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Lançamento Gênesis do Conhecimento - O Jardim de Cimento - Ian McEwan


IAN MCEWAN

O JARDIM DE CIMENTO


Tradução Jorio Dauster


Parte Um

NÃO MATEI MEU PAI, mas às vezes tinha a impressão de que o
havia ajudado a ir desta para a melhor. E, não fosse por ter
coincidido com um evento marcante em minha evolução
física, sua morte pareceu insignificante quando comparada
ao que veio depois. Minhas irmãs e eu conversamos sobre
ele na semana seguinte à sua morte, e Sue sem dúvida
chorou quando os enfermeiros da ambulância o levaram
envolto num cobertor de um vermelho muito vivo. Ele era
um homem de saúde precária, irascível e obsessivo, com
mãos e rosto amarelados. Só estou contando a historinha da
morte dele para explicar como aconteceu de minhas irmãs e
eu termos uma quantidade tão grande de cimento à nossa
disposição.
No começo do verão, quando eu tinha catorze anos, um
caminhão parou diante de nossa casa. Eu estava sentado no
degrau da frente relendo uma revista em quadrinhos. O
motorista e outro homem se aproximaram. Ambos estavam
cobertos de um pó fino e esbranquiçado que lhes dava uma
aparência fantasmagórica. Assoviavam com estridência duas
melodias totalmente distintas. Fiquei de pé e escondi a
revista. Gostaria de estar lendo a página de turfe do jornal de
meu pai ou os resultados do futebol.
"Cimento?", disse um deles. Enganchei os polegares nos
bolsos da calça, transferi todo o peso do corpo para uma
perna e apertei um pouco os olhos. Eu queria dizer algo
curto e preciso, mas não tinha certeza de haver entendido
bem a pergunta. Demorei demais, porque o sujeito que havia
falado ergueu os olhos para o céu e, plantando as mãos nas
cadeiras, concentrou sua atenção na porta da frente. Ela se
abriu e meu pai saiu, mordendo o cachimbo e aparando uma
prancheta contra o quadril.


"Cimento", o homem disse de novo, sua voz agora infle-
tindo para baixo. Meu pai concordou com a cabeça. Enfiei a
revista dobrada no bolso de trás da calça e segui os três até o
caminhão. Meu pai ficou na ponta dos pés a fim de olhar
para dentro, tirou o cachimbo da boca e sacudiu outra vez a
cabeça num gesto afirmativo. O homem que ainda não havia
falado golpeou violentamente com a mão um pino de aço
que, ao se desprender, abriu a lateral com estrondo.
Empilhados dois a dois, bem juntinhos, os sacos de cimento
ocupavam todo o chão da caçamba. Meu pai os contou,
olhou para a prancheta e disse: "Quinze". Os dois homens
grunhiram. Eu gostava desse tipo de conversa. Também
disse a mim mesmo: "Quinze". Cada um dos homens pôs um
saco nas costas e voltamos pelo caminho em direção à casa,
eu agora à frente, seguido por meu pai. Contornando a casa,
ele apontou com o tubo molhado do cachimbo para a
abertura por onde o carvão era entregue. Os homens
levantaram com esforço os sacos dos ombros e os jogaram
no porão, voltando ao caminhão para apanhar outros. Meu
pai fez uma anotação na prancheta com um lápis preso a ela
por um barbante. Ficou se balançando sobre os pés
enquanto esperava. Encostei-me na cerca. Eu não sabia para
que iria servir o cimento, mas não queria ser excluído
daquele intenso trabalho coletivo caso demonstrasse minha
ignorância. Também contei os sacos e, quando tudo acabou,
me postei junto ao cotovelo de meu pai enquanto ele
assinava o recibo de entrega. Então, sem dizer uma única
palavra, ele voltou para dentro de casa.
A noite meus pais brigaram por causa dos sacos de cimento.
Minha mãe, que era uma pessoa pacata, estava furiosa.
Queria que meu pai devolvesse tudo. Tínhamos acabado de
jantar. Enquanto mamãe falava, meu pai raspava com o
canivete a crosta preta do fornilho do cachimbo, deixando-a
cair sobre o prato de comida que mal tocara. Ele sabia como
usar o cachimbo contra ela. Ela estava dizendo como o
dinheiro andava curto e que Tom em breve precisaria de
roupas novas para começar a frequentar a escola. Ele
recolocou o cachimbo entre os dentes como se fosse parte
integral de sua anatomia e a interrompeu para dizer que a
devolução dos sacos estava "fora de questão" e que chegava
de conversa, lendo visto com meus próprios olhos o
caminhão, os pesados sacos e os homens que os haviam
trazido, tive a impressão de que papai estava certo. Mas
como ele pareceu ridículo e arrogante ao tirar o cachimbo
da boca e, segurando-o pelo fornilho, apontar o tubo negro
na direção da minha mãe! Ela ficou ainda mais irritada, a voz
embargada pela exasperação. Julie, Sue e eu escapamos para
o quarto de Julio no andar de cima e fechamos a porta.
Através do assoalho nos chegavam as variações no tom de
voz de minha mãe, mas não conseguíamos distinguir as
palavras.
Sue deitou-se na cama, sufocando uma risadinha com os nós
dos dedos enfiados na boca, enquanto Julie empurrava uma
cadeira contra a porta. Juntos, num instante tiramos as
roupas de Sue, nossas mãos se tocando ao puxarmos para
baixo suas calcinhas. Sue era bem magricela. A pele parecia
grudada às costelas e a dura crista muscular das nádegas
assemelhava-se curiosamente a suas escápulas. Uma tênue
pelugem alourada crescia entre suas coxas. Na brincadeira,
Julie e eu éramos cientistas examinando um espécime
extraterrestre. De um lado e do outro do corpo nu,
trocávamos breves comentários com sotaque alemão. Lá de
baixo vinha o zumbido cansado e insistente da voz de nossa
mãe. As maçãs protuberantes do rosto de Julie tornavam
seus olhos mais fundos e lhe davam o ar de um raro animal
selvagem. Sob a luz elétrica, os olhos eram negros e grandes.
A linha suave de sua boca só era interrompida por dois
dentes frontais, e ela precisava fazer beicinho para ocultar o
sorriso. Eu morria de vontade de examinar minha irmã mais
velha, mas a brincadeira não permitia isso.
"Porr favorr." Pusemos Sue de lado e depois de bruços.
Passamos as unhas por suas costas e coxas. Com uma
lanterna, olhamos dentro da sua boca e entre as pernas, lá
encontrando a florzinha feita de pele.
"Que lhe parrece isto, Herr Doutor?" Julie acariciou a flor
com um dedo molhado, e um pequeno tremor percorreu a
espinha ossuda de Sue. Observei atentamente. Molhei meu
dedo e o fiz deslizar por cima do dedo de Julie.
"Nada de sério", ela disse finalmente, fechando a fenda com
o indicador e o polegar. "Mas vamos observarr como vai
evoluirr, ja?" Sue implorou que continuássemos. Julie e eu
nos entreolhamos com ar de sabidos, sem saber nada.
"É a vez de Julie", eu disse.
"Não", disse ela como sempre. "Agora é você." Ainda deitada
de costas, Sue nos implorou de novo. Atravessei o quarto,
peguei sua saia e joguei para ela.
"Fora de questão", eu disse através de um cachimbo
imaginário. "Fim de conversa." Tranquei-me no banheiro e
sentei na borda da banheira com as calças caídas em volta
dos tornozelos. Pensei nos dedos morenos de Julie entre as
pernas de Sue enquanto fazia chegar minha breve e seca
pontada de prazer. Continuei curvado sobre as pernas depois
que o espasmo passou e me dei conta de que, fazia tempo, as
vozes se tinham calado no andar de baixo.
Na manhã seguinte, fui ao porão com Tom, meu irmão mais
novo. Era uma área grande, dividida em vários aposentos
sem propósito definido. Tom grudou-se em mim enquanto
descíamos os degraus de pedra. Ele ouvira falar dos sacos de
cimento e agora queria vê-los. A entrada de carvão dava no
aposento mais espaçoso, e os sacos estavam espalhados de
qualquer maneira por cima do carvão que havia sobrado do
inverno anterior. Encostado numa das paredes havia um
maciço baú de folha de flandres, que tinha algo a ver com a
curta passagem de meu pai pelo exército e fora usado
durante algum tempo para guardar o coque separado do
carvão. Tom queria ver o que havia dentro dele e por isso
ergui a tampa. O interior estava vazio e enegrecido, tão
escuro na luz empoeirada do porão que não se via o fundo.
Acreditando que estava diante de um buraco profundo, Tom
agarrou a beira do baú e gritou para dentro, esperando ouvir
o eco. Como nada aconteceu, pediu para ver os outros
aposentos. Levei-o ao que ficava mais próximo da escada. A
porta estava presa precariamente às dobradiças e, quando a
empurrei, soltou-se por completo. Tom riu e foi por fim
agraciado com um eco vindo do aposento de que havíamos
acabado de sair. Onde estávamos, acumulavam-se caixas de
papelão com roupas emboloradas que eu nunca tinha visto.
Tom descobriu alguns de seus antigos brinquedos.
Desdenhosamente, virou-os de borco com o pé e disse que
eram coisa de bebezinhos. Empilhado atrás da porta havia
um velho berço de bronze em que todos nós havíamos
dormido em algum momento. Como Tom queria que eu o
armasse, disse-lhe que aquilo também era coisa de
bebezinhos.
Ao pé da escada nos encontramos com meu pai, que descia.
Queria que eu o ajudasse com os sacos. Fomos atrás dele de
volta para o aposento maior. Tom tinha medo do pai e ficou
bem atrás de mim. Julie me havia dito recentemente que,
como papai era agora um semi-inválido, ele teria de
competir com o Tom pelos cuidados da mamãe. Tratava-se
de uma idéia extraordinária, e sobre ela refleti um bom
tempo. Tão simples e tão estranho: um garotinho e um
adulto competindo. Mais tarde, perguntei a Julie quem
venceria e, sem hesitar, ela respondeu: "Tom, obviamente, e
papai vai descontar nele".
E de fato ele era muito rigoroso com Tom, sempre o
repreendendo. Usava mamãe contra ele assim como usava o
cachimbo contra ela, "Não fale desse jeito com sua mãe", ou
"Sente-se direito quando sua mãe estiver falando com você".
Ela aturava tudo isso em silêncio. Se papai se afastasse, ela
dava um breve sorriso para Tom ou passava os dedos por seu
cabelo. Tom agora se postara longe da porta, observando
enquanto nós dois arrastávamos cada saco pelo chão e os
arrumávamos cuidadosamente em duas fileiras ao longo da
parede. Devido a seu ataque cardíaco, papai estava proibido
de fazer esse tipo de trabalho, mas me certifiquei de que ele
pegava tanto peso quanto eu.
Quando nos curvávamos para pegar as extremidades do saco,
eu sentia que ele se demorava, esperando que eu fizesse
mais força. Mas eu dizia "Um, dois, três..." e só começava a
me esforçar de verdade quando via seu braço retesado. Eu só
concordaria em fazer mais se ele me pedisse com todas as
letras.


Ao terminarmos, demos um passo para trás e, como fazem
todos os trabalhadores, contemplamos o serviço. Papai
apoiou-se com uma das mãos na parede, respirando com
dificuldade. De propósito, respirei tão levemente quanto
pude através do nariz, embora isso me deixasse algo tonto.
Mantive as mãos nos quadris num gesto blasé. "Para que
você quer tudo isso?", senti-me então no direito de
perguntar.
Entre uma e outra respiração ofegante, ele conseguiu dizer:
"Para... o... jardim". Aguardei maiores esclarecimentos, mas,
após uma pausa, ele se voltou para ir embora. Na porta,
pegou o braço de Tom. "Olhe como estão suas mãos",
reclamou, sem se dar conta da sujeira que a mão dele estava
fazendo na camisa do menino. "Suba, trate de ir Subindo."
Piquei para trás um momento e comecei a apagar as luzes.
Ao ouvir os cliques, meu pai parou ao pé da escada e, em
tom severo, me mandou apagar todas as luzes antes de subir.
"Já estava apagando", disse com irritação. Mas ele tossia alto
ao galgar os degraus da escada.
Ele não havia cultivado seu jardim, e sim o construído
segundo planos que certas noites abria sobre a mesa da
cozinha enquanto nós espiávamos por cima de seus ombros.
Caminhos estreitos de lajes faziam curvas intrincadas para
visitar canteiros de rosas que ficavam a poucos metros de
distância. Uma trilha subia em espiral um morrinho de
pedras como se fosse uma estrada alpina. Certo dia, ele se
irritou ao ver Tom subir em linha reta o morrinho usando a
trilha como degraus de uma pequena escada.
"Suba direito", ele gritou da janela da cozinha. No topo de
uma pilha de pedras, que não media mais de um metro de
altura, havia um gramado do tamanho de uma mesa de jogo
em volta do qual havia espaço para uma única fileira de
cravos-de-defunto. Só ele chamava aquilo de jardim
suspenso. Km seu centro erguia-se uma estátua de plástico
de Pã dançando. Espalhavam--se pelo jardim degraus
surpreendentes, alguns subindo, outros descendo. Havia
também um laguinho com fundo de plástico azul. Certa vez
ele trouxe para casa num saquinho transparente dois
peixinhos dourados, comidos pelos pássaros no mesmo dia.
Os caminhos eram tão estreitos que se corria o risco de
perder o equilíbrio e cair nos canteiros de flores. Ele
escolhia as flores mais simples e simétricas. Preferia as
tulipas, que plantava com grande espaçamento. Não gostava
de arbustos, heras ou roseiras. Não admitia nada que se
entrelaçasse. Todas as casas de ambos os lados da nossa
tinham sido demolidas e, no verão, os terrenos baldios se
cobriam de ervas daninhas e suas flores. Antes de sofrer o
primeiro ataque cardíaco, ele tencionava construir um alto
muro em torno de seu mundinho especial.
Havia algumas piadas recorrentes na família, lançadas e
perpetuadas por papai. Sobre Sue, por ela ter sobrancelhas e
cílios quase invisíveis; sobre Julie, por sua ambição de ser
uma atleta famosa; sobre Tom, por fazer pipi às vezes na
cama; sobre minha mãe, por ser ruim em aritmética; sobre
mim, por causa das espinhas que começaram a pipocar nessa
época. Certa noite, no jantar, eu lhe passei um prato e ele
disse que não queria que sua comida chegasse perto demais
do meu rosto. A risada de todos foi instantânea e ritual.
Como as piadinhas desse tipo eram controladas por meu pai,
nenhuma era dirigida contra ele. Naquela noite, Julie e eu
nos trancamos no quarto dela e nos dedicamos a preencher
páginas e páginas com piadas grosseiras e já bem batidas.
Tudo que nos ocorria parecia engraçado. Rolamos da cama
para o chão, com dor no peito de tanto rir, urrando de
alegria. Do lado de fora, Tom e Sue esmurravam a porta
pedindo para entrar. Chegamos à conclusão de que nossas
melhores piadas eram do tipo que envolvia uma pergunta e
uma resposta. Muitas faziam referência à prisão de ventre do
papai. Mas sabíamos qual era o verdadeiro alvo.
Selecionamos a melhor e, após aperfeiçoá-la e treinar sua
execução, esperamos um ou dois dias. Então, no jantar, ele
se saiu com outra caçoada sobre minhas espinhas.
Aguardamos até que Tom e Sue parassem de rir. Meu
coração batia tão forte que era difícil falar com naturalidade,
num tom de conversa, como havíamos ensaiado. "Vi uma
coisa hoje no jardim que me chocou", eu disse.


"É mesmo?", perguntou Julie.
"O que foi?"
"Uma flor."
Ninguém pareceu nos ter ouvido. Tom falava consigo pró-
prio, mamãe pôs um pouco de leite na xícara e papai
continuou a passar manteiga cuidadosamente numa fatia de
pão. Quando a manteiga ia além da beirada do pão, ele a
trazia de volta com um rápido movimento da faca. Pensei
que talvez devêssemos repetir tudo em voz mais alta e olhei
para Julie por cima da mesa. Ela evitou meu olhar. Papai
acabou seu pão e foi embora. "Isso foi totalmente
desnecessário", disse mamãe.
"O que é que foi desnecessário?" Mas ela não me disse mais
nada. Não se faziam piadas com meu pai porque elas não
eram engraçadas. Ele ficava amuado. Senti-me culpado no
momento em que desejava desesperadamente me sentir
exultante. Tentei convencer Julie de nossa vitória para que
ela, por sua vez, me convencesse disso. Naquela noite
deitamos Sue entre nós, mas a brincadeira não nos deu o
menor prazer. Sue ficou entediada e se foi. Julie era
favorável a que pedíssemos desculpas, que encontrássemos
alguma forma de agradá-lo. Eu não conseguia me ver
fazendo isso, porém fiquei muito aliviado quando, dois dias
mais tarde, ele falou comigo pela primeira vez. Depois disso,
o jardim não foi mencionado por um longo tempo e, quando
ele cobria a mesa da cozinha com seus planos, ninguém mais
o acompanhava. Após o primeiro ataque ele nunca mais
trabalhou no jardim. As ervas começaram a surgir nas
fissuras das lajes, parte do morrinho de pedras desabou, o
laguinho secou. O Pã dançarino tombou de lado, partiu-se
em dois e nada foi dito. A possibilidade de que Julie e eu
fôssemos responsáveis pela desintegração me enchia de
horror e alegria.
Pouco depois do cimento chegou a areia. Um montículo
amarelo-claro ergueu-se num canto do jardim da frente.
Ficamos sabendo, provavelmente por minha mãe, que a
ideia era circundar a casa com uma superfície de concreto.
Meu pai confirmou isso certa noite.
"Vai ficar mais limpo", ele disse. "A partir de agora não vou
poder cuidar do jardim" (tocou no lado esquerdo do peito
com o cachimbo) "e isso vai impedir que os assoalhos de sua
mãe fiquem sujos de lama." Ele estava tão convencido da
sensatez de sua idéia que, mais por constrangimento que por
medo, ninguém questionou o projeto. Na verdade, a
possibilidade de contar com uma vasta área de concreto em
volta da casa me atraía. Seria um bom lugar para jogar
futebol. Imaginei helicópteros descendo ali. Acima de tudo,
misturar o concreto para cobrir o jardim depois de nivelado
era uma transgressão fascinante. Minha excitação cresceu
quando papai falou em alugar uma betoneira.
Mamãe deve tê-lo dissuadido disso, porque começamos a
trabalhar num sábado de junho com duas pás. Abrimos no
porão um dos sacos e enchemos um balde de zinco com o
pó fino e cinza claro. Meu pai então saiu para que eu lhe
passasse o balde pela abertura do carvão. Ao se abaixar, sua
silhueta ficou recortada contra o céu esbranquiçado e sem
nuvens. Ele despejou o cimento no caminho e me devolveu
o balde para que eu o reenchesse. Quando já tínhamos a
quantidade suficiente de cimento, enchi de areia um
carrinho de mão na frente da casa e a juntei ao montinho.
Ele havia decidido fazer um caminho cimentado ao lado da
casa para facilitar o transporte de areia da frente para os
fundos. Exceto pelas curtas e infreqüentes instruções que
me passou, não trocamos uma só palavra. Fiquei satisfeito
em ver que não havia necessidade de nos falarmos porque
sabíamos exatamente o que fazer e o que o outro estava
pensando. Pela primeira vez me senti à vontade junto dele.
Enquanto fui buscar água, ele ajeitou o montinho de
cimento e areia, fazendo um buraco no topo. Fiquei
encarregado de preparar a mistura enquanto ele ia
acrescentando água. Mostrou-me como apoiar o antebraço
na coxa para ganhar mais potência no movimento. Fingi que
já sabia. Quando a mistura ficou consistente, a espalhamos
no chão. Papai então se pôs de joelhos e alisou a superfície
com uma pequena tábua. Fiquei de pé atrás dele, apoiado na
pá. Ele levantou-se e se encostou na cerca, fechando os
olhos. Quando os abriu, piscou como se surpreso de ainda
estar lá, e disse: "Bem, então vamos em frente". Repetimos a
operação, o balde transitando pela abertura do carvão, o
carrinho de mão, a mistura espalhada pelo chão e alisada.
Na quarta vez, a monotonia e meus desejos contumazes
começaram a me tornar mais lento. Bocejava com
frequência e sentia as pernas fracas atrás dos joelhos. No
porão, enfiei as mãos nos bolsos da calça. Onde estariam
minhas irmãs? Por que não estavam ajudando? Entreguei um
balde cheio a meu pai e então, dirigindo-me ao contorno de
seu corpo, disse que precisava ir ao banheiro. Ele soltou um
suspiro ao mesmo tempo que estalava a língua contra o céu
da boca. No andar de cima, sabendo de sua impaciência, me
masturbei rapidamente. Como de hábito, tinha diante de
mim a imagem da mão de Julie entre as pernas de Sue. Lá de
baixo chegava o som da pá raspando no chão. Papai estava
misturando o cimento. E então aconteceu, de repente a
coisa espirrou no meu pulso e, embora eu soubesse daquilo
por causa das piadas e dos livros de biologia na escola, e
viesse aguardando que acontecesse havia muitos meses na
esperança de não ser diferente dos outros, naquele
momento me senti surpreso e emocionado. Contra os
cabelinhos macios, junto a uma mancha acinzentada de
concreto, brilhava uma pequena quantidade de líquido, não
leitoso como eu havia imaginado, mas incolor. Dei uma
lambida e não senti gosto de nada. Fiquei olhando um
tempão bem de perto, procurando ver aqueles trocinhos
com as longas caudas ondulantes. Enquanto eu olhava, o
líquido secou e se transformou numa crosta brilhante, mas
quase invisível, que se rompeu quando dobrei o pulso.
Decidi não lavar o lugar.
Lembrei-me de que papai estava esperando e desci correndo
a escada. Minha mãe, Julie e Sue conversavam de pé quando
passei por elas na cozinha. Não pareceram ter notado minha
presença. Papai estava deitado de bruços no chão, a cabeça
descansando sobre o concreto recém-espalhado. Segurava
ainda a tábua de alisar. Aproximei-me devagar, sabendo que
teria de correr para pedir ajuda. Durante vários segundos não
consegui me afastar. Fiquei olhando, absorto como estivera
alguns minutos antes. Uma leve aragem agitou uma ponta
solta de sua camisa. Logo depois houve muita atividade e
barulho. Veio uma ambulância e mamãe seguiu com meu
pai, que foi envolto num cobertor vermelho e posto numa
maca. Na sala de visitas, Sue chorava e Julie a consolava. O
rádio continuava a tocar na cozinha. Depois que a
ambulância partiu, fui lá fora ver nosso caminho. Minha
cabeça estava totalmente vazia de pensamentos quando
peguei a tábua e cuidadosamente alisei a marca que ele havia
deixado no concreto fresco e macio.

DURANTE O ANO SEGUINTE Julie treinou para entrar no time
de atletismo da escola. Ela já detinha os recordes locais para
menores de dezoito anos nas corridas de cem e duzentos
metros. Corria mais rápido do que qualquer outra pessoa que
eu conhecesse. Papai nunca a levou a sério, achava que
corrida não era coisa para garotas e, pouco antes de morrer,
recusou-se a ir conosco assistir a um evento esportivo. Nós
todos o criticamos duramente, até mamãe nos apoiou. Ele
achou graça em nossa exasperação. Talvez até tencionasse ir,
mas o deixamos sozinho e fomos curtir nossa raiva coletiva.
No dia do evento, como não o chamamos, ele se esqueceu e
com isso deixou de ver, no último mês de vida, sua filha
mais velha ser a estrela da competição. Deixou de ver as
esguias pernas bronzeadas tremeluzindo contra o fundo
verde como as pás de uma hélice, ou Tom, mamãe, Sue e eu
atravessando às carreiras a área reservada aos espectadores
para cobrir Julie de beijos quando ela ganhou a terceira
corrida. Julie frequentemente ficava em casa à noite para
lavar o cabelo e passar a ferro as pregas da saia azul-marinho
do uniforme escolar. Ela pertencia a um pequeno grupo de
alunas audaciosas que usavam anáguas brancas e engomadas
para deixar as saias mais encorpadas e rodadas quando elas
giravam sobre os calcanhares. Usava meias de seda e culotes
pretos, coisas que eram rigorosamente proibidas. Vestia uma
blusa branca limpa a cada dia de aula. Em certas manhãs,
amarrava os cabelos atrás da nuca com uma fita branca de
tecido brilhante. Tudo isso exigia uma longa preparação à
noite. Eu costumava ficar sentado por perto, observando-a
diante da tábua de passar, o que lhe dava nos nervos.
Julie tinha namorados na escola, mas na verdade os manti-
nha à distância. Havia na família uma regra não escrita
segundo a qual nenhum de nós jamais trazia os amigos para
casa. Suas melhores amigas eram as garotas mais rebeldes, as
que davam o que falar. Às vezes eu a via na escola, no fim
de algum corredor, cercada de um grupinho barulhento.
Mas Julie ficava na dela, dominando o grupo e aumentando
seu cartaz por conta de uma serenidade desconcertante,
intimidadora. Eu gozava de certo prestígio na escola por ser
seu irmão, mas ela nunca se dirigia a mim ou dava sinal de
que notava minha presença.
Por volta dessa época, as espinhas se espalharam tanto pelo
meu rosto que abandonei todos os rituais de higiene pessoal.
Parei de lavar a cara ou o cabelo, cortar as unhas ou tomar
banho. Deixei de escovar os dentes. Com seu jeito tranquilo,
minha mãe me censurava o tempo todo, mas agora eu me
sentia orgulhosamente fora de seu controle. Se as pessoas de
fato gostarem de mim, eu dizia, vão me aceitar como eu sou.
De manhã cedinho, mamãe entrava no meu quarto e
deixava roupas limpas no lugar das sujas. Nos fins de semana,
eu ficava na cama até de tarde, saindo depois para longos
passeios solitários. De noite, observava Julie, ouvia o rádio
ou simplesmente ficava sentado sem fazer nada. Não tinha
nenhum amigo de verdade na escola.
Olhava-me com frequência nos espelhos, às vezes por uma
hora. Certa manhã, pouco antes de completar quinze anos,
estava procurando por meus sapatos no imenso e escuro hall
de entrada quando me vi no espelho de corpo inteiro
encostado à parede. Papai falava sempre em pendurá-lo.
Raios de luz coloridos pelo vitral no alto da porta da frente
iluminavam alguns fios desgarrados de meus cabelos. A
semi-escuridão amarelada obscurecia os caroços e buracos
na pele do meu rosto. Senti-me nobre e especial. Olhei
fixamente para minha própria imagem até que ela começou
a se dissociar de mim e paralisar-me com seu olhar. Ela se
afastava e se aproximava de mim a cada batida do meu
coração, um halo sombrio pulsava acima de sua cabeça e de
seus ombros. "E duro", ela me disse. "Duro." E então, em
voz mais alta: "Merda... mijo... cu". Da cozinha, numa voz
cansada, mamãe pronunciou meu nome em admoestação.
Peguei uma maçã na fruteira e fui para a cozinha. Encostei-
me na porta para ver a família tomar o café da manhã,
jogando a maçã para o alto e a aparando com uma batida seca
na palma da mão. Julie e Sue liam livros escolares enquanto
comiam. Exausta após mais uma noite insone, mamãe não
estava comendo. Seus olhos fundos e úmidos tinham uma
tonalidade acinzentada. Soltando guinchos de irritação, Tom
tentava puxar sua cadeira para perto da dela. Queria sentar-se
em seu colo, mas ela se queixou de que ele era pesado
demais. Ajeitou a cadeira para Tom e correu os dedos por
seus próprios cabelos.
A questão era se Julie iria para a escola em minha companhia
ou não. Costumávamos ir juntos todas as manhãs, mas agora
ela preferia não ser vista comigo. Continuei a jogar a maçã
para o alto, imaginando que aquilo incomodava a todos eles.
Mamãe me olhava fixamente.
"Vamos, Julie", eu disse por fim. Julie reencheu a xícara de
chá.
"Tenho coisas para fazer", ela disse com firmeza. "Vai você."
"E você, Sue?" Minha irmã mais moça, sem levantar os olhos
do livro, murmurou: "Não vou agora".
Mamãe me lembrou carinhosamente que eu não tinha
tomado o café da manhã, mas a essa altura já estava no hall.
Bati a porta da frente com força e atravessei a rua. Houve
tempo em que nossa casa era cercada de outras residências.
Agora se erguia em meio a um imenso terreno baldio onde
cresciam urtigas em volta de pedaços retorcidos de folhas de
flandres. As outras casas tinham sido demolidas a fim de
abrir espaço para uma auto-estrada que nunca foi construída.
Às vezes os garotos dos blocos de apartamentos vinham
brincar perto de nossa casa, mas em geral seguiam mais
adiante, até onde ficavam as casas pré-fabricadas, hoje
vazias, para derrubar as paredes com pontapés e pegar
qualquer coisa que pudesse lhes interessar. Certa vez
puseram fogo numa dessas casas, porém ninguém ligou para
isso. Nossa casa era grande e antiga. Fora construída para se
parecer com um castelo, com grossas paredes, janelas
atarracadas e ameias encimando a porta da frente. Vista do
outro lado da rua, parecia o rosto de alguém se
concentrando, tentando recordar-se de algo.
Ninguém nunca vinha nos visitar. Nem mamãe nem papai,
quando vivo, tinham amigos fora do círculo familiar. Ambos
eram filhos únicos e todos os meus avós já haviam morrido.
Minha mãe tinha parentes distantes na Irlanda que não via
desde criança. Tom possuía uns dois amiguinhos com quem
às vezes brincava na rua, porém nunca deixamos que os
trouxesse para dentro de casa. Agora, nem o leiteiro passava
mais em nossa rua. Pelo que eu me lembrava, as últimas
pessoas a visitar a casa tinham sido os enfermeiros da
ambulância que levou meu pai.
Fiquei lá por alguns minutos, pensando se deveria voltar e
dizer alguma coisa conciliatória a mamãe. Estava prestes a
seguir caminho quando a porta da frente se abriu e Julie
esgueirou-se para fora. Usava a capa de chuva escolar de
gabardine preta, com o cinto bem apertado e a gola virada
para cima. Voltou-se rapidamente para pegar a porta antes
que batesse e, acompanhando o movimento de seu corpo, a
capa, a saia e a anágua rodopiaram fazendo o efeito desejado.
Ainda não me vira. Observei-a enquanto jogava a mochila
por cima do ombro. Julie era capaz de correr como uma
gazela, mas andava como uma sonâmbula, com passos muito
lentos, costas retas, sem se desviar um centímetro do rumo.
Frequentemente parecia estar perdida em pensamentos,
mas, quando lhe perguntávamos, sempre jurava que não
estava pensando em nada.
Ela só me viu depois que atravessou a rua e então, sem dizer
uma palavra, fez um trejeito de boca que era um misto de
sorriso e beicinho. Seus silêncios nos davam um pouco de
medo, mas também nesse caso ela protestava, dizendo num
tom melodioso de surpresa que ela é que tinha medo de nós.
Na verdade, Julie era tímida — dizia-se que era incapaz de
falar na classe sem corar —, porém tinha uma força serena e
a capacidade de insular-se, vivendo no mundo à parte
daqueles que são, e em segredo sabem que são,
excepcionalmente bonitos. Caminhei a seu lado enquanto
ela olhava diretamente à frente, as costas eretas como uma
régua, os lábios franzidos de leve.
Cem metros adiante nossa rua desembocava em outra onde
ainda restavam algumas casas geminadas. As demais, bem
como as casas na rua perpendicular seguinte, haviam sido
demolidas para dar lugar a quatro blocos de apartamentos de
vinte andares. Cada bloco se levantava em meio a um
imenso pátio de asfalto cheio de rachaduras das quais
brotavam ervas daninhas. Os edifícios pareciam ser mais
velhos e mais tristes do que nossa casa. Nas paredes laterais
de concreto viam-se manchas colossais, quase negras,
causadas pela chuva. Essas manchas nunca secavam. Quando
chegamos ao fim de nossa rua, dei um bote no pulso dela e
disse: "Vou carregar sua mochila, senhorita". Julie afastou o
braço e continuou andando. Dancei de costas à frente dela.
Seus silêncios contemplativos me transformavam numa
peste.
"Quer brigar? Quer apostar uma corrida?" Julie baixou os
olhos e continuou no seu caminho. Perguntei numa voz
normal: "Que que há de errado?".
"Nada."
"Você está chateada?"
"Estou."
"Comigo?"
"É."
Fiz uma pausa antes de voltar a falar. Julie já estava saindo de
sintonia, absorta em alguma visão interna povoada por sua
raiva. Eu disse: "Por causa da mamãe?". Estávamos chegando
à altura do primeiro bloco e podíamos ver um grupo de
garotos de outra escola no vestíbulo do edifício, reunidos
em volta do poço do elevador. Encostados nas paredes, em
silêncio, certamente esperavam alguém que iria descer.
"Então vou voltar", eu disse. Parei. Julie deu de ombros e fez
um movimento repentino com a mão, deixando claro que
eu ia ficar para trás.
De volta à nossa rua, encontrei-me com Sue. Ela caminhava
com um livro aberto diante dos olhos. Sua mochila estava
presa acima dos ombros. Tom seguia alguns passos atrás. A
julgar por sua expressão, tinha havido outra cena para fazê-lo
sair de casa. Sentia-me mais à vontade com Sue. Ela era dois
anos mais moça que eu e, se mantinha segredos, eles não me
intimidavam. Certa vez vi em seu quarto uma loção que ela
comprara para "dissolver" as sardas. Tinha um rosto longo e
delicado, lábios sem cor e olhos pequenos que davam a
impressão de estar cansados, com cílios pálidos e quase
invisíveis. Com sua testa alta e cabelos muito finos, às vezes
realmente parecia ter vindo de outro planeta. Não paramos,
mas, ao nos cruzarmos, Sue levantou os olhos do livro e
disse: "Você vai chegar atrasado". Resmunguei: "Esqueci
uma coisa". As voltas com seu terror pela escola, Tom nem
reparou em mim. Compreendi que Sue o levava à escola
para poupar mamãe da caminhada, o que aumentou meu
sentimento de culpa e me fez andar mais depressa.
Contornei a casa para chegar ao jardim dos fundos, de onde
vi minha mãe através de uma das janelas da cozinha. Estava
sentada à mesa tendo diante de si os restos de nosso café da
manhã e quatro cadeiras vazias. Em sua frente estava o prato
de mingau que eu nem havia tocado. Repousava uma das
mãos no colo, a outra, sobre a mesa; o braço dobrado parecia
pronto a apoiar sua cabeça. Bem próximo estava o vidro
preto e atarracado que continha suas pílulas. Em seu rosto se
mesclavam os traços de Julie e Sue, como se mamãe é que
fosse filha delas. A pele era lisa e bem esticada sobre as
delicadas maçãs do rosto. Todas as manhãs, ela pintava nos
lábios arcos perfeitos em carmesim. Mas seus olhos,
circundados por uma pele escura e enrugada qual caroço de
pêssego, eram tão profundamente encravados no crânio que
pareciam ver o mundo de um poço sem fim. Ela alisou os
cachos densos e negros que lhe cobriam a nuca. Às vezes eu
encontrava um punhado de seus cabelos boiando de manhã
na privada. Sempre puxava a descarga antes de usar o vaso.
Ela então se levantou e, de costas para mim, começou a
limpar a mesa.
Quando tinha oito anos, voltei da escola certa manhã
fingindo que estava muito doente. Mamãe foi
condescendente comigo. Fez-me vestir o pijama, levou-me
para o sofá na sala de visitas e cobriu-me com uma manta.
Sabia que eu tinha voltado para monopolizar sua atenção na
ausência de papai e de minhas duas irmãs. Talvez tivesse
ficado feliz de ter alguém lhe fazendo companhia durante o
dia. Fiquei lá deitado até o fim da tarde e a observei
enquanto trabalhava, apurando os ouvidos quando ela ia para
outras partes da casa. Impressionou-me o fato óbvio de sua
vida independente. Ela continuava a existir mesmo quando
eu estava na escola. Essas eram as coisas que fazia. Todos
continuavam a existir. Naquela época, essa revelação foi
memorável mas não dolorosa. Agora, olhando-a enquanto se
curvava para jogar as cascas de ovo na lata de lixo, o mesmo
reconhecimento, em toda a sua simplicidade, me transmitia
um misto insuportável de tristeza e ameaça. Ela não era uma
invenção minha, ou de minhas irmãs, embora eu
continuasse a inventá-la e ignorá-la. Ao mexer numa garrafa
de leite vazia, ela de repente se virou na direção da janela.
Recuei velozmente. Enquanto corria pelo caminho que
ladeava a casa, ouvi-a abrir a porta dos fundos e chamar meu
nome. Chamou-me outra vez quando comecei a descer a
rua. Corri o tempo todo, imaginando ouvir sua voz em meio
ao som de meus pés martelando na calçada.
"Jack...Jack."
Alcancei Sue no momento em que ela passava pelo portão
da escola.

