A. J. HARTLEY
A MÁSCARA DE
ATREU
TRADUÇÃO
ROSANA TELES
Landscape
2006
Para Sebastian, que nos foi revelado primeiro pelo oráculo
cibernético em Delfos...
AGRADECIMENTOS
O autor gostaria de agradecer:
Às pessoas que deram apoio a meu trabalho no passado:
Jane Hill, David Raney, Jaime Cortez, Alan McNee, Douglas
Brooks-Davies, Jonathan Mulrooney e — especialmente —
Stacey Glick, que nunca desistiu.
Às pessoas que contribuíram diretamente para que este
romance se tornasse realidade, fazendo sua leitura e
contribuindo com informações valiosas:
Gary Hibbert, Kimily Willingham, Cary Mazer, Ron Tipton,
Jonathan Brenton, Natalee Rosenstein e o Museu Nacional
de Arqueologia de Atenas.
Às pessoas que fizeram ambas as coisas:
Meu irmão Chris; meus pais, Frank e Annette; e sobretudo
minha esposa, cuja paciência com todas as minhas anotações
vai além do entendimento.
PRÓLOGO
Alemanha, 1945
Andrew Mulligrew prendeu com mais força os fones de
ouvido à cabeça. Devia ter ouvido errado. Considerando o
barulho do motor do Sherman, era de espantar que ele
ouvisse alguma coisa.
— Repita, por favor — ele gritou.
— Coluna alemã dirigindo-se rapidamente para o sul —
repetiu o comandante. — Liderada por um veículo blindado
seguido de alguma coisa grande, sem torre. Talvez um
Jagdpanther.
Mulligrew sentiu um aperto no coração. Fora exatamente o
que ouvira. Mesmo com os ruídos e rangidos das rodas do
tanque, ele pôde ouvir o silêncio na estática do rádio.
Alguém, talvez Williams do outro lado da rodovia à sua
esquerda — o pelotão inteiro havia escrito seus nomes na
carcaça do tanque —, perguntou o que mais havia no
comboio. A sua voz era uma mistura de medo e resignação.
— Alguns caminhões, uma meia-lagarta e pelo menos mais
dois tanques, provavelmente um Panzer IV e um Panther.
Quatro Sherman, pensou Mulligrew — um deles se
movendo com metade da velocidade — e dois Stuart M5
contra os melhores blindados alemães, inclusive um tanque
que não tinham a menor condição de enfrentar, a não ser
que se aproximassem o bastante para poder cuspir neles.
Todos os tanques alemães tinham armas capazes de obrigar
que parassem a 500 metros de distância. O Jagdpanther seria
capaz de estraçalhá-los a uma distância três vezes maior.
O que, em nome de Deus, pretendiam os alemães ao mandar
um pelotão tão bem equipado como esse para o sul, quando
estavam usando todos os seus homens e suas armas para
atrasar o ataque dos Aliados ao norte? Berlim estava prestes a
cair e talvez já tivesse caído, mas uma unidade de choque
fora mandada rápida e diretamente para o sul — que Deus o
ajudasse — ao encontro de seu pelotão exausto e
arrebentado pela guerra.
O tanque de Mulligrew e o que sobrara do pelotão fora
separado da Divisão de Tanques 761 quando, cinco dias
antes, se dirigiam para o leste por Regensburgo, às margens
do Danúbio. Estavam a mais ou menos 120 quilômetros a
nordeste de Munique, a uma distância ainda menor da
Áustria e do que fora a Tchecoslováquia antes do ataque
alemão e bem próximos da fronteira com a Suíça. Era um
local cheio de florestas e montanhas com picos cobertos de
neve e castelos longínquos e românticos. Num momento,
avançavam com o resto do grupo, finalmente começando a
acreditar que o pesadelo vivido entre a Normandia e
Ardenes, a caminho da Alemanha, estava prestes a chegar a
um final vitorioso e, no próximo, estavam encurralados pela
artilharia inimiga. O pelotão de Mulligrew recebera ordens
para se separar e cortar as linhas de suprimento inimigas,
mas, dois dias depois, encontrava-se completamente
sozinho. O resto do batalhão tivera de avançar com a
máxima velocidade, adiantando-se com o resto do exército,
a caminho de Steyria no rio Enns para encontrar os russos.
Mulligrew e o resto da divisão foram sozinhos para o norte.
