A Via de Chuang Tzu
Thomas Merton
Tradução de
PAULO ALCEU AMOROSO LIMA
Para John C. H. Wu
Sem cujo estímulo jamais teria eu ousado isto.
ÍNDICE
1. Advertência ao leitor
A VIA DE CHUAN TZU
A. Um Estudo sobre Chuang Tzu
B. Trechos de Chuang Tzu
2. A Árvore Inútil
3. O Vendedor de Chapéus e Um Monarca Habilidoso
4. O Sopro da Natureza
5. A Grande Sabedoria
6. O Pivô
7. Três Pela Manhã
8. Destrinchando um Boi
9. O Perneta e o Faisão do Pântano
10. O Jejum do Coração
11. Os Três Amigos
12. O Despertar de Lai Tzu
13. Confúcio e o Louco
14. O Homem Autêntico
15. A Metamorfose
16. O Homem Nasce no Tao
17. Os Dois Reis e a Não-Forma
18. Arrombando o Cofre
19. Deixar as Coisas como Estão
20. O Homem Soberano
21. Quão Profundo é o Tao!
22. A Pérola Perdida
23. No Meu Fim está o meu Começo
24. Quando a Vida era Plena, não Existia a História
25. Quando um Homem Pavoroso
26. Os Cinco Inimigos
27. Ação e Inação
28. O Duque de Hwan e o Fabricante de Rodas
29. Os Dilúvios de Outono
30. Grande e Pequeno
31. O Homem do Tao
32. A Tartaruga
33. A Coruja e a Fênix
34. A Alegria dos Peixes
35. A Perfeita Alegria
36. Sinfonia a um Pássaro Marítimo
37. O Todo
38. A Necessidade de Vitória
39. Os Porcos do Sacrifício
40. O Galo de Briga
41. O Entalhador de Madeira
42. Quando o Sapato se Adapta
43. O Barco Vazio
44. A Fuga de Lin Hui
45. Quando o Conhecimento foi ao Norte
46. A Importância de ser Desdentado
47. Onde está o Tao?
48. A Luz das Estrelas e o Não-Ser
49. Keng Sang Chu
50. O Discípulo de Keng
51. A Torre do Espírito
52. A Lei Interior
53. As Desculpas
54. Aconselhando o Príncipe
55. A Vida Ativa
56. A Montanha dos Macacos
57. A Boa Sorte
58. A Fuga da Benevolência
59. O Tao
60. O Inútil
31. Meios e Fins
62. A Fuga da Sombra
63. Funerais de Chuang Tzu
ADVERTÊNCIA AO LEITOR
A NATUREZA especial deste livro exige algumas explicações.
Os textos de Chuang Tzu aqui reunidos são o resultado de
cinco anos de leituras, estudos, notas e meditações. As
notas, com o tempo, adquiriram uma forma especial, e
tornaram-se como se fossem «imitações» de Chuang Tzu, ou
melhor, leituras interpretativas, livres, de trechos caracterís-
ticos que mais me atraíram. Estas «leituras» surgiram em
virtude de uma comparação das quatro melhores traduções
de Chuang Tzu para as línguas ocidentais, duas para o inglês,
uma para o francês, e uma para o alemão. Ao ler estas
traduções, encontrei entre elas diferenças dignas de nota, e
logo verifiquei que todos os tradutores de Chuang Tzu
tiveram de fazer um vasto emprego de suas próprias intui-
ções. Suas hipóteses refletem, não apenas o seu grau de
cultura chinesa, mas também a sua própria intuição da «via»
misteriosa, descrita por um Mestre, que escreveu na Ásia, há
quase 2500 anos passados. Como conheço apenas alguns
poucos caracteres chineses, evidentemente não posso
considerar-me um tradutor. Estas minhas «leituras» não são
esboços para uma reprodução fidedigna, mas aventuras em
intepretações pessoais e espirituais.
De toda a maneira, qualquer interpretação de Chuang Tzu
tende a ser muito pessoal. Ainda que, do ponto de vista de
erudição, eu não seja nem um simples anão sentado nos
ombros destes gigantes, nem mesmo todas as minhas
interpretações possam ser qualificadas como «poesia»,
acredito que uma camada particular de leitores se aproveitará
da minha visão intuitiva a respeito de um pensador
espirituoso, sutil, inconformista, e nem sempre muito
acessível. Acredito nisso, não de olhos fechados, mas
porque todos os que tiveram oportunidade de observar o
material manuscrito gostaram, e muito me incentivaram a
fim de reunir tudo em forma de um livro. Assim, embora
não acredite que esta obra seja muito criticada, se, por acaso,
a alguém ela não agradar, poderá acusar-me, e a meus
amigos, principalmente o Dr. John Wu, que é a principal
figura de apoio, meu cúmplice, e que me tem auxiliado de
muitas maneiras. Nesta iniciativa estamos unidos. E devo
ainda acrescentar que gostei muito de ter escrito este livro,
muito mais do que qualquer outro. De modo que declaro-me
aqui um impenitente inveterado. As minhas relações com
Chuang Tzu foram muito proveitosas.
John Wu tem uma teoria de que, numa «vida primitiva», eu
tenha sido um monge chinês. Não posso afirmar isso com
certeza e, evidentemente, apresso-me em garantir a todos
que não acredito na reencarnação (e nem ele, tampouco).
Mas há quase vinte e cinco anos que sou um monge cristão,
e, sem dúvida alguma, nos tornamos capacitados a encarar a
vida de um ângulo que caracteriza todos os solitários e
reclusos de todas as idades e culturas. Podem alguns
argumentar que todo monarquismo, cristão ou não-cristão,
é, essencialmente, um só. Acredito que o monarquismo
cristão tenha adquirido características próprias. Todavia,
existe uma visão monástica que é comum à todos aqueles
que julgaram preferível discutir o valor de uma vida
submetida inteiramente a pressuposições seculares
arbitrárias, ditadas por uma convenção social e dedicada à
aquisição de prazeres temporais, que se constituem, talvez,
numa miragem. Qualquer que seja o valor que se dê à «vida
no mundo», existiram, em todas as culturas, homens que, na
solidão, descobriram algo do que eles mais anseiam.
S. Agostinho, outrora, fez uma afirmação muito forte (que
mais tarde retificou), de que, «o que se chama de religião
cristã existia já entre os antigos, e nunca deixou de existir,
desde os primórdios das raças humanas, até que Cristo se fez
Carne» (De Vera Religione, 10). Seria, de fato, um exagero
chamarmos Chuang Tzu de «cristão», e não tenho aqui a
intenção de perder tempo em especulações quanto aos
possíveis rudimentos de teologia que possam ser descobertos
em suas afirmações misteriosas sobre o Tao.
Antes de tudo, este livro não tem a intenção de provar nada,
nem de convencer ninguém de coisa alguma de que não
deseje ouvir falar. Ou melhor, não se trata de nenhuma nova
sutileza apologética (nem de nenhuma obra jesuítica de
prestidigitação) na qual os coelhos cristãos, de repente,
aparecerão de uma cartola tauísta, como em mágica.
Eu simplesmente gosto de Chuang Tzu porque ele é o que é,
e sinto-me sem nenhuma necessidade de justificar esta
admiração, a mim mesmo, ou a qualquer outra pessoa. Ele é
grande demais para necessitar de quaisquer explicações de
minha parte. Se S. Agostinho pôde ler Plotino, se S. Tomás
pôde ler Aristóteles e Averróis (ambos bastante distantes do
Cristianismo, bem mais do que jamais o fora Chuang Tzu!), e
se Teilhard de Chardin pôde fazer um amplo uso de Marx e
de Engels em sua síntese, acho que me podem desculpar
estas minhas relações com um recluso chinês, que
compartilha do clima e da paz da minha própria solidão, e
que é o meu tipo característico de pessoa.
Seu temperamento filosófico é, na minha opinião,
profundamente original e sadio. Naturalmente, pode ser mal
interpretado. Mas, essencialmente, é simples e direto.
Procura, como o faz todo o grande pensamento filosófico, ir
diretamente ao âmago das coisas.
Chuang Tzu não se preocupa com palavras, nem com
fórmulas sobre a realidade, mas com a aquisição existencial
direta da realidade como tal. Esta aquisição é
necessariamente obscura, e não se presta a uma análise
abstrata. Ela pode se apresentar numa parábola, numa fábula,
numa estória cômica a respeito de uma conversa entre dois
filósofos. Nem todas as estórias são, obrigatoriamente, da
autoria de Chuang Tzu. Algumas, até, são a seu respeito. O
livro de Chuang Tzu é um compêndio, onde alguns
capítulos são, quase que certamente, da autoria do próprio
Mestre, mas muitos outros, principalmente os últimos, são
da autoria de seus discípulos. Todo o livro de Chuang Tzu é
uma antologia do pensamento, do humor, das intrigas, e da
ironia, correntes nos círculos taoístas na melhor época, que
foram os séculos 4o e 3º a.C. Mas todos aqueles ensina-
mentos, a «via» contida nessas anedotas, os poemas, as
meditações, são típicos de uma certa mentalidade
encontrada em toda parte do mundo, um certo gosto pela
simplicidade, pela humildade, pelo despojamento de si, pelo
silêncio, e, em geral, uma recusa a levar a sério a
agressividade, a ambição, os atropelos, e a importância dada
a si mesmo, que devemos demonstrar, a fim de podermos
conviver em sociedade. Esta também é a outra «via», que
prefere não atingir nenhum setor do mundo, nem mesmo
na área de uma realização supostamente espiritual.
O livro da Bíblia que mais se assemelha aos clássicos taoístas
é, evidentemente, o Eclesiastes. Mas, ao mesmo tempo,
existe muita coisa nos ensinamentos dos Evangelhos sobre a
simplicidade, o espírito de infância e a humildade, que
corresponde aos mais profundos anseios do livro de Chuang
Tzu e do Tao Teh Ching. John Wu fez esta observação num
admirável ensaio sobre S. Teresinha de Lisieux e o Taoísmo,
a ser publicado em breve, juntamente com o seu estudo
sobre Chuang Tzu. Todavia, o Eclesiastes é um livro terreno,
enquanto a ética dos Evangelhos é a da revelação feita na
terra sobre um Deus Encarnado. A «Pequena Via» de S.
Teresinha de Lisieux é uma renúncia explícita a todas
aquelas espiritualidades exaltadas e não-encarnadas que
dividem o homem contra si mesmo, colocando uma metade
no reino angelical, e, a outra, num inferno terreno. Para
Chuang Tzu, como para o Evangelho, a perda da vida é a
própria salvação, e procurar salvá-la por motivos pessoais
significa perdê-la. Afirmam alguns que o mundo nada mais é
do que ruína e perdição. Existe, também, uma renúncia ao
mundo que encontra e salva o homem em sua própria casa,
que é o mundo de Deus. De qualquer maneira, a «via» de
Chuang Tzu é misteriosa, porque é tão simples que pode
existir sem ser uma via de espécie alguma. Mas o que não é
uma «fuga».
A VIA DE CHUANG TZU
1. Um estudo sobre Chuang Tzu
O PERÍODO clássico da filosofia chinesa compreende cerca de
300 anos, de 550 a 250 a.C. Chuang Tzu, considerado o
maior escritor taoísta de cuja existência histórica se tem
notícia (não podemos ter a mesma certeza a respeito de Lao
Tzu), floresceu no final deste período, e, realmente, o
último capítulo do livro de Chuang Tzu (capítulo 33), é uma
estória engraçada e informativa da filosofia chinesa até o seu
tempo — o primeiro documento característico, pelo menos
no Oriente.
A graça, a sofisticação, o gênio literário e a percepção
filosófica de Chuang Tzu são evidentes a qualquer um que
leia a sua obra. Mas, antes que se comece a entender,
mesmo uma parcela pequena, de sua sutileza, devemos situá-
lo no contexto cultural e histórico. Em outras palavras,
devemos imaginá-lo em contraste com aquele
Confucionismo, que êle não deixava de ridicularizar,
juntamente com todas aquelas escolas estabelecidas e aceitas
do pensamento chinês, desde a de Mo Ti, à do
contemporâneo, amigo e constante adversário de Chuang, o
lógico Hui Tzu. Devemos também considerar Chuang em
relação aos fatos que o sucederam, pois seria um grave erro
confundir o Taoísmo de Chuang Tzu com aquele amálgama
populista, degenerado de superstições, alquimia, mágicas e
panaceias, em que o Taoísmo veio a se constituir mais tarde.
Os herdeiros reais do pensamento e do espírito de Chuang
Tzu são os Budistas chineses Zen, do Período T'Ang (séculos
VII ao X d.C.). Mas Chuang Tzu continuou a exercer uma
influência em todo o pensamento culto da China, pois
nunca deixou de ser reconhecido como um dos grandes
escritores e pensadores do período clássico. O taoísmo sutil,
sofisticado, místico, de Chuang Tzu e de Lao Tzu deixou
marca permanente em toda a cultura chinesa e no próprio
caráter chinês. Nunca deixaram de existir autoridades como
Daisetz T. Suzuki, erudito japonês do Zen, que considera
Chuang Tzu o maior filósofo chinês. Não há nenhuma
dúvida de que o tipo de pensamento e de cultura expressos
por Chuang Tzu foi aquele que transformou o Budismo
hindu, altamente especulativo, num tipo humorístico, ico-
noclasta, e totalmente prático de Budismo, que floresceu na
China e no Japão nas várias correntes do Zen. Este, por sua
vez, nos esclarece muito sobre Chuang Tzu, e Chuang Tzu,
por sua vez, também nos esclarece muito sobre o Zen.
Entretanto, vamo-nos acautelar um pouco. Em minha
referência ao Zen, que evidentemente é muito sugestiva,
numa época em que o Zen goza de certa popularidade no
Ocidente, pode ser uma descoberta, como também pode ser
um traiçoeiro «clichê». Existe uma boa quantidade de
leitores, no Ocidente, que já ouviram falar no Zen, de um
modo ou de outro e, até mesmo, já tiveram a oportunidade
de prová-lo um pouco com a ponta da língua. Mas provar é
uma coisa e engolir é outra, principalmente quando, tendo
apenas provado, tendemos a identificar a coisa provada com
outra coisa que ela parece lembrar.
A modalidade de Zen em alguns círculos ocidentais adapta-
se aos moldes um tanto confusos da revolução e da
renovação espiritual. Representa uma certa insatisfação,
compreensível em relação aos modelos convencionais es-
pirituais e ao formalismo ético e religioso. E' um sintoma da
urgência desesperada do homem ocidental por recuperar a
espontaneidade e a profundidade, em um mundo cuja
habilidade tecnológica as transformou em um vazio rígido,
artificial e espiritual. Mas, em sua associação com a urgência
em recuperar o autêntico sentido de experiência, o Zen do
Ocidente identificou-se com um espírito improvisador e
experimental — com uma espécie de anarquia moral que se
esquece de quanta disciplina rígida e de quantos costumes
tradicionais severos são exigidos pelo Zen da China e do
Japão. Assim, também, com Chuang Tzu. Ele pode
facilmente ser lido hoje como uma pessoa que pregasse um
evangelho licencioso e descontrolado. O próprio Chuang
Tzu seria o primeiro a afirmar que você não pode dizer às
pessoas que façam tudo o que têm vontade de fazer, quando
elas nem sabem o que querem, para começar! Assim,
também, devemos observar que, enquanto existe uma
característica ligeiramente cética e terra-a-terra na crítica
que Chuang Tzu faz do Confucionismo, a filosofia de
Chuang Tzu é essencialmente religiosa e mística. Ela se
insere no contexto de uma sociedade onde cada aspecto da
vida foi encarado com relação ao sagrado.
Não é muito perigoso confundirmos Chuang Tzu com
Confúcio, nem com Meneio, mas existe, talvez, uma
dificuldade maior em diferenciá-lo, à primeira vista, dos
sofistas e dos hedonistas de sua época. Por exemplo, Yang
Chu assemelha-se a Chuang Tzu em suas louvações à
reclusão, e em seu desprezo pela política. Baseia-se numa
filosofia da evasão, francamente egoística; baseia-se no
princípio de que, quanto maior e mais valiosa for a árvore,
mais provável será a sua queda, vítima do furacão, ou do
machado do lenhador.
Evitar as responsabilidades políticas foi, por conseguinte,
essencial à idéia de Yang, de uma felicidade pessoal, e a tal
ponto ele levou essa idéia, que Meneio dele afirmou:
«Embora pudesse ter-se aproveitado o máximo do mundo ao
puxar um único fio de cabelo, ele não seria capaz de fazê-
lo». Entretanto, mesmo no hedonismo de Yang Chu,
podemos encontrar elementos que nos lembrem a nossa
atual preocupação para com a pessoa: por exemplo, a idéia
de que a vida e a integridade da pessoa valem muito mais do
que qualquer objeto ou qualquer função a que a pessoa seja
chamada a desempenhar, correndo o risco de uma alienação.
Mas um personalismo que nada tem a oferecer senão uma
fuga não será, de modo algum, um personalismo, pois
destrói as relações sem as quais a pessoa não pode, na ver-
dade, desenvolver-se. Mesmo porque a teoria de que
podemos seriamente cultivar a nossa própria liberdade
pessoal, livrando-nos apenas de inibições e de obrigações,
para vivermos dentro de uma espontaneidade voltada para
dentro de nós mesmos, resulta numa completa destruição do
verdadeiro ego e de sua capacidade de libertação.
Não devemos confundir personalismo e individualismo.
Personalismo dá prioridade à pessoa, e não ao eu individual.
Isso significa respeitar o valor singular e inalienável da outra
pessoa, bem como o seu próprio, pois o respeito centrado
apenas num ego individual de si mesmo, com a exclusão de
outros, é fraudulento.
A filosofia clássica Ju, de Confúcio, e de seus seguidores,
pode ser chamada de um personalismo tradicional,
construído sobre as relações e obrigações sociais básicas,
essenciais a uma vida humanista, e que, quando levada a
efeito como devem ser, desenvolvem as potencialidades
humanas de cada pessoa em suas relações com as outras. Ao
preencher os mandamentos da natureza manifesta pela
tradição, que são, essencialmente, os do amor, o homem
desenvolve o seu próprio potencial para o amor, para a
compreensão, para a reverência e a sabedoria. Ele torna-se
um «Homem Superior», ou, um «Homem de Mente
Enobrecida», em harmonia total com o céu, com a terra,
com seu superior, com seus pais e filhos, e com os seus
semelhantes, em virtude de sua obediência ao Tao.
O caráter do «Homem Superior», ou, do «Homem de Mente
Enobrecida», segundo a filosofia Ju, está apoiado em torno
de um «mandala» com quatro virtudes básicas. A primeira
delas é o amor feito de compaixão e de dedicação, repleto de
uma profunda empatia e sinceridade, que permite ao
indivíduo identificar-se com os problemas e com as alegrias
alheias, como se fossem as suas próprias. Esta compaixão
tem o nome de Jen, e traduz-se, algumas vezes por «cordura
humana». A segunda virtude básica é aquele senso de justiça,
de responsabilidade, de dever, de obrigação para com os
outros, que se chama Yi. Devemos observar que a filosofia
Ju insiste no fato de que, tanto o Jen como o Yi, são
totalmente desinteressados. O que caracteriza o «Homem de
Mente Enobrecida» é que ele não faz as coisas simplesmente
porque são agradáveis ou lucrativas para si, mas porque elas
brotam de um incondicional imperativo moral. São coisas
que ele percebe serem certas e boas em si mesmas. Daí,
então, todo aquele que é guiado por um motivo de lucro,
mesmo que seja de lucro para a sociedade a que pertence,
não será capaz de viver uma vida genuinamente moral.
Mesmo quando os seus atos não entram em conflito com a
lei moral tornam-se amorais, porque são motivados pelo
desejo de lucro, e não pelo amor do bem.
