguém gritando?
— Está tudo bem. Já falo com você.
Ela desliga o rádio e desce correndo a curta escada, ligando
as luzes.
Mick está sentado no beliche do canto, como um animal
assustado e confuso. Seus olhos negros estão arregalados,
brilhando com a lâmpada nua perto da sua cabeça.
— Mãe? — A voz é rouca. Apavorada.
— Mick, está tudo bem...
— Mãe? Quem está aí? Não consigo te ver.
— Mick, sou eu, Dominique. — Ela liga mais duas
lâmpadas, depois se senta na beira da cama. Mick está de
peito nu, seus músculos rijos encharcados de suor frio. Ela
vê que as mãos dele tremem.
Ele a olha nos olhos, ainda confuso.
— Dominique?
— Sim. Você está bem?
Ele olha para o seu rosto, depois para a cabine ao seu redor.
— Preciso sair daqui... — Ele a empurra e sobe a escada de
madeira, trôpego, saindo no convés.
Dominique o segue rapidamente, temendo que ele pule.
Ela o encontra de pé na proa, o vento frio soprando em seu
rosto. Dominique pega um cobertor de lã e o joga sobre seus
ombros nus. Ela vê lágrimas em seus olhos.
— Você está bem?
Por um longo momento, ele apenas olha para o horizonte
escuro.
— Não. Não, acho que não. Eu achava que estava, mas
agora acho que estou todo ferrado.
— Pode me contar o seu sonho?
— Não. Agora não. — Ele olha para ela. — Aposto que
você levou o maior susto.
— Tudo bem.
— A pior coisa da solitária... o que me dava mais medo... era
acordar gritando e ver que eu estava sozinho. Você nem
imagina o vazio.
Ela o leva de volta para o convés. Ele se encosta no pára-
brisa da cabine do piloto e abre o lado esquerdo do cobertor,
chamando-a para junto de si.
Dominique se encosta ao lado dele, deitando a cabeça em
seu peito frio. Mick puxa o cobertor ao redor dos ombros
dela.
Dali a minutos, os dois estão dormindo profundamente.
16h50
Dominique tira duas latas de chá gelado de pêssego do
refrigerador, verifica a posição do barco no GPS e volta para
a proa. O sol do fim de tarde ainda é intenso, e seu reflexo
no convés branco a faz cerrar os olhos. Ela põe os óculos de
sol e se senta perto de Mick.
— Está vendo alguma coisa? Mick baixa o binóculo.
— Nada ainda. A que distância estamos?
— Uns 8 quilômetros. — Ela lhe entrega uma lata. — Mick,
eu queria te perguntar uma coisa. Lembra no hospital,
quando você me perguntou se eu acreditava no mal? O que
você quis dizer com isso?
— Também perguntei se você acreditava em Deus.
— Está me perguntando do ponto de vista religioso? Mick
sorri.
— Por que os psiquiatras nunca conseguem responder a
uma pergunta sem fazer outra?
— Acho que gostamos de deixar as coisas claras.
— Eu só queria saber se você acredita num poder superior.
— Acredito que alguém olha por nós, toca nossas almas
num plano mais alto da existência. Sei que uma parte de
mim acredita nisso porque preciso acreditar, porque isso me
reconforta. E você, o que acha?
Mick se vira, olhando o horizonte.
— Acredito que a gente possui uma energia espiritual que
existe numa dimensão diferente. Acredito que um poder
superior existe nesse outro nível, e só temos acesso a ele
quando morremos.
— Acho que nunca ouvi uma descrição assim do paraíso. E
quanto ao mal?
— Todo Yin tem seu Yang.
— Está dizendo que acredita no demônio?
— No demônio, Satanás, Belzebu, Lúcifer, que diferença faz
o nome? Você disse que acredita em Deus. Você diria que a
presença de Deus na sua vida te influencia a ser uma pessoa
boa?
— Se sou uma pessoa boa, é porque escolhi ser. Acredito
que os seres humanos receberam liberdade de escolha.
— E o que influencia essas escolhas?
— As coisas de sempre... a família, a pressão dos colegas, o
ambiente, as experiências de vida. Todos temos certas
predisposições, mas no final é nossa capacidade de entender
o que está acontecendo conosco que permite que nosso id
tome decisões diariamente. Se você quer dividir essas
decisões em bem e mal, tudo bem. Mas é livre escolha
mesmo assim.
— Você falou como uma verdadeira psiquiatra. Mas me
deixe perguntar uma coisa, srta. Freud. E se essa liberdade de
escolha não for tão livre quanto pensamos? E se o mundo ao
nosso redor estiver exercendo uma influência sobre o nosso
comportamento como espécie que não podemos ver nem
entender?
— O que quer dizer?
— A Lua, por exemplo. Como psiquiatra, você com certeza
está familiarizada com o efeito da Lua sobre a psicose.
— Os efeitos da Lua são polêmicos. Podemos ver a Lua.
Portanto, seu efeito sobre a psique pode ser auto-induzido.
— Você pode sentir a Terra se movendo?
— O quê?
— A Terra. Neste exato momento, ela não está apenas
girando, está voando pelo espaço a 77 quilômetros por
segundo. Pode sentir isso?
— O que quer dizer?
— Coisas estão acontecendo ao nosso redor, coisas que
nossos sentidos não percebem, mas que existem mesmo
assim. E se essas coisas estiverem exercendo uma influência
sobre a nossa capacidade de raciocínio, nossa capacidade de
escolher entre o certo e o errado? Você acha que tem
vontade própria, mas o que faz você realmente decidir algo?
Quando perguntei se você acreditava no mal, estava me
referindo ao mal como uma entidade invisível, cuja
presença pode cegar nosso juízo.
— Não sei se entendo o que você está falando.
— O que influencia um adolescente a metralhar um
playground lotado com uma Uzi? Por que uma mãe
desesperada tranca suas crianças num carro e o empurra pra
dentro de um lago? O que faz um homem estuprar sua
enteada ou... ou sufocar sua amada?
Ela vê uma lágrima se formando no olho dele.
— Você acha que existe uma força maligna que influencia
nosso comportamento? Mick?
— Às vezes... às vezes acho que posso sentir alguma coisa.
— O que você sente?
— Uma presença. Às vezes sinto os dedos gelados dela me
alcançando de uma dimensão superior. Sempre que sinto
essas coisas, parece que coisas terríveis acontecem.
— Mick, você ficou preso na solitária por 11 anos. Seria
estranho se você não ouvisse vozes...
— Não são vozes, é mais como um sexto sentido — diz ele,
massageando os olhos.
Esta viagem pode ter sido um grande erro. Ele precisa de
ajuda. Pode estar à beira de um colapso nervoso. De repente,
Dominique se sente muito sozinha.
— Você acha que eu sou um psicótico...
— Eu não disse isso.
— Não, mas está pensando. — Ele se vira e olha para ela. —
Os maias antigos acreditavam no bem e no mal como
presenças físicas. Acreditavam que o grande mestre
Kukulcán foi banido por uma força maligna, um deus do mal
que os astecas chamavam de Tezcatilpoca, o espelho
enfumaçado. Diziam que Tezcatilpoca podia penetrar na
alma do homem, enganando-o, fazendo-o cometer grandes
atrocidades.
— Mick, tudo isso é folclore maia. Minha avó costumava
me contar as mesmas histórias.
— Não são só histórias. Quando Kukulcán morreu, os maias
começaram a chacinar dezenas de milhares de pessoas do
seu próprio povo. Homens, mulheres e crianças foram
sacrificados em rituais sangrentos. Muitos foram levados pro
templo no alto da pirâmide de Kukulcán, onde o coração foi
arrancado dos seus peitos. Virgens eram conduzidas pela
antiga estrada elevada até o cenote sagrado, onde suas
gargantas eram cortadas e elas eram atiradas no poço. Os
templos de Chichén Itzá são decorados com os crânios dos
mortos.
Os maias viveram em paz por mil anos. Algo deve tê-los
influenciado pra que de repente começassem a se matar
dessa forma.
— De acordo com o diário do seu pai, os maias eram
supersticiosos e acreditavam que os sacrifícios impediriam o
fim do mundo.
— Sim, mas havia outra influência, o culto de Tezcatilpoca,
que dizem também ter influenciado as atrocidades.
— Nada do que você me contou até agora prova a existência
do mal. O homem massacra sua própria espécie desde que
nossos ancestrais desceram das árvores. A Inquisição
espanhola assassinou milhares, Hitler e os nazistas mataram
6 milhões de judeus nos fornos e em câmaras de gás. A
violência irrompe a toda hora na África. Os sérvios
chacinaram milhares em Kosovo...
— É exatamente isso que eu estou dizendo. O homem é
fraco, permite que sua vontade seja corrompida por
influências exteriores. As provas estão em toda parte.
— Que provas?
— A corrupção está se espalhando nos membros mais
inocentes da sociedade. Crianças estão usando sua liberdade
de escolha pra cometer atrocidades, sua consciência incapaz
de entender a diferença entre o certo e o errado, a fantasia e
a realidade. Vi na CNN, alguns dias atrás, uma notícia sobre
um menino de 10 anos que levou a pistola automática do pai
pra aula e matou dois garotos que caçoavam dele. — Mick
fita o mar com os olhos novamente rasos d'água. — Um
menino de 10 anos, Dominique.
— É um mundo doente...
— Exatamente. Nosso mundo está doente. A trama da
sociedade está infestada por uma influência maligna, uma
espécie de câncer, e nós a procuramos só nos lugares
errados. Charles Baudelaire disse uma vez que o maior
truque do demônio é nos persuadir de que ele não existe.
Dominique, posso sentir a influência ganhando força. Sinto
que ela se aproxima à medida que o portal galáctico se abre e
nos aproximamos do solstício de inverno.
— E se essa sua presença maligna não aparecer daqui a três
semanas? O que você vai fazer?
Mick parece intrigado.
— Como assim?
— O quê? Você nunca considerou a possibilidade de talvez
estar enganado? Mick, toda a sua vida foi devotada a resolver
a profecia maia e salvar a humanidade. Sua consciência, sua
própria identidade, foi influenciada pelas crenças infundidas
em você pelos seus pais. Fortalecidas, desconfio, por esse
trauma que você sofreu, que continua assombrando seus
sonhos. Não é preciso ser um Sigmund Freud para ver que
essa presença que você sente está dentro de você.
Os olhos de Mick se arregalam enquanto ele absorve suas
palavras.
— O que vai acontecer quando o solstício de inverno
chegar, passar e todos nós continuarmos aqui? O que você
vai fazer da sua vida, então?
— Eu... eu não sei. Pensei nisso, mas nunca me permiti
pensar muito. Temia que se eu pensasse em levar uma vida
normal, acabaria perdendo de vista o que realmente importa.
— O que realmente importa é que você viva a sua vida
plenamente. — Ela segura a mão dele. — Mick, use essa sua
mente brilhante pra olhar pra dentro de si mesmo. Você
sofreu lavagem cerebral desde que nasceu. Seus pais te
condenaram a salvar o mundo, mas a pessoa que precisa
realmente ser salva é o Michael Gabriel. Você passou toda a
sua vida seguindo coelhos brancos, Alice. Agora precisamos
te convencer de que o País das Maravilhas não existe.
Mick se deita, olhando para o sol do fim de tarde, as palavras
de Dominique ecoando em seus ouvidos.
— Mick, me fala da sua mãe.
Ele engole em seco, limpando a garganta.
— Ela era minha melhor amiga. Foi minha professora e
constante companhia por toda a minha infância. Enquanto o
Julius passava semanas a fio analisando o deserto de Nazca,
mamãe me dava sua ternura e seu amor. Quando ela
morreu...
— Como ela morreu?
— De câncer no pâncreas. Foi diagnosticado quando eu
tinha 11 anos. No fim, virei o enfermeiro dela. Ela ficou tão
fraca... O câncer a devorava viva. Eu lia pra ela pra fazê-la
esquecer a dor.
— Shakespeare?
— Sim. — Ele se senta. — A peça favorita dela era Romeu e
Julieta. "A morte, que sugou todo o mel de teu doce hálito,
não teve poder nenhum sobre tua beleza."
— Onde estava o seu pai, enquanto isso?
— Onde mais? No deserto de Nazca.
— Seus pais se amavam?
— Muito. Sempre diziam que eram almas gêmeas. Quando
ela morreu, levou o coração dele pro túmulo. Levou um
pedaço do meu também.
— Se ele a amava tanto, como pôde deixá-la à beira da
morte?
— Minha mãe e o Julius me disseram que a busca era mais
importante, mais nobre do que ficar esperando, vendo a
morte invadir seu corpo. Aprendi desde cedo sobre o
destino.
— Como?
— Minha mãe acreditava que certas pessoas foram
abençoadas com dons especiais que determinam seus
caminhos na vida. Esses dons vêm acompanhados de
grandes responsabilidades, e manter-se no caminho exige
grandes sacrifícios.
— E ela acreditava que você tinha sido abençoado?
— Sim. Dizia que eu herdei uma visão e uma inteligência
únicas dos ancestrais maternos dela. Me explicou que quem
não tivesse esse dom jamais iria entender.
Meu Deus, os pais do Mick ferraram com a cabeça dele.
Serão necessárias décadas de terapia pra colocá-lo nos eixos.
Dominique balança tristemente a cabeça.
— O que foi?
— Nada. Só estava pensando em Julius, deixando seu filho
de 11 anos com o fardo de tomar conta da mãe doente.
— Não era um fardo, era o meu modo de agradecer por
tudo o que ela tinha me dado. Analisando agora, não sei se
eu ia querer fazer alguma coisa diferente.
— Ele estava presente quando ela morreu?
Mick franze o cenho ao ouvir as palavras.
— Sim, e como estava.
Ele olha para o horizonte e seus olhos endurecem com a
lembrança. Depois, de repente, se aguçam como os de uma
águia. Ele pega o binóculo. Um objeto se tornou visível,
crescendo a oeste no horizonte. Mick aponta.
— Tem uma plataforma petrolífera ali, das grandes. Você
não disse que o Iz não viu nada nas imediações?
— Não viu mesmo.
Mick ajusta o foco.
— Não é da PEMEX, tem a bandeira americana. Algo está
errado.
— Mick... — Dominique aponta.
Ele vê o barco se aproximando e focaliza o binóculo.
— Droga, é a Guarda Costeira. Desligue o motor. Quanto
tempo leva pra pôr aquele submarino na água?
Dominique corre para a cabine.
— Cinco minutos. Você quer ir pro fundo agora?
— É agora ou nunca. — Mick corre para a popa, puxando a
lona cinza de cima do submarino em formato de cápsula. Ele
liga o guindaste. — A Guarda Costeira vai nos identificar.
Vamos ser presos na hora. Ah, e pegue suprimentos.
Dominique joga latas de comida e galões de água numa
mochila, depois entra no submarino enquanto...
... a lancha está a 100 metros, o comandante gritando um
aviso sobre a água.
— Mick, vamos!
— Ligue o motor, eu já vou! — Mick entra na cabine e
procura o diário do pai.
— AQUI É A GUARDA COSTEIRA DOS ESTADOS
UNIDOS. VOCÊS ENTRARAM NUMA ÁREA RESTRITA.
PAREM TODAS AS ATIVIDADES E SE PREPAREM PARA
SEREM ABORDADOS.
Mick pega o diário quando a lancha da Guarda Costeira
alcança a proa da Jolly Roger. Ele volta para a popa, soltando
o cabo do guindaste...
— Parado!
Ignorando a ordem, ele salta para dentro da esfera protetora
interna do minissubmarino de 5 metros e meio de
comprimento, equilibrando-se precariamente na escada de
ferro para puxar e fechar a escotilha.
— Pro fundo, rápido!
Dominique está no assento do piloto, tentando lembrar tudo
o que Iz lhe mostrou. Ela empurra o timão para baixo para
submergir — enquanto a quilha da lancha da Guarda
Costeira colide com a parte de cima do submarino.
— Se segura...
O submarino desce vertiginosamente num ângulo de 45
graus, as placas de liga de titânio rangendo nos ouvidos de
Mick. Ele se abaixa e segura um tanque de mergulho que
está rolando para a proa.
— Ei, capitã, sabe mesmo o que está fazendo?
— Não banque o co-piloto. — Ela diminui o ângulo de
descida. — Certo, e agora, o que devemos fazer?
Mick se aperta ao passar pela escada e vai para perto de
Dominique.
— Descobrir o que está acontecendo aqui embaixo, depois
ir pra costa de Yucatán. — Mick se abaixa para olhar por
uma das janelinhas de 20 centímetros de diâmetro e 10 de
espessura.
Na água azul-escura, uma miríade de bolhas minúsculas
envolve o casco.
— Não consigo ver nada. Espero que esta banheira tenha
um sonar.
— Bem na minha frente.
Mick olha por cima do ombro dela para a tela laranja
brilhante. Ele nota o sensor de profundidade: 105 metros.
— Que profundidade esta coisa alcança?
— Esta coisa se chama Barnacle. Pelo que sei, é um
submarino francês muito caro, uma versão menor do
Nautile. A capacidade nominal dele é de 3.300 metros.
— Tem certeza de que sabe pilotá-lo?
— O Iz e o proprietário me levaram num fim de semana e
me deram um curso de imersão total.
— Imersão total, era isso que eu temia — diz Mick, olhando
ao seu redor.
O interior do Barnacle é uma esfera reforçada de 3 metros
de diâmetro situada dentro do casco retangular da
embarcação. Equipamentos para processamento de dados
forram o apertado compartimento, como um papel de
parede tridimensional. A estação de controle do braço
mecânico e da cesta isotérmica retrátil de amostras ocupa
uma parede, e monitores submarinos high-tech e
transponders acústicos ocupam a outra.
— Mick, faça algo de útil e ative a câmera térmica. É esse
monitor em cima da sua cabeça.
Ele liga o dispositivo. O monitor é ativado e revela uma
tapeçaria de tons verdes e azuis. Mick puxa um joystick
curto, apontando o sensor externo para o leito do oceano.
— Ei, o que temos aqui? — O monitor revela uma luz
branca brilhante no alto da tela.
— O que é?
— Não sei. A que profundidade estamos?
— A 330 metros. O que devo fazer?
— Continue indo pra oeste. Tem alguma coisa enorme ali
na frente.
Golfo do México
1,8 quilômetro a oeste do Barnacle
A plataforma da Exxon, Scylla, é uma unidade de perfuração
flutuante Bingo série 8000, semissubmersa, de quinta
geração. Diferente das antigas plataformas, a superestrutura
flutua quatro andares acima da superfície (e três andares
abaixo) sobre colunas verticais de 25 metros de altura
encaixadas em dois enormes pontões de 120 metros de
comprimento. Doze cabos prendem a estrutura ao leito do
oceano.
Três deques contínuos se apóiam sobre a base da Scylla. O
deque superior, aberto, das dimensões de um campo de
futebol, sustenta o guindaste de 22 metros de altura que
opera a broca, feita de tubos de aço de 10 metros de
comprimento. Duas gruas imensas estão posicionadas nos
lados norte e sul, com um heliponto octogonal elevado
cobrindo o deque oeste. As salas de controle e engenharia,
bem como a cozinha e as cabines para duas pessoas, ficam
no deque do meio ou principal. O deque inferior ou das
máquinas abriga os três motores de 3.080 hp da plataforma,
além do equipamento necessário para extrair 100 mil barris
de óleo cru por dia.
Embora a superestrutura esteja com a lotação máxima de 110
pessoas, nem uma gota de petróleo está saindo de sua broca.
O deque inferior da Scylla foi desocupado às pressas para
acomodar miríades de sensores multiespectrais high-tech,
computadores e sistemas de mapeamento da NASA.
Equipamentos de apoio, cabos submarinos e as mesas de
controle de três VORs (Veículos de Operação Remota) estão
ao lado de feixes de tubos de aço empilhados na lateral do
semi-aberto deque inferior.
Posicionado no centro exato da plataforma de concreto e
aço, um buraco circular de 3 metros e meio de diâmetro
deveria servir para a passagem da broca. Um brilho
esmeralda suave sobe do mar, passando pela abertura e
inundando o teto e a área de trabalho ao redor com uma
irreal luz verde. Técnicos, vencidos pela curiosidade, param
de vez em quando para dar uma olhadinha no fundo do mar
artificialmente iluminado, localizado 656 metros abaixo da
superestrutura flutuante. A Scylla está posicionada
diretamente acima de uma enorme abertura, um túnel no
leito do oceano. Em algum lugar daquele misterioso poço de
1.500 metros está a fonte da incandescente luz verde.
O comandante naval Chuck McKana e o diretor da NASA
Brian Dodds estão encurvados sobre os dois técnicos que
operam o Sea Owl, um VOR de 2 metros, ligado ao
guindaste da Scylla por um cordão umbilical de 2 mil
metros. Eles olham para o monitor do VOR enquanto o
pequeno submarino chega ao leito rachado do oceano e
começa a sua descida no vórtice brilhante.
— A energia eletromagnética está aumentando — diz o
piloto virtual do VOR. — Estou perdendo dirigibilidade...
— Sensores falhando...
Dodds fecha os olhos para o brilho ofuscante do monitor da
mini-câmera do submarino.
— A que profundidade está o VOR?
— A menos de 30 metros da boca do poço. Cacete, lá se vai
o sistema elétrico do Sea Owl.
O monitor se apaga.
O comandante McKana passa os dedos curtos pelo cabelo
escovinha grisalho.
— Esse é o terceiro VOR que perdemos nas últimas 24
horas, diretor.
— Eu sei contar, comandante...
— Vocês deviam se concentrar em encontrar uma maneira
alternativa de entrar.
— Já estamos trabalhando nisso. — Dodds aponta para onde
uma dúzia de trabalhadores estão ocupados, conectando
tubos de aço no guindaste do alto. — Vamos baixar a broca
dentro do buraco. Os sensores vão descer presos à primeira
seção.
O capitão da plataforma, Andy Furman, se aproxima.
— Temos um problema, cavalheiros. A Guarda Costeira
avisou que duas pessoas a bordo de uma traineira acabam de
lançar um minissubmarino 3 quilômetros a leste da Scylla. O
sonar mostra que estão rumando para o objeto.
Dodds parece alarmado.
— Espiões?
— Parecem civis. A traineira está registrada em nome de
uma empresa de busca submarina americana, licenciada na
ilha de Sanibel.
McKana não parece preocupado.
— Deixe que olhem. Quando voltarem à tona, mande a
Guarda Costeira prendê-los.
A bordo do Barnacle
Mick e Dominique apertam os rostos contra o vidro LEXAN
reforçado das janelinhas, enquanto o minissubmarino se
aproxima do irreal feixe de luz, o clarão que sobe do fundo
do oceano como um holofote de 51 metros de largura.
— Que diabos pode haver lá embaixo? — Dominique
pergunta. — Mick, você está bem?
Os olhos de Mick estão fechados, sua respiração irregular.
— Mick?
— Estou sentindo a presença. Dom, a gente não devia estar
aqui.
— Não cheguei até aqui pra dar meia-volta. — Uma luz
vermelha pisca acima de sua cabeça. — Os sensores do
submarino estão malucos. Uma fortíssima energia
eletromagnética está saindo do buraco. Será que não é isso
que você está sentindo?
— Não passe pelo feixe de luz, senão vai pôr em curto todos
os sistemas de bordo.
— Certo, talvez tenha outra entrada. Vou contornar a área
enquanto você rastreia com os sensores.
Mick abre os olhos, fitando as fileiras de consoles de
computador que forram a cabine.
— O que quer que eu faça? Ela aponta.
— Ative o gradiômetro, é um sensor eletromecânico de
gravidade acoplado à parte de baixo do Barnacle. O Rex o
usava pra detectar gradientes de gravidade sob o fundo do
mar.
Mick liga o monitor do sistema, que revela uma tapeçaria de
laranja e vermelhos, as cores mais brilhantes indicando altos
níveis de energia eletromagnética. O buraco emite um
brilho branco quase cegante. Mick puxa o joystick do
gradiômetro ampliando o campo para examinar o resto da
topografia do leito do oceano.
O brilho intenso se reduz a um ponto branco. Tons de verde
e azul criam uma borda circular ao redor dos vermelhos e
laranja.
— Peraí. Acho que encontrei alguma coisa.
Ao redor da área da cratera há uma série de pontos escuros
dispostos perimetralmente num padrão preciso, eqüidistante
e circular.
Mick conta os buracos. Ele sente seu estômago se
contraindo e um suor frio brotando de seu corpo. Folheia as
páginas amareladas do diário do pai até encontrar a anotação
de 14 de junho de 1997.
Ele olha para a fotografia do ícone circular de 3 metros,
localizado no ponto central do platô de Nazca. Dentro de
sua borda, Mick encontrou o mapa original de Piri Reis,
selado num recipiente de irídio. Ele conta 23 linhas
estendendo-se da figura como os raios de um sol, a última
delas aparentemente infinita.
Vinte e três pontos escuros rodeiam o buraco monstruoso
no leito do oceano.
— Mick, o que foi? Você está bem? — Dominique ativa o
piloto automático para olhar o monitor. — O que é isso?
— Não sei, mas um padrão idêntico foi desenhado no platô
de Nazca há milhares de anos.
Dominique olha para o diário.
— Não é exatamente idêntico. Você está comparando
linhas escavadas no deserto com um monte de buracos
escuros no fundo do mar...
— Vinte e três buracos. Vinte e três linhas. Você acha que
é só uma coincidência?
Ela lhe dá um tapinha na bochecha.
— Calma, iluminado. Vou me aproximar do buraco mais
próximo, vamos olhar mais de perto.
O Barnacle diminui a velocidade e flutua acima de um túnel
escuro de 6 metros de diâmetro que cospe bolhas em
profusão. Dominique aponta uma das luzes externas do
submarino para a garganta íngreme. O feixe de luz revela um
túnel extenso, penetrando no fundo do mar num ângulo de
45 graus.
— O que você acha?
Mick olha para o túnel, a familiar sensação de pavor
crescendo em suas entranhas.
— Não sei.
— Sugiro que a gente investigue.
— Você quer entrar nesse buraco infernal?
— É pra isso que estamos aqui, não é?
Pensei que você quisesse entender a profecia maia.
— Não assim. É mais importante irmos pra Chichén Itzá.
— Por quê? — Ele está com medo.
— A salvação está na pirâmide de Kukulcán. A única coisa
que nos espera nesse buraco é a morte.
— Bem, eu não joguei sete anos de faculdade na privada
nem me arrisquei a ir pra cadeia pra você ir atrás de uma
profecia maia idiota. Estamos aqui porque minha família e eu
precisamos encerrar o caso, saber o que realmente
aconteceu com o Iz e os amigos dele. Não te culpo pela
morte do meu pai, mas já que foi você que nos pôs nesta
aventura vai seguir nela até o final.
Dominique empurra o timão, mergulhando o
minissubmarino bem no meio do túnel.
Mick se segura numa barra da escada enquanto o Barnacle
acelera no poço escuro.
Um som líquido ecoa dentro do submarino. Dominique olha
pela janelinha.
— O som está vindo das paredes desta passagem. O
revestimento interior parece funcionar como uma espécie
de esponja gigante. Mick, à sua esquerda tem um sensor, o
espectro fotômetro...
— Estou vendo. — Ele ativa o sistema. — Se estou fazendo
a leitura direito, o gás que sai deste buraco é oxigênio puro.
Uma nota de barítono reverbera pela cabine, aumentando à
medida que eles descem. Mick está para dizer algo quando o
Barnacle dá um tranco para a frente, acelerando túnel
adentro.
— Ei, vá mais devagar...
— Não fui eu. Fomos pegos por uma espécie de correnteza.
— Ele ouve o pânico na voz dela. — A temperatura exterior
está aumentando. Mick, acho que estamos sendo sugados
num tubo de lava!
Ele se segura mais forte na escada. As graves pulsações
fazem os vidros dos instrumentos diante dele vibrarem.
O minissubmarino mergulha, girando cegamente pelo túnel
como um besouro numa galeria pluvial.
— Mick! — Dominique grita ao perder o controle do
Barnacle. Ela fecha os olhos com força e se segura no
assento, quando a energia é interrompida e a escuridão os
envolve.
Ela sente que está hiper ventilando, esperando o tranco que
fará o submarino se desintegrar e ser invadido pelo mar.
Meu Deus, eu vou morrer, me ajude, por favor...
Mick cruzou os braços e as pernas ao redor da escada, suas
mãos segurando as barras de aço como morsas. Não reaja,
deixe acontecer. Deixe que a loucura termine...
Vertigem intensa. O minissubmarino rodopia sem parar,
como se estivesse numa máquina de lavar gigante.
Um estrondo — um solavanco de partir os ossos: Mick sai
voando cegamente pela escuridão, e o Barnacle é
empurrado de cabeça contra uma força invencível e
invisível. O ar explode de seus pulmões quando seu rosto e
seu peito colidem contra uma fileira de consoles de
computador.
17
GOLFO DO MÉXICO
2.185 METROS ABAIXO DA SUPERFÍCIE
O latejar incessante de sua cabeça força Mick a abrir os
olhos.
Silêncio.
Ele está deitado de costas, com as pernas para o ar, seu
tronco preso num emaranhado fumegante de equipamentos
quebrados. A cabine está úmida e escura como breu, à
exceção do esmaecido brilho de um console laranja
bruxuleando em algum lugar. Tudo está de cabeça para
baixo, e um líquido quente escorre em sua garganta,
sufocando-o.
Ele se vira dolorosamente, cuspindo uma golfada de sangue,
sua cabeça ainda rodando. Verificando que o sangue vem de
suas narinas, ele as aperta para estancar a hemorragia.
Por um longo momento ele fica sentado ali, apoiando-se
precariamente em fragmentos pontiagudos de monitores de
computador e equipamentos de navegação estilhaçados,
enquanto tenta lembrar seu nome e onde está.
O minissubmarino. O túnel... Dominique!
— Dom? — Ele cospe mais sangue e escala uma pilha de
equipamentos que bloqueia o caminho até o assento do
piloto. — Dom, está me ouvindo?
Ele a encontra inconsciente, ainda presa pelo cinto de
segurança, o queixo apoiado no peito. Seu coração dispara de
medo enquanto ele reclina cuidadosamente o assento ao
máximo, segurando-lhe a cabeça ensangüentada antes de
apoiá-la no encosto. Verifica sua respiração, e vê como está
fraca. Depois de soltar o cinto, cuida do profundo corte na
testa de Dominique.
Mick tira a camiseta, rasgando o tecido empapado de suor
em longas tiras. Improvisa uma bandagem sobre o
ferimento, depois vasculha a cabine destroçada em busca da
caixa de primeiros socorros.
Dominique geme. Ela ergue o corpo dolorosamente, vira a
cabeça e tosse.
Mick localiza a caixa e uma garrafa de água. Voltando para
perto dela, lava o ferimento e tira uma bolsa de gelo da caixa.
— Mick?
— Aqui. — Ele aperta a bolsa de gelo, furando o conteúdo,
e a comprime contra a cabeça dela, amarrando-a com o resto
da camiseta. — Você está com um ferimento feio na cabeça.
A hemorragia diminuiu, mas você deve ter sofrido uma
concussão.
— Acho que quebrei uma costela, está difícil de respirar. —
Ela abre os olhos e olha para Mick, a dor em seu rosto. —
Você está sangrando.
— Quebrei o nariz. — Ele lhe passa a garrafa d'água. Ela
fecha os olhos e toma um gole.
— Onde estamos? O que aconteceu?
— Descemos pelo túnel e batemos em alguma coisa. O
minissubmarino está inoperante. O sistema de subsistência
mal funciona.
— Ainda estamos no buraco?
— Não sei — diz Mick, indo para a janela dianteira e
olhando para fora. A luz de emergência do exterior do
Barnacle revela uma câmara escura
e pequena, sem água do mar. A popa do submarino parece
alojada entre duas barreiras escuras e verticais. O espaço
entre as duas paredes se estreita abruptamente antes de
terminar numa fenda curva e metálica.
— Meu Deus, onde viemos parar?
— O que é isso?
— Não sei. Uma espécie de câmara subterrânea. O
submarino está enfiado entre duas paredes, mas não tem
água lá fora.
— Será que a gente pode sair daqui?
— Não sei. Nem sei ao certo onde é aqui. Já notou que
aquelas vibrações graves pararam?
— Tem razão. — Ela o ouve vasculhar os destroços. — O
que você está fazendo?
— Procurando o equipamento de mergulho. — Ele localiza
o traje de neoprene, a máscara e os tanques de ar.
Dominique geme ao erguer o corpo, depois recosta a cabeça
novamente, vencida pela dor e pela vertigem.
— O que vai fazer?
— Onde quer que a gente esteja, estamos presos. Vou ver se
encontro uma maneira de nos tirar daqui.
— Mick, espere. Devemos estar a uns 1.500 metros de
profundidade. A pressão vai nos esmagar assim que você
abrir a escotilha.
— Não tem água na câmara, o que significa que ela deve ser
despressurizada. Acho que precisamos arriscar. Se ficarmos
aqui, vamos morrer do mesmo jeito. — Ele tira os tênis e
veste o apertado traje de neoprene.
— Você tinha razão. A gente não devia ter entrado no
túnel. Foi idiotice. Eu devia ter te ouvido.
Ele para de se vestir para se curvar sobre ela.
— Se não fosse por você, eu ainda seria um vegetal nas
mãos do Foletta. Fique aí e tente não se mexer enquanto eu
tiro a gente daqui.
Ela luta contra o choro.
— Mick, não me deixe aqui. Por favor, não quero morrer
sozinha...
— Você não vai morrer...
— O ar, quanto ar ainda temos?
Ele procura o painel de controle e verifica o manômetro.
— Quase três horas. Tente ficar calma...
— Espere, não vá ainda. — Ela segura a mão dele. — Só me
abrace um pouco. Por favor.
Ele se ajoelha, apoiando a face direita suavemente contra a
dela, sentindo os músculos da moça tremendo ao abraçá-la e
inalar seu perfume.
— Vou tirar a gente daqui, prometo — ele sussurra. Ela o
abraça com força.
— Se você não conseguir, se não houver saída... Me
prometa que vai voltar.
Ele engole o nó na garganta.
— Prometo.
Eles ficam abraçados por mais alguns minutos, até que o
aperto do traje de neoprene no corpo de Mick fica
insuportável.
— Mick, espere. Olhe debaixo do meu assento. Deve ter
um kit de suprimentos de emergência.
Ele puxa a maleta de metal e a abre, retirando dela um
canivete, um punhado de sinalizadores e um isqueiro a gás.
— Tem um pequeno tanque de ar aí também. Oxigênio
puro. Leve com você.
Ele retira o tanque, ligado a uma máscara de plástico.
— É muita coisa pra carregar. É melhor eu deixar isso com
você.
— Não, leva. Se você ficar sem ar, nós dois vamos morrer.
Ele volta a calçar os tênis, prende o canivete ao tornozelo
com fita adesiva, depois abre a válvula do tanque maior de ar
para verificar se o regulador está funcionando. Põe o
compensador de flutuação e o tanque nas costas e prende o
tanque menor de oxigênio na cintura com a tira de velcro.
Enfia os sinalizadores e o isqueiro no colete, e então,
sentindo-se um burro de carga, sobe a escada do
minissubmarino, que agora está num ângulo de 30 graus.
Mick destrava a escotilha, respira fundo e tenta abri-la.
Nada.
Se eu estiver errado sobre a pressão, vamos os dois morrer
aqui. Ele para, ponderando suas alternativas, e tenta de
novo, desta vez empurrando a tampa de titânio com o
ombro. Com um chiado, a escotilha se desprende da
guarnição de borracha e se abre.
Mick força a passagem para fora do submarino, subindo
sobre o casco, deixando que a escotilha se feche ao ficar de
pé...
Bam! Ele morde o regulador ao bater dolorosamente a
cabeça numa superfície dura como pedra.
Agachado, equilibrando-se sobre o submarino, ele esfrega o
galo na cabeça e olha ao redor. Do alto do Barnacle, percebe
que está num toro gigante, uma câmara em formato de
rosca, iluminada pelas luzes de emergência do submarino, a
proa da nave bem presa entre duas lâminas curvas de 2
metros de altura. O feixe de luz de sua lanterna revela a
parte de cima de pelo menos 12 dessas divisórias, todas se
originando de um centro curvo, como as várias pás de uma
hélice horizontal.
Mick olha para a estrutura, analisando os arredores, o
regulador chiando em seus ouvidos com sua respiração. Eu
sei o que é isto. E uma turbina, uma turbina gigante. A gente
deve ter sido sugado para um duto de entrada. A pulsação
grave parou. O minissubmarino está bloqueando a rotação
das pás, paralisando a turbina e entupindo o duto.
Mick desce do Barnacle e pisa numa superfície metálica lisa
e envelhecida. O que aconteceu com a água do mar?
De repente, ele cai para trás. Seus pés escorregam e ele
perde o equilíbrio, seu cotovelo e flanco direitos batem na
superfície dura e limosa com um barulho oco. Mick geme de
dor, depois olha para cima.
A lanterna revela uma substância porosa, preta e esponjosa
recobrindo toda a parte central do teto. Pingos de água do
mar caem sobre sua cabeça.
Mick fica de pé e estica o braço, surpreso ao constatar que o
material poroso é extremamente quebradiço, como isopor,
só que mais duro. Ele pega o canivete e golpeia a substância,
desprendendo vários fragmentos de rocha friável, parecendo
gesso embebido em água marinha.
Mick para. O som de ar soprando por um duto ecoa em
algum lugar à sua direita. Ele estica o braço, se segura no alto
da divisória metálica à sua direita, apontando o feixe de luz
da lanterna para o teto metálico.
O som vem de um duto oco de um metro de largura, situado
no teto, sobre a lâmina imediatamente ao lado. Subindo num
ângulo quase vertical, a passagem escura parece atravessar o
teto como uma bizarra calha de lavanderia.
Mick sobe na parede de aço e fica sob a abertura, sentindo o
ar quente soprando em seu rosto.
Um duto de saída?
Passando à lâmina seguinte, ele sobe na barreira e monta
sobre a parede de 5 centímetros de espessura. Começa a
apalpar a boca do duto, suas mãos sondando a inclinação,
íngreme, mas escalável.
Cuidadosamente, Mick se apóia no teto e fica de pé,
equilibrando-se precariamente sobre o alto da lâmina e se
movendo para cima, para a cavidade escura, arrastando-se de
barriga para dentro do duto. Virando de lado, ele estende as
pernas até o outro lado do cilindro de um metro de
diâmetro, com o tanque de ar e os cotovelos apoiados na
parede às suas costas. Olhando para cima, o vento quente
em seu rosto, sua luz lhe revela um enorme tubo, perdendo-
se na escuridão num ângulo vertiginoso de 70 graus.
Isto vai ser difícil...
Mantendo as costas e os pés pressionados firmemente contra
as paredes interiores, ele escala duto acima, centímetro por
centímetro, dolorosamente, como um alpinista subindo por
uma fenda vertical. Para cada metro e meio que consegue
subir, ele desliza uns 30 centímetros para baixo, descendo e
gemendo até conseguir limpar o suor das mãos e firmar sua
pele escoriada na escorregadia superfície metálica.
Ele leva vinte minutos para subir os 26 metros até o topo. A
sua espera no ápice trevoso está um beco sem saída.
Mick bate a cabeça na parede e geme no regulador,
desesperado. Os músculos das pernas, exaustos com a
escalada, começam a tremer, ameaçando despencá-lo lá de
cima. Sentindo-se escorregar, ele se segura com as duas
mãos, derrubando a lanterna.
Merda...
Rodeado pela escuridão, ele a ouve caindo pelo duto,
destroçando-se ao atingir a superfície abaixo.
Se não tomar cuidado você é o próximo.
Com movimentos desesperadoramente lentos, ele retira o
isqueiro e um dos sinalizadores que enfiou no traje.
Pingando de suor, gasta os cinco minutos seguintes tentando
futilmente acender o sinalizador.
Mick olha para o isqueiro, que está cheio, mas se recusa a
acender. Não dá pra fazer fogo sem oxigênio, seu burro.
Respirando fundo, ele tira o regulador da boca e aperta o
botão de limpeza, soltando um jato de ar na direção do
isqueiro. Uma chama amarela surge, permitindo que ele
acenda o sinalizador.
A faiscante luz cor-de-rosa revela o que parecem ser duas
pequenas mangueiras ligadas a uma junta hidráulica. Usando
o canivete, ele corta as duas mangueiras, que deixam pingar
um fluido quente e azul-escuro sobre seu traje. Ele põe o
regulador na boca, depois força a tampa com a cabeça.
A escotilha se move um centímetro.
Trabalhando tão perto da tampa quanto pode, Mick empurra
a escotilha até abrir uma fenda e enfia a mão no buraco.
Num só movimento ele rola, ficando pendurado na
escuridão antes de conseguir se puxar para fora do duto,
sobre o que parece ser uma grade metálica. Ele cai de quatro,
seu corpo tremendo de exaustão, enquanto o calor intenso
de seu novo ambiente faz sua máscara se embaçar e o cega.
Mick tira a máscara, mas sua boca está seca demais para
cuspir. Ele enxuga as lágrimas do rosto afogueado e olha para
cima.
Meu Deus...
Ele se senta, aturdido, seus membros tremendo fora de seu
controle. Arregala os olhos, sua mente rodando tão rápido
que ele não consegue produzir um só pensamento coerente.
O suor lhe escorre do rosto e do corpo no calor de fornalha,
formando poças em seu traje. Seu coração bate tão forte que
parece oprimi-lo, pressionando-o contra o metal em brasa
que raspa no seu corpo.
Estou no inferno...
Ele está numa câmara descomunal, escura, ovóide, do
tamanho de um estádio como o New Orleans Superdome,
esvaziado de todo o seu conteúdo.
Uma camada de chamas rubras e incandescentes lambe a
superfície das paredes, subindo pela câmara em ondas como
uma cachoeira invertida e desaparecendo na escuridão do
alto.
Mas não é escuridão! Girando centenas de metros acima de
sua cabeça, iluminando o centro do imponente abismo, está
um vórtice brilhante e esmeralda de energia rodopiante —
uma galáxia espiralada em miniatura, rodando num
majestoso, lento, onipotente movimento anti-horário, como
um ventilador de teto cósmico, pulsando energia.
Mick olha para o brilho irreal da galáxia, hipnotizado por sua
beleza, esmagado por sua magnitude e totalmente
aterrorizado por suas implicações. Ele se força a fechar as
pálpebras sobre as pupilas doloridas, tentando
desesperadamente desanuviar a cabeça.
Dominique...
Lutando para ficar de pé, ele volta a abrir os olhos e absorve
o resto da paisagem etérea.
Ele está de pé numa plataforma, uma grade metálica presa à
escotilha que tampava o duto cilíndrico. Um metro abaixo,
preenchendo toda a câmara, como um lago numa cratera de
montanha, há um líquido semelhante ao mercúrio,
ondulante e prateado. Sua superfície, brilhante e espelhada,
reflete as chamas rubras e dançantes. Filetes de fumaça
negra flutuam acima do agitado mar de metal derretido,
como vapor saindo de um caldeirão fervilhante.
Mick se vira para a parede em brasa. Logo abaixo das chamas
há uma grelha que percorre todo o interior da câmara. A
distorção da luz revela gases invisíveis saindo das frestas
minúsculas da grelha, como o calor que irradia do asfalto de
uma estrada deserta.
O túnel de entrada... um duto de ventilação?
Mick olha para a surreal parede de fogo, que não queima
nem consome, mas flui para cima pelo espaço vertical como
um rio caudaloso de sangue. Pensamentos febris giram em
sua mente. Estou morto? Será que morri no submarino? Será
que estou no inferno?
Ele cai na beirada da plataforma, meio sentado, meio
deitado, fraco e zonzo demais para se mover. Consegue
cuspir na máscara e recolocá-la, e então se lembra do tanque
menor. Soltando-o, ele suga vários haustos de oxigênio puro,
conseguindo clarear a mente.
É então que ele nota o rasgo no traje. A pele de seu joelho
direito está exposta, o ferimento sangrando profusamente.
Intrigado, ele toca o sangue quente, examinando-o como se
fosse algum tipo de caldo alienígena.
O sangue está azul.
Onde eu estou? O que está acontecendo comigo?
Como que em resposta, um clarão de energia violeta
irrompe de algum lugar do outro lado do lago. Ele se curva
para a frente, esforçando-se para enxergar através da
máscara, que embaçou de novo apesar da camada de saliva.
E então acontece outra coisa bizarra. Quando ele tira a
máscara, uma poderosa onda de energia invisível se eleva
como uma lufada de ar da superfície do lago e atinge o seu
braço. A máscara levita e fica pairando no ar, um metro
acima de sua cabeça.
Mick fica de pé. Ao erguer o braço para pegá-la, ele sente
um campo intenso de energia eletromagnética, que ressoa
em seu cérebro como um diapasão reverberando.
Desorientado, ele tateia cegamente à procura do tanque de
oxigênio, enquanto as chamas altas dançam em sua visão
desfocada. Desistindo, ele cai novamente sobre o metal e
suga mais oxigênio, fechando os olhos para a vertigem.
Michael...
Mick abre os olhos, prendendo a respiração. Michael...
Ele olha para o lago. Será que estou delirando? Chegue perto
de mim, meu filho. O bocal do oxigênio cai de sua boca.
— Quem está aí? Senti sua falta.
— Quem é você? Onde estou? Que lugar é este?
Agente chamava Nazca do nosso purgatório particular,
lembra, Michael? Ou será que essa sua mente brilhante
finalmente desmoronou, depois de tantos anos solitários no
hospício?
Mick sente o coração falhar. Lágrimas ardentes escorrem
por suas faces avermelhadas.
— Papai? Pai, é você mesmo? Estou morto? Pai, onde você
está? Não consigo te ver. Como você pode estar aqui? Onde
é aqui?
Chegue perto de mim, Michael, e eu vou te mostrar.
Num estado hipnótico, ele pisa para fora da grade e cai no
lago.
— Merda... meu Deus!
Mick olha para baixo, sua mente vencida pelo que os
sentidos estão relatando. Ele está sem peso, desafiando a
gravidade, flutuando sobre a superfície prateada num
colchão verde-esmeralda de energia que atravessa cada fibra
do seu ser, inebriando-o. Sensações eufóricas lhe sobem
pelos ossos e saem pelo couro cabeludo, fazendo cada fio de
cabelo ficar de pé. A adrenalina e o medo lutam pelo
controle de sua bexiga. Sentindo o tanque de ar flutuando
para longe de suas costas, ele apressadamente aperta o fecho
de velcro ao redor da cintura e põe o regulador na boca.
Chegue perto de mim, Michael.
Um único passo o impele sobre o campo de energia como
um imponderável Baryshnikov. Tomando coragem, ele dá
mais alguns passos, e se vê ganhando altura sobre a
superfície espelhada do lago, um anjo sem asas guiado por
uma força invisível.
— Papai?
Um pouco mais...
— Papai, onde você está?
Ao se aproximar do outro lado da câmara, ele vê uma
plataforma imensa e enegrecida, pairando uns 10 metros
acima da superfície brilhante como uma balsa infernal. Uma
onda de terror percorre sua alma quando ele se dá conta de
que não pode parar, de que o impulso através desse mundo
imponderável o guia na direção do objeto, contra a sua
vontade.
Estou aqui.
Em pânico, Mick se vira para fugir, mas descobre que suas
pernas se movem em vão enquanto ele é puxado para cima,
para longe da superfície do lago. Ele mergulha de barriga no
ar, aferrando-se inutilmente ao campo de energia, mas seu
corpo é jogado para trás sobre a plataforma por uma
presença invencível, gélida e malevolente.
Mick é jogado de joelhos, caindo para a frente, como que
obrigado a se prostrar diante de um soberano. Com o
cérebro hiper ventilado e tomado pelo medo, ele ergue o
olhar para ver o seu captor.
É um casulo, tão alto e largo quanto uma locomotiva, tão
longo quanto um campo de futebol. Uma miríade de dutos
chamuscados, semelhantes a tentáculos, saem da parte de
baixo da plataforma e vão até o objeto vítreo e escuro, como
milhares de tubos intravenosos.
Por que tem medo de mim, Michael?
Um clarão de energia violeta irrompe dentro do cilindro,
revelando por um momento a presença sombria de um ser
imenso.
Mick fica paralisado, seu rosto é uma máscara congelada de
terror e os membros são incapazes de sustentar seu peso.
Olhe para mim, Michael. Olhe para o rosto que é sangue do
seu sangue!
Os pensamentos de Michael se despedaçam quando ele é
empurrado por uma força invisível e vai de cabeça contra a
superfície vítrea. Ele consegue sentir a presença dentro da
câmara enfumaçada — uma presença de puro mal que faz
uma bílis sulfúrica subir por sua garganta e sufocá-lo. Fecha
os olhos com força, sua mente incapaz de entender o terror
que o aguarda.
Uma onda de energia abre-lhe as pálpebras à força.
Ele vê um rosto surgindo no casulo através de uma névoa
amarelada. O coração de Mick salta em seu peito.
Não...
É Julius, o cabelo branco de seu pai revolto como o de
Einstein, o rosto bronzeado e enrugado parecendo couro
velho. Os ternos e familiares olhos castanhos estão pregados
nele.
Michael, como pode temer seu próprio pai?
Você não é meu pai...
Claro que sou. Lembre-se, Michael. Não lembra como sua
mãe morreu? Você sentiu tanta raiva de mim. Me odiou pelo
que eu fiz. Você me olhou nos olhos, como está olhando
agora — E ME CONDENOU AO INFERNO!
A voz monstruosa fica mais grave ao ecoar em seus ouvidos.
Mick grita no regulador, sentindo sua mente ceder, e o rosto
de Julius se dissolve num par de olhos injetados,
demoníacos, reptilianos, do tamanho de faróis — as pupilas,
duas fendas douradas e diabólicas que queimam sua alma e
incineram a sua sanidade.
Mick solta um grito de gelar o sangue, sentindo sua mente
atormentada sendo acariciada pelos dedos gélidos da morte.
Num só movimento, impelido pela adrenalina, ele salta da
plataforma, mas é agarrado no ar e suspenso.
Você é minha carne, é meu sangue. Eu estava te
observando, esperando este dia chegar. Sei que sentiu a
minha presença. Logo estaremos juntos. Unidos... Pai e
filho.
Em meio ao delírio, Mick olha para cima e vê a galáxia acima
de sua cabeça girando mais rápido. À medida que sua
velocidade aumenta, um cilindro imenso e oco de energia
esmeralda se forma no centro do lago derretido, subindo até
a abóbada como um tornado verde e luminoso. O funil de
energia se mistura ao vórtice, os dois rodopiando em
sincronia, cada vez mais rápido.
A mente de Mick está gritando, seus olhos saltando das
órbitas. Em meio à loucura, ele vê um círculo solitário se
formando no centro do lago, uma onda criada por algo que
assoma à superfície derretida.
E agora ele pode vê-lo — subindo pelo funil de energia
esmeralda —, um ser negro como a noite, uma criatura
predadora, reptiliana, com 9 metros de envergadura das asas.
Duas garras, cada uma com três pontas, pendem de seu
tronco. Um crânio sem rosto, em formato de bigorna,
termina numa saliência curva, como um chifre, sua cauda
cônica com a metade do tamanho das asas.
Um globo incandescente, cor de âmbar, brilha de seu
pescoço, como um olho sem pupila.
Mick vê, hipnotizado, a abóbada acima da galáxia de energia
aparentemente se desfazendo, revelando um túnel vertical
aberto através da rocha até o leito do oceano. A água dentro
do túnel também está girando, formando a base de um
monstruoso redemoinho.
Mick segura o pequeno tanque de oxigênio com força contra
o peito. Ele arranca a máscara, apontando a válvula selada
para longe de seu corpo.
Com um chiado penetrante, o centro da abóbada se retrai e
um rugido retumbante preenche a câmara. Mick sente seus
ouvidos estalando quando o mar invade o espaço, a torrente
de água escorrendo pelos lados do campo de força vertical
como as cataratas do Niágara.
Desesperado, Mick percorre o perímetro da câmara com o
olhar, seus olhos se concentrando nos 23 dutos idênticos,
todos, menos um, aspirando a maré crescente.
Ouve-se um som de trovão quando as turbinas gigantes da
nave alienígena começam a reverter a rotação para expelir a
água do mar.
Mick segura o isqueiro a gás, depois abre a válvula do
pequeno tanque, encostando a chama num fluxo invisível e
inflamável de oxigênio puro. O gás pressurizado se inflama
como um foguete, empurrando a base do tanque contra o
seu estômago e impelindo-o para trás no ar, longe do casulo.
Mick voa por cima do lago de metal derretido, depois
mergulha no caudaloso rio de água marinha que escorre
sobre a superfície metálica.
Mick solta o tanque vazio ao ser tragado pela correnteza, o
medo e a adrenalina movimentando seus braços e suas
pernas, dirigindo-o para o duto inoperante de onde ele saiu.
Ele se segura na grade e puxa o corpo para cima, enquanto a
maré crescente vem em seu encalço.
Mick abre a escotilha e olha para o duto escuro. Não pare,
não pense, pule de uma vez!
Ele pula, precipitando-se de pé pelo duto íngreme e
totalmente às escuras. O tanque de ar range às suas costas, e
o rugido acima de sua cabeça diminui por um momento.
Pressionando os antebraços contra a lisa superfície metálica,
ele tenta desesperadamente brecar sua queda, usando o traje
de neoprene como freio.
Mick é atirado pela boca do duto, caindo de cabeça sobre
uma das lâminas do rotor. Atordoado, ele fica de pé,
trôpego, sentindo as potentes vibrações da turbina ganhando
vida sob seus pés.
- Suba — volte pro submarino!
Mick sobe e passa por cima da lâmina de 2 metros no
momento em que um rio de água marinha explode do alto.
Ele cai de pé, em pânico ao ver as lâminas começarem a
rodar e mudando de direção, lutando para desalojar o
Barnacle.
Não deixe o submarino ir embora sem você!
Mick cambaleia através da água, que está na altura de seu
joelho. Enche os pulmões de ar e solta o volumoso tanque
de suas costas. Livre do peso, salta sobre o casco de titânio
ao mesmo tempo em que uma parede de água o atinge em
cheio nas costas, quase derrubando-o do casco.
A câmara toroidal se enche rapidamente de água, a pressão
aumentando, ameaçando desalojar o submarino a qualquer
momento. Mick sobe até o alto do Barnacle, sentindo a
pressão aumentar na sua cabeça enquanto abre a escotilha e
se joga pela abertura, fechando a comporta atrás de si e
girando a trava.
Uma explosão de água joga o minissubmarino de lado.
Mick cai escada abaixo, aterrissando dolorosamente sobre
cacos de equipamentos enquanto o Barnacle é libertado.
Ouve-se um gemido agudo e ensurdecedor quando a turbina
gigante acelera para cem rotações por segundo, empurrando
o minissubmarino de volta duto acima, rápido como um
projétil.
A bordo da Scylla
20h40
— É um redemoinho! — O capitão Furman é arremessado
sobre um painel de controle, o chão fugindo-lhe dos pés
enquanto 12 toneladas de canos de perfuração se espalham
pelo deque inferior.
Sons de metal rangendo rasgam o ar. Com um gemido
agonizante, o deque superior da plataforma de sete andares
balança sobre a monstruosa correnteza, e a Scylla se inclina
60 graus quando meia dúzia de cabos submersos, presos a
um dos pontões, se recusam a ceder para o vórtice
crescente.
Técnicos e equipamentos deslizam pelo deque aberto,
precipitando-se no agitado mar esmeralda.
O resto dos cabos se rompe, soltando a plataforma do leito
do oceano. A superestrutura flutuante endireita — depois
gira, balançando e saltando dentro da boca rodopiante do
redemoinho luminescente.
Os alarmes cortam a noite. Tripulantes atordoados
cambaleiam de suas cabines e são atingidos por destroços
voadores. Enquanto o mundo roda em revoluções
vertiginosas, eles se precipitam por escadas de alumínio,
indo para o deque inferior, onde uma dúzia de botes salva-
vidas pende dos guinchos.
Brian Dodds segura as cordas de um bote, seus ouvidos
ressoando o rugido ululante do redemoinho. A embarcação
está suspensa 2 metros abaixo, mas a Scylla se agita tão
violentamente que descer até o bote é impossível.
A plataforma petrolífera vira para o lado, à mercê da força
centrífuga do redemoinho, que prende a Scylla contra a
parede do funil. O diretor da NASA abre os olhos,
obrigando-se a olhar para a fonte cegante da energia que
irradia do centro do mar turbulento. Dodds se segura,
puxando ar desesperadamente antes que um vagalhão de 12
metros passe por cima dele, destruindo o deque inferior e
arrancando o último dos botes em sua fúria.