Ao passarem por estradas congestionadas por refugiados, ele
começara a pensar que tinham ficado com o trabalho mais
fácil. Desde Regensburgo, não tinham dado um tiro sequer e
começavam a acreditar que não precisariam mais atirar.
Afinal, tudo levava a crer que a guerra havia terminado.
E agora isso.
Mulligrew virou-se para o circuito interno do tanque e
começou a gritar ordens, girando o nariz do Sherman e
pedindo munição pesada. Tinham acabado de sair da estrada
quando viram o veículo blindado vindo na direção deles.
Vinha a pelo menos 80 quilômetros por hora e derrapava
bastante na tentativa de encontrar cobertura, as armas de sua
torre se aprontando. Eles podiam ouvir as rajadas de
metralhadora atingindo a torre do Sherman. Mas o que tirou
a cor de seu rosto foi o que viu atrás do carro blindado.
O Jagdpanther era enorme, baixo e ameaçador como um
crocodilo ou um tubarão, e sua blindagem frontal tinha boa
inclinação e vários centímetros de largura. Mesmo a curta
distância, a arma de 76 milímetros do Sherman não teria
qualquer chance contra ele. E se o tanque alemão apontasse
suas 88 para eles, estariam mortos. Simplesmente mortos.
Mulligrew gritou ordens para que o tanque fosse levado ao
campo e para que as torres fossem posicionadas. A única
chance que tinham era passar pelo Jagdpanther chocando-se
contra ele — várias vezes, e de uma distância bem próxima
— do outro lado. Os Sherman que vinham atrás teriam de
dar conta dos outros tanques alemães.
Eles estavam saindo da trincheira ao lado da estrada quando
o 88 abriu fogo, causando uma enorme nuvem de fumaça e
fagulhas flamejantes que cobriram o visor de Mulligrew,
fazendo-o encolher-se involuntariamente. Demorou uns
dois segundos para ter certeza de que não tinham sido
atingidos. Em seguida, estava aos berros, ordenando que
abrissem fogo, consciente de que a torre do tanque de
Williams já fora atingida por um tiro certeiro, abrindo um
buraco do tamanho de uma lata de lixo na frente, as balas
ricocheteando do lado de dentro...
Dezessete longos minutos depois, Mulligrew estava parado
na parte traseira do caminhão alemão, olhando para os
fragmentos fumegantes que sujavam a estrada e os campos
ao redor. Dois dos Sherman e um dos Stuart tinham sido
destruídos; um terceiro ficara seriamente avariado. Williams
e todos os membros de sua equipe — com exceção de um —
estavam mortos, assim como Smith, Jenkins e Pole. Rogers
perdera uma perna e Lumpkin ficara cego de um olho. Os
dois estavam felizes por ter escapado.
Os alemães mal haviam parado. Em vez de reposicionar-se,
avançar e tentar subjugá-los com suas armas mais potentes,
tentaram apenas passar por eles como se estivessem
desesperados para não interromper a marcha. Quando os
Sherman se espalharam para tentar atacá-los pelos flancos,
não fizeram nenhum tipo de ajuste, continuando sua jornada
para o sul, expondo as laterais e a traseira daquele
monstruoso Jagdpanther, um tanque que provavelmente
teria acabado com o pelotão inteiro, se tivesse esperado que
o atacassem.
Aquilo não fazia o menor sentido.
E depois, a maneira estranha como, quando a batalha
começou a tornar-se favorável para os americanos, os
alemães haviam cuidado do caminhão, todos ao seu redor
como se estivessem decididos a protegê-lo nem que aquele
pequeno Opel fosse o único veículo a sair inteiro daquele
confronto.
— Vamos ver a causa disso tudo — disse Mulligrew.
Tom Morris, o motorista de Mulligrew, soltou o trinco da
carrocería. Seu rosto estava pálido e os olhos estavam
arregalados por causa do choque e da estranheza causados
pela batalha.
Mulligrew subiu na carrocería, passando pelo jovem alemão
que tentou impedi-lo com uma pistola, até que eles
perfuraram o caminhão com tiros de calibre .30. Lá dentro
havia um enorme caixote, marcado com a águia alemã e a
suástica. Ele pegou um pé-de-cabra da lateral de seu tanque,
golpeou a tampa e colocou seu peso sobre ela, até que
rachasse. Depois, abriu-a e ficou imóvel, olhando em
silêncio.
Que diabos?
— O que tem aí, Andrew? — perguntou Morris. — O que
está vendo?