As outras duas virtudes básicas do Ju são necessárias a fim de
completar este quadro de integridade e de humanismo. Li é
algo mais do que uma correção exterior e ritualista: é a
habilidade de empregar as formas ritualistas, a fim de dar
uma expressão integral exteriorizada ao amor e à obrigação
que nos une aos outros seres. Li implica em agir com ve-
neração e amor, não apenas para com os pais, o soberano, o
povo, mas também para com o «Céu-e-a-terra». É uma
contemplação litúrgica da estrutura religiosa e metafísica da
pessoa, da família, da sociedade, e do próprio cosmos. Os
antigos liturgistas chineses «observaram os movimentos sob
o céu, dirigindo a sua atenção às interpretações que ocorrem
nestes movimentos, com o fim de se efetuarem os rituais
perfeitos». -
O eu individual deve perder-se na «disposição ritualista» da
qual emergimos como o «eu litúrgico», superior, animados
pela compaixão e pelo respeito que tradicionalmente
conceberam as respostas mais profundas de uma família e de
um povo, em presença do «Céu», Tien. Aprendemos pelo Li
a tomar o nosso lugar gratuitamente no Cosmos e na
história. Por fim, há a «sabedoria» Chih, que abarca todas as
outras virtudes numa compreensão amadurecida e religiosa,
que as orienta à sua realização autêntica. Esta perfeita
compreensão da «via celestial», finalmente, faz com que um
homem maduro e de longa experiência siga todos os desejos
interiores de seu coração, sem desobedecer ao Céu. É a frase
de S. Agostinho: «Ama, e faze o que quiseres!» Mas
Confúcio pregava não haver atingido este ponto antes dos
setenta anos. De qualquer maneira, o homem que
atingiu o Chih, ou sabedoria, aprendeu uma obediência
espontânea, interior, ao Céu, e não se governa mais por
regras exteriores. Mas uma árdua e longa disciplina de regras
exteriores torna-se, antes de mais nada, necessária.
Estes ideais sadios e humanos, admiráveis em si mesmos,
foram fortalecidos socialmente por uma estrutura de
deveres, de ritos, e de observancias, que nos pareceriam
extremamente complexos e artificiais. E, quando vemos
Chuang Tzu ridicularizando a prática confu-ciana do Li (por
exemplo, nos ritos de exéquias), não devemos interpretá-lo à
luz dos nossos próprios costumes, extremamente casuais,
vazios de sentimentos simbólicos, e insensíveis à influência
de cerimoniais.
Devemos lembrar que vivemos numa sociedade quase
inimaginàvelmente diferente do Reino Médio, no ano 300
a.C. Talvez possamos encontrar analogia da nossa maneira
de viver, na Roma Imperial, se não em Cartago, em Nínive,
ou na Babilônia. Embora a China do Quarto Século não
deixasse de possuir as suas barbaridades, era, talvez, mais
refinada, mais complexa e mais humanista, do que estas ci-
dades que o Apocalipse de S. João descreveu como sendo
típicas da brutalidade mundana, da ambição e da força. O
clima do pensamento chinês viu-se certamente atingido
pelo fato de o ideal Ju ter sido tomado a sério, e, de algum
modo, alicerçado pela educação e pela liturgia, à estrutura da
sociedade chinesa. (Não devemos, contudo, imaginar,
anacrónicamente, que, na época em que Chuang Tzu viveu,
a classe governante chinesa fosse educada sistematicamente
em massa, segundo princípios confucia-nos, como se
verificou posteriormente).
Se Chuang Tzu reagiu contra a doutrina Ju, não foi em nome
de algo inferior — a espontaneidade animal do indivíduo
que não deseja aborrecer-se com tantos deveres cansativos
— mas em nome de algo bem mais elevado. Este é o fato
mais importante a lembrar, quando nós, ocidentais,
confrontamos o aparente anti-nomismo de Chuang Tzu ou
dos Mestres do Zen.
Chuang Tzu não exigia menos do que Jen e Yi, e sim, mais.
A sua maior crítica a Ju era a de que esta não podia ir muito
longe. Que produziu autoridades bem comportadas e
virtuosas, realmente homens de cultura. Contudo, limitou-
os e aprisionou-os dentro de normas exteriores fixas, e,
conseqüentemente, impossibilitou-os de agirem e de
criarem livremente, como resposta às sempre novas exigên-
cias de situação imprevistas.
A filosofia Ju agradou também ao Tao, como o fez Chuang
Tzu. Na verdade, toda a filosofia e toda a cultura chinesas
tendem a ser «tauístas», num sentido mais amplo, pois a
idéia do Tao é, de uma ou de outra maneira, central ao
pensamento chinês tradicional. Confúcio falava do «meu
Tao». Ele podia exigir que o seu discípulo «se dedicasse
inteiramente ao Tao». Declarava que, «se um homem escu-
tasse o Tao pela manhã e morresse à noite, a sua vida não
havia sido em vão». Podia acrescentar que, se um homem
atinge a idade de 40 ou 50 anos, sem jamais ter «escutado o
Tao», «nada há que o torne digno de respeito». Ainda assim,
Chuang Tzu acreditava que o Tao que Confúcio tanto amava
não era o «grande Tao», que é invisível e incompreensível.
Era um reflexo menor do Tao, como se manifesta na vida
humana. Era a sabedoria tradicional ensinada pelos antigos, o
guia para a vida prática, o caminho para a virtude.
No primeiro capítulo do Tao Teh Ching, Lao Tzu distinguia
entre o Tao Eterno, «que não pode ser identificado», que é a
fonte não-identificável e incognoscível de todo o ser, e o
Tao «identificável», que é «a Mãe de todas as coisas».
Confúcio deve ter tido acesso aos aspectos manifestos do
Tao, «identificáveis», mas a base de toda a crítica de Chuang
Tzu a respeito da filosofia de Ju é a de que ela nunca se
aproxima do Tao «que não pode ser idenficado» e, na
verdade, nem o toma em consideração. Até nas obras
relativamente tardias, como a Doutrina do Meio, que são
influenciadas pelo Taoísmo, Confúcio recusava-se a se
preocupar com um Tao mais elevado do que o do homem,
exatamente porque «não era identificável», e estava além do
alcance do discurso da razão. Chuang Tzu afirmava que
somente quando estivéssemos em contacto com o Tao
misterioso, que estava além de todas as coisas existentes, que
não podem ser transmitidas, quer por palavras, quer pelo
silêncio, acessível apenas no estado que não é, nem o da
palavra, nem o do silêncio (XXV. II), só então poderíamos
aprender a viver. Viver meramente segundo «o Tao do
homem» era vaguear. O Tao da filosofia Ju é, segundo as
palavras de Confúcio, «a ligação dentro de si dos desejos do
ego e dos desejos de outrem». Este, portanto, pode ser
chamado, o «Tao ético», ou o «Tao do homem», a
manifestação, em ato, de um princípio de amor e de justiça.
Ele se identifica com a Regra de Ouro — tratar os outros
como gostaríamos que nos tratassem. Mas não nos referimos
ao Tao do Céu. Na verdade, à medida que o Confucionismo
se desenvolvia, continuou a dividir e a subdividir a idéia do
Tao, até este tornar-se apenas um termo indicativo de um
princípio universal abstrato no reino da ética. Desse modo,
ouvimos falar no «tao da paternidade», no «tao da filiação»,
no «tao das esposas», no «tao ministerial». Todavia, quando o
pensamento confuciano veio a ser profundamente
influenciado pelo Taoísmo, todos estes vários taos humanos
podiam ser (como, na verdade o foram) dedos apontando
para o Tao invisível e divino. Esta afirmação se torna clara,
por exemplo, no Tao da Pintura: «Durante todo o decorrer
da pintura chinesa, o objetivo comum tem sido o de
reafirmar o tao tradicional (humano) e transmitir idéias,
princípios e métodos que foram demonstrados e se
desenvolveram pelos mestres de cada período, como sendo
meios de exprimir a harmonia do Tao». Chuang Tzu
observou friamente que a busca do Tao ético se tornava
ilusória, se procurássemos para os outros o que era bom para
nós mesmos, sem antes realmente saber o que seria bom
para nós.
Ele levanta essa questão do bem na meditação que eu
chamei de «Perfeita Alegria». Antes de tudo, nega que a
felicidade possa ser encontrada pelo hedonismo ou pelo
utilitarismo (o «motivo de lucro» de Mo Ti). A vida de
riquezas, de ambição, de prazeres, é, de fato, uma intolerável
servidão, na qual "vivemos para o que está sempre fora do
nosso alcance», ansiando «pela sobrevivencia futura», e
«incapazes de viver o presente»? O filósofo Ju não teria
nenhuma dificuldade em concordar que o motivo do lucro
ou do prazer é indigno de um homem autêntico. Mas, por
sua vez, Chuang Tzu volta-se imediatamente contra Ju, e
critica o homem público heróico e pronto a se sacrificar, o
«Homem Superior», virtuoso, formado na escola de
Confúcio. A sua análise das ambigüidades de tal vida pode,
talvez, parecer-nos sutil, a nós que vivemos num clima
moral tão diferente. A preocupação de Chuang Tzu com o
problema de que a própria bondade do bom e a nobreza do
grande podem conter a semente escondida da ruína
assemelha-se àquela preocupação que sentiram Sófocles e
Ésquilo, um pouco antes, no Ocidente. Chuang Tzu surge,
aqui, com uma solução diferente, onde há menos do que um
mistério religioso. Colocando isto em termos mais simples, o
herói da virtude e do dever, em última análise, encontra-se
nas mesmas ambigüidades que o hedonista ou o utilitarista.
Por quê? É que ele procura atingir o «bem» como objetivo.
Envolve-se numa campanha deliberada e autoconsciente, a
fim de «cumprir com o seu dever», acreditando que isto é o
certo, e, por conseguinte, o que produz a felicidade. Ele vê
«a felicidade» e o «bem» como «algo a ser atingido» e, dessa
maneira, coloca-os fora de si mesmo, no mundo dos objetos.
Assim procedendo, deixa-se envolver por uma divisão da
qual não há escapatória: de um lado, o presente, no qual ele
ainda não está de posse do que procura e, de outro, o futuro,
no qual ele acredita que terá o que desejar: entre o erro e o
mal, a ausência do que procura, e o bem, que espera se torne
atuante por seus esforços, a fim de eliminar os males; entre a
sua própria noção do que é certo e errado, e a idéia anti-
tética do que é certo e errado, mantida por alguma outra
escola filosófica. E assim sucessivamente.
Chuang Tzu não se dispõe a enfrentar esta divisão,
colocando-se «em uma posição determinada». Pelo
contrário, acha que a dificuldade não está apenas no meio
que o filósofo Ju escolhe a fim de atingir o seu fim, mas nos
próprios fins em si mesmos. Acredita que todo o conceito
de «felicidade», e de «infelicidade», é ambíguo desde o
início, pois se coloca no mundo dos objetos. Isto não é
menos verdadeiro em se tratando de conceitos mais sutis,
tais como, a virtude, a justiça, e assim por diante. De fato,
isto é bem verdadeiro quando se trata do «bem e do mal», ou
do «certo e do errado». Desde o momento que são tratados
como «objetos a serem atingidos», estes valores conduzem à
desilusão e à alienação. Portanto, Chuang Tzu se identifica
com o paradoxo de Lao Tzu: «Quando todo o mundo
reconhece o bem, enquanto bem, ele se torna o mal», por-
que se torna algo que não se tem, e que temos sempre de
procurar, até que, na verdade, ele se torna inacessível.
Quanto mais procurarmos o «bem» fora de nós mesmos,
como algo a ser adquirido, tanto mais somos forçados à
necessidade de discutir, de estudar, de entender, de analisar
a natureza do bem. Tanto mais, também, passamos a ser
envolvidos em abstrações e na confusão de opiniões
divergentes. Quanto mais o «bem» for analisado
objetivamente, quanto mais for ele tratado como algo a ser
atingido por técnicas virtuosas especiais, tanto menos real se
torna. À medida que se vai tornando menos real, regride
mais e mais no caminho da abstração, do porvir, da
inacessibilidade. Portanto, tanto mais nos concentramos no
meio a ser empregado para alcançá-lo. E, à medida que o fim
vai-se tornando mais remoto e mais dificultoso, torna-se
mais rebuscado e complexo, até que, finalmente, o simples
estudo do meio se torna tão problemático que todos os
esforços devem concentrar-se nesse meio e, então, nos
esquecemos do fim. Daí, pois, a nobreza do erudito Ju torna-
se, na realidade, uma devoção à inutilidade sistemática de
praticar meios que não conduzem a nada. Isto nada mais é,
de fato, do que o desespero organizado: «o bem» pregado e
teorizado pelo moralista torna-se, assim, um mal, e isso
levado a um extremo cada vez maior, porque a busca
desenfreada do bem desvia-o do bem verdadeiro, que já pos-
suímos dentro de nós mesmos, e que, agora, abandonamos
ou ignoramos.
A diretriz do Tao é começarmos com o bem simples, de que
fomos dotados, pelo próprio fato da nossa existência. Em vez
de cultivarmos este bem auto-conscientemente (que
desaparece quando para ele olhamos e torna-se intocável,
quando tentamos pegá-lo), vamos progredindo calmamente
na humildade de uma vida simples, corriqueira, sendo que
esta via é, de um certo modo, análoga (pelo menos psi-
cologicamente) à «vida de fé» cristã. E' mais uma questão de
acreditar no bem, do que de contemplá-lo como o fruto do
nosso esforço pessoal.
O segredo da vida proposta por Chuang Tzu é, portanto, não
a acumulação da virtude e do mérito, ensinada por Ju, mas o
wu wei, o não-fazer ou a inação, que não almeja resultados,
e não se preocupa com planos conscientemente
estabelecidos, nem com tentativas deliberadamente
organizadas: «A minha maior felicidade consiste
precisamente em não fazer nada que seja calculado a fim de
obter a felicidade... A perfeita alegria é não se estar
alegre... se você me perguntar «o que deve ser feito», e «o
que não deve ser feito», na terra, para produzir a felicidade,
eu responderia que estas perguntas não possuem uma
resposta (fixa e predeterminada) que se adapte a cada caso.
Se estamos em harmonia com o Tao — o Tao cósmico, o
«Grande Tao» — a resposta tornar-se-á clara, quando o tem-
po começar a atuar, pois, aí, não agiremos de acordo com
uma maneira de agir humana e autoconsciente, mas segundo
a maneira espontânea e divina do wu wei, que é a maneira
de agir do próprio Tao, e, portanto, a fonte de todo o bem.
A outra via, aquela da busca consciente, mesmo que possa
ser uma via virtuosa, é fundamentalmente, de auto-
engrandecimento, e, em conseqüência, destinada a entrar
era conflito com o Tao. Daí ser ela auto-destruidora, pois «o
que é contra o Tao cessará de existir».3 Isto explica por que o
Tao Teh Ching, ao criticar a filosofia Ju, afirma que a virtude
mais elevada é não-virtuosa e, «por conseguinte, possui
virtude». Mas «a virtude inferior nunca se liberta da
virtuosidade, e, portanto, não possui virtude». Chuang Tzu
não se volta contra a virtude (por que o faria?), mas observa
que a mera virtuosidade é vazia de significado e sem efeito
mais profundo, quer na vida do indivíduo, quer na da
sociedade.
Desde que tudo isto que foi escrito esclareça as dúvidas,
observamos que as frases irônicas de Chuang Tzu a respeito
da «correção», e das «cerimônias», não são enunciadas em
nome de um hedonismo e de um antinomismo sem lei, mas
em nome daquela virtude genuína, que está «além da
virtuosidade».
Esclarecido isto, podemos verificar uma certa analogia entre
Chuang Tzu e S. Paulo. Essa analogia não deve,
evidentemente, ser levada muito longe. Chuang Tzu carece
do misticismo profundamente teológico de S. Paulo. Mas os
seus ensinamentos sobre a liberdade espiritual do wu wei e a
relação da virtude ao Tao imanente é análoga ao
ensinamento de S. Paulo sobre a fé e a graça, em contraste
com «as obras da Antiga Lei». A relação do livro de Chuang
Tzu para com os Analetos, de Confúcio, não é diferente da
relação das Epístolas aos Gálatas e aos Romanos para com a
Torah.
Para Chuang Tzu, o homem realmente grande não é,
portanto, o homem que, por uma vida de estudos e de
práticas, acumulou um grande lastro de virtudes e de
méritos, mas o homem no qual «o Tao age sem impedimen-
to», o «homem do Tao». Vários textos neste livro nos
descrevem «o homem do Tao». Outros nos afirmam o que
ele não é. Um dos mais instrutivos, nesse assunto, é a estória
longa e deliciosa do discípulo perfeccionista, cheio de
angústias, de Keng Sang Chu, que é enviado a Lao Tzu para
aprender «os elementos». Dizem-lhe que «se ele persistir em
tentar atingir o que nunca se atinge... em raciocinar a
respeito do que não pode ser compreendido, será
destruído». Ao contrário, se apenas «souber quando parar»,
contentar-se em esperar, em escutar, e desistir de suas
próprias tentativas inúteis, «fará com que o gelo se derreta».
Então, começará a elevar-se sem se aperceber e sem
nenhum estímulo para o auto-desenvolvimento.
Chuang Tzu, cercado de «homens supostamente práticos» e
de ambiciosos, refletiu que estes «operadores» conheciam o
valor do «útil», mas não o valor maior, o do «inútil». Como
afirmou John Wu:
«Para Chuang Tzu, o mundo devia se parecer com uma
terrível tragédia escrita por um grande comediógrafo. Ele via
políticos hábeis caírem em armadilhas que haviam armado
para os outros. Via estados predatas engolindo estados
inferiores, só para serem engolidos, por sua vez, por estados
mais fortes. Dessa maneira, a utilidade sempre tão cheia de
jactancias de talentos úteis, provava ser, não apenas inútil,
mas auto-destruidora».
O «homem do Tao» preferirá a obscuridade e a solidão. Ele
não procurará cargos públicos, mesmo se reconhecer que o
Tao que, «interiormente forma o sábio, exteriormente forma
o Rei». Na «Tartaruga», Chuang Tzu coloca uma barreira
breve e definida àqueles que vêm importuná-lo na sua pesca,
à margem do rio, a fim de conseguir-lhes um emprego na
capital. Ele até responde ríspidamente, quando seu amigo
Hui Tzu suspeita que ele esteja tramando sobrepujá-lo em
seu emprego público (cf. «A Coruja e a Fênix»).
Por outro lado, Chuang Tzu não é apenas um simples
recluso profissional. O «homem do Tao» não comete o erro
de abandonar a virtuosidade autoconsciente a fim de
mergulhar num recolhimento cada vez mais autoconsciente
e contemplativo. Não podemos chamar Chuang Tzu de
«contemplativo» no sentido daquele que adota um programa
sistemático de auto-purificação espiritual a fim de atingir
certas experiências interiores definidas, ou mesmo uni-
camente para «cultivar a vida interior». Chuang Tzu
condenaria isso, tanto como condenaria toda «cultuação» de
qualquer coisa num plano «artificial. Toda «auto-cultuação»
deliberada, sistemática e reflexiva, quer seja ativa, quer
contemplativa, personalista ou comprometida politicamente,
isola o indivíduo do contacto, misterioso mas indispensável,
com o Tao, a «Mãe» oculta de toda vida e de toda verdade.
Uma das coisas que produzem a tão profunda frustração do
jovem discípulo de Keng Sang Chu é, exatamente, o fato de
que se fecha numa cela e tenta cultivar qualidades que
considera desejáveis, livrando-se de outras de que não gosta.
Uma vida contemplativa e interior que fizesse com que o
indivíduo se conhecesse mais a si mesmo e que permitisse
tornar-se obcecado pelo seu próprio progresso interior seria,
para Chuang Tzu, uma ilusão não menos importante do que
a da vida ativa do homem «benevolente» que tentasse, por
seus próprios esforços, impor a sua idéia do bem a todos os
que se pudessem opor a essa idéia — e, assim, tornar-se-iam,
a seus olhos, «inimigos do bem». A verdadeira tranqüilidade
procurada pelo «homem do Tao» é Ying ning, a
tranqüilidade na ação da inação ou, em outras palavras, uma
tranqüilidade que transcende a divisão entre a atividade e a
contemplação, ao entrar em união com o inominável e com
o Tao invisível.
Chuang Tzu insiste a todo instante que isto significa o
abandono da «necessidade para vencer» (vide «O Galo de
Briga»). Na «Montanha dos Macacos», ele mostra o perigo da
esperteza e da virtuosidade e repete um dos seus adágios
característicos, que assim poderíamos resumir: «Ninguém
está tão errado como aquele que sabe todas as soluções».
Mestre Chuang, como Lao Tzu, prega uma humildade essen-
cial : não a humildade da virtuosidade e de um auto-
aniquilamento consciente que, em última análise, nunca se
liberta da untuosidade de Uriah Meep, mas, sim, a
humildade básica, e até diríamos «ontológica» ou «cósmica»,
do homem que compreende plenamente o seu próprio nada,
e que se esquece inteiramente de si mesmo, «como se fora
um tronco de árvore seco... como se fora cinzas apagadas».