O estômago de Dodds se contrai, e seus olhos arregalam-se
de choque quando o centro do vórtice subitamente desce
até o leito do oceano, a plataforma girando precariamente
sobre o precipício líquido de 600 metros. Dentro daquele
cegante delírio esmeralda, ele vê algo — uma criatura negra,
alada, levitando redemoinho acima como um demônio
saindo do inferno.
A besta alada passa por ele, desaparecendo no céu noturno
— enquanto a Scylla cai para o lado, despencando rumo à
sua aniquilação.
O ser sem vida voa sobre a superfície do Golfo em
velocidade supersônica, planando sem esforço sobre um
denso colchão de gravidade negativa. Indo para o sudoeste,
ele ascende para uma altitude maior, seu rastro de energia
perturbando os picos montanhosos do México em sua
viagem rumo ao Pacífico.
Ao chegar ao oceano, seus sensores pré-programados
alteram o curso para uma rota ocidental mais precisa. O ser
diminui a velocidade, ajustando-a para permanecer no lado
escuro do planeta por toda a duração de sua fatídica jornada.
Diário de Julius Gabriel
Nossa lua de mel no Cairo foi maravilhosa.
Maria era tudo para mim — minha alma gêmea, meu amor,
minha companheira, minha melhor amiga. Dizer que a
presença dela me consumia não é exagero. Sua beleza, seu
perfume, sua sexualidade — tudo nela era tão inebriante que
muitas vezes eu me sentia bêbado de amor. Me sentia
pronto, às vezes até ansioso, para abdicar do meu juramento
de desvendar o enigma do calendário maia, só para voltar
aos Estados Unidos com minha jovem consorte.
Formar uma família. Viver uma vida normal.
Maria tinha outros planos. Depois de uma semana de lua de
mel, ela insistiu que continuássemos nossa jornada ao
passado do homem, procurando na Grande Pirâmide pistas
que ligassem essa magnífica estrutura egípcia ao ícone
desenhado no platô de Nazca.
Como discutir com um anjo?
Quando se trata de Gizé, a questão de quem construiu as
pirâmides é tão importante quanto quando, como e por quê.
E que as estruturas de Gizé são elas próprias um paradoxo,
erguidas com incompreensível precisão e um propósito que
continua sendo um mistério milhares de anos depois de sua
conclusão. Diferentes dos outros monumentos antigos do
Egito, as pirâmides de Gizé não foram construídas como
túmulos; aliás, não trazem nenhum hieróglifo, inscrição
interna ou sarcófago que as identifique, nem quaisquer
tesouros importantes.
Como já mencionei antes, a erosão na base da Esfinge
provaria mais tarde que as estruturas de Gizé foram erguidas
em 10.450 a.C., distinguindo-se como as mais antigas em
todo o Egito.
Vocês devem ter notado que não me refiro a essas
maravilhas como as pirâmides de Khufu, Khafre e
Menkaure, seus nomes de origem. Os egiptólogos querem
que acreditemos que esses três faraós mandaram construir os
monumentos. Que grande bobagem! Khufu teve tanto a ver
com o projeto e a construção da Grande Pirâmide quanto
Artur, um rei cristão, poderia ter mandado construir
Stonehenge, que foi abandonado 1.500 anos antes de Cristo.
A falácia remonta a 1837, quando o coronel Howard Vyse
foi destacado para escavar em Gizé. O arqueólogo, não tendo
feito nenhuma descoberta significativa (e bastante
desesperado por financiamento), convenientemente
descobriu marcas com o nome de Khufu num túnel um
tanto obscuro que ele próprio escavara dentro da pirâmide.
Por algum motivo, ninguém questionou o fato de as marcas
terem sido pintadas de cabeça para baixo (algumas até com
erros de grafia), e nenhuma outra inscrição ter sido
encontrada em nenhum outro lugar da Grande Pirâmide.
Os egiptólogos, naturalmente, consideram a descoberta de
Vyse uma verdade incontestável.
Muitos anos depois, uma estela de inventário seria
descoberta pelo arqueólogo francês Auguste Mariette. O
texto que aparece nessa pedra, o equivalente antigo de uma
placa histórica para turistas, claramente indica que as
pirâmides foram construídas bem antes do reinado de
Khufu, referindo-se às estruturas de Gizé como a Casa de
Osíris, Senhor de Rostau.
Osíris — talvez a figura mais reverenciada de toda a história
egípcia — foi um grande professor e sábio que aboliu o
canibalismo e deixou um legado duradouro para o seu povo.
Osíris... o deus-rei barbado.
Maria e eu passamos a maior parte do tempo examinando a
Grande Pirâmide, embora todo o sítio arqueológico de Gizé
tenha um propósito misterioso bastante distinto.
O exterior da Grande Pirâmide é tão assombroso quanto o
seu interior. Tendo já discutido as medidas do templo em
relação ao valor de pi, à precessão e às dimensões da Terra,
falarei agora dos quatro lados da estrutura, feitos de blocos
de calcário. Por incrível que pareça, cada lado tem 230
metros, e à pirâmide faltam meros 20 centímetros para ser
um quadrado perfeito. Cada lado é também alinhado aos
verdadeiros pontos cardeais, norte, sul, leste e oeste, um fato
que causa ainda mais impacto quando nos damos conta de
que a Grande Pirâmide é formada por 2.300.000 blocos de
pedra, cada um pesando entre 2,5 e 15 toneladas. (Na menor
das três pirâmides de Gizé há uma única pedra que pesa 320
toneladas. No momento em que registro estas palavras, no
ano 2.000, só existem três guindastes em todo o mundo que
poderiam erguer esse peso monumental do chão.) No
entanto, como no caso de Tiahuanaco e Stonehenge,
nenhuma máquina foi usada para mover esses pesos
incríveis, que tiveram de ser transportados de uma pedreira
distante, e posicionados muitas vezes a dezenas de metros
do chão.
A maioria das pessoas que vêem a Grande Pirâmide não se
dá conta de que as paredes da estrutura tinham,
originalmente, um revestimento de pedras altamente
polidas, cada um dos 144 mil blocos pesando 9 toneladas.
Hoje só restam resíduos dessas pedras de revestimento, a
maioria tendo sido destruída num forte terremoto em 1.301
d.C. Porém, sabemos que os blocos de calcário haviam sido
cortados com tal precisão e habilidade que a lâmina de um
canivete não entrava nas fendas entre eles. Agora só
podemos imaginar como a Grande Pirâmide era há milhares
de anos — uma estrutura de 6 milhões de toneladas,
cobrindo 5 hectares —, brilhando como vidro sob o sol do
Egito.
Embora o exterior da pirâmide seja uma visão maravilhosa, é
o interior dessa misteriosa estrutura que talvez esconda sua
verdadeira finalidade.
A Grande Pirâmide contém várias passagens que levam a
duas salas vazias, inocentemente batizadas de Câmara do Rei
e Câmara da Rainha. A verdadeira finalidade dessas salas
ainda é desconhecida. Uma entrada escondida na face norte
leva a uma estreita passagem de ligação até um corredor que
sobe diretamente para o coração da pirâmide. Depois de uma
breve subida, pode-se entrar num claustrofóbico túnel
horizontal de 40 metros que leva à Câmara da Rainha, ou
então continuar subindo ainda mais pela Galeria Central, um
impressionante corredor que leva à Câmara do Rei.
A Câmara da Rainha é uma sala de 5,2 por 5,5 metros, com
6 metros de pé-direito e forro no formato de um teto com
duas águas. Sua única característica notável é um estreito
duto de ventilação com uma abertura retangular de apenas
20 por 23 centímetros. Esse duto, bem como os dois
encontrados na Câmara do Rei, ficaram fechados até 1993,
quando os egípcios, procurando melhorar a ventilação da
pirâmide, contrataram o engenheiro alemão Rudolf
Gantenbrink para usar seu robô em miniatura e escavar os
dutos entupidos. Imagens feitas com a câmera em miniatura
do robô revelaram que os dutos não estavam entupidos, mas
fechados por dentro com um mecanismo deslizante, uma
pequena porta presa com pinos de metal. Quando está solto,
o duto se abre diretamente para o céu.
Usando um sofisticado inclinômetro, Gantenbrink foi capaz
de calcular os ângulos exatos de projeção no céu noturno.
Com 39 graus e 30 minutos, o duto sul da Rainha aponta
diretamente para a estrela Sirius. O duto do Rei, com 45
graus, aponta para Al Nitak, a mais baixa das três estrelas do
Cinturão de Órion.
Astrônomos descobriram logo depois que as três pirâmides
de Gizé foram cuidadosamente alinhadas para espelhar as
três estrelas do Cinturão como elas apareciam em 10.450
a.C. (A lenda de Osíris também está ligada a Órion; sua
esposa, Ísis, à estrela Sirius.)
Será que o alinhamento cósmico era a verdadeira finalidade
por trás da escavação dos dutos, ou eles teriam sido
projetados para desempenhar outra junção?
A própria Galeria Central é uma incrível façanha de
Engenharia. Com menos de 2 metros de largura ao nível do
chão, as paredes desse túnel se estreitam gradualmente de
ambos os lados para se unirem ao teto, a 8 metros e meio do
piso. Com uma inclinação de 26 graus, a estreita passagem
sobe mais de 45 metros, uma assombrosa realização
arquitetônica, considerando que a abóbada da galeria
sustenta todo o peso dos três quartos superiores da pirâmide.
No ápice da Galeria Central fica uma misteriosa antecâmara
cujas paredes são feitas de granito vermelho. Estranhos pares
de sulcos paralelos, parecendo trilhos para um antigo
conjunto de divisórias, foram escavados nas paredes. Dali,
um pequeno túnel leva à Câmara do Rei, a sala mais
impressionante da pirâmide. A câmara é um retângulo
perfeito, com 5,23 metros de largura, 10,46 metros de
comprimento e pé-direito de 5,81 metros. Toda a câmara
formada por cem blocos de granito vermelho, cada um
pesando mais de 70 toneladas!
Como os construtores da antiguidade conseguiram levantar
esses blocos de granito até seus lugares, especialmente num
espaço tão apertado?
Somente um objeto ocupa a Câmara do Rei: um bloco
solitário de granito cor de barro, seu interior escavado como
uma banheira gigante. Situada na parede ocidental, a peça
tem 2,28 metros de comprimento por um metro de largura e
um de altura. O bloco maciço de granito foi cortado com
inexplicável precisão mecânica. A tecnologia usada para
cortar esse objeto era superior a qualquer ferramenta à
disposição do homem moderno.
Embora nenhuma múmia tenha sido encontrada nele, os
egiptólogos continuam a identificar esse objeto oco como
um sarcófago sem tampa.
Eu tenho outra teoria.
A Câmara do Rei parece funcionar como um instrumento
acústico, coletando e amplificando sons. Em várias ocasiões,
me vi sozinho na sala e aproveitei a oportunidade para
entrar no bloco em forma de banheira. Ao me deitar nele,
fui tomado pelo que pareciam profundas reverberações,
como se eu tivesse entrado no canal auditivo de um gigante.
Não exagero quando digo que meus ossos chocalhavam com
as esmagadoras vibrações de som e energia. Discussões
posteriores com engenheiros eletrônicos revelaram que a
geometria do ápice da Grande Pirâmide (% 377 ohms) faz
dela um reverberador perfeito, igualando-se à impedância do
espaço.
Por mais bizarra que pareça, minha teoria é que a Grande
Pirâmide foi projetada para funcionar como um incrível,
imenso diapasão canalizador de energia, capaz de reverberar
correntes como as ondas de rádio, ou talvez alguns outros
campos de energia ainda desconhecidos.
Mais fatos esclarecedores: além de investigarmos a Grande
Pirâmide, Maria e eu passamos incontáveis horas
entrevistando alguns dos principais arquitetos e
engenheiros do mundo. Depois de calcular o peso e os
requerimentos de mão de obra e de espaço para a construção
da estrutura, cada um desses profissionais chegou à mesma e
estarrecedora conclusão: a Grande Pirâmide não poderia ser
duplicada — nem mesmo nos dias de hoje.
Me deixem reiterar a informação: mesmo usando nossos
guindastes mais sofisticados, os seres humanos da nossa
época jamais poderiam erguer a Grande Pirâmide.
No entanto, a Grande Pirâmide foi construída há cerca de 13
mil anos! Então, quem construiu a Grande Pirâmide?
Como procurar respostas para o impossível? O que é o
impossível? Maria o descrevia como "uma conclusão
equivocada tirada por um observador desinformado, a cuja
experiência limitada falta a base de informações para
adequadamente compreender algo que simplesmente não
está dentro de seus parâmetros aceitáveis de realidade".
O que minha amada estava tentando expressar é isto:
mistérios permanecem mistérios até que o observador abra
sua mente para novas possibilidades. Ou, mais sucintamente:
para encontrar uma solução para o que é percebido como
impossível, busque soluções impossíveis.
Foi o que nós fizemos.
A lógica dita que, se os seres humanos não poderiam ter
construído as pirâmides de Gizé sozinhos, alguém os assistiu,
neste caso outra espécie obviamente de inteligência
superior.
Essa conclusão simples, porém perturbadora, não surgiu do
nada, mas derivou de evidências palpáveis e empíricas.
Os crânios alongados encontrados nas Américas Central e do
Sul nos revelam que os membros dessa espécie misteriosa
tinham aparência humanóide. Várias lendas os descrevem
como caucasianos altos, com olhos azuis da cor do mar,
barbas longas e cabeleiras brancas. Várias das culturas antigas
mais bem-sucedidas da História, incluindo os egípcios, os
incas, os maias e os astecas, reverenciaram esses seres como
homens de grande sabedoria e paz que chegaram para
estabelecer a ordem no caos. Todos eram grandes mestres,
possuindo um conhecimento avançado de Astronomia,
Matemática, Agricultura, Medicina e Arquitetura que fez
nossa raça selvagem evoluir para nações com sociedades
organizadas.
As evidências físicas que restaram para confirmar sua
existência são incontestáveis.
Essa espécie humanóide também tinha um plano claro:
preservar o futuro da humanidade, seus filhos adotivos.
Com que conclusão bizarra e assustadora Maria e eu nos
deparamos. Ali estávamos, dois pensadores modernos,
doutorandos de Cambridge, apresentando um ao outro
teorias que deixariam Erich von Däniken orgulhoso. Mas
não estávamos orgulhosos. Aliás, nossa reação inicial foi de
vergonha. Não éramos como ele, hoteleiros suíços
transformados em escritores. Éramos cientistas, arqueólogos
renomados. Como poderíamos apresentar aos nossos colegas
tais idéias absurdas de intervenção alienígena? No entanto,
pela primeira vez, minha jovem esposa e eu sentíamos que
nossos olhos finalmente, verdadeiramente, se abriam.
Podíamos sentir um grande plano em ação, mas ainda nos
frustrava não poder decifrar seu significado oculto. Nossos
anciãos humanóides nos deixaram instruções nos códices
maias, duplicando com exatidão a mensagem do platô de
Nazca, mas os códices haviam sido queimados pelos padres
espanhóis, e o significado da mensagem de Nazca ainda nos
escapava.
Maria e eu nos sentíamos apavorados e sozinhos, com a
terrível profecia do calendário maia pendendo como a
espada de Dâmocles sobre nossas cabeças.
Lembro que eu abraçava minha esposa, me sentindo como
uma criança perdida que, depois de tomar conhecimento da
morte, se esforça para compreender o conceito de seus pais
de paraíso. A idéia me fez perceber que, apesar de todas as
suas façanhas e realizações, nossa espécie, do ponto de vista
evolucionário, realmente ainda está na infância. Talvez por
isso sejamos tão propensos à violência, ou continuemos
sendo criaturas tão carentes e emocionais, sempre buscando
o amor, sempre nos sentindo sozinhos. Como bebês de 30
mil anos, simplesmente não sabemos fazer outra coisa.
Somos um planeta de crianças, e a Terra — um imenso
orfanato, sem mentes adultas para nos guiar nos caminhos
do universo. Fomos obrigados a aprender sozinhos, do jeito
mais difícil, à medida que caminhamos, vivendo e morrendo
como glóbulos vermelhos, circulando com abandono
imprudente pelo corpo da humanidade — tão jovem, tão
inexperiente e tão ingênua. Os dinossauros dominaram a
Terra por 200 milhões de anos, mas nossos primeiros
ancestrais caíram das árvores há menos de 2 milhões de
anos. Em nossa incrível ignorância, nos imaginamos
superiores.
A verdade é que não passamos de uma espécie de crianças
— crianças curiosas e ignorantes.
Os Nefilins, os "caídos", eram nossos tutores. Estiveram aqui
há muito tempo, tomaram fêmeas de Homo sapiens como
esposas, fornecendo seu DNA à nossa espécie. Eles nos
ensinaram o que acharam que compreenderíamos, e nos
deixaram marcos claros de sua presença. Também tentaram
nos avisar de uma calamidade futura, mas, como a maioria
dos filhos, não lhes demos ouvidos, recusando-nos a acatar o
alerta de nossos pais.
"Ainda somos crianças", lembro de ter dito a Maria. "Somos
crianças frágeis e ingênuas, achando que sabemos tudo,
balançando despreocupadamente em nosso berço enquanto
a serpente entra pela janela aberta da creche para nos
aniquilar."
Maria concordava. "E você sabe que a comunidade científica
vai nos desprezar."
"Então não devemos contar a eles, pelo menos não por
enquanto", eu disse. "A profecia da humanidade pode estar
gravada em pedra, mas ainda podemos determinar o futuro.
Os Nefilins não teriam se dado a todo esse trabalho para nos
avisar sobre 4 Ahau, 3 Kankin sem também nos deixar
alguma arma, algum meio de nos salvarmos da aniquilação.
Precisamos encontrar o meio de nos salvar — então, e
somente então, o resto do mundo ouvirá com mente
aberta."
Maria me abraçou, concordando com minha lógica. "Não
encontraremos as respostas aqui, Julius. Você tinha razão
desde o início. Embora a Grande Pirâmide faça parte do
quebra-cabeça da profecia, o templo que aparece no platô de
Nazca fica na Mesoamérica."
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1975-77 páginas 12-72
Diário Fotográfico, Disquete 4: Nome do arquivo: GIZÉ,
Diagrama 17
18
1º DE DEZEMBRO DE 2012
PLANÍCIE DE NULLARBOR, AUSTRÁLIA
5h08
A planície de Nullarbor, a maior área plana do planeta, é
uma erma região de calcário que se estende por 245 mil
quilômetros quadrados, beirando a nua costa sul do Pacífico
na Austrália. É uma região inabitável, sem fauna ou
vegetação.
Mas para o naturalista amador Saxon Lennon e sua
namorada, Reneè, a planície de Nullarbor sempre
representou a fuga perfeita. Nada de pessoas, de barulho, de
gerentes de projeto gritando — somente os sons relaxantes
das ondas, que arrebentavam nos penhascos verticais de
calcário 30 metros abaixo do acampamento do casal.
A reverberação sônica faz Saxon se espreguiçar em seu saco
de dormir. Ele abre os olhos, afastando as abas da barraca
para olhar a abóbada estrelada.
Reneè passa o braço pela cintura dele e brinca com sua
genitália.
— Já acordou, amor?
— Espera um pouco... você ouviu alguma coisa passando
aqui?
— Tipo o quê?
— Não sei...
O enorme estrondo faz o solo sob a barraca tremer, e Saxon
se desvencilhar do abraço da namorada.
— Vamos!
O jovem casal sai correndo da barraca, seminu, calçando as
botas de caminhada sem se dar ao trabalho de amarrar os
cadarços. Eles pulam no jipe e rumam para o leste, Saxon
tomando cuidado para manter o veículo a uma distância
segura da beira dos penhascos da costa, alinhados à sua
direita.
O horizonte escuro já está cinza quando eles chegam.
— Caramba, Sax, o que é aquilo?
— Eu... eu não sei.
O objeto é enorme, da altura de um sobrado, com asas
reptilianas que se expandem uns 18 metros de ponta a
ponta. A criatura é negra como a noite e está encarapitada
sobre um par de garras com três pontas que parecem aferrar
a superfície nua de calcário. Uma cauda enorme, espelhada e
em forma de leque, está imóvel, metros acima do chão,
enquanto uma série de tentáculos sai do abdômen. A cabeça
sem rosto, em forma de chifre, parece apontada para o céu.
O ser parece sem vida como uma estátua, exceto pelo brilho
âmbar-dourado de um órgão em forma de disco num dos
lados de seu tronco.
— Será que é um daqueles aviões de controle remoto que a
Força Aérea está sempre usando por aqui?
— Será que a gente precisa ligar pra alguém?
— Liga você. Eu vou tirar umas fotos. — Saxon aponta sua
câmera, batendo várias fotos enquanto a namorada tenta
ligar do carro.
— O telefone está mudo, só ouço estática. Tem certeza de
que pagou a conta?
— Absoluta. Tome, tire uma foto de mim perto dessa coisa
pra mostrar o tamanho dela.
— Não chega muito perto, amor.
Saxon entrega a câmera a Reneè, depois fica a 4 metros e
meio do ser.
— Acho que essa coisa nem está viva. Só está empoleirada
aqui, como um condor carbonizado.
Um brilho dourado aparece no horizonte.
— A hora é perfeita. Espere o sol nascer, a foto vai ficar
melhor.
Os primeiros raios da aurora surgem sobre o Pacífico, a luz
solar beijando a superfície da cauda espelhada da criatura.
Saxon dá um salto quando a cauda se ergue com um chiado
hidráulico.
— Puta merda, acho que ela está se ativando.
— Sax, olha, o olho dela está começando a piscar.
Saxon olha para o disco âmbar, que está piscando cada vez
mais rápido, sua cor escurecendo para um tom escarlate.
— Vem... — Ele pega Reneè pelo pulso e corre de volta
para o jipe. Pondo em marcha o veículo, acelera para o
norte através da imensa expansão plana.
O disco fica mais vermelho, cor de sangue, depois para de
piscar. Uma centelha surge na borda das asas abertas,
explodindo numa chama brilhante, incandescente e
prateada.
Com um clarão cegante, a criatura é detonada, liberando
uma quantidade indescritível de energia combustível que se
expande por todo o platô de Nullarbor na velocidade do
som. Ondas de choque da explosão nuclear penetram na
rocha calcária porosa.
Vaporizando tudo em seu caminho.
Saxon sente a tórrida explosão de 9 mil graus um
nanossegundo antes que seu corpo, sua namorada, o jipe e o
solo se evaporem num gás tóxico e escaldante que sobe pela
atmosfera, num vácuo infernal de chamas e poeira cósmica.
Golfo do México
A fragata USS Boone (FFG-28), com mísseis teleguiados
classe Oliver Hazard Perry, flutua silenciosamente num
tenebroso mar cinza-chumbo, sob o ameaçador céu da
tarde. Ao redor do vaso de guerra, espalhado pela superfície
num raio de 3 quilômetros, está tudo o que resta da
plataforma petrolífera semissubmersa Scylla. Uma dúzia de
botes infláveis motorizados navegam cuidadosamente em
meio aos destroços, e marinheiros emocionalmente
esgotados puxam cadáveres inchados a bordo.
O guarda-marinha Zak Wishnov fecha mais um cadáver
num saco, enquanto o subtenente Bill Blackmon manobra o
bote lentamente através dos fragmentos flutuantes.
— Zak, tem outro ali, a estibordo da proa.
— Meu Deus, odeio isso. — Wishnov se debruça sobre a
proa e fisga o cadáver com um croque. — Caramba, este
aqui está sem um braço.
— Tubarão?
— Não, o corte é perfeito demais. Mas agora que você falou,
não vi um só tubarão desde que chegamos aqui.
— Nem eu.
— Não faz sentido. Tem sangue pra todo lado, e estas águas
são infestadas de tubarões. — Zak rola o corpo mutilado para
dentro do bote, enfiando-o rapidamente num saco. — É
aquela coisa lá embaixo, não é, tenente? A fonte daquele
brilho verde. Por isso os tubarões não chegam perto.
O tenente concorda.
— Os tubarões sabem de algo que não sabemos. Quanto
antes o capitão nos tirar daqui, melhor.
O capitão Edmund O. Loos III está imóvel sobre a ponte,
seus olhos castanhos fitando o tenebroso horizonte, seu
maxilar contraído pela raiva. O 13º oficial a comandar a
Boone e sua tripulação de 42 oficiais e 550 marinheiros está
espumando por dentro. Isso porque seu oficial em comando
ordenou que ele se apresentasse no Golfo do México e,
conseqüentemente, afastasse seu navio de guerra do grupo
de batalha que seguia ao Golfo Pérsico.
Fazer a porra de uma operação de resgate no meio do que
pode ser o maior conflito dos últimos vinte anos. Vamos ser
motivo de piada pra toda a Marinha.
O comandante Curtis Broad, oficial executivo da embarcação
e segundo em comando, se aproxima.
— Com licença, capitão. Um dos LAMPS localizou um
submarino flutuando 1,7 quilômetro a oeste. Dois
sobreviventes a bordo. Um deles diz que sabe o que destruiu
a Scylla.
— Traga-o para a sala de reuniões. Quando o vice-
presidente vai chegar?
— Daqui a 35 minutos.
Um raio explode silenciosamente a distância, seguido, pouco
depois, pelo rugido do trovão.
— Recolha todos os botes, comandante. Estarei na sala de
reuniões. Me avise quando o vice-presidente chegar.
— Sim, senhor.
O helicóptero antissubmarino Kaman SH-2G Seasprite,
também conhecido como LAMPS, balança duas vezes antes
de pousar no heliporto do cruzador.
Mick Gabriel segura uma das pontas da maca de Dominique
e um tripulante levanta a outra. Quando as portas deslizantes
do helicóptero se abrem, o médico do navio e sua equipe se
juntam a eles.
O oficial médico se curva sobre a beldade hispânica
inconsciente. Ele verifica que ela está respirando, toma seu
pulso, depois aponta uma lanterna para os olhos dela.
— Esta moça sofreu uma concussão grave e pode ter
ferimentos internos. Precisamos levá-la para a enfermaria.
Um tripulante empurra Mick, tomando a maca de suas mãos.
Ele está fraco demais para protestar. O médico olha para ele.
— Você também parece ter passado maus bocados, meu
filho. Algum ferimento além dos cortes e hematomas?
— Acho que não.
— Há quanto tempo não dorme?
— Não sei. Talvez dois dias. Minha amiga vai ficar bem?
— Acho que sim. Qual o seu nome?
— Mick.
— Venha comigo, Mick. Nós vamos cuidar desses
machucados e você vai comer e se limpar um pouco. Precisa
descansar...
— Negativo — o tenente interrompe. — O capitão quer vê-
lo na sala de reuniões em 15 minutos.
Está chovendo quando o helicóptero de Ennis Chaney pousa
no deque traseiro da Boone. O vice-presidente se curva e
cutuca o homem adormecido à sua direita.
— Acorde, Marvin, nós chegamos. Não entendo como
você consegue dormir com essa barulheira toda.
Marvin Teperman dá um sorrisinho e esfrega os olhos.
— Viajar me cansa.
Um guarda-marinha abre a porta deslizante, presta
continência e leva os dois homens para a superestrutura.
— Senhor, o capitão Loos está à sua espera na sala de
reuniões...
— Ainda não. Primeiro quero ver os corpos.
— Agora, senhor?
— Agora.
O guarda-marinha o leva para dentro de um grande hangar.
Os sacos de cadáveres estão alinhados em fileiras no chão de
concreto.
Chaney anda lentamente de um saco a outro, parando para
ler a etiqueta de identificação de cada um.
— Meu Deus... — O vice-presidente se ajoelha ao lado de
um saco e abre o zíper, suas mãos tremendo.
Ele olha para o rosto pálido e sem vida de Brian Dodds. Com
um toque paternal, afasta o cabelo castanho da testa do
morto, a emoção marejando seus olhos.
— Como isto aconteceu? — A voz de Chaney é tênue e
rouca.
— Não temos certeza, senhor. O sujeito que talvez saiba
está na sala de reuniões do capitão, esperando para falar com
o senhor.
Chaney fecha o saco e se levanta com dificuldade.
— Me leve até ele.
Mick enfia o último pedaço de sanduíche de peru e queijo
na boca e toma mais um gole de ginger ale.
— Está se sentindo melhor?
Ele faz que sim para o capitão. Embora esteja exausto, a
comida, o banho quente e as roupas limpas melhoraram o
seu estado de espírito.
— Bom, o senhor disse que se chama Michael Rosen e é um
biólogo marinho que trabalha num laboratório em Tampa,
correto?
— Sim, senhor. Pode me chamar de Mick.
— E o senhor descobriu o objeto abaixo de nós. Como?
— Usando o SOSUS. É um sistema de observação sonora...
— Sei o que é o SOSUS, obrigado. Agora, a sua colega...
Batidas na porta interrompem a pergunta. Mick ergue o
olhar e vê o vice-presidente Ennis Chaney entrando,
seguido por um cavalheiro mais baixo e mais velho, com
bigode fino e um sorriso amigável.
— Bem-vindo a bordo, senhor. Lamento que sua visita
aconteça em circunstâncias tão desfavoráveis.
— Capitão, este é o dr. Marvin Teperman, um exobiólogo
que veio do Canadá em uma transferência temporária. E
quem é esse cavalheiro?
Mick estende a mão.
— Dr. Michael Rosen.
— O dr. Rosen diz que entrou no objeto abaixo de nós com
seu minissubmarino.
Chaney se senta à mesa de conferências.
— O que ele viu?
O capitão Loos consulta suas anotações.
— O dr. Rosen descreveu um cenário que parece digno do
Inferno de Dante. Ele diz que o brilho esmeralda está sendo
emitido por um poderoso campo de energia originado
dentro dessa câmara subterrânea.
Chaney encara Mick com seus olhos intensos de guaxinim.
— O que aconteceu com a Scylla?
— A plataforma petrolífera era um posto de observação
sensorial posicionado sobre o buraco — esclarece Loos.
— O campo de energia criou um vórtice poderoso. O
redemoinho deve ter destruído a plataforma.
Loos arregala os olhos. Ele pressiona um botão do
intercomunicador.
— Ponte.
— Sim, senhor, comandante Richards falando.
— Baixe bóias sensoras, comandante, depois mude nossa
posição para um quilômetro a leste.
— Um quilômetro a leste, sim, senhor.
— Cumpra a ordem imediatamente, comandante.
— Entendido, senhor.
Mick corre os olhos do capitão Loos para o vice-presidente.
— Mudar seu navio de lugar não basta, capitão. Corremos
um grande perigo. Há uma forma de vida lá embaixo...
— Uma forma de vida! — Marvin praticamente pula sobre a
mesa. — Algo ainda está vivo lá embaixo? Como é possível?
Como ela é?
— Não sei.
— O senhor não viu?
— Ela estava escondida dentro de um enorme casulo.
— Então como sabe que estava viva? Ela se mexeu?
— Ela se comunicou comigo... telepaticamente. Tem a
capacidade de acessar nossos pensamentos, até nossa
memória subconsciente.
Teperman continua de pé, incapaz de conter sua
empolgação.
— Isso é incrível. Que pensamentos ela comunicou?
Mick hesita.
— Ela acessou uma lembrança do meu falecido pai. Não
era... não era uma lembrança muito feliz.
Chaney se inclina para a frente.
— O senhor disse que corremos um perigo terrível. Por
quê? Essa forma de vida é uma ameaça para nós?
— É mais do que uma ameaça. A menos que a gente destrua
esse ser e a nave dele, todos os homens, todas as mulheres e
crianças deste planeta vão morrer em 4 Ahau... quer dizer,
no dia 21 de dezembro.
Marvin para de sorrir. Chaney e o capitão se entreolham.
Então olham para Mick, que sente a tensão por trás dos
olhos do vice-presidente pregados nele.
— Como sabe? O ser comunicou essa ameaça pra você?
— Você viu algum tipo de arma? — pergunta o capitão.
— Não tenho certeza. Alguma coisa foi liberada. Não sei o
quê. Parecia um morcego enorme e deformado, só que não
batia as asas, apenas saiu flutuando de um lago de energia
líquida e prateada...
— Era um ser vivo? — Marvin pergunta.
— Não sei. Parecia mais mecânico do que orgânico. Como
uma sonda. O campo de energia se agitou, um redemoinho
se formou, e então o teto da câmara se abriu parcialmente
pro mar. Aí a coisa subiu reto e saiu do funil.
— Reto, pra fora do funil? — Chaney balança a cabeça,
descrente. — É uma história bem louca, dr. Rosen.
— Sei disso, mas garanto que é tudo verdade.
— Capitão, o senhor examinou o submarino deste homem?
— Sim, senhor. Os dispositivos eletrônicos estão destruídos,
e o casco está bastante avariado.
— Como você teve acesso à nave alienígena? — Marvin
pergunta. Mick olha para o exobiólogo.
— E a primeira vez que você se refere a ela como uma nave
alienígena. São os restos do objeto que atingiu a Terra há 65
milhões de anos, não são, doutor?
Marvin ergue as sobrancelhas, surpreso.
— E o sinal de rádio vindo do espaço profundo deve ter
ativado o sistema vital da nave — continua Mick.
Teperman parece impressionado.
— Como você sabe de tudo isso?
— Isso é verdade? — pergunta o capitão Loos, incrédulo.
— É bastante possível, capitão, embora, pelo que o dr.
Rosen acabou de contar, pareça mais provável que o sistema
vital alienígena nunca tenha sido completamente
desativado. Esse casulo que o dr. Rosen mencionou deve ter
continuado a funcionar, mantendo o ser vivo em algum tipo
de animação suspensa protetora.
— Até que o sinal vindo do espaço o ativou — completa
Mick.
Chaney olha para ele com desconfiança.
— Como você sabe tanto sobre esse ser alienígena? Após
fortes batidas na porta, o comandante Broad entra.
— Lamento interromper, capitão, mas preciso falar com o
senhor em particular.
O capitão Loos sai com ele.
— Dr. Rosen, o senhor diz que esse ser vai destruir a
humanidade em 21 de dezembro. Como sabe disso?
— Como eu disse, dr. Teperman, ele se comunicou comigo.
As intenções dele podem não ter sido verbalizadas, mas
eram bastante claras.
— Ele mencionou o dia 21 para o senhor?
— Não. — Mick pega as anotações do capitão. Ele corre os
olhos sobre elas, tirando distraidamente o clipe do maço de
folhas. — Passei a vida toda estudando as profecias maias,
além de vários sítios arqueológicos ao redor do mundo que
associam essa presença maligna ao fim do mundo. O dia 21 é
a data mencionada no calendário maia, a data em que a
humanidade será varrida da face da Terra. Antes que riam de
mim, precisam saber que o calendário é um instrumento
astronômico preciso...
Chaney esfrega os olhos, perdendo a paciência.
— Eu acho que o senhor não fala como um biólogo, doutor,
e não vejo graça nenhuma nessa sua profecia maia. Um
monte de gente morreu a bordo daquela plataforma, e eu
quero saber a causa da morte.
— Eu já falei. — Mick enfia o clipe na cintura da calça.
— E como conseguiu acesso à nave alienígena?
— Existem 23 túneis situados num círculo perfeito no leito
do oceano, a cerca de 1.500 metros do buraco central.
Minha colega e eu entramos com nosso minissubmarino
num desses túneis. Ficamos presos numa enorme turbina,
que sugou nosso submarino para...
— Uma turbina! — Teperman ergue as sobrancelhas
novamente. — Incrível. Qual a função da turbina?
— Desconfio que seja pra ventilação. O minissubmarino
emperrou as lâminas durante a aspiração. Quando os rotores
reverteram pra drenar a câmara, fomos lançados de volta ao
mar.
O capitão Loos volta para a sala de reuniões com uma
expressão irônica.
— Fiquei a par de uma situação, vice-presidente, que pode
explicar muita coisa. Parece que o dr. Rosen não é quem diz
ser. O verdadeiro nome dele é Michael Gabriel, e ele
escapou semana passada de um hospital psiquiátrico em
Miami.
Chaney e Marvin olham para Mick com ar descrente.
Mick olha nos olhos do vice-presidente.
— Não sou doente mental. Menti sobre minha identidade
porque a polícia está atrás de mim, mas não sou louco.
O capitão Loos lê um fax.
— Aqui diz que você esteve preso pelos últimos 11 anos,
depois de um incidente envolvendo Pierre Borgia.
Chaney arregala os olhos.
— Borgia, o secretário de Estado?
— O Borgia atacou verbalmente meu pai, ele foi humilhado
diante de uma assembléia lotada de colegas de trabalho.
Perdi o controle. O Borgia manipulou o sistema judiciário.
Em vez de ser preso por simples agressão, ele fez com que
eu fosse internado numa instituição.
O capitão Loos entrega o fax a Chaney.
— O pai de Mick era o Julius Gabriel.
Marvin parece surpreso.
— Julius Gabriel, o arqueólogo?
O capitão sorri com desdém.
— O charlatão que tentou convencer a comunidade
científica de que a humanidade estava à beira da destruição.
Lembro que li a respeito. A morte dele saiu na capa da Time.
Chaney ergue os olhos do fax.
— Tal pai, tal filho.
— Talvez ele tivesse razão — murmura Marvin.
O rosto do capitão fica rubro.
— O Julius Gabriel era um lunático, dr. Teperman. Na
minha opinião, pelo fruto se conhece a árvore. Este homem
já tomou muito o nosso tempo.
Mick se levanta, exaltado.
— Tudo o que acabei de contar é verdade...
— Por que não para com essa farsa, Gabriel? Encontramos o
diário do seu pai no minissubmarino. A única finalidade da
sua história é convencer a gente e o resto do mundo de que
as teorias ridículas do seu pai eram verdadeiras.
O capitão abre a porta.
Dois seguranças armados entram.
— Vice-presidente, a menos que o senhor ainda precise
deste homem, recebi instruções para prendê-lo.
— Instruções de quem?
— Do secretário Borgia, senhor. Ele está a caminho.
Sydney, Austrália
O jato supersônico Dassault voa sobre o Pacífico Sul a 1.900
quilômetros por hora, seu design alongado mal registrando
qualquer turbulência. Embora haja oito assentos no avião de
três turbinas, 31 metros de comprimento e asas triangulares,
somente três estão ocupados.
A embaixatriz americana na Austrália, Barbara Becker, se
espreguiça ao acordar. Ela olha para o relógio quando o jato
começa a descer sobre a Austrália. De Los Angeles a Sydney
em menos de sete horas e meia. Nada mal. Ela se levanta e
atravessa o corredor à direita para se juntar aos dois
cientistas do Instituto de Pesquisas de Energia e Meio
Ambiente.
Steven Taber, um homenzarrão que faz Barbara se lembrar
do senador Jessé Ventura, está apoiado na janelinha,
roncando, enquanto seu colega, o dr. Marty Martinez, digita
furiosamente num laptop.
— Com licença, doutor, mas logo vamos pousar, e eu queria
fazer mais algumas perguntas pra você.
— Só um momento, por favor. — Martinez continua
digitando.
Becker se senta ao lado dele.
— Talvez a gente devesse acordar o seu amigo...
— Estou acordado. — Taber dá um bocejo de urso.
Martinez desliga o computador.
— Pode perguntar, embaixatriz.
— Como o senhor sabe, o governo australiano está em
polvorosa. Eles dizem que mais de 173 mil quilômetros
quadrados de território foram vaporizados na explosão. É
uma área absurdamente grande para simplesmente
desaparecer. Baseado na sua análise preliminar das fotos de
satélite, o senhor diria que esse acidente foi causado por um
fenômeno natural, como o monte Santa Helena, ou será que
houve causas humanas?
Martinez dá de ombros.
— Prefiro não responder, pelo menos até completarmos
nossos testes.
— Entendo. Mas...
— Embaixatriz, o sr. Taber e eu estamos aqui representando
o Conselho de Segurança das Nações Unidas, não os Estados
Unidos. Sei que a senhora está no meio de um turbilhão
político, mas prefiro não especular...
— Calma, Marty. — Taber se inclina para a frente. — Vou
responder à sua pergunta, embaixatriz. Primeiro, pode
esquecer qualquer coisa semelhante a uma catástrofe natural.
Aquilo não foi nenhum terremoto ou vulcão. Na minha
opinião, estamos lidando com o teste de um novo tipo de
dispositivo termonuclear. Com o perdão da expressão, eu
fico me cagando de medo só de pensar na possibilidade.
Martinez balança a cabeça negativamente.
— Steven, você não pode afirmar com certeza...
— Vamos, Marty, chega de bobagem. Você e eu temos a
mesma suspeita. Vai todo mundo ficar sabendo mesmo.
— Ficar sabendo o quê? Falem comigo. Do que vocês
suspeitam?
Martinez fecha o seu laptop com violência.
— Nada que não seja motivo de protesto para os cientistas
do Instituto há mais de uma década. Armas de fusão, fusão
pura.
— Me desculpe, não sou cientista. O que você quer dizer
com fusão pura?
— Não me surpreende que não tenha ouvido falar — Taber
diz. — Por alguma razão, esse assunto nunca foi levado a
público. Existem três tipos de armas nucleares: a bomba
atômica, a bomba de hidrogênio ou bomba H e a bomba de
fusão pura. A bomba atômica usa fissão, que é o processo de
dividir um núcleo atômico pesado em dois ou mais
fragmentos. Essencialmente, a bomba A é uma esfera cheia
de explosivos detonados eletronicamente. Dentro da esfera
há uma bola de plutônio do tamanho de um melão, e no
centro dela tem um dispositivo que libera uma chuva de
nêutrons. Quando os explosivos são detonados, o plutônio é
esmagado e vira uma massa derretida. Os átomos são
divididos em fragmentos, criando uma reação em cadeia
que, por sua vez, libera quantidades imensas de energia. Se
eu estiver indo rápido demais, é só dizer.
— Continue.
— Numa bomba de hidrogênio, o urânio-235 absorve um
nêutron. A fissão acontece quando o nêutron se parte,
produzindo dois núcleos menores, vários nêutrons e muita
energia. Isso produz a temperatura e a densidade necessárias
para a fusão do deutério e do trítio, que são dois isótopos de
hidrogênio...
— Peraí, calma, já me perdi. Martinez se vira para a
embaixatriz.
— Os detalhes não são importantes. O que a senhora precisa
saber é que a fusão é diferente da fissão. A fusão é a reação
que acontece quando dois átomos de hidrogênio se juntam,
ou se fundem, pra formar um átomo de hélio. Esse processo,
o mesmo que acontece no Sol, libera quantidades de energia
muito maiores do que a fissão, causando uma explosão ainda
mais forte.
Taber faz que sim.
— O fator crucial, que no fim das contas determina a
potência de uma arma termonuclear, é o que origina a
explosão. Uma bomba de fusão pura é muito diferente de
uma atômica ou de hidrogênio, pois não requer um gatilho
de fissão pra causar a fusão. Isso significa que o plutônio ou o
urânio enriquecido não são necessários pro projeto. A boa
notícia é que a ausência de plutônio significa pouca ou
nenhuma radioatividade residual. A má notícia é que um
dispositivo de fusão pura relativamente pequeno teria um
poder explosivo muito maior até do que a nossa mais
moderna bomba de hidrogênio.
— Maior quanto?
— Vou dar um exemplo — diz Martinez. — A bomba
atômica que jogamos em Hiroshima gerou uma quantidade
de energia equivalente a 15 quilotons, ou 15 mil toneladas
de TNT. Temperaturas no centro da explosão chegaram a
3.800 graus, com um vento de velocidade estimada em
1.580 quilômetros por hora. A maioria das pessoas num raio
de 800 metros morreu. Isso numa explosão de 15 quilotons.
Nossa versão moderna da bomba H tem o poder de 20 a 50
megatons, ou 50 milhões de toneladas de TNT, o
equivalente a 2 ou 3 mil bombas como a de Hiroshima. Uma
bomba de fusão pura tem um potencial destrutivo ainda
maior. Bastaria uma pequena bomba de fusão pura de 2
quilotons para causar o mesmo impacto criado por uma
bomba H de 30 megatons. E uma tonelada de TNT de fusão
pura para cada 15 milhões de toneladas de TNT geradas por
uma bomba de hidrogênio. Se quiséssemos dizimar uma área
de 173 mil quilômetros quadrados, a fusão pura seria o
melhor caminho.
Meu Deus... Apesar do forte ar-condicionado, Barbara sente
o suor acumulado.
— E vocês acham possível que uma potência estrangeira
tenha desenvolvido esse dispositivo?
Martinez e Taber se entreolham.
— O que foi? Falem!
Taber passa a mão na testa.
— A viabilidade de se desenvolver um dispositivo de fusão
pura não foi provada oficialmente, embaixatriz, mas os
Estados Unidos e a França já vêm fazendo experiências há
mais de uma década.
O dr. Martinez olha nos olhos dela.
— Como já falei, nada disso deveria ser tão chocante. Os
cientistas do Instituto estão questionando a moralidade e a
legalidade desse trabalho há anos. Tudo isso viola
diretamente o Tratado Abrangente Contra Testes.
— Um momento, Marty— diz Taber. — Nós dois sabemos
que o TACT não menciona a fusão pura.
— Por que não, caramba? — pergunta a embaixatriz.
— É uma chicana judicial que não foi corrigida, sobretudo
porque nenhuma nação jamais anunciou formalmente a
intenção de construir uma arma de fusão pura.
— Vocês acham que os franceses teriam vendido a
tecnologia para os australianos?
— Não somos políticos, embaixatriz Becker — declara
Taber. — De qualquer forma, quem pode dizer que foram os
franceses? Podem ter sido os russos ou até os bons e velhos
Estados Unidos, pelo que sabemos.
Martinez concorda com um movimento da cabeça.
— Os Estados Unidos já estavam na frente. Testar essa arma
na Austrália colocaria pontos de interrogação na cabeça de
todo mundo.
Barbara balança a cabeça.
— Meu Deus, estou entrando num vespeiro. Todos os cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança vão
enviar representantes. Todos vão ficar trocando acusações.
Martinez encosta a cabeça no assento e fecha os olhos.
— A senhora ainda não entendeu o significado de tudo isso,
não é, embaixatriz? A fusão pura é a bomba do fim do
mundo. Nenhum país, nem os Estados Unidos, deveria ter
sido autorizado a realizar qualquer tipo de experiência com
fusão pura. Não importa qual país a desenvolva primeiro. A
arma pode destruir todos nós.
Barbara sente seu estômago afundar quando o Dassault
pousa. O jato taxia pela pista até um Seahawk Sikorsky S-
70B-2 que está à espera.
Um cavalheiro alto, usando macacão preto de neoprene, os
cumprimenta na pista de pouso. Ele se aproxima de Barbara
e estende a mão.
— Embaixatriz, sou Karl Brandt, da Organização Australiana
de Pesquisa Geológica, como vai? Me desculpe pelos trajes,
mas os macacões de chumbo que vamos usar são bastante
desconfortáveis. Imagino que vocês sejam do Instituto de
Pesquisas de Energia e Meio Ambiente?
Taber e Martinez se apresentam.
— Muito bem. Olha, não quero apressar vocês, mas
Nullarbor, ou o que restou dela, fica a duas horas daqui, e
não quero perder a luz do dia.
— E os outros membros da delegação do Conselho de
Segurança?
— Já estão esperando no helicóptero.
Golfo do México
Mick se ajoelha ao lado da porta de aço da cela de 2 metros e
meio por 3, lutando para se manter acordado enquanto
sonda o buraco da fechadura com o pedaço de arame.
— Droga! — Ele se deixa cair contra a parede, olhando para
a ponta do clipe quebrado, agora emperrada na fechadura.
Não adianta... não consigo me concentrar. Preciso dormir,
preciso descansar um pouco. Ele fecha os olhos e abre em
seguida.
— Não! Fique acordado, mexa na fechadura. O Borgia logo
vai estar aqui e...
— Mick?
A voz o assusta.
— Mick Gabriel, está aí dentro?
— Teperman?
Uma chave gira na fechadura e a porta é aberta. Marvin
entra, deixando a porta escancarada.
— Aí está você. Deu trabalho encontrá-lo, este barco é
grande. — Ele entrega a Mick o diário encapado em couro.
— Leitura interessante. Mas também seu pai sempre teve
bastante imaginação.
Mick olha para a porta.
— Conheci seu pai, sabia? Foi em Cambridge, no final dos
anos 1960. Eu estava no terceiro ano da faculdade. O Julius
foi o orador convidado num ciclo de palestras intitulado
"Mistérios da Humanidade Antiga". Eu o achei brilhante.
Aliás, foi o discurso dele que me motivou a seguir carreira
na exobiologia.
Marvin nota que Mick está olhando a porta. Ele se vira e vê
o clipe espetado na fechadura.
— Assim você não vai muito longe.
— Dr. Teperman, preciso sair daqui.
— Eu sei. Tome isto. — Marvin enfia a mão no bolso do
paletó, puxando um maço de notas. — Tem pouco mais de
seiscentos dólares aí, alguns canadenses. Não é muito, mas
deve bastar para você chegar aonde precisa.
— Você está me libertando?
— Eu não. Sou só o mensageiro. Seu pai foi uma grande
influência, mas eu não gostava tanto assim dele.
— Não entendi.
— Sua fuga foi planejada por alguém que despreza o
secretário Borgia tanto quanto você.
Chaney?
— Então você não está me soltando porque acredita na
minha história?
Marvin sorri, dando-lhe um tapinha afetuoso na face.
— Você é um bom menino, Mick, mas, como o seu pai, é
um pouco biruta. Agora ouça com atenção. Vire à esquerda
e siga este corredor de acesso até o fim. Vai chegar a uma
escada de três lances que leva até o deque principal. Tem um
hangar na popa. Dentro dele, no chão, estão os cadáveres
das vítimas da plataforma petrolífera. Pegue um saco vazio,
entre dentro dele e espere. Daqui a trinta minutos, um
helicóptero da EVAC vai chegar pra transportar os mortos
pro aeroporto de Mérida. Depois disso, você está por sua
conta.
— Obrigado... espere, e a Dominique?
— Sua namorada está melhor, mas não está em condições
de viajar. Quer mandar um recado pra ela?
— Por favor. Diga que não vou desistir até fechar esse
quebra-cabeça.
— Aonde vai?
— Quer mesmo saber?
— Melhor não. Agora saia daqui antes que nos prendam.
Sul da Austrália
A embaixatriz Becker olha pela janela, ouvindo com atenção
a conversa que acontece no fundo do helicóptero entre os
delegados da Federação Russa, da China e da França.
Spencer Botchin, o representante do Reino Unido, curva-se
para sussurrar no ouvido dela.
— Só podem ter sido os franceses. Espero que não tenham
sido estúpidos a ponto de vender esse negócio para os
iranianos.
Ela balança a cabeça, concordando.
— Eles não teriam testado a arma sem o apoio da Rússia e
dos chineses — murmura ela.
É fim de tarde quando o helicóptero chega ao sul da
Austrália. Barbara Becker olha pela janela, e a visão a deixa
literalmente arrepiada.
A paisagem é uma enorme cratera carbonizada, uma
depressão fumegante que se estende até onde a vista alcança,
em todas as direções.
Karl Brandt se senta perto dela.
— Há três dias, essa área ficava 40 metros acima do nível do
mar. Agora, na maioria dos lugares, mal atinge um metro e
meio.
— Como é que alguma coisa consegue vaporizar tanta
rocha?
Steve Taber para de ajudar o dr. Martinez a vestir o macacão
de chumbo.
— A julgar pela cratera que estamos vendo, eu diria que
houve uma explosão subterrânea de incrível magnitude.
Brandt veste seu traje à prova de radiação e fecha o zíper.
— Os tanques destes trajes nos fornecem ar por trinta
minutos.
O dr. Martinez se esforça para fazer um sinal de positivo
com as pesadas luvas. Taber entrega o contador Geiger ao
colega.
— Marty, tem certeza de que não quer que eu desça com
você?
— Eu dou conta.
O co-piloto se aproxima, ajudando Brandt e Martinez a
vestirem os arreios ligados por cabos a dois guinchos
hidráulicos.
— Cavalheiros, há um intercomunicador nos seus
capacetes. Vocês poderão se comunicar conosco e um com
o outro. Vamos ter que soltar vocês quando tocarem no
chão. — Ele abre a porta do compartimento de carga,
gritando por cima do barulho ensurdecedor das hélices: —
Certo, rapazes, pra fora.
Os cinco embaixadores se aproximam para olhar. Martinez
sente o coração pular na garganta quando atravessa a porta e
fica pendurado a 47 metros do chão. Ele fecha os olhos,
sentindo-se girar enquanto desce.
— Tudo bem aí, doutor?
— Sim, sr. Brandt. — Ele abre os olhos e verifica o contador
Geiger. — Nenhuma radiação até agora. Muito calor.
— Não se preocupe, os trajes devem nos proteger.
— Devem? — Martinez olha para baixo. Baforadas de
fumaça branca sobem até ele, embaçando sua viseira. Mais 3
metros...
— Esperem! Parem! Parem! — Martinez ergue os joelhos
até o peito, lutando para se afastar da superfície derretida
abaixo dele. — Levantem a gente! Mais alto! Mais alto!
Os dois homens param de descer e ficam pendurados a
centímetros do solo branco, leitoso, fervilhando a 340 graus.
— Nos levantem 6 metros — grita Brandt. O guincho os
levanta.
— Qual é o problema? — A voz de Barbara penetra em seus
tímpanos.
— A superfície está fervendo, é um caldeirão de rocha
derretida e água do mar — diz Martinez, com voz aguda e
nervosa. — Faremos nossos testes daqui. Só vai levar um
minuto.
A voz grave de Taber o sobressalta.
— Alguma radiação?
Martinez verifica os sensores.
— Não. Peraí, estou detectando argônio-4l.
Brandt olha.
— Não é um subproduto do plutônio?
— Não, é um produto de vida curta da ativação da fusão
pura. O que vaporizou esta paisagem devia ser alguma
espécie de arma híbrida de fusão pura. — Martinez prende o
contador Geiger no cinto, depois analisa os gases que sobem
do solo. — Uau. O nível de dióxido de carbono está fora da
escala.
— É compreensível — diz Brandt. — Toda esta planície era
feita de calcário, que é um depósito natural de dióxido de
carbono. Quando o solo foi vaporizado, liberou uma nuvem
tóxica de CO2. Na verdade, tivemos sorte, os ventos do sul a
sopraram pro mar, pra longe das nossas cidades.
— Também estou detectando altos níveis de ácido
clorídrico.
— É mesmo? Isso é esquisito.
— Sim, sr. Brandt, tudo isso é esquisito e bastante
assustador. Puxem a gente pra cima, já vi tudo o que eu
precisava ver.
Aeroporto de Mérida
México
O helicóptero pousa com um tranco assustador.
Mick abre os olhos, respirando profundamente para espantar
o sono de seu corpo. Ele levanta a cabeça para fora do saco
aberto e olha ao redor.
Sessenta e quatro sacos verde-oliva de cadáveres, contendo
os restos da tripulação da Scylla, ocupam o interior. Mick
ouve o barulho das portas deslizantes. Ele se deita e fecha o
zíper do saco.
As portas se abrem. Mick reconhece a voz do piloto.
— Vou estar no hangar. Peça aos seus homens que tomem
bastante cuidado, compreende, amigo?
O homem responde num espanhol rápido. Homens
começam a transportar os sacos. Mick fica totalmente
imóvel.
Vários minutos se passam. Ele ouve o motor de um
caminhão partir e sumir a distância.
Ele abre o zíper do saco e olha pelo vão da porta, avistando
o veículo indo para um hangar aberto.
Mick sai do saco, salta do helicóptero e corre até o terminal
principal.
Diário de Julius Gabriel
Foi no outono de 1977 que Maria e eu voltamos para a J.
Mesoamérica, minha esposa agora grávida de seis meses.
Precisando desesperadamente de financiamento, decidimos
submeter nosso trabalho a Cambridge e Harvard, tomando o
cuidado de omitir quaisquer informações relativas à presença
de uma raça de humanóides alienígenas. Impressionados
com nossa pesquisa, os poderes acadêmicos nos
recompensaram com bolsas de pesquisa para que
continuássemos nosso trabalho.
Depois de comprar um trailer usado, saímos para explorar as
ruínas maias, esperando identificar a pirâmide
mesoamericana que o artista de Nazca desenhara no deserto
do pampa, bem como uma maneira de salvar a humanidade
da destruição profetizada.
Apesar da morbidez da nossa missão, os anos que passamos
no México foram felizes. Nosso momento favorito foi o
nascimento do nosso filho, Michael, no alvorecer da manhã
de Natal, na sala de espera de uma pequena clínica médica
em Mérida.
Devo admitir que me preocupava bastante criar um filho em
condições tão duras, por temer que o isolamento de Michael
das outras crianças da sua idade pudesse impedir o
desenvolvimento social do menino. À certo ponto, até
sugeri a minha esposa que o enviássemos a um internato
particular quando ele completasse 5 anos. Maria não quis
nem saber. No final, capitulei aos seus desejos, percebendo
que ela precisava da companhia do menino tanto quanto ele
precisava da dela.