— Não sei — respondeu Mulligrew, com a voz entrecortada
de espanto e medo. — Não sei. Uma coisa muito estranha.
— O que é?
— É melhor chamar os PMs — disse Mulligrew. — Agora
mesmo.
Mesmo fazendo isso, e apesar de toda a carnificina que
tinham acabado de enfrentar e da dor que se seguiu ao
horror inicial, Mulligrew nunca se afastou da carroceria do
caminhão. Ele ainda estava lá, olhando como que
enfeitiçado, quando as ambulâncias chegaram para levar os
corpos.
PARTE I
VELHOS OSSOS
— Ademais, os ferimentos dele, sim, cada um daqueles
ferimentos (e muitos foram os homens que, com suas armas
de bronze, o feriram) cicatrizou, mostrando o quanto os
deuses bem-aventurados ainda amam seu filho apesar de,
agora, ter ficado reduzido a um cadáver...
— Respeite os deuses — respondeu o velho — e, em nome
do seu próprio pai, tenha pena de mim... apesar de merecer
mais do que pena, pois beijei a mão do homem que
assassinou meu filho.
— Homero, A Ilíada, Livro 24.
CAPÍTULO 1
O Dia de Hoje
O homem alto e corpulento estava encostado à parede, seu
peso considerável apoiado sobre o pé que ele,
displicentemente, encostara contra o batente da porta.
— Você é uma garota extraordinária, sabe, srta. Miller? —
disse, de maneira arrastada, os olhos coleando em seu rosto
suíno e a língua mostrando-se, úmida, por entre os lábios
grossos e entreabertos.
— Eu sei — disse Deborah. Ela tinha um metro e oitenta e
quatro e parecia um esqueleto coberto de pele. Raramente
era elogiada por sua aparência. Nunca fora considerada
bonita. Extraordinária, já ouvira muitas vezes. Tempos atrás,
talvez tivesse se sentido lisonjeada. Muito tempo atrás. Esta
noite, depois de várias semanas de planejamento e muitas
horas extras de sorrisos forçados e conversa tolerante, ela se
sentia muito cansada para ser educada, mesmo com Harvey
Webster, membro proeminente da Liga Cristã dos
Executivos de Atlanta e diretor do conselho financeiro do
museu. Passava da meia-noite e ela queria ir para casa.
— Verdadeiramente extraordinária — ele repetiu,
estendendo as mãos espalmadas em direção aos quadris dela.
Ele tinha o formato de um sapo, sua pele parecia estufar e
encolher ao mesmo tempo, como um balão com água pela
metade, escorregando de um lado para o outro.
— Sr. Webster — ela disse, olhando para a mão cheia de
manchas escuras que escorregava na direção dela. — Não
acho que isso seria aconselhável.
Além disso, pensou ela, se você puser as mãos em mim, é
bem provável que eu vomite.
As mãos dele hesitaram. Em seguida, como se ele tivesse
decidido entender a recusa dela simplesmente como
timidez, retomou seu intento. Ela recuou.
— Sr. Webster — ela disse, com um sorriso um pouco mais
aborrecido. — Por favor. — Ele mudou de tática, o olhar de
soslaio transformando-se em um sorriso; mãos levadas
acima, em sinal de rendição.
— Longe de mim querer ofender — ele disse, o sorriso
tornando-se mais largo que a passagem da porta que ainda
bloqueava. — Eu queria apenas que você me levasse para
um tour, porque, como sabe, todos já foram embora.
O sorriso ficou paralisado por um segundo, e Deborah
percebeu a maquinação por trás dele. Agora, ele deixara de
ser astuto e, para um homem de 65 anos, transpirava a
presunção de um estudante trapaceiro. Presunção e, pensou
ela, um toque de ameaça.
— Um tour particular — acrescentou ele, com um sorriso
afetado para não deixar dúvidas sobre suas intenções.
Ele se comportara assim a noite toda; na verdade, ele sempre
agia assim, especialmente depois de alguns drinques. Ela se
considerava uma pessoa razoavelmente tolerante, mas sua
paciência estava chegando ao fim.
— Um outro dia, sr. Webster — ela disse. — Durante o dia
e quando eu tiver tido a chance de comprar um bom
cassetete de choque.
Ela sorriu para mostrar que estava brincando, mas não
conseguiu evitar mostrar um pouco dos dentes.
— A senhorita é muito bocuda, srta. Miller — ele disse.