Eu SABIA QUE JÁ era de manhã e sabia que se tratava de um
pesadelo. Poderia acordar de todo se tivesse força de
vontade suficiente. Tentei mover as pernas, tocar um pé no
outro. A mais leve sensação bastaria para me situar no
mundo que existia fora do meu sonho. Eu estava sendo
seguido por pessoas que não conseguia ver. Traziam uma
caixa e queriam que eu visse o que havia lá dentro, mas
continuei correndo. Parei por um instante e tentei de novo
mover as pernas ou abrir os olhos. Porém alguém se
aproximava com a caixa, não havia mais tempo, eu tinha de
continuar correndo. Então nos encontramos frente a frente.
A caixa de madeira, com dobradiças na tampa, talvez tivesse
servido para guardar charutos caros. A tampa estava aberta
uns dois centímetros, escuro demais para ver lá dentro.
Corri para ganhar tempo e dessa vez consegui abrir os olhos.
Antes que se fechassem, vi meu quarto, a camisa do
uniforme jogada numa cadeira, um sapato de borco no chão.
A caixa reapareceu. Eu sabia que lá dentro era mantida
prisioneira uma criaturinha que fedia horrivelmente. Tentei
chamar alguém, esperando que minha própria voz me
despertasse. Nenhum som saiu de minha garganta, eu não
era nem capaz de mover os lábios. A tampa da caixa estava
sendo levantada de novo. Eu não podia dar meia-volta e
fugir porque já tinha corrido a noite inteira, agora não me
restava alternativa senão ver o que havia lá dentro. Com
grande alívio ouvi a porta do quarto se abrir e passos que se
aproximavam. Alguém se sentou na beira da minha cama,
bem junto de mim, e eu já podia abrir os olhos.
Minha mãe havia se sentado de tal modo que meus braços
ficaram presos debaixo das cobertas. O despertador marcava
oito e meia, eu ia chegar atrasado na escola. Mamãe já devia
estar acordada havia umas duas horas. Cheirava ao sabonete
cor-de-rosa que costumava usar. "Já é hora de termos uma
conversa, você e eu", ela disse. Cruzou as pernas e apoiou as
mãos nos joelhos. Suas costas, como as de Julie, eram
perfeitamente retas. Senti-me em desvantagem por estar
deitado e fiz força para sentar-me. Mas ela não deixou:
"Fique quieto um minuto".
"Vou me atrasar."
"Fique quieto um minuto", ela repetiu, dando grande ênfase
à última palavra, "preciso falar com você." Meu coração
disparou, fiquei olhando para o teto acima da cabeça dela. Eu
nem tinha saído de todo do pesadelo. "Olhe para mim", ela
disse, "quero ver seus olhos." Olhei nos olhos dela, que
examinavam ansiosamente meu rosto. Neles vi meu próprio
reflexo distorcido.
"Você viu seus olhos num espelho ultimamente?", ela
perguntou.
"Não", menti.
"Suas pupilas estão muito dilatadas, você sabia?" Neguei com
a cabeça. "Você acaba de acordar e está com essas olheiras
enormes." Ela fez uma pausa. Lá de baixo chegavam os sons
de minhas irmãs tomando o café da manhã. "E sabe qual é a
razão disso?" Sacudi outra vez a cabeça, e ela fez nova pausa.
Curvou-se para a frente e falou num tom de urgência: "Você
sabe do que eu estou falando, não sabe?". Meu coração
ribombou nos ouvidos.
"Não", respondi.
"Sabe, sim, meu rapaz. Sabe muito bem do que é que eu
estou falando, dá para se ver que sabe."
Eu não tinha outra escolha senão confirmar isso com meu
silêncio. Aquela severidade não combinava nem um pouco
com ela: havia um quê falso e teatral em sua voz, a única
forma pela qual mamãe era capaz de transmitir a difícil
mensagem.
"Não pense que não sei o que está acontecendo. Você está
se tornando um homenzinho e fico muito orgulhosa disso...
há coisas que seu pai diria a você..." Desviamos os olhos,
ambos sabíamos que aquilo não era verdade. "Crescer é
difícil, mas, se você continuar desse jeito, vai se fazer um
grande mal, vai fazer mal ao seu corpo nessa fase de
crescimento." "Fazer mal...", ecoei.
"Isso mesmo, olhe para você", ela continuou num tom mais
brando. "Não consegue se levantar de manhã, passa o dia
cansado, vive mal-humorado, não se lava ou muda de roupa,
é agressivo com suas irmãs e comigo. E nós dois sabemos o
porquê disso. Toda vez..." A frase ficou suspensa no ar e, em
vez de olhar para mim, ela se concentrou nas mãos
entrelaçadas no colo. "Toda vez... toda vez que você faz isso,
são necessárias duas garrafinhas de sangue para substituir o
que perdeu." Encarou-me com um olhar desafiador.
"De sangue", eu sussurrei. Ela se curvou e me deu um beijo
de leve no rosto.
"Você não se aborrece de eu dizer isso, não é?"
"Não, não", respondi.
Ela se levantou.
"Um dia, quando você tiver vinte e um anos, vai olhar para
trás e me agradecer por eu ter dito o que estou dizendo."
Concordei com a cabeça. Ela inclinou-se por cima de mim,
acariciou meus cabelos e saiu do quarto rapidamente.
Minhas irmãs e eu já não brincávamos juntos na cama de
Julie. Tudo acabou pouco depois da morte de papai, embora
não por causa disso. Sue se tornou relutante. Talvez tivesse
aprendido algo na escola e ficou envergonhada de nos deixar
fazer aquelas coisas com ela. Nunca soube ao certo, pois não
era um assunto que pudéssemos discutir. E Julie agora estava
mais distante. Usava maquiagem e tinha uma porção de
segredos. Na escola, na fila do almoço, ouvi-a uma vez se
referir a mim como "meu irmãozinho" — e fiquei danado da
vida. Julie tinha longas conversas com mamãe na cozinha, as
quais eram interrompidas caso Tom, Sue ou eu entrássemos
de repente. Tal como minha mãe, ela fazia comentários
sobre meu cabelo ou minhas roupas, mas não de forma
carinhosa, e sim com desprezo.
"Você fede", ela costumava dizer sempre que tínhamos
alguma briga. "Realmente fede. Por que nunca troca de
roupa?" Esse tipo de comentário me deixava furioso.
"Vai se foder", eu dizia com ódio, pegando-a pelos tornoze-
los para fazer cócegas até ela morrer de exaustão.
"Mãe", ela gritava, "mãe, olha o Jack!" E, onde quer que
estivesse, mamãe dizia em voz cansada: "Jack...".
Na última vez em que fiz cócegas em Julie, esperei até que
mamãe estivesse no hospital. Calcei um par de luvas de
jardim enormes e sujas, usadas por papai, seguindo-a até seu
quarto. Ela estava sentada na pequena escrivaninha que
usava para fazer os deveres de casa. Parei no umbral da porta
com as mãos atrás das costas.
"O que é que você quer?", ela disse com a maior repugnân-
cia. Tínhamos brigado lá embaixo.
"Vim te pegar", eu disse simplesmente, avançando as mãos
enormes na direção dela, os dedos bem abertos. Aquela
visão por si só a deixou enfraquecida. Ela tentou se pôr de
pé, mas caiu de volta na cadeira.
"Você para", ela ficou repetindo em meio a risadinhas cada
vez mais nervosas. "Para com isso!"
As mãos imensas ainda estavam a certa distância e ela já se
contorcia na cadeira, guinchando "Não... não... não".
"Sim, chegou a sua hora", eu disse, puxando-a pelo braço
para a cama. Ela ficou deitada de costas, os joelhos erguidos,
as mãos protegendo a garganta. Não ousou tirar os olhos das
mãos enormes que eu mantinha acima dela, prontas a cair
sobre a presa.
"Vão embora", ela sussurrou. Na hora achei engraçado que
se dirigisse às luvas e não a mim.
"Elas vieram te pegar", eu disse, baixando um pouco mais as
mãos. "Mas ninguém sabe onde começarão o ataque." Num
gesto débil ela procurou agarrar-me os pulsos, mas enfiei as
mãos por baixo de seu corpo e as luvas se fecharam em
torno do tórax, chegando até as axilas. Enquanto Julie ria
sem controle, lutando para respirar, também comecei a rir,
encantado com meu poder. Agora já havia uma ponta de
pânico em suas contorções. Ela não conseguia inspirar,
tentava dizer, por favor, mas, na minha euforia, eu era
incapaz de parar. O ar ainda escapava de seus pulmões em
pequenos cacarejos. Uma das mãos repuxava o material
grosseiro da luva. Quando tentei obter uma posição melhor
para segurá-la, senti um líquido quente se espalhando por
meu joelho. Horrorizado, pulei da cama e arranquei as luvas.
Os últimos risos de Julie deram lugar a um choro cansado.
Ela ficou deitada de costas, as lágrimas correndo pela ravina
das maçãs do rosto e se perdendo nos cabelos. O quarto
cheirava levemente a urina. Peguei as luvas no chão. Julie
virou a cabeça.
"Vá embora", ela disse numa voz desanimada.
"Desculpe", eu disse.
"Vá... embora."
Tom e Sue olhavam tudo do umbral da porta.
"Que que houve?", Sue me perguntou quando eu saía.
"Nada", respondi, fechando a porta de mansinho.
Por volta dessa época mamãe passou a se deitar com mais
frequência no começo da noite. Dizia que mal conseguia
ficar desperta.
"Mais umas noites seguidas dormindo cedo", ela dizia, "e
volto a ficar em forma."
Com isso, Julie passou a ser responsável pelo jantar e pela
hora de ir para a cama. Sue e eu estávamos na sala de visitas
ouvindo rádio. Julie entrou e desligou.
"Vá esvaziar o lixinho da cozinha, por favor", ela me disse,
"e leve as latas de lixo para a frente da casa."
"Porra", eu gritei, "estou ouvindo isso", e avancei para o
botão.
Julie o cobriu com a mão. Eu ainda sentia tanta vergonha
daquele ataque das cócegas que não tinha vontade de lutar
com ela. Umas poucas palavras de falsa resistência, e logo
depois lá estava eu carregando as latas de lixo. Ao voltar, dei
com Sue diante da pia da cozinha descascando batatas. Mais
tarde, quando nos sentamos para comer, reinou um silêncio
constrangido em vez da algazarra habitual. Quando encarei
Sue do outro lado da mesa, ela deu uma risadinha. Julie não
olhava para nós e só falou com Tom, mesmo assim em voz
baixa. Quando saiu da cozinha por um minuto a fim de levar
a bandeja para o andar de cima, Sue e eu trocamos pontapés
por baixo da mesa e rimos muito. Mas paramos ao ouvir que
ela voltava.
Tom não gostava dessas noites sem mamãe. Julie o obrigava
a comer tudo que estava no prato, proibindo-o de se
esconder debaixo da mesa ou de fazer ruídos engraçados. O
que o deixava mais aborrecido era que Julie não lhe permitia
ir para o quarto da mamãe quando ela estava dormindo. Ele
adorava deitar-se todo vestido a seu lado. Julie o pegava pelo
pulso na subida da escada. "Lá não", dizia em voz baixa,
"mamãe está dormindo." Tom abria o berreiro, mas não
resistia quando ela o arrastava de volta para a cozinha. Ele
também a temia um pouco. Julie de repente tinha ficado tão
distante de nós, tranquila, segura de sua autoridade! Eu
queria lhe dizer: "Vamos, Julie, pare de fazer de conta.
Sabemos bem quem você é". E continuava olhando para ela,
sem porém receber nenhum olhar de volta. Ela se mantinha
ocupada e nossos olhos só se encontravam muito
brevemente.
Eu evitava ficar sozinho com mamãe receando que ela
quisesse ter outra daquelas conversas comigo. Aprendera na
escola que ela estava errada. Mas, agora, cada vez que eu
começava, uma ou duas vezes por dia, vinha-me à cabeça a
imagem das duas garrafinhas de leite cheias de sangue com a
tampa envolta em papel-alumínio. Passei a ficar mais tempo
na companhia de Sue. Ela parecia gostar de mim — ou ao
menos estava disposta a me aturar. Durante a maior parte do
tempo, ela ficava lendo no seu quarto, nunca se queixando
quando eu ficava por lá. Lia romances sobre meninas de sua
idade, treze anos, que viviam alguma aventura no colégio
interno. Tomava emprestados da biblioteca local uns livros
grandes^ com ilustrações de dinossauros, vulcões ou peixes
tropicais. As vezes eu os folheava, olhando os desenhos
porque o conteúdo não me interessava em nada.
Suspeitando das representações dos dinossauros, disse a Sue
que ninguém podia realmente saber como eles eram. Ela me
falou sobre os esqueletos e todas as pistas que ajudavam na
reconstituição. Discutimos uma tarde inteira. Ela sabia muito
mais do que eu, mas estava decidido a não deixá-la ganhar.
Finalmente, entediados e exasperados, cada um foi para seu
lado curtir o mau humor. No mais das vezes, contudo,
conversávamos como conspiradores sobre a família e todas
as pessoas que conhecíamos, examinando cuidadosamente
seus comportamentos e aparências, o que eram "de
verdade". Nós nos perguntávamos sobre a gravidade da
doença de mamãe. Sue a ouvira dizer a Julie que estava
mudando de médico outra vez. Concordamos em que nossa
irmã mais velha estava ficando muito metida a besta. Eu já
não pensava mais na Sue como uma garota. Ao contrário de
Julie, ela era apenas uma irmã, uma pessoa. Numa longa
tarde de domingo, Julie entrou enquanto conversávamos
sobre nossos pais. Eu tinha acabado de dizer que eles se
odiavam secretamente e que mamãe tinha ficado aliviada
com a morte de nosso pai. Julie sentou-se na cama ao lado
de Sue, cruzou as pernas e bocejou. Parei e limpei a
garganta.
"Continue", disse Julie, "parece interessante."
"Não era nada."
"Ah", disse Julie. Corou um pouco e olhou para baixo. Então
foi a vez de Sue limpar a garganta. Ficamos todos esperando.
Fiz a tolice de continuar: "Só estava dizendo que não acho
que mamãe gostava realmente do papai".
"Não gostava?", Julie perguntou fingindo interesse. Ela estava
com raiva.
"Sei lá", murmurei. "Talvez você saiba."
"E por que eu deveria saber?" Houve outro silêncio, e então
Sue disse: "Porque você fala mais com ela do que nós".
A raiva de Julie tomou a forma de um silêncio crescente. Ela
ficou de pé e, depois de atravessar o quarto, voltou-se ao
chegar à porta para dizer com toda a calma: "Só porque
vocês dois nem querem saber dela". Ficou lá parada
esperando uma resposta e, por fim, foi embora, deixando
atrás de si um leve cheiro de perfume.
No dia seguinte, depois da escola, ofereci-me para
acompanhar mamãe nas compras.


"Não vai ter nada para carregar", ela disse. Estava no lúgubre
hall de entrada, dando nó no lenço de pescoço diante do
espelho.
"Me deu vontade de andar", resmunguei.
Caminhamos em silêncio durante vários minutos, até que ela
passou o braço pelo meu e disse: "Daqui a pouco é o teu
aniversário".
"E, já está pertinho."
"Você está feliz de fazer quinze anos?"
"Não sei."
Enquanto esperávamos na farmácia que preparassem seu
remédio, perguntei a minha mãe o que o médico havia dito.
Ela examinava um sabonete embrulhado para presente num
pratinho de plástico. Colocou-o de volta na prateleira e deu
um sorriso alegre.
"Ah, estão dizendo bobagens. Parei com todos eles." Fez um
sinal de cabeça na direção do balcão. "Desde que eu tenha
minhas pílulas."
Senti-me aliviado. O remédio chegou finalmente num pesa-
do vidro marrom, que me ofereci para carregar. Na volta, ela
propôs que fizéssemos uma festinha no meu aniversário e
sugeriu que eu convidasse alguns colegas da escola. "Não",
respondi de imediato, "só mesmo a família." Durante o resto
da caminhada fizemos planos, ambos felizes de ter
finalmente alguma coisa para conversar. Mamãe lembrou da
festa de aniversário de dez anos de Julie. Na época eu tinha
oito anos, mas também me lembrava daquele dia. Julie tinha
chorado porque alguém lhe dissera que não havia mais
aniversários depois de completados os dez anos. Durante
certo tempo isso virou uma piada na família. Nenhum de
nós dois mencionou o papel que meu pai tinha
desempenhado naquela e em todas as outras festas de que eu
era capaz de me lembrar. Ele gostava de organizar as
crianças em filas bem precisas, onde tinham de esperar
quietinhas sua vez de participar de alguma brincadeira
inventada por ele. O barulho e a bagunça, crianças correndo
sem propósito por toda parte, tudo isso o irritava
profundamente. Nunca houve uma festa de aniversário em
que ele não brigasse com alguém. No aniversário de oito
anos de Sue, tentou mandá-la para a cama por fazer alguma
traquinada. Mamãe interveio, mas essa foi a última festa.
Tom nunca teve seu aniversário comemorado. Já estávamos
em silêncio ao chegarmos ao portão da casa. Enquanto ela
procurava na bolsa pela chave da porta, perguntei-me se
mamãe também não estaria feliz de fazermos uma festa sem
a presença dele.
"Pena que papai não possa...", comecei, mas ela interrom-
peu: "Coitado dele. Ficaria tão orgulhoso de você!".
Dois dias antes de meu aniversário mamãe caiu de cama.
"Daqui a pouco vou estar de pé", ela disse quando Sue e eu
fomos vê-la. "Não estou doente, só muito, muito cansada."
Mal conseguia manter os olhos abertos enquanto falava. Ela
já havia feito um bolo coberto com círculos concêntricos de
glacê vermelho e azul. No centro havia uma vela. Tom
achou muita graça nisso.
"Você não tem quinze anos", ele gritou, "só vai fazer um ano
no dia do teu aniversário."
De manhã cedinho Tom veio ao meu quarto e pulou na
cama.
"Acorda, acorda, você está fazendo um ano hoje!"
No café da manhã, Julie me entregou, sem dizer uma pala-
vra, um saquinho de couro que continha um pente de metal
e uma tesourinha de unha. Sue me deu um livro de ficção
científica. Na capa, um enorme monstro tentacular envolvia
uma nave espacial contra um céu negro pontilhado de
estrelas brilhantes. Levei a bandeja para o quarto de minha
mãe. Quando entrei, ela estava deitada de costas, os olhos
bem abertos. Sentei na beira da cama e equilibrei a bandeja
nos joelhos. Ela se apoiou nos travesseiros e começou a
tomar o chá. Só então disse: "Parabéns, meu filho. Não
consigo falar de manhã antes de beber alguma coisa".
Abraçamo-nos desajeitadamente por cima da xícara que ela
ainda segurava numa das mãos. Abri o envelope que me
deu. Dentro de um cartão de aniversário havia duas notas de
uma libra. O cartão mostrava uma natureza-morta com um
globo terrestre, uma pilha de velhos livros encadernados em
couro, material de pesca e uma bola de críquete. Abracei-a
de novo e ela disse "Cuidado!" quando a xícara bamboleou
no pires. Ficamos sentados por algum tempo e ela apertou
minha mão. A dela era amarelada e descarnada, me fazendo
lembrar um pé de galinha.
Fiquei deitado na cama a manhã toda lendo o livro que Sue
me havia dado. Era o primeiro romance que eu lia para
valer. Minúsculos esporos portadores de vida, que flutuavam
em nuvens através das galáxias, tinham sido atingidos pelos
raios especiais de uma estrela moribunda e, depois disso,
geraram um monstro colossal que se alimentava de raios X e
passara a aterrorizar o tráfego regular entre a Terra e Marte.
Coube ao comandante Hunt a missão de destruir a
monstruosa criatura e também fazer desaparecer seu corpo
gigantesco.
"Permitir que ele vague pelo espaço para sempre", explicou
um cientista a Hunt numa de suas inúmeras reuniões
preparatórias, "criaria um risco de colisão, além do quê,
ninguém sabe o efeito que outros raios cósmicos poderão ter
sobre seus restos apodrecidos. Quem sabe que outras
mutações pavorosas podem surgir da carcaça?"
Quando Julie veio ao meu quarto para informar que mamãe
não ia se levantar e que comeríamos o bolo em volta de sua
cama, eu estava tão imerso na história que a olhei sem
compreender.
"Por que você não faz um favor para ela", disse Julie ao sair,
"e se lava ao menos uma vez?"
De tarde, Tom e Sue carregaram o bolo e as xícaras para
cima. Tranquei-me no banheiro e me postei diante do
espelho. Eu não era o tipo de gente que o comandante Hunt
desejaria ter a bordo de sua espaçonave. Embora estivesse
tentando deixar crescer a barba para esconder minha pele,
cada um dos fios esparsos conduzia o olhar, como se fosse
um dedo em riste, para a espinha que ficava na sua base.
Enchi a pia de água quente e me debrucei, com as palmas
das mãos imersas, transferindo parte do peso do corpo para o
fundo da pia. Eu frequentemente passava meia hora assim,
inclinado na direção do espelho, as mãos e os pulsos
mergulhados na água quente. Era a coisa mais próxima de
um banho. Eu ficava sonhando acordado, dessa vez pensei
no comandante Hunt. Quando a água esfriou, sequei as mãos
e tirei do bolso o saquinho de couro. Cortei as unhas e
penteei meus cabelos castanhos e escorridos, testando vários
estilos até decidir comemorar meu aniversário com um
repartido no centro.
Mal entrei no quarto de minha mãe, Sue começou a cantar
"Parabéns pra você", seguida pelos outros. O bolo, com a
vela já acesa, ocupava a mesinha de cabeceira. Mamãe estava
cercada de travesseiros e, conquanto movesse os lábios, não
consegui ouvir sua voz. Quando o canto terminou, soprei a
vela e Tom dançou diante da cama, cantando "Você fez um
ano, você fez um ano", até que Julie o mandou se calar.
"Você está muito arrumadinho", disse minha mãe. "Acabou
de tomar banho?"
"É", respondi, cortando o bolo.
Sue despejou nas canecas o suco de laranja que acabara de
fazer, usando, segundo disse, dois quilos de laranjas de
verdade.
"Todas as laranjas são de verdade, não são, mamãe?"
perguntou Tom.
Rimos todos e Tom, encantado com seu feito, repetiu a
pergunta várias vezes, embora com sucesso decrescente. De
fato, aquilo não chegava a ser uma festa e eu estava ansioso
para voltar ao livro. Julie arrumara quatro cadeiras formando
uma curva rasa num dos lados da cama, e lá ficamos
mordiscando o bolo e bebericando o suco. Mamãe não
comeu nem bebeu nada. Julie queria que acontecesse
alguma coisa, queria que fôssemos divertidos.
"Conte uma piada para nós", ela disse para Sue, "aquela que
você me contou ontem."
Quando Sue acabou de contar a piada e mamãe riu, Julie
disse a Tom: "Mostre para nós suas cambalhotas".
Tivemos de mudar de lugar as cadeiras e os pratos para que
Tom, rindo loucamente, executasse suas contorções no
chão. Julie o fez parar depois de algum tempo e se voltou
para mim.
"Por que você não canta alguma coisa para nós?"
"Não sei cantar nada", respondi.
"Sabe, sim", ela disse. "Que tal 'Greensleeves'?"
O título da música já me irritava. "Gostaria que você parasse
de dizer aos outros o que eles têm de fazer", eu disse. "Você
não é Deus, é?"
Sue interveio: "Você tem de fazer alguma coisa, Julie".
Enquanto Julie e eu falávamos, Tom tirara os sapatos e
trepara na cama da mamãe. Ela havia passado o braço por
seu ombro e nos olhava como se estivéssemos muito
distantes.
"E isso", eu disse para Julie, "faça alguma coisa para variar."
Sem dizer uma palavra, Julie pulou no espaço aberto para as
cambalhotas de Tom e, de repente, se pôs de pernas para o
ar apoiada apenas nas mãos, o corpo retesado, enxuto e
totalmente imóvel. A saia cobriu seu rosto. As calcinhas, de
um branco reluzente, contrastavam com o moreno das
pernas, e eu podia ver as pequenas pregas do tecido em volta
do elástico que cingia sua barriga lisa e musculosa. Alguns
cabelinhos negros e encaracolados escapavam da superfície
branca entre as coxas. Unidas de início, as pernas
começaram a se separar lentamente como os braços de um
gigante. Julie juntou-as de novo e, deixando que tombassem
no solo, pôs-se de pé outra vez. Num momento confuso,
muito agitado, me dei conta de haver levantado da cadeira
para cantar "Greensleeves" numa voz trêmula e apaixonada
de tenor. Quando terminei, todos aplaudiram e Julie apertou
minha mão. Mamãe sorria com ar sonolento. Tudo foi
arrumado rapidamente; Julie tirou Tom da cama, Sue
carregou a louça e os restos do bolo, eu levei as cadeiras.