Maria era mais do que a mãe de Michael, era sua mentora,
guia e melhor amiga — e ele, seu aluno prodígio. Até na
mais tenra idade, era fácil perceber que o menino possuía a
mente perspicaz da mãe, como acompanhamento daqueles
olhos negros de ébano e seu olhar desarmante.
Durante sete anos, nossa família vasculhou as densas selvas
hoje existentes no México, Belize, Guatemala, Honduras e El
Salvador. Enquanto outros pais ensinavam os filhos a jogar
beisebol, eu ensinava meu filho a escavar artefatos.
Enquanto outros alunos aprendiam um idioma estrangeiro,
Michael aprendia a traduzir hieróglifos maias. Juntos, nós
três escalamos os templos de Uxmal, Palenque e Tikal,
exploramos as fortificações de Labna, Churihuhu e Kewik, e
nos maravilhamos com o castelo de Tulum. Investigamos a
capital zapoteca de Monte Alban e os centros religiosos em
Kaminaljuyu e Copán. Rastejamos através de tumbas e
mergulhamos em cavernas subterrâneas. Descobrimos
plataformas antigas e entrevistamos anciãos maias. E no
final, reduzimos a identidade da pirâmide do desenho de
Nazca a um entre dois sítios antigos, ambos, nós
acreditávamos, peças do quebra-cabeça da profecia do
calendário maia.
O primeiro sítio era Teotihuacán, uma magnífica cidade
tolteca situada sobre um platô a 2 mil metros de altura nas
montanhas mexicanas, uns 48 quilômetros a nordeste da
atual Cidade do México. Supostamente fundada na época de
Cristo, Teotihuacán foi a primeira grande metrópole do
hemisfério ocidental, e acredita-se que tenha sido uma das
maiores.
Como as estruturas de Gizé, as origens de Teotihuacán
continuam sendo um mistério. Não fazemos idéia de qual
cultura projetou a cidade, como a façanha foi realizada, ou
mesmo que língua era falada por seus habitantes originais.
Como no caso da Esfinge e das pirâmides de Gizé, a data da
construção de Teotihuacán ainda é muito debatida. Até o
nome do complexo e de suas pirâmides nos chegaram da
civilização tolteca, que se mudou para lá séculos depois que
a cidade foi abandonada.
Estima-se que o trabalho de construir as estruturas de
Teotihuacán tenha ocupado um exército de 20 mil homens
durante mais de quarenta anos. No entanto, não foi o
mistério de como a cidade foi construída que de cara nos
chamou a atenção, mas seu projeto e as óbvias semelhanças
com a planta de Gizé.
Conforme já falei, há três pirâmides principais em Gizé,
dispostas em referência às estrelas do Cinturão de Órion,
com o Nilo representando uma reflexão da fenda escura da
Via Láctea. Teotihuacán também tem três pirâmides,
dispostas numa formação alternada surpreendentemente
semelhante, embora a orientação difira em quase 180 graus.
Ligando uma ponta da cidade à outra está a avenida dos
Mortos, a principal rota de acesso através do complexo. A
avenida, como o rio Nilo em Gizé, fora projetada para
representar a fenda escura da Via Láctea.
Para os indígenas mesoamericanos da antiguidade, a fenda
escura era conhecida como Xibalba Be, a Estrada Negra que
leva até Xibalba, o Mundo Inferior. Novas escavações em
Teotihuacán descobriram largos canais sob essa estrada, que,
agora sabemos, foram projetados para coletar água da chuva.
Isso indicaria que a avenida dos Mortos talvez nunca tenha
sido uma estrada, e sim um magnífico espelho d'água
cósmico.
As similaridades entre Gizé e Teotihuacán não param aí. O
maior dos três templos da cidade mesoamericana é chamado
de Pirâmide do Sol, uma estrutura precisa de quatro lados
cuja base, com 226,3 metros, é apenas 3,8 metros mais curta
que sua equivalente egípcia, a Grande Pirâmide de Gizé. Isso
faz da Pirâmide do Sol a maior estrutura construída pelo
homem do hemisfério ocidental, sendo a Grande Pirâmide a
maior do Oriente. O interessante é que a Pirâmide do Sol
aponta para o oeste, e a Grande Pirâmide, para o leste, um
fato que fazia Maria pensar nessas duas imensas estruturas
como gigantescos terminais planetários.
Medições precisas da Grande Pirâmide e da Pirâmide do Sol
indicam claramente que os antigos arquitetos das duas
estruturas possuíam amplo conhecimento de Matemática
avançada, Geometria e do valor de pi. O perímetro da
Pirâmide do Sol é igual à sua altura multiplicada por 2 pi e a
Grande Pirâmide tem o dobro de sua altura, 4 pi.
Uma pista sobre quem projetou Teotihuacán pode ser
encontrada na menor das três estruturas, a Pirâmide de
Quetzalcoatl. O templo está localizado num enorme
quadrilátero murado, chamado de Ciudadela (Cidadela), uma
praça grande o suficiente para acomodar 100 mil pessoas. A
estrutura mais elaboradamente adereçada de toda
Teotihuacán, a Pirâmide de Quetzalcoatl contém uma
miríade de esculturas e fachadas tridimensionais que
representam uma personagem em particular — uma
ameaçadora serpente emplumada.
Para os toltecas e astecas, a serpente emplumada simbolizava
o grande sábio caucasiano, Quetzalcoatl.
Mais uma vez, a presença de um misterioso mestre barbado
parecia dirigir nossa jornada ao passado.
Depois de abandonar Teotihuacán, os toltecas e seu líder
migraram para o leste, assentando-se na cidade maia de
Chichén Itzá. Foi ali que as duas culturas se fundiram
novamente numa só, criando a estrutura mais magnífica e
intrigante de todo o mundo antigo — a pirâmide de
Kukulcán.
Eu não sabia disso na época, mas seria em Chichén Itzá que
ficaríamos cara a cara com uma descoberta que não mudaria
apenas o destino da minha família, mas nos condenaria a
permanecer em nossa jornada para sempre.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1977-81 páginas 12-349
Diário Fotográfico, Disquete 5: Nome do arquivo: MESO,
Foto de Balão 176
19
4 DE DEZEMBRO DE 2012
A BORDO DA USS BOONE
GOLFO DO MÉXICO
O secretário de Estado Pierre Borgia desce do helicóptero e
é recebido pelo capitão Edmund Loos.
— Bom dia, secretário. Como foi o vôo?
— Uma droga. O diretor psiquiátrico de Miami já chegou?
— Há uns vinte minutos. Está à sua espera na minha sala de
reuniões.
— Quais as últimas notícias sobre o Gabriel?
— Ainda não sabemos ao certo como ele conseguiu fugir da
cela. A fechadura mostra sinais de manipulação, mas nada
significativo. Nossa melhor hipótese é que alguém o tenha
libertado.
— Foi a garota?
— Não, senhor. Ela sofreu uma concussão e estava na
enfermaria, inconsciente. Ainda estamos investigando.
— E como ele conseguiu sair do navio?
— Provavelmente pegou carona num helicóptero da EVAC.
Eles transportaram corpos o dia todo.
Borgia olha com frieza para o capitão.
— Espero que não comande seu navio como vigia seus
prisioneiros, capitão.
Loos devolve o olhar.
— Isto não é um serviço de babás, secretário. Duvido que
um de meus homens se arriscasse a apodrecer na cadeia pra
libertar o seu biruta.
— Quem mais poderia tê-lo libertado?
— Não sei. Temos equipes de cientistas a bordo, e mais
chegando todo dia. Poderia ter sido um deles, ou até alguém
da equipe do vice-presidente.
Borgia ergue as sobrancelhas.
— Como falei, ainda estamos investigando. Também
alertamos a polícia mexicana sobre a fuga.
— Nunca vão encontrá-lo. O Gabriel tem amigos demais
em Yucatán. E a garota? O que ela sabe sobre o objeto
alienígena?
— Ela diz que só se lembra do minissubmarino sendo
sugado por um túnel. Um dos nossos geólogos a convenceu
de que a embarcação foi apanhada pela corrente de um canal
de lava, criado por um vulcão subterrâneo dormente que
está voltando à atividade. — Loos sorri. — Ele explicou que
o brilho é causado por um rio de lava subterrâneo que pode
ser visto fluindo pelo abismo no fundo do mar. Até mostrou
a ela algumas fotos infravermelhas de satélite do
redemoinho, todas falsas, dizendo que o vórtice foi causado
pelo desabamento de bolsões subterrâneos sob o leito do
oceano. Ela acredita que foi isso que afundou o barco do pai,
matando ele e os dois amigos.
— Onde ela está agora?
— Na enfermaria.
— Me dê alguns minutos pra falar com o diretor
psiquiátrico a sós, depois traga a garota. Enquanto falamos
com ela, mande costurar isto na roupa dela. — Ele entrega a
Loos um pequeno aparelho do tamanho de uma bateria de
relógio.
— Um rastreador?
— Um presentinho da Agência de Segurança Nacional. Ah,
capitão, quando trouxer a garota pra falar comigo, coloque
algemas.
Dois marinheiros armados conduzem uma Dominique
Vazquez algemada e nervosa por vários corredores estreitos,
depois sobem três lances de escada até uma cabine com o
escrito SALA DE REUNIÕES DO CAPITÃO. Um dos
guardas bate na porta, depois abre e a leva para dentro.
Dominique entra na pequena sala de conferências.
— Meu Deus...
Anthony Foletta ergue os olhos da mesa e sorri.
— Residente Vazquez, entre. — A voz rouca tem um tom
paternal. — Secretário, as algemas são mesmo necessárias?
O caolho fecha a porta atrás dela, depois toma o seu lugar à
mesa, diante de Foletta.
— Temo que sim, dr. Foletta. A srta. Vazquez ajudou um
condenado perigoso.
Ele olha para Dominique e pede que ela se sente.
— Sabe quem eu sou?
— Pierre Borgia. Eu... achei que o senhor vinha para cá três
dias atrás.
— Bem, tivemos um probleminha na Austrália que exigiu
nossa atenção.
— Está aqui pra me prender?
— Isso depende totalmente da senhorita.
— Não é você que queremos, Dominique — diz Foletta. —
É o Mick. Você sabe onde ele está, não sabe?
— Como eu iria saber? Ele fugiu enquanto eu estava
inconsciente.
— Ela é bonita, não acha, doutor? — O olhar de Borgia faz
suor brotar do lábio superior de Dominique. — Não admira
que o Mick tenha se encantado. Me diga, srta. Vazquez, o
que a motivou a ajudá-lo a fugir do hospital?
Foletta interrompe antes que ela possa responder.
— Ela estava confusa, secretário. O senhor sabe o quanto o
Gabriel é esperto. Ele usou o trauma de infância da
Dominique para coagi-la a ajudá-lo.
— Isso não é totalmente verdade — diz ela, achando difícil
não fitar o tapa-olho permanente de Borgia. — O Mick sabia
que havia algo no Golfo. E sabia sobre a transmissão vinda
do espaço...
Foletta põe a mão suada no antebraço dela.
— Residente, você precisa encarar a realidade. O Mick
Gabriel te usou. Estava planejando fugir desde o momento
em que te conheceu.
— Não, não acredito nisso...
— Talvez apenas não queira acreditar — diz Borgia. — A
verdade é que o seu pai ainda estaria vivo se o Mick não
tivesse te coagido a ajudá-lo.
Os olhos de Dominique se enchem de lágrimas.
Borgia retira uma ficha de sua pasta e a examina por um
momento.
— Isadore Axler, biólogo, residente na ilha de Sanibel. Tem
uma lista de credenciais bem extensa. Não era seu pai
biológico, certo?
— Era o único pai que conheci na vida.
Borgia continua examinando a ficha.
— Ah, aqui está. Edith Axler. Sabia que eu a conheci? Uma
boa mulher.
Dominique sente calafrios sob o agasalho da Marinha.
— O senhor falou com a Edie?
— Só o suficiente para dar a ela voz de prisão.
As palavras a fazem pular de pé.
— Edie não tomou parte na fuga do Mick! Fui só eu. Eu
planejei tudo...
— Não estou interessado numa confissão, srta. Vazquez. O
que eu quero é o Michael Gabriel. Se eu não puder pegá-lo,
vou simplesmente trancafiar vocês duas por muito tempo.
Naturalmente, no caso da Edith, não vai ser tanto tempo
assim. Ela já está em idade avançada, e a morte do marido,
obviamente, teve um impacto.
O coração de Dominique dispara.
— Já falei, não sei onde ele está.
— Se a senhorita diz. — Borgia se levanta e vai até a porta.
— Espere, me deixe falar com ela — diz Foletta. — Me dê
cinco minutos.
Borgia olha para o relógio.
— Cinco minutos. — Ele sai da cabine.
Dominique apóia a cabeça na mesa, suas entranhas
tremendo, suas lágrimas formando uma poça sobre o tampo
de aço.
— Por que tudo isso está acontecendo?
— Shh. — Foletta afaga-lhe o cabelo, sua voz um sussurro
calmante. — Dominique, o Borgia não quer prender você e
a sua mãe. Ele só está com medo.
Ela levanta a cabeça.
— Medo de quê?
— Do Mick. Ele sabe que o Mick quer se vingar, que nada o
impedirá de matá-lo.
— O Mick não faria isso...
— Você está enganada. O Borgia o conhece melhor do que
você ou eu. A história deles é bem antiga. Sabia que o Borgia
foi noivo da mãe do Mick? O Julius Gabriel roubou a noiva
dele na véspera do casamento. Existe muito ressentimento
entre as famílias.
— O Mick não se importa com vingança. Está mais
preocupado com essa profecia maia.
— O Mick é esperto. Não vai contar a você nem a ninguém
seu verdadeiro motivo. Eu acho que ele está escondido em
Yucatán. Sua família tinha muitos amigos lá que podem
ajudá-lo. Vai ficar na moita por uns tempos e depois vai
pegar o Borgia, provavelmente em alguma aparição pública.
Pense nisso, Dominique, você acha mesmo que o secretário
de Estado dos Estados Unidos viria até aqui te ver se não
estivesse apavorado? Daqui a alguns anos, ele vai concorrer à
presidência. A última coisa com que vai querer se preocupar
é um paranóico-esquizofrênico com QI 160 planejando o
seu assassinato.
Dominique enxuga os olhos. Será que é verdade? Será que o
Mick realmente usou a pesquisa da família pra me enganar?
— Suponhamos que eu acredite no senhor. O que acha que
devo fazer?
Os olhos de Foletta piscam para ela.
— Me deixe te ajudar a entrar num acordo com o Borgia.
Imunidade total pra você e sua mãe se você levar as
autoridades até o Mick.
— A última vez que fizemos um acordo, o senhor mentiu.
Nunca teve nenhuma intenção de reavaliar o Mick ou dar a
ele o tratamento necessário. Por que eu deveria acreditar
agora?
— Eu não menti! — Ele fica de pé, gritando as palavras. —
Eu ainda não tinha sido oficialmente nomeado pro emprego
em Tampa, e quem diz o contrário é um mentiroso
descarado! — Ele enxuga o suor da testa, depois alisa o
cabelo grisalho, seu rosto rechonchudo e rubro. —
Dominique, estou aqui pra te ajudar. Se não quiser minha
ajuda, sugiro que arranje um bom advogado.
— Eu quero sua ajuda, doutor, só não sei se posso confiar
no senhor.
— A imunidade será providenciada pelo Borgia, não por
mim. O que estou oferecendo é sua vida como ela era.
— O que está dizendo?
— Já falei com sua orientadora na universidade. Estou te
oferecendo um cargo de residente no novo hospital em
Tampa, perto da casa da sua mãe. Seu trabalho será chefiar a
equipe de terapia do Mick, com um cargo permanente e
benefícios integrais depois que você se formar.
A oferta traz lágrimas de alívio.
— Por que está fazendo isso?
— Porque me sinto culpado. Eu jamais devia ter indicado o
Mick como seu paciente. Você vai ser uma excelente
psiquiatra um dia, mas não estava preparada pra lidar com
um paciente tão manipulador como o Michael Gabriel. A
morte do seu pai, as atribulações que sua família está
passando. Tudo isso é culpa minha. Eu sabia do perigo, mas
resolvi arriscar. Vi em você uma mulher forte que seria
perfeita pra minha equipe, mas precipitei o seu
desenvolvimento. Me desculpe, Dominique. Me dê a
chance de compensar você.
Ele estende a mão roliça.
Dominique olha para ela por um longo momento, depois a
aperta.
6 DE DEZEMBRO DE 2012
WASHINGTON, DC
O vice-presidente Ennis Chaney ergue os olhos do relatório,
acompanhando a entrada dos membros do gabinete de
Segurança Nacional do presidente na sala de guerra da Casa
Branca. Eles se sentam ao redor da mesa oval de
conferências. Meia dúzia de assessores militares e científicos
entram em seguida, ocupando as cadeiras dobráveis extras
dispostas ao redor da sala.
Ennis fecha o documento quando o presidente entra, com o
secretário de Estado atrás dele. Borgia passa por seu lugar à
mesa e se dirige a Chaney.
— Você e eu precisamos conversar.
— Secretário, podemos começar?
— Sim, presidente. — Borgia acha o seu lugar, lançando um
olhar perturbado para Chaney.
O presidente Maller esfrega os olhos injetados, depois lê um
fax.
— Hoje à tarde, o Conselho de Segurança das Nações
Unidas vai emitir um comunicado condenando o teste de
armas de fusão pura como contrário à moratória de fato nos
testes de armas nucleares e aos esforços globais de não
proliferação e desarmamento nuclear. Além disso, o
Conselho vai procurar a ratificação imediata de uma nova
resolução para invalidar a chicana da tecnologia de fusão
pura.
Maller mostra um relatório com o carimbo UMBRA, um
código usado para classificar arquivos acima de TOP
SECRET.
— Presumo que todos tenham examinado este documento.
Pedi que seu autor, o dr. Brae Roodhof, diretor do
Laboratório Nacional de Ignição em Livermore, Califórnia,
estivesse conosco nesta manhã, pois tenho certeza de que
todos nós queremos respostas às nossas perguntas. Doutor?
O dr. Roodhof tem 50 e poucos anos, é alto, grisalho e tem
um rosto bronzeado, enrugado e apaziguador.
— Presidente, senhoras e senhores, quero começar
declarando enfaticamente que não foram os Estados Unidos
que detonaram essa arma de fusão pura.
As entranhas de Ennis Chaney estão reviradas desde que ele
terminou de ler o arquivo UMBRA. Seus olhos lançam
chispas quando ele fita o físico nuclear.
— Doutor, vou lhe fazer uma pergunta, mas quero que saiba
que ela é dirigida a todas as pessoas nesta sala. — O tom do
vice-presidente silencia todos os movimentos ao redor. — O
que eu quero saber é por que, doutor. Por que os Estados
Unidos da América estão conduzindo essa porcaria de
pesquisa suicida?
Os olhos do dr. Roodhof correm pela mesa.
— Senhor, eu... sou só o diretor do projeto. Não é minha
função determinar a política do país. Foi o governo federal
que patrocinou a pesquisa de fusão pura nos laboratórios de
armas nucleares na década de 1990, e foram os militares que
pressionaram para que as bombas fossem projetadas e
construídas...
— Não reduzamos essa questão a uma mera imputação de
culpa, vice-presidente — interrompe o general Fecondo. —
A realidade da situação é que outras potências estavam
pesquisando a tecnologia, e isso nos obrigou a fazer o
mesmo. O LMJ, o complexo Laser Megajoule em Bordeaux,
na França, faz experimentos com fusão pura desde o início
de 1998. Os britânicos e os japoneses têm trabalhado com
fusão magnética não explosiva há anos. Qualquer um desses
países poderia fechar as lacunas de viabilidade para criar
dispositivos termonucleares de não fissão.
Chaney se vira para encarar o general.
— Então por que o resto do mundo, incluindo cientistas do
nosso país, parece pensar que somos os responsáveis pela
detonação na Austrália?
— Porque todos na comunidade científica acreditavam que
nossa pesquisa era a mais avançada — responde o dr.
Roodhof. — O Instituto de Pesquisas de Energia e Meio
Ambiente publicou recentemente um relatório declarando
que os Estados Unidos estavam a dois anos de testar um
dispositivo de fusão pura.
— E estavam certos?
— Ennis...
— Não, me desculpe, presidente, mas eu quero saber.
— Vice-presidente, agora não é hora...
Chaney ignora Maller, seus olhos penetram nos de Roodhof.
— Quão perto estamos, doutor? Roodhof desvia o olhar.
— Catorze meses.
A sala irrompe numa dúzia de conversas paralelas. Borgia
sorri ao ver a expressão do presidente se transformar em
raiva. Isso mesmo, Chaney, continue jogando merda no
ventilador.
Ennis Chaney cai sobre a cadeira, exausto. Ele não está mais
combatendo moinhos de vento, está enfrentando a loucura
globalizada.
O presidente Maller bate com a palma da mão na mesa,
restabelecendo a ordem.
— Já chega! Sr. Chaney, agora não é a hora nem o lugar para
entrarmos num debate aberto sobre as políticas deste
governo ou dos anteriores. A realidade da situação é que
outro governo detonou uma dessas armas. Quero saber
quem foi e se a escolha da data teve algo a ver com a
escalada militar iraniana no estreito de Hormuz.
O diretor da CIA, Patrick Hurley, é o primeiro a responder.
— Senhor, podem ter sido os russos. Os estudos de fusão
magnetizada conduzidos em Los Alamos foram realizados
em cooperação com a Rússia.
O dr. Roodhof balança a cabeça.
— Eu discordo. Os russos abandonaram os estudos quando a
economia deles entrou em colapso. Só podem ter sido os
franceses.
O general Mike Costolo, comandante dos Fuzileiros Navais,
ergue uma mão roliça.
— Dr. Roodhof, pelo que li, essas armas de fusão pura
liberam muito pouca radiação, correto?
— Sim, senhor.
— O que quer dizer, general? — pergunta Dick Przystas.
Costolo se vira para o secretário de Defesa.
— Um dos motivos de o Departamento de Defesa ter
pressionado para que essas armas fossem desenvolvidas, no
início, foi termos descoberto que a Rússia e a China estavam
fornecendo armas nucleares ao Irã. Se uma guerra nuclear
eclodisse no Golfo Pérsico, a fusão pura não só daria ao seu
possuidor uma vantagem tática, mas a falta de radiação
permitiria que a produção de petróleo continuasse. Na
minha opinião, não importa se os franceses ou os russos
atingiram a tecnologia primeiro. A única coisa que importa é
saber se os iranianos possuem a arma. Nesse caso, só a
ameaça já mudaria o equilíbrio de poder no Oriente Médio.
Se o Irã detonasse uma dessas armas no Golfo Pérsico, a
Arábia Saudita, o Kuwait, o Bahrein, o Egito e outros
regimes árabes moderados se veriam obrigados a recusar o
apoio do Ocidente.
Borgia balança a cabeça, concordando.
— Os sauditas ainda hesitam em permitir nosso acesso aos
suprimentos que preparamos. Eles perderam a confiança na
nossa capacidade de manter o estreito de Hormuz aberto.
— Onde estão os porta-aviões? — O presidente pergunta a
Jeffrey Gordon.
— Em preparação para os iminentes exercícios nucleares na
Ásia, mandamos o Harry S. Truman e sua frota para o Mar
Vermelho. O grupo de batalha do Ronald Reagan deve
chegar ao Golfo de Omã daqui a três dias. O William J.
Clinton vai permanecer em patrulha no oceano Indico.
Estamos mandando uma mensagem para o Irã, clara e
simples, de que não temos intenção de permitir que o
estreito de Hormuz seja fechado.
— Só para constar, presidente — declara Chaney —, o
embaixador francês nega veementemente qualquer
responsabilidade nessa explosão.
— O que você esperava? — Borgia reage. — Não enxergue
só as negativas. O Irã ainda deve bilhões de dólares à França,
mas os franceses continuam apoiando os iranianos, como
fazem a Rússia e a China. Também quero salientar que a
Austrália é um dos países que continuou a dar ao Irã taxas de
juros subsidiadas, que eles usaram para aumentar seu arsenal
nuclear, químico e biológico. Você acha mesmo que é só
uma coincidência a arma ter sido testada na região de
Nullarbor?
— Não se precipite culpando os australianos — Sam
Blumner intervém.
— Lembre-se de que foram os créditos maciços dos Estados
Unidos ao Iraque no final dos anos 1980 que levaram
Saddam Hussein a invadir o Kuwait.
— Concordo com o Sam — diz o presidente. — Conversei
bastante com o premier da Austrália. Os partidos Liberal e
Trabalhista se uniram para declarar que o incidente foi um
ato de guerra. Duvido que eles teriam permitido esse teste.
O general Fecondo esfrega as palmas das mãos na careca
bronzeada.
— Presidente, o fato de essas armas de fusão pura existirem
não muda nada. Testar uma arma e usá-la em combate são
duas coisas distintas. Nenhuma nação vai desafiar os Estados
Unidos para um confronto nuclear.
Costolo olha para o chefe do Estado-Maior.
— Me diga, general, se tivéssemos um míssil de cruzeiro
capaz de dizimar todas as plataformas de mísseis terra-ar da
costa iraniana, o senhor o usaria?
Dick Przystas ergue as sobrancelhas.
— Uma idéia tentadora, não é? Eu me pergunto se os
iranianos ficarão menos tentados a desintegrar o Ronald
Reagan e sua frota.
— Vou dizer o que eu penso — diz o ossudo chefe de
Operações Navais.
— Interpreto essa ação como uma salva de alerta. Os russos
estão nos informando que possuem armas de fusão pura,
esperando que sua demonstraçãozinha nos convença a
cancelar o Escudo Antimíssil.
— Que é algo que não podemos fazer — declara Przystas.
— O número de nações renegadas com acesso a armas
nucleares e biológicas dobrou nos últimos cinco anos...
— Enquanto nós continuamos gastando mais e mais
dinheiro na tecnologia de armas nucleares — interrompe
Chaney —, mandando uma mensagem inequívoca ao resto
do mundo de que os Estados Unidos estão mais interessados
em manter a postura do ataque nuclear preventivo do que
em continuar a redução das armas, o mundo segue
avançando pelo caminho do confronto nuclear. Eles sabem,
nós sabemos, mas estamos todos ocupados demais culpando
uns aos outros para mudarmos nosso rumo. Estamos todos
agindo como se tivéssemos bosta na cabeça, e antes de nos
darmos conta do que aconteceu, vamos todos meter os pés
na merda.
Borgia está à espera de Ennis Chaney no corredor quando a
reunião é encerrada.
— Preciso de um minuto.
— Diga.
— Falei com o capitão da Boone.
— E então?
— Me diga, Chaney, por que o vice-presidente dos Estado
Unidos ajudaria um criminoso fugitivo?
— Não sei do que você está falando...
— É o tipo de coisa que pode arruinar uma carreira política.
Os olhos de guaxinim penetram em Borgia.
— Quer me acusar de alguma coisa? Vá em frente. Aliás,
por que nós dois não lavamos toda a nossa roupa suja pra ver
qual sai mais limpa?
Borgia abre um sorrisinho nervoso.
— Calma, Ennis. Ninguém está pedindo um processo
judicial. Eu só quero o Gabriel de volta ao lugar dele, sob os
cuidados de um hospital psiquiátrico.
Chaney passa pelo secretário de Estado, sufocando uma
risada.
— Tudo bem, Pierre, vou ficar de olho pra ver se o
encontro.
7 DE DEZEMBRO DE 2012
GOLFO DO MÉXICO
4h27
O toque incessante interrompe o sono de Edmund Loos. Ele
procura o telefone e limpa a garganta.
— Capitão falando. Prossiga.
— Lamento acordá-lo, senhor. Detectamos atividade no
leito do oceano.
— Estou a caminho.
O mar começou a se agitar quando o capitão entra no Centro
de Informação de Combate.
— Relatório, comandante.
O oficial executivo aponta para uma mesa de luz, onde uma
holografia cúbica tridimensional do mar e do fundo do mar
em tempo real está sendo projetada no ar. Posicionado na
parte de baixo da imagem fantasmagórica, enterrado dentro
da topografia calcária estriada está o objeto alienígena
ovóide, marcado com uma cor laranja brilhante. Um círculo
de energia verde-esmeralda brilha acima da superfície
dorsal do ovóide, fazendo uma coluna de luz subir através de
um túnel vertical que leva até o fundo do mar. A imagem da
Boone pode ser vista flutuando na superfície.
Enquanto o capitão e seu oficial executivo observam,
intrigados, o raio verde parece se alargar à medida que um
turbilhão se forma. Em segundos, o fluxo rodopiante de água
se estreita num poderoso funil submarino, subindo do
buraco no leito até a superfície da água.
— Meu Deus, é como ver um tornado se formando —
murmura Loos. -— É exatamente como o Gabriel falou.
— Perdão, senhor?
— Nada. Comandante, nos mantenha longe do
redemoinho. Peça comunicação com o NORAD e mande
os LAMPS decolarem. Se alguma coisa sair desse
redemoinho, quero ficar sabendo.
— Sim, senhor.
O primeiro-tenente Johnathan Evans corre pelo deque
traseiro, de capacete na mão, seu co-piloto e tripulação já a
bordo do helicóptero antissubmarino LAMPS. Bufando, ele
sobe até o cockpit do Seasprite e afivela os cintos de
segurança.
Evans olha para o co-piloto enquanto luta para recuperar o
fôlego.
— O maldito cigarro ainda vai me matar.
— Quer café?
— Deus te abençoe, meu filho. — Evans pega o copinho de
isopor. — Há três minutos eu estava deitado no meu
beliche, sonhando com a Michelle, e quando dou por mim,
o segundo em comando está gritando comigo, perguntando
por que ainda não estou no ar.
— Bem-vindo à aventura da Marinha.
Evans puxa o manche. O helicóptero se ergue do heliporto,
virando para o sul enquanto sobe para 90 metros. O piloto
posiciona o LAMPS diretamente sobre o mar esmeralda e
rodopiante.
— Puta merda... — Evans e sua tripulação olham para o
redemoinho em expansão, hipnotizados por sua beleza,
apavorados com sua intensidade. O vórtice é um monstro,
um funil espiralado digno da Odisséia de Homero, suas
paredes ondulando com a força das cataratas do Niágara.
Olhando para baixo, com as águas escuras ao seu redor, o
olho esmeralda e brilhante do redemoinho parece uma
galáxia verde luminescente; seu aglomerado de estrelas fica
mais brilhante à medida que a boca do funil se escancara.
— Meu Deus. Eu queria ter minha câmera.
— Não se preocupe, tenente, estamos tirando uma porção
de fotos aqui.
— E eu lá quero saber de infravermelho? Quero uma foto
de verdade, algo que eu possa mandar por e-mail pra casa.
Enquanto Evans olha, o centro do redemoinho se abre de
repente, expondo uma esfera de luz cegante que dispara para
cima como um sol esmeralda, saindo do leito rachado.
— Protejam os olhos...
— Tenente, dois objetos estão saindo do funil!
— Quê? — Evans vira para o operador de radar. — Que
tamanho?
— Grandes. Duas vezes o tamanho do LAMPS.
O piloto puxa o manche quando dois objetos escuros e
alados flutuam para fora do funil. Os mecanismos sem rosto
passam dos dois lados do Seasprite. O tenente vislumbra
rapidamente um disco âmbar brilhante, e o manche fica
mole em sua mão.
— Merda, perdemos velocidade...
— Motores inoperantes, tenente. Tudo parado!
Evans tem uma sensação nauseante quando a aeronave
despenca do céu. O helicóptero bate na parede do
redemoinho com um tranco violento. As hélices se
despedaçam, o pára-brisa do cockpit se parte e o helicóptero
é jogado na coluna vertical de água como se estivesse num
liquidificador. A força centrífuga prega Evans de lado contra
o assento, seus gritos são abafados pelo rugido ensurdecedor
que enche seus ouvidos.
O mundo gira fora de controle quando o funil engole o
LAMPS.
A última coisa que o tenente Johnathan Evans sente é a
estranha sensação de suas vértebras se partindo no abraço
sufocante, como se seu corpo estivesse sendo esmagado
num compactador de lixo gigante.
8 DE DEZEMBRO DE 2012
PARQUE NACIONAL DE CUNUNG MULU
SARAWAK, FEDERAÇÃO DA MALÁSIA
5h32, HORA DA MALÁSIA (13 HORAS DEPOIS)
Sarawak, situado na costa noroeste de Bornéu, é o maior
estado da Federação da Malásia. Gunung Mulu, o maior
parque nacional do Estado, tem 880 quilômetros quadrados
de área e sua paisagem é dominada por três montanhas:
Gunung Mulu, Gunung Benarat e Gunung Api.
Gunung Api é uma montanha formada por calcário, um
mineral que não só domina todo o estado de Sarawak, mas
também a ilha vizinha de Irian Jaya/ Papua-Nova Guiné, e
quase todo o sul da Malásia. O desgaste dessa paisagem
calcária pela chuva levemente ácida formou notáveis
esculturas na superfície e formações subterrâneas.
À meio caminho na encosta do monte Api, apontando para
o céu como um campo de estalagmites fragmentadas, está
uma floresta petrificada de afiadas agulhas de calcário cinza-
prateado, algumas das quais se erguem mais de 45 metros
acima da floresta tropical. Sob o solo, cavado na rocha
calcária por rios subterrâneos, fica um labirinto contendo
mais de 640 quilômetros de cavernas, representando o
maior sistema de cavernas calcárias do mundo.
O estudante Wade Tokumine, de Honolulu, está estudando
as cavernas de Sarawak há três meses, coletando dados
relativos à estabilidade dos blocos subterrâneos de carste do
mundo para a sua tese de mestrado. O carste é um relevo
criado pelo desgaste químico de rocha calcária contendo no
mínimo 80% de carbonato de cálcio. A rede de passagens
subterrâneas de Sarawak é formada inteiramente por carste.
A viagem de hoje marca a nona visita de Wade à caverna da
Água Clara, a mais longa passagem subterrânea de todo o
sudeste da Ásia e uma das quatro cavernas Mula abertas ao
público. O geólogo se inclina para trás na canoa, apontando
a lanterna química para o teto de alabastro da caverna. O
facho de luz corta a escuridão, revelando uma miríade de
estalactites pingando umidade. Wade admira as formações
antigas da rocha, maravilhando-se com os desígnios da
natureza.
Há 4 bilhões de anos, a Terra era um mundo muito jovem,
hostil e sem vida. A medida que o planeta esfriava, vapor
d'água e outros gases eram lançados para o céu em violentas
erupções vulcânicas, criando uma atmosfera rica em dióxido
de carbono, nitrogênio e compostos de hidrogênio,
condições similares àquelas encontradas em Vênus.
A vida no nosso planeta começou na sopa química do mar,
organizando-se em estruturas complexas — quatro
moléculas de aminoácidos básicos em cadeia — animadas
por um catalisador externo, talvez um relâmpago. As duplas
hélices animadas de aminoácidos começaram a se
reproduzir, levando à vida monocelular. Esses organismos
rapidamente aumentaram em abundância e começaram a
esgotar os compostos de carbono do oceano, facilmente
utilizáveis como alimento. Então, uma família peculiar de
bactérias evoluiu para produzir uma nova molécula orgânica
chamada clorofila. Essa substância de cor verde era capaz de
armazenar a energia da luz do sol, permitindo que os
organismos monocelulares criassem carboidratos de alta
qualidade a partir do dióxido de carbono e hidrogênio,
liberando oxigênio como subproduto. Nascia a fotossíntese.
À medida que os níveis planetários de oxigênio
aumentavam, o carbonato de cálcio era retirado do mar e
preso a formações rochosas por organismos marinhos,
reduzindo drasticamente o nível atmosférico planetário de
dióxido de carbono. Essa rocha — o calcário — se tornou o
depósito de dióxido de carbono da Terra. Em decorrência
disso, o nível de dióxido de carbono armazenado na rocha
sedimentar é hoje mais de seiscentas vezes o conteúdo total
de carbono do ar, água e todas as células vivas do planeta
somadas.
Wade Tokumine aponta o facho de luz para a superfície da
água escura da caverna. O rio subterrâneo está carregado
com uma concentração de dióxido de carbono dez vezes
acima do normal. Essa parte do ciclo de carbono ocorre
quando o CO2 dissolvido atinge o ponto de saturação no
calcário. Quando isso acontece, o dióxido de carbono se
precipita como carbonato de cálcio puro, criando as
estalactites e estalagmites que se espalham pelas cavernas de
Sarawak.
Wade se vira na canoa para falar com seu guia, Andrew
Chan. O nativo da Malásia e explorador profissional de
cavernas guia excursões pelas cavernas de Sarawak há 17
anos.
— Andrew, quanto falta para essa sua passagem virgem?
A luz da lanterna mostra o sorriso de Andrew, ao qual
faltam dois dentes da frente.
— Não muito. Esta parte da caverna fica ruim logo à frente,
e aí nós continuamos a pé.
Wade balança a cabeça, depois cospe para eliminar o fedor
da fumaça da lanterna. Somente 30% das cavernas de
Sarawak foram exploradas, e a maioria delas só é acessível a
alguns dos guias mais experientes. Quando o assunto é
mapear passagens inexploradas, Wade sabe que Andrew não
perde para ninguém. O guia transpira a "síndrome da
descoberta", uma condição psicológica incurável comum
entre os fanáticos por cavernas.
Andrew leva a canoa até uma plataforma, segurando-a para
que Wade possa desembarcar.
— É melhor pôr o capacete, tem muitas pedras soltas ali.
Wade prende o capacete na cabeça enquanto Andrew
amarra uma ponta de um longo rolo de corda no barco,
jogando o resto sobre o ombro.
— Fique perto. A passagem vai estreitando. Tem muitas
pontas afiadas nas paredes, cuidado com a roupa.
Andrew vai na dianteira, guiando-os através de uma
catacumba escuta como breu. Ele escolhe uma passagem
apertada e inclinada e entra nela, desenrolando a corda para
marcar o itinerário. Depois de vários minutos de subida
constante, a passagem se estreita até ficar claustrofóbica,
forçando-os a avançar de quatro.
Wade escorrega no calcário úmido, cortando a pele dos nós
dos dedos.
— Quanto falta?
— Por quê? Está com a febre das cavernas?
— Um pouco.
— É porque você é um explorador de teclado.
— O que é isso?
— Um explorador de teclado é alguém que passa mais
tempo lendo o fórum dos exploradores de cavernas do que
realmente indo... Espere aí. O que é isso?
Wade avança rastejando, apertando-se ao lado de Andrew
para olhar.
O túnel se abriu num enorme poço. Olhando para cima, eles
vêem as estrelas ainda brilhando no céu da madrugada, a
superfície uns bons 23 metros acima de suas cabeças.
Andrew aponta o facho para baixo, revelando o fundo de
um enorme buraco, outros 9 metros abaixo.
Um luminoso brilho âmbar lança sombras bizarras de dentro
do poço.
— Está vendo aquilo?
Wade se curva para a frente para ver melhor.
— Parece que tem alguma coisa brilhando lá embaixo.
— Esta dolina não existia há algumas horas. O teto da
caverna deve ter acabado de desabar. O que está lá embaixo
deve ter caído de lá de cima no poço.
— Será que é um carro? Alguém pode estar preso.
Wade vê seu guia malásio tirar da mochila um Knobbly Dog,
uma escada de mão feita de um só cabo com os degraus
trançados no meio.
— O que você vai fazer?
— Fique aí, vou descer e dar uma olhada. — Andrew
prende uma ponta da escada na plataforma, depois desenrola
o Knobbly Dog na escuridão abaixo.
O céu acima deles está cinza quando o explorador pisa no
fundo do poço. A luz da madrugada mal penetra na
escuridão e nos filetes de poeira calcária.
Andrew olha para a criatura imóvel que se agiganta ao seu
lado no poço subterrâneo.
— Ei, Wade, não sei o que é isto, mas não é um carro.
— O que parece?
— Não se parece com nada que eu já tenha visto. E enorme,
parece uma barata gigante, só que tem grandes asas e uma
cauda, com um monte de tentáculos esquisitos saindo da
barriga. Está de pé em cima de um par de garras. Devem
estar bem quentes, porque o calcário está fumegando em
volta delas.
— É melhor você sair daí. Vamos chamar os guardas do
parque...
— Calma, esta coisa não está viva. — Andrew estica a mão
e toca um dos tentáculos.
Uma onda eletromagnética azul neón o joga contra a parede
oposta.
— Andrew, você está bem? Andrew?
— Estou, cara, mas esse filho da puta me deu o maior
choque. Cacete... — Andrew pula para trás quando a cauda
mecânica da criatura se ergue, apontando para o céu.
— Andrew?
— Estou saindo, não precisa me dizer de novo. — O guia
começa a subir pela escada.
O disco âmbar no corpo do ser começa a piscar, ficando
avermelhado e mais escuro.
— Vai, cara, sobe mais rápido!
Fumaça branca sai debaixo das garras da criatura,
preenchendo o poço. Wade começa a ficar zonzo. Ele se
vira e desliza de cabeça pelo túnel escorregadio, enquanto
Andrew sobe na plataforma.
— Andrew? Andrew, você está aí atrás? — Wade freia sua
descida e aponta o facho para o alto do túnel. Ele consegue
ver o guia deitado de bruços na passagem estreita.
Dióxido de carbono!
Wade estica o braço e segura o pulso de Andrew. Ele o puxa
para baixo enquanto a rocha ao seu redor fica mais quente,
queimando sua pele.
Que diabos está acontecendo?
Wade fica de pé, trôpego, quando a passagem se alarga. Ele
joga o guia inconsciente sobre o ombro e cambaleia até a
canoa. Tudo parece estar girando, ficando mais quente. Ele
fecha os olhos, usando os cotovelos para tatear as paredes
escaldantes de calcário.
Wade ouve um bizarro som borbulhante ao chegar ao rio
subterrâneo. Dobrando um joelho, joga o corpo de Andrew
na canoa, depois entra nela desajeitadamente, quase
virando-a. As paredes da caverna estão fumegando, e o calor
intenso está fazendo o rio ferver.
Os olhos de Wade estão ardendo, suas narinas são incapazes
de inalar a tórrida atmosfera. Ele dá um grito sufocado,
agitando-se ferozmente enquanto sua carne queima e se
destaca dos ossos, e seus globos oculares pegam fogo.
Diário de Julius Gabriel
Chichén Itzá — a cidade maia mais magnífica de toda a
Mesoamérica. A tradução do nome é: à beira do poço onde
moram os Sábios da Água.
Os Sábios da Água.
A própria cidade é dividida em duas partes, a velha e a nova.
Os maias se estabeleceram primeiro na Velha Chichén em
435 d.C., e mais tarde a tribo Itzá se juntou à sua civilização,
por volta de 900 d.C. Pouco se sabe sobre os rituais diários, e
o estilo de vida desses povos, embora saibamos que eles
eram governados por seu deus-rei, Kukulcán, cujo legado
como grande mestre maia domina a antiga cidade.
Maria, Michael e eu passaríamos muitos anos explorando as
ruínas antigas e as selvas das cercanias de Chichén Itzá. No
final, ficamos convencidos da importância esmagadora de
três estruturas em especial: o cenote sagrado, o Grande
Campo Maia do Jogo de Bola e a pirâmide de Kukulcán.
Em poucas palavras, não existe nenhuma outra estrutura no
mundo como a pirâmide de Kukulcán. Erguendo-se
majestosamente sobre a Grande Esplanada de Chichén Itzá,
a precisão e a localização astronômica dessa estrutura de mil
anos ainda assombram arquitetos e engenheiros do mundo
inteiro.
Maria e eu acabamos concordando que era a pirâmide de
Kukulcán que o desenho de Nazca representava. O jaguar
invertido dentro do ícone, as colunas da serpente na entrada
para o corredor norte do templo, os desenhos do macaco e
das baleias — tudo parecia se encaixar. Em algum lugar,
dentro da cidade, deveria haver uma passagem secreta para a
estrutura interna da pirâmide. A pergunta era: onde?
A primeira e mais óbvia solução que nos ocorreu foi que a
entrada estaria escondida dentro do cenote sagrado, um
poço natural localizado ao norte da pirâmide. O cenote era
mais um símbolo do portal para o Mundo Inferior maia, e
nenhum cenote em todo o Yucatán era mais importante do
que o poço sagrado em Chichén Itzá, pois fora ali que tantas
virgens haviam sido sacrificadas depois da partida abrupta de
Kukulcán.
Mais importante ainda era a possível conexão entre o cenote
e o desenho da pirâmide em Nazca. Vistas de cima (como
em Nazca), as paredes circulares e estriadas do poço sagrado
poderiam facilmente ser interpretadas como uma série de
círculos concêntricos. Além disso, as cabeças de serpentes
maias entalhadas, localizadas na base norte da pirâmide de
Kukulcán, apontam diretamente para o poço.
Intrigados e empolgados, Maria e eu preparamos uma
expedição de mergulho para explorar o cenote maia. No
final, a única coisa que encontramos foram os restos dos
esqueletos dos mortos — nada mais.
Infelizmente, seria outra estrutura em Chichén Itzá que
mudaria nossas vidas para sempre.
Existem dúzias de antigos campos de jogo na Mesoamérica,
mas nenhum se compara ao Grande Campo do fogo de Bola
em Chichén Itzá. Além de ser o maior em todo o Yucatán, o
Grande Campo, como a pirâmide de Kukulcán, é uma
estrutura que foi cuidadosamente alinhada com o céu, nesse
caso, com a Via Láctea. À meia-noite de todo solstício de
junho, o eixo longo do campo em forma de I aponta para o
lugar em que a Via Láctea toca o horizonte, e a fenda escura
da galáxia, de fato, espelha a posição do campo.
É impossível dar o merecido destaque ao significado
astronômico por trás desse projeto incrível, pois, como já
falei antes, a fenda escura da Via Láctea é um dos símbolos
mais importantes da cultura maia. De acordo com o Popol
Vuh, o livro maia da criação, a fenda escura é considerada a
estrada que leva ao Mundo Inferior, ou Xibalba. Foi por ela
que o herói maia, Um Hunahpu, viajou para o Mundo
Inferior para desafiar os deuses malignos, um desafio
heróico, embora malfadado, ritualizado pelos maias no
antigo jogo de bola. (Todos os membros do time perdedor
eram condenados à morte.)
De acordo com o calendário maia, o nome Um Hunahpu
equivale a 1 Ahau, o primeiro dia do quinto ciclo — e o seu
último —, o dia profetizado do Juízo Final. Usando um
sofisticado programa astronômico, mapeei a aparência dos
céus no ano 2012. O Grande Campo estará mais uma vez
alinhado com a fenda escura, só que desta vez no dia do
solstício de inverno — 4 Ahau, 3 Kankin —, o dia do fim da
humanidade.
Foi num dia frio do outono de 1983 que uma equipe de
arqueólogos mexicanos chegou a Chichén Itzá. Armados
com pás e picaretas, os homens seguiram para o Grande
Campo em busca de um artefato conhecido como marco
central — a pedra ornamental enterrada no ponto central de
muitos outros campos de jogo na Mesoamérica.
Maria e eu ficamos vendo os arqueólogos desenterrarem o
antigo artefato. O recipiente era diferente de todos que já
havíamos visto — de jade e não de pedra, oco, do tamanho
de uma lata de café, com o cabo de uma lâmina de obsidiana
saindo de uma extremidade, como uma espécie de "espada
na pedra" maia. Apesar de muitas tentativas para removê-la,
a arma continuou presa.
Imagens simbólicas da eclíptica e da fenda escura
adornavam as laterais do objeto de jade. Tintado no fundo da
peça, o rosto detalhado de um grande guerreiro maia.
Maria e eu fitamos essa última imagem, absolutamente
chocados, pois não tinha como não reconhecer o rosto do
homem. Relutantemente, devolvemos o marco central ao
líder da expedição e voltamos para o nosso trailer,
esmagados pelas potenciais implicações do objeto que
acabáramos de ter em nossas mãos.
Maria foi quem finalmente quebrou o silêncio entre nós.
"Julius, de alguma forma... de alguma forma o nosso destino
está diretamente ligado à salvação da nossa espécie. A
imagem no marco é um sinal de que devemos continuar
nossa jornada, de que precisamos encontrar uma entrada
para a pirâmide de Kukulcán."
Eu sabia que minha esposa tinha razão. Com vigor renovado,
forjado dos nossos trepidantes sentimentos, continuamos
nossa busca, passando os três anos seguintes revirando cada
pedra, explorando cada ruína, pegando cada folhinha na
selva, investigando cada caverna na região.
Mesmo assim... nada encontramos.
No verão de 1985, nossa frustração chegara ao ponto em
que sabíamos que uma mudança de paisagem era necessária
simplesmente para preservar o pouco de sanidade que nos
restava. Nosso plano original era viajar para o Camboja para
explorar as ruínas magníficas de Angkor, um sítio que
considerávamos ligado tanto a Gizé quanto a Teotihuacán.
Infelizmente, o acesso à área continuava sendo negado a
todos os estrangeiros pelo governo do Khmer Vermelho.
Maria tinha outras idéias. Supondo que nossos anciãos
extraterrestres jamais teriam criado uma entrada na pirâmide
de Kukulcán que pudesse ser encontrada por saqueadores,
ela acreditava que o melhor a fazer era voltar a Nazca e
tentar decifrar o resto da antiga mensagem.
Por mais que eu abominasse a idéia de voltar para aquela
paisagem peruana, não podia argumentar com a lógica da
minha esposa. Evidentemente, não estávamos chegando a
lugar nenhum em Chichén Itzá, apesar do fato de ambos
estarmos convencidos de que a cidade estava destinada a ser
o local da batalha final.
Antes de partir, havia uma última empreitada que eu
precisava completar, antes de embarcar naquela que provaria
ser nossa última e fatídica jornada juntos.
Armado com um pé de cabra e uma máscara, arrombei o
trailer dos arqueólogos de madrugada... e resgatei o marco
central do Grande Campo de seus raptores.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1981-84 páginas 08-154
Diário Fotográfico, Disquetes 7 & 8: Nome do arquivo:
MESO, Fotos 223, 328, 344
20
9 DE DEZEMBRO DE 2012
CHICHÉN ITZÁ, MÉXICO
13h40
O táxi aéreo salta duas vezes sobre o asfalto rachado, taxia
brevemente, depois para pouco antes de a pista acabar num
campo cheio de mato.
A onda de calor atinge em cheio o rosto de Dominique
quando ela sai do Cessna, colando a camiseta já empapada de
suor ao seu peito. Ela joga a mochila sobre um ombro e
segue os outros sete passageiros através do pequeno
terminal, depois até a estrada principal. Numa placa
apontando para a esquerda se lê "Hotel Mayaland", e na
outra, para a direita, "Chichén Itzá".
— Táxi, señorita?
O motorista, um homem magrinho de uns 50 anos, está
apoiado num velho Fusca branco. Dominique pode ver os
traços maias em seu rosto escuro.
— A que distância fica Chichén Itzá?
— Dez minutos. — O motorista abre a porta do passageiro.
Dominique entra, e a espuma exposta do velho banco de
vinil cede sob o seu peso.
— Já esteve em Chichén Itzá, señorita?
— Só quando eu era criança.
— Não se preocupe. Pouca coisa mudou nos últimos mil
anos.
Eles atravessam uma aldeia pobre, depois seguem por uma
estrada pedagiada de duas pistas, recém-pavimentada.
Minutos depois, o táxi para diante de uma moderna entrada
pata visitantes, o estacionamento lotado de carros alugados e
ônibus de turismo. Dominique paga a corrida, compra um
ingresso e entra no parque.
Ela passa por várias lojas de lembranças, seguindo vários
turistas por uma larga estrada de terra que corta a selva
mexicana. Depois de cinco minutos de caminhada, a estrada
se abre numa clareira incrivelmente ampla, plana e verde,
rodeada por uma folhagem densa.
Dominique arregala os olhos e absorve a paisagem. Ela acaba
de voltar no tempo.
Ruínas enormes, brancas e cinza, pontilham a paisagem. À
sua esquerda fica o Grande Campo Maia do Jogo de Bola, o
maior de toda a Mesoamérica. Com o formato de um "I"
gigante, a quadra mede mais de 167 por 70 metros, é
fechada por todos os lados e seus dois muros centrais têm a
altura equivalente a três andares. Ao norte da estrutura fica o
Tzompantli, uma enorme plataforma esculpida com fileiras
de crânios enormes e coroada por corpos de serpentes. A
distância, à sua direita, ela vê um enorme quadrilátero — o
Complexo do Guerreiro —, os restos do que foi um palácio e
uma praça de mercado, parcialmente delimitados por
centenas de colunas isoladas.
Mas é a atração principal que apequena todas as ruínas e
prende a atenção de Dominique — um zigurate
incrivelmente preciso e imponente de calcário, localizado
no meio da cidade antiga.
— Magnífica, não é, señorita?
Dominique se vira e vê um homenzinho usando o uniforme
do parque, uma camiseta laranja manchada de suor e um
boné de beisebol. Ela nota a testa alta e inclinada e os fortes
traços maias do guia.
— A pirâmide de Kukulcán é a estrutura mais magnífica de
toda a América Central. Que tal fazer um tour particular?
Somente 35 pesos.
— Na verdade, procuro uma pessoa. É um americano alto,
forte, de cabelo castanho e olhos bem escuros. O nome dele
é Michael Gabriel.
O sorriso do guia desaparece.
— Você conhece o Mick?
— Lamento, não posso ajudá-la. Bom passeio. — O
homenzinho gira sobre os calcanhares e se afasta.
— Espere... — Dominique o alcança. — Você sabe onde ele
está, não sabe? Me leve até ele, você vai ser bem
recompensado. — Ela lhe enfia um maço de notas na mão.
— Lamento, señorita, não conheço a pessoa que procura.
— Ele empurra o dinheiro de volta.
Ela tira várias notas.
— Tome isto...
— Não, señorita...
— Por favor. Se você o encontrar, ou se conhece alguém
que possa entrar em contato com ele, mande dizer que
Dominique precisa vê-lo. Diga que é questão de vida ou
morte.
O guia maia vê o desespero nos olhos dela.
— A pessoa que procura é seu namorado?
— É um grande amigo.
O guia olha para longe por alguns momentos, pensativo.
— Aproveite o dia em Chichén Itzá. Almoce, depois espere
anoitecer. O parque fecha às dez. Se esconda na selva antes
que a segurança faça a última ronda. Quando a última pessoa
sair e os portões forem fechados, suba na pirâmide de
Kukulcán e espere.
— O Mick estará lá?
— É possível.
Ele lhe devolve o dinheiro.
— Compre um poncho de lã nas lojas da entrada do parque,
vai precisar dele hoje à noite.
— Quero que aceite o dinheiro.
— Não. Os Gabriel são amigos da minha família há muito
tempo. — Ele sorri. — Quando o Mick te encontrar, avise
que o Elias Forma mandou dizer que a señorita é bonita
demais pra ficar sozinha na terra do relâmpago verde.
O zumbido incessante de mil mosquitos enche os ouvidos
de Dominique. Ela puxa o capuz do poncho sobre a cabeça e
se encolhe na escuridão, a selva acordando ao redor dela.
Que diabos estou fazendo aqui? Ela coça os insetos
imaginários que lhe sobem pelos braços. Eu devia estar
terminando a minha residência. Devia estar me formando.
A floresta murmura ao seu redor. Um bater de asas perturba
a copa de folhas acima de sua cabeça. Em algum lugar a
distância, um bugio guincha na escuridão. Ela olha o relógio
— 22h23 —, depois puxa o poncho de lã sobre a cabeça
novamente e muda de posição sobre a pedra.
Espere mais dez minutos.
Ela fecha os olhos, deixando que a selva a abrace, como fazia
quando era criança. O cheiro pesado do musgo, o som de
folhas de palmeira dançando na brisa — e ela está de volta à
Guatemala, com apenas 4 anos, parada ao lado da parede de
taipa, sob a janela do quarto da mãe, ouvindo sua avó
chorando lá dentro. Ela espera sua tia sair acompanhando a
velha senhora antes de entrar pela janela.
Dominique olha para o corpo sem vida esticado na cama.
Dedos que alisaram seu longo cabelo apenas horas antes
estão com as pontas azuladas. A boca está aberta, os olhos
castanhos semicerrados, voltados para o forro. Ela toca as
maçãs do rosto altas, sentindo a pele fria e úmida.
Esta não é a sua madre. É outra coisa, uma figura de carne
sem vida que sua mãe usou enquanto fez parte do seu
mundo.
Sua avó entra. Ela está com os anjos agora, Dominique...
O céu noturno explode acima de sua cabeça com os sons
caóticos de mil morcegos-vampiros batendo as asas.
Dominique salta de pé, seu coração batendo forte, tentando
afastar os mosquitos e as lembranças.
— Não! Aqui não é a minha casa. Esta não é minha vida!
Ela empurra sua infância de volta para o sótão e tranca a
porta, depois desce da pedra e abre caminho no mato até sair
na boca do cenote sagrado.