Poderíamos chamar de «cósmica» a essa humildade, não
apenas porque está enraizada na verdadeira natureza das
coisas, mas também porque se reveste de muita vida e
perspicácia, respondendo com alegria e ilimitada vitalidade a
todos os seres vivos. Manifesta-se por toda a parte por meio
de uma simplicidade franciscana e por uma conaturalidade
com todas as criaturas vivas. Metade dos «personagens» que
desfilam diante de nós para falar o que fala a mente de
Chuang Tzu são animais — pássaros, peixes, sapos, etc. O
Taoísmo de Chuang Tzu se caracteriza pela nostalgia do
clima primordial do paraíso, onde não existia nenhuma
diferenciação, no qual o homem era muito simples,
desligado de si, vivendo em paz consigo mesmo, com o Tao
e com todas as demais criaturas. Mas, para Chuang, este
paraíso não é algo que tenha sido irrevogavelmente perdido
pelo pecado e não possa ser readquirido, exceto pela reden-
ção. É ainda nosso, mas nós não o conhecemos, pois o efeito
da vida em sociedade é complicar e confundir a nossa
existência, fazendo-nos esquecer quem realmente somos,
tornando-nos obcecados com aquilo que não somos, nessa
auto-conscientização que tentamos incrementar e
aperfeiçoar por todos os tipos de métodos e de práticas, em
que se trata realmente de um esquecimento de nossas raízes
verdadeiras no «Tao incognoscível» e da nossa solidariedade
no «bloco não-talhado», no qual ainda não existem
distinções.
O ensinamento paradoxal de Chuang Tzu, de que «você
nunca encontrará a felicidade, a não ser quando cessar de
procurá-la», não deve, contudo, ser interpretado
pessimisticamente. Ele não prega o afastamento de uma
existência intensa, ativa, humana, para a inércia e o
quietismo. Está apenas afirmando que a felicidade pode ser
encontrada, mas apenas pela não-procura e pela inação.
Pode ser encontrada, mas não por meio de um sistema ou de
um programa. Um programa ou um sistema trazem esta
desvantagem: tendem a colocar a felicidade em uma só
espécie de ação e tendem a procurá-la apenas naquela
situação dada. Mas a felicidade e a liberdade que Chuang Tzu
viu no Tao é encontrada em toda parte (pois o Tao está em
toda parte), e quando pudermos aprender a agir com esta
liberdade específica de verificar que toda ação é a «perfeita
alegria, pois é isenta de alegria», só então podemos
realmente ser felizes em qualquer objetivo. Como Fung Yu
Lan sintetiza no seu Spirit of Chinese Philosophy (p. 77), o
sábio «acompanhará tudo e tudo acolherá de boa vontade,
tudo o que estiver em vias de ser construído e de ser
destruído. Daí a razão de não poder ele ser alegre senão na
liberdade, sendo essa sua alegria incondicionada».
O caráter verdadeiro do wu wei não é a mera inatividade,
mas sim a ação perfeita — por se tratar de um ato sem
atividades. Explicando melhor, é a ação, não levada avante
independentemente do Céu e da terra, nem em conflito
com o dinamismo do todo, e, sim, em perfeita harmonia
com o todo. Não é mera passividade, mas ação que parece
ser isenta de esforços e espontânea, pois executada
«corretamente», em perfeito acordo com a nossa natureza e
com a nossa posição na trama dos acontecimentos. É
totalmente livre, porque nela não há nenhuma força ou
violência. Não é «condicionada», nem «limitada» por nossas
próprias necessidades e desejos individuais, nem mesmo por
teorias ou idéias.
É exatamente esse caráter incondicional do um ivsi, que
distingue Chuang Tzu dos demais filósofos que erigiram
sistemas que condicionaram obrigatoriamente as suas
atividades. A teoria abstrata do- «amor universal», pregada
por Mo Ti, foi verificada com muita agudeza por Chuang
Tzu como sendo falsa, por causa da inumanidade de suas
conseqüências. Em tese, Mo Ti afirmava que todos nós,
homens, deveríamos ser amados com igual amor; que o
indivíduo deveria encontrar seu maior bem ao amar o bem
comum de todos, que o amor universal seria recompensado
pela tranqüilidade, paz, boa ordem de todos e felicidade
individual. Mas esse «amor universal» será encontrado após
uma série de pesquisas (como a maioria dos outros projetos
utópicos), exigindo tanto da natureza humana que é
impossível que ele se torne um fato concreto e, realmente,
mesmo que se tornasse, ele aleijaria e deformaria o homem,
causando-lhe a ruína e a da sociedade. Não que o amor não
seja bom nem natural para o homem, mas porque um
sistema erigido sobre um princípio teórico e abstrato do
amor ignora certas realidades fundamentais e misteriosas das
quais não podemos estar conscientes, e o preço que pagamos
por essa nossa ignorância é sinal de que o nosso «amor» é, de
fato, um ódio.
Daí se depreende que a sociedade do «amor universal»,
planejada por Mo Ti, era uma sociedade de quarta classe,
triste e sombria, pois toda a espontaneidade era olhada com
suspeita. Os prazeres humanitários e organizados da vida
amigável, ritualística, musical, etc., de Confúcio, eram todas
banidas por Mo Ti. É importante salientar que, neste caso,
Chuang Tzu defende a «música» e os «ritos», embora em
outras situações ele se ria do amor exagerado a essas coisas.
Afirma ele: «Mo Ti não conseguiria música. nenhuma em
vida, nenhum luto na morte... Embora os homens cantem,
ele condena o canto. Os homens ficarão de luto e ele, ainda
assim, condenará o luto; os homens exprimirão a sua alegria
e, apesar disso, ele a condenará... será que tudo isso está de
acordo com a natureza humana? Na vida diária, o trabalho;
na morte, a mesquinhez: a sua via é a de um coração
empedernido!»
Do trecho acima podemos verificar que a própria ironia de
Chuang Tzu a respeito dos enterros sofisticados deve ser
encarada sob um prisma correto e bem delineado. A
descrição totalmente fictícia e engraçada do «Despertar de
Lao Tzu», dá a Chuang a oportunidade de criticar, não o luto
em si, ou mesmo a compaixão para com nosso mestre, e,
sim, aqueles traços artificiais deformados por um culto do
mestre enquanto Mestre. O «tao do discipulato» é, para
Chuang Tzu, um fio de imaginação, e não pode
absolutamente substituir o «Grande Tao», no qual todas as
relações atingem a sua própria ordem e expressão.
O fato de Chuang Tzu ter sido capaz de tomar partido por
uma questão em um determinado contexto, e outro partido
em outro contexto nos chama a atenção para o fato de que,
na realidade, ele está acima de qualquer disputa partidária.
Embora seja um crítico social, sua crítica nunca é amarga ou
dura. A ironia e a parábola são os seus instrumentos princi-
pais e toda a atmosfera de sua obra é de uma imparcialidade
tolerante, evitando a pregação e reconhecendo a inutilidade
de dogmatizar a respeito de idéias obscuras, que nem os pró-
prios filósofos estavam aptos a entender. Embora não tivesse
seguido os outros homens nas suas loucuras, não os julgava
severamente — sabia que ele próprio possuía as suas, e tinha
o bom-senso de reconhecer o fato e de saboreá-lo. Na
verdade, via que uma das características básicas do sábio é a
de reconhecer-se igual aos outros homens. Ele não se separa
dos outros, nem se coloca acima deles. E, ainda assim, existe
esta diferença: ele difere, «em seu coração», dos outros
homens, pois está centrado no Tao e não em si mesmo. Mas
«não percebe de que maneira é ele diferente». Também
reconhece sua relação para com os outros, sua união a eles,
mas não «compreende» isso. Apenas o vive.
A chave do pensamento de Chuang Tzu é a
complementação dos contrários, e isso só pode ser encarado
quando podemos apreender o «pivô» central do Tao, que
passa formando um quadrado através do «Sim» e do «Não»,
do «Eu» e do «Não-Eu». A vida é um contínuo vir-a-ser.
Todos os seres estão num estado de fluxo. Chuang Tzu teria
afinidades com Heráclito. O que hoje é impossível amanhã
poderá ser, de repente, possível. O que hoje é bom e
agradável poderá, amanhã, tornar-se mau e odioso. O que,
sob um certo ponto de vista, parece certo, quando
observado sob um aspecto diferente, poderá manifestar-se
inteiramente errado.
Que deverá fazer, então, o sábio? Deverá ele permanecer
indiferente e considerar o certo e o errado, o bem e o mal
como se tivessem todos o mesmo valor? Chuang Tzu seria o
primeiro a negar que assim o fosse. Mas, procedendo assim,
negar-se-ia a apossar-se de um ou de outro, e a apegar-se
como a um absoluto. Toda vez que uma visão limitada e
condicionada do «bem» é erigida ao nível de um absoluto,
imediatamente se torna um mal, porque exclui certos
elementos complementares exigidos, caso se trate da um
bem autêntico. Apegar-se a uma visão parcial, a uma opinião
limitada e condicionada, e considerar isso como se fora a
resposta última a todas as perguntas formuladas, é
simplesmente «obscurecer o Tao» e fazer com que o
indivíduo permaneça irremovivelmente no erro.
Aquele que se apoderar do pivô central do Tao será capaz de
observar o «Sim» e o «Não» seguirem o seu curso alternado,
em torno da circunferência. Retém a sua perspectiva e a sua
clareza de julgamento, de modo que sabe que o «Sim» é
«Sim», à luz do «Não», que permanece em oposição a êle.
Compreenderá que a felicidade, quando impelida a
extremos, transforma-se em calamidade. Que a beleza,
quando excessiva, torna-se feia. As nuvens transformam-se
em chuva, e o vapor sobe novamente para formar as
nuvens. Insistir em que as nuvens jamais devessem voltar a
ser chuva é resistir ao dinamismo do Tao.
Essas teorias são empregadas por Chuang Tzu no trabalho do
artista e do artífice, bem como no do professor de filosofia.
No «Gravador de Madeira», vemos que o perfeito artífice
não procede simplesmente segundo certas regras fixas e
modelos externos. Fazer isso está muito certo,
evidentemente, para o artífice medíocre. Mas o trabalho
artístico superior procede de um princípio espiritual oculto,
que descobre, no jejum, no despojamento, no desprezo
pelos prêmios e no abandono de toda esperança de lucro,
exatamente a árvore que está à sua espera para ter essa obra
precisa gravada à sua imagem. Neste caso, o artista trabalha
como que em estado passivo, e é o Tao que está operando
nele e através dele. Este é um tema favorito de Chuang Tzu,
e freqüentemente o encontramos repetido. «A via correta»
de se construírem as coisas está além de uma reflexão
autoconsciente, porque, «quando o sapato se adapta ao pé,
este é desprezado».
No ensino da filosofia, Chuang Tzu não favorece o uso de
sapatos apertados, que façam com que o discípulo fique
inteiramente consciente do fato de que ele tem os dois
pés..., pois os sapatos o incomodam! Por esta mesma razão,
Chuang critica não só os Confucianos, tão presos a métodos
e a sistemas, mas também, os Taoístas, que tentam infundir
o conhecimento do Tao inominável quando ele não pode
ser infundido e quando o ouvinte nem ainda está apto a
receber as mais elementares noções sobre o Tao. A «Sinfonia
para um Pássaro Marítimo» deve ser lida a partir deste
princípio enunciado. Ela não se aplica exclusivamente ao
aniquilamento da espontaneidade por uma insistência
artificial na filosofia Ju, mas também a um zelo errôneo e
mal interpretado na comunicação do Tao. Na verdade, o Tao
não pode ser comunicado. Ainda assim ele se comunica à
sua maneira. Quando chegar o momento preciso, mesmo
aquele que parecer impossibilitado de qualquer instrução
perceberá misteriosamente o Tao.
Enquanto isso, embora ele discordasse firmemente de seu
amigo e cultor da dialética, Hui Tzu, e embora os seus
discípulos (que estavam sem «necessidade de vitória»)
sempre representassem Chuang derrotando Hui nos debates,
Chuang Tzu, na realidade, empregava muitas idéias
metafísicas de Hui Tzu. Achava que, de acordo com o
princípio da complementação, o seu pensamento individual
não se encontrava completo dentro de si mesmo, a não ser
que houvesse nele também a «oposição» de Hui Tzu.
Um dos «princípios» mais famosos de Chuang Tzu é aquele
chamado o do «três pela manhã», da estória dos macacos,
cujo vigia calculava dar-lhes três porções de castanhas pela
manhã e quatro à noite, mas quando os macacos reclamaram
contra tal atitude, ele mudou o seu plano, e deu-lhes, quatro
pela manhã, e três à noite. Qual o significado que esta estória
encerra? Simplesmente que os macacos eram uns tolos, e
que o vigia cinicamente os ludibriou? Não, justamente o
contrário. O novo plano do vigia foi o de ter bastante
discernimento para reconhecer que os macacos tinham
razões irracionais próprias que os levavam a querer quatro
porções de castanhas pela manhã; e não insistiu
teimosamente em seu plano inicial. Não ficou inteiramente
indiferente à celeuma e percebeu que uma diferença
acidental não afetaria a substância de seu plano. Nem perdeu
mais tempo, exigindo que os macacos tentassem ser mais
«razoáveis» na discussão, quando os macacos, antes de mais
nada, não têm a possibilidade de ser razoáveis. Quanto mais
insistirmos firmemente para que as pessoas sejam «razoá-
veis», tanto mais nos tornamos irrazoáveis. Chuang Tzu,
solidamente centrado sobre o Tao, podia ver tudo isso com
uma certa perspectiva. Seus ensinamentos seguem o
princípio do «três pela manhã», e está fortemente assentado
em dois níveis: um, o divino, o do Tao invisível, não-
identificável; e, o outro, ordinário, simples, da existência
cotidiana.
2. Trechos de Chuang Tzu
A ÁRVORE INÚTIL
Hui Tzu disse a Chuang: Tenho uma grande árvore, Que se
chama «mal-cheirosa». Seu tronco tão torto É tão cheio de
nós
Que ninguém pode dele tirar uma só tábua. Os galhos são tão
retorcidos Que você não consegue cortá-los De modo a que
sejam úteis.
Lá está ela à beira da estrada. Carpinteiro nenhum a olhará.
Eis o seu ensinamento — Grande e inútil.
Respondeu-lhe Chuang Tzu:
Já viu o gato do mato
Agachado, espreitando sua presa, —
Pula assim, e assim,
Para cima e para baixo, e por fim
Cai na armadilha.
Mas o iaque, já viu?
Poderoso qual trovão
Mantém-se com sua força.
Grande?
Claro que sim,
Mas não sabe pegar ratos!
Assim, a sua árvore inútil.
Inútil?
Plante-a então no terreno baldio
Sozinha
E caminhe a esmo, em torno dela,
Descanse à sua sombra;
Nenhum machado ou decreto proclamará o seu fim.
Ninguém jamais a abaterá. Inútil?
Que me importa!
O VENDEDOR DE CHAPÉUS E UM MONARCA
HABILIDOSO
Um homem de Sing comerciava
Com chapéus de seda, para cerimônias.
Viajava com uma quantidade de chapéus
Para os selvagens do Sul.
Os selvagens tinham as cabeças raspadas,
Corpos tatuados.
Que lhe podiam interessar
Chapéus de cerimônias,
De seda?
Yao governara sabiamente
Toda a China Trouxera o mundo inteiro
À paz.
Depois, foi visitar
Os quatro Perfeitos
Nas montanhas distantes de Ku Shih.
Quando voltou
Pela fronteira
Para sua própria cidade
Perdeu a visão
E não viu trono nenhum.
O SOPRO DA NATUREZA
Quando a Natureza magnânima suspira,
Ouvimos os ventos Que, silenciosos,
Despertam as vozes dos outros seres,
Soprando neles.
De toda fresta
Soam altas vozes.
Já não ouvistes
O marulhar dos tons?
Lá está a floresta pendente
Na íngreme montanha:
Velhas árvores com buracos e rachaduras,
Como focinhos, goelas e orelhas,
Como orifícios, cálices,
Sulcos na madeira, buracos cheios d'água:
Ouve-se o mugir e o estrondo, assobios,
Gritos de comando, lamentações, zumbidos
Profundos, flautas plangentes.
Um chamado desperta o outro no diálogo.
Ventos suaves cantam timidamente,
E os fortes estrondam sem obstáculos.
E então o vento abranda. As aberturas
Deixam sair o último som.
Já não percebestes como então tudo treme e
Se apaga?
Yu respondeu: Compreendo:
A música terrestre canta por mil frestas.
A música humana é feita de flautas e de instrumentos.
Que proporciona a música celeste?
Mestre Ki respondeu:
Algo está soprando por mil frestas diferentes.
Alguma força está por trás de tudo isso e faz
Com que os sons esmoreçam.
Que força é esta?
A GRANDE SABEDORIA
A grande sabedoria vê tudo num só. A pequena sabedoria
multiplica-se entre as muitas partes.
Quando o corpo adormece, a alma envolve-se no Uno.
Quando o corpo desperta, os sentidos abertos começam a
funcionar.
Ressoam a cada encontro
Com os afazeres vários da vida, as dificuldades do coração;
Os homens estão bloqueados, perplexos, perdidos na dúvida.
Pequenos temores devoram a paz do seu coração.
Grandes temores os tragam totalmente.
Flechas vão de encontro ao alvo: acertam e erram, certo e
errado.
A isto é que os homens chamam discernimento, decisão.
Seus pronunciamentos são tão definitivos
Como os tratados entre imperadores.
Ah, eles alcançam o que desejam!
Mesmo assim, seus argumentos esmorecem mais rápidos e
mais fracos
Que folhas mortas no outono e inverno.
Suas conversas fluem como urina,
Para nunca mais se recomporem.
Ficam, por fim, bloqueados, limitados, e amordaçados,
Obstruídos, como velhos canos.
A mente falha. Nunca mais verá a luz.
O prazer e a raiva
A tristeza e a alegria
Esperança e perdão
Mudança e estabilidade
Fraqueza e firmeza
Impaciência e preguiça:
Todos são sons da mesma flauta,
Todos são cogumelos do mesmo úmido mofo.
Dia e noite seguem-se uns aos outros e vêm
Até nós, sem vermos como eles brotam!
Basta! Basta!
Cedo ou tarde encontramos o «quê»
Do qual «estes» todos crescem!
Se não houvesse o «quê»
Não haveria o «isto».
Se não houvesse o «isto»
Nada haveria com que estas cordas tocassem.
Até aí podemos chegar.
Mas como compreendermos
A causa de tudo isso?
Pode-se supor o Verdadeiro Governante
Por detrás de tudo.
Que tal Força opera
Eu acredito.
Não posso ver sua forma.
Ela age, mas é sem-forma.
O PIVÔ
O Tao se obscurece quando os homens compreendem
apenas um, dentre um par de opostos, ou se concentram
apenas num aspecto parcial do ser. E, depois, a expressão
clara perde-se no mero jogo de palavras, afirmando este
aspecto, e negando todos os outros.
Daí a polêmica entre os Confucianos e os Moístas, cada qual
negando o que o outro afirma, e afirmando o que o outro
nega. Qual a vantagem dessa polêmica, de colocar o «Não»
contra o «Sim», e o «Sim» contra o «Não»? O melhor é
desistir desse esforço inútil e procurar a verdadeira luz!
Nada há que não possa ser contemplado do ponto de vista
do «Não-Eu». E nada há que não possa ser contemplado do
ponto de vista do «Eu». Se começo por olhar qualquer coisa
do ponto de vista do «Não-Eu», não a vejo, realmente,
porque é o «Não-Eu» que vê. Se começo de onde estou, e
vejo-a como eu vejo, pode suceder então que a veja como o
outro a vê. Daí a teoria do reverso, que os opostos
Como quer que isso aconteça, a vida é seguida da morte; a
morte é seguida da vida. O possível torna-se impossível; o
impossível, possível. O certo torna-se errado, e o errado,
certo... O fluxo vital altera as circunstâncias e, assim, as
coisas por si mesmas alteram-se, por sua vez. Mas os
polemistas continuam a afirmar e a negar as mesmas coisas
que sempre afirmaram e negaram, ignorando os novos
aspectos da realidade apresentada pela mudança de
condições.
O sábio, portanto, em vez de tentar provar este ou aquele
ponto pela disputa lógica, vê todas as coisas à luz da intuição
direta. Não se prende aos limites do «Eu», pois o ponto de
vista da intuição direta é tanto o «Eu» como o «Não-Eu». Daí
notar êle que, tanto de um como de outro lado de cada
argumento, há o certo e o errado. Também vê que, no final,
eles se reduzem à mesma coisa, uma vez que estão
relacionados com o pivô do Tao.
Quando o sábio se apodera deste pivô, êle está no centro do
círculo, e lá fica enquanto o «Sim» e o «Não» perseguem-se
um ao outro, em torno da circunferência.
O pivô do Tao passa pelo centro para onde convergem todas
as afirmações e todas as negações. Todo aquele que se
apoderar do pivô, coloca-se no ponto-morto de onde podem
ser vistos todos os movimentos e oposições, em sua correta
interdependência. Por conseguinte, êle vê as possibilidades
ilimitadas, tanto do «Sim», como do «Não». Quando
abandona toda idéia de impor limites ou de tomar partidos,
repousa na intuição direta. Portanto, é como eu dissera
antes: «É melhor desistir das discussões e procurar a
verdadeira luz!»