NUMA TARDE QUENTE, achei uma marreta escondida sob o
capim alto no jardim de uma das casas demolidas, onde eu
mexia a esmo nas coisas, entediado. A casa havia sido
destruída pelo fogo uns seis meses antes. Entrei na sala de
visitas carbonizada, com o teto caído e o assoalho
consumido pelas chamas. Uma parede divisória permanecia
de pé, tendo no centro uma portinhola que dava para a
cozinha. Um dos pequenos batentes de madeira ainda estava
preso às dobradiças. Na cozinha, seções dos canos de água e
fios elétricos se agarravam à parede, enquanto uma pia
despedaçada jazia no chão. Em todos os quartos cresciam
ervas daninhas em busca de luz. A maioria das casas ainda
conservava os acessórios inamovíveis em seus lugares de
origem, cada qual indicando o que devia ser feito: aqui você
come, aqui dorme, aqui senta. Mas nessa casa incendiada
reinava a desordem, tudo desaparecera. Tentei imaginar,
naqueles aposentos escancarados e violentados, tapetes,
armários, quadros, cadeiras, uma máquina de costura.
Agradou-me a ideia de que esses objetos agora pareciam
irrelevantes e frágeis. Num dos quartos, havia um colchão
retorcido entre as traves chamuscadas e quebradas do
estrado. A parede se desfazia em volta da janela, o teto
cedera sem chegar ao chão. As pessoas que haviam se
deitado naquele colchão, eu pensei, realmente acreditavam
estar num "quarto de dormir", convencidas de que aquilo
duraria para sempre. Visualizei meu próprio quarto, o de
Julie, o de mamãe, quartos que um dia se transformariam em
ruínas. Pensando nessas coisas, eu havia trepado no colchão
e me apoiava num fragmento da parede, quando vi o cabo da
marreta em meio ao capim. Pulei no chão e a peguei.
Tatuzinhos cinzentos viviam embaixo da maciça cabeça de
ferro e, em grande confusão, começaram a correr de um
lado para outro no seu pedacinho de terra. Golpeei-os com a
marreta e senti a terra tremer sob meus pés.
Aquela ferramenta, deixada pelos bombeiros ou por uma
equipe de demolição, era um achado. Equilibrei a marreta
sobre o ombro e a levei para casa, pensando no que eu
poderia arrebentar com proveito. No jardim, o morrinho de
pedras, coberto de mato, se desintegrava. Não havia nada
para golpear exceto as lajes, que já estavam rachadas. Decidi-
me pelo caminho de concreto — quatro metros e meio de
comprimento e cinco centímetros de espessura — que não
servia para nada. Tirei a camisa e pus mãos à obra. Um
pedaço de concreto se desfez ao primeiro golpe, mas as
pancadas seguintes não produziram o menor efeito, nem
uma única rachadura. Descansei e recomecei. Dessa vez,
surpreendentemente, abriu-se uma grande fenda e um
pedaço de concreto substancial e satisfatório se destacou.
Tinha uns sessenta centímetros de largura e era pesado para
levantar. Puxei-o para o lado e o encostei na cerca. Ia pegar
de volta a marreta quando ouvi a voz de Julie às minhas
costas. "Você não pode fazer isso." Ela usava um biquíni
verde-esmeralda. Trazia numa das mãos uma revista, na
outra, os óculos escuros. Naquele lado da casa estávamos
mergulhados numa sombra profunda. Descansei a cabeça da
marreta no solo, entre meus pés, e me apoiei no cabo.
"O que é que você está dizendo? Por que não?"
"Mamãe disse." Peguei a marreta e golpeei o concreto do
caminho com toda a força. Olhei por cima do ombro para
minha irmã, que fez um gesto de desprezo e se afastou.
"Por quê?", perguntei, levantando a voz para alcançá-la.
"Ela não está se sentindo bem", disse Julie sem se voltar.
"Está com dor de cabeça." Praguejei e encostei a marreta na
parede.
Eu tinha aceitado sem curiosidade o fato de que minha mãe
agora raramente saía da cama. Ela foi se transformando
numa inválida tão gradualmente que nós quase não
falávamos sobre isso. Depois de meu aniversário, quinze dias
antes, nunca mais se levantou. Nós nos adaptamos muito
bem. Revezávamo-nos para subir com a bandeja, Julie fazia
as compras ao voltar da escola. Sue a ajudava a cozinhar e eu
lavava os pratos. Mamãe vivia cercada de revistas e livros
trazidos da biblioteca, mas nunca a vi lendo. Dormitava
sentada a maior parte do tempo e, quando eu entrava no
quarto, acordava com um pequeno sobressalto, dizendo algo
assim: "Ah, devo ter dado uma cochilada". Como não
recebíamos visitas, não se tinha a quem perguntar o que
havia de errado com ela — e por isso nem fiz a pergunta
claramente a mim próprio. Julie, como se verificou, sabia
muito mais. Todo sábado de manhã ela levava a receita para
a farmácia e voltava com o vidro marrom novamente cheio.
Nenhum médico vinha ver mamãe. "Já me consultei com
um número suficiente de médicos e fiz um número
suficiente de exames para valer pela vida inteira." Achei
razoável que alguém se cansasse dos médicos.
O quarto dela tornou-se o centro da casa. Lá ficávamos,
conversando entre nós ou ouvindo seu rádio enquanto ela
cochilava. As vezes a ouvia dando instruções a Julie sobre as
compras ou as roupas de Tom, sempre em voz baixa e
falando rápido. "Quando mamãe ficar boa" passou a
representar um tempo vago e duvidoso no futuro próximo,
quando os velhos hábitos seriam restaurados. Julie se
comportava de modo sério e eficiente, mas eu suspeitava de
que se aproveitava da situação, que tinha prazer em me dar
ordens.
"Já é hora de você limpar seu quarto", ela me disse num fim
de semana.
"Como é que é?"
"Está uma sujeira e fede que é um horror." Eu não disse
nada. Julie continuou: "E melhor que você dê uma limpeza.
Foi mamãe que mandou". Como minha mãe estava doente,
eu achava que precisava fazer o que ela queria e, embora
nem tocasse no quarto, eu pensava naquilo, ficava
preocupado. Mas mamãe nunca me falou sobre o assunto, e
comecei a achar que também nunca havia falado com Julie.


Após contemplar a marreta por um ou dois minutos, fui para
o jardim de trás. Estávamos no meio de julho. Faltava apenas
uma semana para começarem as férias de verão e tinha feito
calor nas seis últimas semanas. Era difícil imaginar que
algum dia voltaria a chover. Ansiosa para se bronzear, Julie
havia preparado um pequeno espaço plano no topo do
morrinho de pedras. Todo dia, após voltar da escola, se
deitava lá sobre uma toalha de banho durante uma hora com
as mãos e os dedos grudados ao corpo e chapados no solo.
Virava de bruços a cada dez minutos, soltando com os
polegares as alças do biquíni. Ela gostava do contraste entre
sua pele mais e mais queimada e a blusa branca do uniforme
escolar. Havia acabado de se ajeitar de novo quando
contornei a esquina da casa. De barriga para baixo, tinha a
cabeça aninhada nos braços e o rosto voltado para o outro
lado, na direção do terreno baldio onde grandes moitas de
urtiga morriam de sede. Junto dela, entre os óculos escuros e
um grosso tubo de loção bronzeadora, havia um minúsculo
rádio-transistor, preto e prateado, do qual vinha o som débil
de animadas vozes masculinas. Os flancos do morrinho
caíam abruptamente a partir de onde ela estava. Qualquer
pequeno movimento para a esquerda, e ela rolaria até meus
pés. Com os arbustos e as ervas tão murchos, seu biquíni,
cintilante e luminescente, era a única coisa verde nas
imediações.
"Escute", disse para ela acima das vozes do rádio. Julie não
voltou a cabeça para me ver, mas sabia que me ouvira.
"Quando é que mamãe lhe disse para eu parar de fazer
barulho?" Como ela não se moveu nem respondeu, trepei no
morrinho para ver seu rosto. Os olhos estavam abertos.
"Você ficou aqui fora esse tempo todo." Mas Julie pediu:
"Você pode passar um pouco de loção nas minhas costas?".
Ao subir mais um pouco, desloquei uma pedra de bom
tamanho, que tombou com um baque surdo.
"Cuidado", disse Julie. Ajoelhei-me entre suas pernas abertas
e esguichei do tubo uma substância clara e cremosa na palma
da mão. "Precisa mais nos ombros e no pescoço", continuou
Julie e, curvando a cabeça, afastou os cabelos da nuca.
Embora só estivéssemos um metro e meio acima do solo, lá
parecia soprar uma aragem leve e refrescante. Ao espalhar o
creme em seus ombros, reparei como minhas mãos eram
pálidas e encardidas em contraste com a pele de suas costas.
As alças do biquíni, desatadas, serpenteavam no chão.
Movendo-me um pouquinho para o lado, podia entrever seu
seio, obscurecido pela sombra do corpo. Quando acabei, ela
disse por cima do ombro: "Agora nas minhas pernas". Dessa
vez espalhei o creme tão rápido quanto pude, com os olhos
semicerrados. Senti-me tonto, nauseado. Julie apoiara de
novo a cabeça no antebraço, sua respiração era lenta e
regular como a de uma pessoa dormindo. No rádio, uma voz
aguda anunciava os resultados das corridas de cavalo num
tom absurdamente monótono. Tão logo suas pernas ficaram
corretamente protegidas, pulei do morrinho de pedras.
"Obrigada", disse Julie, sonolenta. Disparei para dentro de
casa e escada acima até o banheiro. Mais tarde, joguei a
marreta no porão.
A cada três manhãs eu tinha de levar Tom para a escola. Era
sempre difícil fazê-lo ir. As vezes ele gritava e dava
pontapés, tendo que ser carregado à força para fora de casa.
Certa manhã, pouco antes das férias, ele me disse
calmamente enquanto caminhávamos que tinha um
"inimigo" na escola. A palavra soou estranha em seus lábios
e perguntei o que ele queria dizer com aquilo. Explicou que
um garoto maior que ele queria pegá-lo.
"Ele vai quebrar minha cara", disse com ar de espanto. Não
fiquei surpreso. Tom era mesmo o tipo de garoto que tinha
tudo para ser maltratado. Era pequeno para seus seis anos,
além de fraco. Pálido, com orelhas de abano, costumava
trazer estampado no rosto um sorriso boboca e tinha cabelos
negros que formavam uma grossa franja caída para um lado.
Pior ainda, era inteligente e adorava discutir por qualquer
coisinha — a vítima perfeita dos recreios escolares.
"Me diga quem é ele", eu falei, aprumando o corpo, "que eu
cuido disso." Paramos do lado de fora da escola e olhamos
através das grades pretas.
"Aquele", ele disse finalmente, apontando na direção de um
abrigo de madeira. Era um garoto magricela, uns dois anos
mais velho que Tom, ruivo e sardento. O tipo mais malvado,
pensei. Atravessei correndo o pátio de recreio e o puxei pela
gola com a mão direita. Com a outra, agarrei-o pela garganta,
bati a cabeça dele com força contra o abrigo e o prendi lá.
Seu rosto tremeu e pareceu inchar. Tive vontade de dar uma
gargalhada, tal era minha alegria.
"Se você encostar um dedo no meu irmão", disse em tom
sibilante, "vou arrancar as tuas pernas." Então o soltei.
Foi Sue quem trouxe Tom para casa naquela tarde após a
escola. A camisa dele estava em farrapos, um dos sapatos
desaparecera. Um lado do rosto estava vermelho e inchado,
um canto da boca exibia um corte. Os dois joelhos estavam
arranhados e havia marcas de sangue seco na canela. A mão
esquerda estava inchada e dolorida, como se alguém tivesse
pisado nela. Tão logo entrou em casa, Tom começou a uivar
como um animal e rumou para a escada. "Não deixe mamãe
ver ele assim", Julie gritou. Pulamos em cima dele como
uma matilha de lobos se atirando sobre um coelho ferido e o
levamos ao banheiro do andar térreo, fechando a porta. Com
os quatro lá dentro não havia muito espaço para nos
mexermos, e a acústica do pequeno aposento tornava os
berros de Tom ensurdecedores. Julie, Sue e eu nos
amontoamos em volta dele, cobrindo-o com beijos e carícias
enquanto tirávamos suas roupas. Sue também estava quase
chorando.
"Ah, Tom", ela repetia, "pobrezinho do Tom." Apesar disso,
eu ainda consegui ter inveja de meu irmão nu. Julie estava
sentada na beirada da banheira segurando-o entre as pernas
enquanto limpava o rosto dele com algodão. Sua mão livre o
escorava, a palma contra a barriga um pouco acima da
virilha. Sue envolveu a mão ferida de Tom num pano
úmido.
"Foi aquele garoto ruivo?", perguntei.
"Não", Tom respondeu aos prantos, "o amigo dele." Depois
de limpo, vimos que não estava muito machucado e o clima
de drama se dissipou. Julie embrulhou-o numa toalha de
banho e o levou para cima. Sue e eu fomos preparar mamãe.
Ela devia ter ouvido algo, porque estava de pé, vestindo o
penhoar, pronta para descer.
"Só uma briguinha na escola", lhe dissemos. "Mas ele está
bem agora." Ela voltou para a cama e Julie pôs Tom a seu
lado. Mais tarde, enquanto tomávamos chá e comentávamos
em volta da cama o que tinha acontecido, Tom, ainda
embrulhado na toalha, caiu no sono.
Estávamos no andar de baixo certa noite depois do jantar.
Tom e mamãe já dormiam. Minha mãe tinha mandado Julie
ir à escola falar com a professora acerca da violência sofrida
por Tom e conversávamos sobre isso. Sue nos disse que
havia tido uma conversa muito "estranha" com Tom e ficou
esperando que algum de nós dois lhe pedisse para
prosseguir.
"E então, o que é que ele disse?", perguntei em tom irrita-
diço passado meio minuto. Sue deu uma risadinha.
"Ele me pediu para não contar a ninguém."
"Então é melhor não contar", Julie disse, mas Sue continuou:
"Ele veio ao meu quarto e perguntou 'Como é ser uma
garota?' e eu disse 'É bom, por quê?'. Ele disse que estava
cansado de ser um garoto e agora queria ser uma garota.
Então eu falei 'Mas você não pode ser uma garota se é um
garoto' e ele respondeu 'Posso, sim, se quiser eu posso'. Aí
perguntei 'Por que você quer ser uma garota?' e ele
respondeu 'Porque ninguém te bate se você for uma garota'.
Eu disse que às vezes as garotas apanhavam, mas ele disse
'Não é verdade, não apanham, não'. Perguntei 'E como você
pode ser uma garota quando todo mundo sabe que é um
garoto?' e ele respondeu 'Vou usar um vestido, pentear o
cabelo igual a você e entrar pelo portão das meninas'. Então
eu disse que ele não podia fazer aquilo, e ele disse que podia,
sim, e repetiu que queria mesmo, ele quer...".
As duas riam tanto a essa altura que Sue não conseguiu
continuar com a história. Eu nem sorri. Estava horrorizado,
mas também fascinado.
"Coitadinho", Julie disse. "Se é isso que ele quer, devemos
deixar que seja uma garota." Sue estava encantada. Bateu
palmas. "Ele ia ficar tão bonito numa de minhas roupas
velhas. Aquele rostinho tão doce..." Entreolharam-se e
riram. Havia uma estranha excitação no ar.
"Ele ia ficar com cara de idiota", eu disse de repente. "Ah,
é?", Julie perguntou friamente. "Por que você acha isso?"
"Você sabe que ele ia..." Houve uma pausa. Julie estava
recolhendo sua raiva e dando-lhe forma. Seus braços nus
descansavam sobre a mesa, mais bronzeados do que nunca
mesmo sob a luz elétrica.
"Fazendo ele ficar com cara de idiota", resmunguei quando
senti que devia calar-me, "só para vocês rirem."
Julie falou com calma: "Você acha que as garotas parecem
idiotas, loucas, bobocas...".
"Não", respondi indignado.
"Você acha que é humilhante ter a aparência de uma garota
porque acha que é humilhante ser uma garota."
"Seria para Tom, isso dele se parecer com uma garota." Julie
respirou fundo e sua voz se transformou num murmúrio.
"As garotas podem vestir calças jeans, cortar o cabelo curto,
usar camisas e botas porque é bom ser um garoto, para uma
garota é como uma promoção. Mas, na sua opinião, um
garoto se parecer com uma garota é degradante porque,
secretamente, você acredita que ser uma garota é
degradante. Por que outro motivo você iria achar que é
humilhante para Tom usar uma saia?"
"Porque é", respondi com firmeza.
"Mas por quê?", Julie e Sue perguntaram ao mesmo tempo.
E, antes que eu atinasse com uma resposta, Julie continuou:
"Se eu usasse suas calças na escola amanhã e você usasse
minha saia, íamos logo ver quem teria mais problemas. Todo
mundo ia apontar para você e rir". Nesse ponto Julie
apontou por cima da mesa, seus dedos chegando a alguns
centímetros de meu nariz.
"Olhem só para ele! Ele parece... eca!... uma garota!"
"E olhem para ela", Sue falou apontando para Julie, "ela está
muito... chique nessas calças." Minhas duas irmãs riram
tanto que se jogaram nos braços uma da outra.
Foi uma discussão meramente técnica, porque no dia
seguinte Tom estava de volta à escola e sua professora
escreveu uma longa carta para mamãe. Ela leu em voz alta
partes da carta enquanto Sue e eu instalávamos a mesa da
sala de jantar em seu quarto.
"E um prazer contar com Tom em nossa classe." Mamãe
releu essa frase algumas vezes com grande satisfação. Gostou
também de outra que dizia: "Ele é uma criança doce, mas
dinâmica". Havíamos decidido fazer as refeições no quarto
com mamãe. Como levei também duas poltronas pequenas,
agora quase não havia espaço para nos movermos em volta
da cama. A leitura da carta a exauriu. Ela recostou-se nos
travesseiros, segurando débilmente os óculos numa das
mãos. A carta deslizou para o chão. Sue a apanhou e enfiou
no envelope.
"Quando eu ficar de pé", mamãe disse para ela, "vamos pin-
tar de novo a sala antes de botarmos essa mobília de volta."
Sue aboletou-se na cama para discutirem as combinações de
cores. Fiquei sentado à mesa, apoiado nos cotovelos. Era o
final da tarde e ainda fazia muito calor. As duas janelas do
quarto estavam escancaradas. De fora vinha o som de
meninos brincando mais acima na rua, nas casas pré-
fabricadas vazias, gritos repentinos rompendo o murmúrio
de vozes, o nome de alguém sendo chamado. Havia muitas
moscas no quarto. Observei enquanto uma subia ao longo de
todo o meu braço. Julie estava tomando sol no morrinho de
pedras e Tom brincava na rua.
Minha mãe adormeceu. Sue retirou os óculos de sua mão,
fechou-os e os colocou na mesinha de cabeceira, saindo
depois do quarto. Ouvi o subir e descer da respiração de
mamãe. A disposição do muco em seu nariz causava um som
débil, mas agudo, como uma lâmina cortando o ar, que foi
desaparecendo aos poucos. A presença da mesa de jantar lá
em cima ainda era uma novidade para mim, eu não
conseguia ir embora. Notei pela primeira vez, sob o verniz
escuro, os veios negros e sinuosos da madeira. Descansei os
braços nus na superfície fria. A mesa ali parecia mais
substancial e eu já não podia imaginá-la no andar térreo.
Minha mãe fez um som breve e quase inaudível, a língua
batendo nos dentes como se ela mastigasse ou sonhasse que
tinha sede. Finalmente, levantei-me e fiquei de pé junto à
janela, bocejando sem parar. Tinha deveres de casa para
fazer, mas, como as longas férias de verão estavam prestes a
começar, já não me importava com isso. Nem sabia se queria
voltar para a escola no outono, porém também não tinha
planos de fazer nenhuma outra coisa. Lá fora, Tom e um
garoto mais ou menos do seu tamanho puxaram um pneu de
caminhão rua abaixo até saírem de meu campo de visão. O
fato de que o estavam arrastando, em vez de rolá-lo, me deu
um cansaço imenso.
Ia voltar para a mesa, mas minha mãe me chamou e fui
sentar-me na cama. Ela riu e tocou meu pulso. Pus a mão
entre os joelhos. Não queria ser tocado, estava quente
demais.
"O que é que você ia fazer?", ela perguntou.
"Nada", respondi suspirando.
"Está entediado?" Fiz sinal que sim. Ela tentou me fazer uma
carícia, mas eu estava fora de seu alcance.
"Tomara que você consiga encontrar um emprego nas férias,
ganhar um dinheirinho seu." Soltei um grunhido ambíguo e
a olhei de frente. Como sempre, seus olhos eram muito
fundos, e a pele à volta deles, escura e cheia de dobras,
parecia ser também dotada de visão. Os cabelos estavam
mais ralos e grisalhos, alguns fios podiam ser vistos sobre o
lençol. Por cima da camisola ela vestia um cardigã rosa e
cinza cujo punho era mais grosso porque ali ficava enfiado o
lenço.
"Sente-se mais perto. Tenho uma coisa para lhe dizer e não
quero que os outros ouçam." Cheguei mais próximo da
cabeceira e ela pousou a mão em meu antebraço.
Passaram-se uns dois minutos sem que ela falasse. Esperei,
um pouco aborrecido, suspeitando que quisesse falar sobre
minha aparência ou meu sangue desperdiçado. Nesse caso,
estava pronto a me levantar da cama e sair do quarto.
Finalmente, ela disse apenas: "Eu talvez tenha de ir embora
em breve".
"Para onde?", perguntei imediatamente.
"Para o hospital, quero dar uma chance para eles descobri-
rem o que é que eu tenho."
"Por quanto tempo?" Ela fez uma pausa, seus olhos se
afastaram dos meus e se fixaram num ponto acima do meu
ombro.
"Pode ser por muito tempo. É por isso que quero falar com
você." Eu estava mais interessado em saber o que ela
entendia por muito tempo, um sentimento de liberdade se
misturava à minha preocupação. Mas ela continuou: "Isso
significa que você e Julie vão ter que assumir o controle".
"Você quer dizer que Julie vai assumir o controle", comentei
emburrado.
"Vocês dois", ela disse com firmeza. "Não é justo deixar toda
a carga em cima dela."
"Então diga isso a ela, diga que eu também estou no con-
trole."
"A casa tem que ser bem administrada, Jack, e é preciso cui-
dar do Tom. As coisas têm de ser mantidas limpas e
arrumadas porque, se não for assim, você sabe o que vai
acontecer."
"O quê?"
"Eles vêm aqui e tomam a guarda de Tom, talvez a sua e a de
Sue também. Julie não ia querer viver aqui sozinha. A casa
ficaria abandonada, todo mundo ia saber e logo, logo alguém
entraria e levaria as coisas, iam quebrar tudo." Ela apertou
carinhosamente meu braço e sorriu. "E então, quando eu
sair do hospital, nós não teríamos um lugar para morar."
Concordei com a cabeça. "Abri uma conta nos correios no
nome de Julie, minha poupança vai ser depositada lá. Haverá
dinheiro suficiente para todos vocês por um bom tempo,
certamente até que eu saia do hospital." Ela voltou a se
recostar nos travesseiros e semicerrou os olhos. Levantei-
me.
"Está bem, quando é que você vai?"
"Talvez ainda demore uma ou duas semanas", ela respondeu
sem abrir os olhos. Quando cheguei à porta, continuou:
"Acho que, quanto mais cedo, melhor".
"Também acho." A posição diferente de onde vinha minha
voz fez com que ela reabrisse os olhos. Parei na porta,
pronto para sair. Ela disse: "Estou cansada de ficar aqui
deitada o dia todo sem fazer nada".
Três dias depois estava morta. Julie a encontrou ao voltar da
escola na tarde de sexta-feira, último dia do período de aulas
do verão. Sue tinha levado Tom para nadar e eu cheguei
poucos minutos depois de Julie. Quando me aproximei da
porta da frente, a vi debruçada na janela do quarto de
mamãe; ela também me viu, porém nos ignoramos. Não subi
logo. Tirei o paletó e os sapatos, bebi um copo de água fria
na torneira da cozinha. Procurei alguma coisa para comer na
geladeira, achei um pedaço de queijo e o comi com uma
maçã. Reinava um silêncio absoluto na casa e me senti
oprimido ao pensar que teria semanas e mais semanas sem
nada para fazer. Não havia ainda encontrado um emprego,
na verdade nem tinha procurado. Por força do hábito, subi
para cumprimentar minha mãe. Encontrei Julie diante do
quarto de mamãe. Quando ela me viu, fechou a porta e se
curvou para passar a chave. Algo trêmula, encarou-me, a
mão cerrada em torno da chave.
"Ela morreu", Julie disse em tom neutro.
"O quê? Como é que você sabe?"
"Ela já vem morrendo há muitos meses." Julie me empurrou
para o lado no topo da escada. "Ela não queria que a gurizada
soubesse." Ofendi-me de imediato com a "gurizada".
"Quero ver", eu disse. "Me dê a chave." Julie negou com a
cabeça.
"E melhor você descer e nós conversarmos antes que Tom e
Sue cheguem." Pensei por um momento em arrancar a
chave de sua mão, porém dei meia-volta e, abobalhado,
quase cometendo a blasfêmia de soltar um riso inoportuno,
segui minha irmã escada abaixo.

QUANDO CHEGUEI À COZINHA, Julie já havia se recomposto.
Tinha prendido os cabelos num rabo de cavalo e estava
apoiada na pia, os braços cruzados. Todo o peso do seu
corpo se concentrava num dos pés; o outro, encostado no
armário às suas costas, fazia com que o joelho apontasse para
fora.
"Onde é que você andava?", perguntou, sem que eu
compreendesse o que ela queria dizer.
"Eu quero ver", insisti. Julie fez que não com a cabeça. "Nós
dois estamos no controle", continuei, circundando a mesa da
cozinha. "Ela me falou."
"Ela está morta. Sente-se. Você ainda não compreendeu? Ela
morreu." Sentei-me.
"Também estou no controle", eu disse, começando a chorar
porque me senti trapaceado. Minha mãe tinha partido sem
contar a Julie sobre nossa conversa. E não para o hospital,
mas de uma vez por todas, sem possibilidade de confirmar
minhas palavras. Percebi claramente, por alguns momentos,
o significado de sua morte, e meu choro se tornou seco e
forte. Mas logo me vi como alguém cuja mãe tivesse acabado
de morrer, e meu choro se tornou de novo molhado e fácil.
A mão de Julie estava pousada no meu ombro. Ao me dar
conta disso, vi, como se estivesse olhando de fora através da
janela da cozinha, o quadro imóvel que formávamos, um
sentado, o outro de pé, e por instantes não tive certeza de
qual dos dois era eu. Eu tocava alguém que estava sentado e
chorava. Não tinha certeza se Julie aguardava com ternura
ou impaciência que eu parasse de chorar. Não sabia se ela ao
menos estava pensando em mim, porque a mão no meu
ombro tinha um toque neutro. Essa incerteza me fez parar
de chorar. Queria ver a expressão em seu rosto. Julie
retomou a postura junto à pia e disse: "Tom e Sue vão chegar
daqui a pouco". Enxuguei o rosto e assoei o nariz na toalha
da cozinha. "Acho melhor falar logo para eles quando
chegarem." Concordei com a cabeça e esperamos em
silêncio por quase meia hora.
Quando Sue entrou e Julie lhe contou o que acontecera, as
duas caíram no pranto e se abraçaram. Tom ainda estava do
lado de fora. Fiquei olhando minhas irmãs chorarem, tive a
impressão de que pareceria hostil se saísse dali. Senti-me
excluído, mas não quis demonstrar isso. Em certo momento
pus a mão no ombro de Sue, tal como Julie pusera no meu,
porém nenhuma das duas notou minha presença, assim
como dois lutadores em clinch não notariam, e por isso
afastei a mão. Enquanto choravam, Julie e Sue diziam coisas
ininteligíveis, talvez para si próprias, talvez uma para a outra.
Gostaria de poder me entregar como elas, mas me sentia
vigiado. Queria sair dali e olhar-me no espelho. Quando
Tom chegou, elas se separaram e ocultaram o rosto. Ele
pediu um copo de suco, bebeu-o e partiu. Sue e eu seguimos
Julie até o andar de cima e, enquanto esperávamos atrás dela
que abrisse a porta, pensei em nós dois como um casal
prestes a entrar num sinistro quarto de hotel. Arrotei. Sue
deu uma risada e Julie fez um som sibilante pedindo silêncio.
As cortinas não estavam fechadas, segundo Julie me
explicou depois, para "evitar suspeitas". A luz do sol banhava
o quarto. Mamãe estava recostada nos travesseiros, as mãos
sob o lençol. Podia estar cochilando, porque não tinha os
olhos arregalados como os das pessoas mortas nos filmes,
embora eles também não estivessem totalmente fechados.
No chão, junto à cama, espalhavam-se suas revistas e livros;
na mesinha de cabeceira havia um despertador ainda
tiquetaqueando, um copo d'água e uma laranja. Enquanto
Sue e eu a observávamos do pé da cama, Julie pegou o lençol
e tentou cobrir a cabeça de mamãe, mas, como ela estava
sentada, o lençol não chegou até em cima. Julie puxou com
mais força, o lençol se soltou e ela pôde cobrir a cabeça. Mas
os pés de mamãe apareceram por baixo da coberta, com uma
coloração azulada e os dedos bem espaçados. Sue e eu demos
outra risadinha. Julie puxou a coberta para ocultar os pés e a
cabeça de mamãe ficou visível de novo, como uma estátua
ao ser exposta ao público. Sue e eu rimos
descontroladamente. Julie também estava rindo: embora
mantivesse os dentes cerrados, todo o seu corpo tremia.
Quando a coberta ficou finalmente no lugar certo, Julie se
juntou a nós ao pé da cama. Podia se ver perfeitamente a
forma da cabeça e dos ombros de minha mãe por baixo do
lençol branco.
"Assim está ridículo", Sue choramingou.
"Não, não está", Julie retrucou com virulência. Sue se esticou
para a frente e puxou o lençol, descobrindo a cabeça de
mamãe. Julie deu um tapa forte no braço dela e gritou: "Não
mexa nisso!". A porta atrás de nós se abriu e Tom entrou no
quarto, ofegante por causa das brincadeiras de rua.
Tão logo Julie e eu o pegamos, ele disse: "Quero mamãe".
"Ela está dormindo", sussurramos, "olhe, pode ver." Tom
lutou para passar por nós.
"Então por que vocês estavam gritando? De qualquer jeito,
ela não está dormindo. Você está dormindo, mamãe?"
"Ela está dormindo profundamente", disse Sue. Por um
momento pareceu que, falando do sono, de um sono muito
profundo, poderíamos iniciar Tom no conceito da morte.
Mas não entendíamos daquilo mais do que ele, e Tom intuiu
que havia algo de estranho.
"Mãe!", ele berrou, tentando abrir caminho à força para
chegar à cama. Segurei-o pelos pulsos.
"Você não pode", eu disse. Tom chutou meu tornozelo,
livrou-se de mim e passou por Julie para alcançar a
cabeceira. Apoiando-se com uma das mãos no ombro de
mamãe, tirou os sapatos e nos encarou triunfante. Cenas
desse tipo haviam ocorrido antes, às vezes ele levava
vantagem. A essa altura eu era inteiramente favorável a que
descobrisse por si próprio, só queria ver o que ia acontecer.
No entanto, tão logo Tom puxou as cobertas para se deitar ao
lado da mãe, Julie deu um salto e o pegou pelo braço.
"Venha", disse carinhosamente, puxando-o para fora da
cama.
"Não, não...", Tom protestou choroso, como sempre fazia,
agarrando com a mão livre a manga da camisola de mamãe.
Quando Julie o puxou de novo, mamãe caiu para o lado de
uma forma assustadora, como se fosse uma peça de madeira:
sua cabeça chocou-se contra a mesinha de cabeceira,
derrubando no chão o despertador e o copo d'água. A
cabeça ficou entalada entre a cama e a mesinha, enquanto
uma das mãos surgiu junto ao travesseiro. Tom ficou calado
e imóvel, quase rígido, e se deixou levar por Julie como se
fosse um cego. Embora eu não tivesse reparado, Sue já tinha
saído. Parei por um instante, me perguntando se devia
empurrar o cadáver para a posição anterior. Dei um passo na
direção de mamãe, mas não suportei a ideia de tocá-la. Saí
correndo do quarto, bati a porta, girei a chave e a pus no
bolso.
De tanto chorar, no começo da noite Tom acabou dormindo
no sofá da sala de visitas. Nós o cobrimos com uma toalha de
banho porque ninguém queria ir sozinho pegar uma coberta
no andar de cima. Durante as horas seguintes ficamos lá
sentados, sem falar muito. Uma ou duas vezes Sue começou
a chorar e desistiu, como se aquilo estivesse acima de suas
forças. Julie disse: "Ela provavelmente morreu dormindo",
Sue e eu anuímos com um movimento da cabeça. Depois de
alguns minutos Sue acrescentou: "Não sentiu nenhuma dor".
Julie e eu murmuramos nossa concordância. Seguiu-se uma
longa pausa e então eu disse de novo: "Vocês não estão com
fome?". Minhas irmãs sacudiram a cabeça. Eu bem que
queria comer, mas não sozinho. Não queria fazer nada
sozinho. Quando elas por fim consentiram em comer
alguma coisa, eu trouxe pão, manteiga, geleia e duas
garrafinhas de leite. Enquanto comíamos e bebíamos, a
conversa se tornou mais animada. Julie nos contou que
"soube" pela primeira vez duas semanas antes do meu
aniversário.
"Quando você ficou de cabeça para baixo", relembrei.
"E você cantou 'Greensleeves'", disse Sue. "Mas o que é que
eu fiz?" Não conseguíamos nos lembrar o que Sue tinha
feito, mas ela continuou a repetir "Sei que fiz alguma coisa"
até que eu lhe disse para parar. Subimos pouco depois da
meia-noite, nos mantendo bem juntos na escada. Julie foi na
frente, eu carreguei Tom. Paramos no primeiro patamar e
nos agrupamos antes de passar em frente ao quarto de
mamãe. Acho que ouvi o tiquetaque do despertador. Fiquei
satisfeito de saber que a porta estava trancada. Pusemos Tom
na cama sem acordá-lo. As garotas tinham decidido
tacitamente que dormiriam juntas. Fui para minha cama e
me deitei de costas, tenso, virando a cabeça bruscamente
para um lado ou para o outro quando me ocorria um
pensamento ou uma imagem que eu desejava evitar. Passada
meia hora fui ao quarto de Tom e o trouxe para minha cama.
Notei que a luz continuava acesa no quarto de Julie. Abracei
meu irmão e caí no sono.