Dominique olha para as paredes verticais do poço, que
descem diretamente até a superfície de suas águas escuras,
infestadas de algas. A luz da Lua minguante revela camadas
de sulcos geológicos esculpidos no interior do túnel de
calcário, branco feito giz. Ela olha para cima, concentrando-
se numa estrutura fechada de pedra suspensa sobre o lado sul
do cenote. Mil anos atrás, os maias, desesperados com a
partida repentina de seu deus-rei, Kukulcán, recorreram a
sacrifícios humanos num esforço para adiar o fim da
humanidade. Virgens foram trancadas nesse banho de vapor
primordial para serem purificadas, depois levadas para a
plataforma sobre o teto pelos sacerdotes cerimoniais.
Despindo as jovens, eles as deitavam sobre a estrutura de
pedra e usavam seus punhais de obsidiana para extirpar-lhes
o coração ou cortar-lhes a garganta. Os corpos das virgens,
carregados de jóias, eram então lançados cerimoniosamente
dentro do poço sagrado.
O pensamento faz Dominique estremecer. Ela dá a volta no
poço e desce pelo Sache, um caminho largo e elevado de
terra e pedra que corta a densa selva até chegar à fronteira
setentrional da antiga cidade.
Quinze minutos e meia dúzia de tropeções depois,
Dominique emerge do caminho. Diante dela está a face
norte da pirâmide de Kukulcán, sua silhueta escura e
angulosa elevando-se nove andares sob o céu estrelado. Ela
se aproxima da base, que é guardada de ambos os lados pelas
cabeças esculpidas de duas enormes serpentes.
Dominique olha ao seu redor. A cidade antiga está escura e
deserta. Um calafrio corre-lhe pela espinha. Ela começa a
subir.
Na metade da subida, ela está ofegante. Os degraus da
pirâmide são bem estreitos, a subida é íngreme, e não há
nada para se segurar. Ela se vira e olha para baixo. Uma
queda dessa altura seria o fim.
— Mick? — Sua voz parece ecoar pelo vale. Ela espera uma
resposta, e então, sem ouvir nada, continua a subir.
Ela leva mais cinco minutos para chegar ao topo, uma
plataforma plana sustentando um templo de pedra quadrado
de dois andares. Sentindo-se zonza, ela se apóia na parede
norte da estrutura para retomar o fôlego, seus quadríceps
ainda queimando com o esforço da subida.
O panorama é espetacular, sem nenhum corrimão de
segurança. O luar revela detalhes sombreados de cada
estrutura na parte norte da cidade. Nos seus confins, a
cobertura vegetal da selva se espalha pelo horizonte como a
margem escura de uma pintura.
A calçada ao redor da estrutura tem só um metro e meio de
largura. Ficando longe da borda precária, ela enxuga o suor
do rosto e para diante da larga entrada do corredor norte do
templo. Um imenso portal, formado por um lintel ladeado
por duas colunas em forma de serpente, se agiganta acima de
sua cabeça.
Ela dá um passo para dentro do breu interior.
— Mick, você está aí dentro?
Sua voz parece abafada. Ela pega da mochila a lanterna que
comprou mais cedo e entra na câmara úmida de calcário.
O corredor norte é uma câmara dupla, fechada, um santuário
central precedido por um vestíbulo. O interior acaba
abruptamente numa imensa parede central. O facho de sua
lanterna revela um teto abobadado e um chão de pedra, sua
superfície enegrecida pelas fogueiras cerimoniais. Saindo da
câmara vazia, ela contorna a plataforma à esquerda e entra
no corredor oeste, uma passagem nua que ziguezagueia para
se ligar aos corredores sul e leste.
O templo está deserto.
Dominique olha a hora: 23h20. Será que ele não vem?
O ar frio da noite a faz tremer. Procurando se aquecer, ela
volta a se refugiar na câmara norte e se apóia na parede
central, a pedra maciça ao seu redor bloqueando o vento e
amortecendo todos os ruídos.
A atmosfera lá dentro parece pesada, como se tivesse alguém
no escuro, esperando para atacá-la. Ela usa o facho da
lanterna para percorrer o interior, acalmando sua mente.
A exaustão ganha terreno. Ela se deita no chão de pedra e se
encolhe, fechando os olhos, seus pensamentos
atormentando-lhe o sono com imagens de sangue e morte.
A extensão ao redor da pirâmide é um mar de corpos pardos
e ondulantes e rostos pintados, iluminados pelo brilho
laranja de 10 mil tochas. De sua posição dentro do corredor
norte, ela consegue ver o sangue escorrendo escada abaixo
como uma cascata escarlate, empoçando ao redor de um
monte de carne mutilada entre as duas cabeças de serpente
ao pé da pirâmide.
Mais uma dúzia de mulheres estão no templo com ela, todas
vestidas de branco. Elas se apertam como ovelhas assustadas,
fitando-a com olhos vazios.
Dois sacerdotes entram. Cada um usa um cocar cerimonial
de penas verdes e uma tanga recortada do couro de um
jaguar. Os sacerdotes se aproximam, seus olhos escuros
grudados em Dominique. Ela recua, seu coração batendo
forte, quando eles a seguram pelo punho, arrastando-a à
força para a plataforma do templo.
O ar noturno está carregado do fedor do sangue, suor e
fumaça.
De frente para a multidão inebriada há um imenso Chac
Mool, a estátua de pedra de um semideus maia inclinado. No
colo do Chac Mool há uma bandeja cerimonial
transbordando com os restos mutilados de uma dúzia de
corações humanos.
Dominique grita. Ela tenta fugir, mas dois outros sacerdotes
avançam e a agarram pelos tornozelos, levantando-a alto do
chão. A multidão geme quando aparece o sacerdote-mor,
um ruivo musculoso cujo rosto está escondido pela máscara
de uma cabeça de serpente emplumada. Um sorriso amarelo
e demoníaco aparece dentro da boca aberta e dentuça da
máscara.
— Olá, gatinha.
Dominique grita quando Raymond arranca o pano branco de
seu corpo, desnudando-a, depois levanta o punhal negro de
obsidiana para a multidão. A turba sedenta de sangue entoa
um canto lúbrico.
— Kukulcán! Kukulcán!
A um gesto de Raymond, os quatro sacerdotes a deitam no
chão, prendendo-a à plataforma de pedra.
— Kukulcán! Kukulcánl
Dominique grita novamente quando Raymond brande o
punhal de obsidiana. Ela arfa, incrédula, ao vê-lo erguer a
lâmina acima da cabeça, depois mergulhá-la com força em
seu seio esquerdo.
— Kukulcán! Kukulcán!
Ela uiva, agonizante, retorcendo seu corpo estendido...
— Dom, acorde...
... enquanto Raymond enfia a mão na ferida e arranca seu
coração, ainda batendo, erguendo-o para o céu para que
todos o vejam.
— Dominique!
Dominique dá um grito apavorante e desfere socos e
pontapés na terrível escuridão, atingindo a sombra em cheio
no rosto. Desorientada, ainda nas garras do pesadelo, ela rola
para o lado e salta em pé, correndo cegamente para fora da
câmara, rumo à queda de 27 metros.
Uma mão a alcança e puxa seu tornozelo. Ela bate com o
peito na plataforma e a dor a acorda.
— Meu Deus, Dominique, o maluco aqui sou eu.
— Mick? — Ela se senta, esfregando as costelas machucadas
e recuperando o fôlego.
Mick se aproxima dela.
— Você está bem?
— Você quase me matou de susto.
— Somos dois. Deve ter sido um pesadelo e tanto. Você
quase pulou do alto da pirâmide.
Ela olha para o precipício, depois se vira e o abraça, ainda
tremendo.
— Meu Deus, eu odeio este lugar. Estas paredes cheiram a
fantasmas maias. — Ela se afasta e olha para o rosto dele. —
Seu nariz está sangrando. Fui eu que fiz isso?
— Me acertou com um cruzado de direita. — Ele tira uma
bandana do bolso de trás e estanca a hemorragia. — Meu
nariz nunca vai sarar.
— Bem feito. Por que precisamos nos encontrar logo aqui, e
no meio da noite, porra?
— Sou um fugitivo, lembra? Por falar nisso, como
conseguiu escapar da Marinha?
Ela desvia o olhar.
— Você é o fugitivo, não eu. Contei ao capitão que te ajudei
porque estava confusa com a morte do Iz. Acho que ele
sentiu pena de mim, porque me liberou. Vamos, podemos
falar sobre isso depois. Agora só quero descer desta
pirâmide.
— Ainda não posso ir embora. Tenho trabalho a fazer.
— Trabalho? Que trabalho? No meio da noite...
— Estou procurando uma passagem pro interior da
pirâmide. É vital que a gente encontre...
— Mick...
— Meu pai tinha razão sobre a pirâmide de Kukulcán.
Descobri uma coisa, algo realmente incrível. Vou te
mostrar. — Mick tira da bolsa um pequeno aparelho
eletrônico.
— Isto é um espectrômetro ultrassônico. Ele emite ondas
sonoras de baixa amplitude pra descobrir imperfeições em
sólidos.
Mick liga a lanterna, puxa-a pelo braço e a leva de volta para
dentro do templo até a parede central. Ele ativa o
espectrômetro, dirigindo as ondas sonoras para o meio da
pedra.
— Olhe só. Está vendo estes comprimentos de onda? São
um sinal claro de que tem outra estrutura escondida atrás
desta parede. Seja o que for, é metálica e atravessa toda a
pirâmide, indo até o teto do templo.
— Certo, acredito em você. Agora podemos ir embora?
Mick olha para ela, incrédulo.
— Ir embora? Você não entende? Está aqui, dentro destas
paredes. Só precisamos descobrir uma via de acesso.
— O que tem aí dentro? Um pedaço de metal?
— Um pedaço de metal que pode ser o instrumento que vai
salvar a humanidade. Aquele que Kukulcán nos deixou.
Precisamos... ei, espere, aonde está indo?
Ela continua indo para a plataforma.
— Você ainda não acredita em mim, não é?
— Acreditar no quê? Que todo homem, toda mulher e
criança do planeta vai morrer nas próximas duas semanas?
Não, sinto muito, Mick, ainda tenho algumas dificuldades
em lidar com isso.
Mick a segura pelo braço.
— Como ainda pode duvidar de mim? Você viu o que está
enterrado no Golfo. Nós dois estivemos lá juntos. Você
mesma viu.
— Vi o quê? O interior de um canal de lava?
— Canal de lava?
— Isso mesmo. Os geólogos a bordo da Boone me
explicaram tudo. Até me mostraram fotos infravermelhas de
satélite de toda a cratera de Chicxulub. O que parece um
brilho verde é só um rio subterrâneo de lava passando por
baixo daquele buraco no leito do oceano. O buraco se abriu
quando um vulcão subterrâneo ficou ativo em setembro
passado.
— Vulcão? Dominique, que história é essa?
— Mick, o nosso minissubmarino foi sugado por um dos
canais de lava quando uma parte do subsolo desabou. A
gente deve ter flutuado pra superfície quando a pressão
diminuiu. — Ela balança a cabeça. — Você me enganou
direitinho, não foi? Provavelmente ouviu falar do vulcão na
CNN ou em algum outro lugar. Foi o barulho dele que o Iz
ouviu com o SOSUS.
Ela soca o peito dele.
— Meu pai morreu explorando uma droga de vulcão
subterrâneo...
— Não!
— Você me enganou, não foi? Só queria fugir!
— Dominique, escute...
— Não! Meu pai morreu porque te escutei. Agora me
escuta. Te ajudei porque sabia que você estava sendo
maltratado e porque eu precisava da sua ajuda pra descobrir
o que aconteceu com o Iz. Agora sei a verdade. Você me
enganou!
— Besteira! Tudo o que a Marinha te contou é mentira.
Aquele túnel não era nenhum canal de lava, era um duto de
entrada artificial. O que o seu pai ouviu foram os sons de um
conjunto de turbinas gigantes. Nosso minissubmarino foi
sugado por um duro de entrada. O submarino emperrou as
lâminas da turbina. Você não se lembra de nada disso? Eu sei
que estava ferida, mas você ainda estava consciente quando
eu saí do submarino.
— O que você disse? — Ela olha para ele, confusa de
repente, incomodada por uma lembrança distante. —
Espera... eu te dei um tanque de oxigênio?
— Sim! Ele salvou minha vida.
— Você saiu mesmo do submarino? — Ela se senta na beira
da plataforma. Será que a Marinha mentiu? — Mick, você
não pode ter saído do submarino. A gente estava debaixo
d'água...
— A câmara estava pressurizada. O minissubmarino
bloqueou a entrada.
Ela sacode a cabeça. Pare com isso. Ele está mentindo! Isso é
loucura!
— Eu enfaixei a sua cabeça. Você estava com medo. Me
pediu um abraço antes que eu saísse do submarino. Me fez
prometer que eu voltaria.
Uma vaga lembrança gira em sua mente.
Mick se senta na plataforma.
— Ainda não acredita numa palavra do que estou dizendo,
não é?
— Estou tentando lembrar. — Ela se senta ao lado dele. —
Mick... me desculpe por ter batido em você.
— Eu avisei pra não deixar que o Iz fosse investigar no
Golfo.
— Eu sei.
— Eu nunca trairia você. Nunca.
— Mick, digamos que eu acredite em você. O que você viu
quando saiu do submarino? Aonde ia dar essa sua turbina?
— Localizei uma espécie de tubo de drenagem e consegui
subir por ele. A passagem levava até uma câmara enorme. A
atmosfera lá dentro era escaldante. Chamas vermelhas
subiam pelas paredes.
Mick olha para as estrelas.
— Lá no alto, em cima da minha cabeça, girava um... um
vórtice de energia esmeralda magnífico. Ele se movia como
uma galáxia em miniatura. Era tão bonito.
— Mick...
— Espere, tem mais. Na minha frente tinha um lago de
energia líquida, ondulante, como um mar de mercúrio, só
que a superfície parecia um espelho. E então ouvi a voz do
meu pai falando comigo de longe.
— Seu pai?
— É, só que não era o meu pai, era alguma forma de vida
alienígena. Eu não conseguia vê-la, estava dentro de uma
câmara complexa, flutuando sobre o lago derretido numa
enorme cápsula. Ela me olhou com uns olhos vermelhos
brilhantes, demoníacos. Morri de medo...
Dominique expira. Aí está. Demência clássica. Meu Deus, o
Foletta tinha razão. Era evidente o tempo todo e eu me
recusei a enxergar. Ela o vê com o olhar perdido ao longe.
— Mick, vamos falar sobre isso. Essas imagens que você viu
são muito simbólicas, sabe? Vamos começar com a voz do
seu pai...
— Espere! — Ele a olha de frente, seus olhos arregalados,
como duas poças negras. — Acabei de perceber uma coisa.
Eu sei quem era a forma de vida.
— Continua. — Ela percebe o cansaço em sua própria voz.
— Quem você acha que viu?
— Era Tezcatilpoca.
— Quem?
— Tezcatilpoca. A divindade maligna que te falei no barco.
É um nome asteca que significa "Espelho Enfumaçado", uma
descrição da arma da divindade. De acordo com a lenda, o
Espelho Enfumaçado dava a Tezcatilpoca a capacidade de
enxergar dentro da alma dos homens.
— É, eu me lembro.
— O ser olhou dentro da minha alma. Falou comigo como
meu pai, como se me conhecesse. Estava tentando me
enganar.
Ela põe a mão em seu ombro, enrolando os cachos escuros
de cabelo que lhe cobrem o pescoço.
— Mick, sabe o que eu acho? Que a colisão do submarino
deixou nós dois atordoados, e...
Ele afasta a mão dela.
— Não faça isso! Não me tf ate como seu paciente. Eu não
estava sonhando, e não estou tendo ilusões esquizofrênicas.
Toda lenda possui sua realidade. Você não sabe nada sobre as
lendas dos seus ancestrais?
— Não são meus ancestrais.
— Bobagem. — Mick a segura pelo pulso. — Goste você ou
não, tem sangue maia quiche correndo nessas veias.
Ela liberta o seu braço.
— Fui criada nos Estados Unidos. Não acredito nessas
idiotices do Popol Vuh.
— Apenas me ouça...
— Não! — Ela o segura pelos ombros. — Mick, pare um
momento e me escute. Por favor. Eu gosto de você. Sabe
disso, não sabe? Acho você uma pessoa inteligente, sensível
e extremamente talentosa. Se me permitir, se confiar em
mim, posso te ajudar.
Seu rosto se acende.
— Mesmo? Que bom, porque realmente preciso de ajuda. Só
temos 11 dias até...
— Não, você não entendeu. — Seja maternal. — Mick, vai
ser muito difícil ouvir isto, mas preciso dizer. Você está
exibindo todos os sintomas de um caso grave de
esquizofrenia paranóica. Está tão confuso que só vê as
árvores, mas não a floresta. Isso pode ser congênito, ou
simplesmente o efeito de 11 anos na solitária. Seja como for,
você precisa de ajuda.
— Dom, o que eu vi não era alucinação. O que vi foi o
interior de uma espaçonave muito complexa e muito
alienígena.
— Uma espaçonave? — Meu Deus, esse caso é areia demais
pro meu caminhão.
— Acorde, Dominique. O governo também sabe que aquilo
está lá...
Ilusões paranóicas típicas...
— Aquelas bobagens que te contaram a bordo da Boone
eram histórias falsas pra te despistar.
Lágrimas quentes de frustração lhe escorrem pela face ao
perceber os erros devastadores que cometeu. A dra. Owen
tinha razão desde o princípio. Ao abrir o coração para o seu
paciente, ela destruiu sua própria objetividade. Tudo o que
aconteceu foi culpa dela. Iz estava morto, Edie presa, e o
homem que ela tentou salvar, o homem por quem ela
sacrificou tudo, não passava de um paranóico-esquizofrênico
cuja mente acabava de entrar em colapso.
Um pensamento passa por sua mente de repente. Quanto
mais nos aproximarmos do solstício de inverno, mais
perigoso ele vai ficar.
— Mick, você precisa de ajuda. Perdeu o contato com a
realidade. Mick olha para o bloco de calcário perfeitamente
cortado sob seus pés.
— Por que você está aqui, Dominique?
Ela segura a mão dele.
— Estou aqui porque me importo. Estou aqui porque posso
te ajudar.
— Mais uma mentira. — Ele a olha, seus olhos negros
brilhando ao luar. — O Borgia falou com você, não é? Ele
tem um ódio mortal pela minha família. É capaz de dizer ou
fazer qualquer coisa pra se vingar de mim. Como ele te
ameaçou?
Ela desvia o olhar.
— O que ele prometeu? Me conte o que ele disse.
— Quer saber o que ele disse? — Ela o olha intensamente, a
raiva aumentando em sua voz. — Ele prendeu a Edie. Disse
que nós duas vamos passar muito tempo na cadeia por
termos ajudado a te libertar.
— Merda. Eu sinto muito...
— O Borgia prometeu que retiraria as acusações contra nós
duas se eu te encontrasse. Ele me deu uma semana. Se eu
não conseguisse, a Edie e eu iríamos pra prisão.
— Desgraçado.
— Mick, nem tudo está perdido. O dr. Foletta concordou
em me nomear pra cuidar de você.
— O Foletta também? Meu Deus do céu...
— Você vai ser levado pro novo hospital em Tampa. Chega
de isolamento. De agora em diante, uma equipe de
psiquiatras e clínicos indicada pelo Conselho vai trabalhar
com você. Eles vão te dar todo o tratamento necessário.
Antes do que imagina, vamos começar a terapia com
medicamentos, e você vai retomar o controle dos seus
pensamentos. Nada de hospícios, nem de viver na selva
mexicana como fugitivo. No fim, você vai conseguir levar
uma vida normal e produtiva.
— Nossa, você faz tudo parecer tão maravilhoso — diz ele,
sarcasticamente. — E Tampa é tão pertinho da ilha de
Sanibel. O Foletta te ofereceu plano de saúde com cobertura
total também? E que tal uma vaga privativa no
estacionamento?
— Não estou fazendo isso por mim, Mick, mas por você.
Pode ser a melhor coisa pra gente.
Ele balança a cabeça tristemente.
— Dom, é você que não consegue enxergar a floresta. —
Ele a puxa de pé, apontando para o céu. — Está vendo
aquela linha escura, paralela ao Grande Campo? É a fenda
escura da Via Láctea, o equivalente galáctico do nosso
equador. A cada 25.800 anos, o Sol fica alinhado com o
ponto central dela. A data exata desse alinhamento é daqui
ali dias. Onze dias, Dominique. Nesse dia, o dia do solstício
de inverno, um portal cósmico vai se abrir, dando a uma
força maligna acesso ao nosso mundo. No fim desse dia,
você, eu, a Edie, o Borgia, e todos os seres vivos deste
planeta vão morrer. A menos que a gente encontre a
entrada secreta desta pirâmide.
Mick a olha nos olhos, com o coração apertado.
— Eu... eu te amo, Dominique. Te amo desde o dia em que
a gente se conheceu, desde o dia em que você me fez uma
simples gentileza. Também estou em dívida com você e
com a Edie. Mas agora preciso levar essa coisa até o fim,
mesmo que isso signifique te perder. Talvez você tenha
razão. Talvez tudo isso seja uma grande ilusão esquizofrênica
que meus pais psicóticos me passaram. Talvez eu esteja tão
fora da realidade que nem consiga mais ver o que está na
minha frente. Mas você não entende? Quer isso seja real,
quer seja produto da minha imaginação, não posso parar
agora, preciso ir até o fim.
Ele pega o espectrômetro, com os olhos cheios de lágrimas.
— Juro pela alma da minha mãe que se eu estiver errado,
vou voltar pra Miami no dia 22 de dezembro e vou me
entregar às autoridades. Até lá, se você realmente quer me
ajudar, e se realmente se importa, pare de ser minha
psiquiatra. Seja minha amiga.
27
10 DE DEZEMBRO DE 2012
EDIFÍCIO DAS NAÇÕES UNIDAS
NOVA YORK
O auditório lotado se cala, as câmeras de TV gravando,
quando Viktor Ilyich Grozny se dirige à tribuna para falar
com os membros do Conselho de Segurança das Nações
Unidas e o resto do mundo.
— Senhora presidente, senhor secretário-geral, membros do
Conselho de Segurança, convidados de honra. Hoje é um dia
triste. Apesar dos mandados e avisos da Assembléia Geral e
do Conselho de Segurança, apesar dos esforços exaustivos da
diplomacia preventiva e do trabalho de pacificação do
secretário-geral e de seus enviados especiais, uma nação
renegada, mas muito poderosa, continua a ameaçar o resto
do mundo com a arma mais perigosa da história da
humanidade.
"A guerra fria acabou, ao menos é o que nos dizem, e as
virtudes do capitalismo triunfaram sobre os males do
comunismo. Enquanto as economias do Ocidente
continuam a crescer, a Federação Russa luta para se
reconstruir. Nosso povo está destituído e milhares passam
fome. Culpamos o Ocidente por isso? Não. Os problemas da
Rússia foram criados pelos russos, e é nossa responsabilidade
nos salvarmos."
Os olhos azuis angelicais projetam uma inocência infantil
para a câmera.
— Sou um homem de paz. Com a diplomacia das palavras,
convenci nossos irmãos árabes, sérvios e coreanos a depor
armas contra seus inimigos vitalícios, porque sei e acredito
de coração que a violência não resolve nada e que os erros
do passado não podem ser desfeitos. A moralidade é uma
escolha pessoal. Cada um de nós será julgado pelo Criador
quando chegar a hora, mas nenhum homem tem o direito
divino de infligir dor e sofrimento a outro ser humano em
nome da moralidade.
Os olhos de Grozny se tornam duros.
— Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra. A
guerra fria está morta, mas os Estados Unidos, em virtude de
sua economia forte e de seu poderio bélico, continuam a
policiar o mundo, decidindo se as políticas dos outros países
são moralmente íntegras. Como o valentão da escola, a
América cerra os punhos, ameaçando violência, tudo em
nome da paz. Como os hipócritas mais poderosos do mundo,
os Estados Unidos armam os oprimidos até que eles se
tornem opressores. Israel, Coréia do Sul, Vietnã, Iraque,
Bósnia, Kosovo, Taiwan, quantos mais precisam morrer
antes que os Estados Unidos percebam que a ameaça de
violência gera apenas mais violência, que a tirania, disfarçada
pelas melhores intenções, continua sendo tirania?
Os olhos se abrandam.
— E agora, o mundo testemunha um novo tipo de ameaça.
Possuir a força bélica mais sofisticada da História não é o
bastante. A dominação do espaço não é o bastante. A
implementação do Escudo Antimíssil não é o bastante.
Agora, os capitalistas têm uma nova arma que muda as regras
do impasse nuclear. Por que os Estados Unidos continuam a
testar essas armas e negar sua responsabilidade? Será que o
presidente americano acha que somos todos estúpidos? Suas
desculpas acalmam os nervos frágeis dos povos australiano e
malásio? Onde acontecerá a próxima detonação? Na China?
Na Federação Russa? Ou talvez no Oriente Médio, onde três
porta-aviões americanos e suas frotas estão prontos para
atacar, tudo em nome da justiça?
Grozny faz uma pausa.
— A Federação Russa se junta à China e ao resto do mundo
na condenação a essas novas ameaças de violência — diz
ele. — Hoje damos este aviso, e quero ser perfeitamente
claro, para evitar que nossa moralidade seja julgada. Não
viveremos com medo. Não cederemos mais às táticas
intimidatórias do Ocidente. A próxima detonação de fusão
pura será a última, pois vamos interpretá-la como uma
declaração de guerra nuclear!
A assembléia irrompe num pandemônio, e os protestos dos
representantes dos Estados Unidos não são ouvidos,
enquanto os seguranças de Viktot Grozny o escoltam para
fora do edifício.
Cidade de Pisté
(2 quilômetros a Oeste de Chichén Itzá)
Península de Yucatán
Dominique Vazquez abre os olhos ao ouvir o som de
galinhas cacarejando. A luz da manhã penetra pelas tábuas
apodrecidas acima de sua cabeça, revelando um balé de
partículas flutuantes dançando no ar. Ela se espreguiça no
saco de dormir, depois rola para o lado.
Mick já está acordado, encostado num monte de feno,
estudando o diário do pai. Os raios solares iluminam os
traços angulosos de seu rosto. Ele ergue os olhos negros, que
brilham para ela.
— Bom dia.
Ela sai do saco de dormir.
— Que horas são?
— Umas 11. Está com fome? Os Forma deixaram café da
manhã pra você na cozinha — Ele aponta para a porta aberta
do celeiro, de onde se vê a casa de taipa rosada. — Pode ir lá
e se servir. Eu já tomei café.
Descalça, ela anda pelo chão sujo de palha e esterco e se
senta ao lado dele. — O que você está estudando aí?
Ele aponta para o desenho da pirâmide de Nazca.
— Este símbolo é a chave pia encontrar a entrada secreta da
pirâmide de Kukulcán. O animal é um jaguar, e o símbolo
está invertido pra indicar descida. Os maias antigos
consideravam a boca aberta do jaguar ligada tanto às
cavernas terrestres quanto ao Mundo Inferior. As cavernas
mais próximas daqui estão em Balancanché. Meus pais e eu
passamos anos vasculhando, mas não encontramos nada.
— E esse padrão de círculos concêntricos?
— Essa é a parte da equação que ainda me intriga. Primeiro,
pensei que o padrão pudesse simbolizar uma caverna
subterrânea. Círculos idênticos estão entalhados em todos os
sítios antigos que os meus pais exploraram. Até voltei às
cavernas de Balancanché quando cheguei aqui, mas não
encontrei nada.
Dominique tira o mapa de Chichén Itzá do seu bolso de trás.
Ela olha para a planta das ruínas, as fotografias tiradas à
grande altura sobre a cidade antiga.
— Fale mais desse Mundo Inferior maia. Como você o
chamou?
— Xibalba. De acordo com o mito maia da criação, a fenda
escura da Via Láctea é Xibalba Be, a Estrada Negra pro
Mundo Inferior. Está escrito no Popol Vuh que Xibalba é
onde o nascimento, a morte e a ressurreição acontecem.
Infelizmente, as palavras do Popol Vuh requerem um pouco
de interpretação. Tenho certeza de que a maior parte do
significado original se perdeu pelos séculos.
— Por que você diz isso?
— O Popol Vuh foi escrito por volta do século XVI, muito
depois da ascensão e queda da civilização maia e do
desaparecimento de Kukulcán. Por causa disso, as histórias
tendem a pender mais para a mitologia do que para os fatos.
Por outro lado, depois do que vi no Golfo, não tenho mais
certeza. — Ele olha para ela, sem saber se deve continuar.
— Continue, estou ouvindo.
— Com mente aberta ou isso só faz parte da minha terapia?
— Você disse que precisava de uma amiga. Bem, aqui estou.
— Ela lhe aperta a mão. — Mick, esse alienígena que você
diz que se comunicou com você. Você disse que ele falou
com a voz do seu pai?
— É. Ele me enganou, me atraiu mais pra perto.
— Bem, não se irrite, mas na história da criação do Popol
Vuh, você não me contou que a mesma coisa aconteceu
com, hã, qual o nome dele?
— Um Hunahpu. — Seus olhos se arregalam.
Excelente, ele está reconhecendo as origens da sua
demência.
— Você continua achando que eu imaginei tudo isso, não
é?
— Eu não disse isso, mas você precisa admitir que é um
paralelo bem estranho. O que aconteceu com Um Hunahpu
depois que os deuses do Mundo Inferior o enganaram?
— Ele e o irmão foram torturados e mortos. Mas a derrota
dele fazia parte de um plano maior. Depois que os Senhores
do Mundo Inferior o decapitaram, eles deixaram sua cabeça
no ramo de um cabaceiro pra manter os invasores longe de
Xibalba. Mas um dia uma linda mulher, Lua de Sangue,
decidiu desafiar os deuses e visitar a árvore da morte. Ela
esticou a mão pra tocar o crânio do Um Hunahpu, que
cuspiu magicamente em sua mão, deixando-a grávida. Lua
de Sangue fugiu, voltando para o Mundo Médio, que é a
Terra, pra dar à luz os Gêmeos Heróis Hunahpu e
Xbalanque.
— Hunahpu e Xbalanque?
— Filhos gêmeos. Os Gêmeos Heróis. Os rapazes
cresceriam e se tornariam grandes guerreiros. Ao chegar à
idade adulta, voltaram pra Xibalba pra desafiar os Senhores
do Mundo Inferior. Mais uma vez, os deuses malignos
tentaram vencer usando a ilusão, mas dessa vez os Gêmeos
Heróis prevaleceram, derrotando seus inimigos, vencendo o
mal e ressuscitando seu pai. A ressurreição de Um Hunahpu
leva à concepção e ao renascimento celestial da nação maia.
— Conte mais sobre essa Estrada Negra falando com Um
Hunahpu. Como uma estrada pode falar?
— Não sei. De acordo com o Popol Vuh, a entrada da
Estrada Negra era simbolizada pela boca de uma grande
serpente. A fenda escura também era considerada uma
serpente celestial.
Vá em frente. Pressione-o.
— Mick, me escute apenas um segundo. Você passou a vida
toda perseguindo fantasmas maias, absorto nas lendas do
Popol Vuh. Não seria remotamente possível que...?
— O quê? Que eu tenha imaginado a voz do meu pai?
— Não fique nervoso. Só estou perguntando porque a
história da jornada de Um Hunahpu parece um paralelo de
tudo o que você me contou sobre essa câmara subterrânea.
Além disso, acho que você tem umas questões mal
resolvidas com o seu pai.
— Pode ser, mas não imaginei aquele ser alienígena. Não
imaginei a voz do meu pai. Foi real.
— Ou talvez só tenha parecido real.
— Está bancando a psiquiatra de novo.
— Só estou tentando ser sua amiga. Ilusões paranóicas são
muito poderosas. O primeiro passo pra se ajudar é aceitar o
fato de que você precisa de ajuda.
— Dominique, pare...
— Se você deixar, posso te ajudar...
— Não! — Mick a empurra e sai do celeiro. Ele fecha os
olhos, respirando fundo, aquecendo seu rosto no sol do
meio-dia e tentando recuperar o controle.
Já é o suficiente. Plantei a semente, agora preciso
reconquistar a confiança dele. Ela dirige novamente a
atenção para o mapa de Chichén Itzá. Por algum motivo, a
imagem aérea do cenote lhe chama a atenção. Ela pensa na
noite passada, na sua caminhada através da selva.
As paredes do cenote... brilhando ao luar. Os sulcos no
calcário...
— O que foi?
Assustada, ela olha para cima, surpresa ao vê-lo ao seu lado.
— Ha, nada, acho que não é nada.
— Diga. — Os olhos de ébano são intensos demais para
serem enganados.
— Veja este mapa. A imagem aérea do cenote lembra o
padrão de círculos concêntricos encontrado dentro do
desenho da pirâmide de Nazca.
— Meus pais chegaram à mesma conclusão. Passaram meses
mergulhando em cada cenote, explorando cada poço e
caverna subterrânea da região. As únicas coisas que
encontraram foram alguns esqueletos, restos mortais dos
sacrifícios, mas nada que se parecesse com uma passagem.
— Já verificou o cenote depois do terremoto? — Ela se
retorce toda quando as palavras escapam de sua boca.
— O terremoto? — O rosto de Mick se ilumina. — O
terremoto no equinócio de outono atingiu Chichén Itzá?
Meu Deus, Dominique, por que você não me contou isso
antes?
— Não sei. Acho que não percebi que era tão importante.
Quando descobri, o Foletta já tinha te transformado num
vegetal.
— Me fale do terremoto. Como ele afetou o cenote?
— Foi só um pequeno item no noticiário. Um grupo de
turistas disse ter visto as águas do poço se agitando durante o
abalo sísmico.
Mick sai correndo.
— Espere, aonde você vai?
— Vamos precisar de um carro. Talvez a gente precise
passar um ou dois dias em Mérida comprando suprimentos.
Coma alguma coisa. Encontro você aqui em uma hora.
— Mick, espere. Que suprimentos? Que história é essa?
— Equipamento de mergulho. Precisamos verificar o
cenote. Ela o vê correndo pela rua, indo para a cidade.
Muito bem, Sigmund. A idéia não era encorajá-lo.
Aborrecida consigo mesma, ela sai do celeiro e entra na casa
dos Forma, uma construção de taipa com cinco cômodos,
decorada com motivos mexicanos de cores vivas. Ela
encontra um prato de banana frita e pão de milho sobre a
mesa da cozinha e se senta para comer.
Então nota o telefone.
Diário de Julius Gabriel
Era o verão de 1985, e estávamos de volta a Nazca.
Pelos primeiros seis meses, nós três viajávamos diariamente
de um pequeno apartamento em Ica, uma cidadezinha
movimentada 144 quilômetros ao norte de Nazca. Mas
nosso minguado orçamento logo nos obrigou a uma
mudança, e eu instalei minha família numa casa de dois
cômodos na aldeia rural de Ingenio.
Vendendo nosso trailer, consegui comprar um pequeno
balão aerostático. Toda segunda-feira de manhã, ao nascer
do Sol, Maria, Michael e eu voávamos a 300 metros de
altitude sobre o deserto do pampa, fotografando as miríades
de linhas e os magníficos animais entalhados no platô. O
resto da semana era dedicado a uma análise meticulosa das
fotos, que esperávamos nos revelassem a mensagem que
poderia guiar nossa entrada na pirâmide de Kukulcán.
O que é torturante no desafio de interpretar os desenhos de
Nazca é que há muito mais pistas falsas do que reais.
Centenas de desenhos de animais e milhares de formas se
espalham pela tela do deserto como pichações pré-
históricas, a maioria das quais não foi criada pelo artista
original de Nazca. Retângulos, triângulos, trapézios,
aglomerados e linhas impossivelmente retas, algumas com
mais de 40 quilômetros de comprimento, esparramam-se
por 500 quilômetros quadrados de planície ocre. Somem-se
a isso as figuras humanóides escavadas nas encostas
circunstantes e será possível perceber quão desanimadora
era a nossa tarefa. Apesar disso, nossos esforços acabaram
nos ajudando a separar o que considerávamos as figuras mais
cruciais do resto das epígrafes peruanas.
São os desenhos mais antigos e complexos que contêm a
verdadeira mensagem de Nazca. Só podemos especular
sobre a data de sua origem, mas sabemos que têm no
mínimo 1.500 anos.
Os hieróglifos de Nazca têm duas funções distintas. ícones
que denominamos "primários" são usados para descrever a
história por trás da profecia do Juízo Final, enquanto as
figuras "secundárias", próximas àqueles ícones, nos dão
pistas importantes que ajudam a decifrar o significado deles.
O relato do artista começa no centro da tela do deserto, com
uma figura que Maria apelidou de sol de Nazca, um círculo
perfeito com 23 linhas estendendo-se de seu perímetro.
Uma dessas linhas é mais longa que o resto, alongando-se
por uns 32 quilômetros através do deserto. Doze anos
depois, eu iria descobrir que essa linha interminável estava
precisamente alinhada com o Cinturão de Órion. Logo
depois, Michael descobriria um recipiente de irídio
enterrado no meio desse misterioso ponto de partida,
contendo um antigo mapa do mundo (ver a anotação do dia
14 de junho de 1990). Esse pergaminho parecia identificar a
península de Yucatán e o Golfo do México como o campo
de batalha final do futuro Armagedom.
Bem perto do Sol está a aranha de Nazca. O seu gênero
específico — Ricinuki — é um dos mais raros do mundo, e
só é encontrado em algumas das áreas mais inacessíveis da
floresta amazônica. Como as baleias e o macaco, a aranha de
Nazca é mais uma espécie não originária do deserto peruano.
Por esse motivo, nós a consideramos um ícone direcional,
neste caso, celestial por natureza. Resulta que a aranha é um
marco terrestre incrivelmente preciso, projetado para
direcionar o observador (mais uma vez) para a constelação
de Órion. As linhas retas do aracnídeo foram orientadas de
forma a traçar as declinações mutáveis das três estrelas do
Cinturão de Órion, as mesmas que os egípcios usaram para
alinhar as pirâmides de Gizé.
Ao redor do Sol, espalhados pelo platô, há mais de uma
dúzia de desenhos bizarros de predadores alados. Notem que
não me refiro aos desenhos mais recentes do beija-flor ou do
pelicano, duas espécies originárias da região, e sim a uma
série de seres de aspecto infernal que ainda não consegui
identificar. Essas criaturas misteriosas, com garras, se
multiplicam pelo platô de Nazca, e ainda não tenho
nenhuma idéia de sua função.
O maior zoomorfo do platô é a serpente de Nazca, com 188
metros. Infelizmente, muitos detalhes do animal foram
obliterados pela rodovia Panamericana que lhe atravessa o
corpo. A presença da serpente no pampa pode simbolizar a
fenda escura da Via Láctea. Por outro lado, sua proximidade
com a pirâmide de Nazca, como o macaco e as baleias, pode
fazer dela um sinal que nos direciona para Chichén Itzá,
cidade maia dominada pela imagem da Serpente
Emplumada.
A cauda da serpente, como o sol e a aranha, foi orientada
para Órion.
Vários outros desenhos se destacam como peças da profecia
maia. O último que vou mencionar — e o nosso favorito —
é a figura que apelidamos de astronauta de Nazca. Basta dizer
que a presença desse ser extraterrestre de 2 mil anos de
idade era uma visão reconfortante durante nossos dias no
pampa, um convincente lembrete de que não estávamos sós
em nossa busca, ao menos não em espírito. O humanóide
com aspecto de coruja, adornado com uniforme e botas, tem
a mão direita erguida no que só pode ser interpretado como
um gesto de amizade. Claramente destacado do resto da
mensagem de Nazca, o ET gigante foi escavado numa das
encostas, como a assinatura de um artista na borda de um
quadro.
23 DE DEZEMBRO DE 1989
Depois de mais de quatro anos de trabalho no deserto
peruano, decidi levar minha família para visitar o mais
impressionante dos desenhos antigos: o Tridente de Patacas.
Localizado 160 quilômetros ao norte do pampa deserto, essa
figura, muitas vezes chamada de El Candelabro, ou o
Candelabro dos Andes, nunca foi oficialmente associada aos
desenhos de Nazca, embora sua complexidade, tamanho e
idade facilmente o qualificam como um trabalho do nosso
artista misterioso.
O criador do Tridente decidiu esculpir esse símbolo colossal
em toda uma encosta de montanha de frente para a baía de
Paracas. O magnífico ícone consiste num candelabro de três
pontas, parecido com o tridente de um demônio, só que as
pontas, todas viradas para cima, são enfeitadas com o que
parecem pétalas. Como o desenho está exposto a condições
climáticas muito mais severas do que as de Nazca, o artista
cavou muito mais fundo na encosta, abrindo sulcos de um
metro de profundidade na superfície friável e salina da
montanha. Com 180 metros de comprimento e quase 60
metros de largura, o Tridente de Paracas é fácil de ser
avistado.
Eu me lembro de nós três contemplando o marco antigo do
nosso barco, naquele fatídico dia de dezembro. Quando o
sol poente às nossas costas ficou avermelhado, o solo
cristalino do Tridente começou a cintilar no lusco-fusco,
emprestando à silhueta do ícone um brilho rubro, quase
luminoso. Esse efeito pareceu dar energia a Maria, que
rapidamente ponderou que o Candelabro com certeza devia
ter sido deixado como um sinal antigo, direcionando nossa
civilização para o deserto de Nazca.
Essa idéia me fez pensar no arco de St. Louis, o portal
simbólico para o coração da América. Eu ia dizer isso
quando minha amada se curvou de repente, acometida de
uma dor insuportável, e deu um grito lamurioso. Então,
enquanto Michael e eu olhávamos, horrorizados, ela
desmoronou sobre o deque, inconsciente.
— Trecho do Diário do Professor Julius Gabriel,
Ref. Catálogo 1985-90 páginas 31-824
Diário Fotográfico, Disquetes 8 & 9: Nome do arquivo:
NAZCA, Fotos 34 & 56
22
13 DE DEZEMBRO DE 2012
A BORDO DA USS BOONE
GOLFO DO MÉXICO
4h46
O capitão Edmund Loos recebe o vice-presidente Ennis
Chaney e Marvin Teperman, que saem cambaleando do
Seahawk Sikorsky SH-60B e pisam no deque da USS Boone.
O oficial em comando sorri.
— O senhor está bem, vice-presidente? Parece um pouco
enjoado.
— Pegamos tempo ruim. Os VANTs estão posicionados?
— Dois Predators sobrevoando o alvo, conforme o senhor
pediu.
Marvin tira o colete salva-vidas, entregando-o ao piloto do
helicóptero.
— Capitão, por que seu pessoal acha que veremos outro
daqueles redemoinhos esta noite?
— Sensores indicam um aumento nas flutuações
eletromagnéticas subterrâneas, como aconteceu da última
vez que o redemoinho apareceu.
Loos os leva através da superestrutura, acompanhando-os até
o Centro de Informações de Combate do navio.
A escura sala high-tech está em plena atividade. O
comandante Curtis Broad ergue o olhar da estação sonar.
— Chegou bem a tempo, capitão. Os sensores indicam um
aumento da atividade eletromagnética. Parece que outro
redemoinho está se formando.
Circulando acima do brilho esmeralda, em diferentes
altitudes, estão dois dos Veículos Aéreos Não Tripulados de
reconhecimento da USS Boone, conhecidos como Predator.
Quando as águas do Golfo começam a girar no sentido anti-
horário, as câmeras de TV e infravermelhas dos Predators
transmitem imagens em tempo real para a fragata.
Chaney, Teperman, o capitão Loos e duas dúzias de técnicos
e cientistas olham para os monitores de vídeo, seus corações
acelerados ao ver o redemoinho se formando diante de
seus olhos.
O vice-presidente balança a cabeça, incrédulo.
— O que, em nome de Deus, teria o poder de criar algo
assim?
— Talvez a mesma coisa que está explodindo formações de
carste no oeste do Pacífico — sussurra Marvin.
O redemoinho gira mais rápido, sua força centrífuga
monstruosa abrindo um funil rodopiante que desce até o
leito rachado do oceano. Quando as águas se partem, o olho
do vórtice libera um brilhante raio esmeralda na noite,
iluminando o céu como um imenso holofote.
— Aí está. — Marvin aponta na tela. — Subindo do
centro...
— Estou vendo — murmura Chaney, estarrecido.
Três sombras escuras levitam da luz e sobem em linha reta
através do olho do redemoinho.
— Que porra é aquela? — xinga Loos.
Uma dúzia de cientistas estupefatos gritam para que seus
colegas e assistentes verifiquem se todos os dados sensoriais
estão sendo gravados.
Os objetos continuam a subir do redemoinho. Pairando
sobre o mar, eles se aproximam do mais baixo dos dois
VANTs.
A imagem do Predator se enche de estática e depois some.
O segundo Predator continua transmitindo.
— Quero os dois Seahawks no ar agora — ordena o capitão
Loos. — Somente reconhecimento. Chefe, mantenha o
outro Predator a uma distância seguia. Não perca esse sinal.
— Sim, senhor. Senhor, que distância é segura?
— Capitão, os Seahawks estão no ar...
— Mantenha-os longe daquela luz — grita Chaney.
Os três objetos alienígenas sobem a uma altura de 600
metros. Com precisão robótica, executam uma pirueta,
girando as enormes asas em sua total extensão horizontal e
acelerando, desaparecendo instantaneamente de vista.
O capitão Loos corre para o Sistema de Rastreamento de
Alvo Mk. 23. A segunda-tenente Linda Muraresku já está
rastreando os objetos usando a antena de radar de rotação
rápida da Boone.
— Já localizei, senhor, por pouco. Nunca vi nada assim.
Nenhum rastro de calor, nenhum som, só uma leve estática
eletromagnética. Não admira que nossos satélites não os
tenham detectado.
— Qual a velocidade?
— Mach 4 e ainda acelerando. Os três alvos estão rumando
para o oeste. Melhor falar com o NORAD, capitão. Nessa
velocidade, vão sumir da minha tela a qualquer momento.
Comando Norte-Americano de Defesa
Aeroespacial
NORAD
Colorado
O imponente monte de granito irregular de 2.915 metros,
conhecido como montanha Cheyenne, fica 6 quilômetros e
meio a sudoeste do Colorado Springs. Dois túneis de acesso
fortemente vigiados no sopé da montanha penetram meio
quilômetro no subsolo, servindo como as únicas entradas da
instalação subterrânea de quase 2 hectares, conhecida como
Comando Norte-Americano de Defesa Aeroespacial, ou
NORAD.
O NORAD proporciona aos militares um centro de
comando unificado que liga todas as armas das Forças
Armadas, os Centros Estratégicos Combinados, sistemas e
estações meteorológicas. A principal função da instalação,
porém, é detectar lançamentos de mísseis em qualquer parte
do mundo, seja em terra, no mar ou no ar. Tais eventos se
dividem em duas categorias básicas.
Avisos estratégicos são emitidos quando um ICBM é lançado
contra a América do Norte, um evento que se origina a uma
distância de mais de 2.100 milhas náuticas, com um tempo
até o impacto de aproximadamente trinta minutos. Uma
seqüência hierárquica de quatro minutos rapidamente envia
informações ao presidente e a todos os Centros de Comando
da Defesa dos Estados Unidos.
Alertas de teatro de operações envolvem mísseis
disparados contra forças americanas e aliadas no
estrangeiro. Como um míssil Scud ou de cruzeiro
pode atingir o alvo em minutos, o NORAD envia os
avisos diretamente aos comandantes locais, via
satélite.
O sistema de detecção antecipada de mísseis mais
importante da montanha Cheyenne se origina 35.900
quilômetros no espaço. É ali que os satélites do
Programa de Apoio à Defesa do NORAD giram ao
redor da Terra em órbitas geoestacionárias,
fornecendo uma cobertura contínua e redundante de
todo o planeta. A bordo desses satélites de 2
toneladas e meia há avançados sensores
infravermelhos que detectam instantaneamente os
rastros de calor criados pelo estágio de impulso de um
míssil.
O major Joseph Unsinn presta continência ao PE
postado diante da porta de vidro e sobe no bondinho
que o espera. Depois de uma breve viagem por um
labirinto de túneis, ele chega ao centro de comando
do NORAD para começar seu turno de 12 horas.
Lançamentos de mísseis não são surpresas para o
comandante do NORAD; a cada ano ele testemunha
pelo menos duzentos desses "eventos". Mas este é
diferente. Com o mundo à beira de uma guerra, as
tensões estão elevadas, e milhares, talvez milhões de
vidas estão em jogo.
Seu colega, o major Brian Sedio, está ocupado
estudando o monitor do satélite do Programa de
Apoio à Defesa. A imagem do vice-presidente Chaney
pode ser vista no videocomunicador sobre o seu
console.
— O que está acontecendo?
Sedio levanta a cabeça.
— Chegou bem a tempo. O vice-presidente está
surtando. — O major volta a ativar o microfone. —
Lamento, vice-presidente. Nossos satélites foram
projetados para detectar rastros de calor, não
interferências eletromagnéticas. Se esses seus objetos
alienígenas continuarem cruzando o Pacífico rumo
àÁsia, talvez possamos localizá-los usando nosso radar
em terra, mas para os nossos satélites, eles são
invisíveis.
A intensidade do olhar de Chaney é alarmante.
— Encontre os objetos, major. Coordene as buscas
que precisar. Quero ser informado assim que
conseguir localizá-los.
A tela se apaga.
O major Sedio balança a cabeça.
— Dá pra acreditar? O mundo está à beira da guerra, e
o Chaney acha que estamos sendo atacados por
alienígenas.
14 DE DEZEMBRO DE 2012
FLORESTA DE ROCHAS DE SHILIN
PROVÍNCIA DE YUNNAN, SUL DA CHINA
5h45
(HORA DE BEIJING)
A província de Yunnan, junto com Guizhou, forma a
região sudoeste da República Popular da China. Com
uma abundância de lagos, montanhas imponentes e
rica folhagem, poucas áreas em toda a China
proporcionam aos visitantes tanta variedade de
paisagens a explorar.
A cidade mais populosa da província é Kunming, a
capital de Yunnan. Localizada 112 quilômetros a
sudoeste da cidade fica sua mais importante atração
turística: a Floresta de Pedra de Lunan, também
conhecida como Floresta de Rochas de Shilin.
Estendendo-se por mais de 260 quilômetros
quadrados, a Floresta de Rochas é um emaranhado de
bizarras e enormes agulhas de calcário que se elevam
a alturas de quase 30 metros. Passarelas levam os
visitantes através das fileiras de colunas, as pontes de
madeira cruzando regatos e passando por baixo de
arcos naturais de pedra que abundam naquela
paisagem labiríntica.
Os fatores que levaram à Floresta de Rochas
começaram há uns 280 milhões de anos, quando o
surgimento do Himalaia fez com que a erosão
escavasse formações irregulares em espiral no platô
de calcário. Com o passar das eras, outros
movimentos tectónicos criaram profundas fissuras no
carste, que acabaram sendo alargadas pela água da
chuva, formando imponentes lâminas de pedra cinza-
claro.
Ainda não havia amanhecido quando Janet Parker, de
52 anos, e seu guia pessoal, Quik-sing, chegam aos
portões do parque público. Depois de ignorar os
alertas do Departamento de Estado americano sobre
viajar para a China, a despachada empresária da
Flórida insistiu em visitar a Floresta de Rochas antes
de partir de Kunming em seu voo matinal.
Ela segue o guia até um pagode e uma passarela de
madeira que serpenteia através das formações
calcárias irregulares.
— Espere aí, Quik-sing. Está me dizendo que é só
isso? Viajamos uma hora de carro pra ver isso?
— Wo ting budong...
— Em inglês, Quik-sing, em inglês.
— Não entendo, srta. Janet. Isto é a Floresta de Pedra.
O que esperava ver?
— Obviamente, algo um pouco mais espetacular.
Tudo o que vejo são quilômetros de rochas. — Um
forte brilho âmbar atrai o seu olhar. — Espere, o que
é aquilo? — Ela aponta para a fonte, o facho dourado
piscando entre várias colunas de calcário.
Quik-sing protege os olhos, surpreso pela luz.
— Eu... eu não sei. Srta. Janet, por favor, o que está
fazendo?
Janet sobe no parapeito.
— Quero ver o que é aquilo.
— Srta. Janet... Srta. Janet!
— Calma, eu volto já.
De câmera na mão, ela pisa no chão, depois se aperta
entre as bases de duas formações, xingando ao raspar
o tornozelo na rocha afiada. Esgueirando-se ao redor
da coluna, ela olha para cima, procurando a fonte da
luz brilhante.
— Que diabos é aquilo?
O objeto preto, com aparência de inseto, tem mais de
12 metros de comprimento, suas enormes asas
enfiadas entre duas altas colunas de calcário. A fera
imóvel está de pé sobre um par de garras
incandescentes, que parecem ter perfurado o carste,
fazendo-o fumegar.
— Quik-sing, vem aqui. — Janet bate outra foto
quando os primeiros raios de sol tocam a cauda da
criatura. O facho âmbar escurece e pisca cada vez
mais rápido. — Ei, Quik-sing, eu estou te pagando pra
quê?
A explosão silenciosa de luz branca e brilhante cega
instantaneamente a empresária quando o dispositivo
de fusão pura gera um caldeirão de energia mais
quente que a superfície do Sol. Janet Parker sente um
ardor breve e estranho. Sua pele, gordura e sangue
fervem e se soltam dos ossos. Seu esqueleto evapora
um nanossegundo depois, quando a bola de fogo
incandescente se expande em todas as direções na
velocidade da luz.
A combustão se espalha rapidamente pela Floresta de
Pedra, o calor vaporizando o carste, liberando uma
nuvem densa e tóxica de dióxido de carbono.
Comprimidos sob um teto de ar gelado, os vapores
venenosos abraçam o solo, expandindo-se como um
tsunami gasoso.
A maioria da população de Kunming ainda está
dormindo quando a nuvem de gás letal e invisível
invade a cidade como uma lufada quente num dia de
verão. Os madrugadores caem de joelhos, segurando a
garganta, sentindo o mundo rodando ao seu redor. Os
que ainda estão na cama mal estremecem ao sufocar
no sono.
Em minutos, todo homem, toda mulher, criança, e
quaisquer outros seres pulmonados de Kunming estão
mortos.
Cidade de Lensk
República de Sakha, Rússia
5h47
Pavel Pshenichny, de 17 anos, toma o machado de
seu irmão mais novo, Nikolai, e sai do chalé de
troncos de três quartos, afundando os pés em 30
centímetros de neve recém-caída. Um vento gelado
uiva em seus ouvidos, queimando seu rosto. Ele ajeita
o cachecol, depois marcha através do quintal gelado
até a pilha de madeira.
O sol ainda não nasceu, mas quem, senão um narivo,
notaria a diferença nesta região desolada e cinzenta
de permafrosti Pavel limpa a neve da superfície do
tronco de árvore congelado, pega um toco de madeira
da pilha e o posiciona de pé. Com um gemido, gira o
machado, e a lâmina parte o bloco semicongelado de
madeira em lascas menores.
Quando ele vai pegar outro pedaço, um clarão
brilhante o faz olhar para
cima.
O horizonte ainda escuro ao norte de Lensk é
dominado por uma enorme cordilheira de montanhas
cobertas de neve, escondida por trás das nuvens
cinzentas da madrugada. Pavel vê o que parece ser
um relâmpago brilhante por trás das nuvens, o clarão
se espalhando pelos picos irregulares, que rapidamen-
te são engolidos por uma neblina crescente.
Segundos depois, um enorme estrondo, e o chão
treme sob seus pés.
Avalanche?
A densa neblina impede Pavel de ver a devastação
geológica que se passa diante de seus olhos. O que o
adolescente consegue ver é uma nuvem cinza-claro
de neve avançando, expandindo-se, a onda de energia
correndo em sua direção numa velocidade
incalculável.
Ele larga o machado e corre.
— Nikolai! Avalanche! Avalanche!
A onda de choque nuclear levanta Pavel do chão,
jogando-o de cabeça contra a porta do chalé com um
vento igual ao de um tornado. Antes que ele possa
sentir dor, toda a estrutura é arrancada dos alicerces
como um castelo de cartas — a nuvem de detritos
incandescentes varrendo a planície, destruindo tudo
o que encontra pela frente.
Chichén Itzá
Península de Yucatán
22h56
A picape Chevy preta e empoeirada sem o para-
choque traseiro atravessa a densa selva, seus
amortecedores vencidos gemendo com os buracos da
estrada de terra. Ao se aproximar do portão fechado, a
picape para. Michael Gabriel sai pela porta do
motorista.
Ele examina a corrente de aço e começa a mexer no
cadeado enferrujado, usando os faróis da picape para
enxergar.
Dominique desliza para o assento do motorista
enquanto Mick abre o cadeado e tira a corrente.
Engatando a marcha, ela passa pelo portão, depois
volta para o banco do passageiro enquanto ele se
aproxima.