— Obrigada — ela disse, aceitando o fato de que, naquela
noite, não poderia sair vencedora —, apesar de eu não ser
bocuda.
Ele suspirou e levantou as mãos pastosas, em rendição
jocosa.
— Tudo bem — ele disse, voltando a sorrir. — Estou indo
embora.
— Dirija com cuidado — ela disse, encolhendo-se um pouco
enquanto ele fazia uma última tentativa de abraçá-la.
— Devo voltar no final da semana para falar com Richard.
Então... até lá.
Ele saiu pela porta de vidro, ainda olhando para ela como se
estivesse esperando que ela mudasse de idéia e o convidasse
a voltar.
— Boa noite, sr. Webster — ela disse, pensando consigo
mesma: Seu velho bêbado e nojento.
Apesar de achar que ter forçado o velho a se retirar poderia
ter um preço talvez maior do que pudesse imaginar, ela
sentiu uma onda de alívio enquanto caminhava pela
escuridão. Webster controlava a parte financeira do museu e
tinha muita influência sobre os negociantes locais. Pelo
menos sobre a geração mais velha que atuava na área. A Liga
Cristã dos Executivos de Atlanta não impedia abertamente o
ingresso de membros negros, mas era bastante sugestivo que
uma organização daquele tipo não tivesse nenhum negro em
seus quadros — especialmente em uma cidade como
Atlanta. Deborah havia tentado comparar a presença da Liga
no museu com organizações do gênero com sócios mais
diversificados, o que não evitou que se sentisse
desconfortável toda vez que recebia seu pagamento. Talvez
ela pudesse incorporar um grupo judeu de negócios, pensou,
sentindo-se também desconfortável, como se estivesse
dilapidando sua herança, uma herança que fazia o melhor
possível para desprezar de todas as maneiras. Por que
arriscar expor a si mesma e o museu ao anti-semitismo
quando grande parte de seu lado judeu não passava de
história antiga?
Ah, por favor, ela ouviu seu pensamento. É provável que
Webster nem saiba que você é judia.
Deborah verificou se as portas do museu estavam trancadas
e caminhou rapidamente pelo saguão, por entre o esqueleto
do T. Rex e a feia proa do galeão que Richard apresentara ao
público no mês anterior, como se anunciasse que o Natal
chegaria mais cedo. Era uma mulher semidespida fundida ao
pescoço de um dragão. Dava a impressão que ela se sentiria
muito mais à vontade se estivesse pintada com pistola de ar
comprimido no tanque de gasolina de uma Harley do que
adornando a proa de um valioso galeão renascentista
espanhol, mas Richard considerava aquilo uma mistura
maravilhosamente engraçada de história e arte kitsch.
Deborah olhou para o rosto inexpressivo e as curvas
excessivas da mulher e, depois, para a parte em que se
transformava em um réptil cheio de escamas, a postura
sensual se transformando — sem muita surpresa — em uma
serpente do Éden.
Ela analisou a enorme figura serpenteante do século XVII,
com seios em forma de faróis, e deu um sorriso cansado e
cheio de autocensura.
— Richard — ela disse, em voz alta. — Eu amo você, mas
seu senso de humor é simplesmente nojento.
Ela encolheu os ombros, soltou um suspiro e fez uma pausa
para absorver o estrago feito no saguão do museu pelos
funcionários do bufê. Eles haviam deixado quatro latas de
lixo com pratos de papel que deveriam ter levado embora.
No nicho semicircular onde, três horas antes, fizera a
apresentação, ela encontrou copos para Martini de plástico,
guardanapos sujos de restos de canapés e várias manchas
pegajosas no chão encerado. Decidiu que pegaria no pé de
Richard por ter contratado o bufê Elegância e Sabor, e não
apenas por causa do gosto suspeito do foie gras, que mais
parecia presuntada.
Richard Dixon era o fundador do museu, seu principal
colecionador, maior fonte de investimento e conselheiro.
Ele era seu patrão, mentor e amigo. Nos raros momentos em
que era honesta o bastante consigo mesma para admitir, ele
se tornava o mais próximo do que tivera como pai, desde
que o seu falecera em função de problemas cardíacos
quando ela tinha 13 anos.
Vinte anos atrás, quase na mesma data de hoje.