No dia seguinte, lá para o fim da tarde, Sue perguntou:
"Vocês não acham que temos de contar para alguém?".
Estávamos sentados em volta do morrinho de pedras.
Havíamos passado o dia inteiro no jardim porque fazia calor
e porque tínhamos medo da casa atrás de nós, cujas janelas
pequenas agora não sugeriam concentração, mas um sono
pesado. Pela manhã tinha havido uma briga por causa do
biquíni de Julie. Sue achou que ela não devia usá-lo. Eu disse
que não me importava. Sue insistiu que, se Julie o usasse,
isso queria dizer que ela não ligava para mamãe. Tom
começou a chorar e Julie entrou para tirar o biquíni. Passei o
dia relendo uma pilha de velhas revistas em quadrinhos,
algumas delas do Tom. Eu tinha a sensação de que estávamos
esperando que acontecesse alguma coisa terrível, e então me
lembrava de que já tinha acontecido. Sue lia seus livros e às
vezes chorava baixinho. Sentada no topo do morrinho, Julie
jogava umas pedrinhas para cima e as aparava na mão em
concha. Estava irritada com Tom, que em certos momentos
choramingava e pedia atenção, indo logo depois brincar
como se nada houvesse ocorrido. Uma vez ele tentou se
agarrar aos joelhos de Julie, e a ouvi dizer, enquanto o
afastava:
"Vá embora. Por favor, vá embora". Mais tarde li para ele
algumas histórias em quadrinhos.
Quando Sue fez a pergunta, Julie olhou rapidamente para ela
e depois afastou o olhar. Eu disse: "Se contarmos para
alguém..." e esperei. Sue prosseguiu: "Temos de contar a
alguém para haver o enterro". Dei uma olhada na direção de
Julie. Ela estava contemplando os blocos de apartamentos
mais além da cerca de nosso jardim e dos terrenos baldios.
"Se contarmos", comecei de novo, "eles vêm aqui e tomam a
guarda de nós todos, mandam para um orfanato ou sei lá o
quê. Podem querer que Tom seja adotado." Fiz uma pausa.
Sue estava horrorizada. "Eles não podem fazer isso", ela
disse.
"Se a casa ficar vazia", continuei, "vai ser invadida num
instante, não sobra nada."
"Mas, se não contarmos a ninguém", disse Sue gesticulando
na direção da casa, "o que é que nós vamos fazer?" Olhei de
novo para Julie e disse em voz mais alta: "Aqueles garotos
vêm aqui e destroem tudo". Julie atirou suas pedrinhas para
o outro lado da cerca e disse: "Não podemos deixá-la no
quarto porque vai começar a cheirar". Sue quase berrou:
"Que coisa mais horrível de dizer!".
"Então você concorda", eu disse para Julie, "que não deve-
mos contar a ninguém."
Julie caminhou rumo à casa sem responder. Fiquei olhando
enquanto ela entrava na cozinha e jogava água no rosto
junto à pia. Manteve a cabeça sob a torneira de água fria até
ensopar os cabelos, que depois torceu e afastou do rosto.
Quando voltou para onde estávamos, pingos d'água
escorriam por seus ombros. Sentou-se no morrinho de
pedras e disse: "Se não vamos contar a ninguém, então
temos que fazer alguma coisa, e bem rápido". Sue continha
as lágrimas.
"Mas o que nós podemos fazer?", ela choramingou. Julie
estava fazendo um pouco de teatro. Respondeu com toda a
calma: "Enterrá-la, obviamente". Apesar da concisão, sua
voz tremeu.
"E isso mesmo", eu disse, num misto de excitação e horror,
"podemos fazer um enterro privado, Sue." Como minha
irmã mais nova agora chorava para valer, Julie passou o
braço por seu ombro. Olhou-me friamente por cima da
cabeça de Sue. De repente fiquei irritado com as duas.
Levantei-me e dei a volta na casa para ver o que Tom andava
fazendo.
Ele estava sentado com outro menino no monte de areia
próximo ao portão. Cavavam um complicado sistema de
túneis da largura da mão deles.
"Ele falou", disse o amigo de Tom zombeteiramente,
apertando os olhos para me ver, "falou que a mãe dele
acabou de morrer, e isso não é verdade."
"Pois é verdade. Ela é também minha mãe e acabou de
morrer."
"Rá, rá, não disse?", Tom zombou de volta, enfiando as mãos
bem fundo na areia.
O menino pensou por um momento. "Bom, a minha mãe
não morreu."
"Não interessa", disse Tom, trabalhando no seu túnel. "A
minha mãe não morreu", o menino repetiu para mim. "E
daí?", perguntei.
"E daí que não morreu", o menino gritou. "Não morreu." Fiz
uma cara séria e me ajoelhei junto a eles na areia. Pus a mão
carinhosamente no ombro do amigo do Tom.
"Vou te dizer uma coisa", falei calmamente. "Voltei há
pouquinho da tua casa. Teu pai me falou que tua mãe
morreu. Ela saiu para te procurar e foi atropelada por um
carro."
"Rá, rá, tua mãe morreu", Tom tripudiou.
"Não morreu", o menino disse para si próprio.
"Estou te dizendo", falei em tom sibilante. "Cheguei há
pouco da tua casa. Teu pai está muito nervoso e com raiva
de você porque ela tinha ido te procurar." O menino se
levantou, todo o sangue fugira de seu rosto. "Se eu fosse
você, não ia para casa agora", continuei, "teu pai está atrás de
você." O menino disparou pelo caminho do jardim na
direção da porta de entrada de nossa casa. Então se lembrou,
deu meia-volta e correu na direção contrária. Ao passar por
nós, já estava começando a soluçar.
"Aonde é que você vai?", Tom gritou para ele, mas seu ami-
go balançou a cabeça e continuou correndo.
Quando escureceu e entramos em casa, Tom voltou a se
sentir triste e amedrontado. Chorou ao tentarmos pô-lo na
cama e o deixamos ficar lá embaixo na esperança de que
dormisse no sofá. Como choramingava e chorava por
qualquer coisinha, era impossível conversar sobre o que
iríamos fazer. Acabamos nos falando aos gritos sem ligar
para a presença dele. Enquanto Tom, apesar dos esforços de
Sue para acalmá-lo, urrava e batia os pés no chão porque o
suco de frutas tinha acabado, eu disse rapidamente para Julie:
"Onde é que vamos pôr mamãe?". Julie respondeu alguma
coisa que se perdeu em meio aos guinchos de Tom.
"No jardim, embaixo do morrinho de pedras", ela repetiu.
Mais tarde, Tom chorou apenas por causa de sua mãe e,
enquanto eu tentava consolá-lo, vi Julie explicando algo a
Sue, que concordava com a cabeça e enxugava os olhos.
Durante o tempo em que procurei distraí-lo falando sobre os
túneis que ele havia construído na areia, de repente tive
minha própria ideia. Perdi o fio do que estava dizendo e
Tom voltou a chorar alto. Foi dormir depois da meia-noite e
só então pude explicar a minhas irmãs por que não achava o
jardim um bom lugar. Teríamos que cavar fundo, o que
tomaria muito tempo. Se fizéssemos isso de dia, alguém nos
veria; à noite, precisaríamos de lanternas. Poderíamos ser
vistos dos blocos de apartamentos. E como impedir que Tom
visse? Fiz uma pausa para reforçar o argumento. Apesar de
tudo, estava satisfeito comigo próprio. Eu sempre havia
admirado no cinema os criminosos de alta classe que
discutiam o assassinato perfeito com elegante
distanciamento. Enquanto falava, toquei na chave em meu
bolso e senti uma pontada de enjoo. Continuei com total
confiança: "E, naturalmente, se alguém viesse investigar, o
jardim seria o primeiro lugar em que iriam buscar. A gente
lê todo dia no jornal sobre esse tipo de coisa". Julie me
olhava atentamente. Parecia me levar a sério e, quando
terminei, perguntou: "E então?".
Deixamos Sue na cozinha com Tom. Ela não ficou
aborrecida ou horrorizada com meu plano. Como estava
infeliz demais para se importar, limitou-se a balançar a
cabeça lentamente, como uma velhinha entristecida. Do
lado de fora, o luar permitiu que encontrássemos o carrinho
de mão e uma pá. Empurramos o carrinho até o jardim da
frente e o enchemos de areia. Jogamos a carga de seis
carrinhos no porão pela abertura do carvão e depois, do lado
de fora da cozinha, conversamos sobre a água. Eu disse que
precisaríamos levar no balde, mas Julie lembrou que havia
uma bica lá embaixo. Finalmente a encontramos no
pequeno aposento onde eram guardadas as roupas e os
brinquedos velhos. Por ser mais distante do quarto, o porão
me parecia menos assustador que o resto da casa. De uma
forma difusa, eu me sentia no direito de fazer a mistura,
porém Julie se apoderara da pá e já tinha feito um monte de
areia. Ela abriu um dos sacos de cimento e esperou enquanto
eu buscava a água. Trabalhou com grande rapidez, revirando
e dobrando o material até o transformar numa massa pastosa
e cinzenta. Ergui a tampa do grande baú de estanho e Julie
jogou o cimento lá dentro com a pá até formar uma camada
de uns quinze centímetros no fundo. Concordamos em
preparar outra boa porção e, dessa vez, eu fiz a mistura e
Julie pegou a água. Enquanto eu trabalhava, o propósito do
que estávamos fazendo nem passou por minha cabeça. Não
havia nada de estranho em misturar cimento. Já vínhamos
trabalhando por três horas quando acabamos de pôr no baú a
segunda porção de cimento. Subimos até a cozinha para
beber água. Sue dormia numa cadeira de braços e Tom caíra
de bruços no sofá. Cobrimos Sue com um casaco e voltamos
para o porão. O baú agora estava cheio até quase a metade.
Decidimos que, antes de trazer o corpo, devíamos aprontar
um bom volume de cimento. Levamos um tempão fazendo
isso. A areia acabou e, como só tínhamos uma pá, fomos
juntos até o jardim pegar mais. O céu já se iluminava no
nascente. Fizemos cinco viagens com o carrinho de mão.
Perguntei o que diríamos quando Tom descobrisse de
manhã que sua areia havia desaparecido. Julie disse,
imitando-o: "O vento levou", e rimos malgrado todo o
cansaço.
Já eram cinco horas quando terminamos a última mistura.
Não havíamos nos olhado ou falado durante quase uma hora.
Tirei a chave do bolso e Julie disse: "Pensei que tinha
perdido essa chave e ela estava todo esse tempo com você".
Segui-a escada acima até a cozinha. Descansamos e bebemos
mais água. Na sala de visitas, empurramos alguns móveis
para o lado e prendemos a porta aberta com um sapato. No
andar de cima, coube a mim girar a chave e abrir a porta,
mas Julie foi a primeira a entrar no quarto. Ela estava prestes
a acender a luz quando mudou de ideia. A luminosidade
cinza azulada emprestava a tudo no quarto uma aparência
plana, bidimensional. Era como se estivéssemos entrando
numa velha fotografia do quarto de mamãe. Não olhei
imediatamente na direção da cama. O ar estava úmido e
abafado, como se muitas pessoas tivessem dormido ali com
as janelas fechadas. Além dessa sensação de coisa trancada,
havia um cheiro débil, mas penetrante. Só dava para senti-lo
no final da respiração, quando os pulmões estavam cheios.
Passei a respirar pelo nariz, inalando o mínimo de ar. Ela
estava na mesma posição em que a havíamos deixado,
confirmando a imagem que me vinha à mente sempre que
eu fechava os olhos. Julie se postou ao pé da cama,
abraçando-se. Aproximei-me e abandonei a ideia de que
seríamos capazes de levá-la dali. Esperei que Julie fizesse
alguma coisa, mas ela não se moveu. "Não vamos conseguir
fazer isso", eu disse. A resposta de Julie veio numa voz aguda
e tensa, as palavras pronunciadas rapidamente como se ela
quisesse se fazer passar por animada ou eficiente.
"Vamos enrolar no lençol. Desse jeito não vai ser ruim.
Vamos fazer tudo depressa, não vai ser tão mau." Mas ela
ainda permanecia imóvel.
Sentei-me à mesa, de costas para a cama, e imediatamente
Julie se irritou.
"Está ótimo", ela disse de pronto, "deixe comigo. Por que
você não toma nenhuma iniciativa?"
"Que iniciativa?"
"Enrolá-la naquele lençol. É parte do seu plano, não é?"
Eu queria dormir. Fechei os olhos e tive uma forte sensação
de queda. Agarrei-me à borda da mesa e me pus de pé. Julie
continuou de forma mais gentil.
"Se esticarmos o lençol no chão, podemos colocá-la em
cima dele." Caminhei resoluto até minha mãe e puxei o
lençol que a cobria. Quando o abri, ele pousou no chão em
câmera lenta, como num sonho, os cantos se inflando e se
dobrando. Respirei fundo para conter a impaciência. Peguei
mamãe pelos ombros, semicerrei os olhos e a empurrei da
mesinha de cabeceira para a cama. Evitei olhar seu rosto. Ela
pareceu resistir, precisei usar as duas mãos para fazer com
que se movesse. Agora estava de lado, os braços formando
ângulos estranhos, o corpo retorcido e enrijecido na posição
em que ficara havia dois dias. Julie a pegou pelos pés e eu
por trás dos ombros. Quando a pusemos sobre o lençol, ela
parecia tão frágil e patética na camisola, deitada a nossos pés
como um pássaro de asa quebrada, que pela primeira vez
chorei por ela e não por mim. Na cama ficou uma grande
mancha marrom com as bordas amareladas. O rosto de Julie
também estava molhado quando nos ajoelhamos ao lado de
mamãe e tentamos envolvê-la no lençol. Era difícil, seu
corpo estava torto demais para ser virado.
"Assim não vai. Assim não vai!", Julie gritou exasperada.
Por fim conseguimos enrolar frouxamente o corpo no
lençol. Tão logo a cobrimos, as coisas ficaram um pouco
mais fáceis. Erguendo-a do chão, saímos do quarto.
Descemos degrau por degrau e, no hall do térreo, ajeitamos
o lençol onde ele vinha se soltando. Meus pulsos doíam.
Sem precisar nos falarmos, sabíamos que era melhor
atravessar a sala de visitas sem baixá-la. Tínhamos quase
chegado à porta da cozinha, do outro lado da sala, quando
olhei à esquerda, na direção da cadeira de Sue. Com o casaco
repuxado até o queixo, ela nos observava. Eu ia sussurrar
alguma coisa para ela, mas, antes que pudesse pensar no que
dizer, já havíamos atravessado a porta e fazíamos a manobra
para descer a escada do porão. Finalmente a pusemos no
chão a uns dois metros do baú. Busquei um balde d'água para
umedecer nosso monte de cimento e, quando levantei os
olhos da mistura, vi Sue de pé junto à porta. Pensei que ela
poderia tentar nos deter, mas, quando Julie e eu nos
aprontamos para levantar o corpo, Sue se aproximou e
sustentou a parte central. Como não tinha sido possível
endireitá-lo, quase não havia espaço no baú para ele.
Mergulhou uns cinco centímetros no cimento que cobria o
fundo. Voltei-me para apanhar a pá, porém Julie já a tinha
em suas mãos. Quando ela depositou a primeira carga de
cimento molhado sobre os pés de mamãe, Sue deixou
escapar um grito breve. E então, enquanto Julie voltava para
encher a pá, Sue correu até o monte de cimento, pegou tudo
que pôde com as duas mãos e jogou dentro do baú. A partir
de então ficou jogando cimento tão rápido quanto podia.
Julie também passou a trabalhar mais depressa com a pá,
cambaleando até o baú com grandes cargas e correndo de
volta para pegar mais. Eu mergulhei as mãos no cimento e
joguei no baú uma boa quantidade. Trabalhamos como uns
loucos. Em breve só se viam alguns pedaços do lençol, que
logo depois desapareceram. Nem por isso diminuímos o
ritmo. Os únicos sons eram o arranhar da pá e nossas
respirações arquejantes. Quando terminamos e só restava
uma mancha úmida no chão, o cimento quase transbordava
do baú. Antes de subirmos, ficamos olhando o trabalho feito
e recuperando o fôlego. Decidimos deixar a tampa do baú
levantada para que o cimento endurecesse mais depressa.

Parte Dois

Dois ou TRÊS ANOS antes da morte de papai, meus pais
tiveram de comparecer ao enterro de um dos últimos
parentes com quem se relacionavam. Talvez fosse a tia de
minha mãe ou de meu pai, mas também podia ter sido um
tio. Não se discutiu exatamente quem havia morrido,
provavelmente porque aquela morte significava muito
pouco para eles. Sem dúvida, nada significava para nós,
crianças. Estávamos mais interessados no fato de ficarmos
sozinhos em casa a maior parte do dia tomando conta de
Tom. Mamãe nos instruiu acerca de nossas responsabilidades
com vários dias de antecedência. Como deixaria o almoço
pronto, só precisaríamos esquentá-lo quando batesse a fome.
Mostrou a cada um de nós separadamente — Julie, Sue e
depois eu — como fazer funcionar o forno, obrigando-nos a
prometer que verificaríamos três vezes se ele estava apagado
corretamente. Mudou de ideia e disse que iria preparar um
almoço frio. Mas finalmente decidiu que, durante o inverno,
nós precisaríamos comer uma refeição quente no meio do
dia. Papai, por sua vez, nos disse o que fazer se alguém
batesse à porta da frente, embora, obviamente, ninguém
jamais batia à nossa porta. Explicou o que devíamos fazer se
a casa se incendiasse. Não devíamos ficar dentro de casa e
lutar contra o fogo, e sim correr para o telefone público mais
próximo, sem jamais esquecer Tom. Estávamos proibidos de
brincar no porão, ligar o ferro de passar e enfiar o dedo nas
tomadas elétricas. Ao levarmos Tom ao banheiro, tínhamos
de segurá-lo o tempo todo.
Fomos obrigados a repetir essas instruções solenemente até
que todos os pormenores estivessem corretos, e por fim nos
juntamos na porta da frente para ver nossos pais
caminharem rumo à parada de ônibus vestindo seus trajes
escuros. De poucos em poucos metros eles se voltavam para
trás com olhares ansiosos, e todos nós acenávamos
alegremente em resposta. Quando os perdemos de vista,
Julie bateu a porta da frente empurrando-a com o pé, deu
um grito de guerra e, num movimento único, rodopiou e me
deu um soco forte nas costelas. A pancada me jogou contra a
parede. Julie subiu a escada de três em três degraus, olhou
para mim no andar de baixo e caiu na gargalhada. Eu e Sue
partimos atrás dela e, chegando lá em cima, travamos uma
desenfreada e violenta guerra de travesseiros. Mais tarde, fiz
uma barricada no alto da escada com colchões e cadeiras, a
qual foi atacada de baixo por minhas irmãs. Sue encheu de
água uma bola de soprar e atirou na minha cabeça. Tom
ficou plantado ao pé da escada, rindo e se balançando de um
lado para outro. Uma hora depois, excitado, fez cocô nas
calças: o cheiro forte e incomum, ao nos atingir no andar de
cima, interrompeu a batalha. Julie e Sue se uniram para dizer
que eu devia lidar com o problema porque nós éramos do
mesmo sexo. Apelei meio inseguro para a própria natureza
das coisas, dizendo que, como garotas, era obviamente
obrigação delas cuidar do assunto. Como nada foi resolvido,
a luta prosseguiu. Em breve Tom começou a chorar alto.
Paramos de novo. Levamos Tom para seu quarto e o
plantamos no grande berço de bronze. Julie apanhou seus
arreios de proteção e o prendeu à cama. A essa altura os
berros de Tom eram ensurdecedores, seu rosto estava
vermelhíssimo. Levantamos a lateral do berço e fugimos do
quarto, ansiosos por escapar do cheiro e dos gritos. Tão logo
fechamos a porta, quase não se ouvia mais nada e pudemos
continuar nossas brincadeiras sem ser incomodados.
Foram só algumas horas, mas pareceram ocupar um bom
pedaço de minha infância. Meia hora antes de nossos pais
chegarem, rindo sem parar por causa do risco que
corríamos, começamos a pôr tudo em ordem. Limpamos
Tom num esforço conjunto. Descobrimos o almoço que
havíamos estado ocupados demais para comer e o fizemos
desaparecer na privada. A noite, o segredo compartilhado
nos deixou eufóricos. Já de pijama, nos reunimos no quarto
de Julie para discutir como fazer aquilo de novo em breve.
Quando mamãe morreu, por trás das emoções mais fortes
havia uma sensação de aventura e liberdade que eu mal
admitia a mim mesmo e que derivava da memória daquele
dia vivido cinco anos antes. Mas agora não havia a menor
excitação. Os dias eram longos demais, quentes demais, a
casa parecia ter caído no sono. Nem nos sentávamos do lado
de fora porque o vento soprava uma poeira fina e negra
vinda do lado dos blocos de apartamentos e das auto-estradas
mais além. E, malgrado o calor, o sol nunca penetrava
através de uma alta nuvem amarelada: tudo que eu via
parecia fundir-se e tornar-se insignificante naquela claridade
permanente. Tom era o único feliz, ao menos durante o dia.
Tinha seu amigo, o tal com quem havia brincado na areia;
não pareceu notar que a areia havia sumido e seu amigo
nunca mencionou a história que eu lhe contara sobre sua
mãe. Brincavam mais acima na rua, entrando e saindo das
ruínas das casas pré-fabricadas. A noite, após seu amigo ter
voltado para casa, Tom ficava de mau humor e chorava à
toa. No mais das vezes, procurava Julie quando queria
atenção, o que dava nos nervos dela. "Não fique
perguntando para mim!", ela estourava. "Me deixe em paz,
Tom, só por um instante." Mas pouca diferença fazia. Tom
cismara que lhe cabia cuidar dele agora e a seguia pela casa
choramingando. Não prestava atenção em Sue ou em mim
quando tentávamos distraí-lo. Certa tarde, logo no começo,
quando Tom estava particularmente exigente e Julie mais
irritada que de costume, ela de repente o segurou na sala de
visitas e arrancou suas roupas.
"Pronto", ela repetia, "agora você conseguiu."
"O que você está fazendo?", perguntou Sue em meio aos
soluços de Tom.
"Se ele quer que eu seja a mamãezinha dele", Julie gritou,
"então pode começar fazendo o que eu mando. Para a
cama!" Não eram nem cinco horas da tarde. Ouvimos os
berros de Tom nu e o som de água correndo. Dez minutos
depois ele estava de volta vestindo o pijama e, totalmente
domado, permitiu que Julie o levasse para seu quarto. Ela
voltou fingindo que tirava poeira das mãos e rindo
gostosamente. "Era isso que ele queria."
"E é isso que você sabe fazer melhor", eu comentei. Fui mais
áspero do que desejava. Julie chutou de leve meu pé.
"Cuidado", ela murmurou, "ou você vai ser o próximo."
Tão logo terminamos nosso trabalho no porão, Julie e eu
fomos direto para a cama. Como tinha dormido no começo
da noite, Sue ficou acordada e cuidou de Tom durante o dia.
Acordei no final da tarde com muita sede e calor. Não havia
ninguém no andar de baixo, mas eu ouvi a voz de Tom do
lado de fora. Quando me inclinei para beber da torneira da
pia da cozinha, uma nuvem de moscas zumbiu ao redor da
minha cabeça. Caminhei com os lados dos pés nus porque o
chão em volta da pia estava coberto de alguma coisa amarela
e grudenta, provavelmente suco de laranja derramado.
Ainda meio zonzo depois do sono, subi até o quarto de Sue.
Ela estava sentada na cama com as costas contra a parede e
os joelhos erguidos. No seu colo havia um caderno aberto.
Baixou o lápis quando cheguei e fechou o caderno com um
movimento rápido. O ar abafado fazia crer que ela estava lá
havia horas. Sentei-me na beira da cama, pertinho dela.
Tinha vontade de falar, embora não sobre a noite anterior.
Queria que alguém afagasse minha cabeça. Sue apertou os
lábios, como se decidida a não ser a primeira a falar. "O que
é que você está fazendo?", eu disse por fim, olhando para o
caderno.
"Nada", ela respondeu, "só escrevendo." Segurava o caderno
com as duas mãos contra a barriga.
"Escrevendo o quê?" Ela suspirou.
"Nada. Só escrevendo." Arranquei o caderno de suas mãos,
virei-me de costas e o abri. Antes que ela bloqueasse minha
visão com o braço, tive tempo de ler no topo de uma página
"Terça-feira, querida mamãe".
"Me dê isso", Sue gritou — e sua voz soou tão estranha, tão
inesperadamente violenta, que a deixei retomar o caderno.
Ela o pôs sob o travesseiro e sentou-se na beira da cama,
encarando a parede em sua frente. Seu rosto estava
vermelho, as sardas pareciam mais escuras. A veia na
têmpora estava bem visível e pulsava raivosamente. Dei de
ombros e decidi ir embora, mas ela não olhou para mim.
Quando passei pela porta, ela a fechou com um repelão e
trancou à chave. Ouvi-a chorar quando comecei a me
afastar. Voltei e bati na porta, chamando seu nome. Em
meio aos soluços ela me disse que fosse embora, e foi o que
fiz. No banheiro lavei o cimento ressecado em minhas
mãos.
Na semana seguinte ao enterro não cozinhamos uma única
refeição. Julie foi ao correio buscar dinheiro e voltou com
sacos de compras, porém as verduras e a carne que trouxe
ficaram por lá intocadas até que tivemos de jogá-las fora. Em
vez disso, comemos pão, queijo, creme de amendoim,
biscoitos e frutas. Tom se entupiu de barras de chocolate e
não parecia necessitar de mais nada. Quando alguém se
prestava a preparar o chá, todos bebiam, embora em geral
nos contentássemos com a água tomada diretamente na pia
da cozinha. No dia em que fez as compras, Julie deu duas
libras a Sue e a mim.
"E quanto é que você recebeu?", perguntei. Julie fechou a
bolsa com um som seco.
"O mesmo que vocês", respondeu. "O resto é para a comida
e outras coisas."
Não demorou para que a cozinha começasse a feder e se
encher de moscas. Nenhum de nós tinha vontade de fazer
nada sobre aquilo senão manter a porta da cozinha fechada.
Fazia calor demais. Então, alguém — não eu — jogou a
carne fora. Encorajado, lavei algumas garrafas de leite,
recolhi embalagens vazias e matei umas dez moscas. Nessa
mesma noite Julie disse a Sue e a mim que era hora de
cuidarmos da cozinha. "Fiz um monte de coisas lá hoje e
vocês duas nem notaram," eu disse. As duas riram.
"Que coisas?", disse Sue, e, quando lhes disse, riram ainda
mais alto do que era necessário.
"Ah, muito bem", se disseram, "ele já fez sua parte pelas
próximas semanas." Resolvi então que não me importaria
mais com a cozinha, o que fez com que Julie e Sue também
decidissem não limpá-la. Só vários dias depois, quando
cozinhamos uma refeição, é que algo finalmente foi feito.
No meio-tempo, as moscas se espalharam pela casa e,
formando verdadeiras nuvens nas proximidades das janelas,
produziam pequenos e continuados estalidos ao se atirarem
contra os vidros.
Eu me masturbava todas as manhãs e todas as tardes.
Perambulava pela casa, de um aposento para outro, às vezes
surpreendido ao ver-me em meu quarto, deitado na cama e
olhando para o teto, quando tencionava ir para o jardim.
Olhava-me cuidadosamente no espelho. O que havia de
errado comigo? Tentava me assustar com o reflexo de meus
olhos, mas só sentia impaciência e uma ligeira repugnância.
Ficava de pé no centro do meu quarto ouvindo os
longínquos e ininterruptos sons do tráfego. Ouvia então as
vozes das crianças brincando na rua. Os dois sons se
fundiam e pareciam pressionar o topo da minha cabeça.
Deitava-me outra vez na cama, agora fechando os olhos.
Quando uma mosca passeava pelo meu rosto, fazia questão
de não me mexer. Não aguentava ficar mais na cama, porém
já me enfastiava por antecipação ao imaginar qualquer
atividade. Para escapar do marasmo, pensava em minha mãe
lá embaixo. Ela para mim se tornara um mero fato.
Levantava-me e ia até a janela, olhando durante muito
tempo os blocos de apartamentos mais além das ervas
ressecadas. Rodava então pela casa para ver se Julie já tinha
voltado. Ela frequentemente desaparecia por muitas horas,
em geral durante as tardes. Quando lhe perguntava aonde
tinha ido, ela me mandava cuidar da minha vida. Julie não
estava em casa e Sue se trancara no quarto. Se batesse em
sua porta, ela me perguntaria o que eu queria e eu não
saberia o que dizer. Lembrei-me das duas libras. Saindo de
casa pelos fundos, pulei a cerca para que Tom não me visse e
pedisse para ir comigo. Por nenhuma razão em particular,
comecei a correr em direção às lojas.
Não tinha ideia do que queria comprar. Pensei que saberia
ao ver e, mesmo se custasse mais de duas libras, ao menos eu
teria alguma coisa para desejar, alguma coisa sobre a qual
pensar. Corri até lá. Exceto pelos carros, a principal rua de
comércio estava vazia. Era domingo. A única pessoa à vista
era uma mulher vestindo um casaco vermelho, de pé na
passarela que se erguia acima da rua. Perguntei-me por que
ela estaria usando um casaco vermelho naquele calor. Talvez
ela estivesse se perguntando por que eu chegara correndo,
pois parecia olhar fixamente na minha direção. Embora
ainda muito longe, tive a impressão de que a conhecia. Podia
ser uma professora da minha escola. Como não queria dar
meia-volta tão cedo, continuei caminhando rumo à
passarela. Enquanto caminhava, olhei as vitrines à minha
esquerda. Eu não gostava de encontrar professores da escola
na rua. Imaginei que podia passar por baixo dela, se ainda
estivesse lá, fingindo não tê-la visto. No entanto, cinquenta
metros antes da passarela não resisti à tentação de olhar para
cima. A mulher era minha mãe, que me fitava diretamente.
Parei. Ela havia transferido o peso do corpo de um pé para o
outro sem sair do lugar. Voltei a caminhar em sua direção.
Descobri que era difícil fazer minhas pernas se moverem,
meu coração batia tão depressa que estava certo de que iria
vomitar. Chegando quase embaixo da passarela, parei de
novo e ergui o olhar. Fui tomado por um grande alívio e ri
alto ao reconhecer a figura tão familiar. Obviamente não se
tratava de minha mãe, era Julie usando um casaco que eu
jamais vira.
"Julie!", chamei. "Pensei que você..." Corri para debaixo da
passarela e subi aos pulos a escada de madeira. Agora, cara a
cara com ela, vi que também não era Julie. A mulher tinha
um rosto estreito, cabelos ralos e grisalhos. Não saberia dizer
se era jovem ou velha. Ela enfiou as mãos nos bolsos e
balançou-se levemente.
"Não tenho nenhum dinheiro", ela disse, "não chegue perto
de mim."
No caminho para casa, voltou a sensação de vazio e aquele
acontecimento perdeu qualquer significado. Fui direto para
meu quarto e, embora não encontrasse nem ouvisse
ninguém, sabia que os outros estavam por lá. Tirei todas as
roupas e enfiei-me debaixo do lençol. Algum tempo depois
fui acordado de um sono profundo por risos agudos. Fiquei
curioso, mas, por alguma razão, de início não me mexi.
Preferi ouvir. Eram as vozes de Julie e Sue. No final de cada
explosão de riso elas emitiam um som que era uma mescla
de canto e suspiro, fundindo-se depois em palavras que eu
não era capaz de discernir. O riso então recomeçava. Sentia-
me irritadiço depois do sono inesperado. Tinha a sensação
de que meu crânio fora compactado, encolhido, enquanto os
objetos no quarto haviam se tornado densos demais,
aprisionados no espaço que ocupavam e quase estourando
sob uma forte pressão interna. Antes que as vestisse, minhas
roupas pareciam ser feitas de aço. Já vestido, fiquei do lado
de fora do quarto, apurando o ouvido. Chegou-me apenas o
murmúrio de uma voz e o ranger de uma cadeira. Desci a
escada tão silenciosamente quanto pude. Senti um forte
desejo de espionar minhas irmãs, de estar com elas, mas me
mantendo invisível. O vasto hall do térreo estava às escuras.
Isso me permitiu ficar a certa distância da porta aberta da
sala de visitas sem ser visto. Dava para observar Sue
claramente: sentada à mesa, cortava algo com uma grande
tesoura. Julie, ocultada em parte pela moldura da porta,
encontrava-se de costas para mim, impedindo que eu visse o
que ela fazia. Seu braço se movia para a frente e para trás
com um som débil e farfalhante. No momento em que
avancei para ver melhor, uma garotinha passou diante dela e
foi se colocar junto ao cotovelo de Sue. Julie voltou-se e
ficou atrás da garota, com uma das mãos em seu ombro. Na
outra mão segurava uma escova de cabelo. As três ficaram
agrupadas dessa forma por algum tempo, mantendo-se
caladas. Quando Sue se mexeu ligeiramente, vi que cortava
um tecido azul. A garotinha inclinou-se para trás contra o
corpo de Julie, que envolveu seu queixo com as duas mãos e
lhe bateu de leve no peito com a escova.
Obviamente, tão logo se falaram eu percebi que era Tom.
Ele disse: "Leva muito tempo, não é?", e Sue concordou com
a cabeça. Dei alguns passos para dentro da sala, porém
ninguém reparou em mim. Tom e Julie concentravam-se em
acompanhar os movimentos de Sue enquanto reformava
uma de suas saias do uniforme escolar. Ela a cortara mais
curta e agora começava a costurar a bainha. Tom usava um
vestido cor de laranja, que eu já tinha visto antes, e uma
peruca de cabelos louros e encaracolados que não sei onde
elas haviam encontrado. Como é fácil se tornar outra pessoa!
Cruzei os braços, como se me abraçasse. São só as roupas e
uma peruca, pensei, é Tom fantasiado. Mas eu via outra
pessoa muito diferente de Tom. Senti um misto de excitação
e medo. Apertei as mãos e esse movimento fez com que
todos se voltassem para me olhar.
"O que é que vocês estão fazendo?", eu disse após alguns
segundos.
"Vestindo ele", disse Sue, voltando a costurar.
Tom me deu uma olhada de relance e, virando o corpo na
direção da mesa onde Sue costurava, encarou um canto da
sala. Ficou brincando com a bainha de sua saia, enrolando e
desenrolando o tecido entre o indicador e o polegar.
"Para que isso?", perguntei. Julie deu de ombros e sorriu.
Usava calças jeans desbotadas e enroladas até acima dos
joelhos e uma blusa desabotoada por cima do sutiã do
biquíni. Amarrara os cabelos com uma fita azul, enquanto
outro pedaço da mesma fita envolvia um de seus dedos.
Julie levantou da cadeira e se plantou diante de mim. "Ah,
vamos", ela disse, "se anime, não quero mais ver essa cara de
tragédia!" Exalava o cheiro doce do creme de bronzear e eu
podia sentir o calor irradiado por sua pele. Ela devia ter
tomado sol o dia inteiro em algum lugar. Desenrolando a fita
do dedo, passou-a por meu pescoço. Afastei suas mãos
quando ela começou a dar o laço debaixo do meu queixo,
mas o fiz sem convicção e ela, persistindo, completou a
operação. Pegou-me pela mão e a segui até a mesa.
"Aqui está mais um", ela disse para Sue, "que se cansou de
ser um garoto emburrado." Normalmente eu teria retirado a
fita, mas não queria largar a mão de Julie, seca e fresca.
Todos agora olhavam por sobre o ombro de Sue. Nunca me
dera conta de quão habilidosa ela era. Sua mão voava para a
frente e para trás com a regularidade da lançadeira de um
tear mecânico. E, no entanto, como o trabalho avançava
lentamente, senti uma enorme impaciência. Queria varrer
para o chão num só golpe o tecido, a agulha e os alfinetes.
Teríamos de esperar que ela acabasse antes de
conversarmos, ou antes que acontecesse qualquer coisa.
Finalmente, ela cortou a linha com um repuxão e se pôs de
pé. Largando minha mão, Julie se postou atrás de Tom. Ele
ergueu os braços e ela puxou o vestido por cima de sua
cabeça. Por baixo, ele usava a camisa branca de sempre. Sue
ajudou-o a vestir a saia azul pregueada e Julie ajustou uma
das gravatas escolares de Sue em seu pescoço. Fiquei
olhando enquanto passava os dedos pela fita azul. Se a tirasse
agora, me tornaria outra vez um espectador e teria de tomar
alguma atitude com respeito ao que estava acontecendo.
Tom calçou meias brancas e Sue foi buscar sua boina. As
garotas riram e conversaram entre si enquanto prosseguiam
com as preparações. Sue contava a história de uma colega
que cortou o cabelo bem curto e foi para a escola de calças,
conseguindo com isso entrar no vestiário dos garotos. Mas
foi apanhada porque começou a rir ao ver todos alinhados
urinando no mictório.
"Ele não é bonitinho?", disse Julie. Enquanto o olhávamos,
Tom permaneceu totalmente imóvel, com as mãos atrás das
costas e os olhos baixos. Se estava mesmo gostando de ser
vestido daquele jeito, não chegou a demonstrá-lo. Foi até o
hall para se ver no espelho de corpo inteiro. Observei-o
através da porta aberta: de lado para o espelho, ele se via por
cima do ombro.
Enquanto Tom estava fora da sala, Julie pegou minhas duas
mãos e disse: "E agora, o que é que vamos fazer com o
zangadinho?" Seus olhos estudaram meu rosto. "Você não
vai virar uma garota bonita como Tom com essas espinhas
horríveis." Sue, que viera se postar junto a mim, puxou um
fio de meu cabelo e disse: "Nem com esses cabelos
compridos e gordurosos que ele não lava nunca".
"Nem com esses dentes amarelos", disse Julie.
"Nem esses pés fedorentos", continuou Sue. Julie virou as
palmas de minhas mãos para baixo.
"Nem com essas unhas sujas." As duas examinaram minhas
unhas, soltando exclamações exageradas de repugnância.
Tom olhava tudo da porta. Eu estava me divertindo muito
com aquele exame minucioso.
"Olhe essa aqui", disse Sue, e a senti tocar meu indicador,
"tem verde e vermelho embaixo dela." Ambas riram, davam
a impressão de se deliciar com tudo que encontravam.
"O que é aquilo?", perguntei, olhando para o outro lado da
sala. Quase oculta sob uma cadeira havia uma caixa de
papelão comprida com a tampa semierguida. Um papel de
seda branco escapava do canto da caixa.
"Ah", Sue exclamou, "é da Julie." Fui até lá e afastei a caixa
da cadeira. Dentro dela, envolta em papel branco e cor de
laranja, havia um par de botas de cano longo. Eram de um
marrom muito escuro e exalavam um potente cheiro de
couro e perfume.
De costas para mim, Julie dobrava lenta e cuidadosamente o
vestido cor de laranja que Tom usara. Peguei uma das botas.
"Onde é que você arranjou isso?" "Numa loja", disse Julie
sem se voltar. "Quanto custou?"
"Não muito." Sue estava bastante excitada.
"Julie", ela disse num sussurro bem audível, "elas custaram
trinta e oito libras!"
"Você pagou trinta e oito libras?", perguntei.
Julie negou com a cabeça e pôs o vestido cor de laranja
debaixo do braço. Lembrei-me da fita ridícula em volta do
pescoço e tentei arrancá-la, mas ela não saiu e o laço se
transformou num nó. Sue começou a rir. Julie caminhou
para a porta da sala.
"Então você roubou as botas", eu disse, e ela mais uma vez
balançou a cabeça. Segurando ainda uma das botas, subi a
escada atrás dela. Já em seu quarto, continuei: "Você nos deu
duas libras, a mim e a Sue, e aí gasta trinta e oito libras num
par de botas". Julie sentou-se diante do espelho que
prendera à parede e começou a escovar os cabelos.
"Errado", cantarolou. Joguei a bota em cima da cama e usei
as duas mãos para partir a fita em volta do pescoço. O nó se
tornou minúsculo e ficou duro como uma pedra. Julie
esticou os braços e bocejou.
"Se você não comprou, então só pode ter roubado."
Ela respondeu: "Negativo", mantendo depois a boca franzida
em torno da palavra num ricto irônico.
"Então o quê?", perguntei, postando-me bem atrás dela. Ela
estava olhando a si própria no espelho, e não para mim.
"Você não consegue pensar em nenhuma outra maneira?"
Neguei com a cabeça. "Não há nenhuma outra maneira, a
menos que você mesma as tenha feito."
Julie soltou uma risada. "Ninguém nunca lhe deu um
presente?"
"Quem é que lhe deu as botas?"
"Um amigo."
"Que amigo?"
"Rá, rá, aí eu tinha que contar um segredo."
"Um sujeito."
Julie levantou-se e se voltou para encarar-me, apertando os
lábios até fazê-los parecer um morango. "Claro que ele é um
sujeito", disse por fim. Eu tinha uma noção imprecisa de
que, como irmão, estava no direito de fazer perguntas sobre
seu namorado. Mas, como não havia nada em Julie que
justificasse tal ideia, me senti mais desalentado do que
curioso. Ela pegou uma tesourinha de unha na mesa de
cabeceira e cortou a fita perto do nó. Deixando-a cair no
chão, ela disse: "Pronto", e me beijou de leve na boca.