— Impressionante. Onde aprendeu a arrombar
fechaduras?
— Na solitária. Claro que ter a chave sempre ajuda.
— Onde arranjou a chave?
— Tenho amigos que trabalham na manutenção do
parque. É bem ridículo que o único trabalho
disponível para os maias locais seja servir comida ou
transportar lixo na cidade fundada pelos seus
ancestrais.
Dominique se segura no painel enquanto Mick acelera
pela esburacada estradinha.
— Tem certeza de que você sabe aonde está indo?
— Passei a maior parte da minha infância explorando
Chichén Itzá. Conheço esta selva como a palma da
minha mão.
Os faróis altos revelam o fim da estrada à frente.
Ele sorri.
— Claro que isso foi há muito tempo.
— Mick! — Dominique fecha os olhos e se segura
quando ele sai da estrada e dirige através da selva,
enfiando a picape no meio da densa vegetação.
— Devagar! Está tentando nos matar?
O veículo ziguezagueia, entrando e saindo da mata
fechada, de alguma forma conseguindo evitar as
árvores e pedras. Eles entram numa área com muitas
árvores, cujas copas escondem o céu noturno.
Mick pisa no freio.
— Fim da estrada.
— Você chama aquilo de estrada?
Ele desliga o motor.
— Mick, me diga de novo por que...
— Shh. Ouça.
O único som que ela ouve são os estalos do motor da
picape.
— O que estou tentando ouvir?
— Tenha paciência.
Aos poucos, o canto dos grilos ganha vida ao redor
deles, seguido pelo resto dos sons da selva.
Dominique olha para Mick. Seus olhos estão
fechados, uma expressão melancólica invade seu rosto
anguloso.
— Você está bem?
— Estou.
— No que está pensando?
— Na minha infância.
— Uma lembrança alegre ou triste?
— Uma das poucas alegres. Minha mãe me trazia pra
acampar nesta floresta quando eu era bem novo. Ela
me ensinou muito sobre a natureza e o Yucatán,
como a península se formou, sua geologia... Todo tipo
de coisa. Era uma excelente professora. Não
importava o que a gente fazia juntos, com ela sempre
ficava divertido.
Mick vira para ela, suas grandes pupilas negras
brilhando.
— Sabia que toda esta área já esteve debaixo d'água?
Há milhões de anos, a península de Yucatán estava no
fundo de um mar tropical, sua superfície recoberta de
corais, plantas e sedimentos marinhos. O fundo do
mar era essencialmente uma grossa camada de
calcário maciço, e então... bum. Uma espaçonave, ou
sei lá o que, caiu na Terra. O impacto fraturou o
calcário, criando ondas de 600 metros de altura,
incêndios, e uma camada atmosférica de poeira que
impediu a fotossíntese e dizimou a maior parte das
espécies do planeta.
"A península de Yucatán acabou se elevando,
tornando-se terra seca. A água da chuva corroeu as
fendas do calcário, erodindo a rocha, escavando um
vasto labirinto subterrâneo que se estende por baixo
da península. Minha mãe dizia que, sob a superfície,
o Yucatán parece um gigantesco queijo suíço."
Ele se encosta no assento, olhando para o painel.
— Durante a última era glacial, o nível de água
diminuiu, e os sistemas de cavernas não ficaram mais
inundados. Isso permitiu que estalactites, estalagmites
e outras formações de carbonato de cálcio surgissem
dentro do carste.
— Carste?
— Carste é o nome científico de um tipo de relevo
poroso de calcário. O Yucatán é todo feito de carste.
O fato é que, há 14 mil anos, o gelo derreteu e o mar
subiu, voltando a inundar as cavernas. Não há rios de
superfície no Yucatán. Toda a água da península vem
das cavernas subterrâneas. Os poços do interior são
de água doce, mas à medida que nos aproximamos da
costa, eles ficam mais salgados. Às vezes o teto de
uma caverna desaba, formando um poço gigante...
— Como o dzonot sagrado?
Mick sorri.
— Você usou o termo maia pra "cenote". Eu estava me
perguntando se você o conhecia.
— Minha avó era maia. Ela me contou que os dzonots,
segundo a lenda, eram portais pro Mundo Inferior,
pra Xibalba. Mick, você e sua mãe eram muito
próximos, não é?
— Até pouco tempo atrás, ela era a única amiga que
eu tive. Dominique engole o nó em sua garganta.
— Lá no Golfo, você começou a me contar como ela
morreu. Você parecia sentir raiva do seu pai.
Um olhar de incerteza surge no rosto dele.
— Precisamos ir andando...
— Não, espere. Me conte o que aconteceu. Talvez eu
possa ajudar. Se não puder confiar em mim, vai
confiar em quem?
Ele se curva para a frente, os antebraços apoiados no
volante, e olha para o pára-brisa sujo de restos de
insetos.
— Eu tinha 12 anos. A gente morava numa cabana de
dois cômodos perto de Nazca. Minha mãe estava
morrendo, o câncer se espalhou pra fora do pâncreas.
Não aguentava mais radioterapia ou quimioterapia e
estava fraca demais pra se cuidar sozinha. O Julius
não podia pagar uma enfermeira, por isso me deixou
encarregado de cuidar dela enquanto continuava seu
trabalho no deserto. Os órgãos da minha mãe estavam
entrando em colapso. Ela ficava deitada na cama,
encolhida pela dor abdominal, enquanto eu escovava
seu cabelo e lia pra ela. Tinha cabelo preto, longo,
como o seu. No fim, eu nem podia mais escová-lo,
saía aos chumaços.
Uma lágrima escorre por sua face.
— Mas a mente dela continuou afiada até o final. Ela
sempre estava mais forte de manhã, capaz de
conversar, mas no fim da tarde ficava fraca e
incoerente, a morfina a derrubava. Uma noite, o
Julius chegou em casa, exausto depois de passar três
dias seguidos no deserto. Mamãe tinha tido um mau
dia. Estava lutando com uma febre alta e sentindo
muita dor, e eu estava esgotado, depois de cuidar dela
por 72 horas. Julius se sentou na beira da cama e
ficou olhando pra ela. Finalmente, dei boa-noite e
fechei a porta do quarto contíguo pra dormir um
pouco. Devo ter desmaiado assim que minha cabeça
encostou no travesseiro. Não sei quanto tempo dormi,
mas algo me acordou no meio da noite, uma espécie
de grito abafado. Levantei da cama e abri a porta.
Mick fecha os olhos, as lágrimas escorrendo
copiosamente, agora.
— O que foi? — Dominique sussurra. — O que você
viu?
— Era minha mãe gritando. O Julius estava ao lado
dela, sufocando-a com o travesseiro.
— Meu Deus...
— Fiquei ali, ainda semiconsciente, sem me dar conta
do que estava acontecendo. Depois de mais ou menos
um minuto, minha mãe parou de se agirar. Foi então
que Julius notou a porta aberta. Ele se virou e me
olhou com uma expressão horrível no rosto. Me
arrastou pro meu quarto, soluçando e balbuciando que
a mamãe estava sentindo tanta dor que ele não
aguentava mais vê-la sofrer tanto.
Mick balança o corpo para a frente e para trás,
olhando o para-brisa.
— Seus pesadelos?
Ele assente com a cabeça, e então cerra os punhos,
esmurrando com força o velho painel do carro.
— Quem ele achava que era pra tomar essa decisão,
caralho? Era eu que estava cuidando dela. Eu estava
tomando conta dela, não ele!
Ele franze o cenho enquanto continua dando socos
no painel, liberando a fúria acumulada.
Emocionalmente exausto, apóia a cabeça no volante.
— Ele nem falou comigo, Dominique. Não me deu a
oportunidade de dizer adeus.
Dominique o puxa para si, acariciando seu cabelo
enquanto ele chora, mergulhando o rosto em seu
peito. Lágrimas correm também pela sua face
enquanto ela pensa em tudo o que ele sofreu, privado
de uma infância normal desde que nasceu, toda a sua
vida adulta marcada por anos passados na solitária.
Como eu poderia ser capaz de levá-lo pra outro hospital?
Ele se acalma depois de alguns minutos, afastando-se
dela e enxugando os olhos.
— Acho que ainda preciso lidar com alguns
problemas familiares.
— Você teve uma vida difícil, mas as coisas vão
melhorar agora.
Mick funga, contendo um sorriso.
— Você acha, é?
Ela se aproxima e o beija, de leve no início, depois o
puxa mais para perto, e seus lábios se fundem, suas
línguas se entrelaçando, aumentando sua paixão.
Excitados, eles arrancam as roupas um do outro,
acariciando-se na escuridão, lutando contra o espaço
apertado da cabine, o volante e a alavanca de marchas
limitando seus movimentos.
— Mick... espere. Aqui dentro não consigo, não tem
espaço. — Ela apóia a cabeça no ombro dele,
ofegante, o suor escorrendo por seu rosto. — Da
próxima vez, peça emprestado um carro com banco
de trás.
— Prometo que sim — diz ele, beijando sua testa.
Ela brinca com os cachos de cabelo que cobrem o
pescoço dele.
— Vamos sair daqui, senão chegaremos atrasados no
encontro com seus amigos.
Eles saem da picape. Mick sobe na caçamba e solta os
tanques de mergulho dos suportes. Ele passa para
Dominique um colete com compensador de flutuação,
tanque de ar e regulador já afivelados.
— Você já mergulhou à noite?
— Há uns dois anos. Quanto vamos ter que andar até o
cenote?
— Um quilômetro e meio. Acho que é mais fácil pôr
o tanque nas costas.
Ela veste o colete e o tanque, depois pega os
macacões de neoprene das mãos de Mick enquanto
ele sai da caçamba. Mick afivela seu colete, joga o
saco de equipamentos sobre o ombro e pega os dois
tanques extras de ar.
— Vem comigo.
Ele segue para dentro da mata, Dominique
cambaleando atrás dele. Em poucos minutos, enxames
de mosquitos estão zumbindo em seus ouvidos, ali-
mentando-se de seu suor. Seguindo os restos de uma
trilha com o mato já alto, eles vão abrindo caminho
através da densa selva enquanto insetos e espinhos
picam suas peles. A vegetação finalmente se abre
numa área arborizada, e o solo pantanoso fica mais
firme. Eles lutam para escalar uma elevação de um
metro e meio, e de repente as estrelas reaparecem
acima de suas cabeças.
Eles estão sobre um caminho de pedra de 4 metros e
meio de largura, um antigo sacbe construído há mil
anos pelos maias.
Mick põe os tanques de ar no chão, esfregando os
ombros doloridos.
— À esquerda fica o cenote sagrado, à direita, a
pirâmide de Kukulcán. Você está bem?
— Estou me sentindo um burro de carga. Falta muito?
— Duzentos metros. Vamos.
Eles seguem para a esquerda, chegando, cinco
minutos depois, à beira do imenso abismo de calcário,
suas águas silenciosas e escuras refletindo o luar.
Dominique olha para baixo, estimando a profundidade
em uns bons 15 metros. Seu coração dispara. Por que
diabos estou fazendo isso? Ela se vira quando cinco
velhos maias de pele morena saem da mata.
— Eles são amigos — diz Mick. — São H'Menes,
sábios maias. Descendentes da irmandade Sh'Tol, uma
sociedade sagrada que escapou à ira dos espanhóis há
mais de cinco séculos. Estão aqui pra nos ajudar.
Enquanto vesre o traje de mergulho, Mick fala com
um maia de cabelos brancos num idioma anrigo. Os
outros anciãos tiram uma corda e várias lanternas de
mergulho do saco de equipamentos.
Dominique vira de costas para o grupo e tira a
camiseta, vestindo rapidamente o apertado traje por
cima do maio.
Mick a chama, com ar preocupado.
— Dom, este é o Ocelo, um sacerdote maia. O Ocelo
diz que um homem foi visto em Chichén Itzá,
perguntando onde a gente estava. Ele disse que era
um americano ruivo e musculoso.
— Raymond? Puta merda...
— Dom, diga a verdade. Você...?
— Mick, juro que não falei com o Foletta, com o
Borgia ou qualquer pessoa desde que cheguei aqui.
— O irmão do Ocelo é segurança. Diz que viu o ruivo
entrar no parque pouco antes do fechamento, mas
ninguém se lembra de tê-lo visto sair. Aquele acordo
que você assinou com o Borgia é a maior mentira.
Você vai ter sua imunidade depois que eu for
encontrado morto. Vamos, é melhor ir andando.
Eles abrem as válvulas dos tanques, verificando os
reguladores. Vestindo os coletes, se aproximam da
borda do cenore.
Mick calça os pés de pato, depois enrola a corda nos
braços e começa a descer dentro do poço. Os maias o
baixam rapidamente na água fria e estagnada e puxam
a corda para baixar Dominique.
Mick posiciona a máscara e o regulador, depois liga a
lanterna e enfia a cabeça na água. A visibilidade no
lodo marrom e fedorento é menor que meio metro.
Dominique sente seus membros tremendo ao se
pendurar sobre a superfície escura da água do cenote.
Por que você está fazendo isso? Ficou louca? Ela cerra os
dentes quando seus pés entram naquela fossa séptica
gelada e infestada de algas. Soltando a corda, ela cai
na água, sentindo ânsia com o cheiro de podridão. Ela
rapidamente ajeita a máscara, enfia o regulador na
boca e inspira, eliminando o fedor.
Mick reaparece, com fiapos limosos de vegetação
grudados no cabelo. Ele prende uma corda amarela
em sua cintura e na dela.
— É bem escuro lá embaixo. Não quero que a gente se
separe. Ela balança a cabeça, tirando o regulador.
— O que é que estamos procurando mesmo?
— Alguma espécie de portal no lado sul. Algo que nos
dê acesso à pirâmide.
— Mas a pirâmide fica a um quilômetro e meio daqui.
Mick?
Ela o vê esvaziando o compensador de flutuação e
mergulhando. Droga. Pondo novamente o regulador
na boca, ela dá uma última olhada para a lua e o segue
para o fundo.
Dominique começa a hiper ventilar no regulador
assim que seu rosto bate na água turva. Ela nada
cegamente por vários segundos, seu senso de direção
falhando, até que sente o puxão de Mick. Descendo
mais 6 metros, ela agita as pernas e vê o reflexo da
lanterna dele na parede do cenote.
Mick está inspecionando a parede de calcário, que
está recoberta por uma vegetação densa. Usando sua
lanterna, ele faz sinais para que ela siga a parede à
direita e espete as densas algas com o punhal.
Dominique tira o punhal da bainha no tornozelo e
bate na pedra enquanto desce de pé pela parede
calcária. Seis metros abaixo, sua mão entra num
buraco de um metro e seu relógio enrosca na
vegetação. Sem conseguir se soltar, ela apóia os pés
de pato na parede para puxar o braço.
Uma cobra-d'água de 2 metros ataca, veloz como um
raio, mordendo sua máscara antes de desaparecer no
lodo.
É o limite para seus nervos em frangalhos. Entrando
em pânico, ela nada para a superfície e arrasta Mick
junto.
Quando sua cabeça emerge, ela arranca a máscara,
ofegando e tossindo.
— Você está bem? O que aconteceu?
— Você não disse que aqui tinha cobras, cacete! Eu
odeio cobras...
— Ela te mordeu?
— Não, mas pra mim chega. Isso não é mergulhar, é
nadar em merda líquida. — Ela solta a corda, suas
mãos ainda tremendo.
— Dom...
— Não, Mick, chega. Meus nervos estão à flor da pele,
e essa água me dá coceira. Continue sem mim. Vá
achar sua passagem secreta, ou sei lá o que está
procurando. Espero você lá em cima.
Mick a olha com ar preocupado e mergulha.
— Ei, Ocelo! Jogue a corda. — Olhando para cima,
ela espera impacientemente que os anciãos apareçam
na borda do poço.
Nada.
— Ei, estão ouvindo? Falei pra jogar a droga da corda!
— Boa noite, gatinha. — Um calafrio lhe percorre a
espinha quando Raymond aparece, apontando o facho
vermelho da mira laser do rifle para o seu pescoço.
Casa Branca
Washington, DC
O presidente Maller está com a sensação de que levou
um soco na boca do estômago. Erguendo o olhar do
relatório do Departamento de Defesa, ele encara o
general Fecondo e o almirante Gordon, sentindo as
têmporas latejarem com as batidas do seu coração. Ele
está tão fraco que seu corpo já não consegue mais
sustentá-lo na cadeira.
Pierre Borgia irrompe no Salão Oval, seu olho
vermelho chispando de ódio.
— Acabamos de receber um relatório atualizado.
Vinte e um mil mortos em Sakha. Dois milhões
morreram em Kunming. Uma cidade inteira foi
varrida do mapa no Turcomenistão. A imprensa já
está se juntando lá embaixo.
— Os russos e chineses não perderam tempo em
mobilizar suas forças — diz o general Fecondo. — A
resposta oficial é que tudo faz parte das manobras de
guerra deles, que tudo já estava previsto. Mas os
números são muito superiores ao que tinha sido
planejado.
O chefe de operações navais lê no seu laptop.
— Nosso último reconhecimento por satélite rastreou
83 submarinos nucleares, incluindo todos os novos
classe Borey da Rússia. Cada um deles carrega 18
mísseis SS-N-20. Some-se a essa lista mais uma dúzia
de submarinos chineses com mísseis balísticos e...
— Não são só submarinos — interrompe o general. —
Os dois países puseram suas forças estratégicas em
estado de prontidão. O avião de reconhecimento
Darkstar está rastreando o cruzador Pedro, o Grande,
que saiu de sua doca, armado com mísseis, vinte
minutos depois da última detonação. Estamos falando
de um arsenal conjunto terrestre e marítimo com
capacidade para um ataque inicial que passa de 2 mil
ogivas nucleares.
— Meu Deus. — Maller respira fundo, lutando contra
o aperto no peito. — Pierre, quanto falta para a
videoconferência com o Conselho de Segurança?
— Dez minutos, mas o secretário-geral diz que
Grozny está falando com o Parlamento e se recusa a
participar se a gente estiver na conferência. —
O rosto de Borgia está coberto de suor. — Senhor,
precisamos transferir esta operação para o monte
Weather.
Maller o ignora. Vira-se para um vídeo-comunicador
marcado STRATCOM.
— General Doroshow, como nosso Escudo Antimíssil
afetará um ataque inicial dessa magnitude?
O rosto pálido do general da Força Aérea Eric
Doroshow, comandante em chefe do Comando Aéreo
Estratégico, aparece no monitor.
— Senhor, o escudo é capaz de destruir algumas
dúzias de mísseis no ápice da trajetória, mas nada no
nosso arsenal de defesa foi projetado para lidar com
um ataque total. A maioria dos ICBMs e mísseis
lançados de submarinos russos foi programada para
voar em baixa altitude. A tecnologia para eliminar
essa ameaça simplesmente não era viável...
Maller balança a cabeça, revoltado.
— A porra de 20 bilhões de dólares... e pra quê?
Pierre Borgia olha para o general Fecondo, que
balança a cabeça.
— Presidente, pode haver outra opção. Se tivermos
certeza de que o Grozny vai atacar primeiro, pegá-lo
de surpresa vai ter vantagens evidentes. O POIU-112,
nosso último Plano Operacional Integrado Único,
indica que um ataque preventivo com 1.800 ogivas
desabilitaria eficazmente 91% de todas as plataformas
terrestres de ICBMs russas e chinesas e...
— Não! Não vou entrar pra História como o
presidente americano que deu início à Terceira
Guerra Mundial.
— O ataque preventivo seria justificável — explica o
general Doroshow.
— Não posso justificar a matança de 2 bilhões de
seres humanos, general. Continuaremos com os
objetivos diplomáticos e defensivos que definimos. —
O presidente se senta na borda da mesa, esfregando as
têmporas. — Onde está o vice-presidente?
— Até onde sei, senhor, estava a caminho da Boone.
— Talvez devêssemos mandar um helicóptero buscá-lo
e levá-lo para uma base da FEMA — diz o general
Fecondo.
— Não — Borgia responde, um pouco depressa
demais. — Não, o vice-presidente nunca participou
de manobras...
— Mas ele é membro do Executivo.
— Não importa. Chaney nunca foi oficialmente
inscrito na lista de sobreviventes. O monte Weather
tem espaço limitado...
— Chega! — grita o presidente.
Dick Przystas entra.
— Desculpem o atraso, a estrada está um caos. Vocês
viram o que está acontecendo lá fora? — Ele liga a TV
na CNN.
As imagens mostram americanos apavorados,
freneticamente levando seus pertences para carros
abarrotados. Um microfone é enfiado na cara de um
pai de três filhos.
— Não sei que diabos está acontecendo. A Rússia diz
que nós estamos detonando essas bombas, o
presidente diz que não. Não sei em quem acreditar,
mas não confio nem no Maller, nem no Grozny.
Vamos sair da cidade hoje à noite...
Aparece então um close-up de manifestantes na porta
da Casa Branca, carregando cartazes com mensagens
do Apocalipse. VIKTOR GROZNY É O ANTICRISTO.
PENITÊNCIA AGORA! O ARREBATAMENTO ESTÁ
PRÓXIMO!
Cenas de saques num shopping center em Bethesda.
Imagens aéreas da rodovia interestadual, os carros
enfileirados nas pistas. Um caminhão capota ao tentar
desviar do trânsito, rodando por uma encosta
íngreme. Uma família na caçamba de uma picape,
armada até os dentes.
— Presidente, a chamada do Conselho de Segurança
está pronta. VC-2.
Maller se dirige à parede oposta, onde cinco
videocomunicadores estão montados. O segundo à
esquerda se acende e a tela se divide em vinte quadra-
dos, mostrando imagens dos chefes de governo dos
membros do Conselho de Segurança das Nações
Unidas. O espaço da Rússia está vazio.
— Secretário-geral, membros do Conselho, quero
enfatizar mais uma vez que os Estados Unidos não são
responsáveis por essas detonações de fusão pura. De
qualquer forma, temos motivos para crer que o Irã
possa estar se preparando para atacar Israel, numa
tentativa de arrastar nosso país para um conflito
direto com a Rússia. Quero reforçar novamente que
queremos evitar a guerra a todo custo. Para que não
haja mal-entendidos, ordenamos a retirada da nossa
frota do golfo de Omã. Por favor, informem ao
presidente Grozny que os Estados Unidos não
lançarão nenhum míssil contra a Federação Russa ou
seus aliados, mas não fugiremos da nossa
responsabilidade em defender o Estado de Israel.
— O Conselho dará o seu recado. Que Deus o ajude,
presidente.
— Que Deus ajude a nós todos, secretário-geral.
Maller vira-se para Borgia.
— Onde está minha família?
— Já está a caminho do monte Weather.
— Certo, vamos sair daqui. General Fecondo?
— Sim, senhor?
— Nos passe para DEFCON-1.
Chichén Itzá
Mick mergulha de cabeça ao longo da face sul do
cenote, apalpando a vegetação emaranhada,
procurando qualquer coisa fora do comum. A 9
metros de profundidade, o ângulo da parede muda de
repente, se curvando internamente a 45 graus.
Ele continua indo cada vez mais fundo no poço maia,
a escuridão ficando mais cerrada ao redor de seu
facho de luz, que diminui constantemente. A 27
metros, ele para a fim de equalizar a pressão em seus
ouvidos, que se torna dolorosa.
Trinta e dois metros...
A face sul se nivela de novo, voltando a descer na
vertical. Mick continua descendo no poço escuro,
sabendo muito bem que não está equipado para
mergulhar muito mais fundo.
E então ele o vê: um ponto de luz brilhando como o
sinal vermelho de SAÍDA num cinema às escuras.
Ele agita mais as pernas, depois para, sua pulsação
latejando em seu pescoço quando ele avista,
incrédulo, o imenso portal de 3 metros de altura por
6 de largura, o facho de sua lanterna refletido na
superfície metálica branca, lisa e brilhante.
Gravado no centro da barreira há um candelabro
vermelho, luminoso, com três pontas. Mick geme no
seu regulador, reconhecendo instantaneamente o
ícone ancestral.
É o Tridente de Paracas.
Bluemont, Virgínia
O helicóptero de transporte levando a primeira-dama,
seus três filhinhos e os três velhos deputados vai para
o oeste, sobrevoando a cidade de Bluemont e a Route
601, na Virgínia. A distância, o piloto consegue ver
as luzes de uma dúzia de prédios situados dentro do
conjunto cercado.
É monte Weather, uma base militar ultrassecreta a 74
quilômetros de Washington, DC. A instalação é
administrada pela FEMA, a Agência Federal de
Gerenciamento de Emergências. Conectado com uma
rede de mais de cem Centros de Relocalização
Federal, é o quartel-general operacional que abriga o
programa secreto "Continuidade de Governo".
Embora o complexo de 34 hecrares seja fortemente
vigiado, o verdadeiro segredo do monte Weather fica
no subsolo. Muito abaixo da montanha de granito fica
uma cidade subterrânea, equipada com aparramentos
e dormitórios particulares, lanchonetes e hospitais,
uma central de purificação de água e tratamento de
esgotos, uma central elétrica, um sistema de trânsito,
uma rede de televisão e até um lago subterrâneo.
Nenhum membro do Congresso jamais alegou
deliberadamente ter conhecimento da instalação, mas
muitos deputados e senadores veteranos são, de fato,
membros efetivos do "governo de reserva" dessa
capital subterrânea. Nove departamentos federais
foram reproduzidos dentro da instalação, bem como
cinco agências federais. Membros de gabinete
nomeados secretamente têm mandatos
indeterminados, sem o consentimento do Congresso e
longe dos olhos do público. Embora menor do que o
complexo russo da montanha de Yamantou, a
instalação de gerenciamento de crise tem a mesma
função — sobreviver e governar o que restar dos
Estados Unidos depois de um ataque nuclear total.
Mark Davis, o capitão da Força Aérea, faz vôos de
treinamento de e para o monte Weather há 12 anos.
Embora o piloto do Posto de Comando Aéreo
Nacional de Emergência, pai de quatro filhos, ganhe
bem, nunca lhe agradou o fato de que ele e sua
família não fazem parte da "lista".
Davis vê as luzes da instalação aparecerem a distância.
Ele cerra os dentes.
Mais de 240 militares trabalham dentro da instalação.
As suas vidas são mais importantes que a dele? E os
65 membros da "Elite Executiva"? Se uma guerra
nuclear começar, a culpa poderia facilmente recair
sobre muitos desses "especialistas" militares. Por que
esses canalhas deveriam sobreviver, e sua família não?
No final, foi fácil para o agente russo convencer o
revoltado capitão. Dinheiro era essencial para
sobreviver a uma guerra nuclear. Davis usou a maior
parte da quantia para construir seu próprio bunker
nas montanhas Blue Ridge, e converteu o resto em
ouro e pedras preciosas. Se uma guerra nuclear come-
çar, ele acredita que sua família sobreviverá. Caso
contrário, o dinheiro para a universidade das crianças
nunca esteve tão garantido.
Davis paira o helicóptero sobre o heliporto e pousa.
Dois PEs num carrinho se aproximam. Ele presta
continência.
— Sete passageiros e sua bagagem. Todas as malas
foram verificadas. — Sem esperar resposta, Davis abre
a porta deslizante e ajuda a primeira-dama a descer.
Os PEs levam os passageiros até o carrinho, enquanto
o piloto descarrega as malas. A discreta valise de
camurça marrom é a terceira. Davis gira a alça no
sentido horário, seguindo as instruções do agente
russo, depois a gira de volta devagar.
O mecanismo é ativado.
O piloto coloca a valise cuidadosamente no carrinho,
depois se apressa para descarregar o resto da bagagem.
Chichén Itzá
Península de Yucatán
Mick se obriga a diminuir a velocidade da subida,
contendo a custo sua empolgação. Ele pausa a 6
metros para liberar nitrogênio, seus pensamentos em
turbilhão na cabeça.
Como será que eu entro? Deve ter algum tipo de mecanismo
escondido projetado pra abrir aporta. Ele verifica
novamente o manómetro. Quinze minutos. Tenho que
pegar outro tanque de ar e mergulhar de novo. Rápido.
Mick continua a subida, surpreso por ver as pernas de
Dominique ainda dentro d'água. Ele sobe ao lado do
corpo dela e sua cabeça emerge.
— Dom, o que você...? — A expressão apavorada no
rosto dela o faz olhar para cima.
Quinze metros acima da superfície da água está o
ruivo, o chefe da segurança do hospital de Miami,
sorrindo para ele da borda do poço. O ponto
vermelho da mira laser salta do pescoço de
Dominique para o dele.
— Olha a minha putinha. Como se atreve a deixar
minha gata esperando tanto tempo?
Mick se aproxima de Dominique, procurando a
mangueira do compensador de flutuação dela na água.
— Deixe-a em paz, babaca. Deixe-a em paz e eu não
vou lutar. Vai poder me levar de volta pros Estados
Unidos algemado. Vai ser um herói de verdade...
— Não desta vez, filho da puta. O Foletta decidiu
tentar uma nova abordagem na sua terapia. Chama-se
morte.
Mick encontra a mangueira do compensador e esvazia
rapidamente o colete de Dominique.
— Quanto o Foletta está te pagando? — Ele se
posiciona diante dela, a mira laser aparecendo no seu
traje de mergulho. — Tem dinheiro na minha picape,
escondido debaixo do assento. Pode ficar com tudo.
Deve ter uns 10 mil em moedas de ouro ali.
Raymond tira o olho da alça de mira.
— É mentira...
Mick agarra Dominique e nada para o lado,
arrastando-a para baixo d'água. Ela se agita, lutando ao
aspirar o lodo.
Uma chuva de balas passa ao lado deles enquanto
Mick enfia seu regulador na boca de Dominique e a
puxa mais para o fundo. Dominique engasga, cospe
água, depois consegue puxar um hausto de ar. Ela põe
a máscara inundada no rosto e rapidamente a enche
de ar, depois localiza o seu regulador.
Mick limpa o regulador e enche os pulmões. Ele pega
a mão de Dominique e desce cegamente. Uma bala
ricocheteia no seu tanque de ar.
O coração de Dominique bate descontrolado. A 15
metros de profundidade, ela acende a lanterna, quase
derrubando-a, enquanto Mick recoloca sua máscara e
a enche de ar. Ela o olha, apavorada, sem saber o que
vai acontecer a seguir.
Mick amarra novamente a corda em sua cintura e
aponta para baixo.
Ela faz que não com a cabeça.
Uma nova salva de tiros encerra a discussão.
Ele a agarra pelo pulso e desce, puxando-a para baixo.
Ondas de pânico percorrem suas entranhas enquanto
ela mergulha de cabeça na escuridão. O fim silencioso
se aproxima, a dor em seus tímpanos indica que ela
está indo fundo demais. O que ele está fazendo? Solte
essa corda ou você vai morrer. Ela luta para desatar o nó.
Mick levanta o braço e a impede. Ele toma a sua mão
e a acaricia, tentando encorajá-la, depois continua
descendo.
Ela aperta o nariz e equaliza a pressão, aliviando seus
ouvidos enquanto o segue para baixo. A parede
inclinada se torna um teto sobre sua cabeça, a
claustrofobia crescente, quase insuportável. Ela sente
que está perdendo toda a orientação, sufocada pela
escuridão e pelo silêncio.
Agora ela está mergulhando pelo poço em vertical.
Seu medidor de profundidade marca mais de 33
metros, seu coração fazendo o rosto latejar na
máscara, sua mente gritando para que ela se solte.
A aparição da brilhante luz escarlate a assusta.
Descendo mais, ela pisca e para, fitando o ícone
luminoso. Meu Deus... ele realmente achou alguma coisa!
Espere, já vi essa figura antes...
Ela vê Mick nadando ao redor da superfície branca e
lustrosa, apalpando as bordas da placa metálica.
Já sei... vi no diário de Julius Gabriel...
O coração de Dominique falha quando um som
trovejante e grave enche seus ouvidos. Monstruosas
bolhas de ar explodem do centro da placa e envolvem
Mick, e então uma corrente monstruosa a agarra,
sugando-a para o centro do portal e para um vazio
negro que não estava lá um momento antes.
A correnteza a puxa pelos pés para a escuridão. Ela
vira de lado, presa da turbulência de um rio
subterrâneo. A força puxa sua máscara para o pescoço
e a cega. Ela aspira água, depois aperta o nariz e cospe
no regulador enquanto rola descontroladamente no
turbilhão sufocante, lutando para respirar.
O portal se fecha atrás deles, bloqueando a água.
Ela para de rolar. Limpando e recolocando a máscara,
ela fica olhando em volta, hipnotizada pelo novo
ambiente.
Eles estão numa imensa caverna de estranha beleza
sob a água. Luzes estroboscópicas surreais, de origem
desconhecida, iluminam paredes de catedtal de
calcário com tons inebriantes de azul, verde e
amarelo. Formações fantásticas de estalactites pendem
do teto submerso como gigantescos filetes de gelo,
suas pontas descendo para se entrelaçar numa floresta
petrificada de estalagmites cristalinas que brotam do
chão arenoso da caverna.
Ela olha para Mick, empolgada, estarrecida, querendo
poder fazer mil perguntas. Ele balança a cabeça e
aponta seu manômetro, indicando que só lhe restam
cinco minutos de ar. Dominique verifica o seu e fica
chocada ao saber que está nos últimos 15 minutos.
A ansiedade toma conta de seu corpo. A sensação
claustrofóbica de estar presa numa câmara
subterrânea, com um teto de pedra sobre sua cabeça,
destrói sua capacidade de raciocinar. Ela empurra
Mick e nada de volta para o portal, tentando
desesperadamente reabri-lo.
Mick a puxa de volta pela corda. Ele a segura pelos
pulsos, depois aponta para o sul, onde surge a entrada
de uma caverna tortuosa. Ele forma um triângulo com
as duas mãos.
A pirâmide de Kukulcán. Dominique respira mais
devagar.
Mick toma sua mão e começa a nadar. Juntos, eles
atravessam uma série de salas submersas, sua presença
parecendo ativar luzes estroboscópicas adicionais,
como se os fachos estivessem ligados a um invisível
detector de movimentos. Acima de suas cabeças, o
teto abobadado está pontilhado de dentes afiados, as
formações de calcário criando majestosas divisórias
em arco e esculturas de pedra bizarras e irregulares.
Mick sente um aperto no peito ao passar de um
ambiente de um azul profundo para outro de um azul-
claro luminoso. Ele verifica seu tanque de ar e vira
para Dominique, pondo a mão na garganta.
Ele está sem ar. Ela lhe passa o regulador extra, preso ao
seu colete, depois verifica o suprimento de ar.
Oito minutos.
Oito minutos! Quatro minutos pra cada um. Isso é loucura!
Por que eu entrei no cenote atrás dele? Eu devia ter ficado
na picape — devia ter ficado em Miami. Vou morrer
afogada, como o Iz.
O fundo some de repente e a caverna se abre num
domínio subterrâneo ilimitado. As paredes e o teto da
catedral de calcário brilham com um luminoso tom
rosado, a caverna submersa do tamanho de uma
quadra coberta de basquete.
Você não vai morrer afogada, e sim asfixiada. Deve ser
melhor do que aquilo que o pobre Iz enfrentou. Você vai
perder os sentidos, vai simplesmente apagar. Acredita
mesmo no paraíso?
Mick a puxa, apontando agitadamente para a frente.
Ela nada mais rápido, rezando para que ele tenha
encontrado uma saída. E então ela vê.
Ah, não... Ah, meu Deus... Puta que pariu...
Bluemont, Virgínia
O helicóptero do presidente está 29 quilômetros a
norte de Leesburg, Virgínia, quando a bomba de 12
quilotons explode.
O presidente e seu séquito não veem o clarão intenso,
mil vezes mais brilhante do que um raio. Não sentem
a onda monstruosa de calor radiante que corre pelo
complexo subterrâneo do monte Weather,
vaporizando a primeira-dama, seus filhos, e o resto
dos habitantes e das estruturas dentro dele. Tampouco
experimentam o abraço esmagador dos milhões de
toneladas de granito, aço e concreto da montanha
desabando como um castelo de cartas.
O que eles vêem é uma bola de fogo brilhante,
laranja, que transforma a noite em dia. O que eles
sentem é a onda de choque, quando a força da
explosão passa por eles como um trovão, e o fogo
consome a floresta da Virgínia como um tapete em
chamas.
O piloto vira o helicóptero bruscamente e se afasta,
enquanto o presidente Maller uiva de agonia, o vazio
dilacerando seu coração ferido, a fúria tomando conta
de sua mente, rompendo as bases de sua sanidade.
Chichén Itzá
35 metros abaixo da base da Pirâmide de
Kukulcán
De olhos arregalados, suas veias latejando
furiosamente, Dominique olha, incrédula, para a
prodigiosa estrutura acima de sua cabeça. Engastada
no teto de calcário da caverna, saindo da rocha, está a
quilha de uma monstruosa espaçonave alienígena de
200 metros.
Ela suga o ar lentamente, tentando não hiper ventilar,
sua pele formigando por baixo do traje de mergulho.
Isso não é real. Não pode ser...
A superfície metálica e dourada do lustroso casco, do
tamanho de um encouraçado, brilha como um
espelho imaculado.
Mick segura sua mão e sobe, puxando-a para dois
volumes colossais montados nas laterais do que
parece ser a cauda da nave. Cada estrutura tem o
tamanho e a altura de um prédio de três andares.
Nadando mais para perro, eles espiam o interior de
um dos motores alienígenas, suas lanternas revelando
uma colméia de orifícios chamuscados, parecendo
foguetes, cada um deles com mais de 9 metros de
diâmetro.
Mick a puxa para longe dos monstruosos motores e
nada para a proa da nave camuflada na rocha.
Dominique puxa mais ar do regulador, alarmada por
não conseguir respirar. Meu Deus, nosso ar acabou! Ela
puxa o braço de Mick, segurando a garganta, vendo a
caverna girando fora de controle.
Mick vê o rosto de Dominique ficar rubro. Ele
também sente o aperto em seu peito, seus pulmões
doendo enquanto ela o agarra.
Fugindo de seus braços, ele cospe o regulador extra,
pondo o seu de volra na boca. Depois se vira e nada
com todas as forças, puxando-a pela corda e
procurando alguma entrada no casco.
Dominique se agita, em pânico, sufocando dentro da
máscara embaçada.
Os braços e as pernas de Mick parecem de chumbo.
Ele arfa no regulador, incapaz de puxar mais ar, seus
pulmões pegando fogo. Percebe o pânico de
Dominique na outra ponta da corda, seu coração
doendo, sua mente lutando para se concentrar.
Em seu delírio, ele vê: um facho vermelho, brilhando
50 metros à frente. Com vigor renovado, ele agita os
membros, seus músculos queimando, movendo-se em
câmera lenta.
Ele percebe um peso morto na outra ponta da corda
— Dominique não se agita mais.
Não pare...
O mundo subterrâneo gira ao seu redor. Ele morde o
regulador com força, até suas gengivas sangrarem, e
suga o líquido quente. O ícone brilhante do Tridente
de Paracas surge à sua frente.
Só mais umas dez braçadas...
Seus braços são de chumbo. Ele para de nadar. Os
olhos negros rolam nas órbitas.
Michael Gabriel perde os sentidos.
Os corpos dos dois mergulhadores inconscientes
flutuam em direção ao painel de irídio brilhante, de 3
metros de altura, ativando um antigo detector de
movimentos.
Com um chiado hidráulico, o portão deslizante do
casco se abre. Uma onda de água invade o
compartimento pressurizado, sugando os dois seres
humanos para dentro da nave alienígena.
Diário de Julius Gabriel
Que criatura patética é o homem. Nasce com a consciência
aguda de sua mortalidade — e, portanto, está condenado a
viver sua mísera existência com medo do desconhecido.
Guiado pela ambição, muitas vezes desperdiça os momentos
preciosos que possui. Negligenciando os outros, se entrega a
empreitadas egoístas em busca de fama e fortuna,
permitindo que o mal o seduza e o leve a acumular desgraças
sobre aqueles que realmente ama. Sua vida, tão frágil, está
sempre à beira de uma morte que ele não foi abençoado
com a capacidade de compreender.
A morte é a grande equalizadora. Todos os nossos poderes e
todas as necessidades, todas as nossas esperanças e todos os
desejos acabam morrendo conosco — e são sepultados na
cova. Inconscientes, viajamos egoisticamente rumo ao sono
eterno, dando importância a coisas que não são importantes,
somente para sermos lembrados, nos momentos mais
inoportunos, do quão frágil nossa vida realmente é.
Como criaturas emocionais, oramos para um Deus cuja
existência não temos prova, nossa incontrolável fé servindo
apenas para sopitar o medo primordial da morte quando
tentamos convencer nossos intelectos de que deve haver
vida depois dela. Deus é misericordioso, Deus é justo,
dizemos a nós mesmos, e então o impensável acontece: uma
criança se afoga numa piscina, um motorista bêbado mata
um ente querido, a doença ceifa um futuro consorte.
Para onde vai nossa fé, então? Quem pode orar para um
Deus que rouba um anjo? Que plano divino poderia justificar
um ato tão hediondo? Foi um Deus misericordioso que
decidiu golpear minha Maria na flor da idade? Foi um Deus
justo que determinou que ela se retorcesse de dor,
agonizando, até que Ele finalmente Se dignasse a cumprir a
divina tarefa de Se apiedar de sua alma torturada?
E o marido dela? Que espécie de homem eu era, para me
omitir e permitir que minha amada sofresse tanto?
Com o coração pesado, eu permitia que cada dia passasse,
enquanto o câncer arrastava Maria para mais perto da cova.
E então, uma noite, quando eu estava chorando ao seu lado,
ela me olhou com seus olhos fundos, uma criatura miserável
mais morta que viva, e implorou por misericórdia.
O que eu podia fazer? Deus a abandonara, negando-lhe
alívio daquela tortura incessante. Me curvei, meu corpo
tremendo, e a beijei uma última vez, pedindo forças a um
Deus cuja existência eu agora questionava e amaldiçoava.
Apertando o travesseiro sobre o seu rosto, extingui seu
último suspiro, sabendo muito bem que estava extinguindo
também a chama da minha alma.
Cometido o ato, me virei, chocado ao ver meu filho, um
cúmplice inconsciente, me fitando com os olhos escuros e
angelicais de sua mãe.
Que espécie de ato monstruoso eu tinha cometido? Que
palavras corajosas eu poderia alinhavar para reconquistar a
inocência perdida daquela criança? Despido de toda
falsidade, eu estava ali, exposto, um pai fraco e iludido.
Alguém que, impensadamente, acabava de condenar a
psique do filho com um gesto que, poucos minutos antes, eu
pensava ser humanitário e altruísta.
Impotente, vi meu filho sair desabaladamente da nossa casa
e correr no meio da noite para extravasar sua raiva.
Se eu tivesse uma arma, teria estourado meus miolos ali
mesmo. Em vez disso, caí de joelhos e solucei, xingando
Deus, gritando o Seu nome em vão.
Em menos de um ano, a existência da minha família havia
sido transformada numa tragédia grega. Será que Deus
manipulou esses acontecimentos, ou Ele era também apenas
um espectador, observando e esperando enquanto Seu anjo
caído manipulava nossas vidas como um diabólico mestre de
marionetes?
Talvez tivesse sido o próprio Lúcifer, ponderei em minha
dor, pois quem, senão ele, poderia ter vitimado minha
esposa, manipulando habilmente a sequência de eventos que
se seguiram? Eu acreditava mesmo no Diabo? Naquele
momento, sim, ou, no mínimo, acreditava na presença do
mal personificada numa entidade individual.
Algo tão intangível quanto o mal poderia ser uma entidade?
Minha mente torturada ponderava a questão, me
concedendo um momento de alívio da dor. Se Deus era uma
entidade, então, por que não o Diabo? O bem poderia existir
sem o mal? Deus poderia existir sem o Diabo? E quem teria
gerado quem? Pois sempre foi o medo do mal que impeliu os
motores da religião, não Deus.
O teólogo que há em mim prevaleceu. Medo e religião.
Religião e medo. Os dois estão historicamente entrelaçados,
são os catalisadores da maioria das atrocidades cometidas
pelo homem. O medo do mal alimenta a religião, a religião
alimenta o ódio, o ódio alimenta o mal, e o mal alimenta o
medo nas massas. É um ciclo diabólico, e nós fazemos o jogo
do Diabo.
Olhando para os céus, meus pensamentos voltaram para a
profecia maia, perguntando-me, em meu delírio e minha
dor, se era a presença do mal que estava orquestrando a
derrocada final da humanidade, nos empurrando para a
obliteração da nossa própria espécie.
E então outra ideia cruzou minha mente. Talvez Deus
existisse, sim, mas tivesse decidido assumir um papel passivo
na existência do homem. Talvez Ele tenha nos
proporcionado os meios de determinar nosso destino,
permitindo, no entanto, que o mal exercesse uma influência
mais ativa em nossa vida para testar nossa determinação —
verificando nossas aptidões num teste para a entrada em Seu
além.
Maria fora tomada de mim, ceifada na flor da existência.
Talvez houvesse uma razão para a insanidade daquele
momento, talvez eu estivesse me aproximando da verdade...
de que eu estava realmente no caminho da salvação da
humanidade.
Amaldiçoando o Diabo, olhei para as estrelas, com lágrimas
nos olhos, e jurei pela alma da minha amada que nem o céu
nem o inferno iriam me impedir de desvendar a profecia
maia.
Mais de dez anos se passaram desde que fiz esse juramento.
Agora, nos bastidores, escrevendo esta última anotação
enquanto espero para ser chamado à tribuna, sorrio
amargamente para a ideia de encarar meus céticos colegas.
Mas que alternativa eu tenho? Apesar dos meus esforços,
peças do quebra-cabeça da profecia continuam faltando, e a
salvação da nossa espécie está em jogo. Minha saúde frágil
me obrigou a passar o bastão para o meu filho antes do que
eu esperava, entregando-lhe integralmente o fardo de
completar essa maratona.
Ouvi dizer que Pierre Borgia vai me apresentar à multidão.
Sinto meu estômago trepidar com a antecipação de revê-lo.
Talvez os anos tenham abrandado sua ira contra mim.
Talvez ele se dê conta do que está em jogo.
Espero que sim, pois precisarei de seu apoio para convencer
os cientistas reunidos no auditório a agir. Se me ouvirem
com mente aberta, só os fatos podem bastar para persuadi-
los. Caso contrário, temo que nossa espécie esteja fadada a
perecer, tão certamente quanto os dinossauros pereceram
antes de nós.
Uma anotação final foi depositada num cofre em Cambridge
com a data específica de quando seu lacre poderá ser
quebrado. Se sobrevivermos ao holocausto que virá, um
desafio final está à espera — para dois pequeninos que ainda
não nasceram.
Quando os organizadores me chamam para subir ao palco,
olho para Michael. Ele acena com aprovação, seus olhos de
ébano brilhando para mim, irradiando a inteligência de sua
mãe. Privado da inocência há tantos anos, ele se tornou
introvertido e distante, e temo que nutra afaria oculta que
meu ato hediondo deve ter gerado. Ainda assim, sinto um
profundo senso de propósito dentro de meu filho. Rezo para
que esse propósito lhe dê forças em sua jornada pelo
caminho do destino, rumo à sua própria salvação — e a de
todos nós.
— Trecho Final do Diário do Professor Julius Gabriel,
24 de agosto de 2001
23
14 DE DEZEMBRO DE 2012
COMANDO NORTE-AMERICANO DE DEFESA
AEROESPACIAL (NORAD)
COLORADO
O coração do major Joseph Unsinn pula de seu peito
quando os alarmes de míssil do NORAD tocam.
Dezenas de técnicos vêem, horrorizados, seus
grandes monitores de computador enchendo-se de
uma avalanche de dados.
ALERTA RÁPIDO! ALERTA RÁPIDO!
DETECTADOS LANÇAMENTOS MÚLTIPL05 DE MÍSSEIS BALÍSTICOS
LOCAL DO LANÇAMENTO: BÃKHTARÃN-IRÃ
ALVO: ISRAEL
TEMPO ATÉ O IMPACTO:
ALVO: MÍSSEIS MIN/SEG
Megiddo 2 4:12
Tel Aviv 3 4:35
Haifa 4 5:38
Colinas de Golã 1 5:44
Os dados são instantaneamente transmitidos do
centro de processamento em alta velocidade do
NORAD diretamente para os comandantes americanos
de campo em Israel e no Golfo Pérsico. Momentos
depois, o major Unsinn está no video-comunicador,
falando com o secretário de Defesa.
Sala de Comando de Raven Rock
Maryland
O complexo ultra-secreto, conhecido apenas como
Raven Rock, funciona como um Pentágono
subterrâneo. Dentro desse centro nervoso fica a "sala
de comando", uma câmara circular contendo um
labirinto de sistemas ultramodernos de comunicação e
gerenciamento de dados. Dali, o presidente e seus
consultores podem transmitir diretrizes para o Centro
de Comando Estratégico dos Estados Unidos
(STRATCOM), outro centro nervoso subterrâneo em
contato direto com todos os satélites, aeronaves,
submarinos e mísseis estratégicos em todo o mundo.
Como o NORAD, os bunkers de Raven Rock e do
STRATCOM foram isolados para proteger seus
sensíveis equipamentos high-tech dos pulsos
eletromagnéticos gerados durante um ataque nuclear.
O presidente Maller está sentado num sofá de couro
em sua sala particular, seus membros tremendo, sua
mente lutando para reprimir sua dor pessoal, ainda
que por poucos minutos. Fora da sala, o secretário de
Defesa, Dick Przystas, e o general Fecondo
confabulam com Pierre Borgia.
— O presidente está em choque — sussurra Przystas.
— Pierre, como membro mais graduado do gabinete,
o protocolo exige que você assuma o cargo.
— O NORAD detectou uma esquadrilha de caças
camuflados russos rumando para o Alasca. Nossos
Raptors estão indo para lá interceptá-los. Você está
preparado para fornecer os códigos de lançamento...?
— Não! — Maller aparece na porta da sala. — Ainda
estou no comando, sr. Przystas. Ative o Escudo
Global. Secretário Borgia, quero falar com Viktor
Grozny e com o general Xiliang agora. Não quero
saber se você tem que ir até Moscou pra fazer Grozny
atender a porra do telefone. Dê um jeito.
— Sim, senhor.
Deserto do Sinai
Israel
O cargueiro 747-400F voa traçando um "8", 12.800
metros acima do deserto do Sinai. Apesar das
aparências, esse não é um jato comum. Dentro do seu
nariz arredondado fica o Laser Aéreo YAL-1 da Força
Aérea, uma arma projetada para interceptar mísseis
balísticos terra-ar, de cruzeiro e táticos.
O major David Adashek olha para a sua estação
enquanto o sistema diretor de feixe e Rastreador e
Localizador Infravermelho da Lockheed Martin varre
os céus a nordeste.
Dez alvos aparecem na sua tela.
— Aí está, pessoal. Dez mísseis balísticos com ogivas
nucleares entrando no alcance. Trezentos
quilômetros e se aproximando rapidamente.
— O feixe iluminador alcançou os alvos, senhor. Estão
na mira.
— Ative a serpentina.
Com um clarão brilhante, o laser TRW COIL de
muitos megawatts do Boeing é ativado, acendendo um
raio laranja que sai de seu nariz. O feixe corta o céu
noturno na velocidade da luz, transformando o
primeiro míssil iraniano numa bola de fogo em queda
livre.
Nos trinta segundos seguintes, todos os outros nove
mísseis serão destruídos.
Espaço
O esguio avião espacial preto e branco entra
suavemente em sua nova órbita, pairando bem acima
da Terra em silêncio e solidão. Diferente de seu
primo distante da NASA — o VentureStar, da
Lockheed Martin, um veículo espacial reutilizável
construído e lançado com grande estardalhaço —,
este artefato, conhecido apenas como VME (Veículo
de Manobra Espacial) por seus projetistas norte-
americanos da Boeing, jamais viu a luz do dia.
Concebido nos últimos dias da Iniciativa Estratégica
de Defesa do presidente Reagan, o VME foi
patrocinado em segredo pelo Escritório Militar do
Avião Espacial, subordinado ao Laboratório de
Pesquisas da Força Aérea, e, ironicamente, lançado
sobre um foguete Protón comprado dos russos. Capaz
de permanecer em serviço por até um ano, o veículo
totalmente automatizado e não tripulado não leva
nenhuma carga comercial, tampouco jamais serviu à
Estação Espacial Internacional ou a interesses
privados. O VME foi projerado com uma só
finalidade: caçar e destruir satélites inimigos.
Uma plataforma, escondida dentro da estrutura de 7
metros e meio do VME, está montada numa armação
que sustenta o laser de fluoreto de hidrogênio de alta
potência TRW Alpha e o telescópio Hughes de quatro
metros de projeção de feixe.
O avião espacial se aproxima de sua primeira vítima,
um satélite russo, um dos 18 posicionados em órbita
geoestacionária, 35.900 quilômetros acimada América
do Norte. O VME aciona seus foguetes de impulso,
estabilizando sua órbita. Acompanhando o dispositivo
russo, o VME abre as portas do seu nariz como uma
concha, revelando sua carga secreta.
O sistema de mira da Lockheed Martin se posiciona
no alvo.
Carregando-se completamente, o laser dispara,
projetando seu raio invisível sobre a superfície do
satélite russo de 5 metros e meio. O fino invólucro
protetor externo começa a se aquecer e o casco
metálico ganha um brilho laranja-avermelhado.
Sistemas eletrônicos sensíveis dentro do satélite
entram em curto. Componentes dos sensores chiam e
derretem, deixando placas de circuitos chamuscadas e
carbonizadas.
A energia do laser atinge as baterias do satélite...
Com uma forte explosão, o satélite de
reconhecimento se despedaça, transformando seus
restos queimados em pedaços brilhantes de lixo
espacial.
Capturado pelo campo gravitacional da Terra, um
grande pedaço de metal russo se transforma numa
bola de fogo ao reentrar na atmosfera do planeta.
Um garoto que mora na Groenlândia olha para o céu
setentrional noturno, empolgado com o inesperado
espetáculo. Fechando os olhos, ele faz um pedido
para a estrela cadente.
O nariz do VME se fecha, o avião espacial ativa os
foguetes, e o assassino de satélites ruma para uma
órbita mais alta, no encalço de seu próximo alvo.
Laboratório de Teste de Sistemas de
Laser de Alta Potência
White Sands, Novo México
Para o transeunte desinformado, a cúpula de concreto
e aço situada dentro do complexo de segurança
máxima à beira do deserto do sul do Novo México não
parece mais do que mais um posto de observação
estelar. Mas dentro do domo retrátil não há um
telescópio, e sim uma torre naval giratória de 5,1
polegadas, montada sobre uma plataforma de alta
velocidade capaz de virar 360 graus.
E o MIRACL, o laser mais potente do mundo.
Desenvolvido pela TRW e pela RAFAEL, de Israel, o
laser químico de fluoreto de deutério é capaz de
emitir repetidos fachos de alta potência para o espaço
na velocidade da luz.
Usando os mesmos princípios que operam um motor
de foguete, o laser usa trifluoreto de nitrogênio como
oxidante para queimar o combustível de etileno, que,
por sua vez, libera átomos excitados de flúor. Quando
deutério e hélio são injetados na descarga, a energia
óptica é produzida, criando um feixe de laser de 3
centímetros por 21. O componente mais importante
do assassino de satélites, o orientador de feixe
fabricado pela Hughes, rastreia o alvo em alta
velocidade, emitindo o potente laser através da
atmosfera para o espaço.
A coronel Barbara Esmedina, diretora do projeto
White Sands, observa impacientemente seus técnicos
terminando de digitar as coordenadas dos sete
satélites GPS russos e dos quatro norte-coreanos que
pairam em algum lugar sobre a América do Norte.
Esmedina, uma ex-administradora que trabalhou no
protótipo X-33 do VentureStar da NASA, ganhou
reputação de proponente irascível, direta e muitas
vezes bizarramente franca dos lasers táticos de alta
potência. Duas vezes casada e duas vezes divorciada,
aposentou faz tempo sua vida sentimental para buscar
financiamento para seu projeto preferido — a
construção de uma dúzia de bases MIRACL como
meio tático de defesa contra ataques com ICBMs.
Durante oito anos, Barbara Esmedina travou uma
guerra pessoal com o Departamento de Defesa, desde
o dia em que o governo de Kim Jong II completou o
desenvolvimento do Taepo Dong-2, um míssil de dois
estágios de longo alcance, capaz de atingir a costa
oeste da parte continental dos Estados Unidos. Apesar
de muito respeitada por seus superiores, ela já foi
criticada por ser esperta demais para seu próprio bem
e bonita demais para ter um temperamento tão
explosivo — essa última e incontrolável característica
prejudicou muitas vezes seus esforços para obter
financiamento. Apesar de um intenso lobby cinco
anos antes, o Departamento de Defesa preferiu
financiar o novo CVN-78 da Marinha, um porta-
aviões camuflado de 6 bilhões de dólares.