Algumas vezes, enquanto tentava arrastar o pequeno museu
para o século XXI, negociando, no processo, com pessoas
como Harvey Webster, Richard Dixon era a única coisa que
lhe dava forças para continuar. De repente, ali sozinha, em
pé no saguão do museu, diminuída pelo tamanho do T. Rex
e iluminada apenas pela luz suave dos expositores dos novos
índios Creek, ela perguntou-se por quanto tempo mais ele,
Richard, teria forças para continuar.
E o que você faria se ele fosse embora?, pensou. Já faz 20
anos e você ainda não conseguiu superar a morte de seu pai.
Talvez tenha passado, mas não superado. Não de verdade.
Ela repreendeu-se.
— Você não devia beber em ocasiões como esta — disse,
em voz alta. — Sempre fica muito melodramática.
Olhou ao redor, tentando ver se havia mais alguma coisa a
ser feita. Seu passaporte ainda estava no cofre do escritório,
onde estivera desde que enviara, por fax, as informações
para os organizadores da exposição de antiguidades celtas
(para o caso, imaginou ela, de estar planejando deixar o país
com algumas peças de valor por baixo da blusa). Mas isso
poderia esperar até amanhã. Até lá, não pretendia ir a lugar
algum.
Deu uma olhada na correspondência, separando as contas
dos catálogos de propaganda, os envelopes pessoais dos
endereçados a Richard. Um terço foi para o lixo. Os
envelopes com o nome dela poderiam esperar; os que
tinham o nome de Richard também não pareciam ser tão
urgentes. Um deles tinha, no canto, uma pequena máscara
triangular: sem dúvida, uma carta de alguma companhia
teatral local implorando alguma coisa. Richard recebia dúzias
delas todas as semanas. A não ser pelas mais genéricas ou
grosseiras, ele respondia a todas, freqüentemente incluindo
doações insignificantes. Com seu costumeiro sorriso
tolerante, Deborah colocou as cartas na bolsa e começou a
trancar tudo. Cuidaria da correspondência na manhã
seguinte.
Ligou o alarme, deu uma olhada rápida no estacionamento
circundado por antigas magnólias do sul e preparou-se para
enfrentar o calor da noite. Estavam em junho, em pleno
verão de Atlanta, quando as noites podiam ser bem
sufocantes. Ela encontrava-se na porta. Um mendigo
estivera andando por ali nos últimos dias. Apesar de velho,
tinha olhos vivazes e intensos e resmungava em uma língua
que ela não entendia. No dia anterior, ele se esgueirara pelo
estacionamento, deslizando entre os carros como um
caranguejo enrolado, apesar do calor, em um sobretudo
pesado. Com olhos fixos, ele a seguira de modo enervante.
Mas agora não havia sinal dele ou do Jaguar cuidadosamente
polido de Webster, o que fez que ela saísse para a noite
mormacenta soltando um enorme bocejo. Apesar da
canseira e da irritação, até que fora uma boa noite.
Mas a sensação do envelhecimento de Richard permaneceu
com ela enquanto dirigia para o sul, pela rodovia
interestadual que passava pelo centro da cidade com suas
torres de escritórios de vidro pós-modernas ainda
iluminadas, vibrantes e novas — como tudo em Atlanta que
não estava em seu museu.
Quantos anos ele tinha? Uns 75, 76? Por aí. E estava ficando
mais lento. Essa lentidão, aliás, fora uma das razões pelas
quais a trouxera para trabalhar com ele, para ajudá-la com a
responsabilidade de colocar o museu nos trilhos enquanto
ele, lentamente, se retirava para a residência anexa,
tornando-se apenas um generoso benfeitor. Três anos antes,
a idéia parecia estar bem distante, mas não havia como evitar
a velocidade com que esse dia se aproximava. Nunca haviam
falado abertamente sobre o assunto, mas ele se interpunha
entre ambos como uma sombra. Talvez o problema fosse
que ele estivesse perdendo o brilho. Sim, era isso. E
depois...?
Seu museu.
Isso logo se tornaria realidade. De certo modo, já era. Mas a
idéia a deprimia.
Uma irritante salva de notas eletrônicas afastou Deborah de
seus pensamentos desagradáveis. Seu celular. Richard achara
divertido programar secretamente o celular dela para tocar
ao som de "La Cucaracha". Ela precisava reprogramá-lo, ou
pedir que ele o fizesse. O pensamento atenuou sua irritação
e fez que se lembrasse que ele costumava ligar em noites
como esta, quando achava que estaria livre. Ele se retirara
havia mais de uma hora, fazendo comentários vagos sobre o
cansaço de um velho senhor, seguido de uma piscada furtiva
para Deborah enquanto a abandonava com Webster e seus
capangas. Ela precisaria dele para cuidar daquilo também.