TRÊS SEMANAS APÓS A MORTE DE MAMÃE, comecei a reler o
livro que Sue me dera no meu aniversário. Surpreendeu-me
o quanto eu havia perdido da leitura. Não me dera conta de
quão exigente era o comandante Hunt em manter a nave
limpa e arrumada, em especial durante as longas viagens
pelo espaço. A cada dia — o velho dia terrestre —, ele
descia por uma escada de aço inoxidável para inspecionar o
refeitório. Guimbas de cigarros, talheres de plástico, revistas
velhas, canecas e café derramado flutuavam
desordenadamente no aposento. "Agora que não contamos
com a gravidade para manter as coisas em seus lugares", dizia
o comandante Hunt aos técnicos em computação que
faziam sua primeira viagem espacial, "precisamos tomar um
cuidado excepcional para nos conservarmos limpos." E,
durante as muitas horas em que não era necessário tomar
decisões urgentes, o comandante Hunt matava o tempo
"lendo e relendo as obras-primas da literatura universal e
registrando seus pensamentos num pesado diário
encadernado em aço, enquanto Cosmo, o fiel cão de caça,
cochilava a seus pés". A espaçonave do comandante Hunt
cruzava o universo a um centésimo da velocidade da luz
buscando a fonte de energia que transformara os esporos
num monstro. Perguntei-me se ele se importaria com as
condições do refeitório ou com a literatura universal se a
nave houvesse permanecido totalmente imóvel, ocupando
uma posição fixa no espaço.
Tão logo acabei a leitura, desci com o livro para entregá-lo a
Julie ou Sue. Queria que mais alguém o lesse. Encontrei Julie
sozinha na sala de visitas, sentada numa cadeira de braços
com as pernas dobradas sob o corpo. Fumava um cigarro e,
quando entrei na sala, jogou a cabeça para trás soprando uma
coluna de fumaça na direção do teto. "Não sabia que você
fumava", eu disse. Ela deu outra tragada e confirmou com
uma breve sacudidela da cabeça. Aproximei-me com o livro.
"Você devia ler isso", eu disse, entregando-o para ela.
Julie observou por algum tempo a capa, enquanto, atrás de
sua cadeira, eu fazia o mesmo. Semelhante a um polvo, o
monstro atacava uma espaçonave. À distância, a nave do
comandante Hunt chegava velozmente em socorro. Eu
antes não havia examinado a ilustração com cuidado, e ela
agora parecia ridícula. Senti vergonha da capa, como se eu
próprio a tivesse desenhado. Julie devolveu o livro por cima
do ombro, segurando-o por uma ponta.
"A capa não é grande coisa", eu disse, "mas tem umas
passagens muito boas." Julie balançou a cabeça e soprou mais
fumaça, dessa vez para o outro lado da sala.
"Não faz meu gênero", retrucou. Pus o livro sobre a mesa,
com a capa virada para baixo, e dei a volta para me postar
diante de sua cadeira.
"O que é que você quer dizer com isso? Como sabe que tipo
de livro é esse?"
Julie deu de ombros. "Não sou mesmo muito chegada à
leitura."
"Mas ia gostar desse livro se começasse a ler." Peguei o livro
de novo e voltei a examiná-lo. Não sabia por que estava tão
ansioso para que alguém mais o lesse. De repente, Julie se
inclinou para a frente e tomou o livro de minha mão.
"Está bem, se você realmente quer, vou tratar de ler." Falou
como se estivesse se dirigindo a uma criança prestes a cair
no choro, o que me deu raiva. "Não precisa ler só para me
agradar", retruquei, tentando retomar o livro. Ela o afastou
de mim.
"Ah, não", ela disse sorrindo, "de jeito nenhum." Agarrei seu
pulso e torci. Julie transferiu o livro para a outra mão e o
escondeu às suas costas. "Você está me machucando."
"Me dá de volta, não faz seu gênero." Empurrei-a para o lado
até o livro ficar visível. Ela me deixou pegá-lo sem resistên-
cia e o levei para o outro lado da sala. Julie me olhou
fixamente, esfregando o pulso.
"Que que há com você?", perguntou quase num sussurro.
"Você precisa ser internado." Não lhe dei trela e me sentei.
Ficamos em cantos opostos da sala por um bom tempo. Julie
acendeu outro cigarro e eu reli certos trechos do livro. Meus
olhos se moviam ao longo das linhas impressas, porém o
cérebro não registrava nada. Eu queria lhe dizer algo
conciliatório antes de sair da sala, mas não conseguia pensar
em nada que não soasse idiota. Além do mais, eu me disse,
ela bem que tinha merecido. Na véspera, eu havia feito Tom
chorar com um peteleco na cabeça porque ele me acordou
fazendo um barulhão diante da porta do quarto. Ele se jogou
no chão, segurando a cabeça, e gritou tão alto que Sue
chegou correndo do seu quarto.
"Foi culpa dele", eu disse, "fazer um barulho desses de
manhã cedinho." Ela massageou a cabeça de Tom.
"Manhã cedinho!", disse numa voz suficientemente alta para
vencer os urros de Tom. "E quase uma hora da tarde!"
"Muito bem, mas é de manhã cedinho para mim", gritei
também, voltando para a cama.
Eu não via mesmo nenhuma razão para me levantar. Não
havia nada especialmente interessante para comer e eu era o
único que não tinha o que fazer. Tom brincava do lado de
fora o dia todo, Sue permanecia no quarto lendo e
escrevendo no caderno, Julie saía com o sujeito que lhe
havia dado as botas. Quando não estava fora, se preparava
para sair. Tomava banhos demorados que enchiam a casa
com um cheiro doce, mais forte que o da cozinha. Passava
um tempão lavando e escovando os cabelos, pintando os
olhos. Usava roupas que eu nunca tinha visto antes, uma
blusa de seda e uma saia de veludo marrom. Eu acordava no
fim da manhã, me masturbava e dormitava de novo. Tinha
sonhos, sonhos ruins que não chegavam a ser pesadelos, mas
dos quais só me livrava lutando para acordar. Gastei minhas
duas libras comprando peixe e batatas fritas, e, quando pedi
mais a Julie, ela me passou uma nota de cinco sem dizer uma
palavra. Durante o dia, eu ouvia o rádio. Pensei se devia
voltar para a escola após as férias de verão, pensei em
arranjar um emprego. Nenhuma das duas ideias me atraía.
Algumas tardes, dormia na poltrona embora houvesse
acordado poucas horas antes. Olhava-me no espelho e via
que as espinhas desciam o rosto em direção ao pescoço.
Perguntava-me se acabariam por cobrir todo o meu corpo —
e nem me importava se isso acontecesse.
Finalmente, Julie pigarreou e disse: "E aí?". Olhei para a
porta da cozinha, que ficava atrás dela.
"Vamos limpar a cozinha", eu disse de repente. Acertei na
mosca. Julie se pôs de pé num salto e, com o cigarro
pendendo de um canto da boca, imitou um gângster de
cinema.
"Agora você falou tudo, garotão, agora você brilhou."
Ofereceu a mão e me puxou da cadeira.
"Vou chamar Sue", eu disse, mas Julie sacudiu a cabeça. Com
uma metralhadora imaginária apoiada no quadril, ela pulou
para dentro da cozinha e disparou para todo lado, nos pratos
cobertos de mofo, nas moscas e varejeiras, no monte de lixo
que havia desabado e se espalhado pelo chão. Julie atirou em
tudo, fazendo os mesmos sons no fundo da garganta que
Tom usava em suas brincadeiras de mocinho. Pensei se
devia entrar na brincadeira. Julie rodopiou e encheu minha
barriga de balas. Caí no chão a seus pés, uma embalagem de
manteiga a alguns centímetros do meu nariz. Julie agarrou
um punhado de meus cabelos e puxou minha cabeça para
trás. Trocou a metralhadora por uma faca e, ao apertá-la
contra minha garganta, disse: "Mais um probleminha, e te
enfio isso aqui". Então se ajoelhou e espetou o dedo no meu
ventre. "Ou aqui", sussurrou em tom dramático, fazendo
com que ambos caíssemos na risada. A brincadeira de Julie
acabou de forma súbita. Começamos a varrer a sujeira e
recolhê-la em caixas de papelão, que carregávamos para as
latas de lixo. Sue nos ouviu e desceu para ajudar.
Desentupimos os ralos, lavamos as paredes, esfregamos o
chão. Enquanto Sue e eu atacávamos os pratos, Julie foi
comprar os gêneros alimentícios. Acabamos no exato
momento em que ela voltou, e logo começamos a cortar os
legumes para preparar um grande cozido. Posta a panela no
fogo, Julie e Sue foram fazer uma faxina na sala de visitas,
enquanto eu limpava as janelas pelo lado de fora. Vi minhas
irmãs, suas imagens toldadas por uma película de água,
empurrarem toda a mobília para o centro da sala — e pela
primeira vez em semanas me senti feliz. Senti-me seguro,
como se pertencesse a um exército poderoso e secreto.
Trabalhamos por umas quatro horas, uma tarefa se seguindo
a outra, e em nenhum momento pensei em mim.
Levei alguns capachos e um pequeno tapete para o jardim,
batendo forte neles com um pedaço de pau para tirar todo o
pó. Já fazia isso havia algum tempo quando ouvi um ruído às
minhas costas. Voltei-me: era Tom e seu amigo dos blocos
de apartamentos. Tom usava o uniforme escolar de Sue e
seus joelhos sangravam após uma queda. Ele passara a
brincar com frequência na rua usando a saia da irmã.
Nenhuma das outras crianças o gozava, como eu acreditava
que iria ocorrer. Nem pareciam notar. Eu não conseguia
entender isso. Nem morto eu deixaria que me vissem
usando a saia de minha irmã na idade dele — ou em
qualquer outra idade. Eles estavam de mãos dadas e
continuei meu trabalho. O amigo de Tom usava um lenço
enrolado no pescoço cujo desenho não me era estranho.
Trocaram algumas palavras que não pude ouvir por causa do
barulho que eu mesmo fazia. Então Tom perguntou em voz
alta: "Por que que você está fazendo isso?". Expliquei-lhe e
perguntei: "E por que você está usando essa saia?". Tom não
respondeu. Dei mais algumas pancadas no tapete e parei de
novo, perguntando ao amigo de Tom: "Por que ele está
usando a saia?"
"Na nossa brincadeira, Tom é Julie."
"E você, quem é você?"
O menino não respondeu. Levantei o pedaço de pau e,
quando descia o braço, Tom disse: "Ele é você".
"Você disse que ele é eu?" Ambos concordaram sacudindo a
cabeça. Joguei o pau longe e tirei os capachos do varal. "O
que vocês fazem nessa brincadeira?"
O amigo de Tom deu de ombros. "Nada de mais."
"Vocês têm brigas?" Tentei incluir Tom em minha pergunta,
mas ele olhava em outra direção. O menino negou com a
cabeça. Empilhei os capachos e o tapete. "Vocês são amigos
na brincadeira? Ficam de mãos dadas?"
Eles soltaram as mãos e riram.
Tom entrou em casa atrás de mim, mas seu amigo
permaneceu do lado de fora, junto à porta da cozinha. Ele
disse a Tom que ia voltar para casa, embora desse à suas
palavras a entonação de uma pergunta. Tom concordou com
a cabeça sem se voltar. Na sala havia quatro pratos sobre a
mesa, cada qual ladeado por um garfo e uma faca. No centro,
uma garrafa de molho de tomate e uma tacinha para ovos
quentes cheia de sal. Uma cadeira diante de cada prato.
Como se fôssemos gente de verdade, pensei. Tom subiu para
ver Julie e Sue, enquanto eu caminhava da sala para a
cozinha e da cozinha para a sala como o comandante Hunt
inspecionando o refeitório. Abaixei-me duas vezes para
pegar fiapos de tecido no tapete. Um saco de compras, feito
de cordas vivamente coloridas, pendia de um gancho preso à
porta do porão. Nele havia duas maçãs e duas laranjas.
Empurrei-o com o dedo para que balançasse como um
pêndulo. O saco se movia com mais facilidade numa direção
do que na outra, e levei algum tempo para descobrir que isso
se devia ao feitio das alças. Sem pensar no que fazia, abri a
porta do porão, acendi a luz e desci correndo a escada.
A pá jazia no meio de uma grande mancha redonda de
cimento ressequido. Fez-me pensar no ponteiro das horas
de um imenso relógio quebrado. Tentei recordar qual de nós
dois a havia usado por último, porém não me lembrava
claramente da ordem dos acontecimentos. Peguei a pá e a
encostei contra a parede. A tampa do baú estava erguida, tal
como havíamos deixado. Lembrava-me bem disso. Passei a
mão pelo concreto que enchia o baú. Era de um cinza muito
claro e parecia quente ao toque. Um pó fino grudou-se à
minha mão. Notei que uma rachadura muito estreita cortava
a superfície em diagonal, bifurcando-se numa das
extremidades. Ajoelhei-me e, encostando o nariz na
rachadura, senti um odor adocicado e bastante intenso. Mas,
ao me levantar, ficou claro que era o aroma do cozido no
andar de cima. Sentei-me num banquinho junto ao baú e
pensei em mamãe. Esforcei-me para reproduzir seu rosto em
minha mente. Veio-me a silhueta oval de um rosto, mas os
traços em seu interior não se imobilizavam, se fundiam,
fazendo com que o oval se transformasse numa lâmpada. Ao
fechar os olhos, eu realmente via uma lâmpada elétrica. Por
um instante, o rosto de minha mãe apareceu, emoldurado
pelo oval, com o sorriso forçado que ela fazia ao posar para
uma fotografia. Construí frases e tentei pô-las em sua boca.
Mas não podia imaginar nada que ela quisesse dizer. As
coisas mais simples, como "Me passe esse livro" ou "Boa
noite" não soavam como algo que ela diria. Sua voz era alta
ou baixa? Alguma vez ela contou uma piada? Estava morta
havia menos de um mês e se encontrava no baú a meu lado.
Nem isso era certo. Tive vontade de exumá-la para me
certificar.
Corri a unha pela rachadura. Já não tinha certeza da razão
pela qual a havíamos posto no baú. Naquela hora tinha sido
óbvio: para manter a família unida. Seria esse um bom
motivo? Talvez fosse mais interessante se nos separássemos.
Nem sabia se o que havíamos feito era uma coisa normal,
compreensível ainda que fosse um erro, ou algo tão estranho
que, caso descoberto algum dia, ganharia as manchetes de
todos os jornais do país. Ou nem uma coisa nem outra, algo
que se pode ler nas páginas de dentro do jornal local e
esquecer imediatamente. Assim como a imagem de seu
rosto, todos os meus pensamentos se dissolviam em nada.
A impossibilidade de saber ou sentir alguma coisa com cer-
teza me deu um forte desejo de masturbar-me. Enfiei as
mãos nos bolsos e, quando olhei entre as pernas, vi uma
coisa vermelha. Dei um salto de surpresa. O banquinho em
que me sentara era de um vermelho berrante. Tinha sido
pintado havia muito tempo por meu pai e ficava no banheiro
do térreo. Julie ou Sue deviam tê-lo trazido para se sentarem
junto ao baú. Em vez de consolar-me, essa ideia me
assustou. Quase não conversávamos sobre mamãe. Ela era o
segredo de cada um e de todos nós. Até Tom raramente a
mencionava, e só vez por outra chorava por causa dela.
Olhei a meu redor no porão em busca de outros sinais,
porém não havia nada. Fui embora e, quando comecei a
subir, reparei que Sue me olhava do topo da escada.
"Pensei que era mesmo você lá embaixo", ela disse quando a
alcancei. Sue trazia um prato na mão.
"Tem uma rachadura, você viu?"
"Está aumentando", ela disse rapidamente, "mas adivinha só
uma coisa!" Dei de ombros. Ela me mostrou o prato.
"Alguém vem tomar chá conosco." Afastei-a para entrar na
cozinha, mas não havia ninguém lá. Sue apagou as luzes do
porão e fechou a porta à chave.
"Quem?" Dava para ver agora como Sue estava excitada.
"Derek, o cara de Julie." Na sala, observei enquanto Sue
colocava o prato adicional. Ela me levou até o pé da escada,
apontou para cima e sussurrou: "Escute". Ouvi a voz de Julie
e depois, em resposta, a de um homem. De repente, ambos
falaram ao mesmo tempo e riram.
"E daí?", perguntei a Sue. "Grande coisa." Meu coração esta-
va a toda. Joguei-me numa poltrona e comecei a assoviar.
Sue também se sentou e secou um suor imaginário da testa.
"Por sorte nós tínhamos limpado tudo, não é?" Continuei a
assoviar, escolhendo as notas ao azar, numa espécie de
pânico, e só aos poucos engrenando uma melodia.
Tom chegou do andar de cima trazendo o que parecia ser
um gato grande. Era sua peruca. Levou-a até Sue e pediu que
a pusesse nele. Ela o manteve afastado e apontou para seus
joelhos e suas mãos, recusando-se a pôr a peruca enquanto
ele não se lavasse. Enquanto Tom estava no banheiro,
perguntei: "Como é ele?".
"Tem um carro, um carro novo, olhe lá", ela respondeu,
fazendo um sinal na direção da janela. Mas não olhei.
Quando Tom voltou, Sue lhe disse: "Se você quer ser uma
garota na hora do chá, por que não usa o vestido cor de
laranja?". Ele sacudiu a cabeça e, tão logo Sue ajustou a
peruca, correu para o hall a fim de se ver no espelho. Ao
voltar, sentou-se na minha frente e enfiou o dedo no nariz.
Sue lia um livro e recomecei a assoviar, agora mais baixo.
Tom tirou alguma coisa do nariz na ponta do indicador, deu
uma olhadela e limpou no assento da cadeira. Vez por outra
eu também fazia isso, mas apenas quando estava a sós, em
geral na cama, de manhã. Não é tão feio quando uma garota
faz isso, pensei, e fui até a janela. Era um carro esporte, do
tipo antigo, com estribo e capota de couro aberta. Pintado de
vermelho vivo, uma estreita faixa preta corria ao longo de
toda a carroceria.
"Você devia ir lá fora para ver direito", disse Sue, "é
fantástico."
"Ver o quê?" Os aros das rodas e os canos de escape eram
cromados. Os lados do capo exibiam uma série de longos
cortes oblíquos. "Para deixar o ar entrar", me ouvi
explicando a um passageiro enquanto fazia uma curva
apertada nos Alpes, "ou o calor sair." Quando voltei para a
cadeira, Sue havia desaparecido.
Observei Tom cuidadosamente. Ele parecia bem pequeno na
ampla poltrona: os pés mal ultrapassavam o assento e a cabe-
ça só chegava à metade do encosto. Ele me encarou de volta
por alguns segundos e depois desviou o olhar, cruzando os
braços. Suas pernas despontavam por baixo da saia. "Como é
ser uma garota?", perguntei. Tom balançou a cabeça e
mudou de posição. "Melhor do que ser um garoto?"
"Num sei."
"Você se sente sensual?" Tom riu de imediato. Não entendeu
minha pergunta, mas sabia que aquela palavra devia pro-
vocar uma risada. "E aí, se sente ou não?" Tom deu um
sorriso artificial.
"Num sei." Inclinei-me para a frente e fiz sinal com o dedo
para que ele se aproximasse.
"Quando você põe a peruca e a saia, e aí vai até o espelho e
vê uma garota, você sente uma coisa boa no teu peruzinho,
ele fica maior?" O sorriso forçado de Tom se apagou. Ele
desceu com dificuldade da cadeira e saiu de mansinho da
sala.
Permaneci totalmente imóvel, apreciando o cheiro do
cozido. O teto estalou. Endireitei-me na cadeira. Cruzei as
pernas nos tornozelos e entrelacei as mãos debaixo do
queixo. Ouvi passos leves e rápidos na escada, Tom apareceu
correndo. "Eles estão vindo! Ele está vindo!", ele gritou. "Ele
quem?", perguntei, movendo minhas mãos para a nuca.
Julie disse: "Esse é o Derek. Esse é o Jack". Troquei um
aperto de mão sem me levantar, mas descruzei as pernas e
plantei os pés firmemente no chão. Nenhum de nós falou
durante o aperto de mão. Passado aquele instante, Derek
limpou a garganta e olhou para Julie. Ela estava atrás de Tom,
com as mãos pousadas em seus ombros. "E esse é o Tom",
ela disse de uma forma que deixava claro já lhe ter falado
sobre ele. Derek deslocou-se para trás de minha cadeira,
onde eu não podia vê-lo, e disse com um jeito bonachão:
"Ah, um menino que gosta de brincar de menina". Sue deu
uma risadinha meio sem graça e eu me levantei. Julie foi à
cozinha buscar o cozido e pediu que Tom a ajudasse.
Ficamos os três de pé no centro da sala. Como estávamos
muito próximos, parecia que balançávamos juntos. Sue falou
numa voz deliberadamente ofegante e idiota:
"Nós gostamos muito do seu carro." Derek acenou com a
cabeça. Ele era bem alto e dava a impressão de estar vestido
para um casamento: terno cinza claro, camisa e gravata cor
de creme, abotoaduras e colete com uma correntinha de
prata. "Eu não gostei muito", comentei. Ele se voltou na
minha direção e esboçou um leve sorriso. Tinha um grosso
bigode negro, tão perfeito que podia ser feito de plástico.
"E?", ele disse cortesmente, sem apagar de todo o sorriso.
"Por que não?"
"É berrante demais", respondi. Derek olhou de relance para
os sapatos. "Quer dizer, a cor, não gosto de vermelho."
"Que pena", ele disse, voltando-se para Sue e não para mim.
"E você, gosta de vermelho?" Sue olhou para a cozinha, cuja
porta ficava atrás de Derek. "Eu? Ah, eu gosto de vermelho,
especialmente num carro." Como ele voltara a olhar para
mim, repeti: "Não gosto de vermelho num carro, fica
parecendo de brinquedo". Derek se afastou um passo de nós
dois. Mantendo as mãos enfiadas no fundo dos bolsos,
balançou-se nos calcanhares. "Quando você for um pouco
mais velho, vai entender que é isso que eles todos são,
brinquedos, brinquedinhos caros", ele disse falando com
toda a calma.
"Por que são brinquedos?", perguntei. "São muito úteis para a
gente ir aonde precisa." Ele fez que sim com a cabeça e
olhou em volta da sala.
"Esses aposentos são grandes", ele disse para a Sue, "é
realmente uma casa bem grande." Sue disse: "Meu quarto é
bem pequenininho". Cruzei os braços e persisti.
"Se os carros são brinquedos, então tudo que a gente compra
também é um brinquedo." Nesse justo instante Julie chegou
com o cozido, enquanto Tom trazia um pão e o vidro de
pimenta.
"Vou ter que pensar sobre essa, Jack", disse Derek, voltando-
se para afastar uma cadeira do caminho de Julie.
Antes de nos sentarmos, reparei que Julie usava as botas
novas, a saia de veludo e a blusa de seda. Ela e Derek ficaram
lado a lado na mesa. Sentei-me num canto, junto a Tom. No
início estava irritado demais para sentir fome. Quando Julie
me passou um prato com comida, eu lhe disse que não
queria, mas ela retrucou: "Não seja bobo". Pôs o prato entre
o garfo e a faca em minha frente e sorriu para Derek. Ele
sacudiu a cabeça, significando que compreendia tudo.
Enquanto comíamos, Julie e Sue se encarregaram de animar
a conversa. Derek manteve--se bem empertigado. Abriu no
colo um lenço vermelho e azul e, quando terminou, o usou
para limpar o bigode. Feito isso, dobrou-o cuidadosamente e
guardou de volta no bolso. Queria ver os dois se tocarem.
Julie encostou a mão na dobra de seu cotovelo e lhe pediu
que passasse o sal. Alcancei a tacinha para ovos antes dele e,
ao empurrá-la para minha irmã, derramei sal pela mesa toda.
"Cuidado", disse Derek baixinho. As garotas se lançaram
numa conversa nervosa sobre a importância de jogar sal por
cima do ombro e não passar por baixo de escadas. A certa
altura, vi Derek piscar o olho para Tom, que baixou a cabeça
e encobriu o rosto com os cachos da peruca. Depois, Julie
levou Derek para o jardim, enquanto Sue e eu lavávamos os
pratos. Na verdade, limitei-me a zanzar por ali com o pano
de prato na mão. Nós dois ficamos olhando pela janela da
cozinha. Julie mostrava os caminhos estreitos e os degraus
que haviam se tornado quase invisíveis sob o emaranhado
de ervas marrons. Derek apontou para os blocos de
apartamentos e fez um gesto largo com o braço, como se
lhes ordenasse que ruíssem. Julie, com uma expressão séria,
concordou com a cabeça. "Ele realmente tem uns ombros
um bocado largos, não é mesmo? Deve ter mandado fazer
esse terno sob medida", disse Sue. Contemplamos as costas
de Derek. Sua cabeça era pequena e redonda, os cabelos
cortados do mesmo tamanho, como os pelos de uma escova.
"Ele não é tão forte", eu disse, "e é bem cheinho."
Sue tirou pratos molhados da pia e procurou um lugar para
colocá-los.
"Ele podia lhe dar uma surra com o dedo mindinho."
"Ah", gritei, "deixa só ele tentar."
Pouco depois Julie e seu namorado sentaram-se junto ao
morrinho de pedras. Sue tomou o pano de prato de minhas
mãos e começou a secar a louça. "Aposto que você não é
capaz de descobrir o que ele faz." Respondi: "Estou
cagando".
"Não vai descobrir nunca. Ele é jogador de sinuca."
"E daí?"
"Joga sinuca por dinheiro, ele é incrivelmente rico." Olhei
de novo para Derek e pensei nisso. Sentado de perfil para
mim, ele ouvia Julie atentamente. Havia arrancado um longo
talo de capim e ia cortando com os dentes pedacinhos que
depois cuspia. Sacudia a cabeça sem parar para mostrar que
concordava com as palavras dela; quando falou, pousou a
mão de leve no seu ombro. O que quer que tenha dito fez
Julie rir.
"E publicaram uma coisa sobre ele no jornal", Sue conti-
nuou.
"Que jornal?" Soltei uma risada quando Sue mencionou o
nome do semanário local.
"Todo mundo acaba aparecendo nesse jornal", eu disse, "se
viver o tempo suficiente."
"Aposto que você não adivinha a idade dele."
Não respondi nada.
"Vinte e três", disse Sue, orgulhosa, sorrindo para mim. Tive
vontade de bater nela.
"E o que há de tão especial nisso?"
Sue secou as mãos. "E a idade perfeita para um sujeito."
"Perfeita por quê? Quem falou isso?" Sue hesitou. "Foi Julie
que falou."
Bufei e tratei de sair da cozinha. Parei na sala para procurar o
comandante Hunt. Na arrumação, ele havia sido relegado a
uma estante. Corri até meu quarto com o livro, bati a porta
com força e me deitei na cama.