TRÊS PELA MANHÃ
Toda vez que gastamos nossas mentes, apegando-nos
teimosamente a uma visão parcial das coisas, recusando urna
concordia mais profunda entre éste ou aquele contrário que
o complementa, temos o chamado «três pela manhã».
O que vem a ser esse «três pela manhã»?
Um domador de macacos dirigiu-se a eles e disse-lhes:
«Quanto às suas castanhas, vocês terão três quantidades pela
manhã, e quatro à tarde».
Ouvindo isso, os macacos ficaram com raiva. Então, o
domador lhes disse: «Está bem, neste caso, eu lhes darei
quatro pela manhã e três à tarde». Ouvindo isso, os macacos
ficaram satisfeitos.
As duas sugestões eram equivalentes, pois o número das
castanhas não se alterava. Mas, em uma delas os macacos
ficavam descontentes e, na outra, ficavam satisfeitos. O
domador teve vontade de modificar a sua sugestão pessoal,
de modo a satisfazer às condições objetivas. E nada perdeu
com isso!
O verdadeiro sábio, considerando todos os lados da questão
imparcialmente, vê-os todos à luz do Tao.
A isto chama-se seguir dois cursos de uma só vez.
DESTRINCHANDO UM BOI
O cozinheiro do Príncipe Wen Hui
Estava destrinchando um boi.
Lá se foi uma pata,
Pronto, um quarto dianteiro,
Ele apertou com um dos joelhos,
O boi partiu-se em pedaços.
Com um sussurro,
A machadinha murmurou
Como um vento suave.
Ritmo! Tempo!
Como uma dança sagrada,
Como «a floresta de arbustos».
Como antigas harmonias!
«Bom trabalho» ! exclamou o Príncipe,
«Seu método é sem falhas!»
«Método?», disse-lhe o cozinheiro
Afastando a sua machadinha,
«O que eu sigo é o Tao,
Acima de todos os métodos!
Quando primeiro comecei
A destrinchar bois
Via diante de mim
O boi inteiro
Tudo num único bloco.
«Depois de três anos
Nunca mais vi este bloco
Via as suas distinções.
«Mas, agora, nada vejo - Com os olhos.
Todo o meu ser Apreende.
Meus sentidos são preguiçosos.
O espírito Livre para operar sem planos
Segue o seu próprio instinto
Guiado pela linha natural,
Pela secreta abertura, pelo espaço oculto,
Minha machadinha descobre seu caminho.
Não corto nenhuma articulação, não esfacelo nenhum osso.
«Todo bom cozinheiro precisa de um novo facão, uma vez
por ano — ele corta. Todo cozinheiro medíocre precisa de
um novo cada mês — ele estraçalha!
«Eu uso a mesma machadinha
Há dezenove anos.
Cortou mil bois.
Sua lâmina é tão fina
Como se fosse afiada há pouco.
«Não há espaços nas articulações;
A lâmina é fina e afiada:
Quando sua espessura encontra
Aquele espaço
Lá você encontrará todo o espaço
De que precisava!
Ela corta como uma brisa!
Por isso tenho esta machadinha há 19 anos
Como se fora afiada há pouco!
«Realmente, há, às vezes,
Duras articulações.
Vejo-as aparecendo
Vou devagar, olho de perto,
Seguro a machadinha atrás, quase que não movo a lâmina,
E, vapt! a parte cai
Como um pedaço de terra.
«Então retiro a lâmina,
Fico de pé, imóvel,
E deixo que a alegria do trabalho
Penetre.
Limpo a lâmina
E ponho-a de lado».
Disse o Príncipe Wan Hui:
«É isso mesmo!
Meu cozinheiro ensinou-me
Como devo viver
A minha própria vida!»
O PERNETA E O FAISÃO DO PÂNTANO
O Rei Wen Hsien viu um secretário aleijado
Cujo pé esquerdo havia sido cortado —
Uma falha na trama política!
«Que tipo de homem», disse-lhe, «é esta figura de um pé só?
Como ficou assim?
Diremos que o causador disto
Foi o Homem, ou o céu?»
«O céu», respondeu.
«Isto vem do céu, não do homem. Quando o céu deu a vida
a este homem,
Quis que ele sobressaísse aos outros
E enviou-o à política
Para tornar-se famoso.
Veja! Com um pé só!
Este homem é diferente!»
O pequeno faisão do pântano
Tem de pular dez vezes num pé só,
Para comer razoavelmente.
Deve correr cem passos
Antes de beber um pouco de água.
Ainda assim não pede para
Ficar num galinheiro
Embora tivesse tudo
Diante de seus olhos.
Ele preferiria correr
E procurar o que comer
Fora da prisão.
O JEJUM DO CORAÇÃO
Yen Hui, o discípulo favorito de Confúcio, veio despedir-se
de seu Mestre.
— «Aonde você vai?», perguntou Confúcio.
— «Vou para Wei».
— «Para quê?»
— «Ouvi falar que o Príncipe de Wei é uma pessoa
luxuriosa, com sangue quente nas veias e muito autoritário.
Não dá a menor importância a seu povo e recusa-se a ver
qualquer falha em si mesmo. Não dá a menor atenção ao fato
de que os seus súditos estão morrendo, a torto e a direito.
Cadáveres jazem por todo o país, como feno no campo. O
povo está desesperado. Mas ouvi o senhor dizer, Mestre, que
devemos abandonar o estado que está bem governado, e ir
para o que está em anarquia. No consultório do médico há
muitos doentes. Quero aproveitar esta oportunidade para pôr
em prática o que aprendi com o senhor, e ver se posso
melhorar as condições de lá.
— «Quem dera que pudesse», disse-lhe Confúcio, «você não
imagina o que está fazendo. Você trará a ruína à sua própria
pessoa. O Tao não necessita de anseios, e você apenas des-
perdiçará as suas energias em seus esforços malbaratados.
Desperdiçando energias, você ficará confuso e ansioso. Com
isto, você não será mais capaz de ajudar-se a si mesmo. Os
sábios antigos procuravam o Tao, primeiro dentro de si
mesmos, depois olhavam para ver se existia algo nos outros
que correspondesse ao Tao que eles concebiam. Mas, se
você não possuir o Tao dentro de si, de que valerá gastar o
seu tempo em vãos esforços a fim de proporcionar aos
políticos corruptos uma plataforma correta?... Contudo,
acredito que você deva ter uma certa base para esperar obter
sucesso. Como acha que poderá levar avante o seu plano?»
Yen Hui respondeu: «Tenciono apresentar-me como um
homem humilde, desinteressado, que procura apenas fazer
coisas certas, e nada mais: uma maneira inteiramente
simples e honesta. Será que com isso ganharei a confiança
do senhor?»
— «Certamente que não», respondeu-lhe Confúcio. «Este
homem está convencido de que só ele é que tem razão.
Pode pretender, exteriormente, interessar-se por um plano
objetivo de justiça, mas não se engane com sua aparência
exterior. Ele não está habituado a ter nenhum adversário. O
seu ponto de vista é o de assegurar-se de que está certo,
esmagando as outras pessoas. Se ele faz isso com os
medíocres, certamente o fará com um homem que se lhe
apresenta como uma ameaça de ser alguém de altas
qualidades. Ele se apegará teimosamente ao seu modo de
pensar. Pode pretender estar interessado em sua conversa a
respeito do que seja objetivamente certo, mas, por dentro,
não lhe estará dando ouvidos, e nenhuma alteração haverá.
E, com isso, você não estará realizando nada.
Aí, disse-lhe Yen Hui: «Muito bem. Em vez, então, de ir-me
diretamente em oposição a ele, manterei os meus próprios
modos de pensar, mas, exteriormente, farei como se fosse
ceder. Apelarei para a autoridade da tradição e para os
exemplos do passado. Todo aquele que não for
comprometido interiormente é um filho do céu, tanto
quanto qualquer governante. Não confiarei em nenhum
ensinamento meu, e, por conseguinte, não me preocuparei
se tenho ou não razão. Serei também reconhecido como
muito desinteressado e sincero. Todos irão apreciar a minha
candura e, assim, serei um instrumento do céu no seu meio.
«Desta maneira, submetendo-me à obediência ao Príncipe,
como fazem os outros homens, curvando-me, ajoelhando-
me, prostrando-me como faria um criado, serei aceito, sem
nenhuma queixa. Depois disso, outros confiarão em mim e,
pouco a pouco, me utilizarão, vendo que meu desejo é
apenas o de me tornar útil e trabalhar para o bem-estar de
todos. Assim, servirei como um instrumento dos homens.
«Enquanto isso, tudo o que tiver de dizer será expresso de
acordo com a antiga tradição. Estarei trabalhando com a
tradição sagrada dos antigos sábios. Embora o que eu tenha a
dizer seja objetivamente uma condenação da conduta do
Príncipe, não serei eu, e sim a própria tradição que estará
falando por mim. Desta maneira, serei extremamente
honesto e não ofenderei a ninguém. Desse modo, também,
serei um instrumento da tradição. O senhor não acha que
este meu modo de encarar a questão é que está certo?»
— «Evidentemente que não», disse-lhe Confúcio. «Você
tem vários planos diferentes de ação, quando você ainda
nem conhece o Príncipe, nem observou o seu caráter! Na
melhor das hipóteses, você poderá fugir e salvar a sua pele,
mas ainda assim não estará mudando nada do que
encontrou. Ele poderá, superficialmente, conformar-se com
as suas palavras, mas não haverá nenhuma mudança radical
em seu coração».
Disse-lhe então Yen Hui: «Bem, isto é a minha melhor
colaboração à questão. Gostaria que me dissesse, Mestre, o
que o senhor me aconselharia».
— «Você tem de jejuar!» disse-lhe Confúcio. «Sabe o que
quero dizer com essa palavra, jejuar? Não é fácil. Mas os
caminhos fáceis não vêm de Deus».
«Ah», disse Yen Hui, «eu já me acostumei a jejuar! Em casa,
éramos pobres. Passávamos meses sem vinho nem carne.
Isso é que é jejum, não?»
«Diga-me», retrucou-lhe Yen Hui, «o que se entende por
jejum do coração?»
Respondeu-lhe Confúcio: «O objetivo do jejum é a unidade
interior. Isto significa ouvir, mas não com os ouvidos; ouvir,
mas não com o entendimento; ouvir com o espírito, com
todo o seu ser. Ouvir apenas com os seus ouvidos é uma
coisa. Ouvir com o entendimento é outra. Mas ouvir com o
espírito não se limita a qualquer faculdade, aos ouvidos ou à
mente. Daí exigir o esvaziamento de todas as faculdades. E
quando as faculdades ficam vazias, então todo o ser escuta.
Há então uma posse direta do que está ali, diante de você,
que nunca poderá ser ouvido com os ouvidos, nem com-
preendido com a mente. O jejum do coração esvazia as
faculdades, liberta-as dos liames e das preocupações. O jejum
do coração é a origem da unidade e da liberdade».
«Já percebi», disse-lhe Yen Hui. «O que me impedia de
perceber era a minha própria auto-preocupação. Se eu
começar este jejum do coração, a auto-preocupação
desaparecerá. Então, ficarei livre das limitações e das
preocupações! Não é isso o que o senhor quer dizer?»
«Sim», disse-lhe Confúcio, «é isso mesmo! Se conseguir tal
objetivo, você será capaz de ir ao mundo dos homens sem
os perturbar. Não entrará em conflito com a imagem que
eles fazem de si mesmos. Se eles o estiverem escutando,
cante-lhes uma canção. Se não, fique em silêncio. Não tente
arrombar-lhes a porta. Não tente novos medicamentos
neles. Apenas coloque-se entre eles, porque nada há a fazer
senão ser um dentre eles. Aí, então, você poderá obter
sucesso!
«É fácil permanecer quieto, sem deixar vestígios; o difícil é
caminhar sem tocar no chão. Se seguir os métodos
humanos, você poderá enfrentar a decepção. No caminho
do Tao, nenhuma decepção é possível.
«Você sabe que podemos voar com asas: ainda não aprendeu
a voar sem elas. Já se familiarizou com a sabedoria dos que
sabem, mas ainda não se familiarizou com a sabedoria dos
que não sabem.
«Olhe esta janela: nada mais é do que uma abertura na
parede, mas, por causa dela, todo o quarto se encheu de luz.
Assim, quando as faculdades se esvaziam, o coração está
cheio de luz. Cheio de luz, ele torna-se uma influência por
intermédio da qual os outros são secretamente
transformados». ^
OS TRÊS AMIGOS
Havia três amigos
Discutindo sobre a vida.
Disse um deles:
«Poderão os homens viver juntos
E nada saber sobre a vida?
Trabalhar juntos
E nada produzir?
Podem voar pelo espaço
E se esquecer de que existe
O mundo sem fim?»
Os três amigos entreolharam-se,
E começaram a rir.
Não sabiam responder.
Assim, ficaram mais amigos do que antes.
Depois, um dos amigos morreu.
Confúcio
Enviou um discípulo para ajudar os dois outros
A cantar suas exéquias...
O discípulo observou que um amigo Compusera uma
canção. Enquanto o outro tocava o alaúde, Cantaram:
«Ei, Sung Hu!
Aonde vai você? Ei, Sung Mu!
Aonde vai?
Você foi
Aonde você já estava.
E aqui estamos —
Que diabo! Aqui estamos!»
Em seguida, o discípulo de Confúcio lançou-se contra eles e
exclamou: «Posso saber onde vocês encontraram isto nas
rubricas das exéquias, Esta algazarra frívola em presença do
que partiu ?»
Os dois amigos entreolharam-se e riram: «Pobre criatura!»,
disseram, «não conhece a nova liturgia!»
O DESPERTAR DE LAO TZU
Lao Tan estava morto
Chin Shih esperava o despertar.
Ele deu três gritos
E foi para casa.
Um dos discípulos disse:
Você não era amigo do Mestre?
«Certamente», disse ele.
«Não é suficiente para você
Prantear melhor do que o fêz?»
«No princípio», disse Chin Shih, «pensei Que êle fosse o
maior dos homens. Mas não mais! Quando vim pranteá-lo
Encontrei velhos lamentando-o como a um filho,
Jovens soluçando como se fosse sua mãe. Como ele uniu-os
a si tão firmemente, Se não por palavras que nunca deveria
dizer Nem por lágrimas que nunca deveria chorar?
«Enfraqueceu seu ser autêntico, Muniu-se de carga sobre
carga
De emoção, aumentou A enorme prestação de contas,
Esqueceu o dom que Deus lhe confiara: A isto os Antigos
chamaram castigo, Por ter abandonado o Ego Verdadeiro.
O Mestre veio na época certa
Ao mundo.
Quando seu tempo passou,
Abandonou-o de novo.
Todo aquele que espera seu tempo,
Que se submete, quando seu trabalho
Está feito,
Na sua vida não há lugar
Para tristezas nem alegrias.
Eis como os antigos disseram
Tudo isso em quatro palavras:
'Deus corta o fio'.
Vimos como uma fogueira de gravetos Se apaga. Agora o
fogo Queima em outro lugar. Onde? Quem poderá saber?
Estas brasas Estão queimadas.
CONFÚCIO E O LOUCO
Quando Confúcio visitava o estado de Chu,
Vinha vindo Kieh Yu,
O louco de Chu
E cantou à porta do Mestre:
«Ó Fênix, Fênix,
Aonde foi sua virtude?
Ela não pode alcançar o futuro
Nem trazer de volta o passado!
Quando o mundo tem sentido
O sábio tem muito o que fazer.
Eles só podem esconder-se
Quando o mundo está desgovernado.
Hoje, se você puder viver,
Sorte a sua;
Tente sobreviver!
A alegria é leve como pena,
Mas quem pode carregá-la?
O perdão cai como barreira,
Quem poderá desviá-lo?
«Nunca, nunca mais
Ensine a virtude.
Você caminha no perigo,
Cuidado! Cuidado!
Mesmo as avencas podem cortar seus pés —
Quando ando loucamente
Ando direito:
Mas serei eu homem
Para ser imitado?»
A árvore no alto da montanha é sua própria inimiga,
A graxa que devora a luz devora-se a si.
O cinamomo é comível: assim ela cai por terra!
A árvore do lacre é aproveitável: eles a cortam.
Todo homem sabe como é útil ser útil.
Ninguém parece saber
Como é útil ser inútil.
O HOMEM AUTÊNTICO
O que vem a ser um «homem autêntico?»
Os autênticos homens antigos não tinham medo
Quando ficavam a sós com suas opiniões.
Nenhuma grande proeza.
Planos, nenhum.
Se falhassem, nenhuma compaixão.
Nenhuma auto-congratulação no sucesso.
Escalaram rochedos, sem nunca sofrerem vertigens,
Mergulharam na água, sem nunca ficarem molhados,
Andaram no fogo e não se queimaram.
Assim, toda a sabedoria atingiu o Tao.
Os autênticos homens antigos
Dormiam sem sonhos
Acordavam sem preocupações.
Sua comida era simples.
Respiravam profundo.
Nos homens autênticos a respiração autêntica
Vem dos calcanhares.
Nos outros a respiração vem do esôfago,
Meio-estrangulada.
Nas discussões
Arrotam argumentos
Como vômitos.
Onde as fontes da paixão são
Profundas,
As fontes celestes
Ficam logo secas.
Os autênticos homens antigos
Não conheciam o luxo da vida,
Nenhum medo da morte.
Sua entrada era sem contentamento,
Sua saída,
Sem resistência.
Fácil de começar, fácil de terminar.
Não se esqueceram de onde,
Nem perguntaram para onde,
Nem foram tristemente à frente
Lutando pela vida afora.
Aceitaram a vida como é, felizes.
Aceitaram a morte como se apresenta, despreocupados.
E partiram, para lá, Para lá!
Não desejavam combater o Tao.
Não tentavam, por seus próprios planos,
Ajudar o Tao.
Estes são o que chamamos homens autênticos.
Mentes livres, pensamentos distantes,
Frontes limpas, faces serenas.
Estavam frescas?
Frescas apenas como o outono.
Quentes?
Nem mais quentes que a primavera
Tudo isto surgiu deles
Calmamente, como as quatro estações.
A METAMORFOSE
Quatro homens entraram em discussão.
Cada qual falou:
«Quem souber
Ter o vazio como cabeça,
A vida como espinha dorsal
E a Morte como cauda,
Este será meu amigo!»
Nisto todos se entreolharam,
Viram que concordaram,
Riram alto
E ficaram amigos.
Depois um caiu doente
E o outro foi visitá-lo.
«Grande é o Criador», dizia o doente,
«Que me fez como sou!»
«Estou tão confuso,
Meu tutano cobre a minha cabeça;
Sobre o meu umbigo
Descanso a minha cabeça;
Meus ombros salientam-se
Além do pescoço;
Minha fronte é uma úlcera
Medindo o céu;
Meu corpo é o caos,
Mas minha mente está em ordem».
Arrastou-se para o poço,
Viu seu reflexo, e declarou:
«Que confusão Que ele fez de mim!»
Seu amigo perguntou-lhe:
«Você está desanimado?»
«Qual nada!
Por que haveria de estar?
Se Ele me separa
E faz um galo
De meu ombro esquerdo,
Eu anunciarei a madrugada.
Se Ele fizer um arco
Do meu ombro direito
Procurarei pato assado.
Se meu assento se transformar em rodas
E se meu espírito vier a ser um cavalo,
Prepararei minha própria carroça
E andarei por aí.
Há um tempo de juntar
E um tempo de separar.
Aquele que entender
Este curso dos acontecimentos
Toma cada novo estado
Em sua devida hora
Sem nenhuma tristeza nem alegria.
Os antigos diziam:
'O enforcado
Não pode cortar-se a si mesmo'.
Mas no tempo adequado
A Natureza é mais forte
Do que todas as cordas e elos.
Sempre foi assim.
Onde está uma razão
Para desanimar ?»
O HOMEM NASCE NO TAO
Os peixes nascem na água
O homem nasce no Tao.
Se os peixes, nascidos na água,
Procuram a sombra frondosa
De um lago ou piscina,
Todos seus anseios são satisfeitos.
Se o homem, nascido no Tao,
Mergulha na sombra frondosa
Da Inação
Para esquecer a combatividade e a preocupação,
Não necessita de nada, Sua vida está segura.
Moral: «Tudo de que o peixe necessita
É de perder-se na água.
Tudo de que o homem necessita
É de perder-se no Tao».
DOIS REIS E A NÃO-FORMA
O Rei do Mar do Sul era age-conforme-teu-palpite,
O Rei do Mar do Norte era age-num-relâmpago.
O Rei do lugar entre um e outro era A Não-Forma.