— Sim? — atendeu rapidamente, pronta a despejar seu
penetrante sarcasmo sobre o velho.
— Deborah?
Não era Richard. De jeito nenhum.
— Olá, mãe — disse Deborah, sentindo seu coração encolher
um pouco. Ela amava a mãe, mas havia ocasiões...
— Saímos com os Lowenstein — disse sua mãe, como se
Deborah tivesse perguntado. — Fazia mais de duas semanas
que eles não apareciam. Você se lembra dos Lowenstein? —
ela perguntou, enfatizando as palavras de modo áspero,
como se Deborah fosse um pouco surda. — De Cambridge?
Enfim, agora eles estão morando em Long Island, mas
vieram a Atlanta, em visita. Saímos para jantar e quase tive
um ataque do coração quando cheguei em casa e ouvi o
recado da minha filha mais velha. O primeiro em... quanto
tempo... um mês?
— Não faz tanto tempo assim.
— Quase.
— É verdade, sinto muito, mãe — disse Deborah, sentindo
uma pontada de dor de cabeça. Ela se sentia impotente para
estancar a dor, assim como se sentia impotente para evitar
tantas coisas relacionadas à sua mãe. Ela nunca deveria ter
ligado.
Deborah fora tomada por um impulso incontrolável de
dividir o sucesso de sua noite com alguém — qualquer um
—, mas agora, apenas uma hora depois, parecia ter sido uma
péssima idéia.
A mãe de Deborah fora uma enfermeira de meio período,
cuja maior realização na vida, ela se orgulhava em dizer, fora
casar-se com o pai de Deborah, médico especialista em
doenças internas. Assim que soube que estava grávida de
Deborah, abandonara o trabalho, para retomá-lo apenas
depois que a morte do marido a tornara responsável pelo
pagamento de suas próprias contas. Enquanto Deborah era
adolescente, sua mãe passara quase dois anos entrando e
saindo do hospital numa espécie de atordoamento
indignado, como se fosse uma rainha da beleza da qual
tiraram a coroa por ter burlado o regulamento. Deborah
idolatrara o pai apesar de — e talvez por causa de — suas
freqüentes ausências e, por ser dada aos livros, ressentia-se
das tentativas da mãe de embelezá-la. E lembrava-se com
verdadeiro horror do que sentira quando, magricela, sem
graça e infantil, chegou aos 15 anos com um metro e oitenta
e com perspectiva de crescer ainda mais.
— Então, Debbie, qual é sua grande notícia? Liguei assim
que ouvi sua mensagem. Parecia que você tinha boas novas.
Ninguém no mundo, além da mãe, a chamava de Debbie.
Aquela era uma das maneiras que ela insistia em ignorar a
personalidade da filha.
— Ah, você sabe — disse Deborah, fechando os olhos, e
dando um passo para trás. — Coisas de trabalho. Eu tive um
bom dia.
— Isso é ótimo, querida — disse a mãe, mal fazendo uma
pausa para respirar. — Conte alguma coisa mais. Hoje de
manhã falei com a Rachel, mas ela também não tem falado
com você.
Rachel, a boa filha, que tem o corpo de uma ginasta e que —
como eterno presente para a mãe — mora com o marido e a
cria a menos de três quarteirões da casa da rua Brookline,
onde nasceu...
— Não, não tenho falado com ela ultimamente. Mas está
tudo bem no trabalho.
— Trabalho? Você trabalha muito. Igual a seu pai. Mesmo
assim, eu costumava vê-lo.
— Você é sempre bem-vinda — disse Deborah.
— Aí?
— Não estou em Calcutá — disse Deborah. — São apenas
duas horas de avião.
— Como você ainda se lembra? — ela perguntou, em tom de
superioridade, como sempre.
— Muito engraçado, mãe.
— Então, quais são as novidades, além do trabalho? Você se
casou em segredo, ou algo assim?
Ali estava: o escárnio amigável capaz de matar bandos de
pássaros com uma pedra altamente polida. Esse era o maior
talento de sua mãe. Ela podia espetar uma dúzia de feridas
doloridas com um comentário, como se estivesse enfiando
pedaços de carneiro em um espeto de kebab. Nesse caso, o
comentário, tão ágil e fugaz que chegou a parecer casual,
queria dizer:
1. Você trabalha demais e seu trabalho, convenhamos, não
vale a pena ou o esforço.