MEUS SONHOS RUINS passaram a se transformar em pesadelos
com maior freqüência. Havia uma grande caixa de madeira
no hall pela qual eu passara dezenas de vezes sem dar a
menor bola. Agora tinha parado para examiná-la. A tampa,
antes fixada com pregos, fora solta, alguns pregos estavam
dobrados para trás, a madeira em volta deles lascada e
esbranquiçada. Eu me encontrava tão perto da caixa quanto
podia sem ser capaz de ver o que havia dentro. Sabia que se
tratava de um pesadelo e que era importante não entrar em
pânico. Havia algo dentro da caixa. Consegui abrir os olhos
um pouquinho e, antes que eles se fechassem, reconheci o
pé da minha cama. Estava de novo no hall, ainda mais
próximo à caixa e olhando tolamente para seu interior.
Quando tentei de novo, consegui abrir os olhos sem
problema algum. Vi o canto da cama e algumas das minhas
roupas. Sentada numa grande poltrona, ao lado da cama,
mamãe cravava em mim seus olhos vazios e grandes. É
porque ela está morta, pensei. Ela parecia pequena, seus pés
mal tocavam o chão. Quando falou, a voz era tão familiar
que não pude entender como a havia esquecido com tanta
facilidade. Mas não fui capaz de compreender exatamente o
que ela dizia. Usou uma palavra estranha, musbatar ou
masbutar.
"Você não pode parar de se musbatar", ela perguntou, "nem
enquanto fala comigo?"
"Não estou fazendo nada", respondi — e então notei, ao
olhar para baixo, que a cama não tinha lençóis e que eu
estava nu, masturbando-me na frente dela. Minha mão se
movia automaticamente para cima e para baixo. "Não posso
parar", eu lhe disse, "é independente de mim."
"O que diria seu pai", ela comentou em voz triste, "se
estivesse vivo?" Quando acordei, me vi dizendo em voz alta:
"Mas vocês dois estão mortos!".
Contei esse sonho a Sue, certa tarde. Quando destrancou a
porta para me deixar entrar, reparei que segurava o caderno
aberto numa das mãos. Enquanto me ouvia, fechou o
caderno e o enfiou debaixo do travesseiro. Para minha
surpresa, achou graça no sonho.
"Os garotos fazem isso o tempo todo?"
"Fazem o quê?"
"Você sabe, se musbatar."
Em vez de responder, perguntei-lhe: "Se lembra quando
fazíamos aquela brincadeira?". "Que brincadeira?"
"Quando Julie e eu éramos médicos e examinávamos você,
que era uma extraterrestre." Ela confirmou com a cabeça e
cruzou os braços. Fiz uma pausa. Não tinha a menor idéia do
que ia dizer.
"Bom, e daí?" Eu tinha ido conversar sobre meu sonho e
sobre mamãe, e já estávamos falando de outra coisa.
"Você gostaria", eu disse devagar, "que continuássemos a
fazer aquela brincadeira?" Sue negou com a cabeça e desviou
o olhar.
"Nem me lembro direito como era."
"Julie e eu tirávamos toda a sua roupa." Bastou dizê-lo para
que a coisa soasse improvável. Sue balançou a cabeça de
novo e retrucou de forma pouco convincente: "E mesmo?
Realmente não me lembro direito, eu era muito pequena". E
então, após um breve silêncio, acrescentou alegremente:
"Nós vivíamos fazendo uma porção de brincadeiras bobas".
Sentei-me em sua cama. O chão do quarto era coalhado de
livros, alguns deles abertos, com as páginas viradas para
baixo. Muitos vinham da biblioteca, e eu estava prestes a
pegar um quando, de repente, a simples ideia de ler me
deixou enjoado. "Você não se cansa de passar o dia inteiro
sentada aqui lendo?"
"Gosto de ler e não tenho mais nada para fazer." Retruquei:
"Há mil coisas para fazer", só para ouvir Sue repetir que não
tinha nada para fazer. Mas ela chupou para dentro os lábios
finos e pálidos, como as mulheres costumam fazer ao passar
batom, e disse: "Não tenho vontade de fazer nenhuma outra
coisa". Depois disso ficamos sentados em silêncio por um
bom tempo. Sue assoviou e senti que queria que eu fosse
embora. Ouvimos a porta de trás se abrir e as vozes de julie e
seu namorado. Desejei que Sue detestasse Derek tanto
quanto eu, pois assim teríamos muita coisa para conversar.
Ela levantou as sobrancelhas finas e disse: "Foram eles que
chegaram". Ao que, me sentindo isolado de todas as pessoas
que eu conhecia, retruquei: "E daí?".
Sue voltou a assoviar enquanto eu virava as páginas de uma
revista, porém ambos estávamos muito atentos aos ruídos
vindos do andar de baixo. Eles não estavam subindo. Ouvi o
som de água correndo e o tilintar de xícaras de chá. "Mas
você continua a escrever naquele caderno, não é?",
perguntei a Sue. "Um pouco", ela respondeu, olhando para o
travesseiro como se estivesse preparada para impedir que eu
o pegasse de surpresa. Esperei um momento e disse num
tom muito triste: "Seria bom se você me deixasse ler o que
escreveu sobre mamãe, só isso. Podia ler para mim, se
preferir". Lá embaixo, o rádio disparou a todo o volume. "Se
você está pensando... em viajar para o Oeste...
acredite em mim... pegue essa estrada... que vou
indo...'"'A canção me irritava, mas continuei a olhar para
minha irmã com uma expressão tristonha.
"Você não ia entender nada."
"Por que não?"
"Você nunca entendeu nada sobre ela. Foi sempre horrível
com ela", disse Sue com emoção.
"Isso é mentira!", reagi em voz alta e, após alguns segundos,
repeti: "Isso é mentira!". Sue continuou sentada na beira da
cama, as costas retas, uma das mãos pousada no travesseiro.
Quando voltou a falar, ficou olhando fixamente para a
frente, com um ar tristonho.
"Você nunca fazia o que ela pedia. Nunca fez nada para
ajudar. Só se preocupava com você próprio, como agora." Eu
disse: "Eu não ia sonhar tanto com mamãe se não ligasse
para ela".
"Você não sonhou com ela, sonhou com você mesmo. É por
isso que quer ler o meu diário, para ver se lá tem alguma
coisa sobre você."
"Você vai ao porão, senta naquele banquinho e escreve
sobre todos nós naquele caderno preto?", perguntei em meio
a uma série de risadas.
Forcei-me a continuar rindo. Estava confuso e precisava
fazer um bocado de barulho. Enquanto ria, agarrei os joelhos
com as mãos, mas não conseguia senti-los. Sue me olhava
como se estivesse se lembrando de mim, e não me vendo de
verdade. Tirou o caderno de sob o travesseiro, abriu-o e
buscou uma página. Parei de rir e esperei. "Nove de agosto...
Você morreu há dezenove dias. Ninguém mencionou seu
nome hoje." Fez uma pausa e seus olhos pularam várias
linhas. "Jack estava insuportável. Machucou Tom na escada
porque ele fez algazarra na porta do quarto e o acordou. O
arranhão na cabeça dele sangrou bastante. No almoço,
misturamos duas latas de sopa. Jack não falou com ninguém.
Julie contou sobre seu namorado, que se chama Derek.
Disse que talvez o trouxesse aqui em casa e perguntou se
alguém se importava. Respondi que não. Jack fingiu que não
tinha ouvido e subiu para o quarto." Sue achou outra página
e voltou a ler, agora de forma mais expressiva. "Ele não
muda de roupa desde que você morreu. Não lava as mãos
nem nada, e fede que é um horror. Odiamos quando ele
pega no pão. Não se pode dizer nada a ele, há sempre o risco
de uma agressão. Está sempre querendo bater em alguém,
mas Julie sabe como lidar com ele..." Sue parou de novo e,
quando parecia que ia continuar, mudou de idéia e fechou
de golpe o caderno. "Pronto", ela disse. Depois disso,
passamos algum tempo discutindo sem grande entusiasmo o
que Julie havia dito no almoço.
"Ela não falou em trazer ninguém aqui em casa", eu disse.
"Falou!"
"Não falou!" Sue acocorou-se em frente a um dos livros e
fingiu não reparar quando fui embora.
Lá embaixo, o rádio estava no volume mais alto que eu
jamais ouvira. Um homem berrava loucamente sobre alguma
competição esportiva. Encontrei Tom sentado no topo da
escada, usando um vestido azul e branco com laço atrás. A
peruca não estava à vista. Ao me sentar ao lado dele, senti,
por alguns instantes, um cheiro tênue mas desagradável.
Tom estava chorando, os nós dos dedos cobrindo os olhos
como se vê as garotas fazendo nas ilustrações das latas de
biscoito. De uma das narinas escorria um longo ranho verde,
que sumiu quando ele fungou. Fiquei olhando para ver se ia
reaparecer. Além do som do rádio, pensei ouvir vozes, mas
não tinha certeza. Quando perguntei por que ele estava
chorando, chorou ainda mais forte. Mais calmo, lamuriou-
se: "Julie me bateu e gritou comigo", voltando
imediatamente a chorar.
Deixei-o lá sentado e desci. O rádio estava naquele volume
porque Julie e Derek brigavam. Parei perto da porta e tentei
escutar o que diziam. Derek parecia implorar algo a Julie, sua
voz tinha um tom lacrimoso. Falavam ao mesmo tempo,
quase gritando, e pararam de chofre quando entrei. Derek
encostou--se na mesa, as mãos nos bolsos, os tornozelos
cruzados. Usava um terno verde-escuro e uma gravata muito
larga com uma fivela de ouro no lugar do nó. Julie se
encontrava perto da janela. Passei entre os dois e desliguei o
rádio. Então voltei-me, esperando que algum deles falasse
primeiro. Se queriam tanto berrar um com o outro, por que
não iam para o jardim? "O que você quer?", Julie perguntou.
Ela não estava toda empetecada como Derek. Calçava
sandálias de plástico, vestia calças jeans e havia dado um nó
com as fraldas da blusa embaixo dos seios. "Só vim ver que
barulhão era esse aqui embaixo e saber quem bateu em
Tom", respondi, olhando de relance para Derek. Julie ficou
batendo o pé lentamente para deixar claro que esperava que
eu desse o fora.
Caminhei bem devagar entre eles, pondo o calcanhar do
sapato de um pé à frente do outro como se faz ao medir uma
distância sem fita métrica. Derek limpou a garganta baixinho
e puxou do bolso o relógio preso por uma corrente.
Observei enquanto o abria, fechava e punha de volta no
bolso. Não o via desde sua primeira visita à casa, mais de
uma semana antes. Mas ele viera buscar Julie de carro várias
vezes. Eu ouvia o motor do lado de fora e Julie correndo
pelo caminho que levava ao portão, mas nunca fui à janela
para vê-los como Sue e Tom faziam. Julie já dormira fora
duas ou três vezes. Ela nunca me dizia aonde havia ido, mas
contava a Sue. Na manhã seguinte, as duas ficavam sentadas
na cozinha durante horas, conversando e tomando chá.
Talvez Sue escrevesse tudo em seu caderno sem que Julie
soubesse.
Derek sorriu para mim de repente e disse: "Como vai, Jack?".
Julie deu um suspiro bastante audível.
"Esquece", disse para ele, mas eu respondi friamente: "Tudo
bem".
"O que é que você anda fazendo esses dias?"
Olhei para Julie enquanto respondia: "Nada de mais". Dava
para ver o quanto a irritava eu estar conversando com
Derek. "E você?" Derek fez uma pausa antes de responder e
suspirou. "Treinando. Alguns joguinhos. Nada de
importante, você sabe..." Concordei com a cabeça. Derek e
Julie se olharam fixamente. Olhei para um e para o outro,
tentando pensar em alguma coisa para dizer. Sem tirar os
olhos de Julie, Derek indagou: "Você já jogou sinuca alguma
vez?". Se ela não estivesse lá, eu diria que sim. Certa vez
assistira a uma partida e conhecia as regras. "Ainda não",
respondi. Derek consultou o relógio outra vez.
"Então precisa experimentar." Julie descruzou os braços e
saiu com passos rápidos da cozinha, soltando um pequeno
suspiro ao passar por mim. Derek acompanhou-a com o
olhar e prosseguiu: "Quer dizer, você está ocupado agora?".
Pensei bem e respondi: "Não ando muito ocupado". Derek
levantou--se e deu uma ligeira escovada no terno com as
mãos, que eram pequenas e pálidas. Caminhou até o hall
para ajeitar a gravata diante do espelho e comentou por cima
do ombro: "Vocês deviam instalar uma luz aqui". Saímos
pelos fundos e, ao passar pela cozinha, notei que a porta do
porão estava totalmente aberta. Hesitei, queria subir e
perguntar a Julie sobre aquilo. Mas Derek fechou a porta
com o pé, dizendo que já estava atrasado, e atravessamos
correndo o caminho do jardim da frente em direção ao
carrinho vermelho.
Surpreendeu-me que Derek dirigisse tão devagar. Sentou-se
bem reto e, com os braços estendidos, segurou o volante
com o indicador e o polegar como se sentisse repugnância
em tocá--lo. Não falou nada. Havia no painel duas fileiras de
mostradores pretos com trepidantes ponteiros brancos.
Tratei de observá-los durante a maior parte do trajeto.
Nenhum dos ponteiros de fato se movimentou muito,
exceto os do relógio. Rodamos por uns quinze minutos e,
saindo da via principal, entramos numa rua estreita com
depósitos de verduras dos dois lados. Em alguns lugares,
montes de hortaliças apodreciam na sarjeta. Um homem de
terno amassado nos olhou da calçada com uma expressão
vazia. Tinha cabelos oleosos e um jornal espetado no bolso
do paletó. Derek parou o carro diante dele e desceu, sem
desligar o motor. Atrás do homem havia um beco.
"Estacione o carro e venha me ver lá dentro", Derek lhe
disse ao passarmos por ele. No fim do beco, viam-se portas
de vaivém verdes com as palavras "Salão do Oswald"
raspadas na própria tinta. Derek entrou na frente e, com um
dedo, segurou a porta para mim sem se voltar para trás. As
duas mesas mais distantes estavam ocupadas, mas quase
todas as outras tinham as luzes apagadas. Uma delas, bem no
centro, estava iluminada. Parecia mais clara que as duas em
uso e as bolas de cores brilhantes estavam em seus lugares,
prontas para o início da partida. Alguém se apoiava contra a
mesa, de costas, fumando um cigarro. Na parede atrás de nós
havia uma abertura quadrada, através da qual se via um
velho de paletó branco. Diante dele, numa prateleira
estreita, alinhavam-se xícaras e pires com bordas azuis e uma
tigela de plástico com um pão doce. Derek abaixou-se para
falar com o homem e me aproximei de uma das mesas. Li o
nome e a cidade do fabricante numa placa de bronze
aparafusada atrás da caçapa do meio.
Derek chamou minha atenção estalando a língua. Trazia
uma xícara de chá em cada mão e sinalizou com a cabeça
para que eu o seguisse. Abriu com o pé uma porta na mesma
parede. Junto à porta reparei numa janela em que faltava um
vidro. Uma mulher com óculos grossos de grau estava
sentada a uma escrivaninha fazendo anotações num livro de
contabilidade; do outro lado do pequeno aposento,
segurando um maço de cigarros, um homem ocupava uma
poltrona. A fumaça dificultava a visão. Só havia uma
lâmpada fraca na beirada da escrivaninha. Derek descansou
as xícaras perto da lâmpada e fingiu socar o homem no
queixo. O homem e a mulher paparicaram Derek um
bocado. Chamaram-no de "filho", mas ele os apresentou a
mim como "senhor e senhora O, por causa do Oswald".
"E esse é o irmão de Julie", disse Derek, sem lhes dar meu
nome.
Não havia onde sentar. Derek pegou um cigarro do maço do
senhor O. A senhora O balançou as pernas, fez um som de
lamúria e levantou os lábios como um filhote de passarinho
no ninho. Derek pegou outro cigarro e pôs na boca da
senhora O, enquanto ela e o marido riam. O senhor O fez
um gesto na direção das mesas.
"Meu filho, Greg está lá esperando por você há quase uma
hora." Com a cabeça, Derek sinalizou que sabia. Ele se
sentara na borda da escrivaninha enquanto eu me mantinha
de pé junto à porta. A senhora O sacudiu o dedo no rosto de
Derek.
"Quem é esse menino mauzinho?" Ele se afastou um pouco
dela e apanhou sua xícara, sem me passar a minha. A
senhora O disse cuidadosamente: "E você não veio ontem,
meu filho".
O senhor O piscou para mim e disse: "Ah, ele anda muito
atarefado". Enquanto Derek bebericava o chá sem dizer
nada, o senhor O continuou: "Mas tinha muita gente aqui
esperando por você".
Derek concordou com a cabeça. "E mesmo? Muito bem."
"Ele vem aqui desde os doze anos e nunca lhe cobramos um
tostão para usar as mesas", a senhora O disse para mim. "Não
é, meu filho?"
Derek terminou o chá e se pôs de pé. "O taco, por favor." O
senhor O se levantou e calçou os chinelos. Na parede às suas


costas havia um armário para tacos e, numa das
extremidades, um longo estojo de couro preso por um
cadeado. O senhor O secou as mãos com um pano amarelo,
abriu o estojo e retirou o taco. A madeira era de um marrom
muito escuro, quase negro. Antes de passá-lo a Derek, ele
me disse: "Sou a única pessoa que pode pegar nos tacos
dele".
A senhora O protestou: "Eu também", mas seu marido sorriu
para mim e fez que não com a cabeça.
O homem que estacionara o carro esperava do lado de fora
do escritório.
"Esse aqui é o Chas", disse Derek, "e esse é o irmão de Julie."
Chas e eu não nos olhamos. Enquanto Derek caminhava
lentamente em direção à mesa central carregando o taco,
Chas o seguia na ponta dos pés, falando muito rápido em seu
ouvido. Eu ia logo atrás. Tive vontade de voltar para casa.
Chas dizia alguma coisa sobre um cavalo, porém Derek não
respondia nem olhava para ele. Tão logo nos aproximamos
da mesa, Greg se curvou para dar a tacada inicial. Ele vestia
um casaco de couro marrom com um rasgão numa das
mangas e seu cabelo estava preso num rabo de cavalo. Eu
queria que ele ganhasse. A bola branca deslizou ao longo da
mesa, deslocou uma das vermelhas e voltou ao ponto de
partida. Derek tirou o paletó e o deu a Chas. Ajustou uns
prendedores de prata nas mangas da camisa para manter os
pulsos livres. Chas virou o paletó pelo avesso, dobrou-o
sobre o braço e abriu o jornal na página de turfe. Derek
abaixou-se e deu uma tacada na bola branca, aparentemente
sem mirar. Quando a bola vermelha que havia sido des-
locada entrou voando na caçapa do fundo, os jogadores das
duas outras mesas foram se chegando. Os saltos dos sapatos
de Derek castanholaram enquanto ele caminhou até a outra
extremidade da mesa. A bola branca separara todas as
vermelhas e estava bem situada para atingir a preta. Antes de
dar a tacada, Derek me olhou de relance para ver se eu
estava prestando atenção, mas desviei o olhar.
Nos minutos seguintes, ele matou nas caçapas do fundo
diversas bolas vermelhas seguidas da bola preta. Entre uma
tacada e outra, contornava a mesa, falando comigo em voz
baixa, sem me olhar, como se estivesse falando consigo
próprio.
"Situação estranha, aquela da sua casa", ele disse quando a
preta foi encaçapada pela primeira vez. Greg e os demais
jogadores o observavam e ouviam nossa conversa.
"Não sei por quê", respondi.
"Os pais mortos", Derek disse para Chas, "e os quatro viven-
do sozinhos."
"Órfãos, não é?" disse Chas sem levantar os olhos do jornal.
"E uma casa grande", continuou Derek ao passar por mim
para usar de novo a bola branca. "Bem grande", confirmei.
"Deve valer um bom dinheiro", ele comentou enquanto
uma bola vermelha deslizava lentamente para dentro da
caçapa, permitindo-lhe mirar na preta sem mudar de
posição. "Todos aqueles quartos, vocês podiam transformar
em apartamentos."
"Não estamos pensando nisso", respondi. Derek esperou que
Greg tirasse a preta da caçapa e a repusesse em seu lugar.
"E aquele porão, não há muitas casas com um porão
daqueles...", continuou, caminhando ao longo da mesa
enquanto Chas suspirava por conta de algo que havia lido.
Outra vermelha foi encaçapada. "Vocês podiam..." Parou
para ver onde a branca ia parar. "Vocês podiam fazer alguma
coisa com aquele porão."
"Fazer o quê?", perguntei, mas Derek deu de ombros e
matou a preta com uma tacada violenta.
Quando finalmente errou a bola preta, Derek produziu um
som alto e sibilante entre os dentes. Chas levantou os olhos
do jornal e comentou: "Quarenta e nove pontos". Eu disse:
"Eu estou indo agora". Mas ele já se afastara para filar um
cigarro de um dos outros jogadores, postando-se depois na
extremidade oposta da mesa para acompanhar as jogadas de
Greg. Senti um enjoo enorme. Encostei-me numa coluna e
olhei para o alto. Acima das vigas de ferro, o teto era
formado por vidraças mal pintadas com uma tinta marrom
amarelada. Quando voltei a olhar para baixo, Derek estava de
novo em ação, restando poucas bolas na mesa. Terminada a
partida, Derek se aproximou de mim por trás, pegou-me
pelo cotovelo e perguntou se eu queria jogar. Disse-lhe que
não e me livrei da mão dele.
"Agora eu vou para casa." Derek se pôs diante de mim e riu.
Pousou o taco em cima do pé e começou a fazê-lo saltar.
"Você é um cara esquisito. Por que não relaxa um pouco,
por que não ri nunca?" Voltei a me apoiar na coluna. Algo
sombrio e pesado se abatia sobre mim e olhei de novo para o
teto, imaginando que talvez pudesse ver o que era.
Derek continuou a fazer o taco saltar até que teve uma idéia.
Respirou fundo e chamou por cima do ombro: "Ei, Chas!
Greg! Venham aqui me ajudar a fazer esse merda rir". Sorriu
e piscou para mim enquanto os chamava, como se eu
também devesse participar da gracinha. Chas e Greg
ladearam Derek, mantendo-se um pouco atrás dele.
"Vamos", disse Derek, "uma gargalhada ou conto para sua
irmã." Os rostos deles ficaram maiores. "Ou então digo ao
Greg para contar uma de suas piadas." Chas e Greg riram,
todo mundo queria estar às boas com Derek.
"Vão se foder!", eu disse. Chas protestou, afastando-se: "Ah,
deixem o garoto em paz". A maneira como ele disse aquilo
me deu vontade de chorar e, para mostrar que essa era a
última coisa que eu iria fazer, encarei Derek com um ar
feroz e sem piscar. Mas certo líquido se acumulava num dos
meus olhos e, embora eu secasse a lágrima tão logo ela
começou a rolar, sabia que eles a tinham visto. Greg
ofereceu-me a mão para que eu a apertasse.
"Tudo bem, companheiro", ele disse. Não apertei sua mão
porque a minha estava úmida. Greg se afastou, eu e Derek
voltamos a ficar sozinhos.
Dei-lhe as costas e rumei para a porta. Derek pôs o taco
sobre uma mesa e me acompanhou. Caminhamos tão juntos
que poderíamos estar algemados.
"Você é igualzinho à sua irmã. Igualzinho." Como eu não
podia passar à frente dele, tive de seguir pela esquerda, na
direção da abertura pela qual o chá era servido. Tão logo nos
viu, o velho pegou sua enorme chaleira de aço e encheu
duas xícaras. Ele tinha uma voz agudíssima.
"Essa é por conta da casa, pelos quarenta e nove pontos."
Falou isso tanto para mim como para Derek, o que me
obrigou a pegar uma das xícaras. Derek pegou a outra e
ambos nos encostamos contra a parede, um olhando para o
outro. Durante vários minutos ele pareceu que ia dizer
alguma coisa, mas permaneceu em silêncio. Como tentei
beber o chá depressa demais, fiquei enjoado e com muito
calor. Debaixo da camisa, minha pele formigava e coçava,
meus pés estavam tão suados que os dedos resvalavam uns
nos outros. Encostei a cabeça na parede.
Greg havia saído com Chas por outra porta e os jogadores
tinham voltado a suas mesas. Através da parede ouvi a
senhora O, que falava sem parar. Depois achei que era o
rádio.
"Sua irmã é sempre assim ou há alguma coisa errada que eu
devo saber?", perguntou Derek.
"Sempre assim como?", perguntei imediatamente. Meu
coração batia forte, mas bem devagar. Outra vez Derek
precisou pensar por alguns instantes. Esticou a pele embaixo
do queixo e tocou no fecho da gravata.
"Vamos falar de homem para homem, você entende?"
Confirmei com um sinal de cabeça. "Esta tarde, por
exemplo. Ela estava ocupada com alguma coisa e por isso
pensei em dar uma olhada no porão. Não vejo nenhum
problema nisso, mas ela ficou danada. Quer dizer, não tem
nada lá embaixo, tem?" Achei que não era uma pergunta de
verdade e continuei calado. Mas Derek repetiu: "Tem?".
"Não, não. Quase nunca vou lá, mas não tem nada."
"Então por que ela ficou tão chateada?" Derek me olhou
fixamente e esperou pela resposta, como se eu é que tivesse
ficado aborrecido.
"Julie é sempre assim, é o jeito dela."
Derek contemplou seus sapatos por alguns segundos, levan-
tou os olhos e disse: "E outra vez..." Porém o senhor O saiu
do escritório naquele instante e começou a falar com ele.
Terminei o chá e fui embora.
A porta dos fundos da casa estava aberta e entrei sem fazer o
menor ruído. Pelo cheiro, alguma coisa fora fritada na
cozinha havia bastante tempo. Eu tinha a estranha impressão
de estar voltando após uma ausência de vários meses,
durante a qual muita coisa acontecera. Julie estava sentada à
mesa da sala de visitas, tendo à sua frente pratos sujos e uma
frigideira. Parecia estar bem contente. Sentado no seu colo,
com um guardanapo amarrado à volta do pescoço como se
fosse um babador, Tom chupava o polegar. Ele olhava para o
outro lado da sala com uma expressão abobalhada, a cabeça
encostada nos seios de Julie. Pareceu não reparar na minha
chegada e continuou a fazer ruídos de sucção com o polegar.
Com uma das mãos, Julie o apoiava na parte de baixo das
costas. Ela sorriu para mim e eu agarrei a maçaneta da porta
para não perder o equilíbrio. Tive a sensação de que não
pesava nada, que a qualquer momento meu corpo iria flutuar
no espaço.
"Não precisa ficar tão surpreso", disse Julie, "Tom quer ser
um bebezinho." Ela descansou o queixo na cabeça dele e
começou a balançar-se ligeiramente. "Ele estava tão
malcriado esta tarde", ela continuou, falando mais para Tom
do que para mim, "que tivemos uma longa conversa e
decidimos uma porção de coisas." Os olhos de Tom se
fechavam. Sentei-me perto de Julie, onde não podia ver o
rosto de Tom. Peguei uns pedaços de bacon frio na
frigideira. Julie continuou a se balançar e a cantarolar
baixinho.
Tom caiu no sono. Eu tencionava conversar com Julie sobre
Derek, mas ela se levantou, com Tom nos braços, e os segui
escada acima. Julie abriu a porta de seu quarto empurrando-a
com o pé. Ela havia trazido do porão nosso velho berço de
bronze e o pusera ao lado de sua cama. Já estava tudo
pronto, uma lateral abaixada. Fiquei irritado ao ver o berço e
a cama tão próximos.
Apontando para o berço, perguntei: "Por que você não pôs
isso no quarto dele?". De costas para mim, Julie ajeitava
Tom, que, sentado na cama, se balançava de leve enquanto
ela desabotoava seu vestido. Seus olhos estavam abertos.
"Ele queria aqui, não foi, meu queridinho?" Tom fez que sim
com a cabeça e escorregou para debaixo da coberta. Julie
caminhou até a janela para fechar as cortinas. Avancei na
semiobscuridade até a cabeceira do berço. Julie me afastou e
beijou a cabeça de Tom, levantando cuidadosamente a
lateral. Tom pareceu dormir quase instantaneamente. "Bom
menino", Julie murmurou, tomando minha mão e me
conduzindo para fora do quarto.