Barbara balança a cabeça ao lembrar, revoltada. Era
tudo o que a gente precisava, mais um elefante branco de 6
bilhões de dólares.
— Estamos prontos aqui, coronel.
— Já era tempo. Abram a cúpula.
Um gemido hidráulico vem do alto, e a imensa cúpula
de concreto se retrai, revelando o céu estrelado do
deserto.
— Cúpula retraída, coronel. Laser posicionado.
Temos visão perfeira.
— Disparar laser.
Em menos que um piscar de olhos, um brilhante
facho vermelho vivo se acende, traçando uma linha
nos céus. A coronel Esmedina e uma dúzia de
técnicos se concentram num monitor de computador
que indica a posição do satélite inimigo. A imagem
pisca, depois desaparece abruptamente.
— Primeiro alvo destruído, coronel. Mirando agora
no segundo alvo. Esmedina reprime um sorrisinho
quando a torre do laser muda de posição.
— Isso, camarada Grozny, é o que chamamos de
mandar seus brinquedinhos pro espaço.
Sob a Pirâmide de Kukulcán
Chichén Itzá
Mick está flutuando.
Olhando as duas figuras inconscientes de bruços
sobre a estranha grade, ele vê máscaras congeladas de
dor, os rostos assustados azulados por baixo dos
visores.
Reconhecendo os corpos, ele não sente remorso nem
sofrimento, somente um abençoado conforto,
misturado com uma estranha sensação de curiosidade.
Virando-se, vê o túnel aberto à sua frente, a luz
brilhante atraindo-o para dentro. Sem hesitação, ele
entra, pairando como um pássaro sem asas.
Ele sente a presença do ser e registra uma onda
instantânea de amor e ternura, algo que não
experimentava desde a infância.
Mamãe?
A luz o abraça, envolvendo-o com sua energia.
Ainda não chegou a sua hora, Michael...
O estrondo de um trovão enche seus ouvidos quando
a luz se dissipa.
A golfada de bílis expulsa o regulador da boca de
Mick, causando-lhe convulsões. Ele inspira ar uma
vez, depois duas, e então arranca a máscara do rosto e
vira de costas, seu peito arfando enquanto ele olha
para o bizarro teto abobadado.
Mãe?
— Dominique...
Pondo-se de joelhos, ele rasteja até a garota, tirando
rapidamente a máscara de mergulho dela, o regulador
já fora de sua boca. Sentindo que o coração está
batendo, ele puxa a cabeça dela para trás e abre sua
boca, expirando dentro dela e enchendo-lhe os
pulmões.
Vamos...
A água enche a boca de Dominique. Colocando-se
sobre ela, ele pressiona seu abdômen com as duas
mãos, forçando o líquido a sair. Ele esvazia a boca de
Dominique e começa de novo. Outra dúzia de
respirações.
O rosto de Dominique fica rosado. Ela tosse,
expelindo mais água, e abre os olhos.
Estreito de Bering
Perto da Costa do Alasca
1h43 (HORA DO ALASCA)
Os sete Raptors F-22 da Lockheed Martin, os caças
mais avançados do mundo, riscam o escuro céu do
Alasca em velocidade supersônica. Os aviões
camuflados e quase sem cauda, mais ou menos do
tamanho de um F-15, não só são invisíveis ao radar,
mas conseguem voar mais alto e mais rápido do que
qualquer jato.
O major Daniel Barbier flexiona os músculos para se
manter acordado dentro do cockpit escuro. Oito
longas horas e cinco reabastecimentos no ar se
passaram desde que sua esquadrilha decolou da Base
Aérea Dobbins, em Marietta, Geórgia, e o líder da
formação sente a fadiga nos ossos. O piloto canadense
tira do bolso da jaqueta a foto de sua esposa, filha e os
gêmeos de 4 anos, e dá um beijo de boa sorte em cada
um, depois volta a se concentrar no painel colorido à
sua frente.
O display tático do F-22 é um sistema de
gerenciamento sensorial projetado para fornecer ao
piloto o máximo de informações sem se tornar
confuso. Cores e símbolos específicos distinguem os
três sensores principais do caça, permitindo um
reconhecimento rápido. O radar de combate APG-77
do caça, da Northrop Grumman/Raytheon, é tão
poderoso que permite que o piloto mire, identifique e
destrua um alvo muito antes que o inimigo perceba a
sua presença. Além do radar, o F-22 é equipado com
dois outros sensores, ambos passivos, sem emissões, o
que ajuda a preservar a camuflagem da aeronave.
O primeiro deles é o sistema de combate eletrônico
ALR-94 da Lock-heed-Sanders, um sensor que
rastreia o campo de batalha, procurando sinais
inimigos. Quando um inimigo é detectado, o sistema
imediatamente determina a posição e o alcance do
alvo, depois programa os mísseis AMRAAM do
Raptor para interceptá-lo. Um segundo sistema
passivo, chamado de datalink, coleta informações de
AWACS, fornecendo ao piloto do F-22 excelentes
dados para navegação e identificação de alvos.
Apesar de toda a tecnologia da aeronave, o estômago
de Barbier está apertado de medo. Em algum lugar à
sua frente está uma esquadrilha de caças russos
camuflados, carregando, acredita-se, armas nucleares.
Enquanto a estrutura do Raptor minimiza a imagem
no radar pelo seu design angular, seu equivalente
russo produz uma nuvem de plasma que envolve o
avião, diminuindo os ecos de radar. Localizar o
inimigo não vai ser fácil.
— Lenhador para Branca de Neve, responda Branca de
Neve. Barbier ajusta o fone para falar com a Base
Aérea de Elmendorf.
— Prossiga, Lenhador.
— A Bruxa Má (NORAD) detectou os anões. Enviando
coordenadas agora.
— Positivo. — Barbier vê seu display tático central se
iluminar como uma árvore de Natal. Uma rede de
dados segura dentro da esquadrilha fornece a cada um
dos sete pilotos dos Raptors informações idênticas,
enquanto o sistema analisa e coordena uma lista de
alvos.
Sete círculos azuis marcam os F-22 em formação.
Nove triângulos vermelhos esrão se aproximando do
noroeste, voando em formação, perto da água.
Barbier toca uma barra em seu manche. Cada inimigo
recebe instantaneamente um círculo branco com um
número, os símbolos aparecendo nos displays táticos
e de ataque de cada Raptot.
Na barriga do F-22 de Barbier há dois compartimentos
venttais de armas e dois laterais. Os compartimentos
ventrais contêm quatro mísseis avançados ar-ar de
médio alcance (AMRAAM) FIAVE DASH II, armas
com motores de jato êmbolo de velocidade Mach-6
capazes de perfurar 2 metros de concreto a 100
milhas náuticas de distância. Cada compartimento
lateral contém um Sidewinder GM-Hughes AIM-9X,
um míssil com sensor de calor capaz de atingir alvos a
90 graus da alça de mira do caça.
A palavra DISPARAR aparece simultaneamente na
tela de ataque e no display de alerta montado no
capacete de Barbier. O piloto acaricia o botão do
manche, vendo em seu display tático o F-22 ir do
círculo externo para o círculo central de ataque. A
essa distância, as armas do Raptor podem atingir o
inimigo enquanto ele está longe demais para contra-
atacar.
— Tenham um bom mergulho, filhos da puta —
murmura Barbier.
Com 40g de pressão, os lançadores pneumáticos-
hidráulicos sob cada um dos F-22 ejetam uma salva de
mísseis dos compartimentos de armas. Os mísseis
passam ao voo autônomo em segundos, aproximando-
se de seus alvos à velocidade hipersônica de 2 mil
metros por segundo.
Os F-22 viram abruptamente, descendo para uma
altitude menor.
O coração do líder da esquadrilha russa pula para a
garganra quando o sistema de aviso de mísseis se
acende, o alarme de bordo ecoando em seus ouvidos.
A transpiração brota sob seu macacão quando ele
lança apressadamente seus despistadores e sai da
formação, incapaz de entender de onde partiu o
ataque. Ele olha para o radar, depois se encolhe,
apavorado, ao ver o jato ao seu lado se transformando
numa bola de fogo.
O alerta se torna um toque fúnebre e ensurdecedor.
Olhando para o radar, completamente aterrorizado, o
piloto luta para assimilar a ideia de que o caçador, de
alguma forma, se tomou a caça.
Um segundo depois, o míssil AMRAAM viola sua
fuselagem, vaporizando o piloto para a eternidade.
Sob a Pirâmide de Kukulcán
Chichén Itzá
Descalços, Mick e Dominique andam de mãos dadas
pela nave alienígena, as partes de cima dos trajes de
neoprene abertas e pendendo de suas cinturas.
O corredor ou túnel é aquecido, embora bem escuro,
a única luz vindo de um brilho azul algum lugar à
frente. O chão, as paredes e o teto curvo de 15
metros de altura da passagem são nus e lisos,
formados por um polímero preto translúcido e
reluzente.
Mick para a fim de apertar o rosto contra a parede
vítrea, tentando enxergar alguma coisa.
— Acho que tem algo atrás destas paredes, mas o
vidro é tão escuro que não consigo ver nada. — Ele
vira para Dominique, que lhe dirige um olhar
apavorado. — Você está bem?
— Bem? — Ela abre um sorriso nervoso, seu lábio
inferior tremendo. — Não, acho que não me sinto
bem desde que te conheci. — Ela sorri, depois começa
a chorar. — Acho... acho que a boa notícia é que
você não está louco. Isso significa que vamos todos
morrer?
Ele toma a sua mão.
— Não tenha medo. Esta nave pertence a Kukulcán,
ou seja lá como o humanóide se chamava.
— Como vamos sair daqui?
— Esta nave deve estar enterrada bem debaixo da
pirâmide de Kukulcán. Provavelmente tem algum tipo
de passagem secreta que leva pro templo. Vamos
achar uma saída, mas antes precisamos descobrir
como impedir que a profecia do fim do mundo se
confirme.
Ele a leva até o fim do corredor, que se abre numa
enorme câmara em formato de cebola. Paredes
arredondadas irradiam uma fraca luz elétrica azul.
Bem no centro da abóbada do teto há uma passagem
vertical de um metro e meio de diâmetro, como uma
chaminé, que desaparece na escuridão acima de suas
cabeças.
Posicionado diretamente sob a abertura há um
enorme objeto em forma de banheira.
E um paralelepípedo polido de granito marrom —
com 2 metros e meio de comprimento por um de
largura e um de altura. Quando eles chegam perto, um
fraco brilho escarlate surge na lateral da banheira de
granito, ficando mais forte à medida que eles se
aproximam.
Mick arregala os olhos ao ver as fileiras de hieróglifos
vermelhos luminosos.
— E uma mensagem, escrita em maia quiché antigo.
— Você consegue traduzir?
— Acho que sim. — Mick sente suas entranhas
tremendo com a adrenalina. — Esta primeira parte
identifica o autor, e o nome dele se traduz pelo
equivalente maia da palavra guardião.
— Leia — murmura ela.
— Eu sou Guardião, o último dos Nefilins. Não deste
mundo, mas somos um. Os ancestrais do homem
eram... nossos filhos. — Ele para de ler.
— O que foi? Continue...
— Nós... vossa semente.
— Não entendo. Quem eram os Nefilins?
— A Bíblia os chama de gigantes. O Livro do Gênesis
menciona brevemente os Nefilins como anjos caídos,
homens de inteligência superior. Os Manuscritos do
Mar Morto insinuam que os Nefilins podem ter
procriado com mulheres humanas antes da época do
Grande Dilúvio, um período que equivale ao
derretimento da última era glacial.
— Espere, está dizendo que esses alienígenas
cruzaram com humanos? Essa é uma idéia nojenta.
— Não estou dizendo nada, mas faz bastante sentido,
se você pensar bem. Já ouviu falar do elo perdido da
evolução, certo? Talvez tenha sido a síntese de um
DNA humanóide avançado que tenha feito o Homo
sapiens pular degraus na escada da evolução.
Dominique balança a cabeça, estupefata.
— Não consigo assimilar tudo isso. Continue lendo.
Mick volta a se concentrar na mensagem.
— Os líderes Nefilins levaram vossa espécie às
sociedades, guiando os trabalhos de vossa salvação,
abrindo vossas mentes para que pudésseis ver. Dois
mundos, uma espécie, unida através do espaço e do
tempo por um inimigo comum. Um inimigo que
devora as almas de nossos ancestrais. Um inimigo cuja
presença logo eliminará vossa espécie deste mundo.
— Espere aí. Que inimigo? Aquela coisa no Golfo? O
que ele quer dizer com devorar nossas almas? Está
dizendo que vamos todos morrer?
— Me deixe terminar, falta uma passagem. — Mick
enxuga as gotas de suor dos olhos e volta a se
concentrar no texto incandescente da cor de sangue.
— Eu sou Kukulcán, mestre do Homem. Sou Guardião,
o último dos Nefilins. Perto da morte, minha alma
está preparada para a jornada rumo ao mundo
espiritual. A mensagem foi transcrita, todas as coisas
prontas para a chegada de Um Hunahpu. Dois
mundos, um povo, um destino. Somente Um
Hunahpu pode selar o portal cósmico antes que o
inimigo chegue. Somente Um Hunahpu pode fazer a
jornada para Xibalba e salvar as almas de nossos
ancestrais.
Mick para de ler.
— E então, Mick, o que tudo isso significa? Pensei
que esse Um Hunahpu fosse o cara do mito da criação
que teve a cabeça cortada. Como é que ele pode nos
ajudar? E o que o Guardião quer dizer com o portal
cósmico que precisa ser selado? Mick? Ei, você está
bem? Está pálido.
Ele se senta no chão, encostando-se na banheira de
granito.
— Qual o problema? O que foi?
— Só me dê um segundo.
Ela se senta ao lado dele e lhe massageia o pescoço.
— Desculpe. Você está bem?
Ele faz que sim, respirando fundo lentamente.
— Esse é o fim da mensagem?
Ele repete o gesto da cabeça.
— Qual o problema? Fale...
— De acordo com o Popol Vuh, Um Hunahpu morreu
há muito tempo.
— E o que vamos fazer?
— Não sei. Acho que estamos encrencados.
Comando Norte-Americano de Defesa
Aeroespacial
NORAD
Colorado
23h01
O comandante em chefe do NORAD, general Andre
Moreau, passa lentamente pelas fileiras de estações de
radar ultramodernas, painéis de comunicação e mo-
nitores de vídeo. Nenhum dos controladores levanta
os olhos quando ele passa, cada homem e mulher
completamente concentrados em sua estação, com os
nervos à flor da pele e carregados por uma mistura de
cafeína com adrenalina.
Moreau sente seu estômago se apertar ao ver o
monitor piscando DEFCON-1. A Condição de
Prontidão de Defesa é uma postura militar que varia
da vigilância rotineira em tempos de paz da DEFCON-
5 até a DEFCON-1, condição que equivale a um
ataque nuclear com represálias.
Moreau fecha os olhos. Em seus 32 anos servindo à
Força Aérea e ao NORAD, o general já viveu uma boa
dose de emoções. Ele se lembra daqueles apavorantes
seis minutos em novembro de 1979, quando um
estado de DEFCON-1 foi iniciado no seu turno. Sem o
conhecimento do NORAD, um alarme falso havia sido
gerado por uma fita de treinamento de computado!
Convencendo seus operadores de que os soviéticos
haviam lançado um grande número de ICBMs contra
os Estados Unidos. Nos momentos tensos que se
seguiram, os preparativos de emergência para um
ataque nuclear retaliatório foram iniciados, e os
aviões da Força Aérea já estavam no ar antes que o
radar de alerta antecipado PAVE PAWS do NORAD
detectasse o erro humano.
O general volta a abrir os olhos. Embora mais uma
dúzia de apertos tenham acontecido nos anos
seguintes, nenhum causou tanta ansiedade quanto
aquele de 1979.
Nenhum até agora.
O ALERTA RÁPIDO interrompe os pensamentos do
general. Por um momento surreal, ele se sente caindo
de um penhasco, quando todos os monitores de vídeo
da montanha Cheyenne piscam com a horripilante
mensagem.
ALERTA RÁPIDO! ALERTA RÁPIDO!
DETECTADOS LANÇAMENTOS MÚLTIPLOS DE MÍSSEIS BALÍSTICOS
ALERTA RÁPIDO! ALERTA RÁPIDO!
DETECTADOS LANÇAMENTOS MÚLTIPLOS DE MÍSSEIS BALÍSTICOS
Meu Deus...
— Quero um relatório dos sistemas!
Uma dúzia de técnicos com um telefone em cada
ouvido ligam freneticamente para bases em todo o
mundo, enquanto a voz feminina computadorizada
continua anunciando:
— ALERTA RÁPIDO.
O general espera impacientemente enquanto um
circuito operacional de voz ligando os sete centros
funcionantes do NORAD é estabelecido.
— General, relatório dos sistemas válido!
— General, os satélites do Programa de Apoio à
Defesa identificaram e confirmaram quatro leques de
ataque. Na tela agora, senhor.
ALERTA DE ATAQUE COM MÍSSEIS
Mísseis Balísticos Intercontinentais: 2.754
Mísseis Balísticos Lançadas por Submarinas: 86
Quatro Leques de Ataque Identificadas:
Alvos: Alasca [17]
Havaí [23]
Estadas Unidos Continentais [2.800]
TRAJETÓRIA DO ÁRTICO
17 ICBMs
TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO: 18 min O8 seg
[Base Aérea de Elmendorf]
TRAJETÓRIA DO PACÍFICO
23 ICBMs
TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO: 28 min 47 seg
[Pearl Harbor]
TRAJETÓRIA DO NOROESTE DO PACÍFICO
1.167 ICBMs. 36 MÍSSEIS LANÇADOS POR SUBMARINOS
TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO: 29 min 13 seg
[Seattle]
TRAJETÓRIA DO ATLÂNTICO
1.547 ICBMs. 50 MÍSSEIS LANÇADOS POR SUBMARINOS
TEMPO ATÉ O PRIMEIRO IMPACTO: 20 min 17 seg
[Washington OC]
O general fita o monitor por um longo momento,
depois pega a linha direta para o Comando Estratégico
dos Estados Unidos e Raven Rock.
Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock
Maryland
2h04
O presidente Mark Maller, de mangas arregaçadas, sua
profusamente, apesar do forte ar-condicionado. Uma
parede de sua sala à prova de som é recoberta por
uma série de videocomunicadores que ligam o Centro
de Comando diretamente com o STRATCOM. Maller
desvia o olhar da imagem do general Doroshow
enquanto termina de recitar os códigos de
lançamentos nucleares para o comandante, passando a
tela para o secretário de Defesa.
O presidente sai de trás da mesa e desaba sobre o sofá
de couro, olhando para o monitor acima de sua
cabeça, impotente, enquanto o mapa computa-
dorizado marca os históricos minutos finais dos
Estados Unidos da América.
Isso não está acontecendo. Não pode estar acontecendo.
Meu Deus, por favor, me faça acordar na cama, ao lado da
minha mulher...
Maller pressiona o botão do intercomunicador pela
nona vez nos últimos seis minutos.
— Borgia?
— Senhor, ainda estou tentando. Os assessores do
Grozny juram que passaram a ligação, mas o
presidente se recusa a falar com o senhor.
— Continue tentando.
Um Dick Przystas de rosto cinzento desvia o olhar do
monitor.
— Bem, senhor, nossos pássaros estão no ar. Talvez
isso traga o Grozny pro telefone.
— Quanto tempo?
— Nossos mísseis balísticos lançados de submarinos
atingirão Moscou e Beijing dois minutos depois dos
mísseis da coalizão.
— Você quer dizer, dois minutos depois que todas as
principais cidades das costas leste e oeste dos Estados
Unidos forem varridas do mapa. — Maller se inclina
para a frente, seu tronco tremendo. —Todos os
nossos preparativos, todos os nossos tratados, toda a
nossa tecnologia... O que aconteceu com isso tudo,
cacete? Onde foi que erramos?
— Mark, nós não apertamos o botão, foram eles.
— O Chaney tinha razão, isso é loucura! — Maller fica
de pé, sua úlcera pegando fogo. — Pura que pariu,
Borgia, onde está o Grozny?
O general Joseph Fecondo se junta a eles, suas feições
morenas agora com um tom esverdeado de náusea.
— Os comandantes em chefe informam que todos os
mísseis estão no ar. Vou continuar no centro de
comando, presidente. Meu menino mais velho está
baseado em Elmendorf. Eles... eles disseram que vão
trazê-lo pro vídeo-comunicador.
Uma funcionária passa por Fecondo e entrega um fax
ao presidente.
— Senhor, os ingleses e os franceses concordaram em
não lançar nenhum míssil.
Dick Przystas arregala os olhos.
— Os franceses! Talvez sejam mais ambiciosos do que
pensávamos. Desenvolvem a fusão pura em segredo,
detonam os dispositivos na Rússia e na China, e
assumem o controle do que resta do mundo depois
que as três potências se aniquilam.
Borgia olha para Maller.
— É possível.
— Filhos da puta! — Maller chuta a mesa.
Outro funcionário entra.
— Presidente, o vice está no VC-4. Diz que é urgente.
Maller liga o monitor de vídeo.
— Fale rápido, Ennis.
— Presidente, temos como provar que as três
detonações de fusão partiram da nave alienígena.
— Cristo santo, Ennis, não tenho tempo pra...
O rosto do capitão Loos aparece no comunicador.
— Presidente, é verdade. Estamos recebendo imagens
captadas há pouco por um dos nossos Predators.
A tela mostra então a imagem de um vórtice
esmeralda rodopiante. Todos os funcionários do
centro de comando param para ver os três objetos
escuros saindo do funil do redemoinho.
— Meu Deus do céu — murmura Maller, surpreso. —
É verdade. Borgia grita de seu painel de comunicação.
— Senhor, VC-8, 9 e 10. Estou com o Grozny, o
general Xiliang e o secretário-geral da ONU na linha!
O presidente Maller olha para o seu secretário de
Defesa.
— Eles nunca vão acreditar. Nem eu acredito, meu
Deus.
— Então faça com que acreditem. Dois bilhões de
pessoas vão morrer em menos de 17 minutos, e você
e aqueles dois idiotas são as únicas pessoas no mundo
que podem impedir.
Sob a Pirâmide de Kukulcán
Chichén Itzá
Mick examina os lados da enorme banheira de
graniro, escura agora, a não ser por uma única fileira
de pontos e linhas escarlate.
— O que é isso? — pergunta Dominique.
— Números. Números maias, de zero a dez.
— Talvez seja algum tipo de fechadura com segredo.
Tem algum código numérico entalhado nas ruínas?
Os olhos de Mick brilham.
— Melhor que isso, tem um código numérico
embutido nos projetos da Grande Pirâmide, de
Angkor Wat e da cidade de Teotihuacán. O código da
precessão: 4320.
Mick toca o símbolo de quatro pontos.
O número 4 maia muda de um vermelho
incandescente para um profundo azul elétrico.
Em seguida, ele toca os números maias 3 e 2, depois o
símbolo em forma de olho que representa o 0. Cada
ícone muda para um azul radiante.
E então o interior da banheira se acende com um
luminoso brilho azulado, e um objeto aparece dentro
dos confins da banheira.
A luz diminui, permitindo que eles olhem dentro do
recipiente aberto.
Dominique sufoca um grito.
Coberto por uma túnica branca esfarrapada, um
humanóide enorme devolve-lhes o olhar; um velho
com os traços faciais de um centenário. A pele
exposta é branca como a de um fantasma, o longo
cabelo e a barba, brancos, brilhantes como seda. A
cabeça, perfeitamente preservada, é alongada, e o
corpo mede mais de 2 metros de altura. Os olhos
abertos, paralisados pela morte, emanam um irreal
olhar, azul como o oceano.
Diante de seus olhos, o humanóide começa a se
desintegrar. A pele pálida fica marrom, depois cinza,
depois se reduz a um pó fino como talco. Órgãos
vitais desidratados se desmancham dentro de um forte
esqueleto. Os ossos expostos enegrecem e se
decompõem, todo o esqueleto vaporizando-se numa
nuvem de cinzas.
Mick olha para o pano branco recoberto de cinzas,
tudo o que resta dentro da banheira de granito.
— Meu Deus, que coisa esquisita — murmura
Dominique. — Esse era o Um Hunahpu?
— Não, eu... acho que era Kukulcán, o Guardião. —
Mick se curva para a frente, examinando o interior da
caixa aberta de granito.
— O crânio dele era enorme.
— Alongado. — Mick entra na banheira.
— Mick, você está maluco? O que pensa que está
fazendo?
— Tudo bem...
— Tudo bem nada. E se o brilho reaparecer?
— Eu espero que reapareça.
— Cacete, Mick, não faça isso, estou com medo... —
Ela o pega pelo braço, tentando tirá-lo da banheira.
— Dom, pare. — Ele tira a mão dela de seu pulso e a
beija. — Eu vou ficar bem...
— Você não sabe disso...
— Dom, Um Hunahpu está morto. Se o Guardião nos
deixou algum meio de nos salvar, preciso encontrá-lo.
— Tudo bem, então vamos procurar na nave. Ser
bombardeado por radiação nesse caixão não vai
resolver nada.
— Não é radiação. Sei que parece esquisito, mas acho
que é um portal.
— Um portal? Um portal para o quê?
— Não sei, mas preciso descobrir. Eu te amo...
— Mick, sai agora de dentro dessa merda!
Ele se deita. Quando sua cabeça toca no fundo, uma
luz azul de neon parte de dentro, envolvendo-o em
energia. Antes que Dominique possa protestar, uma
força magnética invisível a atira para trás, para longe
da tumba.
Ela bate as costas com força. Pondo-se de pé, olha
dentro da banheira de granito, protegendo os olhos
do brilho incandescente.
O corpo de Mick desapareceu dentro da luz.
Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock
Maryland
2h19
O presidente Maller e seus principais assessores
militares, de punhos cerrados, olham para a imagem
de Viktor Grozny. O pálido presidente russo usa um
suéter preto, com uma grande cruz vitoriana no
pescoço.
Na tela à esquerda está o general Xiliang, mais velho,
parecendo bastante pálido. O secretário-geral da ONU
está à direita.
— General, presidente Grozny, por favor, me ouçam
— implora Maller. — Os Estados Unidos não são
responsáveis por essas explosões de fusão. Nenhuma
nação é! Me deixem provar, antes que destruamos
metade do mundo!
— Prove — diz o secretário-geral.
Viktor Grozny continua impassível.
Maller vira para Przystas.
— Pode transmitir a imagem.
O secretário de Defesa transmite o vídeo da Boone.
Do outro lado do centro de comando, o general
Joseph Fecondo luta para se controlar enquanro reza
com seu filho, Adam, e os comandantes das Bases
Aéreas de Elmendorf e Eielson, no Alasca, através do
vídeo-comunicador.
O relógio do TEMPO ATÉ O IMPACTO: ALASCA,
sobreposto aos vídeo-comunicadores, marca os
últimos cinco segundos.
Adam Fecondo e os dois coronéis da Força Aérea
prestam continência ao seu oficial em comando.
O general Fecondo devolve a continência, lágrimas
escorrendo pelo seu rosto, enquanto a imagem de seu
filho e dos dois oficiais desaparece num clarão de luz
branca.
Maller olha para as telas, onde os rostos dos líderes
russo e chinês reaparecem no lugar do redemoinho
alienígena.
— Que bobagem é essa? — grita o general Xiliang,
seu rosto contorcido de raiva.
O presidente Maller enxuga o suor dos olhos.
— Nossos cientistas descobriram a nave alienígena no
Golfo do México há dois meses. Transmitimos as
coordenadas exatas. Utilizem seus satélites espiões
infravermelhos para verificar. Por favor, entendam,
só ficamos sabendo há alguns minutos que foram
esses objetos saindo dos destroços da nave alienígena
que causaram as detonações.
Uma saraivada de chinês.
— Espera que acreditemos nesse efeito especial de
Hollywood?
— General, use seus satélites! Verifique a existência
da nave... Grozny balança a cabeça, enojado.
— Claro que acreditamos no senhor, presidente. É por
isso que 2.500 de seus mísseis nucleares estão voando
rumo às nossas cidades neste exato momento.
— Viktor, nós não sabíamos, eu juro! Escute, ainda
temos oito minutos para impedir essa insanidade...
O líder da ONU sua profusamente.
— Vocês têm menos de dez minutos. Destruam seus
mísseis. Agora!
— Vá em frente, presidente — ruge Grozny. —
Demonstre sua sinceridade para os povos russo e
chinês destruindo seus mísseis primeiro.
— Não! — Fecondo atravessa a sala correndo. — Não
acredite nesse assassino filho da puta...
Maller se vira, seus olhos em chamas.
— Está dispensado, general...
— Não faça isso! Não se...
— Tirem-no daqui!
Um perplexo PE puxa o general descontrolado para
fora da sala.
Maller vira para o monitor, que indica nove minutos
e 33 segundos até o impacto.
— Menos de uma hora atrás, uma bomba
termonuclear foi detonada num dos nossos centros de
comando subterrâneos. Trezentas pessoas morreram,
inclusive minha esposa e... — a voz de Maller treme
— e meus dois filhos.
Para impedir esta loucura, Grozny, eu darei o
primeiro passo. Estou ordenando que nossos
bombardeiros retornem à base, mas precisamos
desativar nossos ICBMs juntos.
Grozny balança a cabeça, sorrindo amargamente.
— Acha que somos burros? Suas bombas de fusão
pura assassinaram 2 milhões de nossos cidadãos, e
espera que acreditemos que não foram vocês, que foi
um alienígena?
O líder da ONU olha para Maller.
— Os Estados Unidos precisam fazer o primeiro gesto
pela paz.
Maller vira para o secretário da Defesa.
— Secretário Przystas, mande todos os bombardeiros
voltarem para a base. Instrua todos os centros de
comando de mísseis e submarinos para começar a
sequência de autodestruição ALFA-ÔMEGA-TRÊS.
Destrua todos os ICBMs e mísseis lançados por
submarinos que estão no ar a cinco minutos do
impacto.
O presidente volta a olhar para Grozny e o general
Xiliang.
— Os Estados Unidos deram o primeiro passo para
acabar com esta loucura. O próximo deve partir de
vocês. Cancelem o ataque. Destruam seus mísseis
agora. Dêem ao seu povo a chance de viver.
Uma tensão elétrica toma conta da sala. Duas dúzias
de pessoas estão de pé atrás do presidente Maller,
olhando, indefesas, para as imagens dos líderes da
Rússia e da China, esperando por sua reação.
Grozny levanta a cabeça, seus penetrantes olhos azuis
em contraste com suas feições angelicais.
— Dar ao nosso povo a chance de viver? Todo dia,
mais de mil russos morrem de fome em suas casas...
A tela pisca: SETE MINUTOS ATÉ O IMPACTO.
— Aborte o ataque e podemos sentar e discutir
soluções...
— Soluções? — Grozny se aproxima da câmera. — De
que adiantam soluções econômicas, quando o seu país
continua a se envolver em políticas de guerra?
— Os Estados Unidos estão sustentando a Federação
Russa há duas décadas — grita Borgia em resposta. —
O motivo de seu povo passar fome está mais na
corrupção do seu governo do que em qualquer
política...
O presidente engole a bílis que sobe em sua garganta.
Isso não vai nos levar a lugar algum. Ele faz um sinal para
um dos PEs em serviço.
— Me dê a sua arma, sargento.
Maller afasta Borgia para o lado e fica sozinho diante
do vídeo-comunicador, seu rosto branco como giz.
— Presidente Grozny, general Xiliang, escutem.
Daqui a menos de um minuto, nossos mísseis vão se
auto-destruir. Vocês terão menos de dois minutos
para fazer o mesmo com os seus. Se não o fizerem,
meu secretário de Estado ordenará um ataque nuclear
total aos seus países, usando até o último míssil em
nossos arsenais e submarinos. Varreremos seus países
do mapa tão certamente como vocês varrerão o
nosso. Cavalheiros, pelo bem do mundo, eu imploro,
vamos recobrar o juízo neste momento de insanidade.
Assim como choro pela morte da minha família,
lamento as perdas de vocês, mas, como já falei, os
Estados Unidos não foram responsáveis por aquelas
explosões. Mostrem ao mundo que têm coragem de
parar esta loucura. Nos dêem a chance de revelar o
verdadeiro inimigo.
O presidente respira fundo.
— Sei que o que acabo de contar é difícil de
acreditar. Pra que saibam que não tenho segundas
intenções, ofereço isto a vocês.
O presidente Mark Richard Maller aponta a arma
calibre .45 para a própria têmpora e dispara.
Sob a Pirâmide de Kukulcán
Chichén Itzá
A consciência de Michael Gabriel está subindo...
Ascendendo diretamente sobre o teto quadrado da
pirâmide de Kukulcán, saltando mais alto, onde o
verde viçoso da selva do Yucatán beija as águas azuis
do Golfo...
Um salto suave para a estratosfera e toda a península
aparece. Mais um salto — e o Hemisfério Ocidental
surge lá embaixo, a esfera da Terra aparecendo na
janela de sua mente.
O silêncio total do espaço...
Afastando-se mais rapidamente agora, a Terra se torna
uma bola de gude azul enquanto a Lua passa
velozmente ao lado. Um salto quântico, e a Terra
desaparece, substituída pelo brilho de uma estrela
amarela, todo o sistema solar entrando no campo
visual.
O tempo e o espaço acelerando numa velocidade
incalculável, Mick vendo de relance os nove planetas
correndo ao redor do Sol em órbitas desalinhadas...
Mais um salto quântico, e o Sol se torna um ponto de
luz, só uma estrela em meio a um oceano de estrelas.
A velocidade da luz, as estrelas passam ao seu lado,
desaparecendo cada vez mais rápido, enquanto
nuvens luminosas de gás e poeira interestelar apa-
recem em sua mente.
Um último salto e ele diminui a velocidade, sua
consciência fitando um vórtice espiralado de estrelas
rodopiantes tão magnífico que sua luminosidade
arrebatadora, sua grandeza, sua onipotência são quase
avassaladoras demais para serem contempladas.
Mick sente sua alma tremer ao olhar para a Via Láctea
por inteiro, sua mente inundada com a constatação de
sua total insignificancia.
Meu Deus... é tão linda...
Bilhões de estrelas, trilhões de mundos, todos parte
de um organismo cósmico vivo — uma ilha móvel em
meio ao vasto oceano do espaço.
Mick paira sobre a saliência do centro da galáxia,
subindo mais, até que está olhando de cima o coração
negro da Via Láctea, um vórtice giratório de
gravidade incalculável, seu orifício movimentando a
galáxia ao sugar gás e poeira interestelar para sua boca
monstruosa.
E então — num piscar dos olhos de sua mente — a
galáxia se transforma, reaparecendo numa perspectiva
totalmente alienígena para a sua espécie, uma quarta
dimensão do tempo e do espaço.
O buraco negro se torna um radiante funil esmeralda,
sua boca se estendendo sob a galáxia, se estreitando,
até que finalmente se divide numa teia em expansão
de cordas gravitacionais — uma treliça de rodovias
quadridimensionais que se espalham pela Via Láctea
como uma rede que gira lentamente, nunca tocando
os outros corpos celestes, mas de alguma maneira
tocando-os.
O volume de informações se torna gigantesco demais
para o seu cérebro.
Mick desmaia.
Quando ele volta a abrir os olhos, está olhando de
cima um dos braços da galáxia em espiral, um padrão:
uma constelação se materializando à medida que ele
se aproxima. Mais um salto para a frente e três
estrelas aparecem: três estrelas posicionadas num
alinhamento familiar.
Al Nitak, Al Nilam, Mintaka... as três estrelas do Cinturão de
Órion.
A sua frente, ele vê um planeta de proporções
monumentais, sua superfície colorida por uma
tapeçaria de verdes profundos e azuis cristalinos.
Xibalba. É como se o pensamento fosse sussurrado em
sua mente.
Uma Lua solitária orbita o planeta alienígena. Quando
sua consciência sobrevoa a superfície lunar, ele vê
uma nave de transporte decolando de um pequeno
posto, rumando para a superfície do planeta.
Sua mente pega uma carona.
A nave mergulha em densas camadas de nuvens
atmosféricas, revelando um oceano derretido de pura
energia. A superfície prateada e espelhada reflete o
magnífico céu vermelho vivo do planeta. À frente, ao
sul no horizonte, um triplo pôr do sol, a estrela
binária branco-azulada de Al Nitak a primeira a se
pôr, seu desaparecimento fazendo o mar adquirir tons
brilhantes de lavanda e magenta.
Uma sensação deliciosa o invade quando a nave de
transporte percorre o céu purpúreo. Então ele o vê —
um imenso continente de incrível beleza —, praias
calmas cercadas por uma rica selva tropical, cravejada
de cachoeiras magníficas, montanhas, rios...
Aproximando-se mais, ele vê um imponente habitat
cristalino de beleza estonteante. Estruturas piramidais
de alabastro cintilante pontilham a paisagem,
interligadas por sinuosas passarelas que serpenteiam
através de uma paisagem urbana futurista e
alienígena. Lá embaixo, viçosos jardins tropicais que
fariam o Éden corar de vergonha crescem em meio a
rios e cascatas de argêntea energia líquida.
Não há nenhum veículo móvel, nenhum trânsito, mas
a cidade está cheia de vida. Dezenas de milhares de
pessoas — Homo sapiens, a não ser por seus crânios
alongados — percorrem a colmeia humana alienígena
com um senso maior de propósito e alegria.
Por um momento maravilhoso, a mente de Mick é
inundada pelo amor.
E então algo monstruoso acontece.
Quando a distante bola de fogo de Mintaka se põe, o
plácido oceano começa a se agitar. Ameaçadoras
nuvens verde-oliva e vermelho-sangue correm pelo
céu escuro enquanto o vórtice aumenta para
proporções inimagináveis.
Mick vê uma secreção cinza-chumbo sair do centro
do redemoinho, o elixir contaminado inundando a
costa imaculada, a maté subindo mais e mais, até que
se infiltra na cidade dos Nefilins.
Sua consciência registra uma presença demoníaca.
A escuridão se abate sobre a cidade, espalhando-se
como a sombra de uma grande serpente sobre aquele
Éden. Humanóides aterrorizados caem no chão, com
as mãos no pescoço, seus olhos transformados em
lagos negros vazios e sem pupilas.
As imagens o vencem. Mais uma vez, ele perde os
sentidos.
Mick volta a abrir os olhos.
O que antes era uma civilização de beleza magnífica
foi agora transformada num monstruoso estaleiro
alienígena. Zumbis Nefilins, seus rostos cinzentos e
sem expressão, seus olhos buracos negros e vazios,
pairam imóveis no ar enquanto suas mentes
escravizadas montam com mãos invisíveis gigantescas
placas de irídio sobre o esqueleto de um terrível
casco esférico de 11 quilômetros de diâmetro. No
âmago da nave há uma cápsula central — um
complexo nervoso de um quilômetro e meio de
diâmetro, equipado com 23 membros tubulares.
Situada dentro dessa esfera, pendurada numa miríade
de dutos alienígenas, está uma cápsula de
sobrevivência de 90 metros. Mick se concentra no
abominável objeto, reconhecendo-o imediatamente.
A câmara de Tezcatilpoca...
E então um forte calafrio percorre a consciência de
Mick quando a visão de sua mente tenta englobar o
ser alienígena que emerge do vórtice do redemoinho
ainda em movimento.
É uma serpente, mas diferente de todas que ele já viu.
O semblante do ofídio é mais demoníaco do que
animal, suas pupilas — fendas verticais douradas,
rodeadas por córneas de um escarlate incandescente
mais cibernético do que orgânico. O crânio é do
tamanho da caçamba de um caminhão-betoneira, e o
corpo da criatura do comprimento de quatro ônibus
urbanos enfileirados.
A perspectiva de Mick muda quando a serpente se
aproxima do complexo dos Nefilins. As mandíbulas da
grande fera se abrem, revelando fileiras de dentes de
ébano, afiados como bisturis.
Saindo da boca da serpente — um humanóide.
A sombra da morte parece passar sobre a alma de
Mick. Ele não consegue ver o rosto do homem, que
tem a cabeça e o corpo cobertos por um manto negro,
mas sabe que está olhando para a personificação do
mal. O humanóide se aproxima da câmara de
sobrevivência e estende um braço, apontando. Um
objeto de jade do tamanho aproximado de uma bola
de futebol brilha na mão do homem.
Os olhos vermelhos da serpente brilham, e as pupilas
douradas desaparecem. Cega, a criatura, hipnotizada
pelo pequeno objeto, segue o ser encapuzado como se
estivesse enfeitiçada.
O animal entra no enorme casulo de sobrevivência.
A visão de Mick deixa a esfera alienígena e se
aproxima da superfície do planeta. Não há sinais de
floresras tropicais, de cachoeiras, do Éden. Em vez
disso, há corpos — corpos de crianças, imersos numa
camada sólida de alcatrão cinza-chumbo. Um gemido
profundo parte de sua alma. Os jovens Nefilins estão
vivos, mas, de alguma forma, não estão.
A consciência de Mick se aproxima. Ele olha para o
rosto de um menino.
Olhos amarelados se abrem, fitando-o em apavorante
agonia.
A mente de Mick se fecha.
Mais uma vez, ele se vê orbitando Xibalba, sua alma
tremendo ao observar um objeto que sobe da
superfície do planeta. A esfera...
Da base lunar aparece outra nave, um cruzador estelar
esguio e dourado. Os Nefilins sobreviventes correm
atrás do inimigo, desaparecendo na cauda da esfera
celestial.
Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock
Maryland
2h27
Pierre Borgia está no meio de uma poça de sangue,
pedaços do cérebro e do crânio do presidente Maller
espalhados sobre sua manga.
O rosto do general Xiliang assume uma palidez
cadavérica. O líder chinês vira para o seu segundo em
comando.
— Ativar auto-destruição.
Borgia se dirige a Viktor Grozny.
— Os mísseis americanos se auto-destruíram. O
general Xiliang fez o mesmo com os seus. O senhor
só tem quatro minutos...
O rosto de Grozny está sereno.
— É melhor morrer em combate do que sofrer na
miséria. O que ganharemos abortando o ataque? A
ameaça de aniquilação nuclear fica mais forte à
medida que nosso país fica mais fraco. A finalidade da
guerra tem um efeito purificador, e nossas nações
precisam ser purificadas.
A tela se apaga.
Um Dick Przysras visivelmente abalado entra na sala
de guerra.
— Os mísseis chineses se auto-destruíram.
— E os mísseis de Grozny?
— Nenhum, e não conseguimos falar com o vice-
presidente — Przystas diz a Borgia. — Ou seja, você
está no comando. Tem três minutos e meio até que
várias centenas de ogivas nucleares cheguem à nossa
costa.
— Maldito russo filho da puta — xinga Borgia,
andando de um lado para outro, as palavras de Pete
Mabus ecoando em seus ouvidos. Este país precisa de
liderança forte, agora, não de mais um cordeirinho como
Chaney como segundo em comando.
— Entre em contato com o Comando Estratégico.
Mande nossas forças lançarem todos os ICBMs,
mísseis balísticos e TLAMs com ogivas nucleares no
nosso arsenal. Quero que aquele filho da puta queime
no inferno.
Dentro do sarcófago do Guardião
Mick abre os olhos, surpreso ao se ver de pé na
encosta de uma colina, de frente para um panorama
tropical magnífico, uma cachoeira prateada criando
um arco-íris ao longe.
Uma presença aparece diante dele. Ele não sente
medo.
Mick ergue os olhos para o caucasiano alto. O longo
cabelo e a barba do homem são brancos e sedosos, os
olhos brilhanres, de um azul profundo, irreal e
penetrante, porém gentis.
Guardião... eu estou morto?
Não existe morte, apenas diferentes estados de consciência.
Sua mente está olhando por uma janela para uma dimensão
superior. Aqueles humanóides...
Os Nefilins. Como a sua espécie, começamos como filhos da
terceira dimensão, viajantes cósmicos, cujas jornadas nos
trouxeram a Xibalba. Mas as inebriações deste planeta eram
um estratagema, o mundo, um purgatório quadridimensional
de almas perversas, as intenções de seus habitantes, usar os
Nefilins como um meio de fugir.
Não entendo. Os Nefilins, aquelas crianças. Elas são...?
As mentes dos Nefilins são mantidas em animação suspensa,
seus corpos escravizados pelas almas dos condenados a
cumprir sua tarefa — mandar Tezcatilpoca para o sistema
solar de vocês através de uma passagem de quarta dimensão,
abrir um portal que leva para outro mundo tridimensional.
Um portal diretamente para a Terra?
Não inicialmente. As condições do seu mundo não eram
adequadas. Por terem sido exilados em Xibalba, os maus não
podem mais existir num ambiente com oxigênio. O alvo
deles era Vênus. A irmandade do Guardião seguiu
Tezcatilpoca através do corredor quadridimensional,
fazendo o seu transporte cair na Terra. O casulo de
sobrevivência resistiu, com Tezcatilpoca protegido pela
animação suspensa. O Guardião ficou para auxiliar a ascensão
da espécie humana e planejar a chegada dos Hunahpus.
Quem são os Hunahpus?
Os Hunahpus são messias geneticamente implantados em
sua espécie pelo Guardião. Somente um Hunahpupode
entrar no portal cósmico e impedir que os malvados
contaminem o seu mundo. Somente Um Hunahpu possui a
força para fazer a jornada através do tempo e do espaço e
libertar as almas de nossos ancestrais.
O corredor, sinto que está se abrindo.
O corredor aparece uma vez a cada ciclo precessional.
Somente um Hunahpu pode pressentir sua chegada.
Espere... está dizendo que eu sou um Hunahpu?
Somente um Hunahpu poderia ter tido acesso à espaçonave
do Guardião.
Meu Deus... Mick olha para a viçosa paisagem tropical
que se estende diante dele, seu cérebro exausto
lutando para compreender a informação sussurrada
em sua mente.
Guardião, a chegada de Tezcatilpoca — aquele impacto
aconteceu há mais de 65 milhões de anos. Como é
possível...?
O tempo não é consistente nem relevante em todas as
dimensões. A irmandade do Guardião era formada pelos
líderes sobreviventes dos Nefilins — Osíris e Merlin,
Viracocha e Vishnu, Kukulcán e Quetzalcoatl —, todos
ficaram em animação suspensa. Essa espaçonave
permaneceu em órbita sobre o seu mundo, seus
equipamentos programados para distorcer o sinal do
inimigo. Apenas neste último ciclo a evolução da sua espécie
foi suficiente para aceitar nossa semente. Portanto,
desativamos os equipamentos, permitindo que o sinal de
rádio de Xibalba despertasse Tezcatilpoca.
Vocês permitiram que Tezcatilpoca despertasse? Por quê?
Por que deixar aquela... aquela coisa...
Tezcatilpoca abriga o portal para o corredor
quadridimensional. Uma vez aberto, o corredor pode ser
usado como meio para regressar ao passado dos Nefilins.
Somente Um Hunahpu possui a força para fazer a jornada e
salvar as almas dos nossos ancestrais.
Algum Hunahpu já tentou fazer essa jornada?
Apenas um. Foi na época do último ciclo precessional, antes
do Grande Dilúvio. A irmandade do Guardião acordou da
animação suspensa e preparou um de seus ancestrais para ter
acesso ao portal cósmico de Tezcatilpoca. Quando o portal
se abriu, dois dos Senhores do Mundo Inferior entraram no
corredor pelo lado de Xibalba. Eles usaram truques e
falsidade para derrotar esse primeiro Hunahpu, mas a
bravura dele permitiu que o Guardião se apoderasse da nave
de transporte que os malignos haviam usado para viajar pela
Estrada Negra, o corredor quadridimensional do tempo e
espaço dentro do qual você está suspenso agora.
Este sarcófago é uma nave?
Sim.
Você disse que o primeiro Hunahpu foi derrotado. O que
aconteceu com os dois Senhores do Mundo Inferior que
escaparam de Xibalba?
O Guardião conseguiu fechar o portal antes que o Deus da
Morte e sua legião pudessem fazer a jornada através de
Xibalba Be, mas o estrago no seu mundo estava feito. O mal
se enraizou no jardim da humanidade.
O que isso significa?
Os dois Senhores do Mundo Inferior ficaram na Terra,
refugiando-se dentro da nave de Tezcatilpoca. Embora
permaneçam na quarta dimensão, continuam a exercer sua
influência sobre a mente dos fracos, sua força aumentando à
medida que quatro Ahau, três Kankin se aproxima.
Meu Deus... Vocês expuseram a humanidade ao Diabo...
Era necessário. Há mais em jogo do que você possa
compreender. Um Hunahpu precisa fazer a jornada pela
Estrada Negra para desfazer o estrago que foi feito. Um
destino maior espera por todos nós.
Por que eu deveria acreditar em você?
Você viu Tezcatilpoca, e ele viu você. Não há escapatória.
Ele precisa ser destruído.
Como? Quando esse Um Hunahpu vai chegar?
Talvez logo. Talvez nunca. O destino dele ainda não foi
escolhido.
Que diabos isso significa? Onde está esse seu Messias? O que
acontece se ele não aparecer? E os Gêmeos Heróis,
Hunahpu e Xbalanque? Se o mito da criação é verdade,
então talvez eles sejam os Escolhidos. De acordo com o
Popol Vuh...
Não! A lenda dos Gêmeos é uma profecia Nefilim que talvez
nunca se concretize. O nascimento e o destino dos Gêmeos
dependem unicamente de Um Hunahpu fazer a jornada até
Xibalba.
E se ele não aparecer?
Então o seu povo vai perecer, e o nosso também.
Não entendo...
Não é para você entender. O destino de sua espécie ainda
está sendo escrito. O portal está se abrindo, o Deus da Morte
e sua legião se preparando para fazer a jornada pelo tempo e
espaço. Tezcatilpoca continua o processo de aclimatar o seu
mundo, enquanto os dois malvados abrigados em sua nave
exercem sua influência sobre o povo da Terra. Eles precisam
ser detidos. Agora mesmo, armas de destruição em massa
foram lançadas no seu mundo, irmão ameaçando irmão.
O que eu posso fazer?
Você é Hunahpu. Você tem a habilidade de acessar a grade
do Guardião. Isso adiará o fim, mas somente a destruição de
Tezcatilpoca e da Estrada Negra — Xibalba Be — pode
evitar que os malignos passem para o seu mundo.
A Estrada Negra: onde a entrada dela vai se materializar?
O portal para Xibalba Be ascenderá em quatro Ahau, três
Kankin. Somente um Hunahpu poderá entrar. Somente um
Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim e salvar a sua
espécie da aniquilação.
Você fala por enigmas. Onde está esse portal? A bordo
daquela nave no Golfo? Vou ter que voltar para dentro dela?
E como é que vou destruí-la?
O portal virá até você. Use a grade para destruir
Tezcatilpoca, depois entre no portal. Os dois malvados
aparecerão para desafiar você. Eles tentarão impedi-lo de
selar o portal antes que Ele chegue.
E se eu selar o portal?
Os dois Senhores do Mundo Inferior serão vencidos,
permitindo que sua espécie evolua. Triunfe — e dois
destinos esperam por você. Fracasse — e nossos dois povos
morrerão.
O que quer dizer dois destinos me esperam?
Se essa hora chegar, você saberá.
E a Dominique? Ela é Hunahpu?
Ela faz parte de um destino maior, mas não é Hunahpu. Não
permita que ela entre em Xibalba Be, ou ela destruirá a
vocês dois.
Dominique está sentada no chão da câmara, de costas
para a banheira de mármore alienígena, com a cabeça
nas mãos. Está com medo e sozinha, sua mente
exausta aprisionada num cabo de guerra incessante
entre realidade e negação.
Isso não é real. Nada disso está acontecendo. É tudo parte de
uma ilusão esquizofrênica...
— Cale a boca! Cale a boca, cale a boca, cale a boca!
Ela salta de pé.
— Aceite o fato de que está aqui e faça algo a
respeito. Encontre uma saída... — Ela sai da câmara,
depois volta, frenética. — Não, o Mick precisa de
mim. Tenho que esperar aqui.
Ela bate novamente na lateral do sarcófago aberto,
sem saber se Mick está vivo ou se foi vaporizado pela
luz azul.
— Mick, está me ouvindo? Cacete, Mick, responda!
Suas lágrimas escorrem, seu coração dói. Sua egoísta,
você nunca disse a ele que o amava. Poderia ter dado isso a
ele. Só porque negava pra si mesma, não significa...
— Meu Deus... — Ela se apóia novamente na tumba
de granito com a constatação repentina. Eu o amo. Eu o
amo mesmo.
Ela dá mais um pontapé na lateral da banheira de
granito.
— Mick! Está me ouvindo?
A explosão repentina de um campo de força invisível
a joga para o lado, e uma luz azul brilhante ilumina
toda a câmara.
Da banheira surge uma silhueta escura. A figura fica
de pé, levantando-se do sarcófago aberto como se
estivesse flutuando, seus traços envoltos na luz
alienígena.
É Mick.
Mick está subindo dentro de um mar de energia,
movendo-se rumo à fonte da luz. Ele sente cada
músculo, cada célula do seu corpo formigando com a
eletricidade ao ser puxado para cima, sua alma
banhada por ondas intensas de ternura e amor.
A imagem da mão do Guardião se estende para ele.
Mick estica o braço e toma a mão na sua.
Dominique protege os olhos, obrigando-se a olhar
para a luz. Ela vê o contorno do braço de Mick se
estendendo como se fosse pegar alguma coisa.
Zap! A muralha invisível de energia a atinge como um
maremoto, levantando-a do chão e lançando ondas de
correntes elétricas através do seu cérebro. Ela cai no
chão, seus olhos arregalados ao tentar enxergar a
figura angelical.
Mick agora está suspenso acima do chão, com a mão
direita estendida.
Um rugido hidráulico, e a miríade de máquinas
complexas se revela ao redor dela. As paredes e o teto
estão zumbindo, brilhando intensamente com a
ativação dos geradores da nave espacial. Debaixo dos
seus pés, ela vê um labirinto de circuitos de
computador brilhando por baixo do chão de vidro
escuro.
O som de pulsações graves aumenta, a vibração faz
cócegas em seus ouvidos — e então uma onda
celestial de energia azul corre pelas paredes até o teto
abobadado e sobe pelo orifício central.
A colossal onda de energia eletromagnética pulsa pela
parede central da pirâmide de Kukulcán, continuando
através do teto do templo por uma antena alienígena
antes de se dispersar em todas as direções na
velocidade da luz.
Correndo para o oeste, a carga satura a antiga cidade
de Teotihuacán, energizando uma estação de
retransmissão extraterrestre enterrada 800 metros
abaixo da enorme Pirâmide do Sol. Continuando sua
jornada pelo Pacífico, a onda carregada chega ao
Camboja, disparando um dispositivo transmissor
idêntico escondido nas profundezas sob o Templo de
Angkor Wat.
Para o leste, o raio chegou aos Andes. Passando por
dentro da rocha, ele é refletido por uma antena há
muito tempo dormente enterrada sob o antigo
observatório celeste conhecido como Kalasasaya,
sendo redirecionado para o sul, rumo ao continente
gelado da Antártida. Enterrada debaixo de toneladas
de neve está outra anrena alienígena de
retransmissão, um instrumento construído numa
época em que o território polar não tinha gelo.
Enquanto isso, a porção nordeste do tsunami
eletromagnético atravessa o Atlântico até a Inglaterra,
a força do sinal fazendo os enormes sarsans de
Stonehenge tremerem. Outra antena alienígena está
escondida no subsolo da colina de Salisbury.
Depois de dar a volta ao planeta em segundos, o
campo de energia altamente carregado converge de
todas as direções para a mais antiga das estações de
retransmissão do Guardião — a Grande Pirâmide de
Gizé.
Ondas de energia penetram os blocos de calcário,
passando através da Câmara do Rei e do bloco vazio
de granito marrom idêntico ao sarcófago da pirâmide
de Kukulcán. Aprofundando-se, o raio ativa um
aparato alienígena escondido sob a estrutura egípcia,
um lugar onde nenhum ser humano jamais esteve.
Num nanossegundo, a rede global está completa, a
atmosfera do planeta saturada, fechada dentro de uma
poderosa grade de energia alienígena.
Mick cai no chão, inconsciente.
Comando Norte-Americano de Defesa
Aeroespacial
NORAD
Colorado
Cento e sete técnicos apavorados fitam o enorme
mapa computadorizado da América do Norte, que
mostra em tempo real as trajetórias de mais de 1.500
mísseis nucleares e biológicos russos. A maioria dos
presentes chora abertamente, reunindo-se em grupos
de oração, segurando fotos dos entes queridos que,
sem saber, estão a poucos minutos da morte. Outros,
zonzos demais para ficarem de pé, deitam-se no chão
sob seus painéis de controle e esperam que o
inimaginável aconteça.
O comandante em chefe, general Andre Moreau,
enxuga as lágrimas, lutando para não ligar para seu
filho e sua filha, que moram em Los Angeles. O que eu
poderia dizer a eles? O que eu diria? Que os amo? Que
lamento muito...?