Ora, o Rei do Mar do Sul
E o Rei do Mar do Norte
Costumavam ir juntos freqüentemente
À terra do Não-Forma.
Este os tratava bem.
Então, consultavam entre si,
Pensavam num bom plano,
Numa agradável surpresa para Não-Forma
Como penhor de gratidão.
«Os homens», disseram, «têm sete aberturas
Para ver, ouvir, comer, respirar,
E assim por diante.
Mas o Não-Forma
Não tem aberturas.
Vamos fazer nele
Algumas aberturas».
Depois disso
Fizeram aberturas em Não-Forma,
Uma por dia, em sete dias.
Quando terminaram a sétima abertura,
Seu amigo estava morto.
Disse Lao Tan: «Organizar é destruir».
ARROMBANDO O COFRE
Como segurança contra os ladrões que roubam bolsas,
leiloam bagagens e arrombam cofres,
Devemos prender todos os objetos com cordas, fechá-los
com cadeados, trancá-los.
Isto (para os proprietários) é elementar bom-senso.
Mas quando um ladrão forte se aproxima,
Apanha tudo,
Põe nas costas e segue seu caminho
Com um só medo:
De que as cordas, cadeados e trancas possam ceder.
Assim, o que o mundo chama
De bom negócio é apenas um meio
De pegar o saque, embrulhá-lo, torná-lo bem forte
Em uma carga adequada para ladrões mais espertos.
Quem, entre os espertos,
Não passa seu tempo empilhando seu saque
Para um ladrão maior que ele próprio?
Na terra de Khi, de aldeia em aldeia,
Podíamos ouvir galos cantando, cachorros latindo,
Pescadores lançando redes,
Agricultores arando vastos campos,
Tudo era bem delineado
Por linhas fronteiriças.
Em quinhentas milhas quadradas
Havia templos para antepassados, altares
Para deuses agrícolas e espíritos do milho.
Cada cantão, condado ou distrito
Governava-se segundo leis e estatutos —
Até que num dado instante o Procurador Geral Tien Khang
Tzu,
Assassinou o Rei e usurpou-lhe todo o estado.
Estava contente de saquear a terra?
Não,
Ele também apoderou-se das leis e estatutos ao mesmo
tempo,
E todos advogados também, sem falar na polícia.
Todos tomavam parte no mesmo embrulho.
Evidentemente, o povo chamou Khang Tzu de ladrão,
Mas deixaram-no em paz
Viver tão feliz como os Patriarcas.
Nenhum estado pequeno diria uma palavra contra ele,
Nenhum estado grande iria a seu favor.
Assim, por doze gerações, o estado de Khi
Pertenceu à sua família.
Ninguém interferiu
Em seus direitos inalienáveis.
A invenção
De pesos e medidas
Facilita o roubo.
Assinar contratos, colocar selos,
Assegura o roubo.
O ensino do amor e do dever,
Linguagem adequada
Que prova que o roubo
É realmente para o bem comum.
Um homem pobre deve fugir
Ao roubar uma fivela de cinto.
Mas se um rico rouba todo um estado
É aclamado
O estadista do ano.
Daí, se você quiser ouvir os melhores discursos
Sobre o amor, o dever, a justiça, etc.
Ouça os estadistas.
Mas quando o riacho secar
Nada crescerá no vale.
Quando o monte de areia fica num nível certo,
O buraco próximo é cheio.
E quando os estadistas e advogados
E pregadores do dever desaparecem,
Não há mais roubos e o mundo
Fica em paz.
Moral: Quanto mais você acumular princípios éticos
E deveres e obrigações
Para trazer todos na linha,
Tanto mais você recolherá o saque
Para um ladrão como Khang.
Como argumento ético
E princípio moral
Os maiores crimes mostram-se
Necessários, e, de fato,
Um sinal benéfico
À humanidade.
DEIXAR AS COISAS COMO ESTÃO
Sei como deixar o mundo tranqüilo, e não interferir. Não sei
a maneira como irei dirigir. Deixar como está, de modo que
os homens não destorçam a natureza das coisas! Não inter-
ferir, de modo que os homens não se transformem naquilo
que não são! Quando os homens não se deformam nem se
aleijam, até que não possam ser mais reconhecidos, quando
se lhes é permitido viver — o objetivo do governo é
alcançado.
Muitas diversões? Yang tem muitas influências. Muitos
sofrimentos? Yin tem muitas influências. Quando qualquer
destes ultrapassa o outro, é como se as estações surgissem
em épocas erradas. O equilíbrio do frio e do calor destrói-se;
o corpo humano sofre.
Muita felicidade, muita infelicidade fora do tempo adequado,
os homens saem do seu equilíbrio. O que farão? O
pensamento vagueia às tontas. Nenhum controle. Tudo
começam e nada terminam. Aqui começa a concorrência,
aqui nasce a idéia de perfeição, e os ladrões aparecem no
mundo.
Ora, o mundo inteiro não é bastante recompensa para os
«bons», nem bastante castigo para os «maus». Desde agora o
mundo inteiro não é bastante grande para a recompensa ou
o castigo. Desde o tempo das Três Dinastias os homens
correm em todas as direções. Como podem achar tempo
para serem humanos?
Você treina seu olho e a sua visão se embriaga com a cor.
Treina o ouvido, e você anseia por um som agradável.
Extasia-se em fazer o bem, e a sua bondade natural se desfaz.
Deleita-se no que é correto, e torna-se correto,
ultrapassando qualquer expectativa. Por explorar demais a
liturgia, converte-se em péssimo ator. Explora demais o seu
amor pela música e torna-se azedo. O amor da sabedoria
gera planos habilidosos. O amor do conhecimento gera
críticas ao próximo. Se os homens ficassem como são, não
haveria qualquer diferença entre apegar-se e abandonar estas
oito alegrias. Mas se não mantiverem o equilíbrio certo, as
oito alegrias aumentam como tumores malignos. O mundo
transforma-se no caos. Desde que os homens passaram a
honrar estas alegrias, e por elas anseiam, o mundo ficou
completamente cego.
Quando cessa o prazer, eles ainda assim não o abandonam;
envolvem sua memória com ritos de adoração, ajoelham-se
para comentá-los, tocar música, cantar, jejuar e disciplinar-
se em homenagem a estes prazeres. Depois que estes
prazeres se transformam numa religião, como poderemos
controlá-los?
O sábio, por conseguinte, quando tem de governar, sabe a
maneira de como não fazer nada. Ao deixar tudo como está,
ele permanece em sua natureza original. Aquele que
governar, respeitará o governado, tanto quanto ele se
respeita a si próprio. Se êle ama a sua própria pessoa
suficientemente para deixá-la permanecer em sua verdade
original, governará os outros sem feri-los. Que contenha os
fortes impulsos que sente nas profundezas de seu ser, e o
impelem à ação. Permaneça tranqüilo, sem olhar, sem
escutar. Fique sentado como um cadáver, com a força de um
dragão viva em torno de si. Em perfeito silêncio, sua voz
será como o trovão. Seus movimentos serão invisíveis como
os de um espírito, mas as forças celestes irão em seu auxílio.
Despreocupado, sem nada fazer, verá tudo amadurecer à sua
volta. Onde encontrará tempo para governar?
O HOMEM SOBERANO
Meu Mestre disse:
Tudo que age em tudo, e em nada se imiscui — é o céu...
O Homem Soberano reconhece isto, esconde-o no coração,
Torna-se ilimitado, de mente larga, tudo atrai a si.
E assim, deixa o ouro permanecer oculto na montanha,
Deixa a pérola repousar nas profundezas.
Bens e posses não são vantagens à seus olhos,
Ele está acima da riqueza e da honraria.
A vida longa não é alvo para a alegria, nem morte prematura
à tristeza.
O sucesso não é para ele orgulho, o erro não é vergonha.
Tivesse ele todo o poder no mundo, não o consideraria seu,
Conquistasse tudo, não o levaria consigo.
Sua glória está em saber que tudo está resumido no Uno
E que a vida e a morte são idênticas.
QUÃO PROFUNDO É O TAO
Meu Mestre falou: Tao, quão profundo e sereno é o seu
esconderijo! Quão puro, Tao! Sem a sua serenidade o metal
não soaria, a pedra não partiria quando se lhe batesse. O
poder do som está no metal, e o Tao está em tudo. Quando
batem, soam com o Tao, e silenciam de novo. Quem está lá,
agora, para dizer a todas as coisas os seus lugares? O rei da
vida caminha livremente, inativo, desconhecido. Ficaria
envergonhado se tivesse de se ocupar de negócios. Mantém
as raízes profundas nas suas origens, na fonte mesma. Seu
conhecimento envolve-se no Espírito e torna-se grande,
magnânimo, abre um grande coração, um refúgio para o
mundo. Com simplicidade, ele surge na majestade. Sem
planos, segue o caminho, e todas as coisas o seguem. Este é
o homem soberano, que domina a vida.
Este vê nas trevas, escuta quando não há ruído. Só ele vê a
luz nas profundezas das trevas. No vácuo, só ele percebe a
música. Pode caminhar até a região mais inferior, e
encontrá-la povoada. Pode permanecer na mais alta das
elevações e perceber o significado. Está em contacto com
todos os seres. O que não existe vai ter com ele. O que se
move, ali é que ele está. O que é grande é pequeno para ele,
o longo é curto, todas as distâncias lhe são próximas.
A PÉROLA PERDIDA
O Imperador Amarelo, vagueando, Foi ao norte da Água
Vermelha À montanha de Kwan Lun. Olhou à volta
Debruçou-se sobre o mundo. Na volta Perdeu sua pérola
cor-da-noite. Mandou a Ciência procurar a pérola, mas em
vão.
Mandou a Análise procurá-la, em vão.
Mandou a Lógica, em vão.
Depois interrogou o Nada, e o Nada a possuía!
Disse o Imperador Amarelo:
«Estranho, deveras: o Nada
Que não foi enviado,
Que não se esforçou por achá-la,
É que possuía a pérola côr-da-noite!»
NO MEU FIM ESTÁ O MEU COMEÇO
No princípio de tudo era o Vácuo dos Vácuos,
O Inominável.
E no Inominável era o Uno, sem corpo, sem forma.
Este Uno — este Ser em quem todos acham a força
Para existir,
É o Vivente.
Do Vivente vem o Sem-Forma, o Indiviso.
Do ato do Sem-Forma, vêm os Existentes, cada qual
Segundo seu princípio interior. Isto é a Forma. Aqui o corpo
abraça e acaricia o espírito. Os dois atuam juntos como um,
unindo E manifestando seus caracteres. E isto é a Natureza.
Mas aquele que obedece à Natureza
Retorna através da Forma e do Sem-Forma ao Vivente. E no
Vivente Une o começo que-não-começou.
A união é a Igualdade. A igualdade é o Vácuo.
O Vácuo é infinito.
O pássaro abre o bico e canta seu trinado E depois o bico
retorna novamente ao Silêncio. Assim, a Natureza e o
Vivente encontram-se no Vácuo, Como o fechar do bico do
pássaro Após o canto.
O céu e a terra unem-se no Não-Iniciado, E tudo é tolice,
tudo é desconhecido, tudo é igual
Às luzes de um idiota, tudo é sem mente! Obedecer quer
dizer fechar o bico e cair No que-não-começou.
QUANDO A VIDA ERA PLENA NÃO EXISTIA A
HISTÓRIA
Na época em que a vida na terra era plena, ninguém dava
nenhuma atenção aos homens dignos, nem selecionava os
homens capazes. Os soberanos eram apenas os galhos mais
altos das árvores, e o povo era como cervos na floresta.
Eram honestos e corretos, sem imaginar que «estavam
cumprindo com o seu dever». Amavam-se mutuamente, e
não sabiam que isto se chamava «amor ao próximo». Não
enganavam a ninguém, e, no entanto, não sabiam ser
«homens de confiança». Podia-se contar com eles, e
ignoravam que isto fosse a «boa fé». Viviam juntos
livremente, dando e recebendo, e não sabiam que eram
homens de bom coração. Por este motivo, seus feitos não
foram narrados. Não se constituíram em história.
QUANDO UM HOMEM PAVOROSO.
Quando um homem pavoroso torna-se pai
E lhe nasce um filho
No meio da noite,
Ele treme e acende uma lâmpada
Corre a olhar angustiadamente
No rosto da criança
Para ver com quem ela se parece.
OS CINCO INIMIGOS
Com a madeira de uma árvore secular
Fazem-se embarcações sacrificais,
Cobertas de desenhos verdes e amarelos.
A madeira que foi cortada
Jaz estéril na fossa.
Se compararmos as embarcações sacrificais
Com a madeira na fossa
Achamo-las diferentes na aparência:
Uma é mais bela do que a outra
Ainda assim são iguais nisto: ambas
Perderam sua natureza original.
Se comparar o ladrão ao respeitável cidadão
Você achará que um é, realmente, mais respeitável
Do que o outro:
Ainda assim assemelham-se nisto: ambos perderam
A simplicidade original do homem.
Como perderam? Aqui estão as cinco maneiras:
O amor das cores confunde o olho,
E ele falha em ver claramente.
O amor das harmonias enfeitiça o ouvido,
E ele perde a verdadeira audição.
O amor dos perfumes
Enche a cabeça com inebriações
O amor dos temperos
Arruína o paladar.
Os desejos desgovernam o coração
Até a natureza original enlouquecer.
Estes são os inimigos da vida autêntica. Ainda assim são
aquilo que «homens de discernimento» Anseiam viver. Não
são a razão de eu viver: Se isto é a vida, então os pombos na
gaiola Encontraram a felicidade!
AÇÃO E NÃO-AÇÃO
A não-ação do sábio não é a inação. Não é estudada. Coisa
alguma a abala. O sábio é quieto porque não se altera. Não
porque ele queira ser quieto. A água parada é como o
espelho. Você pode olhar nele e ver os pêlos em seu queixo.
Sua superfície é perfeitamente plana.
Um carpinteiro podia usá-lo
Se a água é tão clara, e sua superfície plana
Quanto mais o espírito do homem?
O coração do sábio está tranqüilo.
É o espelho do céu e da terra.
O espelho de tudo.
É vazio, é quieto, é tranqüilo, é sem-sabor
O silêncio, a não-ação: esta é a medida do céu e da terra.
Este é o perfeito Tao. Os sábios encontram aqui
Seu lugar de repouso. Repousando, estão vazios.
Do vazio vem o não-condicionado.
Daí, o condicionado, as coisas individuais.
Assim, do vazio do sábio surge a quietude:
Da quietude, a ação. Da ação, a realização.
Da sua quietude vem sua não-ação, que é também ação
E é, portanto, sua realização.
Pois a quietude é alegria. A alegria é isenta de preocupações,
Fértil por muitos anos.
A alegria faz tudo despreocupadamente:
Porque o vazio, o quieto, o tranqüilo,
O silêncio e a não-ação
Eis a raiz de todas as coisas.
O DUQUE DE HWAN E O FABRICANTE DE
RODAS
O mundo valoriza os livros, e acha que, assim fazendo, está
valorizando o Tao. Mas os livros apenas contêm palavras.
Apesar disso, algo mais existe que valoriza os livros. Não
apenas as palavras, nem o pensamento das palavras, mas sim
algo dentro do pensamento, balançando-o numa certa
direção que as palavras não podem apreender. Mas são as
próprias palavras que o mundo valoriza quando as transmite
aos livros: e, embora o mundo as valorize, estas palavras são
inúteis enquanto aquilo que lhes der valor não é honrado.
O que o homem apreende pela observação é apenas forma e
cor externas, nome e som; e ele crê que isto o colocará de
posse do Tao. A forma e a cor, o nome e o som não atingem
a realidade. Daí a explicação de que: «Aquele que sabe não
diz, aquele que diz não sabe». Como irá o mundo, então,
conhecer o Tao por meio de palavras?
Sentou-se sob o pátio
Lendo filosofia;
E Phien, o carpinteiro de rodas,
Estava fora, no pátio
Fabricando uma roda.
Phien pôs de lado O martelo e a entalhadeira,
Subiu os degraus,
Disse ao Duque Hwan: «Permiti-me perguntar-vos, Senhor,
O que estais lendo?»
Disse-lhe o Duque:
«Os peritos. As autoridades».
E Phien perguntou-lhe:
«Vivos ou mortos?»
«Mortos há muito tempo».
«Então», disse o fabricante de rodas,
«Estais lendo apenas
O pó que deixaram atrás».
Respondeu o Duque:
«O que sabes a seu respeito?
És apenas um fabricante de rodas.
Seria melhor que me desses uma boa explicação,
Senão morrerás».
Disse o fabricante:
«Vamos olhar o assunto
Do meu ponto de vista.
Quando fabrico rodas,
Se vou com calma, elas caem,
Se vou com muita violência, elas não se ajustam.
Se não vou nem com muita calma, nem com muita violência
Elas se adaptam bem. O trabalho é aquilo
Que eu quero que ele seja.
Isto não podeis transpor em palavras:
Tendes apenas de saber como se faz.
Nem mesmo posso dizer a meu filho exatamente como é
feito,
E o meu filho não pode aprender de mim.
Então, aqui estou, com setenta anos,
Fabricando rodas, ainda!
Os homens antigos
Levaram tudo o que sabiam
Para o túmulo.
E assim, Senhor, o que ledes
É apenas o pó que deixaram atrás de si».
OS DILÚVIOS DE OUTONO
As enchentes de outono vieram. Milhares de torrentes
bravias desaguaram furiosamente no Rio Amarelo. O leito do
rio se encheu e inundou as margens a ponto de, olhando-o,
não ser possível distinguir, do outro lado, um boi de um
cavalo. Então, o Deus Fluvial sorriu, maravilhado, ao ver que
toda a beleza do mundo caíra sob sua proteção. Navegou rio
abaixo, até que foi para o Oceano. Ali, olhou sobre as ondas,
para o vazio horizonte no leste, e a sua face desfez-se.
Olhando para o longínquo horizonte recobrou os sentidos e
murmurou ao Deus do Oceano: «Bem, o provérbio está cer-
to. Aquele que possui cem idéias, acha que sabe mais que
ninguém. Tal pessoa sou eu. Somente agora compreendo o
que significa a EXPANSÃO!»
O Deus do Oceano replicou:
«Pode você falar do mar
A um sapo dentro do poço?
Pode falar sobre o gelo
Aos louva-a-Deus?
Pode falar sobre a Vida
A um doutor em filosofia?
De todas as águas do mundo
O Oceano é a maior.
Todos os rios nele desaguam
Noite e dia;
Nunca está cheio.
Devolve as águas
Noite e dia.
Nunca se esvazia.
Nas secas
Não baixa.
Nas cheias
Não se eleva.
Maior que todas as outras águas!
Não é possível dizer
O quanto é maior!
Mas orgulho-me dele?
O que sou sob o céu?
O que sou sem Yang e Yin?
Comparado com o céu
Sou uma pequena rocha,
Um carvalho retorcido
Na montanha:
Devo agir porventura
Como se fosse algo?»
De todos os seres existentes (e os há aos milhões), o
homem é apenas um. Dentre os milhões de homens que
vivem na terra, o povo civilizado que vive da agricultura é
apenas uma pequena proporção. Menor ainda é a quantidade
dos que, homens de escritório, ou de fortuna, viajam de
carruagem ou de barco. E, destes todos, um homem na
carruagem nada mais é do que a ponta do fio de cabelo no
flanco de um cavalo. Por que, então, toda esta agitação
acerca de grandes homens e de grandes empregos? Por que
todas as discussões dos eruditos? Por que todas as
controvérsias dos políticos?
Não há limites fixos,
O tempo não permanece imóvel.
Nada dura,
Nada é final.
Você não pode segurar
O fim ou o princípio.
O sábio vê o próximo e o distante
Como se fossem idênticos,
Ele não despreza o pequeno
Nem valoriza o grande:
Onde todos os padrões diferem,
Como poderá você comparar?
Com um olhar
Ele se apodera do passado e do presente,
Sem tristeza pelo passado
Nem impaciência pelo presente.
Tudo está em movimento.
Tem experiência
Da plenitude e do vazio.
Não se rejubila no sucesso
Nem lamenta o insucesso.
O jogo nunca está terminado.
O nascimento e a morte são iguais.
Os termos nunca são finais.
GRANDE E PEQUENO
Quando olhamos as coisas à luz do Tao,
Nada é melhor, nada é pior.
Cada coisa, vista à sua própria luz,
Manifesta-se a seu próprio modo.
Pode parecer «melhor»
Do que é comparável a ele
Em seus próprios termos.
Mas, em termos do todo,
Nada torna-se «melhor».
Se você medir as diferenças,
O que é maior do que outra coisa é «grande»,
Portanto, nada há que não seja «grande»;
O que é menor dó que algo é «pequeno»,
Portanto, nada há que não seja «pequeno».