POUCO TEMPO DEPOIS que Sue leu para mim partes de seu
diário, comecei a sentir um cheiro em minhas mãos, o
cheiro de algo doce e ligeiramente apodrecido. Era mais
pronunciado nos dedos do que na palma da mão, talvez até
mais forte entre os dedos, e me fazia lembrar da carne que
havíamos jogado no lixo. Parei de me masturbar. Não sentia
mesmo a menor vontade. Depois de lavar as mãos, elas só
cheiravam a sabonete, mas, se eu virasse a cabeça para o lado
e passasse a mão depressa em frente ao nariz, lá estava o
cheiro ruim por baixo do perfume do sabonete. Comecei a
tomar longos banhos no meio da tarde, ficando totalmente
imóvel, sem pensar em nada, até que a água esfriasse.
Cortava as unhas, lavava o cabelo e vestia roupas limpas.
Meia hora depois o cheiro retornava, tão tênue que mais
parecia a memória de um cheiro. Julie e Sue faziam piadas
sobre minha aparência. Diziam que eu estava me
aprontando todo para ver uma namorada secreta. Seja como
for, meu novo aspecto tornou Julie mais amigável. Numa
venda de caridade, ela me comprou duas camisas de segunda
mão, quase novas e no tamanho correto. Cheguei perto de
Tom e agitei os dedos debaixo de seu nariz. "Igual um
peixinho", ele disse bem alto na sua nova voz de bebê.
Achei a enciclopédia de medicina que tínhamos em casa e
procurei o verbete sobre câncer. Imaginei que podia estar
apodrecendo por causa de alguma doença de evolução
demorada. Olhava-me no espelho e, com a mão em concha
em frente à boca, tentava sentir meu hálito. Certa noite,
finalmente choveu, e bem forte. Alguém me havia dito que
a água da chuva era a mais limpa no mundo e, por isso,
depois de tirar a camisa, os sapatos e as meias, me postei no
alto do morrinho com as mãos abertas. Sue chegou à porta
da cozinha e, gritando para ser ouvida em meio ao ruído da
chuva, perguntou o que eu estava fazendo. Saiu e voltou
com Julie. Ambas me chamaram e riram, mas dei as costas
para elas.
Tivemos uma discussão no jantar. Eu disse que aquela era a
primeira chuva desde que mamãe morreu. Julie e Sue
insistiram em que tinha chovido várias vezes. Quando lhes
pedi para dizerem os dias exatos, não conseguiam se
lembrar. Sue disse que sabia ter usado o guarda-chuva
porque ele agora estava em seu quarto, enquanto Julie se
recordava do som dos limpadores de pára-brisas do carro de
Derek. Retruquei que isso não provava nada. Elas foram
ficando com raiva, o que fez com que eu me sentisse bem
calmo e quisesse enraivecê-las ainda mais. Julie desafiou-me
a provar que não havia chovido e respondi que não
precisava, bastava saber que não. Era tanta a irritação que
minhas irmãs respiravam com dificuldade. Quando pedi a
Sue que me passasse o açucareiro, ela se fez de surda.
Contornei a mesa e, quando estava prestes a pegá-lo, ela pôs
o açucareiro no outro lado, perto de onde eu estava sentado.
Já me preparava para lhe dar um tabefe na nuca quando Julie
mandou que eu parasse num tom tão incisivo que recuei,
aturdido, e minha mão passou por cima da cabeça de Sue.
Naquele mesmo momento voltei a sentir o cheiro. Quando
me sentei, esperei que Julie ou Sue me acusassem de haver
soltado um peido, mas elas entabularam uma conversa com
o propósito único de me excluir. Sentei em cima das mãos e
pisquei para Tom.
Tom ficou me olhando com a boca entreaberta, deixando
restos de comida à mostra na língua. Ele estava ao lado de
Julie. Enquanto discutíamos sobre a chuva, havia espalhado
comida pelo rosto todo. Agora, esperava que Julie se
lembrasse dele, limpasse seu rosto com o babador e o
autorizasse a descer da cadeira. Após o quê, iria de gatinhas
para debaixo da mesa e ficaria sentado entre nossas pernas
até que acabássemos de comer.
Em outras ocasiões, entretanto, ele arrancava o babador e
saía correndo para brincar com os amigos, só voltando a ser
uma criancinha quando entrava e encontrava Julie. Na
condição de bebê, raramente falava ou fazia qualquer ruído.
Simplesmente esperava para ver o que ela ia fazer. Se Julie o
paparicava, os olhos dele pareciam ficar maiores e mais
separados um do outro, sua boca se afrouxava e ele dava a
impressão de que mergulhava dentro de si mesmo. "Os
bebês de verdade choram e esperneiam quando são levados
para a cama", eu disse certa noite quando ela o levou para
dormir. Tom me lançou um olhar raivoso por cima do
ombro de Julie e, de repente, seus olhos e sua boca se
estreitaram.
"Não, eles não fazem isso", ele disse, demonstrando bom
senso, "nem sempre fazem isso", e se deixou levar para cima.
Eu não resistia à tentação de vê-los juntos. Ia atrás dos dois,
fascinado, querendo saber o que aconteceria. Julie parecia
gostar de ter uma plateia e fazia gracinhas comigo.
"Você está com uma cara tão séria", disse-me certa vez,
"como se estivesse assistindo a um funeral." Tom,
obviamente, queria Julie só para ele. Na noite seguinte,
segui-os escada acima na hora de dormir e me encostei no
umbral da porta enquanto Julie tirava as roupas de Tom, que
se encontrava de costas para mim. Julie me deu um sorriso e
pediu que eu trouxesse seu pijama. Tom se voltou no berço
e gritou: "Vai embora! Vai embora daqui!". Julie riu, passou a
mão na cabeça dele e disse: "O que é que eu faço com esses
dois?". Mas tratei de dar um passo para trás e, apoiado na
parede do corredor, fiquei ouvindo enquanto ela lhe contava
uma história. Quando afinal saiu, não ficou surpresa de me
ver ali. Fomos para o meu quarto e nos sentamos na cama
sem acender a luz. Pigarreei e disse que talvez não fosse
bom para Tom continuar a se fazer de bebê.
"Pode ser que ele não consiga sair dessa", comentei.
Julie não respondeu de imediato. Dava apenas para ver que
sorria para mim. Pôs a mão no meu joelho e disse: "Acho
que alguém está com ciúme". Os dois rimos e me deitei na
cama. Num gesto ousado, toquei a parte de baixo de suas
costas com a ponta dos dedos. Ela estremeceu e aumentou a
pressão sobre meu joelho.
"Você pensa muito na mamãe?", ela perguntou.
"Penso, sim, e você?", murmurei.
"Claro." Parecia que não havia mais nada a dizer, porém eu
queria continuar a conversa.
"Você acha que o que fizemos estava certo?", perguntei.
Julie afastou a mão do meu joelho. Ficou calada por tanto
tempo que pensei haver esquecido da pergunta. Toquei suas
costas de novo e ela disse imediatamente: "Parecia óbvio
naquele momento, mas hoje não sei. Talvez não devêssemos
ter feito aquilo".
"Não há nada a fazer agora", retruquei, esperando que ela
discordasse. Também esperei que sua mão voltasse a segurar
meu joelho. Corri o dedo indicador ao longo de sua espinha
e me perguntei o que teria mudado entre nós. Será que meus
banhos tinham feito tanta diferença para ela? Julie por fim
respondeu: "Não, acho que não", e cruzou os braços com
tanta determinação que pareceu estar ofendida. Num
momento ela tomava a iniciativa, no outro caía em silêncio,
esperando por um ataque.
"Você deixou o Derek entrar no porão", falei em tom
impaciente. Nesse instante tudo mudou entre nós. Julie
atravessou o quarto, acendeu a luz e se postou junto à porta.
Jogou a cabeça para trás, irritada, afastando uma mecha de
cabelos do rosto. Sentei-me na beira da cama e pus a mão no
joelho onde antes estivera a dela.
"Foi isso que ele te disse enquanto vocês jogavam... bilhar?"
"Só assisti."
"Ele achou a chave e desceu para dar uma olhada", disse
Julie.
"Você não devia ter deixado ele fazer isso." Ela fez que não
com a cabeça. Era muito raro vê-la na defensiva, sua voz
soava estranha. "Foi ele quem pegou a chave. Não há nada
para ver lá embaixo."
"Você ficou muito aborrecida com a coisa e ele agora quer
saber por quê." Por uma vez eu estava ganhando de Julie
numa discussão. Comecei a tamborilar com os dedos sobre
os joelhos e senti por um instante aquele cheiro adocicado
de algo podre.
De repente, Julie disse: "Você sabe, não dormi com ele nem
nada". Continuei a tamborilar sem erguer os olhos. E então
exultante, parei de agitar os dedos e disse: "E daí?". Mas Julie
já saíra do quarto.
Inclinando-me sobre a mesa, agarrei o babador de Tom e o
puxei para mim. Ele soltou um guincho e depois um berro.
Julie parou de falar e tentou soltar meus dedos. Sue
levantou-se.
"O que você está fazendo?", Julie gritou. "Larga ele!" Tom já
estava quase no meio da mesa quando o soltei e ele caiu de
volta em seus braços.
"Eu ia limpar a boca dele porque você estava ocupada demais
falando." Tom escondeu o rosto no colo de Julie e começou
a chorar numa boa imitação dos uivos de um bebê.
"Por que você não pode deixar as pessoas em paz?", Sue
perguntou. "O que que há de errado com você?"
Saí para o jardim. A chuva estava parando. Novas manchas
tornavam os blocos de apartamentos ainda mais feios, mas as
ervas daninhas nos terrenos baldios já se mostravam mais
verdes. Caminhei pelo jardim como papai sempre desejou
que todos fizessem, seguindo pelos caminhos estreitos e
descendo os degraus para chegar ao laguinho. Foi difícil
encontrá-los debaixo das ervas e dos cardos: do laguinho
nada mais restava do que um pedaço sujo e enroscado de
plástico azul com uma poça de chuva no ponto mais baixo.
Ao contorná-lo, senti que alguma coisa mole cedeu sob meu
pé. Eu havia pisado numa rã. Ela jazia de lado, com uma
longa e negra pata traseira tremelicando em pequenos
círculos. Uma substância verde e cremosa escapava de seu
estômago, o saco sob o queixo se inflava e desinflava
rapidamente. Um olho esbugalhado me fitava com uma
expressão triste, mas não acusatória. Ajoelhei-me a seu lado
e peguei uma pedra grande e chata. Agora o animalzinho
parecia olhar-me como se esperasse alguma ajuda. Aguardei,
torcendo para que se recuperasse ou morresse de repente.
Mas o saco de ar se enchia e esvaziava ainda mais depressa,
ele tentou usar a outra pata traseira para endireitar o corpo.
As patinhas da frente nadavam no ar. O olho amarelado
fixou-se no meu.
"Não, chega", eu disse em voz alta, baixando a pedra com
força sobre a cabecinha verde. Quando levantei a pedra, o
corpo da rã estava preso a ela, mas depois se soltou. Comecei
a chorar. Encontrei outra pedra e cavei uma vala pequena e
funda. Quando empurrei a rã para dentro com um graveto,
vi que as patas da frente ainda tremiam. Cobri o corpo
rapidamente com terra e aplanei com os pés a pequena
sepultura.
Ouvi passos atrás de mim e a voz de Derek.
"Que que há com você?" Ele parou, mantendo as pernas
bem afastadas e segurando por cima do ombro, com um só
dedo, uma capa de chuva branca.
"Nada", respondi. Derek se aproximou.
"O que que você pôs aí no chão?"
"Nada." Com o bico fino do sapato bem engraxado, Derek
revirou a terra.
"É uma rã morta que eu enterrei." Mas Derek continuou a
cavar até pôr à mostra o corpo da rã, todo coberto de terra.
"Olhe", ele disse, "nem está morta." Golpeou então minha rã
com o salto do sapato e voltou a cobri-la de terra. Fez tudo
isso usando apenas um pé e sem tirar a capa do ombro.
Cheirava a perfume, algum tipo de loção após a barba ou
água-de-colônia. Caminhei mais para os fundos do jardim,
em direção ao estreito caminho que circundava o morrinho.
Derek veio atrás de mim e, tal como crianças brincando,
fomos nos cruzando ao subir pelos pequenos círculos.
"Julie está em casa, não está?" ele perguntou. Eu disse que ela
estava pondo Tom para dormir e, enquanto nos
equilibrávamos no topo, bem juntos um do outro, continuei:
"Ele agora dorme no quarto dela". Derek sacudiu a cabeça
vigorosamente, como se já soubesse, e tocou no nó da
gravata.
Ficamos olhando a casa, tão próximos que eu podia sentir o
cheiro de menta no seu hálito.
"Ele é bem estranho, esse teu irmãozinho, não é mesmo?
Quer dizer, usando roupas de mulher..." Sorriu para mim e
pareceu esperar que eu sorrisse de volta. Mas cruzei os
braços e disse: "O que que há de estranho nisso?". Usando o
caminho como degraus, Derek desceu e gastou algum tempo
dobrando a capa de chuva em cima do braço. Tossiu e disse:
"Você sabe, isso pode afetá-lo mais tarde". Desci também e
caminhamos em direção à casa.
"O que você quer dizer com isso?" Estávamos diante da
porta da cozinha. Derek olhou através da janela e não
respondeu. A porta da sala de visitas estava aberta e dava
para se ver Sue sentada sozinha, lendo uma revista.
De repente Derek perguntou: "Quando foi mesmo que seus
pais morreram?".
"Faz muito tempo", murmurei, abrindo a porta da cozinha.
Derek segurou-me pelo braço.
"Espere", ele disse. "Julie me disse que foi recentemente."
Sue me chamou da sala de visitas. Desvencilhei-me dele e
entrei. Derek disse num sussurro que eu voltasse, e depois o
ouvi esfregando cuidadosamente os pés antes de pisar na
cozinha.
Tão logo Derek entrou na sala, Sue deixou de lado a revista e
correu para a cozinha a fim de lhe preparar uma xícara de
chá. Ela o tratava como a um artista de cinema. Ele deu
alguns passos com a capa dobrada num quadrado perfeito,
buscando um lugar para deixá-la, enquanto Sue o olhava da
porta com a expressão de uma lebre assustada. Sentei-me e
peguei a revista. Derek pôs a capa no chão junto à cadeira e
se sentou também.
"Julie está lá em cima com Tom", Sue disse da cozinha numa
voz trêmula.
"Então vou esperar aqui", Derek respondeu. Cruzou as
pernas e puxou os punhos da camisa até que estivessem
corretamente distanciados das mangas do paletó. Folheei a
revista sem nem saber o que estava vendo. Ao receber a
xícara trazida por Sue, Derek disse: "Muito obrigado, Susan"
num tom cômico. Ela soltou uma risadinha e foi se sentar
tão longe dele quanto possível. Enquanto mexia o chá, ele
me olhou fixamente e disse: "Tem um cheiro esquisito aqui.
Você já notou?". Neguei com a cabeça, mas sabia que estava
ficando ruborizado. Derek continuou a me observar e
tomou um gole do chá. Ergueu a cabeça e fungou
ruidosamente. "Não é muito forte, mas é bem estranho." Sue
levantou-se e começou a falar depressa.
"É o ralo do lado de fora da cozinha. Entope com muita
facilidade e, no verão... você sabe..." E então, após uma
pausa, repetiu: "É o ralo".
Derek concordou com a cabeça enquanto ela falava e olhou
para mim. Sue voltou para sua cadeira e ninguém abriu a
boca durante uns bons minutos.
Como nenhum de nós ouviu Julie entrar na sala, Derek teve
um sobressalto quando ela falou.
"Tudo tão quieto", ela disse baixinho. Derek empertigou-se
como um soldado e disse com grande cortesia: "Boa noite,
Julie". Sue deu uma risada. Julie vestia a saia de veludo e
prendera o cabelo atrás com uma fita branca. Derek
continuou: "Estávamos conversando sobre ralos", e com um
ligeiro e contido movimento da mão ofereceu a Julie a
cadeira que vinha ocupando. Mas ela aboletou-se no braço
da minha cadeira.
"Ralos?", ela disse como se falasse consigo mesma, embora
não parecesse querer saber mais sobre o assunto.
"E como vai você?", Derek perguntou. Sue deu outra risada e
todos a olharam. Julie apontou para a capa de chuva.
"Por que você não a pendura antes que alguém pise nela?"
Derek pôs a capa no colo e a acariciou.
"Gatinho bonitinho", ele disse, porém ninguém riu. Sue
perguntou a Julie se Tom tinha dormido.
"Ele apagou", Julie respondeu. Derek tirou o relógio do bolso
e viu a hora. "Um pouco cedo, não é? Para ele?" Dessa vez,
Sue teve um ataque de risadinhas. Cobriu o rosto com as
mãos e cambaleou até a cozinha. Ouvimos a porta se abrir e
ela saiu para o jardim. Julie manteve-se impassível.
"Na verdade", ela respondeu, "é um pouquinho mais tarde
do que o normal, não é, Jack?" Confirmei com a cabeça,
embora não tivesse a menor ideia de que horas eram.
Julie passou a mão nos meus cabelos.
"Você notou como ele está diferente?", ela perguntou a
Derek.
"Mais limpo e mais bem-vestido", ele respondeu sem hesitar.
E então, dirigindo-se a mim: "Dando em cima das meninas,
não é mesmo?". Julie pousou a mão em minha cabeça.
"Ah, não, não permitimos nada disso por aqui."
Derek riu e tirou do bolso o maço de cigarros. Ofereceu um
a Julie, que recusou. Fiquei parado porque não queria que ela
retirasse sua mão. Ao mesmo tempo, dei-me conta de que
estava fazendo papel de bobo perante Derek. Ele se ajeitou
de volta na cadeira e fumou o cigarro sem parar de nos
olhar. Ouvimos Sue abrir a porta dos fundos, mas ela
permaneceu na cozinha. De repente, Derek sorriu e me
perguntei se, às minhas costas, Julie também havia sorrido.
Ambos se puseram de pé ao mesmo tempo sem trocar uma
palavra. Antes de remover a mão de minha cabeça, Julie fez
um pequeno afago.
Tão logo eles foram para o segundo andar, Sue voltou e
sentou-se na beirada da cadeira antes ocupada por Derek.
Riu nervosamente e disse: "Eu sei de onde vem o cheiro".
"Não é de mim", retruquei. Ela me levou à cozinha e
destrancou a porta do porão. Sem dúvida era o mesmo
cheiro, compreendi isso imediatamente, mas ele se
modificava ao ficar mais intenso. Agora já não fazia parte de
mim. Havia algo doce e, mais além, como se o envolvesse,
outro cheiro maior e mais suave que, qual um dedo gordo,
pressionava o fundo da minha garganta. Ele subia pelos
degraus de concreto vindo da escuridão. Respirei pela boca.
"Vai, desce. Você sabe o que é", disse Sue acendendo a luz e
me empurrando pela parte de baixo das costas.
"Só se você vier também", respondi. Chegou até nós um
ruído farfalhante vindo do corredor que ia até o aposento
mais distante. Sue voltou para a cozinha e pegou uma
lanterninha de plástico que pertencia a Tom. Tinha o
formato de um peixe, de cuja boca emanava uma luzinha
bem débil. "Lá tem bastante luz, não precisamos disso",
comentei. Mas ela me cutucou nas costas com a lanterna.
"Desce, você vai ver", ela sussurrou.
Chegando lá embaixo, paramos para acender outras luzes.
Sue tapou o nariz com um lenço e eu cobri o rosto com as
fraldas da camisa. A porta no final do corredor estava
entreaberta. De dentro veio mais uma vez o som farfalhante.
"Ratos", disse Sue. Quando atingimos a porta, o aposento
ficou repentinamente em silêncio e eu parei. "Empurre", Sue
disse através do lenço. Não me movi, mas a porta começou a
se abrir sozinha. Soltei um grito e dei um passo para trás,
quando então vi que minha irmã estava pressionando a porta
com o pé perto da dobradiça. Era como se alguém houvesse
chutado o baú: a parte do meio estava estufada e uma grande
fenda, com mais de um centímetro de largura em vários
lugares, cortava a superfície do concreto. Sue queria que eu
olhasse lá dentro. Pôs a lanterna na minha mão, apontou e
disse algo que não entendi. Enquanto percorria a fenda com
a lanterna, lembrei-me da ocasião em que o comandante
Hunt e sua tripulação voaram a baixa altitude sobre a
superfície de um planeta desconhecido. Milhares de
quilômetros de planícies desérticas interrompidas apenas
pelas enormes fissuras causadas por terremotos. Nem uma
única elevação, árvore ou casa, nenhuma água. Não havia
vento porque não havia atmosfera. Eles voltaram ao espaço
sem tocar no solo e ninguém falou durante horas. Sue
destapou a boca e sussurrou impaciente: "O que é que você
está esperando?". Debrucei-me sobre a fenda no lugar onde
ela era mais larga e apontei a lanterna para baixo. Vi uma
superfície convoluta, de um cinzento amarelado. Nas bei-
radas havia algo negro e desfiado. Enquanto eu olhava
fixamente para dentro da fenda, a superfície por um
momento adquiriu as feições de um rosto, com um olho,
parte de um nariz e uma boca escura. A imagem dissolveu-
se mais uma vez nas dobras retorcidas. Pensei que ia
desmaiar e entreguei a lanterna para Sue. Mas a sensação
passou quando a vi inclinar-se por cima do baú. Fomos para
o corredor, fechando a porta atrás de nós.
"Você viu?", Sue perguntou. "O lençol está todo rasgado e dá
para ver a camisola dela por baixo." Por um momento
ficamos muito excitados, como se tivéssemos descoberto
que mamãe estava viva. Afinal, nós a havíamos visto
vestindo a camisola, exatamente como ela era antes. Ao
subirmos a escada, comentei: "O cheiro não é tão ruim
depois que a gente se acostuma". Sue emitiu um som que era
um misto de riso e soluço, deixando cair a lanterna. Atrás de
nós voltamos a ouvir os ratos. Ela respirou fundo algumas
vezes e pegou a lanterna do chão. Ao se levantar, disse com
absoluto controle: "Temos que arranjar mais cimento".
Encontramos com Derek no topo da escada. Por cima de seu
ombro eu podia ver Julie no meio da cozinha. Derek
bloqueava nossa saída.
"Muito bem, vocês não sabem mesmo guardar um segredo",
ele disse em tom amistoso. "O que é que vocês têm lá
embaixo que cheira tão bem?" Abrimos caminho sem
responder. Sue foi até a pia e bebeu água numa xícara de
chá. Dava para ouvir a água descendo por sua garganta.
"Nada que possa lhe interessar", respondi. Voltei-me na
direção de Julie, com a esperança de que ela pensaria em
alguma coisa melhor para dizer. Ela caminhou até onde
Derek estava, junto à porta do porão, e puxou-o de leve pelo
braço.
"Vamos fechar a porta", ela disse, "esse cheiro está dando
nos meus nervos." Mas Derek livrou o braço e comentou no
mesmo tom amistoso: "Mas vocês ainda não me disseram o
que é". Como se usasse uma escova de roupa, passou a mão
na manga do paletó onde Julie o havia puxado e sorriu para
nós. "Vocês sabem, sou muito curioso." Ficamos vendo
enquanto ele dava meia-volta e descia a escada. O som de
seus passos cessou quando ele chegou embaixo e tateou em
busca do interruptor, voltando a ser ouvido enquanto
caminhava até o aposento no final do corredor. Então fomos
atrás dele, primeiro Julie, depois Sue, por último eu.
Derek tirou um lenço azul-claro do bolso da frente do
paletó, sacudiu-o para que se abrisse e o manteve alguns
centímetros afastado do rosto. Eu havia decidido não usar
nada e fiquei respirando por entre os dentes, sem encher os
pulmões. Derek deu umas batidas com o pé no baú. Minhas
irmãs e eu


formávamos um semicírculo apertado atrás dele, como se
em breve fosse ocorrer uma cerimônia importante. Ele
passou o dedo pela borda da fenda e olhou em seu interior.
"Sei lá o que tem lá dentro, mas, que está podre, lá isso
está.",
"É um cachorro morto", Julie disse de repente e com toda a
simplicidade. "A cadela do Jack." Derek arreganhou os
dentes num falso sorriso.
"Você prometeu que não ia contar", reclamei com Julie.
Ela deu de ombros e disse: "Agora não faz mal". Derek
debruçou-se sobre o baú. Julie continuou: "Ele queria que
fosse um... túmulo. Pôs ela aí quando morreu e jogou
cimento por cima". Derek quebrou um pedaço do concreto
e o jogou para o alto, apanhando de volta com a mesma
mão.
"Você não fez a mistura direito", ele disse, "e o baú não está
aguentando o peso."
"O cheiro se espalhou pela casa toda", Julie disse para mim,
"é melhor você dar um jeito nisso." Derek limpou as mãos
cuidadosamente no lenço.
"Acho que vai ser necessário um novo enterro", ele disse,
"talvez no jardim. Junto à sua rã." Aproximei-me do baú e
bati nele de leve com o pé, como Derek fizera.
"Não quero que saia daqui", retruquei com firmeza. "Não
depois de todo o trabalho que deu."
Com Derek à frente, saímos do porão e fomos para a sala de
visitas. Ele me perguntou o nome do cachorro e, sem
pensar, respondi: "Cosmo". Aproximou-se de mim, pôs a
mão no meu ombro e disse: "Vamos ter que selar aquela
fenda com cimento e torcer para que o baú resista". Durante
o resto da noite ficamos sentados sem fazer nada. Derek
falou sobre sinuca. Bem mais tarde, quando eu seguia para
meu quarto, ele disse:
"Vou mostrar a você como se faz a mistura certa." Já da
escada ouvi Julie dizer:
"É melhor deixar que ele cuide disso. Não vai gostar que
você mostre a ele o que fazer." Derek fez um comentário
que não consegui escutar e ficou rindo por um bom tempo.