Noventa Segundos para o Impacto.
Um uivo percorre o Centro de Comando, o som da
voz feminina do computador fazendo as pernas do
general Moreau fraquejarem. Ele desaba sobre a
cadeira.
E então, como que por magia, os mísseis desaparecem
de repente da tela gigante.
Mísseis Destruídos em Vôo... Mísseis Destruídos em Vôo...
Gritos e vivas. Moreau ergue a cabeça. Técnicos
extáticos estão apontando, gritando, se abraçando,
chorando. Uma onda de euforia se espalha pela
instalação.
Moreau se levanta com dificuldade, lágrimas
escorrendo de seus olhos, sua voz, um murmúrio
rouco quando ele pede uma análise de sistemas.
Dois operadores exuberantes e um comandante
competem por sua atenção.
— Todos os sistemas estão operacionais!
— O que aconteceu com os mísseis?
— De acordo com nossos dados, simplesmente se
auto-destruíram.
— Quero confirmação disso.
— Estamos tentando confirmar com nossas bases na
Flórida e em San Diego, mas uma onda maciça de
interferência eletromagnética está bloqueando todas
as comunicações.
— Um pulso eletromagnético? — O medo aperta os
intestinos de Moreau. — Não deveria haver nenhuma
interferência eletromagnética, major, a menos que
tenha havido uma hecatombe nuclear.
— Não, senhor, não houve nenhuma hecatombe.
Nossas bases terrestres de detecção de mísseis
confirmam que não houve detonações de nenhuma
espécie. O que quer que esteja causando essa
interferência tem outra fonte.
— Onde? Quero saber...
— Senhor, estamos tentando determinar a origem da
interferência, mas vai levar algum tempo. Nossos
satélites não parecem estar funcionando bem.
— General! — Um técnico levanta a cabeça, com uma
expressão intrigada no rosto. — Senhor, nossos
mísseis também foram destruídos.
— Autodestruídos, você quer dizer.
— Não, senhor. Quero dizer que foram destruídos.
Centro Subterrâneo de Comando de Raven Rock
Maryland
2h31
Os funcionários do centro de comando subterrâneo se
abraçam e choram silenciosamente, sua transbordante
emoção controlada pelo sentimento de tristeza com
as notícias da morte do presidente e das perdas no
Alasca e no Havaí, que se espalham pela instalação.
Pierre Borgia, o general Fecondo e Dick Przystas
estão reunidos na sala particular do presidente,
ouvindo com atenção o general Doroshow, do
STRATCOM.
— O que estou dizendo é que os mísseis do Grozny
não se auto-destruíram. Foi algum tipo de campo de
força eletromagnética que desativou os ICBMs da
Rússia e também os nossos.
— Qual a fonte da interferência? — pergunta Borgia.
— Ainda é desconhecida, mas, seja o que for, apagou
todos os satélites que temos em órbita. E como se
Deus tivesse se irritado e jogado um cobertor sobre
todo o planeta.
Sob a Pirâmide de Kukulcán
— Mick, está me ouvindo? — Dominique acaricia a
cabeça em seu colo, alisando-lhe o cabelo. Ela o sente
se mexer. — Mick? Ele abre os olhos.
— Dom?
Ela puxa o seu rosto para o dela, beijando-o e
abraçando-o.
— Caramba, Mick, você quase me matou do coração.
— O que aconteceu?
— Não se lembra? Você saiu flutuando daquele
sarcófago como um fantasma maia e ativou esta nave.
Mick se senta e olha ao redor. Circuitos e estações de
controle alienígenas pulsam com energia por trás das
paredes e do chão de vidro escuro. Ondas de energia
elétrica azul percorrem as paredes e o teto a cada
poucos segundos, desaparecendo pelo orifício no alto.
— Eu fiz isso?
Dominique sufoca a pergunta dele com seus lábios.
— Eu te amo.
Ele sorri.
— Eu te amo.
24
15 DE DEZEMBRO DE 2012
A BORDO DA USS BOONE
GOLFO DO MÉXICO
O estômago do juiz da Suprema Corte Seamus
McCaffery ainda está um pouco revirado pelo voo de
helicóptero da madrugada. Atravessando o deque do
navio de guerra, ele segue o guarda-marinha para
dentro da superestrutura, depois através de
corredores estreitos que levam à sala de reuniões do
capitão.
Sentados a uma pequena mesa de conferências estão o
vice-presidente Ennis Chaney, o general Joseph
Fecondo e o capitão Loos.
Os homens ficam de pé quando o juiz saca a sua
Bíblia. Ele acena com a cabeça para Chaney.
— Parece que você também dormiu pouco. Está
pronto?
— Vamos acabar logo com isso. — Ele coloca a mão
esquerda sobre a Bíblia e levanta a direita. — Eu,
Ennis William Chaney, juro solenemente cumprir
com fidelidade o mandato de presidente dos Estados
Unidos, e irei, o melhor que puder, preservar,
proteger e defender a Constituição dos Estados
Unidos, com a ajuda de Deus.
— E que Deus nos ajude a todos.
Um tenente entra.
— General Fecondo, a equipe Ranger está a bordo. Os
helicópteros estão à sua espera.
Pirâmide de Kukulcán
Chichén Itzá
Mick leva Dominique por um pequeno corredor que
termina numa passagem fechada. Quando eles se
aproximam, a porta se abre com um chiado,
permitindo-lhes entrar numa câmara estanque.
— Esta é a saída.
— Como você sabe? — pergunta ela.
— Não sei como eu sei. Apenas sei.
— Mas não tem nada aqui.
— Veja.
Mick põe a mão num teclado escuro localizado na
parede oposta. O contorno de uma grande porta
circular se materializa instantaneamente no casco
metálico.
— Meu Deus... E você não tinha idéia de que sabia
disso?
— O Guardião deve ter implantado o conhecimento
no meu subconsciente. Só que não faço idéia de
quando ele fez isso, ou como.
A porta externa se abre, revelando uma passagem
estreita escavada na rocha calcária. Mick liga a
lanterna e eles saem, a porta da espaçonave se fecha
atrás deles.
O corredor, da largura dos ombros, está totalmente
escuro, o ar carregado de umidade. O facho da
lanterna de Mick revela os degraus estreitos de uma
escada circular íngreme que sobe através do calcário,
quase na vertical.
Ele estica o braço e pega a mão dela.
— Tome cuidado, está escorregadia.
Eles levam 15 minutos para chegar ao topo, a subida
cheia de curvas termina num teto de metal branco
polido.
— Tá, e agora?
Antes que Mick possa responder, quatro pistões
hidráulicos levantam um painel quadrado de 2
metros, expondo seus olhos à cegante luz do dia.
Mick sai e ajuda Dominique a subir. Virando para o
lado da luz, eles ficam surpresos ao se verem no
corredor norte do templo de Kukulcán.
A parte de cima do painel metálico, escondida por
mais de um metro de calcário sólido, volta para a sua
posição, fechando a entrada da espaçonave.
— Não admira que a gente nunca tenha encontrado a
passagem — murmura Mick.
Dominique sai na plataforma.
— Deve ser quase meio-dia, mas o parque está
deserto.
— Alguma coisa deve ter acontecido.
Eles ouvem o som trovejante das pás de dois
helicópteros da Marinha que se aproximam, vindo do
oeste.
— Mick, é melhor a gente ir embora.
O ruivo está deitado, seu corpo escondido sob a densa
folhagem da selva. Espiando pela potente mira de seu
rifle de caça, ele vê Mick Gabriel e a garota saindo na
plataforma norte da pirâmide. Raymond destrava o
gatilho, sorrindo ao posicionar a mira no coração de
sua vítima.
O piloto do helicóptero diminui a velocidade da
aeronave para pairar sobre o Grande Campo do Jogo
de Bola.
— Senhor, bem abaixo de nós.
Chaney e o general Fecondo olham para o objeto
alado negro pousado quase no meio da quadra maia
em forma de I.
— Jesus. É outro daqueles objetos de fusão pura.
— Por que não explodiu?
O som de tiros ecoa pela esplanada.
Chaney aponta para a pirâmide.
— Vamos pra lá!
Mick está de costas, lutando para respirar. O sangue
escorre de seu peito ardente. Ele olha para o céu do
meio-dia, a sombra do rosto de Dominique cobrindo
o Sol. Ele sente as lágrimas dela caírem em seu rosto,
vê sua boca se mexendo em câmera lenta enquanto
ela põe a mão sobre o ferimento, mas não consegue
ouvir nada além das batidas do seu coração.
Guardião?
Feche os olhos...
25
16 A 20 DE DEZEMBRO DE 2012
E o caos reinou...
A revelação de que a aniquilação termonuclear da
humanidade foi evitada por um triz foi recebida com
incredulidade e alívio, depois medo e ultraje
universal. Como os líderes mundiais puderam
permitir que seus egos levassem a humanidade à beira
do abismo? Como puderam ser tão arrogantes? Como
puderam ser tão cegos?
O ultraje logo levaria à violência. Durante dois dias e
duas noites, a anarquia dominou a maior parte do
globo. Prédios de governos foram destruídos;
instalações militares, saqueadas; e as embaixadas dos
Estados Unidos, Rússia e China, atacadas, com bilhões
de pessoas por todo o planeta marchando em suas
capitais, exigindo mudanças.
Em vez de tentar reprimir a violência com mais
violência, o presidente Chaney preferiu canalizá-la,
dirigindo a vingança do público americano para mais
de cem bunkers subterrâneos, construídos com
dinheiro dos contribuintes, que haviam sido
projetados para abrigar a elite política durante o
holocausto nuclear. A destruição dessas instalações
ultra-secretas pareceu aplacar a fúria do público,
servindo como aviso de que todos — poderosos e
humildes — agora estavam no mesmo pé de
igualdade, ainda que precário.
Chaney pressionou, então, o secretário-geral das
Nações Unidas a introduzir uma resolução baseada em
recomendações da Academia Nacional de Ciências, da
Comissão Carnegie e do almirante Stansfield Turner,
para eliminar todas as armas nucleares e biológicas. O
país que se recusasse a cumprida enfrentaria uma
força invasora da ONU, e seus líderes seriam caçados
e executados.
Instigadas pelas massas, todas as nações-membros,
com exceção do Iraque e da Coréia do Norte,
concordaram rapidamente.
Em 17 de dezembro, Saddam Hussein foi arrastado
para as ruas de Bagdá e espancado até a morte. Kim
Jong II se suicidou duas horas depois.
O presidente russo Viktor Grozny assinou o tratado,
depois culpou publicamente o Pattido Comunista pela
subversiva escalada militar da Rússia nas últimas duas
décadas. Depois de mais de duzentas execuções
públicas, ele assegurou ao povo que a reforma do
governo viria rapidamente.
Sem ninguém para desafiá-lo, continuou no governo,
mais forte do que nunca.
Na manhã de 17 de dezembro, a mídia finalmente
ficou sabendo da misteriosa grade eletromagnética, e
de como ela evitara a aniquilação nuclear. Um fervor
religioso tomou conta das massas. Unidas pelo medo,
elas se reuniam e rezavam, correndo para as igrejas e
sinagogas, esperando pelo Messias e pelo Segundo
Advento de Cristo. O que encontraram, em vez disso,
foram mais sinais do Apocalipse.
Na tarde do dia 18, o veterano da Guerra da Coreia
Jim McWade voltava da igreja com seus quatro filhos
e três caixas de cerveja. Dentro do lago calcário atrás
de seu trailer estava uma imensa criatura alada. Em
poucas horas, metade da cidade de White Sulphur
Springs, Virgínia Ocidental, havia se juntado ao redor
do lago para ver o animal imóvel, cuja superfície
negra e brilhante emitia um potente campo de força
invisível que impedia qualquer um de tocá-lo.
Em 24 horas, outras 29 criaturas idênticas foram
encontradas em vários locais ao redor do globo.
Então, na noite de 19 de dezembro, o mundo assistiu,
fascinado e horrorizado, quando as câmeras de TV
registraram a formação de um monstruoso
redemoinho no Golfo do México. Do centro do
vórtice emergiram oito criaturas aladas, e todas se
dispersaram pelo Hemisfério Norte. Dois dos objetos
pousariam, mais tarde naquela noite, na região
sudoeste dos
Estados Unidos, mais dois na Flórida, e mais três, um
na Geórgia, um em Kentucky e um em Indiana. O
último objeto foi para o leste e se empoleirou numa
cadeia de montanhas perto do telescópio de Arecibo,
em Porto Rico.
Na manhã de 20 de dezembro, o exobiólogo Marvin
Teperman confirmou para o mundo que sete
detonações de fusão pura haviam se originado nos
objetos liberados pela nave alienígena enterrada sob o
Golfo do México. Referindo-se aos objetos como
"autômatos", o exobiólogo teorizou que as 37
criaturas agora espalhadas pelo planeta continham
energia de fusão suficiente para vaporizar mais de 2
milhões e meio de quilômetros quadrados de
território. Teperman também declarou que os
dispositivos alienígenas estavam acoplados a um
detonador solar, o que explicava sua liberação à noite
e as detonações pela manhã. De alguma forma, a
misteriosa grade, emitida pela pirâmide de Kukulcán,
conseguira bloquear os mecanismos de deronação,
impedindo que os autômatos explodissem.
Se a grade fraquejasse, Teperman alertou, os
autômatos seriam detonados.
E mais uma vez as massas entraram em pânico.
26
20 DE DEZEMBRO DE 2012
HOSPITAL DE MÉRIDA
PENÍNSULA DE YUCATÁN
Uma brisa suave passa pelas venezianas, refrescando o
seu rosto. À medida que a névoa da febre se dissipa,
ele ouve a voz distante de um anjo, suas palavras
familiares ecoando em sua mente.
Já se foi meu amor, marido e amigo? Eu quero que me
escreva de hora em hora, pois são muitos os dias de um
minuto.
Nadando contra a corrente da inconsciência, ele força
seus olhos a se abrirem um pouco, só o suficiente
para vê-la sentada ao seu lado, lendo um livro de
bolso.
— "Meu Deus, só sou vidente para o mal! Parece-me
que o vejo, bem distante, como um morto, no fundo
de um caixão. São os meus olhos, ou você está
pálido?"
— "Aos meus, querida" — ele diz com a voz rouca —,
"você também está".
— Mick!
Ele abre os olhos, ela encosta o rosto em sua face, e
ele sente suas lágrimas quentes e o peso esmagador
em seu peito quando ela o abraça e sussurra:
— Eu te amo.
— Eu te amo. — Ele se esforça para falar, sua garganta
totalmente seca. Ela encosta um copo d'água em seus
lábios e ele toma alguns goles.
— Onde...?
— Você está num hospital em Mérida. O Raymond
atirou em você. O médico disse que a bala parou a
três milímetros do coração. Todos dizem que você
devia estar morto.
Ele força um sorriso, murmurando:
— "Zomba da dor quem nunca foi ferido." — Ele tenta
se sentar, mas a dor o empurra para baixo de novo. —
Talvez só um pouco.
— Mick, tanta coisa aconteceu...
— Que dia é hoje?
— Dia 20. Amanhã é o solstício de inverno, e todo
mundo está apavorado...
A porta se escancara e um médico americano entra no
quarto, seguido por Ennis Chaney, uma enfermeira
mexicana e Marvin Teperman. Mick nota soldados
americanos fortemente armados vigiando o corredor.
O médico se curva, examinando seus olhos com uma
lanterna.
— Bem-vindo ao mundo dos vivos, sr. Gabriel. Como
está se sentindo hoje?
— Dolorido. Faminto. E um pouco desorientado.
— Não me admira, você esteve inconsciente por
cinco dias. Vamos ver essa ferida. — O médico retira
o curativo. — Incrível. Absolutamente incrível.
Nunca vi um ferimento cicatrizar tão rápido.
Chaney dá um passo adiante.
— Ele está bem o suficiente para falar?
— Acho que sim. Enfermeira, troque o curativo e
ponha outro frasco de soro com...
— Agora não, doutor — interrompe Chaney. —
Precisamos de alguns minutos com o sr. Gabriel. A
sós.
— Claro, presidente.
Mick vê o médico e a enfermeira saindo, e um dos
PEs no corredor fecha a porta atrás deles.
— Presidente? Parece que o senhor é promovido cada
vez que a gente se encontra.
Os olhos de guaxinim não parecem achar graça.
— O presidente Maller está morto. Deu um tiro na
cabeça há cinco dias, tentando fazer os russos e
chineses abortarem um ataque nuclear total.
— Meu Deus...
— O mundo tem uma dívida de gratidão com você.
Seja o que for que você ativou naquela pirâmide maia,
aquilo destruiu os mísseis.
Mick fecha os olhos. Meu Deus, aconteceu de verdade.
Pensei que tivesse sido um sonho...
Dominique aperta a sua mão.
— É alguma espécie de grade eletromagnética
altamente carregada — diz Marvin —, diferente de
tudo que já vimos. O sinal ainda está ativo, graças a
Deus, porque está impedindo aqueles autômatos de
explodirem...
— Autômatos? — Mick abre os olhos. — Que
autômatos? Marvin tira uma fotografia de sua pasta e
passa para ele.
— Tinta e oito destas coisas pousaram por todo o
globo desde que você foi trazido pra cá.
Ele olha para a foto da criatura negra, parecida com
um morcego, empoleirada no alto de uma montanha
cinza, com as asas abertas.
— É o objeto que vi saindo da espaçonave enterrada
no Golfo do México. — Ele olha para Dominique. —
Sei onde já vi isso. Em Nazca. Imagens em tamanho
natural dessas criaturas estão desenhadas por todo o
platô.
Marvin olha para Chaney, hesitante.
— Essa foto foi tirada há alguns dias numa montanha
de Arecibo.
Chaney puxa uma cadeira.
— Lembra a criatura que você disse ter visto na nave
alienígena? Aquele autômato pousou na Austrália e
arrasou a maior parte da planície de Nullarbor.
Sabemos que cada um desses objetos possui alguma
espécie de dispositivo de fusão pura, um explosivo
capaz de vaporizar paisagens inteiras. Seis desses
autômatos detonaram na Ásia nas últimas duas
semanas. Os últimos três mataram mais de 2 milhões
de pessoas na China e na Rússia.
Mick sente suas mãos tremerem.
— Essas detonações precipitaram o ataque nuclear?
Chaney faz que sim.
— Como o Marvin disse, mais 38 dessas coisas foram
lançadas pela nave alienígena nas últimas cinco
noites. Até agora, nenhuma explodiu.
Mick se lembra das palavras do Guardião. A ativação da
grade dos Nefilins adiará o fim, mas somente a destruição de
Tezcatilpoca e da Estrada Negra pode evitar que nosso
inimigo passe para o seu mundo.
— Preparamos uma lista dos autômatos que ainda não
detonaram. Gabriel, está me ouvindo?
— Hã? Desculpe. O senhor disse que essas coisas são
autômatos?
— É como nossos cientistas estão se referindo a elas.
A Força Aérea diz que são uma versão alienígena dos
nossos Veículos Aéreos Não Tripulados.
— Cada um desses autômatos é essencialmente uma
bomba de fusão pura com asas — explica Marvin. —
Como nossos VANTs, os autômatos são controlados
remotamente, ligados por alguma espécie de sinal de
rádio ao seu centro de controle...
— A nave no Golfo?
— Sim. Quando o autômato pousa na área
predeterminada, um sinal de rádio é emitido,
armando o explosivo. Na cauda da criatura há fileiras
de sensores esquisitos, que acreditamos serem células
fotovoltaicas de alta potência. O mecanismo de
detonação usa a energia solar para deflagrar o
explosivo ao nascer do Sol.
— O que explica por que essas coisas são sempre
lançadas à noite — Chaney acrescenta. — Sete
autômatos detonaram antes da ativação dessa grade,
todos os sete indo para o oeste depois de sair da nave
no Golfo. A velocidade de voo dos autômatos era
igual à da rotação da Terra, mantendo-os no escuro
até que chegassem às áreas indicadas.
— Vocês disseram que outros 38 desses autômatos
foram lançados?
— Mostre a lista pra ele, Marvin.
O exobiólogo procura na valise e entrega um impresso
de computador.
ALVOS DOS AUTÔMATOS
AUSTRÁLIA
Planície de Nullarbor [D]
ÁSIA
Malásia [D] Irian Jaya [D] Papua-Nova Buiné [D] Província de Yunnan. China [D]
Bacia de Vilyui. Rússia [D] Cordilheira de Kugitangtau. Turcomenistão [D]
ÁFRICA
Argélia Botswana Egito Costa do Marfim Israel Líbia Madagascar Marrocos
[Montanhas Atlas] Níger Nigéria Arábia Saudita Sudão Tunísia
EUROPA
Áustria Bósnia-Herzegovina Bulgária Croácia Grécia Hungria Irlanda Itália
Espanha
AMÉRICA DO NORTE
Canadá: Montreal
Cuba
EUA: Arecibo [Porto Rico] Vale Appalachian Colorado Flórida [Central & Sudoeste]
Geórgia Kentucky Indiana [Sul] Montanhas Ozark Novo México Texas [Noroeste]
AMÉRICA DO SUL
Salvador [Brasil]
AMÉRICA CENTRAL
Honduras Chichén Itzá [Yucatán]
Mick corre os olhos pela lista, parando no nome do
último local.
— Um autômato pousou em Chichén Itzá?
— Chega de enrolação — Chaney exclama. — Gabriel,
preciso de algumas respostas, e já. Enquanto você
estava dotmindo aqui, o mundo todo ficou louco.
Fanáticos religiosos alegam que esses autômatos são
parte das profecias apocalípticas previstas para o novo
milênio. A economia mundial parou. Multidões
aterrorizadas estão se preparando para o Armagedom.
Grupos estão amontoando suprimentos e munições e
se trancando em casa. Tivemos que instituir toques de
recolher. E o que está alimentando esses incêndios,
mais do que tudo, é a nossa incapacidade de acalmar a
preocupação do público.
— Até agora, nossas tentativas de neutralizar os
autômatos foram ineficazes — diz Marvin. — As
criaturas são mantidas dentro de uma espécie de
campo de força protetor que as torna invulneráveis
aos ataques. A grade maia evita que explodam, mas
também está neutralizando nossos satélites. O que é
ainda mais incrível é o modo como o sinal da grade
está sendo difundido ao redor do mundo. — Ele saca
seu bloco de anotações. —Já isolamos três estações
globais de retransmissão, bem como sinais adicionais
de várias outras antenas. Você nunca adivinharia...
— A Grande Pirâmide de Gizé, Angkor Wat e a
Pirâmide do Sol em Teotihuacán.
O queixo do exobiólogo cai.
Os olhos de Chaney queimam como lasers escuros.
— Como diabos você sabia disso? — Ele olha para
Dominique. — Você contou?
— Ela não me contou — diz Mick, sentando-se na
cama com esforço. — Meus pais estudaram essas
estruturas durante décadas. Cada monumento tem
certas semelhanças, e uma delas é que todos foram
construídos em pontos integrais da grade de energia
natural da Terra.
— Desculpe, me perdi — Marvin diz, fazendo
anotações. — Você disse grade de energia?
— A Terra não é só um pedaço de pedra flutuando no
espaço, Marvin, é uma esfera viva e harmônica, e no
coração dela existe um núcleo magnético que canaliza
energia. Certos locais da superfície do planeta,
especialmente ao longo do equador, são considerados
áreas energéticas, pontos dinâmicos que irradiam
altos níveis de energia geotérmica, geofísica ou
magnética.
— E esses três monumentos antigos, eles foram todos
construídos em áreas energéticas?
— Isso mesmo. Cada estrutura também reflete um
conhecimento avançado de precessão, Matemática e
Astronomia em seu projeto.
Marvin para de escrever.
— Também localizamos dispositivos alienígenas que
parecem funcionar como antenas, enterrados sob
Stonehenge e a cidade de Tiahuanaco. Acreditamos
que mais um possa estar enterrado debaixo da camada
de gelo da Antártica.
Mick balança a cabeça. O mapa de Piri Reis. O Guardião
deve ter construído a antena antes que o lençol de gelo se
formasse. Ele olha para Dominique.
— Você contou a eles dos Nefilins?
— Tudo o que sei, o que não é muito.
— Uma raça avançada de humanóides? — Marvin
balança a cabeça. — Eu sou o exobiólogo aqui, e estou
totalmente confuso.
— Marvin, os seres que criaram essa grade precisavam
ter certeza de que suas estações retransmissoras e
antenas permaneceriam intactas por milhares de anos.
Nem enterrá-las garantiria sua segurança. Construir
enormes maravilhas arquitetônicas como Stonehenge
ou a Grande Pirâmide diretamente sobre o local foi
uma idéia inspirada. Até o homem moderno sabia que
devia deixar essas ruínas em paz.
— E a grade? — pergunta Chaney. — Por quanto
tempo vai evitar que os autômatos detonem?
A lembrança das palavras do Guardião ecoa em seus
ouvidos. O portal para Xibalba Be ascenderá em quatro
Ahau, três Kankin. Ele só pode ser destruído por dentro.
Somente um Hunahpu poderá entrar. Somente um
Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim e salvar a sua
espécie da aniquilação. Mick se sente mal.
— Temos um problema. Aquela nave alienígena vai
subir amanhã...
Chaney arregala os olhos.
— Como você sabe?
— Faz parte de uma profecia maia de 3 mil anos. A
entidade dentro da nave... precisamos destruída.
Precisamos entrar nela.
— Como vamos entrar? — pergunta Marvin.
— Não sei, acho que da mesma forma que a Dom e eu
entramos. Pelo sistema de ventilação. — Uma onda
de exaustão se apodera do seu corpo. Ele fecha os
olhos.
Dominique toca a testa dele, sentindo a febre.
— Já chega, presidente Chaney. Ele fez a parte dele
pra salvar o mundo. Agora vão e façam a de vocês.
Os olhos de Chaney perdem um pouco de sua dureza.
— Nossos cientistas concordam com você, Gabriel.
Eles acham que precisamos destruir a nave alienígena
pra acabar com a ameaça dos autômatos. Já mandei o
John C. Stennis e sua frota pro Golfo do México para
fazer isso. Se aquela nave subir mesmo amanhã,
vamos acabar com ela.
O novo presidente se levanta para sair.
— Uma reunião de emergência do Conselho de
Segurança da ONU foi marcada pra hoje às 19 horas, a
bordo do Stennis. Esperamos representantes de todas
as nações, bem como alguns dos maiores cientistas de
todo o mundo. Você e a Dominique irão conosco. Um
dos meus auxiliares vai trazer roupas pra vocês.
— Espere — diz Dominique. — Conte a ele sobre o
Borgia.
— O homem que tentou te matar nos levou ao dr.
Foletta. A confissão do doutor incluiu informações
sobre como o Borgia conseguiu te internar num
hospital psiquiátrico 11 anos atrás. Ele até nos deu
uma gravação em que o secretário de Estado pede que
ele te mate. — Chaney abre um sorriso amargo. —
Vou pôr as mãos nele assim que as coisas se
acalmarem. Enquanto isso, a Dominique e a mãe dela
foram inocentadas, e você foi declarado são, portanto,
é um homem livre, Gabriel, tão louco quanto todos
nós.
Dominique murmura no ouvido de Mick.
— Seu pesadelo acabou. Chega de hospitais, de
confinamento. Você está livre. — Ela lhe aperta a
mão. — Podemos passar o resto da vida juntos.
A Bordo do Porta-Aviões John C. Stennis
18h43
Mick olha pela janela do helicóptero enquanto a
aeronave desce sobre o enorme deque de pouso de 2
hectares do John C. Stennis, agora transformado num
estacionamento de helicópteros.
Dominique aperta a mão dele.
— Você está bem? Não disse uma palavra durante o
vôo.
— Desculpe.
— Posso ver que você está preocupado com alguma
coisa. Por que não me conta o que é?
— Minhas lembranças da conversa com o Guardião são
vagas. Ainda tem tantas coisas que eu não entendo,
coisas que podem significar a diferença entre a vida e
a morte.
— Mas você continua convencido de que a grade do
Guardião foi projetada pra evitar que os autômatos
explodissem?
— Sim.
— Então o presidente tem razão. Se destruirmos a
nave alienígena, acabaremos com a ameaça.
— Gostaria que fosse tão simples.
— Mas por que não é?
Eles descem do helicóptero e pisam no deque cinza
do porta-aviões. Dominique aponta para a bateria de
canhões do navio de guerra.
— Olhe ao seu redor, Mick. Este navio tem poder de
fogo suficiente pra destruir um pequeno país. — Ela
lhe passa o braço na cintura e cochicha em seu
ouvido. — Encare os fatos, você é um herói. Contra
todas as probabilidades, conseguiu entrar na pirâmide
e ativar a grade. Não só reabilitou o trabalho dos seus
pais, mas seu esforço salvou a vida de 2 bilhões de
pessoas. Está na hora de descansar. Saia de cena e
deixe os peixes graúdos terminarem o serviço. — Ela
o beija apaixonadamente na boca, fazendo alguns
marinheiros assobiarem.
Um tenente os acompanha até a superestrutura, e eles
descem por uma escada apertada para o hangar.
Eles passam por um posto de segurança fortemente
vigiado, depois entram no hangar, um quarto do qual
foi apressadamente convertido em auditório. Três
fileiras de cadeiras e mesas dobráveis em semicírculo
foram posicionadas diante de uma tribuna e um
enorme mapa-múndi computadorizado de 6 por 12
metros, montado no alto de uma das anteparas de aço
do hangar.
Trinta e oito pontos luminosos vermelhos, outros seis
azuis, indicam os locais de pouso dos autômatos no
mapa.
O tenente os leva até uma mesa reservada na esquerda
do semicírculo. Alguns representantes parecem
reconhecer Mick, apontando quando ele passa,
acenando. Aplausos esparsos rapidamente se
transformam numa ovação de pé.
Marvin Teperman ergue o olhar e sorri para ele.
— Ao menos agradeça, né?
Mick acena rapidamente, depois se senta ao lado do
exobiólogo, sentindo-se ridículo. A presidente do
Conselho de Segurança da ONU, Megan Jackson, se
aproxima e o cumprimenta com um sorriso cordial e
um aperto de mão.
— É uma honra conhecê-lo, sr. Gabriel. Estamos em
dívida com você. Tem alguma coisa que podemos
fazer para ajudá-lo?
— Pode me dizer por que estou aqui. Não sou um
político.
— O presidente e eu esperamos que sua presença
possa aplacar um pouco a hostilidade neste recinto. —
Ela aponta para a delegação russa. — O homem do
meio é o Viktor Grozny. Ouso dizer que a maior parte
dos presentes preferia que ele estivesse morto. A
paranóia existente agora entre a Rússia e os Estados
Unidos faz a guerra fria parecer uma briguinha de
família.
Ela abre um sorriso maternal, depois assume seu lugar
na tribuna.
— Vamos dar início à reunião.
Os representantes ocupam seus lugares. Marvin
entrega a Dominique e Mick dois pequenos fones.
Tirando-os dos invólucros de celofane, eles ajustam o
tradutor para INGLÊS e põem os fones nos ouvidos.
— Quero primeiro chamar à tribuna o prof. Nathan
Fowler, diretor adjunto do Centro de Pesquisas Ames,
da NASA, e chefe da equipe internacional que
investiga os autômatos alienígenas. Professor?
Um homem grisalho e de óculos, de uns 60 e tantos
anos, se dirige para a tribuna.
— Presidente, honoráveis delegados, caros colegas
cientistas, estou aqui hoje para atualizá-los sobre os
objetos alienígenas cujas detonações já causaram a
morte de mais de 2 milhões de pessoas. Apesar dessa
tragédia, as evidências que vou apresentar indicam
claramente que o principal objetivo do extraterrestre
não era aniquilar a nossa espécie. Na verdade, nossa
presença neste planeta é tão importante para essa
inteligência alienígena quanto uma pulga é para um
cachorro.
Murmúrios percorrem a sala.
— Nossa equipe realizou uma análise comparativa
completa de todos os 44 alvos identificados dos
autômatos. Esses locais têm uma coisa em comum: o
solo de cada um é totalmente formado por calcário.
Mais que isso. Quase todos os alvos são qualificados
como relevos de carste, uma densa formação calcária
com altíssimos níveis de carbonato de cálcio.
"Os relevos de carste constituem um sexto da área
terrestre do nosso planeta. Eles foram criados há
cerca de 400 milhões de anos, quando grandes
quantidades de carbonato de cálcio foram depositadas
no que era, na época, o fundo do mar tropical de..."
— Professor, no interesse da brevidade...
— Hã? Ah, claro, presidente. Se me permitir só um
momento para explicar a importância do calcário para
o nosso planeta, acho que todos compreenderão
melhor o motivo do lançamento dos autômatos.
— Prossiga, mas seja breve.
— As formações de carste, e o calcário em geral,
desempenham um papel crucial na Terra, servindo
como imensos depósitos planetários de dióxido de
carbono. O carbonato de cálcio do carste absorve o
dióxido de carbono dissolvido como uma esponja,
ajudando a regular e estabilizar nosso ambiente oxi-
genado. A quantidade de dióxido de carbono
armazenada na rocha sedimentar é mais de seiscentas
vezes o carbono total contido no ar, na água e em
todas as células vivas do planeta Terra.
Dominique olha para Mick, cujo rosto está
mortalmente pálido. O diretor da NASA pega um
teclado remoto ligado ao mapa computadorizado.
— Presidente, vou usar nosso computador para
simular o que aconteceria se cada um dos 38
autômatos remanescentes explodisse
simultaneamente. Por favor, prestem especial atenção
na temperatura atmosférica e no nível de dióxido de
carbono.
A platéia se cala enquanto o professor digita
comandos no teclado. Dois ícones azuis aparecem na
margem inferior do mapa.
Temperatura Média da Superfície Global: 20/12/12
70 graus F. (21 graus C.) Conteúdo de CO2:
0,03%
Fowler aperta outra tecla. Os pontos vermelhos
piscam simultaneamente, depois se acendem em
círculos brilhantes de alabastro. Dentro de segundos,
as explosões se dissipam num inverno nuclear global
de densas nuvens alaranjadas que se espalham
rapidamente pelas áreas circunstantes, abrangendo
quase um terço da superfície da Terra.
Temperatura Média da Superfície Global: 20/12/12
(10 horas depois da
detonação)
132 graus F. (55,5 graus C.) Conteúdo de CO2: 39,23%
Fowler ajeita os óculos.
— O calor das explosões vaporizaria imediatamente o
calcário do carste, liberando níveis tóxicos de dióxido
de carbono na atmosfera do nosso planeta. As nuvens
que vocês veem agora se expandindo pelo mapa são
uma densa camada atmosférica de CO2, suficiente para
matar cada organismo pulmonado deste planeta.
Mil conversas paralelas começam ao mesmo tempo.
Fowler digita no teclado novamente enquanto a líder
da ONU pede ordem.
O mapa muda. Turbilhões de nuvens alaranjadas agora
cobrem todo o planeta.
Temperatura Média da Superfície Global: 20/12/22
(10 anos depois da
detonação)
230 graus F. (110 graus C.) Conteúdo de CO2:
47,85%
Conteúdo de SO2: 23,21%
A sala fica em silêncio.
— Aqui vemos a progressão ambiental da Terra depois
de dez anos. O que estamos vendo é a reorganização
catastrófica da atmosfera do nosso planeta, o início de
um efeito estufa desenfreado, similar àquele que
acreditamos ter acontecido em Vênus há mais de 600
milhões de anos. Vênus, o planeta irmão da Terra, já
possuiu oceanos quentes e uma estratosfera úmida.
Com o acúmulo de dióxido de carbono em sua
atmosfera, formou-se um grosso cobertor isolante.
Isso levou ao surgimento do vulcanismo global, as
erupções servindo para agravar o efeito estufa,
liberando grandes quantidades de dióxido de enxofre
na atmosfera, enquanto continuavam a elevar a
temperatura da superfície. No fim, os oceanos de
Vênus se vaporizaram completamente, formando
densas nuvens de precipitação. Parte dessa
precipitação continua a envolver o planeta, enquanto
o resto se dissipou no espaço.
— Professor, os níveis de CO2 subiram
perceptivelmente desde as explosões dos sete
primeiros autômatos?
— Sim, presidente. De fato, os níveis de dióxido de
carbono aumentaram entre seis e sete por cento
durante...
— Chega disso! — Viktor Grozny está de pé, seu rosto
magro rubro. — Eu vim aqui negociar as condições de
um armistício, não ouvir bobagens sobre alienígenas.
A líder da ONU levanta a voz por cima de uma
saraivada de protestos.
— Presidente Grozny, o senhor está questionando a
existência dessa ameaça alienígena?
— Fomos informados de que a ameaça dos autômatos
foi eliminada, que essa... essa grade impede que eles
explodam. Não é verdade, sr. Fowler?
Fowler parece apreensivo.
— Aparentemente, os autômatos não vão detonar
enquanto a grade da pirâmide continuar intacta. Mas a
ameaça ainda é...
— Então por que perdemos tempo discutindo isso
agora? — pergunta Grozny. — Proponho que
deixemos isso para os nossos cientistas. Era meu
entendimento que esta assembleia seria de natureza
política. Apesar de numerosas ameaças à minha vida,
vim para esta reunião de boa-fé. Foram cidadãos
russos e chineses que morreram nesses holocaustos
de fusão pura. Morte é morte, presidente, quer ela
venha por aniquilação nuclear, asfixia ou inanição.
Que o Ocidente e suas armas superiores destruam essa
nave alienígena. Neste exato momento, milhares de
meus cidadãos estão morrendo de fome. O que
precisamos discutir é como iremos mudar o mundo...
— E quem é você para exigir mudanças? — reage o
general Fecondo, levantando-se de punhos cerrados.
— Sua ideia de mudança foi declarar uma guerra
nuclear contra os Estados Unidos. O Ocidente deu ao
seu país bilhões de dólares em ajuda para alimentar o
seu povo e estimular sua economia, e você gastou
tudo em armas...
Mick fecha os olhos para a escaramuça verbal,
concentrando-se em vez disso nas palavras do prof.
Fowler. Ele volta a pensar em quando estava na câ-
mara alienígena sob o Golfo. Ele se lembra do corte
na perna.
Meu sangue estava azul. A atmosfera da câmara devia ser de
dióxido de carbono.
Ele se lembra das palavras do Guardião... As condições
do seu mundo não eram adequadas, o alvo era Vênus... Seu
mundo está sendo aclimatado.
— Você nos pede ajuda — berra Dick Przystas —, mas
veja com que rapidez queria destruir a mão à qual
agora pede que alimente seu povo!
— Que escolha nós tínhamos? — retruca Grozny. —
Vocês nos forçam a assinar acordos de armas
estratégicas enquanto seus cientistas continuam
inventando métodos de nos destruir. De que adiantam
tratados quando as novas tecnologias americanas são
mais letais do que os mísseis antiquados que vocês
eliminaram tão graciosamente? — Grozny vira para o
resto da assembleia. — Sim, a Rússia atacou primeiro,
mas fomos provocados. Os Estados Unidos se valem
de seu poderio militar há décadas. Nossos informantes
dizem que os americanos estão a menos de dois anos
de completar seus próprios explosivos de fusão pura.
Dois anos! Se esses extraterrestres não tivessem
atacado, os Estados Unidos o fariam.
A sala fica barulhenta de novo.
Grozny aponta um dedo acusador para Chaney.
— Eu pergunto ao novo presidente americano: a paz
é realmente o seu objetivo ou é a guerra?
Chaney fica de pé, esperando que o barulho diminua.
— Há sangue nas mãos de todos nesta sala, presidente
Grozny. Cada consciência está envergonhada pela
culpa, cada mente envolvida pelo medo. Não fosse
pela graça de Deus, estaríamos todos mortos. Nós nos
comportamos como crianças egoístas, todos nós, e se
quisermos ter qualquer esperança de sobreviver como
espécie, precisamos deixar de lado nossas diferenças
mesquinhas, de uma vez por todas, e crescer.
O presidente dá um passo à frente.
— Concordo que mudanças, mudanças drásticas são
necessárias. A humanidade não pode mais tolerar a
ameaça da auto-destruição. Não podem mais existir
poderosos e despossuídos. Precisamos reorganizar
nossas economias numa só ordem mundial. Uma
ordem de paz. Presidente Grozny, os Estados Unidos
estão oferecendo um ramo de oliveira. Está disposto a
aceitá-lo?
Uma ovação comovente toma conta do hangar
quando Viktor Grozny anda até o presidente e o
abraça.
Dominique está de pé, aplaudindo, com os olhos rasos
d'água, quando nota que Mick se dirige à tribuna.
A sala fica em silêncio.
Mick se dirige à assembléia, a mensagem apocalíptica
ardendo em sua mente.
— O presidente Chaney é um homem sábio. A
mensagem que carrego em minha mente também vem
de um sábio, um homem cuja grade ajudou a nos
salvar. Enquanto as nossas nações falam de política,
nosso mundo está sendo preparado, aclimatado para
acomodar outra espécie, infinitamente mais velha,
uma espécie que não tem nenhuma aspiração de paz
ou de guerra. Para esse inimigo, a Terra nada mais é
do que uma incubadora, e a humanidade é seu
inquilino há 2 milhões de anos, prestes a ser
despejado.
"Unidos ou divididos, não podemos nos iludir.
Amanhã é o Dia do Juízo Final. Ao amanhecer, um
portal cósmico se abrirá. Um portal que deve ser
fechado para que a nossa espécie sobreviva. Se
fracassarmos, nada mais que se diga ou faça nesta sala
terá importância. Amanhã, no crepúsculo do solsticio,
todo ser vivo deste planeta estará morto."
27
21 DE DEZEMBRO DE 2012
(4 AHAU, 3 KANKIN)
A BORDO DO JOHN C. STENMIS
00h47
Michael Gabriel olha para o mar negro pela escotilha
aberta da pequena cabine VIP. Ele está longe demais
para ver o brilho esmeralda; o porta-aviões está
ancorado 3 quilômetros a leste da nave alienígena
enterrada, mas, de alguma forma, ele sente sua
presença.
— Vai ficar olhando por essa escotilha a noite toda?
— Dominique sai do banheiro, coberta só por uma
toalha. Ela esfrega o rosto no peito dele, passando-lhe
os braços pela cintura.
Ele sente o calor úmido que seu corpo nu emana.
As pontas dos dedos dela descem pelos músculos do
estômago de Mick até chegarem à sua virilha. Ela olha
para aqueles olhos escuros e sussurra:
— Faz amor comigo.
Ela fica na ponta dos pés e o beija, enfiando a língua
na boca de Mick enquanto ele arranca as roupas. Em
poucos momentos, ambos estão nus, abraçando-se
como amantes separados há muito tempo, e suas
emoções e seus medos acumulados se perdem no
momento em que seus membros se entrelaçam, como
se fossem as duas únicas pessoas do mundo.
Mick a deita na cama, beijando-lhe o pescoço
enquanto ela o conduz para dentro de si. Dominique
geme de prazer, lambendo o suor do ombro de Mick
ao puxar seu rosto para seus seios, segurando os
cachos em volta do seu pescoço.
3h22
Mick está deitado sob o lençol, nu, sua mão direita
acariciando as costas de Dominique, a cabeça da
jovem apoiada em seu peito enfaixado. Ele olha para o
teto, sua mente exausta repetindo as palavras do
Guardião como se fossem um mantra.
Xibalba Be ascenderá em quatro Ahau, três Kankin. Ele
só pode ser destruído por dentro. Somente um Hunahpu
poderá entrar. Somente um Hunahpu poderá expulsar o mal
do seu jardim...
Dominique se mexe, virando para o lado. Mick a
cobre com o lençol, depois fecha os olhos.
Venha a mim, Michael...
— Hã? — Ele salta da cama, seu coração disparado.
Desorientado, corre os olhos pela cabine, o suor frio
brotando de suas costas. Tudo bem, tudo bem, foi só um
sonho...
Mick volta a se deitar, de olhos arregalados,
esperando que a voz demoníaca reapareça.
Pare com isso! Desse jeito você fica louco. Ele sorri
fracamente. Onze anos na solitária, e finalmente estou
perdendo o juízo. Ele fecha os olhos.
Por que tem medo de mim, Michael?
— Que merda... — Ele salta de pé como um gato
assustado. Tudo bem, fique calmo. Faça uma caminhada.
Areje a cabeça. Ele se veste rapidamente e sai da
cabine.
Depois de vinte minutos, Mick se encontra no "Beco
dos Abutres", um balcão ao ar livre sobre o deque de
vôo. O ar noturno está fresco, a brisa do mar, re-
confortante. Ele tapa os ouvidos quando um caça é
catapultado para o céu limpo.
Mais uma vez, sua mente repete a conversa com o
Guardião. Somente um Hunahpu poderá entrar. Somente
um Hunahpu poderá expulsar o mal do seu jardim e salvar a
sua espécie da aniquilação.
Posso sentir você, Michael. Está muito perto...
— O quê?
Venha a mim, Michael. Não tenha medo. Venha para o seu
criador.
— Pare! Pare com isso! — Mick fecha os olhos com
força e segura a cabeça com as mãos.
— Mick, você está bem?
Venha a mim... pai.
— Sai da minha cabeça! — Mick gira, os olhos
arregalados de medo. Marvin Teperman o segura
pelos ombros.
— Ei, você está bem?
— Hã? Merda. Eu... eu não sei. Acho que estou
ficando maluco.
— Você e o resto do mundo. Não consegue dormir, é?
— Não. Marvin, o autômato que pousou em Chichén
Itzá, você sabe exatamente onde ele pousou?
O exobiólogo tira um pequeno computador do bolso
do paletó.
— Um minuto, está anotado aqui. Vejamos, Chichén
Itzá. Sim, o autômato pousou num lugar chamado
Grande Campo Maia do Jogo de Bola. Bem no meio,
para ser exato.
Mick sente um arrepio correr-lhe pela espinha.
— Bem no centro? Tem certeza?
— Sim. Qual o problema?
— Precisamos de um helicóptero! Marvin, pode nos
arranjar um helicóptero?
— Um helicóptero? Pra quê?
— Não posso explicar, mas preciso ir pra Chichén
Itzá. Agora!
Ilha de Sanibel,
Costa Oeste da Flórida
5h12
Edith Axler está na praia deserta, olhando o horizonte
cinza e a lancha que se aproxima rapidamente ao
longe. Seu sobrinho, Harvey, acena, depois para o
barco sobre a areia.
— Algum problema pra localizar o SOSUS?
— Não — ele diz, entregando-lhe cuidadosamente o
pouco que resta de um grande rolo de cabo de fibra
óptica. — O microfone estava ancorado exatamente
onde você disse que estaria. Mas depois daquela
porcaria de maré negra, foi um pouco apavorante
mergulhar à noite.
Ele sai do barco e segue a tia até a porta dos fundos
do laboratório. Lá dentro, Edie liga o sistema SOSUS
enquanto Harvey conecta o cabo de fibra óptica ao
servidor.
— Isso vai nos dar acesso a todos os microfones do
Golfo? — pergunta ele.
— É um sistema integrado. Enquanto esse cabo
aguentar, não vejo motivo pra não dar. Não estaremos
conectados com o computador em Dan Neck, mas
devemos conseguir bisbilhotar aquele objeto
alienígena enterrado na costa do Yucatán.
Harvey sorri, completando a conexão.
— Parece que estamos roubando TV a cabo.
Golfo do México
6h41
A esquadrilha de caças continua a circular em
formação, seus pilotos nervosos enquanto esperam os
primeiros raios de sol da aurora. Na superfície, lá
embaixo, o John C. Stennis e sua frota já se
posicionaram, formando um cordão de 5 quilômetros
de diâmetro ao redor da área luminosa do mar.
Manobrando a 450 metros de profundidade,
circulando na escuridão abaixo da frota está o
submarino de ataque Scranton, classe Los Angeles (SSN-
756). Em vigília silenciosa, o capitão Bo Dennis e sua
tripulação estão alertas. Suas ordens: pulverizar
qualquer coisa que emergir do luminoso buraco
esmeralda.
A bordo do John C. Stennis, o deque do porta-aviões
está eletrizado pela atividade.
Baterias de mísseis terra-ar Tomahawk na popa e na
proa miram no trecho luminoso de mar, suas cargas
mortais apontadas para o céu, preparando-se para
serem lançadas a um sinal. Mais três veículos aéreos
não tripulados Predator são lançados e se unem a uma
dúzia de outros, todos sobrevoando em círculos o
alvo.
Os 6 mil homens e mulheres a bordo da cidade
flutuante são uma pilha de nervos coletiva. Eles leram
as notícias e viram os tumultos na televisão. Se o
Apocalipse realmente está próximo, são eles que estão
no seu caminho. A confiança gerada por milhares de
horas de treinamento intensivo os desertou, uma
consequência de terem evitado por pouco o
holocausto nuclear. A disciplina os mantêm em seus
postos de combate, mas é o medo, e não a adrenalina,
que os motiva agora.
Dominique Vazquez sente outro tipo de medo. Pela
primeira vez na vida, ela abriu seu coração para um
homem, permitindo-se ficar vulnerável. Agora,
enquanto procura pelo imenso navio, seu coração
sente uma dor física, sua mente entra em pânico ao se
dar conta de que Mick a abandonou, e que talvez ela
nunca mais o veja.
Ela entra numa área restrita, empurrando um PE.
Quando ele a agarra por trás, ela joga o surpreso
sentinela contra a parede com um venenoso pontapé
para trás. Outro soldado a intercepta quando ela tenta
entrar no Centro de Informações de Combate.
— Me solta. Preciso falar com Chaney!
— Não pode entrar. O CIC é uma área restrita.
— Preciso encontrar o Mick. Ai, você está quebrando
o meu braço! A porta estanque se abre, dois oficiais
saem. Ela vê o presidente.
— Presidente Chaney!
Chaney ergue o olhar da fileira de monitores dos
VANTs.
— Tudo bem. Pode deixá-la entrar.
Dominique vira para o PE e o golpeia com força com
as duas mãos no peito.
— Nunca mais encoste em mim.
Ela entra no centro nervoso às escuras, agora cheio
de chefes de Estado.
— Dominique...
— Onde ele está? O senhor sabe onde ele está, fale!
Pra onde o levaram?
Chaney a puxa para um canto.
— O Gabriel partiu de helicóptero hoje de
madrugada. Ele me procurou. Foi um pedido dele.
— Pra onde ele foi?
— Ele deixou uma carta pra você. — Chaney tira o
envelope dobrado do bolso do peito.
Dominique o abre.
Minha querida Dom:
Há tantas coisas que eu gostaria de te contar, tantas coisas
que queria explicar, mas não posso. Vozes na minha cabeça
me puxam em direções diferentes. Não sei se as vozes são
reais ou se minha mente finalmente entrou em colapso.
A voz do Guardião me diz que sou um Hunahpu. Ele diz
que foi o meu código genético que nos permitiu entrar na
espaçonave. Talvez seja também por isso que eu consiga me
comunicar com a entidade enterrada no Golfo.
Um dos autômatos da entidade pousou bem no meio do
Grande Campo Maia do Jogo de Bola, em Chichén Itzá. Meu
pai acreditava que há uma forte relação entre o Grande
Campo e a fenda escura da Via Láctea. Como a pirâmide de
Kukulcán, esse campo também foi alinhado com o céu
noturno. A meia-noite de hoje, a fenda escura entrará em
alinhamento diretamente acima do centro desse campo. O
nexo se abrirá. Está se abrindo agora, posso sentir.
Era uma tradição maia enterrar um marco de pedra no ponto
central de cada campo. Meu pai estava presente quando
arqueólogos retiraram a pedra central do campo de Chichén
Itzá. Antes de morrer, Julius me contou que tinha roubado o
verdadeiro marco anos antes, e tempos depois voltou a
enterrá-lo. Manteve isso em segredo até seu último suspiro.
De alguma forma, ele sabia que eu iria precisar da pedra.
Não pode ser simples coincidência o autômato ter pousado
onde pousou. Talvez a entidade do Golfo saiba que o marco
está lá e não queira que o encontremos. Tudo o que sei é
que a nave inimiga subirá no solstício de inverno. Quando a
entidade dentro dela perceber que seus autômatos não
explodiram, irá atrás da grade do Guardião, tentando destruí-
la.
Não posso permitir que isso aconteça.
Desculpe por fugir de você assim. Esta noite foi a melhor da
minha vida. Não quero que seja a última.
Eu te amo, sempre vou te amar...
Mick
Ela olha para a carta.
— Isso... isso não é justo. Ele acha que eu vou ficar
aqui esperando? Dominique corre atrás do presidente.
— Preciso ir pra Chichén Itzá...
— Senhor, tem alguma coisa acontecendo lá fora.
Uma multidão se reúne em volta dos monitores dos
VANTs. Dominique pega Chaney pelo braço.
— Me leve até ele. O senhor me deve isso.
— Dominique, ele proibiu isso especificamente. Me
fez prometer...
— Ele precisa de mim. Precisa da minha ajuda...
— Presidente — um técnico interrompe —, estamos
registrando um abalo sísmico de 7 graus e meio na
escala Richter, e aumentando...
Chaney põe uma mão sobre o ombro de Dominique.
— Escute. De uma forma ou de outra, vamos destruir
o que está nessa nave, entendeu? O Mick vai ficar
bem.
— Senhor, o Scranton está chamando — diz o técnico.
A Bordo do USS Scranton
O comandante Bo Dennis levanta a voz por cima do
barulho estrondoso do terremoto submarino.
— Almirante, todo o leito do oceano está se partindo.
A interferência eletromagnética está aumentando...
Um técnico de sonar aperta os fones sobre as orelhas.
— Capitão, alguma coisa está saindo daquele buraco,
alguma coisa grande!
* * *
Uma imensa onda de gravidade negativa explode por
baixo dos restos do objeto de irídio, o campo
invisível repelindo a massa de seu esconderijo de 65
milhões de anos, atirando-o para cima através de um
quilômetro e meio de calcário fragmentado. Como
uma monstruosa bala de canhão, o volume titânico de
irídio, com mais de 1.500 metros de diâmetro,
ascende diretamente através de um bilhão de
toneladas de detritos, o leito do oceano se
esfacelando no vácuo do rastro do colosso. O abalo
monumental destrói o fundo ao seu redor, espalhando
ondas sísmicas por toda a extensão do Golfo do
México, causando no atol de Campeche e no fundo do
oceano circunstante o equivalente a um terremoto de
grau 9,2.
A expulsão da nave alienígena faz surgir uma série de
tsunamis mortais, as ondas assassinas afastando-se do
epicentro em direção às praias virgens do Golfo como
um anel da morte.
* * *
— Capitão, o objeto alienígena se soltou do leito do
oceano...
— Trajetórias dos torpedos traçadas, senhor, ele é
grande demais para errar.
O comandante Dennis se segura quando o submarino
vira bruscamente para bombordo.
— Timoneiro, nos mantenha longe dos detritos.
Chefe, procedimento de disparo, preparar tubos um e
dois.
— Sim, senhor. Tubos um e dois prontos.
— Siga a indicação do sonar. Disparar tubos um e dois.
— Sim, senhor. Disparando tubos um e dois.
Torpedos lançados.
— Dez segundos para o impacto. Sete... seis...
cinco...
Os dois projéteis atravessam o mar turbulento rumo
ao volume em ascensão. Quinze metros antes do
impacto, os explosivos batem num campo de força
invisível e são detonados.
A Bordo do John C. Stennis
— Almirante, o Scranton diz que atingiu o alvo em
cheio, mas não causou danos. O objeto parece
protegido por um campo de força, e continua
subindo.
Todos os olhos estão pregados nos monitores dos
VANTs. Pairando a 60 metros de altura, as câmeras
dos Predators revelam um anel de bolhas se formando
na superfície.
— Aí vem ela!
A massa ovóide quebra a superfície como um iceberg
arredondado, sobe e desce até encontrar seu
equilíbrio, flutuando no mar agitado. Close-ups dos
VANTs na superfície chamuscada de irídio revelam
uma rede de saliências metálicas irregulares e
depressões do tamanho de crateras.
Sensores transmitem imagens computadorizadas da
estrutura da nave alienígena. Dominique olha para a
imagem holográfica tridimensional. Vinte e três
apêndices tubulares pendem sob os restos da nave,
dando-lhe o aspecto de um enorme navio de guerra
mecânico.
— Contatem os aviões — ordena o almirante. —
Abrir fogo.
Os caças saem da formação e lançam uma salva de
mísseis SLAMMER. Os dispositivos explodem pouco
acima da enorme nave, as múltiplas detonações
revelando por um momento a presença de um campo
de força azul neon.
O oficial xinga em voz alta.
— Essa porra está lacrada num campo protetor que
nem os autômatos. Capitão Ramirez...
— Sim, senhor.
— Mande os caças saírem de perto do alvo. Lance
dois Tomahawks. Vamos ver o quanto esse campo de
força aguenta.
Dominique tapa os ouvidos quando um estrondo
ensurdecedor faz o navio tremer.