Assim, todo o cosmo é um grão de arroz,
E a ponta do fio de cabelo
É tão grande quanto a montanha —
Esta é a vida relativa.
Você pode romper muralhas com barras metálicas,
Mas não pode, com elas, tapar os buracos.
Todas as coisas têm diferentes utilidades.
Cavalos de raça podem viajar cem milhas por dia,
Mas não podem caçar ratos Como os cachorros ou as
doninhas: Todas as criaturas possuem dons próprios. A
coruja de cornos brancos pode pegar pulgas à meia-noite E
distinguir a ponta de um fio de cabelo, Mas, dia claro, ela
fica imóvel, inútil, E nem mesmo pode ver uma montanha.
Todas as coisas possuem diferentes capacidades.
Conseqüentemente: aquele que quiser possuir o certo
Sem o errado,
A ordem sem a desordem,
Não percebe os princípios
Do céu e da terra.
Não percebe como as coisas se unem.
Pode um homem apegar-se apenas ao céu
E nada saber da terra?
São correlatos: conhecer um
É conhecer o outro.
Recusar um
É recusar a ambos.
Pode um homem apegar-se ao positivo
Sem nenhuma negativa
Em contraste com o que
É positivo?
Se ele afirma isso
É um vagabundo ou um louco.
Os tronos passam
De dinastia a dinastia,
Ora de um modo, ora de outro.
Aquele que força o seu caminho ao poder
Contra a maré
Chama-se tirano e usurpador.
Aquele que se move com a corrente dos acontecimentos
Chama-se um sábio estadista.
Kui, o dragão-perneta,
Inveja a centopeia.
A centopéia inveja a serpente.
A serpente inveja o vento.
O vento inveja o olho.
O olho inveja a mente.
Disse Kui à centopeia:
«Movimento a minha perna com dificuldade:
Como pode você movimentar cem?»
Respondeu a centopeia:
«Não sou eu quem movimenta
Elas se espalham por toda a parte
Como gotas de saliva».
Disse a centopeia à serpente:
«Com todos os meus pés, não posso mover-me tão rápido
Como você faz, sem pés.
Como é que consegue isto?»
Respondeu a serpente:
«Tenho uma maneira natural de deslizar
Que não pode ser modificada.
Para que necessito dos pés?»
A serpente falou ao vento:
«Eriço a minha espinha e me locomovo
Numa maneira corporal. Você, sem ossos,
Sem músculos, sem método,
Sopra desde o Mar do Norte ao Oceano Meridional.
Como chega até lá Sem nada?»
Respondeu o vento:
«Na verdade, levanto-me no Mar do Norte
E conduzo-me sem obstáculos ao Oceano Meridional.
Mas cada olho que me observa,
Cada asa que me utiliza,
É superior a mim, mesmo
Se desenraizo as maiores árvores, ou se derrubo grandes
edifícios.
O verdadeiro conquistador é o que não se deixa conquistar
Pela multidão dos pequenos.
A mente é éste conquistador —
Mas só a mente
Do sábio».
O HOMEM DO TAO
O homem no qual o Tao
Age sem obstáculos
Não sacrifica nenhum outro ser
Por suas ações.
Apesar disso não sabe
Se é «cordato», se é «bondoso».
O homem no qual o Tao
Age sem obstáculos
Não se preocupa com seus próprios interesses
E não despreza
Os que com eles se preocupam.
Não luta para ganhar dinheiro
E não faz da pobreza uma virtude.
Segue seu caminho
Sem se apoiar nos outros
E não se orgulha
Em caminhar só.
Enquanto não está seguindo a turba
Não se queixa daqueles que a seguem.
Postos e recompensas
Não o atraem;
A desgraça e a vergonha
Não são impedimentos.
Nem sempre está olhando
Para o certo ou o errado
Sempre decidindo o que é «Sim», ou «Não
Diziam, portanto, os antigos:
«O homem do Tao
Fica desconhecido.
A perfeita virtude
Nada produz.
O «Não-Eu é
O «Verdadeiro-Eu».
E o maior homem de todos
É o Ninguém».
A TARTARUGA
Chuang Tzu com seu caniço de bambu Pescava no rio Pu.
O Príncipe de Chu Enviou dois vice-chanceleres Com um
documento oficial: «Por este documento nomeamo-lo
Primeiro-Ministro».
Chuang Tzu segurou o caniço de bambu. Fixando ainda os
olhos no Rio Pu falou:
«Disseram-me que há uma tartaruga sagrada,
Oferecida e canonizada
Há 3.000 anos passados,
Venerada pelo príncipe,
Embrulhada em seda,
Num precioso relicário
Sobre um altar
No Templo.
«O que achais:
É melhor abandonar a vida
E deixar uma concha sagrada
Como objeto de culto
Numa nuvem de incenso
Três mil anos,
Ou viver
Como simples tartaruga
Arrastando o rabo na lama?»
«Para a tartaruga», disse-lhe o Vice-Chanceler,
«É melhor viver
E arrastar a cauda na lama!»
«Retire-se!», disse-lhe Chuang Tzu.
«Deixe-me aqui
A arrastar a minha cauda na lama!»
A CORUJA E A FÊNIX
Hui Tzu era Primeiro Ministro de Liang. Acreditava possuir
a informação secreta de que Chuang Tzu ambicionava seu
posto e fazia intrigas para suplantá-lo na carreira. De fato,
quando Chuang Tzu veio visitar Liang, o Primeiro Ministro
mandou que a polícia o prendesse. Esta procurou-o durante
três dias e três noites, mas, enquanto isso, Chuang Tzu
apresentou-se diante de Hui Tzu, por sua própria iniciativa,
e falou-lhe:
«Conheceis a história do pássaro
Que mora no sul,
A Fênix que jamais envelhece?
«Esta Fênix imortal
Ergue-se do Mar Meridional
E voa ao Mar do Norte,
Jamais pousando
A não ser em certas árvores sagradas.
Não tocará nenhuma comida
A não ser a mais requintada
Fruta rara,
E beberá apenas
Das fontes celestes.
«Uma vez, uma coruja,
Mastigando um rato morto,
Já meio decomposto,
Viu a Fênix voando,
Olhou para cima,
E pipilou com um ruído,
Apertando contra si o rato,
Temerosa e atônita.
«Por que estais tão nervoso
Apegando-se tanto a vosso ministério,
E pipilando para mim
Assim consternado?»
A ALEGRIA DOS PEIXES
Chuang Tzu e Hui Tzu
Atravessavam o rio Hao
Pelo açude.
Disse Chuang:
«Veja como os peixes
Pulam e correm tão livremente:
Isto é a sua felicidade».
Respondeu Hui:
«Desde que você não é um peixe
Como sabe
O que torna os peixes felizes?»
Chuang respondeu:
«Desde que você não é eu,
Como é possível que saiba
Que eu não sei
O que torna os peixes felizes?»
Hui argumentou:
«Se eu, não sendo você,
Não posso saber o que você sabe
Daí se conclui que você,
Não sendo peixe,
Não pode saber o que eles sabem».
Disse Chuang:
«Um momento:
Vamos retornar
À pergunta primitiva.
O que você me perguntou foi
Como você sabe
O que torna os peixes felizes?'
Dos termos da pergunta
Você sabe evidentemente que eu sei
O que torna os peixes felizes.
«Conheço as alegrias dos peixes
No rio
Através de minha própria alegria, à medida
Que vou caminhando à beira do mesmo rio».
A PERFEITA ALEGRIA
Existe na terra a plenitude da alegria, ou não? Existe alguma
maneira de se fazer com que a vida seja plenamente digna
de se viver, ou é isto impossível? Se existe essa maneira, co-
mo encontrá-la? O que devemos tentar fazer? O que
procurar evitar? Qual será o alvo onde a sua atividade deverá
repousar? O que deverá você aceitar? O que deverá recusar?
O que deverá amar? O que deverá odiar?
O que o mundo valoriza é o dinheiro, a fama, a vida longa, o
sucesso. O que, para ele, representa a alegria é a saúde e o
conforto do corpo, a boa comida, boas roupas, belas coisas
para se olharem, música agradável para se ouvir.
O que ele condena é a falta de dinheiro, um nível social
baixo, reputação de não prestar para nada, e a morte
prematura.
O que o mundo considera infelicidade é o desconforto e o
trabalho físico, nenhuma oportunidade para obter sua
quantidade de boa comida, não possuir roupas de boa
qualidade para vestir, não arranjar meios nem de se divertir
nem de alegrar a vista, música nenhuma agradável para
escutar. Se as pessoas acharem que tudo isto lhes faz falta,
caem em estado de pânico, ou caem no desespero. Ficam tão
preocupadas com sua vida, que a angústia a torna
insuportável, mesmo quando possuem tudo que elas pensam
desejar. A própria preocupação com o prazer torna-as
infelizes.
Os ricos tornam intolerável a vida, agitam-se
incessantemente para obter fortuna cada vez maior, fortuna
essa que, na verdade, não podem utilizar. Assim
procedendo, alienam-se de si mesmos, chegando ao ponto
da exaustão no seu próprio labor, como se fossem escravos
dos outros.
Os ambiciosos correm noite e dia em busca de glórias,
constantemente angustiados com o sucesso de seus planos,
odiando os erros, que podem destruir tudo. Assim, alienam-
se de si mesmos, exaurindo sua vida real a serviço da sombra
criada por sua insaciável esperança.
O nascimento de um homem é o nascimento de sua tristeza.
Quanto mais for vivendo, tanto mais estúpido se torna, pois
sua angústia para evitar a morte inevitável torna-se cada vez
mais intensa. Que amargura! Ele vive pelo que está sempre
fora de seu alcance! A sua sede de sobreviver no futuro
torna-o incapaz de viver o presente.
Onde estão as autoridades e os eruditos que se auto-
sacrificam? São elogiados pelo mundo porque são bons,
corretos, dignos de se sacrificarem.
Apesar disso, seu bom caráter não os preserva da
infelicidade, nem mesmo da ruína, da desgraça, nem da
morte.
Gostaria de saber se, neste caso, a sua «bondade» é,
realmente, tão boa, apesar de tudo! Não será, talvez, uma
fonte de infelicidade?
Vamos supor que você diga que eles sejam felizes. Mas é
feliz ter um caráter e uma carreira que irão,
necessariamente, conduzir à própria ruína? Por outro lado,
pode você chamá-los de «infelizes» se, ao se sacrificarem,
salvam as vidas e as fortunas dos outros?
Tomemos o caso do ministro que, conscienciosa e
corretamente, se opõe a uma injusta decisão de seu rei!
Alguns dirão: «Diga a verdade, e se o Rei não o quiser
escutar, deixe-o então fazer o que achar melhor. Você não
terá nenhuma obrigação ulterior».
Por outro lado, Tzu Shu continuou a se opor à política
injusta do seu soberano. Foi, portanto, destruído. Porém, se
ele não houvesse mantido o que acreditava ser de direito,
seu nome não seria um nome honrado.
E aí surge a pergunta: será «bom» o princípio que escolheu,
se, ao mesmo tempo, era um princípio fatal para êle?
Não posso afirmar se o que o mundo considera «felicidade» é
ou não a felicidade. Tudo o que sei é que, quando medito
nos meios de que eles se servem para obtê-la, vejo-os es-
tonteados, tristes e obcecados, naquela precipitação geral de
um rebanho humano, incapazes de se refrearem ou de
mudarem de rumo.
Durante todo este movimento eles afirmam estarem justo no
ponto de atingirem a felicidade.
Na minha opinião, não posso aceitar suas teorias, quer digam
respeito à felicidade ou à infelicidade. Chego a me perguntar
se o seu conceito de felicidade possui qualquer significado.
O que quero dizer é que você nunca encontra a felicidade, a
não ser quando cessa de procurá-la. A minha felicidade
maior consiste, exatamente, em não fazer nada, absoluta-
mente, que seja calculado para obter a felicidade: e isto, na
mente da maior parte das pessoas, é o pior princípio que
possa haver.
Vou me fixar no seguinte aforismo: «A perfeita alegria
consiste em não se estar alegre. O perfeito elogio consiste
em não se ter nenhum elogio».
Se você me perguntar «o que deve ser feito», e «o que não
deve ser feito» na terra, para produzir a felicidade,
responderei que estas perguntas não possuem respostas. Não
há maneira nenhuma de determinar tais coisas.
Ao mesmo tempo, porém, se eu parar de lutar pela
felicidade, o «certo» e o «errado», tornam-se imediatamente
evidentes por si mesmos.
O contentamento e o bem-estar imediatamente se tornam
acessíveis, desde que você cesse de agir tendo-os em vista e,
ao praticar o não-ágir (wu wei), você obterá, tanto a
felicidade como o bem-estar.
Eis como resumo isto:
O céu nada faz: seu não-agir é sua serenidade.
A terra nada faz: seu não-agir é seu repouso.
Da união destes dois não-agires
Procedem todas as ações,
Todas as coisas são feitas.
Como este devir
É vasto e invisível!
Tudo provém de nenhum lugar!
Como é vasto, invisível —
Nenhum meio de explicá-lo!
Todos os seres em sua perfeição
Nascem do não-agir.
Daí se dizer:
«O céu e a terra nada fazem
Nada há, porém, que não façam».
Onde estará o homem
Capaz de alcançar este não-agir?
SINFONIA A UM PÁSSARO MARÍTIMO
Não é possível colocar uma grande carga numa pequena
mala, Nem é possível, com uma corda curta, Tirar água de
um profundo poço. Não é possível falar a um hábil político
Como se ele fosse um sábio. E se ele o procurar entender, Se
olhar para dentro de si, A fim de encontrar a verdade Que
lhe foi transmitida, Ele não a encontrará ali. Não a
encontrando, ele tem dúvidas. Quando um homem tem
dúvidas, Ele mata.
Você não ouviu falar como um pássaro do mar Foi levado
pelo vento até à praia e pousou Fora da capital de Lu?
O Príncipe ordenou uma recepção solene, Ofereceu vinho
ao pássaro marítimo no recinto sagrado, Chamou os músicos
Para tocarem composições de Shun,
Matou gado para alimentá-lo: Atordoado com sinfonias, o
infeliz pássaro marítimo Morreu desesperado.
Como trataria você a um pássaro?
Como a si próprio
Ou como a um pássaro?
Não deve um pássaro construir o ninho
Na floresta profunda
Ou voar sobre o prado e o pântano?
Não deve nadar no rio e no lago,
Alimentar-se de enguias e de peixes,
Voar em conjunto com outras aves aquáticas,
E repousar nas plantações?
Bem terrível para um pássaro marítimo
É estar cercado de homens
E amedrontar-se com suas vozes!
Mas isto não bastou!
Eles mataram-no com música!
Toque quantas sinfonias quiser
Nos pântanos de Thung-Ting.
Os pássaros fugirão
Em todas as direções;
Os animais esconder-se-ão;
Os peixes mergulharão até o fundo do mar;
Mas os homens
Juntar-se-ão e escutarão.
A água é para os peixes
E o ar é para os homens.
A natureza difere e, com ela, o necessário.
Por isso, os sábios antigos
Não colocavam
Uma medida para todos.
O TODO
«Como pode caminhar o verdadeiro homem do Tao,
Atravessar paredes sem ser obstruido,
Ficar de pé no fogo sem se queimar?»
Não é por causa da perspicácia
Nem pela ousadia;
Não é porque estudou,
Mas porque não estudou.
Tudo que for limitado pela forma, aspecto,
som, cor, Chama-se objeto. Entre todos eles, só o homem
É mais do que um objeto.
Embora, como os objetos, possua ele forma e aspecto,
Não se limita pela forma. Ele é mais. Não pode atingir a não-
forma.
Quando está ele além da forma e aspecto, Além «deste», ou
«daquele», Onde a comparação Com outro objeto?
Onde o conflito?
O que pode servir de obstáculo?
Ele ficará em seu lugar eterno
Que é o não-lugar. Esconder-se-á
Em seu próprio segredo incomensurável. Sua natureza
penetra até à raiz No Uno.
Sua vitalidade, seu poder Escondem-se no Tao secreto.
Quando tudo é um,
Não há nele falhas
Onde penetre um calço.
Assim, um bêbado, caindo
De uma carroça,
Machuca-se, mas não é destruído.
Seus ossos são como os de outros homens,
Mas sua queda é diferente.
Seu espírito é inteiro. Ele não percebe
Que entrou ou que caiu
De uma carroça.
A vida e a morte nada são para ele. Não conhece sustos,
enfrenta obstáculos Sem pensar, sem preocupar-se,
Enfrenta-os sem saber que eles lá estão.
Se existe tal segurança no vinho, Quanto mais no Tao. O
sábio está escondido no Tao. Nada pode tocá-lo.
A NECESSIDADE DA VITÓRIA
Quando um arqueiro atira sem alvo nem mira
Está com toda a sua habilidade.
Se atira para ganhar uma fivela de metal
Já fica nervoso.
Se atira por um prêmio em ouro
Fica cego
Ou vê dois alvos — Está louco!
Sua habilidade não mudou. Mas o prêmio
Cria nele divisões. Preocupa-se.
Pensa mais em ganhar
Do que em atirar —
E a necessidade de vencer
Esgota-lhe a força.
OS PORCOS DO SACRIFÍCIO
O Grande Augure, que sacrificava os porcos e lia os oráculos
no sacrifício, apareceu em suas longas vestes negras, no
cercado de porcos, e assim falou aos porcos: «Eis meu
conselho a vocês: Não se queixem de ter de morrer.
Ponham de lado suas críticas. Pensem no fato de que eu não
os alimentarei com a melhor ração durante três meses. Eu
próprio terei de observar uma disciplina rígida por dez dias e
terei de jejuar durante três. Depois, estenderei tapetes
verdes e oferecerei seus quartos e presuntos em travessas
finamente trabalhadas, numa cerimônia muito importante.
O que mais vocês desejam?»
Depois, pensando um pouco, observou a questão do ponto
de vista dos porcos: «É claro, suponho que vocês prefeririam
alimentar-se com ração bem barata, e ser deixados em paz
em seu cercado».
Em seguida, vendo a questão do seu próprio ponto de vista,
respondeu: «Não há, evidentemente, uma maneira de viver
mais nobre! Viver honrosamente, receber o melhor trata-
mento, andar numa carruagem com belas roupas, mesmo se,
a qualquer momento, você possa ser arrasado ou executado,
este é o destino nobre, embora incerto, que escolhi para
mim mesmo».
Então, decidiu contra o ponto de vista dos porcos, e adotou
o seu próprio, tanto para si como também para os porcos.
Como são felizes aqueles porcos cuja existência, desse modo,
se enobreceu por aquele que era, ao mesmo tempo,
autoridade estatal e pastor da religião.
O GALO DE BRIGA
Chi Hsing Tzu era treinador de galos de briga
Para o Rei Hsuan.
Estava treinando uma bela ave.
Sempre perguntava o Rei se a ave
Estava pronta para a briga.
«Ainda não», dizia o treinador.
«Ele é fogoso.
É pronto para atiçar briga
Com qualquer ave. É vaidoso e confiante
Na sua própria força».
Depois de dez dias, respondeu novamente:
«Ainda não. Eriça-se todo
Quando ouve outra ave grasnar».
Depois de mais dez dias:
«Ainda não. Ainda está
Com aquele ar irado
E eriça as penas».
Depois de dez dias
Disse o treinador:
«Agora ele está quase pronto.
Quando outra ave grasna, seu olho
Nem mesmo pisca.
Fica imóvel
Como um galo de madeira.
É um brigador amadurecido.
Outras aves olharão para ele de relance
E fugirão».
O ENTALHADOR DE MADEIRA
Khing, o mestre entalhador, fez uma armação para sinos,
De madeira preciosa.
Quando terminou,
Todos que aquilo viram ficaram surpresos.
Disseram
Que devia ser obra dos espíritos.
O Príncipe de Lu disse ao mestre entalhador:
«Qual é o seu segredo?»
Khing respondeu: «Sou apenas operário: Não tenho
segredos. Há só isso: Quando comecei a pensar no trabalho
que me ordenaste
Protegi meu espírito, não o desperdicei
Em ninharias, que não vinham ao caso.
Jejuei, a fim de pôr
Meu coração em repouso.
Depois de jejuar três dias,
Esqueci-me do lucro e do sucesso.
Depois de cinco dias
Esqueci-me do louvor e das críticas.
Depois de sete dias
Esqueci-me do meu corpo Com todos os seus
membros.
«Nesta época, todo pensamento de Vossa Alteza
E da corte se evanecera.
Tudo aquilo que me distraía do trabalho
Desaparecera.
Eu me recolhera ao único pensamento
Da armação do sino.
«Depois, fui à floresta
Ver as árvores em sua própria condição natural.