O CALOR VOLTOU. De manhã, Julie tomou banho de sol no
morrinho sem levar o rádio. Usando pela primeira vez em
muitos dias suas próprias roupas, Tom brincava no jardim
com seu amigo dos blocos de apartamentos. Sempre que ia
fazer algo considerado por ele particularmente audacioso, tal
como pular por cima de alguma pedra, fazia questão de que
Julie acompanhasse o feito.
"Olha, Julie! Julie! Julie, olha!" Ouvi sua voz a manhã inteira.
Fui observá-los da janela da cozinha. Deitada sobre uma
toalha de um azul brilhante, Julie ignorava Tom. Sua pele
estava tão bronzeada que, pensei, com mais um dia de sol
ficaria preta. Na cozinha, um bando de vespas se alimentava
das sobras de comida espalhadas pelo chão. Do lado de fora,
nuvens de moscas sobrevoavam as latas de lixo, que havia
semanas não eram esvaziadas. Imaginamos que pudesse ter
havido uma greve, mas não ouvimos nada que o
confirmasse. Um pacote de manteiga se derretera por
completo. Enquanto olhava pela janela, passei o dedo na
pocinha amarelada e chupei. Estava quente demais para
limpar a cozinha. Sue chegou e me disse ter ouvido no rádio
que era um recorde, o dia mais quente desde 1900.
"Julie tem que tomar cuidado", disse Sue, saindo para alertá-
la. Mas Tom, seu amigo e Julie não pareciam se importar
com o calor. Ela continuou lá, imóvel, enquanto os dois
corriam por todo o jardim chamando-se aos berros.
No final da tarde, eu e Julie fomos comprar um pacote de
cimento. Tom também veio, grudado nela, agarrando-se à
sua saia branca. Em certo momento, tive de me proteger do
calor na sombra de uma parada de ônibus. Julie ficou diante
de mim, em pleno sol, abanando-me com a mão.
"Que que há com você? Parece tão fraco. O que é que você
anda fazendo?", perguntou. Nossos olhares se cruzaram e
ambos rimos. Na frente da loja, vimos nossos reflexos na
vitrine. Julie agarrou minha mão e disse: "Olhe como a sua é
pálida". Desvencilhei-me, mas, ao entrarmos na loja, ela
disse em voz firme, como se estivesse falando com uma
criança:
"Você realmente tem que apanhar algum sol. Vai lhe fazer
bem." A caminho de casa, lembrei-me de um tempo não tão
remoto em que Julie só falava se alguém se dirigisse a ela.
Agora estava conversando excitadamente com Tom sobre
circos e, em certo momento, ajoelhou-se junto dele para
limpar seus lábios borrados de sorvete e ranho com um
lenço de papel.
Chegando ao portão, decidi que não queria entrar em casa.
Julie pegou de minhas mãos o pacote de cinco quilos de
cimento e disse: "Isso mesmo, fique aí no sol". Subindo mais
a rua, notei de repente como tudo estava mudado. Já não era
de fato uma rua, e sim uma via asfaltada que cruzava um
terreno baldio quase vazio. Além da nossa, só duas casas
restavam de pé. A minha frente, vários operários agrupados
em torno de um caminhão preparavam-se para ir embora. O
caminhão se pôs em marcha quando me aproximei. Três dos
homens estavam de pé, agarrados ao topo da boleia. Um
deles me cumprimentou com um movimento lateral da
cabeça. E, quando o caminhão sacolejou ao passar por cima
do meio-fio, apontou na direção de nossa casa e sacudiu os
ombros. Tudo que restava das casas pré-fabricadas eram as
fundações. Trepei numa delas. As lajes eram cortadas pelos
encaixes onde antes se erguiam as paredes. Nas ranhuras
cresciam ervas semelhantes a pequenas alfaces. Caminhei ao
longo das linhas das paredes, pondo um pé diante do outro,
e pensei como era estranho que uma família inteira pudesse
viver dentro daquele retângulo de concreto. Não sabia dizer
se era a mesma casa pré-fabricada em que eu estivera
anteriormente. Era impossível distinguir uma das outras.
Tirei a camisa e a abri no chão, bem no centro do maior
aposento. Deitei-me de costas e espraiei os dedos para que
apanhassem sol. Logo me senti sufocado pelo calor, a pele
formigando por causa do suor. Mas, decidido, lá fiquei e
acabei caindo no sono.
Quando acordei, perguntei-me por que não estava em
minha cama. Estremeci e procurei pelas cobertas. Ao me
levantar, a cabeça começou a doer. Peguei a camisa e fui
andando devagar para casa, parando uma vez para apreciar a
vermelhidão no meu peito e nos braços, acentuada pela luz
crepuscular. O carro de Derek estava estacionado defronte à
casa. Entrando na cozinha, vi a porta do porão aberta e ouvi
uma mistura de vozes, além do barulho de algo sendo
raspado.
Derek havia arregaçado as mangas da camisa e, com uma
colher de pedreiro, forçava o cimento para dentro da fenda.
Julie o observava com as mãos nas cadeiras.
"Fazendo o trabalho por você", disse Derek, embora sem
dúvida estivesse se divertindo. Julie pareceu muito satisfeita
em me ver, como se eu voltasse de uma longa viagem
marítima.
"Olhe só para você", ela disse, "se queimou mesmo. Está
muito bonito. Ele não está bonito?" Derek grunhiu e
continuou a trabalhar, debruçado sobre o baú. O cheiro já
era menos pronunciado. Derek assoviava baixinho entre os
dentes enquanto alisava o cimento. Como estava de costas
para nós, Julie me piscou o olho e eu fingi que ia dar um
pontapé no traseiro dele. Intuindo algo, Derek perguntou,
sem se voltar para trás: "Alguma coisa de errado?".
"Não, nada", dissemos ao mesmo tempo, começando a rir.
Derek voltou-se para mim e mostrou a colher de pedreiro.
Para minha surpresa, soou como se estivesse magoado:
"Talvez seja melhor você fazer isso."
"Ah, não", respondi, "você sabe fazer isso muito melhor do
que eu." Derek tentou pôr a colher em minha mão.
"E o seu cachorro, se é que é mesmo um cachorro."
"Derek!", disse Julie em tom conciliatório. "Por favor,
continue. Você disse que ia fazer." Ela o conduziu de volta
ao baú. "Se Jack tiver que fazer isso, vai rachar outra vez e o
cheiro volta na casa toda." Derek deu de ombros e retomou
o trabalho. Julie deu-lhe um tapinha carinhoso no ombro e
apanhou seu paletó, que estava pendurado num prego.
Dobrou-o sobre o braço e também lhe deu um tapa
carinhoso. "Gatinho bonitinho", ela sussurrou. Dessa vez
Derek fingiu que não ouviu nossas risadas abafadas.
Terminado o trabalho, ele deu um passo para trás. "Muito
bem!", disse Julie. Derek fez uma pequena reverência e
tentou pegar sua mão. Eu disse algo parecido, porém ele
nem olhou para mim. De volta à cozinha, nós dois servimos
como acólitos enquanto ele lavava as mãos. Julie ofereceu-
lhe uma toalha e, enquanto secava as mãos, Derek tentou
outra vez puxá-la mais para perto, mas ela veio até onde eu
estava, pôs a mão no meu ombro e admirou a cor de meu
rosto.
"Você está com uma aparência tão boa", ela disse, "não é
verdade?" Derek dava o laço na gravata com movimentos
rápidos e precisos. Julie parecia controlar totalmente o
estado de espírito dele. Derek ajustou os punhos da camisa e
estendeu a mão para pegar o paletó.
"Acho que ele exagerou no sol", comentou. Dirigiu-se para a
porta e, por um momento, pensei que ia embora. Em vez
disso, abaixou-se e pegou pela ponta um saquinho de chá
usado, jogando-o na direção da lata de lixo. Julie encheu a
chaleira e fui buscar as xícaras na sala de visitas.
Bebemos o chá de pé na cozinha. Agora que havia posto a
gravata e vestido o paletó, Derek quase recuperara sua pose
normal. Manteve-se bem empertigado, segurando a xícara
com uma das mãos e o pires com a outra. Perguntou-me
sobre a escola e possíveis empregos. E então disse
cuidadosamente: "Você deve ter gostado muito daquele
cachorro". Concordei com a cabeça, esperando que Julie
mudasse de assunto. "Quando foi mesmo que ele morreu?",
Derek perguntou.
"Era uma cadela." Houve uma pausa e Derek, algo irritado,
insistiu: "E então, quando é que ela morreu?".
"Faz uns dois meses." Derek voltou-se para Julie com uma
expressão de súplica. Ela sorriu e voltou a encher sua xícara.
Ele perguntou, dirigindo-se ao espaço entre mim e ela:
"Que raça de cachorro?"
"Ah, você sabe", Julie respondeu, "uma mistura." Eu
acrescentei: "Mas principalmente labrador" — e por um
instante os olhos fundos de um cachorro se ergueram para
encontrar os meus. Sacudi a cabeça.
"Você se incomoda de falar sobre ela?", perguntou Derek.
"Não."
"De onde veio essa ideia de enterrá-la lá embaixo?"
"Sei lá, para preservar, como os egípcios faziam." Derek fez
um pequeno sinal com a cabeça, como se isso explicasse
tudo.
Nesse momento, Tom chegou, correu para Julie e agarrou-se
à perna dela. Mudamos de posição para alargar o círculo.
Derek tentou fazer uma carícia na cabeça de Tom, mas ele
afastou sua mão, derramando um pouco do chá. Derek
olhou os pingos no chão por alguns segundos e perguntou:
"Você gostava da Cosmo, Tom?" Ainda agarrado às pernas de
Julie, Tom inclinou-se para trás, encarou Derek e riu como
se essa fosse uma velha piada entre os dois.
"Você se lembra da Cosmo, nossa cachorra", Julie lhe disse
rapidamente.
Tom confirmou com a cabeça.
"E, a Cosmo", disse Derek. "Você ficou triste quando ela
morreu?" Tom inclinou-se de novo para trás, dessa vez
olhando fixamente para a irmã.
"Você sentou no meu colo e chorou, não se lembra?"
"Lembro", ele respondeu com ar travesso. Ficamos todos
observando Tom com grande atenção.
"Eu chorei, não foi?", ele perguntou a Julie.
"Isso mesmo, e eu te levei para a cama, está lembrado?" Tom
encostou a cabeça na barriga de Julie e deu a impressão de
refletir profundamente. Ansiosa por afastá-lo de Derek, Julie
descansou sua xícara e o levou para o jardim. Ao passarem
pela porta, Tom disse bem alto:
"Uma cachorra!" e riu zombeteiramente.
Derek sacudiu as chaves do carro no bolso. Nós dois ficamos
olhando pela janela enquanto Julie apostava corrida com
Tom no jardim. Ela era tão bonita ao se voltar e encorajar
Tom, que me irritou ter de compartilhar aquela visão com
Derek. Sem se afastar da janela, ele disse num tom
pensativo: "Eu gostaria que vocês todos... confiassem um
pouco em mim". Bocejei. Sue, Julie e eu não havíamos
combinado entre nós a história do cachorro. Não tínhamos
sido nem um pouquinho cuidadosos com Derek. Muitas
vezes, aquilo que havia no porão não parecia
suficientemente real para ser ocultado dele. Quando não nos
encontrávamos realmente lá embaixo vendo o baú, era
como se estivéssemos dormindo. Derek consultou o relógio.
"Tenho uma partida agora. Talvez nos vejamos de noite."
Deu uma chegada do lado de fora e chamou Julie, que só
parou um instante a brincadeira com Tom para fazer um
aceno de adeus e soprar um beijo. Aguardou algum tempo
antes de seguir caminho, mas a essa altura ela já tinha lhe
dado as costas.
Fui para o meu quarto, tirei os sapatos e as meias, deitei-me
na cama. Através da janela, podia ver um quadrado de céu
azul-claro, sem uma única nuvem. Menos de um minuto
depois, sentei-me e olhei a meu redor. O chão estava
coalhado de latinhas de Coca-Cola, roupas sujas, embalagens
de peixe e batatas fritas, vários cabides de arame, uma caixa
com elásticos. Levantei-me e examinei a cama, observando
as dobras e pregas nos lençóis enxovalhados, manchas por
toda parte. Tive a sensação de que ia sufocar. Tudo ali me
lembrava de mim mesmo. Abri de par em par as portas do
armário e joguei para dentro toda a sujeira do chão. Tirei os
lençóis, cobertas e fronhas da cama e pus também dentro do
armário. Arranquei das paredes ilustrações que havia
recortado de revistas. Sob a cama, encontrei pratos e xícaras
cobertos de mofo verde. Peguei todos os objetos e enfiei no
armário, até que o quarto ficou nu. Cheguei mesmo a
remover a lâmpada e o abajur da luminária do teto. Então
me despi, joguei todas as roupas dentro do armário e fechei
as portas. O quarto estava tão vazio quanto uma cela. Voltei
a deitar-me e fiquei olhando para meu pedacinho de céu
límpido até cair no sono.
Quando acordei, estava escuro e fazia frio. Tateei de olhos
fechados em busca das cobertas. Tinha uma vaga memória
de


estar deitado numa casa pré-fabricada. Será que ainda estava
lá? Não conseguia entender por que estava nu em cima de
um colchão também nu. Alguém chorava. Seria eu?
Ajoelhei-me para fechar a janela e me lembrei de repente
que minha mãe morrera havia muito tempo. Subitamente
tudo ficou claro, porém continuei deitado, tremendo de frio
e ouvindo. Vindo do quarto ao lado, o choro era baixo e
contínuo, como um gemido. Era um som que me trazia
alívio, e por algum tempo cuidei apenas de ouvi-lo. Não
tinha curiosidade de ir mais além. Parei de tremer, fechei os
olhos e imediatamente, como se o início de um espetáculo
houvesse sido retardado até que eu me instalasse, diante de
mim se apresentou uma série de vívidas imagens. Abri os
olhos por um momento e vi as mesmas imagens no escuro
do quarto. Perguntei-me por que precisava dormir tanto.
Descortinei uma praia cheia de gente numa tarde de muito
calor. Era hora de voltar para casa. Mamãe e papai
caminhavam à minha frente, carregando cadeiras de armar e
um monte de toalhas. Eu não conseguia acompanhá-los: os
seixos grandes e redondos machucavam meus pés. Trazia
numa das mãos uma vareta com um cata-vento na ponta.
Chorava de cansaço e porque queria ser carregado. Meus
pais pararam para me esperar, mas, quando cheguei perto,
deram-me as costas e continuaram a andar. Meu choro se
transformou num uivo lancinante, as outras crianças
largaram o que estavam fazendo para me olhar. Atirei no
chão o cata-vento e, quando alguém o apanhou e me
ofereceu de volta, gritei ainda mais alto. Minha mãe deu a
papai sua cadeira de armar c voltou para me buscar. Já no
colo, me vi olhando por cima de seu ombro para uma
menina que segurava o cata-vento e me encarava com
curiosidade. A brisa fez girar as pás coloridas e senti uma
vontade enorme de tê-lo de volta, mas a menina tinha
ficado bem para trás e já havíamos chegado à calçada, onde
os passos de minha mãe ganharam ritmo. Continuei a chorar
baixinho, porém mamãe não pareceu ouvir.
Dessa vez abri os olhos e despertei para valer. Com as janelas
fechadas, o quarto pequeno estava quente e abafado. No
quarto vizinho Tom continuava a chorar. Levantei-me e, de
tão tonto, esbarrei no armário. Abri-o e apalpei em busca de
minhas roupas. A lâmpada, deslocada, espatifou-se no chão.
Soltei um palavrão. Senti-me sufocado demais pela escuridão
e pela falta de ar para continuar procurando. Caminhei na
direção da porta com as mãos estendidas à frente, o rosto
crispado. Parei no corredor à espera de que meus olhos se
acostumassem à luz. Julie e Sue conversavam no andar de
baixo. Tom silenciara ao ouvir minha porta se abrir, mas
agora havia retomado aquele tipo de choro forçado e pouco
convincente a que Julie não daria a menor bola. A porta do
quarto dela estava aberta e entrei sem fazer barulho. A luz
era tão fraca que Tom de início não reparou na minha
presença. Ele havia chutado as cobertas para o pé do berço e
estava deitado de costas, nu, olhando para o teto. Emitia um
som semelhante a um canto monótono. As vezes parecia
esquecer que estava chorando e se calava, voltando logo
depois a se lembrar e chorar ainda mais alto. Fiquei uns
cinco minutos atrás dele, ouvindo. Um de seus braços estava
jogado por trás da cabeça e outra mão brincava com o pênis,
puxando e enrolando-o entre o indicador e o polegar.
"E aí?", perguntei. Tom virou a cabeça para trás e olhou para
mim sem demonstrar surpresa. Voltou a contemplar o teto e
retomou o choro. Debrucei-me sobre o berço e disse num
tom duro: "Que que há de errado contigo? Por que não para
de chorar?". Seus lamentos se transformaram num pranto de
verdade, com soluços e lágrimas correndo pelo rosto.
"Espera", eu disse, tentando baixar a lateral do berço. Na
semiobscurida-de do quarto, não consegui soltar o fecho.
Meu irmão respirou fundo e soltou um berro. Era difícil
concentrar-me. Dei um soco no fecho e depois sacudi as
barras verticais até balançar o berço todo. Tom começou a
rir. Algo cedeu e a lateral caiu. Na voz de bebê, ele pediu:
"De novo! Faz isso de novo!". Sentei-me no pé do berço
sobre as cobertas amontoadas. Olhamo-nos por um bom
tempo até que, na sua voz normal, ele perguntou: "Por que
você está sem roupa nenhuma?".
"Estou com calor", respondi. Tom sacudiu a cabeça
concordando.
"Também estou com calor." Dobrou os braços embaixo da
nuca, parecendo mais alguém que toma sol na praia do que
um bebê.
"E por isso que você estava chorando? Por que estava com
calor?"
Ele refletiu por alguns segundos antes de concordar com um
gesto de cabeça.
"Chorar faz você sentir ainda mais calor."
"Queria que Julie subisse.
Ela disse que ia subir para me ver."
"Por que você queria que ela viesse?"
"Porque queria."
"Mas por quê?"
Tom estalou a língua em sinal de exasperação.
"Porque eu queria ela."
Cruzei os braços. Estava com vontade de conduzir um
interrogatório.
"Você se lembra da mamãe?"
Ele abriu ligeiramente a boca e fez que sim com a cabeça.
"Você não quer ela?"
"Ela morreu", disse Tom indignado.
Acomodei-me no berço. Tom chegou-se para o lado,
abrindo espaço para minhas pernas. Perguntei: "Mesmo que
esteja morta, você não ia preferir que ela subisse para te ver,
em vez da Julie?".
"Já estive no quarto dela", Tom se vangloriou. "Sei onde Julie
guarda a chave." O quarto de mamãe, trancado à chave,
quase nunca passava pela minha cabeça. Quando lembrava
dela, pensava no porão. Indaguei: "O que é que você faz lá?".
"Nada."
"O que tem lá?" Uma ponta de choro apareceu na voz de
Tom:
"Julie tirou tudo de lá. Todas as coisas da mamãe."
"O que você ia querer com as coisas da mamãe?" Tom me
olhou como se a pergunta não fizesse sentido. "Você
brincou com as coisas dela?" Tom confirmou com a cabeça e
franziu os lábios imitando o jeito de Julie.
"Vestimos as roupas e outras coisas."
"Você e Julie?"
Tom deu uma risadinha.
"Eu e Michael, seu bobo!"
Michael era o amigo dos blocos de apartamentos.
"Você vestiu as roupas da mamãe?"
"Às vezes nós éramos papai e mamãe, às vezes Julie e você,
às vezes Julie e Derek."
"O que vocês faziam quando eram Julie e eu?"
Outra vez deu a impressão de que não compreendia a
pergunta. "Quer dizer, o que é que vocês faziam?"
"Só brincávamos", disse Tom vagamente.
Por causa da forma como a luz batia em seu rosto, e também
porque ele tinha segredos, Tom pareceu ser um sábio ancião
ali à meus pés. Perguntei-me se ele acreditava no céu. "Você
sabe onde mamãe está agora?" Tom olhou para o teto e
respondeu: "No porão".
"O que você está dizendo?", sussurrei.
"No porão. No baú cheio daquela coisa."
"Quem é que te disse isso?"
"Foi o Derek. Disse que vocês puseram ela lá."
Tom deitou-se de lado e trouxe o polegar para perto da boca.
Sacudi seu tornozelo.
"Quando é que ele te disse isso?" Tom balançou a cabeça. Ele
nunca sabia se alguma coisa havia acontecido na véspera ou
uma semana antes. "Mais o que que ele disse?" Tom sentou-
se e seu rosto se abriu num sorriso.
"Disse que você fica fazendo de conta que é um cachorro."
Ele riu abertamente. "Um cachorro!"
Tom se cobriu com uma ponta do lençol e voltou a deitar de
lado. Enfiou a ponta do polegar na boca, mas continuou de
olhos abertos. Ajeitei um travesseiro nas minhas costas.
Estava gostando de ficar na cama dele. Não me importava
com nada do que ouvira. Tive vontade de levantar a lateral
do berço e ficar sentado lá a noite inteira. Na última vez em
que havia dormido nele, alguém tomara conta de tudo. Aos
quatro anos, eu achava que minha mãe inventava os sonhos
que eu tinha de noite. Se de manhã ela me perguntava,
como às vezes fazia, o que eu havia sonhado, era só para
saber se eu ia dizer a verdade.
O berço passou para Sue bem antes disso, quando eu tinha
dois anos, mas a sensação de deitar nele me era familiar — o
cheiro salgado e úmido, a disposição das barras, o prazer
envolvente de estar docemente aprisionado. Passou-se um
tempão. Os olhos de Tom, abertos por um instante, voltaram
a se fechar e ele enfiou o dedo mais fundo na boca. Eu não
queria que ele caísse no sono ainda.
"Tom", sussurrei, "Tom. Por que você quer ser um bebê?"
Ele disse numa voz lamurienta, como se fosse chorar:
"Ai, você está me esmagando." Deu-me um pontapé fra-
quinho por baixo do lençol. "Você está me esmagando e essa
cama é minha... você..." Sua voz cessou e os olhos se
fecharam firmemente enquanto a respiração adquiria um
ritmo cadenciado. Fiquei olhando para ele por um minuto
ou mais até que um ligeiro ruído me fez perceber que eu
também estava sendo observado da porta.
"Olhe só isso!", Julie murmurou para si própria ao atravessar
o quarto. "Olhe só para você!" Deu-me um soco de leve no
ombro e tapou a boca com a mão para abafar o riso.
"Dois bebezões nus!" Depois de levantar e prender a lateral,
ela se inclinou sobre o berço e sorriu para mim, encantada.
Seu cabelo estava preso no alto da cabeça, mas longas
mechas encaracoladas desciam pelas orelhas, onde estavam
pendurados brincos de contas vivamente coloridas. "Meu
queridinho", ela disse, acariciando minha cabeça. A blusa
branca estava desabotoada até a curva dos seios e sua pele
exibia um bronzeado profundo e opaco. Ela tentava manter
os lábios fechados, mas seu sorriso insistia em abri-los. O
cheiro doce e forte de seu perfume me envolveu por
completo e lá fiquei, com um sorriso idiota no rosto,
procurando os olhos dela com os meus. Só de brincadeira,
pensei em chupar o dedo e levantei a mão ao rosto.
"Não pare", ela me encorajou, "não tenha medo." O gosto
insípido de minha própria pele me fez recobrar a razão.
"Vou sair daqui", eu disse e, quando me ajoelhei, Julie
apontou por entre as barras.
"Olhe! Ele é grande!" disse rindo e fingindo que ia pegá-lo.
Passei por cima da lateral e, enquanto Julie cobria Tom, me
esgueirei na direção da porta, já lamentando ter encerrado
aquele encontro. Julie segurou meu braço e me levou para a
cama.
"Não vá embora ainda, quero falar com você", ela disse.
Sentamo-nos um de frente para o outro. Seus olhos tinham
um brilho atrevido. "Você fica muito bonito sem roupa.
Rosa e branco, igual a um sorvete." Ela tocou em meu braço
queimado de sol. "Está doendo?"
Neguei com a cabeça e perguntei: "E as suas roupas?". Ela se
despiu rapidamente. Quando suas roupas formaram uma
pequena pilha na cama entre nós, ela fez um movimento de
cabeça na direção de Tom e perguntou: "O que você acha
dele? Não acha que ele está feliz?". Eu disse que sim e,
quando lhe comuniquei o que Tom me contara, Julie abriu a
boca num gesto de falsa surpresa.
"Derek já sabe há muito tempo. Nós não fomos muito bons
em matéria de guardar o segredo. O que o aborrece é que
não deixamos que ele participe do esquema." Ela sufocou um
risinho. "Vê que não confiamos nele quando dizemos que se
trata de um cachorro." Ela se chegou mais para perto de
mim e abraçou seu corpo. "Quer ser parte da família, você
sabe, o paizão esperto. Ele está começando a dar nos meus
nervos."
Toquei-a no braço como ela me havia tocado. "Já que ele
sabe, melhor contarmos tudo. Me sinto meio idiota falando
daquele cachorro." Julie negou com a cabeça e entrelaçou
seus dedos nos meus.
"Ele quer controlar tudo. Fica falando em vir morar conos-
co." Erguendo os ombros e empurrando o peito para fora,
ela imitou a voz de Derek: "Alguém precisa tomar conta de
vocês quatro". Peguei a outra mão de Julie e nos
aproximamos até os joelhos se tocarem. Do berço, que
ficava encostado à cama, veio o murmúrio de Tom em meio
ao sono e um som mais alto quando engoliu saliva. Julie
agora falava aos sussurros.
"Ele vive com a mãe numa casinha minúscula. Já fui lá. Ela o
chama de Dudu e o obriga a lavar as mãos antes de tomar
chá." Julie liberou as mãos e as pousou em cada lado do meu
rosto, lançando um breve olhar entre minhas pernas. "Ela
me disse que passa quinze camisas por semana para ele."
"É um bocado", admiti. Julie apertou meu rosto para fazer
com que os lábios se parecessem com o bico de uma ave.
"Você ficava com essa cara o tempo todo, mas agora mudou
muito", ela disse, relaxando a pressão das mãos. Como eu
queria que continuássemos a conversar, comentei:
"Faz muito tempo que você não corre."
Julie esticou uma perna e a pousou sobre meu joelho. Nós
dois a olhamos como se fosse um animalzinho de estimação.
Segurei seu pé com as duas mãos.
"Talvez corra no inverno."
"Você vai voltar para a escola na semana que vem?"
Ela fez que não com a cabeça e perguntou: "Você vai?"
"Não." Abraçamo-nos. Nossos braços e pernas estavam tão
entrelaçados que caímos de lado na cama. Lá ficamos, cada
qual enlaçando o pescoço do outro, os rostos bem juntos.
Falamos sobre nós por um bom tempo.
"É engraçado", disse Julie, "mas perdi inteiramente a noção
do tempo. Tenho a impressão de que vivemos sempre assim.
Não consigo lembrar de verdade como era antes de mamãe
morrer e também não consigo imaginar que as coisas possam
mudar. Tudo parece fixo, parado, e por isso não sinto medo
de nada."
"A não ser quando vou ao porão, tenho a impressão de que
estou dormindo. As semanas vão passando sem que eu me
dê conta, se você me perguntar o que aconteceu há três dias,
não sei dizer." Falamos sobre a demolição mais adiante em
nossa rua e sobre o que aconteceria se derrubassem nossa
casa.
"Alguém viria fuçar aqui", eu disse, "e só ia encontrar uns
tijolos quebrados no meio do capim alto." Julie fechou os
olhos e avançou a perna para cima da minha coxa. Meu
braço estava encostado num dos seus seios e eu podia sentir
o pulsar do coração.
"Não ia fazer nenhuma diferença, não é mesmo?" Ela foi
subindo pouco a pouco na cama até que seus seios, grandes e
pálidos, ficaram na altura do meu rosto. Toquei num dos
mamilos com a ponta do dedo. Era duro e enrugado como
um caroço de pêssego. Julie o tomou entre os dedos,
massageou-o e o empurrou em direção a meus lábios.
"Não para", ela sussurrou. Tive a sensação de que o peso do
meu corpo se esvaíra, que eu rodopiava no espaço sem
nenhum ponto de referência. Quando meus lábios
envolveram seu mamilo, um leve tremor percorreu o corpo
de Julie e uma voz vinda do outro lado do quarto disse em
tom lúgubre:
"Agora eu entendi tudo."
Tentei me afastar imediatamente. Mas Julie ainda mantinha
o braço em torno do meu pescoço e o apertou com mais
força. Seu corpo criava uma barreira entre mim e Derek.
Apoiada num cotovelo, ela se voltou para encará-lo.
"Entendeu mesmo?", perguntou em tom sereno. "Parabéns!"
Mas seu coração, a poucos centímetros do meu rosto,
martelava forte. Derek voltou a falar, sua voz agora bem
mais próxima.
"Desde quando isso vem acontecendo?"
Fiquei feliz por não poder vê-lo.
"Há muito tempo", disse Julie, "muitíssimo tempo."
Derek deixou escapar um pequeno grito de surpresa ou
raiva. Imaginei-o imóvel e empertigado, com as mãos nos
bolsos. Dessa vez ele falou com uma voz pastosa e irregular:
"Todo esse tempo... você nem me deixava chegar perto."
Limpou a garganta ruidosamente e fez uma breve pausa.
"Por que você não me disse?" Senti que Julie dava de
ombros. Em seguida ela disse: "Na verdade, você não tem
nada a ver com isso".
"Se tivesse me dito, eu teria dado o fora, teria deixado você
fazer o que quisesse."
"Típico", disse Julie. "Isso é típico." Agora Derek estava
furioso e sua voz nos chegava do outro lado do quarto.
"Isso é uma coisa doentia", ele disse em voz alta, "ele é seu
irmão!"
"Fale baixo, Derek", Julie retrucou com firmeza, "senão você
vai acordar Tom."
"Doentia!", Derek repetiu, batendo a porta do quarto ao sair.
Julie saltou da cama, trancou a porta à chave e apoiou-se
contra ela. Esperamos ouvir o motor do carro de Derek
sendo ligado, mas, exceto pela respiração de Tom, tudo
continuou em silêncio. Julie riu para mim. Foi até a janela e
afastou ligeiramente as cortinas. Derek tinha estado tão
pouco tempo no quarto que, agora, sua presença parecia ter
sido imaginada por nós.
"Provavelmente está lá embaixo", Julie disse enquanto se
deitava de novo a meu lado, "provavelmente se lastimando
com Sue." Ficamos calados por algum tempo, deixando que
se dissipassem os ecos da voz de Derek. Depois Julie pousou
a palma da mão na minha barriga. "Olhe como você é
branco comparado com a minha mão." Tomei sua mão e a
medi contra a minha. Eram exatamente do mesmo tamanho.
Sentamo-nos e comparamos as linhas de nossas palmas, essas
totalmente diferentes. Começamos uma longa investigação
mútua de nossos corpos. Deitados lado a lado, comparamos
os pés. Os dedos do pé dela eram mais longos e finos.
Medimos os braços, pernas, pescoços e línguas, porém nada
era tão parecido quanto nossos umbigos, a mesma dobra fina
na espiral, que era voltada para um lado, os mesmos vincos
na reentrância. A inspeção continuou até que enfiei os
dedos em sua boca para contar o número de dentes, quando
então desandamos a rir do que estávamos fazendo.
Rolei o corpo para ficar de costas e Julie, ainda rindo, mon-
tou em cima de mim, pegou meu pênis e o introduziu
dentro dela. Tudo foi muito rápido e, de repente, ficamos
em silêncio, incapazes de nos olharmos. Julie prendeu a
respiração. Havia algo macio no meu caminho e, como eu
crescia dentro dela, aquilo se rompeu e penetrei bem fundo.
Ela soltou um pequeno suspiro e, debruçando-se sobre mim,
me beijou de leve nos lábios. Ergueu-se ligeiramente e se
deixou cair. Uma sensação fresca subiu do meu ventre e eu
também suspirei. Finalmente nos olhamos. Julie riu e disse:
"É fácil". Levantei um pouco as costas e apertei o rosto
contra seus seios. Ela tomou outra vez um mamilo entre os
dedos e encontrou minha boca. Enquanto eu chupava e o
mesmo tremor lhe percorria o corpo, ouvi e senti uma
pulsação profunda e regular, uma batida forte, surda e lenta
que parecia subir pelas paredes e fazer a casa estremecer.
Voltei a deitar-me e Julie se inclinou para a frente.
Começamos a nos mover devagar, no ritmo do ruído,
parecendo mesmo que ele comandava nossas ações, que ele
nos fazia seguir em frente. Em certo momento, olhei para o
lado e vi o rosto de Tom entre as barras do berço. Pensei
que nos observava, mas seus olhos estavam fechados. Fechei
os meus. Pouco depois, Julie achou que era hora de inverter
as posições. Não era uma coisa fácil de fazer. Minha perna
ficou presa embaixo da sua. Os lençóis nos atrapalhavam.
Tentando rolar numa direção, quase caímos da cama e
tivemos de rolar de volta. Imprensei os cabelos de Julie no
travesseiro com o cotovelo e ela soltou um grito de dor.
Começamos a rir, esquecendo o que estávamos fazendo. Em
breve nos vimos deitados lado a lado, escutando os grandes
baques ritmados, que agora eram mais lentos.
Então ouvimos Sue chamando por Julie e batendo à porta.
Quando Julie a deixou entrar, ela se agarrou ao pescoço da
irmã e a abraçou. Julie a levou até a cama e ela se sentou
entre nós dois, tremendo e apertando os lábios finos. Segurei
sua mão.
"Ele está quebrando", ela disse por fim, "achou a marreta e
está quebrando." Prestamos atenção no barulho. O som das
batidas já não era tão intenso e havia pausas entre os golpes.
Julie levantou-se, trancou a porta e ficou de pé junto a ela.
Durante algum tempo fez-se silêncio, até ouvirmos o ruído
de passos no caminho para o portão. Julie dirigiu-se à janela.
"Está entrando no carro." Houve outro longo silêncio antes
que o motor roncasse e o carro partisse. O atrito dos pneus
no asfalto soou como um grito. Julie fechou as cortinas e,
sentando-se ao lado de Sue, tomou sua outra mão. Lá
ficamos os três, enfileirados na beira da cama. Por muito
tempo, ninguém falou. De repente, como se tivéssemos
despertado, passamos a falar em sussurros sobre mamãe.
Conversamos sobre sua doença, como tinha sido quando a
carregamos escada abaixo e quando Tom quis se deitar ao
lado dela. Lembrei-as do dia da guerra de travesseiros em
que havíamos ficado sozinhos na casa. Sue e Julie tinham se
esquecido inteiramente daquilo. Recordamos um feriado no
campo antes de Tom nascer e discutimos o que mamãe teria
pensado de Derek. Concordamos em que ela não o teria
suportado. Não estávamos tristes, e sim excitados, numa
espécie de torpor. Esquecíamos de falar baixinho até que um
de nós fazia shhh! Conversamos sobre a festa de aniversário
junto à cama de mamãe e a exibição de Julie, pedindo que a
repetisse. Ela chutou algumas roupas para o lado e se pôs de
cabeça para baixo num movimento felino, as pernas
bronzeadas mal se movendo ao atingir a vertical. Sue e eu
aplaudimos baixinho. Foi o som de dois ou três carros
parando do lado de fora, as batidas de portas e os passos
apressados de várias pessoas no caminho que levava à porta
da frente que acordaram Tom. Através de uma abertura nas
cortinas, uma luz azul giratória projetava um reflexo
ondulante na parede do quarto. Tom sentou-se, piscando os
olhos, e ficou observando aquele efeito luminoso. Reunimo-
nos em torno do berço e Julie, inclinando-se para a frente, o
beijou.
"Muito bem", ela disse, "que soninho gostoso, não foi?"



De: déia


 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
O Jardim de Cimento - Ian McEwan
 
 
 
links ao final da mensagem
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
 
Sinopse:
 
Já nesse seu primeiro romance, Ian McEwan revelava as características que o confirmariam como um dos maiores escritores ingleses de sua geração: o domínio técnico, a linguagem seca, narrativa de forte apelo visual, guinadas surpreendentes.
Mesclando elementos da tradição gótica inglesa a um enredo sem, qualquer tipo, de devaneio lírico, o autor constrói uma experiência literária áspera e visceral: após a morte dos pais, quatro crianças encerram-se no minúsculo mundo do lar, entregando-se a todo tipo de sensações e descobertas bizarras. Com o tempo, passam a mimetizar os papéis dos adultos ausentes, criando uma nova estrutura  familiar que desaba quando a irmã mais velha leva um estranho ao núcleo fraterno. E só o começo de um inferno existencial para o qual não haverá saída.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
  
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