Os sistemas de navegação dos dois mísseis Tomahawk
foram desativados para evitar que a grade do Guardião
interferisse em sua trajetória. Lançadas à queima-
roupa, as ogivas batem no alvo, a explosão dupla
lançando uma bola de fogo para o céu, cegando
momentaneamente a imagem em tempo real das
câmeras dos VANTs.
A imagem reaparece. A nave continua intacta.
E então algo acontece.
Movimentos mecânicos surgem na região central da
massa flutuante, seguidos por um intenso clarão
verde.
O facho está vindo de uma abertura no casco
alienígena, mas não é uma escotilha, como no alto de
um submarino, tampouco um rasgo ou uma fenda.
Lâminas de irídio parecem estar se abrindo em
camadas e se dobrando, afastando-se do vórtice de
energia.
De dentro da luminescência esmeralda surge... um
ser.
A cabeça da forma imponente aparece primeiro.
As câmeras da Marinha ajustam o foco, as imagens
revelando o rosto do ser — o de uma enorme víbora
alienígena. O crânio monstruoso, adornado por
escamas que parecem penas, é do tamanho de um
outdoor. Dois olhos escarlate brilham como faróis
luminescentes, as pupilas reptilianas — fendas
verticais âmbar, estreitando-se à luz matinal. Um par
de mandíbulas bizarras se abre, estendendo
individualmente duas diabólicas presas de ébano, cada
uma medindo no mínimo um metro e meio, o resto
da boca escancarada cheia de fileiras de dentes afiados
como navalhas.
Um horripilante estertor reptiliano faz as grossas
camadas de plumas verdes e oleosas se arrepiarem
sobre as costas largas do alienígena.
Espinhos afiados na barriga da criatura prendem-na à
superfície de irídio quando o alienígena se empina
como uma imensa cobra...
...olhando para o céu por um brevíssimo instante,
como se analisasse a atmosfera.
Veloz como um raio, ele mergulha de cabeça no mar,
seu corpo monstruoso desaparecendo sob as ondas.
O presidente e seu Estado-maior olham para os
monitores, estarrecidos.
— Meu Deus... aquilo era real? — murmura Chaney.
Um abalado especialista em comunicações ouve uma
mensagem em seu
fone.
— Almirante, o Scranton relata que o ET está se
movendo através do termoclino, sua última
velocidade registrada é... Jesus, 92 nós. A trajetória é
sul-sudeste. Senhor, o ser parece estar indo
diretamente para a península de Yucatán.
Chichén Itzá
Uma agitada multidão de mais de 200 mil fanáticos se
reuniu no estacionamento de Chichén Itzá, cantando
e jogando pedras na milícia mexicana fortemente
armada, tentando forçar a entrada através dos portões
bloqueados da antiga cidade maia.
Dentro do parque, quatro blindados americanos
Abrams M1-A2 assumiram posições defensivas em
todos os lados da pirâmide de Kukulcán. Na selva ao
redor, dois esquadrões de boinas-verdes fortemente
armados estão à espera, escondidos em meio à densa
folhagem.
A oeste da pirâmide de Kukulcán está o Grande
Campo do Jogo de Bola de Chichén Itzá, um imenso
complexo em forma de "I", fechado por todos os lados
por muros de blocos de calcário.
O muro leste do campo é formado por uma estrutura
da altura de um prédio de três andares, conhecida
como o Templo dos Jaguares, a colunata da entrada
esculpida na forma de serpentes emplumadas. A
estrutura que limita o campo ao norte é chamada de
Templo do Homem Barbado. A fachada desses dois
muros verticais tem esculturas do grande Kukulcán
emergindo das mandíbulas de uma serpente
emplumada. Outras cenas retratam Kukulcán,
vestindo uma túnica, morto, sendo engolido por uma
serpente de duas cabeças.
Montados no alto dos muros leste e oeste estão anéis
de pedra posicionados verticalmente, como aros de
basquete colocados de lado. Inventado pelos olmecas,
o ritual cerimonial conhecido como Jogo de Bola foi
criado para simbolizar a batalha épica entre a luz e as
trevas, o bem e o mal. Duas equipes de sete
guerreiros se enfrentavam, tentando atirar uma bola
de borracha através do aro vertical, usando somente
os cotovelos, flancos ou joelhos. As recompensas do
jogo eram simples, a motivação pura: os ganhadores
recebiam prêmios, os perdedores eram decapitados.
Michael Gabriel está no centro do gramado de 95
metros, à sombra do autômato, comandando um trio
de Rangers do Exército americano. Com pás e
picaretas, os homens cavam um buraco de 2 metros e
meio de profundidade, abrindo o solo friável até um
ponto bem debaixo das garras do objeto alienígena.
A energia do campo de força do autômato faz o
cabelo de Mick ficar de pé.
Ele levanta a cabeça quando um jipe entra pelo lado
sul do campo. O coronel E. J. Catchpole salta do
veículo antes que ele pare.
— Acabamos de saber, Gabriel. A nave alienígena
veio à tona, como você previu.
— A Marinha conseguiu destruí-la?
— Negativo. A nave está protegida pelo mesmo campo
de força dessas porcarias. Tem mais. Um alienígena
saiu...
— Um alienígena? Como ele era? — O coração de
Mick bate como um tambor.
— Não sei. A grade da pirâmide está interferindo nas
comunicações. A única coisa que consegui entender é
que ele é grande, e a Marinha acha que está vindo em
nossa direção. — O coronel se ajoelha ao lado do
buraco. — Tenente, quero você e seus homens fora
daí.
— Sim, senhor.
— Coronel, você não pode desistir...
— Lamento, Gabriel, mas preciso de todos os homens
disponíveis pra vigiar aquela grade. O que você está
procurando, afinal?
— Já falei, é algum tipo de pedra, um marco redondo,
do tamanho de uma bola de futebol. Deve estar
enterrado bem debaixo das garras do autômato.
O tenente emerge do buraco, seguido por mais dois
Rangers, todos cobertos por um pó fino e branco.
O tenente bebe água de seu cantil e cospe o último
gole.
— É o seguinte, Gabriel. Localizamos a borda de uma
espécie de cilindro metálico, mas se meus homens
tentarem tirá-lo, o peso do autômato vai fazer o túnel
desmoronar. Se quiser tentar, deixamos uma lanterna
e uma picareta lá embaixo, mas não te aconselho a
fazer isso.
Os soldados sobem no jipe.
— Sugiro que você se mande daqui antes que os fogos
comecem — o coronel grita quando o veículo acelera
para o oeste.
Mick fica olhando o jipe ir embora, depois desce no
buraco pela escada de corda.
Os Rangers cavaram um estreito túnel horizontal por
baixo do autômato. Levando a picareta numa das mãos
e a lanterna na outra, Mick rasteja de joelhos pelo
túnel, e os sons da superfície logo ficam abafados em
seus ouvidos.
O túnel termina depois de 3 metros e meio. Saindo da
rocha acima de sua cabeça estão as pontas das garras
da criatura, afiadas como navalhas.
Engastada no teto de calcário, entre as duas garras
negras, a parte de baixo de uma lata de metal
brilhante, o mesmo recipiente de irídio que ele e seu
pai encontraram há muito tempo, enterrado no
deserto de Nazca.
Mick escava cuidadosamente em volta do lado
exposto do recipiente, soltando-o aos poucos. O
cascalho cai em suas costas, rachaduras aparecendo
por todo o teto. Ele continua batendo, sentindo o
objeto se soltar, sabendo que a qualquer instante o
teto irá desabar, enterrando-o sob o peso da rocha e
do autômato alienígena.
Fragmentos de rocha branca o cegam quando, com
um último puxão, ele solta o recipiente, saltando para
trás enquanto...
... uma parte do teto desaba, numa cortina cegante de
poeira branca e detritos, o autômato de 900 quilos
caindo dentro do túnel.
Mick rasteja de volta pelo que resta do túnel,
arrastando-se sobre os detritos, seu corpo coberto de
poeira branca, sua mão esquerda, suja de sangue,
ainda segurando o recipiente de metal.
Ele sobe a escada, cuspindo e tossindo, depois desaba
de costas perto da borda do buraco e inspira o ar
fresco. Tateando até achar sua garrafa d'água, ele
derrama o líquido morno no rosto, se enxagua, depois
se senta e dirige a atenção para o recipiente.
Por um longo momento ele só olha para o objeto,
reunindo suas forças, o ícone escarlate do Tridente de
Paracas — o símbolo do Guardião — devolvendo o
seu olhar.
— Muito bem, Julius, vamos ver o que você escondeu
de mim por tantos anos.
Ele abre a tampa, tirando o estranho objeto de dentro.
O que é isto?
É um objeto de jade, redondo e pesado,
aproximadamente do tamanho de um crânio humano.
Saindo de um lado, o cabo de uma imensa adaga de
obsidiana. Mick tenta remover a arma, mas ela está
muito bem presa.
Duas imagens estão desenhadas no outro lado do
objeto. A primeira, uma épica batalha entre um
caucasiano barbado e uma serpente emplumada
gigante, o homem segurando um pequeno objeto,
mantendo a fera a distância. A segunda imagem é de
um guerreiro maia.
Mick olha para o rosto do guerreiro, sentindo arrepios
percorrerem sua pele coberta de pó.
Meu Deus... sou eu.
Ilha de Sanibel,
Costa Oeste da Flórida
O alarme do SOSUS acorda Edith Axler com um susto.
Levantando a cabeça da mesa, ela pega os fones do
terminal do computador, coloca-os e escuta.
Seu sobrinho, Harvey, entra no laboratório a tempo
de ver a expressão de pavor da tia.
— O que foi?
Ela joga longe os fones, depois liga apressadamente o
sismógrafo. Harvey ouve a pena começar a riscar o
papel quadriculado.
— O que é...?
— Um forte terremoto sob o atol de Campeche — ela
diz com voz rouca, seu coração acelerado. — Deve
ter acontecido há menos de uma hora. Esse som
trovejante que você está ouvindo vem de uma série
de poderosos tsunamis rasando perto do atol do oeste
da Flórida...
— Rasando?
— Juntando forças ao diminuírem a velocidade,
mudando a energia para a vertical. Essas ondas vão
estar imensas quando chegarem ao litoral. Vão
submergir todas as ilhas da costa.
— Daqui a quanto tempo?
— Acho que de 15 a vinte minutos no máximo. Vou
avisar a Guarda Costeira e o prefeito, você ligue pra
polícia, depois traga o carro. Precisamos sair daqui.
Golfo do México
O Seahawk Sikorsky SH-60B voa 15 metros acima das
ondas gigantes, os outros quatro helicópteros da
Marinha seguindo-o de perto. Bem acima deles, duas
esquadrilhas de caças apontam seus sensores para a
veloz ondulação na água, 800 metros à frente.
Dominique olha pela janela para as monstruosas
ondas. À distância, o litoral de Yucatán aparece, sob a
neblina da madrugada.
Abaixo deles, a uma velocidade maior que a de um
jato, propaga-se pelo leito do oceano o primeiro de
uma série de tsunamis. A destruidora muralha de água
diminui a marcha ao chegar aos atóis, a refração e a
pouca profundidade redirecionando sua fúria
assombrosa para cima, a onda arrebentando direta-
mente abaixo da aeronave. O general Fecondo bate no
ombro do co-piloto.
— Por que os caças não continuam atirando?
O co-piloto olha para trás.
— Disseram que o alvo está fundo demais e nadando
rápido demais. Não deixa rastros, nada que guie os
mísseis. Não se preocupe, general, o ET vai ficar sem
mar daqui a pouco. Nossos aviões vão arrebentado
assim que chegar à praia.
O presidente Chaney se vira para Dominique, sua pele
escura parecendo úmida e cinza.
— Tudo bem aí?
— Vou ficar melhor quando... — Ela para de falar,
olhando para a água, sentindo o seu senso de
equilíbrio vacilar ao ver o mar parecendo subir por
baixo deles. — Ei, cuidado! Suba mais!
— Cacete... — O piloto empurra com força o manche
enquanto a onda monstruosa cresce sob o trem de
pouso do helicóptero, levantando a aeronave como se
fosse uma prancha de surfe.
Dominique agarra o encosto do banco à sua frente
quando o Sikorsky vira para o lado. Por um momento
surreal, o helicóptero dança sobre o imenso vagalhão,
e então a onda de 26 metros os solta e cai, castigando
a praia com um estrondoso golpe.
O helicóptero se estabiliza, pairando bem acima da
paisagem submersa, seus passageiros e a tripulação
respirando aliviados, enquanto a onda assassina corre
para o interior, destruindo tudo em seu caminho.
Com um barulho ensurdecedor, os caças circulam
acima deles.
— General, nossos aviões avisam que perderam todo
contato visual com o ET.
— Ele está dentro da onda?
— Não, senhor.
— Então onde diabos ele está? — grita Chaney. —
Uma coisa daquele tamanho não pode simplesmente
desaparecer.
— Ainda deve estar no mar — diz o general. —
Mande os helicópteros voltarem para o local do
último avistamento. Os jatos vão percorrer o litoral.
Precisamos deter esse alienígena antes que ele siga
para o interior.
Dez longos minutos se passam.
De seu ponto de observação, Dominique vê a onda do
tsunami voltando para o mar, a água agitada
arrastando com ela palmeiras desenraizadas, destroços
e gado.
— Presidente, estamos perdendo tempo...
Chaney se vira.
— O ET ainda está aqui, em algum lugar.
— E se não estiver? E se estiver indo para Chichén
Itzá, como o Mick disse?
O general Fecondo vira a cabeça.
— Temos trinta helicópteros sobrevoando o litoral do
Yucatán. Assim que aquela coisa der as caras...
— Esperem! O Mick disse que o subsolo da península
é como uma esponja gigante. Há um labirinto de
cavernas subterrâneas que desemboca no mar. O
alienígena não está se escondendo, está viajando por
baixo da terra!
Ilha de Sanibel
Edie bate na porta da casa da amiga.
— Suz, abra!
Sue Reuben abre a porta, ainda sonolenta.
— Ead, o que...?
Edith a agarra pelo pulso e a arrasta para o carro.
— Edie, pelo amor de Deus, estou de pijama...
— Entre aí. Um tsunami está vindo! — Harvey pisa no
acelerador assim que as duas senhoras entram no
carro, correndo loucamente por ruas residenciais até
chegar à estrada principal.
— Um tsunami? De que tamanho? E o resto da ilha?
— A Guarda Costeira está percorrendo as praias e as
ruas. Estão anunciando no rádio e na TV há dez
minutos. Você não ouviu as sirenes?
— Eu não durmo com o aparelho de surdez.
Harvey pisa nos freios quando eles se aproximam do
cruzamento que leva para o elevado. A única ponte
que sai da ilha de Sanibel está entupida pelo tráfego.
— Parece que a notícia se espalhou — diz Harvey,
gritando por cima do estardalhaço das buzinas.
Edie olha para o relógio.
— Isso não é nada bom. Precisamos sair daqui.
— A pé? — Sue balança a cabeça. — Edie, o pedágio
fica a mais de um quilômetro e meio daqui. Estou de
pantufas...
Edith abre a porta do carro, puxando a amiga do
banco de trás. Harvey segura a outra mão da tia e leva
as duas através das filas de carros, rumo ao outro lado
da ponte.
Nos minutos seguintes, o trio ziguezagueia entre os
carros, correndo sobre a ponte até a distante cabine
do pedágio.
Edie olha para cima enquanto vários adolescentes
passam sobre patins motorizados. Ela protege os olhos
do brilho que vem das águas calmas que vão da ilha
de Sanibel até o Golfo do México.
Um petroleiro vermelho e preto percorre lentamente
o horizonte.
Atrás do petroleiro, a 5 quilômetros da costa, uma
indescritível muralha de água está surgindo de dentro
do mar.
Sue Reuben se vira e olha a onda, incrédula.
— Meu Deus, aquilo é de verdade?
Buzinas soam, passageiros desesperados fogem dos
veículos quando a onda monstruosa arrebenta a 38
metros de altura.
O tsunami levanta o petroleiro sobre sua crista,
depois engole o enorme navio de aço, arremessando-
o contra o fundo do mar. O estrondoso impacto faz a
ponte reverberar, enquanto a onda assassina se atira
sobre o litoral de Sanibel, esmagando tudo o que
encontra.
Edie arrasta o sobrinho e a amiga para a cabine
deserta. Harvey abre a porta e puxa as duas para
dentro no momento em que o tsunami arrasa as ilhas
de Sanibel e Captiva, sua energia tremenda se
espalhando pela baía.
Harvey fecha a porta deslizante, e Edie puxa Sue para
o chão.
O tsunami corre pelo elevado, submergindo a cabine.
A estrutura de concreto e aço geme. Água do mar
entra por todos os lados, enchendo o retângulo de um
metro quadrado de fibra de vidro. Edie, Harvey e Sue
ficam de pé na correnteza, envolvidos pela água fria e
escuridão, enquanto o nível continua a subir. O
tsunami ruge como um trem de carga, sua força
soltando a cabine dos alicerces.
Todo o ar sai da cabine. Edie fecha os olhos com
força, esperando pela morte. Seu último pensamento
é para Iz, perguntando-se se irá vê-lo.
Seus pulmões queimam, o coração lateja em seus
ouvidos.
E então o rugido passa e o sol volta a brilhar.
Harvey abre a porta com um pontapé.
Os três sobreviventes cambaleiam para fora, cuspindo
e tossindo, apoiando-se uns nos outros num rio que
bate nos joelhos e continua a correr para o interior.
Edie segura Sue, sustentando-a na correnteza.
— Vocês estão bem? Sue
balança a cabeça.
— Vamos voltar?
— Não, tsunamis vêm em grupos. Precisamos fugir.
De braços dados, eles andam a passos largos e
trôpegos pela rodovia inundada enquanto a onda
diminui a velocidade, depois muda abruptamente de
direção, ameaçando varrê-los para a baía. Agarrando-
se a um sinal de trânsito, eles se seguram e rezam,
lutando para sobreviver em meio ao caudaloso rio de
destroços.
Chichén Itzá
Segurando o objeto de jade, Mick olha para a imagem
do guerreiro como se estivesse se vendo num
espelho.
Uma brisa — depois um farfalhar — vindo de dentro
do recipiente de irídio.
Mick enfia a mão nele, surpreso ao encontrar um
pedaço de papelão desbotado. Sua mão treme quando
ele lê a caligrafia familiar.
Michael:
Se o destino trouxe você até aqui, então agora você está tão
chocado quanto sua mãe e eu ficamos quando o objeto que
você tem nas mãos foi desenterrado, em 1981. Você era só
uma criança inocente de 3 anos, e eu, bem, por um
momento fui tolo o suficiente para acreditar que o guerreiro
era eu. Então sua mãe me fez notar os olhos escuros, e
ambos soubemos instintivamente que, de alguma forma, a
imagem representava você.
Agora você sabe o verdadeiro motivo que fez súa-piãe e eu
nos recusarmos a desistir da nossa luta — o motivo de uma
infância normal nos Estados Unidos ter sido negada a você.
Um destino maior o aguarda, Michael, e achamos que nosso
dever de pais era preparar você o melhor que podíamos.
Depois de duas décadas de pesquisa, continuo sem entender
a função desse objeto de jade. Desconfio que possa ser
algum tipo de arma, deixada pelo próprio Kukulcán, embora
eu não consiga encontrar nenhuma fonte de energia que
possa identificar sua finalidade. Cheguei a conclusão de que
a lâmina de obsidiana alojada dentro dele é um antigo
punhal cerimonial de mais de mil anos, que talvez tenha
sido usado para retirar os corações das vítimas dos
sacrifícios.
Só me resta torcer para que você descubra o resto até o
solsticio de inverno de 2012.
Peço a Deus que te ajude em sua cruzada, seja ela qual for, e
também peço que um dia você possa perdoar esta alma
torturada por tudo o que ela fez.
Do seu pai que te ama,
J. G.
Mick olha para a carta, relendo-a várias vezes, sua
mente lutando para assimilar o que seu coração já
sabe ser verdade.
Sou eu. Eu sou o Escolhido.
Ele fica de pé, joga a carta e o recipiente de volta no
buraco, e depois, segurando o objeto de jade, corre da
quadra deserta para os degraus ocidentais da pirâmide
de Kukulcán.
O suor escorre do seu rosto quando ele chega ao topo.
Enxugando o suor misturado ao pó da fronte, ele
cambaleia para dentro do corredor norte, até o lugar
da plataforma hidráulica do Guardião.
— Guardião, me deixe entrar! Guardião...
Ele bate os pés no chão de pedra, chamando mais
vezes.
Nada acontece.
Cenote Sagrado
Medindo 2 metros e pesando 136 quilos, o tenente-
coronel Mike "Ming-Ding" Slayer é o mais alto boina-
verde que já envergou o uniforme. O homenzarrão de
voz rouca, mistura de chinês, irlandês e americano, é
ex-jogador profissional de futebol e uma maravilha da
medicina, que já teve quase todas as partes do corpo
reparadas, substituídas ou recicladas. Ming-Ding tem
a reputação de bater para machucar quando lhe falta a
palavra que quer usar, ou quando desloca o ombro ou
o joelho.
Usando a manga, o soldado enxuga o suor do lábio
superior antes que os mosquitos pousem nele. Puta
que pariu, três horas coçando o saco nesta porcaria de selva
mexicana.
Ming-Ding Slayer está mais do que pronto para bater
em alguma coisa. Estalos de estática enchem seu
ouvido esquerdo. O tenente-coronel ajusta o
comunicador.
— Prossiga, coronel.
— Satélites detectaram um fluxo magnético se
aproximando da sua posição, vindo do norte.
Acreditamos que o alienígena esteja viajando pelo
aquífero e possa sair de dentro do poço.
Já era tempo, cacete.
— Positivo. Estamos mais do que preparados.
Ming-Ding faz sinais ao seu pelotão para que se
posicione ao redor do poço. Cada homem carrega uma
OICW, a metralhadora mais letal do mundo. O
dispositivo de 6 quilos tem dois canos: um que
dispara balas de 5,56 mm e o outro para os cartuchos
explosivos HE de 20 mm, que podem ser programados
para detonar com o impacto ou depois de um curto
intervalo de tempo, na frente, atrás ou acima de um
alvo inimigo.
O sargento John "Ruivo Sujo" McCormack se
aproxima do tenente-coronel e os dois homens olham
para o lodo lá embaixo.
— Cadê a porra do alienígena?
— Lei de Murphy em combate número 16. Quando
você está pronto pra atacar um objetivo, não se
esqueça de avisar o inimigo.
O chão começa a tremer e anéis se formam na
superfície do poço.
— Acho que falei cedo demais. — Ming-Ding faz um
sinal para seus homens, depois se afasta da borda
quando os tremores ficam mais fortes.
Ruivo Sujo olha através de sua mira laser. Vem, filho
da puta. Vem me pegar.
O chão se agita tanto que os soldados mal conseguem
mirar. A parede oposta do cenote desaba. Uma nuvem
de calcário e água explode para fora...
O alienígena surge do cenote.
Os músculos de Ming-Ding se contraem de medo.
— Puta que pariu... Fogo! Fogo!
Uma chuva de chumbo sai das armas dos soldados.
As balas não atingem o alienígena. Um escudo
transparente de energia, visível só pela sua distorção,
envolve a serpente como uma segunda pele. Quando
as balas entram no campo, parecem se vaporizar em
pleno ar.
— Que porra...? — Ming-Ding olha, horrorizado e
confuso, enquanto seus homens continuam atirando.
Passando pelos soldados como se eles nem existissem,
a entidade alienígena desliza pelo sacbe maia, seu
corpo, da largura de uma locomotiva, abrindo
caminho na selva rumo à pirâmide.
Ming-Ding ativa o transmissor do seu capacete.
— Coronel, fizemos contato com o alienígena. Ou
pelo menos tentamos. Nossas balas foram inúteis,
senhor, dá a impressão que desapareceram no ar.
* * *
Mick pode ouvir o eco das pás do helicóptero
fustigando o ar enquanto olha para o Grande Campo
Maia do alto da pirâmide de Kukulcán, vendo a
aeronave da Marinha pousar na grama adjacente à
escadaria ocidental da pirâmide.
Seu coração bate forte quando ele vê Dominique
saindo, ao lado do presidente e de dois soldados.
Michael...
Mick ofega, virando para o norte. Ele sente algo se
aproximando, vindo da selva.
Algo imenso!
As árvores que ladeiam o sacbe são arrancadas quando
o ser se aproxima. No chão, quatro blindados Abrams
M1-A2 correm pela estrada de terra em fila única,
suas miras laser apontando para o meio da estrada
maia. Mick arregala os olhos, seu coração palpita.
Acima das árvores, o crânio do alienígena aparece,
seus olhos escarlate brilhando como rubis sob o sol
vespertino.
Tezcatilpoca...
Os blindados abrem fogo, quatro projéteis
irrompendo simultaneamente dos canhões de 120 mm
dos veículos.
Não há contato nem explosão. Ao atingirem o couro
do alienígena, as bombas simplesmente desaparecem
num denso colchão de ar, com clarões cegantes e
rápidos.
Continuando sua aproximação, a serpente passa por
cima dos blindados. Por um momento, os Abrams
desaparecem dentro do campo de energia, rea-
parecendo segundos depois, seus cascos e torres de
titânio irreconhecivelmente amassados.
As palavras do Guardião ecoam em seus ouvidos.
Tezcatilpoca abriga o portal para o corredor
quadridimensional.
O portal para o corredor quadridimensional... é Tezcatilpoca!
Tezcatilpoca é o portal!
A serpente emplumada sobe pela balaustrada
setentrional, os olhos demoníacos luminescentes
irradiando energia. Nadando nas córneas cor de
sangue, as fendas douradas das pupilas reptilianas se
alargam, como que revelando as chamas de uma
fornalha infernal.
Mick olha para a criatura, sua mente completamente
tomada pelo medo. Ele quer que eu entre nisso aí?
A serpente para no topo. Ignorando Mick, ela abre a
boca, exalando uma lufada vaporosa de energia
esmeralda por entre as presas retraídas.
Com um grande ruído, o templo de calcário se acende
em irreais chamas rubras, o fogo alienígena
derretendo os blocos de pedra em segundos.
Mick recua, fugindo do calor intenso, abrigando-se
nos últimos três degraus da escadaria setentrional.
As chamas se apagam. Depois da conflagração,
erguendo-se como um mastro do pouco que resta da
parede central do templo — uma antena de irídio de
5 metros.
A grade!
Você é Hunahpu. Tem a habilidade de acessar a grade dos
Nefilins.
O instinto repentino de sobrevivência deflagra um
processo mental há muito tempo adormecido.
Impulsos altamente carregados correm pelas
terminações nervosas dos dedos de Mick para o
objeto de jade, fazendo-o brilhar com uma energia
intensa, quase cegante.
O alienígena estaca, suas pupilas de âmbar
desaparecem nas fendas escarlate dos olhos.
O coração de Mick martela como uma britadeira, seu
braço tremendo com a energia emanada pelo seu
corpo.
A víbora, ofuscada, fita a pedra como se estivesse em
transe.
Mick fecha os olhos, lutando para conservar sua
sanidade. Certo, fique calmo. Afaste-a da grade.
Mantendo o braço estendido, ele desce, um
agonizante degrau de cada vez, pela escadaria
ocidental.
Como se estivesse sendo puxado por uma rédea
invisível, o ser o segue para baixo.
Dominique corre até ele, depois para, arregalando os
olhos, chocada.
— Meu Deus...
Chaney, o general Fecondo e os dois soldados
permanecem imóveis atrás de uma das paredes curtas
da quadra, suas mentes incapazes de decifrar o que os
olhos estão vendo.
— Dominique! — Com sua mão vazia, Mick a acorda
de seu estupor. — Dom, você não pode ficar aqui!
— Meu Deus... — Ela segura a sua mão, puxando-o
para trás. — Venha...
— Não, espere. Dom, você lembra o que eu disse?
Lembra o que simbolizava a entrada do Mundo
Inferior no Popol Vuh?
Ela se vira para encará-lo, depois olha para o
monstruoso alienígena.
— Não. Ah, meu Deus, não...
— Dom, a serpente emplumada é o portal para a
Estrada Negra...
— Não...
— E acho que eu sou Um Hunahpu!
Michael...
Mick sente um calafrio.
Ela o olha, completamente apavorada, seu rosto
riscado pelas lágrimas levadas pelo vento.
— O que você vai fazer? Não está pensando em se
sacrificar, não é?
— Dom...
— Não! — Ela agarra o seu braço.
Estou chegando, Michael. Estou sentindo o seu medo...
— Não vou te deixar fazer isso! Mick, por favor... eu
te amo... Mick sente sua determinação fraquejar.
— Dom, eu te amo, e estou com muito medo. Mas,
por favor, se quiser me ver de novo, precisa ir
embora agora. Por favor, vá, agora! — Mick se dirige
a Chaney. — Tire-a daqui! Já!
O general Fecondo e os dois soldados a arrastam,
chutando e gritando, de volta para o helicóptero.
Chaney se aproxima de Mick, sempre com os olhos
no alienígena.
— O que você vai fazer?
— Não tenho certeza, mas, aconteça o que acontecer,
mantenha a Dominique longe daqui.
— Você tem a minha palavra. Agora faça um favor a
todos nós e mate essa coisa. — Chaney se afasta e
entra no helicóptero.
A aeronave decola.
Uma onda de fraqueza leva Mick a dobrar um joelho,
fazendo-o perder a concentração.
A luz que emana da pedra de jade diminui.
A serpente alienígena agita sua cabeça mastodôntica.
Suas pupilas de âmbar reaparecem, as fendas verticais
se alargam. Mais dois olhos extras engastados nas
faces do alienígena captam a imagem térmica de Mick
e o brilho fraquejante de sua arma.
Isso não é bom... Mantenha a concentração...
Tezcatilpoca levanta metade do corpo, rugindo uma
horripilante sílaba alienígena, como se estivesse se
declarando livre do feitiço de Mick.
Os quatro olhos viperinos perfuram Mick,
concentrando-se nele como se o estivessem vendo
pela primeira vez. As mandíbulas se abrem. Uma bílis
negra e fumegante pinga das presas superiores
retraídas, respingando como um veneno ácido sobre
os degraus de calcário.
A adrenalina corre pelo corpo de Mick. Ele fecha os
olhos para morrer e então — com um espasmo
repentino de reconhecimento primal —, ele sente a
grade em sua mente.
Tezcatilpoca abre mais as mandíbulas, desnudando
suas horríveis presas e lançando a parte de cima do
corpo contra o Hunahpu numa velocidade terrível.
Como um raio, a explosão de energia elétrica azul
parte da antena da pirâmide, atingindo a serpente em
pleno salto. Empalada pela grade, a criatura se
retorce, agonizando, seu corpo desaparecendo e
reaparecendo nas ondas de incandescente energia
esmeralda, sua plumagem e espinhos eriçando-se em
espasmos rítmicos.
Mick continua imóvel diante da monstruosidade
alienígena, com os olhos fechados, direcionando seus
recém-descobertos instintos de Hunahpu,
concentrando o enorme poder da grade do Guardião
no seu estridente inimigo.
Tremendo de raiva, Tezcatilpoca desfere um brado
ensurdecedor, o ataque verbal ecoando pela
esplanada, derrubando as colunas do Complexo do
Guerreiro.
Abrindo os olhos, Mick segura a pedra central acima
da cabeça e usa a força de vontade para tirar a adaga
de obsidiana de sua bainha fulgurante.
O objeto de jade pulsa furiosamente, irradiando uma
energia incandescente, o calor queimando sua mão.
Ele mira e joga o objeto na boca escancarada do
alienígena.
Uma erupção de pura energia — como um sol
transformando-se em nova.
Tezcatilpoca é tomado por espasmos -— como se
tivesse sido atingido por um bilhão de watts de
eletricidade.
Protegendo os olhos, Mick cai de joelhos,
desativando a grade.
O ser alienígena desaba, sem vida, sobre os degraus.
Seus olhos antes luminosos assumem tons de cinza, e
sua boca aberta repousa entre as duas cabeças de
serpente de calcário, posicionadas como capitéis dos
dois lados da balaustrada setentrional.
Mick cai deitado de costas, seus membros tremendo e
seus pulmões lutando para puxar ar.
Com o rosto pressionado contra a janela do
helicóptero, Dominique grita de alegria, depois pula
sobre o assento da frente e estrangula Chaney com
um abraço de urso.
— Tudo bem, tudo bem. Pouse o helicóptero,
tenente. Esta jovem quer ver o namorado.
O general Fecondo pressiona o radiorreceptor sobre a
orelha, tentando ouvir em meio à algazarra dentro da
aeronave.
— Repita, almirante Gordon...
A voz do oficial crepita nos fones.
— Repetindo. O campo de força da nave alienígena
continua ativado. Vocês podem ter matado a fera, mas
sua fonte de energia continua bem ativa.
De olhos fechados, Mick está deitado na esplanada
dura e coberta de grama, sua mente exausta lutando
para restabelecer a conexão neural que de alguma
forma lhe permitiu ativar a grade do Guardião.
Frustrado, ele se senta, olhando para a lâmina de
obsidiana em sua mão. Eu sou Hunahpu, mas não sou o
Escolhido. Não consigo acessar a Estrada Negra. Não posso
selar o portal. Ele se vira e vê um pelotão de soldados
fortemente armados surgindo da selva.
Ming-Ding Slayer o levanta pelos ombros.
— Cacete, Gabriel, como você conseguiu?
— Também queria saber.
Vários soldados atiram na cabeça imóvel do
alienígena, suas balas se vaporizando antes de
atingirem o alvo. Michael...
Mick levanta a cabeça, sobressaltado. A voz é
diferente, familiar. Calmante, de alguma forma.
Guardião...
Fechando os olhos, ele permite que a voz guie seus
pensamentos mais fundo em sua mente.
Deixe o medo de lado, Hunahpu. Abra o portal e entre. Os
Senhores do Mundo Inferior que ficaram na Terra
aparecerão para desafiá-lo. Eles tentarão impedi-lo de fechar
o portal cósmico antes que o Deus da Morte chegue.
Mick abre os olhos, concentrando-se na boca
hedionda de Tezcatilpoca.
A antena do Guardião dispara um raio azul de energia
elétrica que atinge o crânio inanimado da serpente.
A mandíbula superior começa a se abrir; assustados,
os soldados pulam para trás, vários tentando
inutilmente atirar na fera morta.
Mick fecha os olhos, mantendo a concentração. As
mandíbulas do alienígena se escancaram, expondo
horríveis presas de ébano, rodeadas por centenas de
dentes afiados como navalhas.
E então, uma segunda cabeça viperina aparece.
Idêntica, mas um pouco menor, ela sai de dentro da
boca da primeira.
Mick fecha os olhos com força, aumentando a
concentração. Uma terceira e última cabeça sai da
boca da segunda, e as mandíbulas das três travam
abertas.
A grade é desativada. Mick dobra um joelho, sua
concentração esgotada, sua mente exausta com o
esforço.
E então, sobre a pirâmide aparece um rodopiante
cilindro esmeralda de energia, um corredor
quadridimensional cósmico que atravessa o espaço e o
tempo, indo dos céus escuros até a cauda da imóvel
serpente alienígena.
Os soldados largam as armas. Ming-Ding cai de
joelhos, estarrecido, como se estivesse vendo o rosto
de Deus.
Em algum lugar à direita de Mick, o helicóptero do
presidente pousa.
Mick olha para o portal aberto, ponderando sua
decisão, esforçando-se para afastar o medo.
— Mick!
Dominique desce do helicóptero.
As palavras do Guardião ecoam: Você não pode permitir
que ela entre.
— Chaney, segure ela aí!
O presidente a segura pelo pulso.
— Me solta! Mick, o que você está fazendo...
Ele olha para ela, sentindo o peso aumentar em seu
peito. Vá, agora, antes que ela venha atrás!
Segurando a adaga de obsidiana com a mão direita, ele
vira para trás, depois salta as fileiras dos dentes
inferiores e entra na primeira das bocas escancaradas
da serpente.
28
As mandíbulas reptilianas se fecham atrás dele, a ter-
ceira cabeça se retraindo para dentro da boca da
segunda.
Mick está na escuridão total, seu coração batendo
como um tambor. De repente, a entrada parece sugá-
lo para a frente sem movê-lo, uma sensação nauseante
que puxa seus órgãos internos, como se seu intestino
estivesse sendo desenrolado. Zonzo, ele fecha os
olhos com força, apertando a lâmina de obsidiana
contra o peito.
Luz.
Ele abre os olhos, livre da incômoda sensação. Não
está mais na boca da serpente. Está no Grande Campo
Maia, que agora está dentro de um enorme cilindro
rodopiante de energia esmeralda.
Entrei no portal... Estou no limiar de outra dimensão...
É como se ele estivesse vendo o mundo através de
óculos de cores vivas. Para lá dos arredores em
movimento, ele vê um céu lavanda, a abóbada
brilhando com um milhão de estrelas, cada uma
liberando um caleidoscópio de ondas de energia ao
percorrer a tapeçaria do universo. Diretamente acima
dele está a fenda escura, correndo como um irregular
rio celeste de gás avermelhado bem no centro do
cosmos magenta.
Quando ele anda, os objetos ao redor ficam borrados
em sua visão periférica, como se ele estivesse se
movimentando rápido demais para seus olhos.
A 100 metros dali, na outra extremidade da quadra
fechada, ele vê a segunda boca da serpente, o orifício
posicionado abaixo do Templo do Homem Barbado.
Saindo das mandíbulas abertas, uma figura — coberta
da cabeça aos pés com uma capa preta.
Os membros de Mick tremem com a adrenalina e o
medo. Ele aperta mais a adaga.
O ser se aproxima. Mangas pesadas sobem dos dois
lados do capuz, mãos invisíveis puxando-o para trás,
revelando o rosto...
Mick arregala os olhos, incrédulo. Os músculos de
suas pernas viram gelatina. Ele cai de joelhos, a
intensidade de suas emoções fazendo submergir
qualquer pensamento de sua mente sobrecarregada.
Maria Gabriel olha para o seu filho e sorri.
Ela está jovem de novo, uma belíssima mulher de 30
e poucos anos. O câncer se foi, a palidez da morte
substituída por um brilho sadio. Cachos escuros
pendem em volta do seu pescoço, seus olhos de
ébano olhando para os dele com amor de mãe.
— Michael.
— Não... você não... não pode ser real. — Ele sufoca
ao dizer as palavras.
Ela toca o rosto dele.
— Mas sou real, Michael. E senti tanto a sua falta.
— Eu também senti a sua. — Ele segura a mão dela,
olhando-a nos olhos. — Mãe... como?
— Há tanta coisa que você não entende. Nosso
propósito na vida, a metamorfose da morte. Um
processo que nos permite desfazer os grilhões
materiais para que possamos evoluir e ingressar num
plano superior.
— Mas por que você está aqui? Que lugar é este?
— Um nexo, um portal vivo que liga um mundo ao
outro. Fui enviada para guiar você, Michael. Você foi
enganado, meu querido, iludido pelo Guardião. Tudo
o que te contaram era mentira. A abertura do portal é
o Segundo Advento. É o Guardião que é maligno. O
espírito de Xibalba está atravessando o cosmos. Vai
passar pela Terra, trazendo paz e amor para a
humanidade. Esse é o destino da humanidade, meu
filho... e o seu.
— Eu... eu não entendo.
Ela sorri para ele, afastando o cabelo de sua testa.
— Você é Um Hunahpu, o Primeiro Pai. Você será o
guia, o duto entre a carne e o outro mundo.
Maria ergue o braço graciosamente, apontando para a
extremidade da quadra. Outra figura surge da boca da
serpente, esta vestida de branco.
— Está vendo? A Primeira Mãe te espera.
O queixo de Mick cai. É Dominique!
Sua mãe o segura.
— Espere. Seja gentil, Michael. Ela está confusa, ainda
está em choque.
— Como assim?
Maria se vira e segura a mão de Dominique. Os olhos
da garota são grandes e inocentes como os de um
cordeirinho, sua beleza absolutamente encantadora.
— Ela não suportou viver sem você.
— Está morta?
— Suicídio. — Mick sufoca um grito quando sua mãe
afasta gentilmente o cabelo negro da têmpora direita
de Dominique, revelando um buraco de bala
ensanguentado.
— Não. Meu Deus...
Enquanto ele olha, o ferimento desaparece.
— O destino dela está entrelaçado ao seu. Ela será
Eva, e você, Adão. São os espíritos de vocês que
darão início a uma nova era na Terra, a um novo
entendimento do mundo espiritual.
Enquanto ele olha, a expressão hipnotizada de
Dominique parece mudar.
— Mick? — Um grande sorriso se abre em seu rosto.
Ela cambaleia para a frente e o abraça.
A paixão extravasa do coração de Mick quando ele
consome Dominique em seu abraço.
E então ele se afasta, uma vozinha em sua mente
cansada exigindo que ele se controle.
— Espere. Como assim, nossos espíritos? Eu estou
morto?
— Não, querido, ainda não. — Maria aponta para a
lâmina de obsidiana. — Você mesmo precisa fazer
esse gesto, o sacrifício definitivo para salvar o nosso
povo.
Mick olha para o punhal, suas mãos tremendo.
— Mas por quê? Por que eu tenho que morrer?
— A morte é um conceito tridimensional. Há muitas
coisas que você não pode entender, mas precisa
Confiar em mim... e no Criador. — Maria toca-lhe a
face. — Sei que está com medo. Não se preocupe. É
só uma dor momentânea para remover os grilhões
físicos da vida. Nada mais. Depois... a paz eterna.
Dominique beija sua outra face.
— Eu te amo, Mick. Agora entendo. Entrei em outro
mundo. Sinto a sua presença no meu coração. Nosso
destino é ficar juntos.
Ele toca a ponta afiada da adaga com seu dedo, que
sangra. Seu sangue está azul!
Uma imagem subliminar da câmara de Tezcatilpoca
passa por sua mente, seguida pelas palavras do
Guardião, sussurradas nas profundezas de seu cérebro.
Os malignos Senhores do Mundo Inferior aparecerão para
desafiar você. Eles tentarão impedi-lo de selar o portal antes
que Ele chegue...
— Mick, você está bem? — Dominique se aproxima,
um ar preocupado nos olhos. Ela aperta a mão que
segura a adaga. — Eu te amo.
— E eu te amo.
Ela o abraça, beijando-lhe o pescoço, segurando com
mais força a mão do punhal.
— Sacrifiquei minha vida na Terra porque não
aguentei ficar sem você. De alguma forma, eu sabia
que estávamos destinados a ser almas gêmeas.
Almas gêmeas? Ele se dirige a Maria.
— Onde está o meu pai?
— Julius está no outro plano. Você precisa morrer para
poder vê-lo.
— Mas estou vendo a Dominique. Estou vendo você.
— A Dominique é a Primeira Mãe. Eu sou sua guia.
Você verá os outros depois de sua passagem.
Em sua mente, ele vê o pai sufocando a mãe com um
travesseiro. Mick levanta o punhal, olhando-o.
— Mãe, Julius te amava de verdade, não amava?
— Sim.
— Ele sempre disse que vocês dois eram almas
gêmeas, destinadas a ficar juntas. Para sempre.
— Como nós dois — diz Dominique, ainda apertando
sua mão. Mick a ignora, sua mente ficando mais
alerta.
— O que ele fez com você o destruiu. Ele sofreu pelo
resto da vida.
— Sim, eu sei.
— Fui tão egoísta. Nunca me permiti entender o que
ele realmente fez e por quê. — Mick olha para a mãe.
— Papai te amava tanto. Estava disposto a viver o
resto dos seus dias na amargura para não te ver sofrer
mais um minuto.
Mas ele nunca se matou. Continuou no caminho,
enfrentando tudo. Ele fez isso por mim.
Mick vira para Dominique, aproximando-se,
acariciando sua face com uma mão, segurando a adaga
com a outra.
— Agora eu entendo. O que meu pai fez, matando
sua alma gêmea, acabando com o sofrimento dela. Ele
escolheu o caminho mais difícil. Fez o sacrifício
definitivo.
Maria sorri.
— Está na hora de você fazer o mesmo sacrifício,
Michael.
Dominique solta a sua mão quando Mick aperta a
ponta da lâmina no próprio peito. Ele olha para os
céus, suas emoções, por tanto tempo reprimidas,
derramando-se do seu coração.
— Pai, eu te amo! Está me ouvindo, pai? Eu te amo.
Eu te perdoo!
Seus olhos escuros estão pregados nos de Dominique,
dois faróis de ébano que lhe vasculham a alma. Seu
peito para de soluçar, sua garganta se contrai quando
os vasos sanguíneos em seu pescoço saltam de raiva.
— Eu sou Hunahpu — ele grita, arregalando os olhos.
— E sei quem você é!
Num movimento rápido, Mick se vira e enfia o
punhal na garganta de Dominique, o golpe
desequilibrando-a e fazendo-a cair de costas. Mick
empurra a lâmina e uma substância negra parecida
com silicone jorra do pescoço dela, enquanto ele
torce a lâmina para o lado, disposto a decapitar seu
inimigo.
A criatura se retorce, agonizante, grunhindo e
rosnando. Sua pele encolhe, escurecendo até ficar
vermelho-escura, o disfarce se desfazendo diante dos
olhos de Mick.
Com um grito de guerreiro, Michael Gabriel separa a
cabeça do demônio de seu corpo.
O ser que fingia ser sua mãe chia para ele, as fendas
douradas em seus olhos vermelhos chispando ódio,
sua boca cheia de presas pingando um veneno negro.
Num só movimento, Mick gira e mergulha a lâmina
de obsidiana no coração do Senhor do Mundo
Inferior.
A carne do rosto de Maria queima, revelando por uma
fração de segundo feições satânicas chamuscadas,
antes de se desfazer em cinza.
Dominique grita quando o corpo da serpente
alienígena se vaporiza diante de seus olhos. Ela põe a
mão no peito e desmaia antes que Chaney possa
segurá-la.
A Bordo do John C. Stennis
Jeffrey Gordon, o oficial em comando, corre o
binóculo pelo casulo alienígena flutuante quando o
último Tomahawk explode sobre o casco metálico.
— Esse último míssil explodiu! O escudo desapareceu.
Continuem atirando!
Uma salva de mísseis Tomahawk é lançada. O
almirante vê os projéteis atingirem a nave de irídio,
pulverizando-a.
29
O Grande Campo Maia do Jogo de Bola desapareceu.
Michael Gabriel está sozinho num vórtice esmeralda
de energia, o túnel cilíndrico girando um bilhão de
vezes por minuto.
À sua esquerda está a entrada do portal, sua abertura
cada vez menor revelando a base norte da pirâmide.
Ele pode ver Dominique, deitada nos primeiros dois
degraus. Chorando.
À sua direita está outro portal, a entrada para Xibalba
Be — a Estrada Negra. Em seu centro, um ponto de
luz branca visível na escuridão do espaço.
Uma sensação de calma o invade, aplacando seus
nervos esfrangalhados.
Guardião, eu triunfei?
Sim, Hunahpu. Os dois Senhores do Mundo Inferior estão
mortos. O portal está se fechando, o Deus da Morte mais
uma vez não pode entrar no seu mundo.
Mick vê que a abertura à sua esquerda continua se
fechando.
Então a ameaça à humanidade acabou? Por enquanto.
Chegou a hora de escolher.
Materializando-se diante dele, um sarcófago de
granito marrom. Pairando acima de seu interior em
formato de banheira, uma cápsula lisa, do tamanho de
um caixão.
Dois destinos estão à sua espera. Você pode viver o resto dos
seus dias como Michael Gabriel ou seguir para Xibalba e
cumprir seu destino como Um Hunahpu — tentando salvar
a alma do nosso povo.
Os Nefilins...
Há 65 milhões de anos, o Guardião... os Nefilins
sobreviventes escolheram ficar na Terra, para salvar o
futuro de uma espécie desconhecida, esperando que
seu messias genético um dia aceitasse retribuir o
favor. Mick se lembra dos rostos assustados das
crianças em Xibalba, suas almas presas ao purgatório.
Tão apavoradas. Tão sozinhas...
Mick olha para Dominique, desejando abraçá-la,
reconfortá-la. Ele imagina a vida que as circunstâncias
lhe negaram desde criança. Amor... casamento...
filhos... Uma existência feliz.
Não é justo. Por que preciso escolher? Eu mereço viver
minha vida.
Ele se imagina envolvido pela ternura de Dominique,
nunca tendo que acordar no meio da noite no chão
frio de uma cela de concreto, sentindo-se tão
sozinho...
Tão vazio.
O sacrifício definitivo...
Ele se lembra da voz doce de Dominique. Mick,
nenhum de nós tem controle sobre o jogo ou as cartas que
recebemos...
Você tem livre-arbítrio, Michael. Decida logo, antes que o
portal se feche. Arrancando seu coração de Dominique,
ele entra na cápsula.
Mick abre os olhos. Ele está deitado de bruços no
casco azul radiante da cápsula, mergulhando de
cabeça no espaço através de um funil tortuoso de
intensa gravidade. Embora esteja envolvido pela
energia, de alguma forma ele consegue ver através das
paredes do transporte. Para lá da luz brilhante, pode
ver as estrelas, passando por ele como riscos de luz.
Por cima do ombro ele vê a Terra, o planeta azul
desaparecendo de vista, o rastro cósmico do duto
quadridimensional evaporando atrás dele, deixando a
escuridão do espaço em seu lugar.
O vazio crescente dilacera a sua alma torturada.
Bem-vindo, Um Hunahpu. Você chegou.
Sinto falta dela.
Ela é abençoada, a semente do nosso pacto cresce em seu
ventre. O destino dela está para sempre ligado ao seu.
Uma luz branca aparece à frente, seu brilho
aumentando.
Dedos frios e cadavéricos de terror agarram sua
mente.
Xibalba... A trepidação e o medo o esmagam.
— O que foi que eu fiz? Guardião, por favor. Eu quero
voltar!
Agora é tarde. Não tema, Michael, pois jamais o
abandonaremos. Você fez o sacrifício definitivo. Ao fazê-lo,
devolveu a humanidade à sua espécie e deu às almas de
nossos ancestrais uma chance de salvação. O caminho que
você escolheu é nobre — vai revelar os próprios segredos do
universo, vai pôr a própria essência do bem contra o mal, a
luz contra as trevas, e há mais coisas em jogo do que você
possa imaginar.
Agora feche os olhos e descanse enquanto o preparamos,
pois o que virá a seguir é o mal — em sua forma mais pura.
EPÍLOGO
3 DE JANEIRO DE 2013
CASA BRANCA
WASHINGTON, DC
O presidente Ennis Chaney ergue os olhos da mesa
quando sua chefe de gabinete, Katherine Gleason,
entra, toda sorrisos.
— Bom dia.
— Bom dia. Mais um belo dia pra se estar vivo. A
coletiva está pronta?
— Sim, senhor. O púlpito está decorado com dois
arranjos florais, um agradecimento dos chineses.
— Que gentileza. Meus outros convidados já
chegaram?
— Sim, senhor, estão esperando no corredor.
O secretário de Estado Pierre Borgia está ajeitando a
gravata quando a videoconferência começa. Ele olha
o relógio, depois ativa o vídeo-comunicador em sua
mesa.
A imagem de Joseph H. Randolph, Sr., lhe sorri de
um lado da tela dividida na metade, o empreiteiro da
defesa Peter Mabus na outra.
— Aí está ele, Pete. Pierre Sortudo.
— Estamos muito orgulhosos de você, filho.
Borgia abaixa o volume.
— Cavalheiros, por favor, ainda não são favas
contadas. O Chaney ainda não me ofereceu a vice-
presidência oficialmente, embora tenhamos uma
reunião marcada antes da coletiva.
— Acredite, filho, minhas fontes me garantem que são
favas contadas, sim. — Randolph passa uma mão
manchada pelo cabelo prateado. — O que acha, Pete?
Devemos dar a Pierre alguns meses pra se acostumar
com o novo cargo ou vamos começar a mexer os
pauzinhos pra derrubar Chaney de uma vez?
— Isso é bom para as eleições do Legislativo. Até lá, a
Mabus Tech vai ser maior do que a Microsoft.
A batida na porta manda uma onda de adrenalina para
o estômago de Borgia.
— Deve ser Chaney. Eu ligo depois.
Borgia desliga o vídeo-comunicador enquanto o
presidente entra.
— Bom dia, Pierre. Pronto pra coletiva?
— Sim, senhor.
— Que bom. Ah, antes de irmos para o jardim, quero
que conheça alguns cavalheiros. Eles vão te
acompanhar no evento de hoje. — Chaney abre a
porta, deixando entrar um homem de terno escuro e
dois policiais armados no escritório de Borgia.
— Este é o agente especial David Tierney, do FBI.
— Sr. Borgia, está preso por...
O queixo de Borgia cai quando os policiais puxam-lhe
os braços para trás e o algemam.
— Que história é essa?
— Conspiração para cometer homicídio. Outras
acusações serão feitas. Você tem o direito de ficar
calado...
— Isso é loucura!
Os olhos de guaxinim estão chispando.
— Agente Tierney, Mick Gabriel ficou preso por
quase 12 anos. Quanto tempo acha que podemos
manter o ex-secretário de Estado na cadeia?
Tierney sorri.
— Com todos os crimes que ele cometeu? Acho que
dá pra fazer até mais do que isso.
Os dois policiais arrastam Borgia, chutando e
gritando, para fora do escritório.
Chaney sorri.
— Passem com ele pelo púlpito para a imprensa
poder tirar umas fotos. E não se esqueçam de virar o
olho bom dele para as câmeras.
21 DE MARÇO DE 2013
BOCA RATON, FLÓRIDA
A limusine preta vira para o sul na Route 441, a
caminho do Centro Médico West Boca. No banco de
trás, Dominique Vazquez aperta a mão de Edie en-
quanto ela assiste ao noticiário na pequena TV.
"... e assim, cientistas e arqueólogos continuam intrigados,
sem saber por que, pela primeira vez em mais de mil anos, a
sombra da serpente emplumada não apareceu na balaustrada
setentrional da pirâmide de Kukulcán hoje, no equinócio da
primavera. Mais uma vez, Alison Kieras para o Channel 7
News, falando ao vivo de Chichén Itzá."
Edie desliga o aparelho quando a limusine estaciona
no centro médico. Um dos guarda-costas armados
abre a porta de trás, ajudando Dominique e sua mãe a
saírem do carro.
— Você parece bem alegrinha hoje.
Dominique sorri.
— Posso senti-lo.
— Sentir quem?
— O Mick. Ele está vivo. Não me pergunte como,
mas sinto a presença dele no meu coração.
Edith a acompanha para dentro do hospital, achando
melhor não dizer nada.
Dominique está deitada sobre a mesa de exames,
olhando para o monitor enquanto o médico passa o
sensor pelo seu ventre inchado. Edie aperta a mão
dela quando o som dos batimentos cardíacos
acelerados sai da máquina.
— Aí está a cabeça de um... e aí está o outro feto.
Tudo parece ir muito bem. — O médico limpa o gel
da sua barriga com um pano úmido. — E então, sra.
Gabriel, quer saber o sexo dos seus gêmeos?
Dominique vira para Edie, com os olhos rasos d'água.
— Eu já sei, doutor. Eu já sei.
Psicopata americano que matou mais de trinta mulheres na década de 1970. Foi executado na
cadeira elétrica em 24 de janeiro de 1989, aos 42 anos. (N. do T.)
O livro foi escrito em 2001, sete anos antes de Barack Obama ser eleito presidente dos Estados
Unidos. (N. do E.)
Subsolo permanentemente
congelado que existe nas
regiões polares, e localmente
em outras áreas de clima
gélido. (N. do T.)
Laser Químico Avançado de
Espectro Infravermelho Médio.
(N. do T.)
Sistema Aéreo de Controle e
Alerta. (N. do T.)
Míssil Tomahawk de Ataque
Terrestre. (N. do T.)
Lançamento Gênesis do Conhecimento O Domínio - Steve Alten links ao final da mensagem digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia Sinopse: Por 32 anos. o arqueólogo Julius Gabriel estudou a fundo o calendário maia; um enigma místico que prevê uma data precisa para o fim do mundo: 21 de dezembro de 2012. Ele acredita que ainda há tempo para reverter a previsão do Apocalipse. Para isso, é preciso entender qual é a sua razão de ser, a partir de peças-chave espalhadas pelo mundo, misteriosas e imponentes: A Grande Pirâmide de Gizé, no Egito. O monolito de Stonehenge, na Inglaterra. Os gigantescos desenhos nas encostas de Nazca, no Peru. O templo de Angkor Wat, no Camboja. As pirâmides do Solem Teotihuacáne de Kukulcánem Chichén Itzá, no México. Perseguido e ridicularizado, Julius morre antes de conseguir seu intuito. E somente seu filho, Michael, que está internado numa instituição psiquiátrica, poderá impedir a aniquilação da raça humana.
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