Quando a árvore certa apareceu a meus olhos,
A armação do sino também apareceu, nitidamente,
Sem qualquer dúvida.
Tudo o que tinha a fazer era esticar a mão
E começar.
Se eu não houvesse encontrado esta determinada árvore
Não haveria
Qualquer armação para o sino.
«O que aconteceu?
Meu próprio pensamento unificado
Encontrou o potencial escondido na madeira;
Deste encontro ao vivo surgiu a obra
Que você atribui aos espíritos».
QUANDO O SAPATO SE ADAPTA
Ch'ui o projetista
Sabia desenhar círculos mais perfeitos a mão livre
Do que a compasso. Seus dedos
traziam
Formas espontâneas do nada.
Enquanto isso, a mente
Mantinha-se livre e despreocupada,
Com o que estava fazendo.
Nenhuma aplicação era necessária.
Sua mente era inteiramente simples
E não conhecia obstáculos.
Assim, quando o sapato se adapta,
Esquece-se o pé,
Quando o cinto se adapta,
O ventre é esquecido,
Quando o coração está bom
O «pró» e o «contra» são esquecidos.
Nada de anseios, nada de compulsões,
Nada de necessidades, nada de atrações:
Então seus assuntos
Estão sob controle.
Você é um ser livre.
O calmo é certo. Comece certo
E você estará calmo. Continue calmo e você estará certo.
A maneira correta de ir com calma
É esquecer-se da maneira correta
E esquecer-se de que a ida é fácil.
O BARCO VAZIO
Aquele que governa os homens vive no caos; O que é
governado pelos homens vive na tristeza.
Yao, portanto, não desejou
Nem influenciar os outros
Nem ser por eles influenciado.
A maneira de se livrar do caos
E da tristeza
É viver com o Tao
Na terra do grande Vácuo.
Se um homem atravessar um rio
E um barco vazio colidir com sua própria embarcação,
Mesmo que seja um mal-humorado,
Não terá muita raiva.
Mas se vir um homem no outro barco,
Gritará que ele reme direito.
Se o outro não ouvir o grito, gritará de novo,
E mais, começando a xingar.
Tudo porque há alguém no barco.
Se o barco estivesse vazio,
Não gritaria nem ficaria com raiva.
Se você conseguir esvaziar seu barco
Ao atravessar o rio do mundo,
Ninguém lhe porá obstáculos,
Ninguém procurará fazer-lhe mal.
A árvore reta é a primeira a ser cortada,
A fonte da água límpida é a primeira a ser secada.
Se deseja melhorar sua sabedoria
E envergonhar o ignorante,
Cultivar seu caráter
E suplantar os outros;
Uma luz brilhará à sua volta
Como se houvesse engolido o sol e a lua:
Você não evitará a catástrofe.
Um sábio já dizia:
«O que se contenta consigo
Fez uma obra inútil.
O sucesso é o começo do erro.
A fama é a origem da desgraça».
Quem poderá livrar-se do sucesso
E da fama, e descer, e perder-se
Entre a massa humana?
Esse fluirá como o Tao, invisível,
Caminhará como a própria Vida
Sem nome nem lar.
É simples e sem exigências.
Aparentemente, um tolo.
Seus passos não deixam marca.
Não tem nenhum poder.
Nada consegue, não tem reputação.
Como não julga ninguém
Ninguém o julga.
Este é o homem perfeito:
Seu barco está vazio.
A FUGA DE LIN HUÍ
Lin Hui de Kia fugiu.
Perseguido pelos inimigos
Desfez-se do jade precioso,
Símbolo de seu cargo,
E levou seu filho caçula às costas.
Por que levou a criança
E deixou o jade,
Que valia uma pequena fortuna,
Enquanto seu filho, se vendido,
Render-lhe-ia uma ínfima quantia?
Disse Lin Hui:
«Meus laços com o símbolo do jade
E com meu cargo
Eram os laços do interesse egoístico.
Meus laços com a criança
Eram os do Tao.
«Quando a união se mistura ao interesse egoístico,
A amizade se desfaz
Ao surgir a calamidade.
Onde a união é no Tao
A amizade se aperfeiçoa
Na calamidade.
«A amizade dos sábios
É sem sabor como a água.
A amizade dos tolos
É doce como o vinho.
Mas o sem-sabor do sábio
Proporciona a verdadeira afeição
E o sabor da companhia dos tolos
Termina em rancor».
QUANDO O CONHECIMENTO FOI AO NORTE
O conhecimento vagueou ao norte
Procurando pelo Tao, acima do Mar das Trevas
E acima da Montanha Invisível.
Lá na montanha, encontrou
O Não-agir, o Sem-Palavras.
Perguntou:
«Poderia informar-me, Senhor,
Por qual sistema de pensamento
E técnica de meditação
Poderei apreender o Tao?
Por qual renúncia
Ou retiro solitário
Posso repousar no Tao?
Onde devo começar,
Qual o caminho a seguir
Para alcançar o Tao?»
Estas foram as três perguntas.
O Não-agir, o Sem-Palavras
Não respondeu. Não apenas isto,
Nem mesmo sabia
Como responder!
O conhecimento foi ao sul,
Para o Mar Brilhante,
E subiu a Montanha Luminosa,
Chamada «Fim da Dúvida».
Lá encontrou
O Ato-Impulso, o Profeta Inspirado,
E fez as mesmas perguntas.
«Ah», respondeu o Inspirado,
«Tenho as respostas e as revelarei!»
Mas, exatamente quando as ia revelar,
Esqueceu-se de tudo que tinha em mente.
O conhecimento não obteve resposta.
Assim, o Conhecimento foi afinal
Ao palácio do Imperador Ti,
E lhe fez as perguntas.
Ti respondeu-lhes:
«Exercitar o não-pensamento
E seguir a não-via da meditação
É a primeira maneira de se entender o Tao.
Habitar em nenhum lugar
E em nada repousar
É a primeira maneira para repousar no Tao.
Começar do nenhum lugar
E não seguir nenhuma estrada
É o primeiro passo para atingir o Tao».
O conhecimento respondeu: «Você sabe isto
E agora eu o sei. Mas os outros dois
Não o sabiam. Que me diz disto? Quem tem razão?»
Respondeu-lhe Ti:
Só o Não-Agir, o Sem-Palavras,
Estava com toda a razão. Ele não sabia.
O Ato-Impulso, o Profeta Inspirado,
Parecia estar com a razão
Porque se esquecera.
Quanto a nós,
Nem chegamos próximos a ter razão,
Porque estamos com as respostas.
«Pois aquele que sabe não diz,
Aquele que diz não sabe».
E o «sábio instrui Sem o uso da fala».
Esta história foi repetida
Ao Ato-Impulso
Que concordou com a maneira
De Ti interpretá-la.
Não contaram
Que o Não-Agir jamais ouviu a história
Ou fez qualquer comentário.
DA IMPORTÂNCIA DE SER DESDENTADO
Nieh Ch'ueh, que não tinha dentes,
Veio a P'i e pediu-lhe uma aula sobre o Tao.
(Talvez pudesse mastigar isto!).
Então começou P'i:
«Primeiro, obter o controle do corpo
E de todos os órgãos.
Depois
Controlar a mente. Atingir
O ponto único. Depois
A harmonia celeste
Virá e habitará em você.
Você estará radiante com a Vida.
Você repousará no Tao.
Terá o olhar simples
De um bezerro recém-nascido,
Ah, feliz de você,
Nunca saberá a causa
De seu estado...»
Mas, antes que P'i houvesse chegado a este ponto em seu
sermão, o desdentado adormecera. A sua mente não podia
«mastigar» o cerne da doutrina. Mas P'i ficou satisfeito. Saiu
cantando:
«Seu corpo é seco
Como o osso de uma perna velha,
Sua mente é morta
Como cinzas apagadas:
Seu conhecimento é sólido,
Sua sabedoria, verdadeira!
Na profunda escuridão da noite
Ele vagueia livremente,
Sem objetivos
E sem planos:
Quem é capaz de comparar-se
A este homem desdentado?»
ONDE ESTÁ O TAO?
Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: «Mostre-me onde
pode o Tao ser encontrado». Respondeu Chuang Tzu: «Não
há lugar onde ele não possa ser encontrado». O primeiro
insistiu:
«Mostre-me, pelo menos, algum lugar preciso
Onde o Tao possa ser encontrado».
«Está na formiga», disse Chuang.
«Está ele em algum dos seres inferiores?»
«Está na vegetação do pântano».
«Pode você prosseguir na escala das coisas?»
«Está no pedaço de taco».
«E onde mais?»
'Está neste escremento».
Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.
Mas Chuang continuou: «Nenhuma
De suas perguntas é pertinente
São como perguntas de fiscais no mercado,
Controlando o peso dos porcos,
Espetando-os nas suas partes mais tenras.
Por que procurar o Tao examinando
'Toda escala do ser,
Como se o que chamássemos «mínimo»
Possuísse quantidade inferior do Tao?
O Tao é Grande em tudo,
Completo em tudo,
Universal em tudo,
Integral em tudo.
Estes três aspectos
São distintos, mas a Realidade é o Uno.
«Portanto, vem comigo Ao palácio do Nenhures Onde todas
as muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar
Do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do
Não-Agir: O que diremos lá — que o Tao É a simplicidade, a
paz, A indiferença, a pureza, A harmonia e a tranqüilidade?
Todos estes nomes Deixam-me indiferente Pois suas
distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo.
Se não está em parte nenhuma, Como me aperceberei dela?
Se ela vai e volta, não sei Onde repousa. Se vagueia, Ora
aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece
instável no grande Vácuo. Aqui, o saber mais elevado É
ilimitado. O que concede às coisas Sua razão de ser, não
pode limitar-se pelas coisas.
Assim, quando falamos em «limites», Ficamos presos às
coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se
«plenitude».
O ilimitado do limitado chama-se «vazio». O Tao é a fonte
de ambos. Mas não é, em si, Nem a plenitude, nem o vazio.
O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste,
Mas não é nem a renovação, nem o desgaste.
Produz o ser e o não-ser,
Mas não é nem um, nem outro.
O Tao congrega e destrói,
Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo».
A LUZ DAS ESTRELAS E O NÃO-SER
A luz das estrelas perguntou ao Não-Ser: «Mestre, vós
existis, ou não?»
Como a luz das estrelas não obtivesse qualquer resposta,
dispôs-se a vigiar o Não-Ser. Esperou para ver se o Não-Ser
aparecia.
Manteve seu olhar fixo no profundo Vácuo, esperando para
tentar ver uma sombra do Não-Ser.
Olhou durante todo o dia, e nada viu. Ouvia, mas não
escutava nada. Tentava pegar, mas nada pegava.
Então, a luz das estrelas exclamou, finalmente: «É ISTO!»
«Este é o mais distante! Quem poderá alcançá-lo?
Posso compreender a ausência do Ser, Mas quem pode
compreender a ausência do Nada?
Se agora, acima de tudo isto, o Não-Ser é, Quem será capaz
de compreendê-lo?»
KENG SANG CHU
Mestre Keng Sang Chu, discípulo de Lao Tzu, tornou-se
famoso por sua sabedoria, e o povo de Wei-Lei começou a
venerá-lo como a um sábio. Ele evitava essas manifestações
e recusava os presentes que lhe ofereciam. Mantinha-se
escondido e não permitia que o visitassem. Seus discípulos
zangavam-se com o procedimento do Mestre, pois desde os
tempos de Yao e de Shun, era tradição dos sábios aceitar a
veneração e, desse modo, exercer uma boa influência.
Respondeu Mestre Keng:
«Vinde, meus filhos, ouvi,
Se um animal suficientemente grande
Para engolir uma carroça
Descesse de sua floresta na montanha,
Não escaparia à armadilha do caçador.
Se um peixe suficientemente grande
Para engolir uma embarcação
Deixasse empurrar-se pela maré,
Até as formigas o destruirão.
Assim, os pássaros voam a grandes alturas,
Os animais permanecem
Em solidões inatingíveis,
A perder de vista; e os peixes,
Ou as tartarugas, vão até em baixo,
Até o mais inferior.
O homem que respeita um pouco a sua pessoa
Mantém escondida a sua carcassa,
Esconde-se o mais que possa.
Por que louvar reis como Yao ou Shun?
Sua moralidade produziu algum bem?
Fizeram uma cavidade na parede
E deixaram-na encher-se de vegetação.
Contaram os cabelos de sua cabeça
Antes de penteá-los.
Contaram cada grão de arroz
Antes de cozinhar o seu jantar.
Qual o bem que proporcionaram ao mundo
Com suas distinções escrupulosas?
Se os virtuosos são honrados,
O mundo encher-se-á de ladrões.
Não podeis tornar os homens bons ou honestos
Louvando a virtude e o saber.
Desde os dias do piedoso Tao e do virtuoso Shun
Todos tentaram enriquecer-se:
Um filho matará o pai para obter dinheiro,
Um ministro assassinará o soberano
Para satisfazer sua ambição.
Em pleno dia assaltam-se mutuamente,
À meia-noite derrubam os muros:
A raiz de tudo isso foi plantada
Nos tempos de Yao e de Shun.
Os galhos crescerão durante mil anos,
E daqui a mil anos
Os homens se entredevorarão vivos!»
O DISCÍPULO DE KENG
Um discípulo queixava-se a Keng: «Os olhos dos homens
parecem todos iguais, Não consigo ver neles qualquer
diferença; Ainda assim alguns homens são cegos; Seus olhos
não distinguem. Os ouvidos dos homens parecem todos
iguais, Não percebo neles qualquer diferença; Ainda assim
alguns homens são surdos, Seus ouvidos não ouvem. As
mentes de todos os homens têm a mesma natureza, Não
percebo nelas qualquer diferença; Mas o louco não pode
fazer
Da mente de outro a sua própria. Aqui estou, aparentemente
como os demais discípulos, Mas com uma diferença: Eles
percebem o que vós dizeis e o põem em prática; Eu não
posso.
Vós me dizeis: Mantenha o ser calmo e seguro, Mantenha
sua vida concentrada em seu próprio centro. Não permita
que seus pensamentos, Sejam perturbados. Mas, embora
tente o mais possível, O Tao é apenas uma palavra em meus
ouvidos.
Ela não tange os sinos lá dentro».
Replicou Keng Sang: «Nada mais tenho a dizer.
As garnizés não chocam ovos de gansos,
Embora a ave de Lu possa chocar.
Não é tanta a diferença de natureza
Como a diferença de capacidade.
Minha capacidade é muito fraca
Para que possa transformá-la.
Por que não ir ao sul
E ver Lao Tzu?»
O discípulo apanhou alguns mantimentos,
Viajou sete dias e sete noites
Só,
E aproximou-se de Lao Tzu.
Lao perguntou-lhe: «Você vem de Keng?»
«Sim», respondeu o estudante.
«Quem são todos aqueles que trouxe consigo?»
O discípulo virou-se para olhar.
Ninguém. Pânico!
Lao disse-lhe: «Você não compreende?»
O discípulo curvou a cabeça. Confusão!
Depois houve um suspiro. «Infelizmente,
Esqueci a resposta».
(Mais confusão). «Esqueci também minha pergunta».
Lao disse-lhe: «O que está tentando dizer?»
O discípulo: «Quando não sei o que dizer, as pessoas
Tratam-me como um tolo. Quando sei, o saber causa-me
atrapalhações.
Quando não consigo fazer o bem, firo outras pessoas.
Quando faço o bem, firo-me a mim mesmo. Se evito
cumprir com a minha obrigação, Fico negligente,
Mas, se a cumpro, fico arruinado.
Como fugir dessas contradições?
Este é o motivo por que vim até o senhor».
Lao Tzu respondeu-lhe:
«Um instante atrás
Olhei no fundo de seus olhos.
Vi que estava cercado
De contradições. As suas palavras
O confirmam.
Você está muito aterrorizado,
Como um filho que perdesse
O pai e a mãe.
Está tentando medir
O meio do oceano
Com uma vara de seis pés.
Perdeu-se e está tentando
Reencontrar seu caminho de volta
Ao seu verdadeiro eu.
Nada encontra a não ser
Sinais ilegíveis
Apontando em todas as direções.
Tenho pena de você».
O discípulo pediu para ser admitido, Mudou-se para uma
cela e lá Meditou,
Tentando cultivar qualidades
Que achava desejáveis
E livrar-se de outras
Que não apreciava.
Dez dias assim procedeu!
Desespero!
«Miserável», disse-lhe Lao.
«Tudo bloqueado!
Agrilhoado em nós! Tente
Livrar-se!
Se suas obstruções
Estão do lado de fora,
Não se esforce
Por agarrá-las uma a uma
E lançá-las fora.
Impossível! Aprenda
A ignorá-las.
Se estão dentro de si,
Não conseguirá destruí-las uma a uma,
Mas poderá evitar
Que surtam efeito.
Se estão tanto externa como internamente,
Não se esforce
Por apegar-se ao Tao —
Espere apenas que o Tao
Se apegue a você!»
O discípulo resmungou:
«Quando um fazendeiro fica doente
E outros fazendeiros vêm visitá-lo,
Se, ao menos, ele puder contar-lhes
O que está acontecendo
A sua doença não se torna tão ruim.
Mas, quanto a mim, na minha procura do Tao,
Sou como um doente que toma o remédio
Que o põe dez vezes pior.
Apenas diga-me
Os primeiros elementos.
Ficarei satisfeito!»
Respondeu-lhe Lao Tzu:
«Pode você abraçar o Uno
E não perdê-lo?
Pode prever as coisas boas e más
Sem a concha da tartaruga Nem as palhas?
Pode repousar onde há repouso?
Sabe quando parar?
Pode cuidar de sua vida
Sem preocupações, sem desejar relatórios
De como outros estão progredindo?
Pode ficar firme sobre seus pés?
Pode fazer reverências?
Pode ser como um garoto
Que chora todo o dia
E não fica com dor de garganta?
Ou bate constantemente com a mão
Sem que fique machucada?
Ou que permanece sempre de olhos fitos
Sem ficar com dor nos olhos?
Você deseja os primeiros elementos?
A criança os tem.
Livre de preocupações, desinteressada de si,
Age irrefletidamente,
Fica onde a colocam, não sabe o porquê,
Não tenta buscar a solução das coisas,
Mas apenas as segue,
É parte da corrente.
São esses os primeiros elementos!»
Perguntou-lhe o discípulo: «É isto a
perfeição?»
Lao respondeu-lhe: «Não.
É apenas o início.
Isto é o que derrete o gelo.
«Isto o capacita
A desaprender,
De modo que possa ser conduzido pelo Tao,
Ser um filho do Tao.
«Se persistir em tentar
Atingir o que nunca se atinge
(Esta é a dádiva do Tao!)
Se persistir em se esforçar
Para obter o que o esforço não consegue;
Se persistir em raciocinar
O que não pode ser compreendido,
Você se destruirá
Pelo próprio objeto que procura.
«Saber quando parar
Saber quando não poder ir mais adiante
Por suas próprias ações,
Este é o ponto de partida como deve ser!»
A TORRE DO ESPÍRITO
O espírito possui uma torre inexpugnável
Que nenhum perigo ameaça
Desde que a torre seja guardada
Pelo Protetor invisível
Que age sem saber e cujas ações
Perdem-se quando são deliberadas,
Reflexivas e intencionais.
O inconsciente
E toda a sinceridade do Tao
São perturbados por qualquer esforço
De demonstração autoconsciente.
Todas essas demonstrações
São mentirosas.
Quando nos exibimos
Dessa maneira ambígua
O mundo exterior explode
E nos aprisiona.
Não somos mais protegidos
Pela sinceridade do Tao.
Cada novo ato
É um novo erro.
Se os atos são públicos,
Feitos à luz do dia,
Seremos punidos pela humanidade.
Se são privados
E secretos,
Seremos punidos
Pelos espíritos.
Deixe cada um compreender
O sentido da sinceridade
E proteger-se contra o exibicionismo!
Ficará em paz
Com a humanidade e os espíritos
E agirá corretamente, despercebido,
Em sua própria solidão,
Na torre de seu espírito.
A LEI INTERIOR
Aquele cuja lei reside dentro de si
Caminha na obscuridade.
Seus atos não se influenciam
Pela aprovação nem pela condenação.
Aquele cuja lei reside fora de si
Dirige sua vontade ao que
Reside além de seu controle
E procura
Estender suas forças
Acima das coisas.
Aquele que caminha na obscuridade
Tem a luz para guiá-lo
Em todos os atos.
Aquele que procura estender seu controle
Nada mais é do que um operador.
Enquanto pensa que está sobressaindo
Aos outros,
Os outros vêem-no apenas
Lutando, esticando-se,
Para ficar na ponta dos pés.
Quando se esforça para estender seu domínio
Sobre os objetos,
Estes tomam conta dele.
Aquele que é controlado pelos objetos
Perde o domínio de seu próprio interior:
Se não dá maior valor a si mesmo,
Como pode dar valor aos outros?
Se não mais consegue dar valor aos outros,
Abandona-se.
Nada mais possui!
Não existe arma mais fatal que a vontade!
A arma mais pontiaguda
Não lhe é comparável!
Não há assaltante mais perigoso
Que a Natureza (Yang e Yin).
Apesar de que não se identifica à natureza
Que causa a desgraça:
É a própria vontade humana!
AS DESCULPAS
Quando um homem pisa no pé de um estranho
No mercado,
Desculpa-se amavelmente
E dá uma explicação
(«Esta praça está Tão apinhada de gente!»).
Se um irmão mais velho
Pisa no pé do irmão mais moço,
Diz: «Desculpe!»
E fica por isso mesmo.
Quando um pai
Pisa no pé do filho,
Não lhe diz nada.
A perfeita sabedoria
Não é premeditada.
A maior delicadeza
É livre de qualquer formalidade,
A conduta perfeita
É livre de preocupação.
O amor perfeito
Dispensa as demonstrações.
A perfeita sinceridade não oferece
Qualquer garantia.
ACONSELHANDO O PRÍNCIPE
O recluso Hsu Su Kwei aproximou-se do Príncipe Wu.
O Príncipe ficou satisfeito. «Desejava vê-lo»,
Disse-lhe, «há muito tempo. Diga-me
Se estou agindo corretamente.
Quero amar meu povo e, pelo exercício da justiça,
Pôr fim à guerra. Será isso o suficiente?»
«Absolutamente», disse-lhe o recluso. «Seu 'amor' por seu
povo
Coloca-o num perigo fatal. Seu dom da justiça é a raiz
De guerra sobre guerra! Suas intenções magnânimas
Terminarão em desastre!
«Se você sai a 'realizar algo superior'
Está apenas se ludibriando.
Seu amor e sua justiça
São fraudulentos.
São meros pretextos
Para auto-afirmação, para agressão.
Uma ação proporcionará outra
E no fluxo dos acontecimentos
Suas intenções obscuras
Tornar-se-ão evidentes.
«Você julga praticar a justiça. Se tem êxito
O próprio sucesso causará mais conflitos.
Por que toda essa guarda
Em posição de sentido
No portão do palácio, à volta do altar do templo,
Por toda parte?
«Você está em guerra consigo mesmo!
Não acredita na justiça,
Somente no poder e no sucesso.
Se vencer
Um inimigo e anexar seu país,
Estará com muito menos paz
Consigo do que está agora.
Nem as suas paixões o deixarão
Sentar-se calmamente.
Você lutará uma vez,
E mais outra, com o objetivo
De uma «justiça» mais perfeita!
«Abandone seu plano
De ser um «monarca querido e justo».
Tente ouvir
As exigências da verdade interior.
Pare de escandalizar a si mesmo e a seu povo
Com essas obsessões!
Seu povo respirará aliviado, afinal.
Viverá,
E a guerra terminará por si mesma!»
VIDA ATIVA
Se um perito não tem qualquer
Problema a incomodá-lo, torna-se infeliz!
Se o que ensina o filósofo não é combatido,
Ele definha!
Se os críticos não têm contra quem investir
Suas críticas, sentem-se infelizes.
Tais pessoas são prisioneiras do mundo dos objetos.
O que deseja sucessores procura o poder político.
O que deseja reputação mantém um cargo.
O homem forte procura pesos para levantar.
O corajoso procura um motivo para poder
Demonstrar bravura.
O que empunha a espada deseja uma batalha,
Para poder manejar sua espada.
Os homens que ultrapassaram certa idade
Preferem uma aposentadoria digna,
Para que pareçam pessoas profundas.
Homens com experiência da lei procuram causas
Difíceis para estender a aplicação das leis.
Liturgistas e músicos gostam
Dos festivais em que exibem seus talentos para cerimônias.
O benevolente e o consciencioso estão sempre
Procurando oportunidades para demonstrar a virtude.
Onde estaria o jardineiro se não houvesse mais erva
daninha?
O que seria dos negócios se não existisse o mercado dos
tolos?
Onde estariam as massas se não houvesse pretexto para
aglomeração e barulho?
O que seria do trabalho se não houvesse objetos supérfluos a
fabricar?
Produza! Obtenha resultados! Faça fortuna! Faça amigos!
Faça inovações! Ou morrerá de desespero!
Os que se aprisionam na maquinaria do poder não se
alegram, a não ser na atividade e na modificação — o
estridar das máquinas! Quando uma ocasião para agir se
apresenta, são impelidos à ação; não se podem ajudar mu-
tuamente. São movidos inexoravelmente, como a máquina
de que constituem uma peça. Prisioneiros no mundo dos
objetos, não têm escolha, a não ser se submeterem às
exigências da matéria! São pressionados e esmagados por
forças externas, pela moda, pelo mercado, pelos
acontecimentos, pela opinião pública. Nunca, em toda a sua
vida, recuperam o bom-senso! A vida ativa! Que lástima!
A MONTANHA DOS MACACOS
O Príncipe de Wu foi de barco à Montanha dos Macacos.
Logo que os macacos o viram, fugiram em pânico, e
esconderam-se nos topos das árvores.
Um macaco, porém, estava inteiramente despreocupado,
pulando de galho em galho — uma extraordinária
demonstração!
O Príncipe atirou uma flecha no macaco, mas este, como
um malabarista, pegou a flecha no ar.
Com isto, o Príncipe ordenou a seus companheiros que
atacassem em conjunto.
Num instante o macaco foi atingido por várias flechadas e
caiu morto.
Em seguida, voltou-se o Rei para o seu companheiro Yen
Pu'i: «Viu o que aconteceu?», disse-lhe. «Este animal exibiu a
sua esperteza. Confiou em sua própria habilidade. Pensava
que ninguém fosse pegá-lo. Lembre-se disto! Não confie no
valor nem no talento, quando lidar com os homens!»
Quando retornaram a casa, Yen Pu'i tornou-se discípulo de
um sábio, para libertar-se de tudo que o fizesse se destacar.
Renunciou a todos os prazeres. Aprendeu a esconder toda a
«diferença».
Em breve ninguém no Reino sabia o que pensar dele.
E assim, passaram a reverenciá-lo com temor. "
Esta fábula serve para ilustrar a "via intermediaria" de
Chuang Tzu, entre não ser dotado de qualidades evidentes,
e, ainda assim, não ser isento de qualidades. O objetivo
desejado é possuí-las, mas como se não as possuíssemos, é
excedê-las com uma perfeição que não é própria de nós,
porém do Tao. Desta maneira, não se é admirado, nem
mesmo diretamente "reconhecido", mas, apesar disto,
tornar-se-á uma força oculta na sociedade.
A BOA SORTE
Mestre Ki teve oito filhos. Um dia, chamou um
fisiognomonista, Enfileirou os garotos, e disse: «Estude seus
rostos. Diga-me qual deles é o afortunado».
Depois do exame, o especialista disse-lhe: «Kwan é o
afortunado».
Ki ficou contente e surpreso.
«De que modo?», perguntou.
O fisiognomonista respondeu-lhe:
«Kwan comerá carne e beberá vinho
Até o fim dos seus dias,
Às expensas do governo».
Ki interrompeu-o, em prantos:
«Meu pobre filho! Meu pobre filho!
O que fez para merecer esta infelicidade?»
«Como?», exclamou o fisiognomonista, «Quando alguém
compartilha As refeições de um príncipe As bênçãos caem
Sobre toda a sua família, Principalmente o pai e a mãe! Você
irá recusar A boa sorte?»
Ki respondeu: «O que torna A sorte 'boa'?»
A carne e o vinho são para a boca e o ventre. A boa sorte
está só na boca. E no ventre?
Estas «refeições do príncipe» — Como as compartilharemos?
«Não sou pastor
E, de repente, um cordeiro nasce em minha casa.
Não sou nenhum guarda-florestal
E as codornas nascem em meu quintal.
Estes são terríveis presságios!
«Não tenho tido nenhum desejo
Nem para mim, nem para meus filhos,
A não ser vaguear livremente
Através da terra e do céu.
«Não procuro qualquer alegria
Nem para eles, nem para mim,
Apenas a alegria dos céus,
Os simples frutos da terra.
«Não busco vantagens para mim, não faço planos,
Não empreendo nenhum negócio. Apenas busco o Tao,
com os meus filhos.
«Não briguei com a vida!
Agora surgiu esta promessa melindrosa
De que jamais busquei:
'A boa sorte!'
«Todo efeito estranho provém de uma causa estranha.
Meus filhos e eu nada fizemos para merecer isto.
É um castigo imperscrutável. Portanto tenho de chorar!»
E então aconteceu que, algum tempo depois, Ki enviou seu
filho em viagem. O jovem foi assaltado por bandidos que
resolveram vendê-lo como escravo.
Achando que não podiam vendê-lo como estava,
amputaram seus pés. Assim, incapaz de fugir, tornou-se um
bom negócio. Venderam-no ao governo de Chi, e ele foi
empregado como cobrador de pedágio, na estrada. Tinha
carne e vinho, durante o resto de sua vida, à custa do
governo.
Desta maneira aconteceu que Kwan se tornasse o
afortunado!
A FUGA DA BENEVOLÊNCIA
Hsu Yu encontrou-se com um amigo, quando deixava a
capital, na estrada principal que conduzia à fronteira mais
próxima.
«Aonde vai?», perguntou o amigo.
«Estou me afastando de King Yao. Ele está tão obcecado
com idéias sobre a benevolência que tenho medo de que
algo de ridículo resulte de tudo isso. De qualquer maneira,
seja isto engraçado ou não, esse tipo de coisa terminará com
cada qual se entredevorando.
«No momento presente, existe uma grande onda de
solidariedade. As pessoas acham que são amadas e reagem
com entusiasmo. Estão todas atrás do soberano, porque
acham que ele está fazendo com que fiquem ricas. O elogio
é barato e todos competem para obter favores. Mas, dentro
em pouco, terão de aceitar algo que não é de seu agrado e
tudo isso irá pelos ares.
«Quando a justiça e a benevolência estão em jogo, pouca
gente se preocupa realmente com o bem alheio, mas a
maioria sabe que isto é bom, pronto a ser explorado.
Aproveitam-se da situação. Para eles, a benevolência e a jus-
tiça são arapucas para pegar passarinhos. Assim, a
benevolência e a justiça rapidamente se confundem com a
fraude e a hipocrisia. Depois, todos começam a duvidar. E aí,
então, começa realmente o problema.
«O Rei Yao sabe como os assessores corretos, e cumpridores
dos deveres proporcionam o bem à nação, mas não sabe o
mal que surge dessa correção: é a fronteira atrás da qual os
larápios agem mais facilmente. Mas só vendo a situação
objetivamente é que poderá verificar o que lhe estou
dizendo.
«Existem três classes de pessoas que devem ser consideradas:
os joguetes, os sanguessugas e os manipuladores.
«Os primeiros adotam a linha de algum líder político e
reptem seus pronunciamentos de cor, acreditando que
sabem alguma coisa, confiantes que estão progredindo
bastante e muito satisfeitos com o som de suas próprias
vozes. São uns tolos completos. E, sendo tolos, submetem-
se, assim, à linha de conduta do próximo.
«Os sanguessugas são como piolhos no corpo de uma porca.
Correm rapidamente aonde as cerdas sãos finas, e isto se
converte no seu palácio e no seu parque. Deliciam-se nas
juntas, entre os dedos dos pés da porca, à volta das
articulações e das tetas, ou debaixo da cauda. Aqui, nesse
lugar, entrincheiram-se, e imaginam que dali não vão sair,
haja o que houver. Mas nunca podem imaginar que, um dia,
o açougueiro virá com um facão e a machadinha no ar.
Reunirá a palha seca e acenderá, a fim de chamuscar as
cerdas, e queimar os piolhos. Esses parasitas aparecem
quando a porca aparece e desaparecem quando a porca
morre.
«Enfim, os manipuladores, são homens como Shun.
«O carneiro não é atraído pelas formigas, mas estas são
atraídas ao carneiro, porque ele é alto e cheira mal. Dessa
maneira, Shun era um manipulador vigoroso e afortunado e
as pessoas, por isso, gostavam dele. Três vezes se locomoveu
de uma cidade para a outra, e cada vez que assim o fazia a
sua residência se transformava em capital. Por fim, ele se
mudava para a selva e cem mil famílias iam com ele a fim de
colonizar o local.
«Finalmente, Yao levantou a idéia de que Shun deveria ir
para o deserto, para ver se poderia fazer lá alguma coisa.
Embora Shun, nessa época, estivesse mais velho e a sua ca-
beça estivesse ficando fraca, não podia recusar-se a fazer
isso. Não podia pensar em se aposentar. Esquecera-se de
como parar a sua carroça. Era um manipulador, e nada mais!
«O homem de espírito, por outro lado, odeia ver as pessoas
reunidas a seu redor. Evita a multidão. Pois, onde existem
muitos homens, há também muitas opiniões e pouca
concórdia. Nada há a ganhar quando apoiamos esses
cabeças-ôcas, que se destinam a acabar brigando uns contra
os outros.
«O homem de espírito não é nem muito íntimo de
ninguém, nem muito distante. Interiormente, permanece
atento e mantém o equilíbrio para não entrar em conflito
com ninguém. Este é o homem verdadeiro. Ele deixa as
formigas serem inteligentes. Deixa o carneiro agitar-se até
ficar cheirando mal. Por sua própria vontade, ele imita os
peixes que nadam despreocupados, ladeados por um ele-
mento amigo e preocupando-se apenas com o que é seu.
«O homem verdadeiro vê o que o seu olho vê e nada
acrescenta do que ali não se encontra. Ouve o que o ouvido
escuta e não percebe coisas imaginárias, exagerando ou
subtraindo a realidade. Compreende as coisas como devem
ser entendidas e não se preocupa, nem com os significados
obscuros, nem com os mistérios. O seu curso, portanto, é
uma linha reta. Ainda assim, pode modificar a sua direção
toda vez que as circunstâncias assim o exigirem».
O TAO
Galos cantam,
Cachorros latem,
Isso todos sabem.
Mesmo os mais sábios
Não distinguem
De onde vêm essas vozes
Nem explicam
Por que os cachorros latem e os galos cantam,
Quando o fazem.
Além do menor dos menores
Não há medida.
Além do maior dos maiores,
Também não.
Onde não há medida
Não há a «coisa».
Neste vazio
Você fala de «causa»
Ou de «chance»?
Você fala de «coisas»
Onde há «não-coisas».
Dar nome a um nome
É delimitar uma «coisa».
Quando olho além do princípio
Não encontro medida.
Quando olho além do fim,
Também não.
Onde não existe a medida
Não há nenhum princípio de nenhuma «coisa».
Você fala de «causa» ou de «chance»?
Você fala de princípio de alguma «coisa».
O Tao existe?
Então é uma «coisa que existe». Poderá êle «não-existir» ? Há
então «a coisa que existe» Que «não pode não existir»?
Nomear o Tao
É nomear a não-coisa.
O Tao não é o nome
De «um existente».
«Causa» e «chance»
Nada significam para o Tao.
O Tao é um nome
Que indica
Sem definir.
O Tao está além das palavras
E além das coisas.
Não se exprime
Nem por palavras,
Nem pelo silêncio.
Onde não existe
Nem mais as palavras,
Nem o silêncio,
O Tao é apreendido.
O INÚTIL
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu: «Todo o seu ensinamento está
baseado no que não tem utilidade».
Replicou-lhe Chuang:
«Se você não aprecia o que não tem utilidade,
Não pode começar a falar sobre o que é útil.
Por exemplo, a terra é larga e vasta,
Mas de toda a sua extensão, o homem utiliza
Apenas poucas polegadas,
Sobre as quais se mantém de pé.
Suponhamos, agora, que você tire
Tudo o que ele realmente não usa
De modo que, ao redor de seus pés,
Um golfo se abra
E êle fica de pé no vazio,
Sem nada de sólido,
Com exceção do que se encontra bem debaixo
de cada pé. Por quanto tempo poderá utilizar o que está
usando?»
Disse Hui Tzu: «Cessaria de servir a qualquer finalidade».
Concluiu Chuang Tzu: «Isto prova
A absoluta necessidade
De que «não tem utilidade»
MEIOS E FINS
O guarda da capital de Sung tornou-se um carpideira tão
perito, após a morte do pai, e emagreceu tanto, pelos jejuns
e austeridades, que foi promovido a um alto cargo, para que
servisse de modelo de observância ritualística.
Disso resultou que os seus imitadores levaram esse
despojamento a tal ponto que metade deles veio a falecer.
Os outros não foram promovidos.
O objetivo de uma armadilha de peixes é pegar peixes e,
quando estes caem na armadilha, ela é esquecida.
O objetivo de uma armadilha para coelhos é pegar coelhos.
Quando estes são agarrados, esquece-se a armadilha.
O objetivo das palavras é transmitir as idéias. Quando estas
são apreendidas, as palavras são esquecidas.
Onde poderei encontrar um homem que se esqueceu das
palavras? Com êle é que gostaria de conversar.
A FUGA DA SOMBRA
Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar
sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias
pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método
encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de
outra.
Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o
pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sombra o
acompanhava, sem a menor dificuldade.
Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como
devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até
que caiu morto por terra.
O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse
num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se
sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas
pegadas.
FUNERAIS DE CHUANG TZU
Quando Chuang Tzu estava morrendo, seus discípulos
começaram a combinar um monumental enterro para ele.
Mas dizia Chuang: «Como caixão terei o céu e a terra; o sol e
a lua serão os símbolos do jade, dependurados a meu lado; os
planetas e as constelações brilharão como jóias à minha volta
e todos os seres se apresentarão como carpideiros ao meu
despertar. De que mais preciso? Tudo já foi devidamente
providenciado !»
Mas diziam os outros: «Tememos que os corvos e as gralhas
devorem o nosso Mestre».
«Bem», respondeu-lhes Chuang Tzu, «acima da terra serei
devorado pelos corvos e pelas gralhas; abaixo, pelas formigas
e vermes. De qualquer maneira me devorarão. Por que sois
tão parciais para com os pássaros?»
GLOSSÁRIO
Chih - Uma das quatro virtudes básicas de Ju. Identifica-se
com a sabedoria.
Ju - A filosofia ética e escolástica dos Confucianos.
Jen - Uma das quatro virtudes básicas da ética confuciana,
identifica-se com a compaixão que faz com que cada um se
identifique com as alegrias e as dificuldades dos outros.
Li - Outra das quatro virtudes básicas de Ju. Identifica-se
com a compreensão e com a prática correta dos ritos de
cerimônias.
Tao - A Via, o Absoluto, o Princípio Último.
Tien - O Céu.
Wu Wei - A não-ação, a vida não volitiva, que obedece ao
Tao.
Yi - Uma das quatro virtudes básicas de Ju. Identifica-se com
o senso de justiça, de responsabilidade, de dever, e de
obrigação para o próximo.
Ying Ning - A Tranqüilidade na ação da não-ação: um
conceito idealizado por Chuang Tzu.
Zen ou Ch'an - Escola do Budismo Mahayana que pratica a
intuição direta na escala do ser.
Lançamento Gênesis do Conhecimento A Via de Chuang Tzu - Thomas Merton links ao final da mensagem digitalização - Vitório formatação e revisão - Lucia Garcia Sinopse: Chuang Tzu (século III a.C.) é, sob muitos aspectos, o mais espiritual dos filósofos chineses. E considerado o maior representante do tauísmo, uma vez que Lau Tseu, o seu fundador, é uma figura legendária e os seus escritos foram divulgados na China através das interpretações de Chuang Tzu. Chega ele até a ser considerado pelos modernos comentadores como o maior filósofo asiático, pois foi também através de seus escritos que o Budismo Indiano se transformou, na China, na doutrina completamente original e única hoje conhecida pelo seu nome japonês: o Zen Chuang Tzu revela excepcional sabedoria, possui grande senso de sátira, do paradoxo e um penetrante olhar dentro das próprias raízes do ser. Trabalhando a partir de traduções já existentes, o Pe. Thomas Merton compôs, neste livro, uma série de versões pessoais de alguns trechos clássicos de Chuang Tzu. Esta re-criação de um sábio antigo por um moderno místico e em nossa linguagem contemporânea, traz para o homem médio ocidental uma visão extraordinária do pensamento oriental que é, essencialmente, intemporal. O texto do livro é precedido de uma apresentação do significado do tauísmo para o mundo de hoje, redigida pelo próprio Merton,o que torna o livro ainda mais interessante e original para o público brasileiro, tão necessitado de subsídios para uma reflexão em profundidade.
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