2. Você não tem um homem em sua vida. Como sempre.
3. O que você faz melhor é esconder as coisas de sua
família.
4. É claro que, tratando-se de você, casar-se sem avisar a
família seria normal. Afinal de contas, você deu as costas à
sua família, à sua cidade, à sua herança cultural e a tudo o
que valorizamos quando resolveu ir, pela primeira vez, a
essa Sodoma cheia de gentis...
Seria bom lembrar, mãe, ela pensou, que papai já está morto
há 20 anos.
— Não, mãe — ela disse, tentando, apesar de tudo, sorrir.
— No momento, não tem nada de novo acontecendo na
minha vida.
Ela ainda estava pensando em algumas espetadelas de sua
autoria que deveria ter usado quando o celular tocou seu
tom esquisito.
— Mãe — ela começou. — Estou dirigindo. Posso ligar
quando...
— Ela ainda está aí?
Ela já tinha aberto a boca para responder quando percebeu
que aquela voz não lhe era familiar.
— O quê? — perguntou ela. — Quem está falando?
— Onde você está?
— Eu perguntei quem está falando — ela repetiu.
— Eles o pegaram? Onde você está?
Ele estava gritando. E havia alguma coisa estranha na
entonação daquela voz. Um sotaque? Britânico? Australiano?
Alguma coisa do tipo.
— Sinto muito — disse Deborah, com polidez fria. — Acho
que você ligou para o número errado. Tente ligar
novamente. E comece a conversa perguntando pela pessoa
com a qual deseja gritar.
— Ouça bem, sua mulher idiota! Você precisa
voltar... Deborah desligou o celular.
CAPÍTULO 2
A rodovia interestadual estava silenciosa. Em menos de dez
minutos, ela pegou a saída para a Tenth Street em direção ao
Piedmont. Enquanto dirigia, fechando compartimento por
compartimento como se estivesse deslizando as chaves em
um painel de fusíveis, preparava-se mentalmente para cair
na cama. Quando finalmente estacionou na faixa de
pedriscos reservada aos moradores do condomínio Bay
Court, estava no piloto automático. Sair do carro. Trancar o
carro. Chaves da casa. Caixa de correspondência. Porta do
apartamento. Entrar em casa.
A luz da secretária eletrônica sacudiu-a, trazendo-a de volta
à realidade. Piscava em vermelho, forçando-a a acordar.
Como durante o evento verificara os recados pelo celular,
qualquer chamado teria de ter sido feito durante esta última
hora. Richard? Ela franziu o cenho, apertou o botão e
caminhou até o banheiro para pegar sua escova de dentes.
— Você está em casa? — perguntou a máquina.
Deborah parou, suspensa no silêncio inesperado, e sentiu a
nuca arrepiar-se, tornando-se viva. De novo aquela voz. O
britânico. Novamente, número errado.
Mas isso é muito estranho, não é? Da última vez, ele ligou
para o celular.
É verdade.
— Se você estiver aí, atenda o telefone.
Meio paralisada, ela ouvia a voz ansiosa. Outra longa pausa, o
ruído do telefone colocado no receptor e o sinal de discar. A
máquina apitou, rebo-binou e caiu no silêncio. Deborah
ficou ali, parada, olhando para ela. Alguma coisa naquela voz
a incomodava. Não sabia se era o sotaque, a determinação ou
o fato de não ter se identificado.
Mas Deborah Miller não era de se assustar facilmente. Pelo
menos, foi isso o que disse a si mesma. Desviou o
pensamento da mesma maneira que fizera com as
desajeitadas tentativas de avanço de Harvey Webster e
começou a preparar-se para ir para a cama. No dia seguinte,
teria um dia cheio. Enquanto apagava a luz do abajur da
mesa de cabeceira e se aninhava sob as cobertas, a parte que
se mantinha consciente em seu cérebro pensou em tudo o
que teria de fazer. Ainda bem que tinha deixado o ar-
condicionado ligado.
Richard iria pessoalmente atrás das promessas conseguidas.
Enquanto isso, ela falaria com o Atlanta Journal-Constitution
e começaria a rascunhar seus planos para a organização da
exposição celta. Teria de ligar para o bufê e negociar um
desconto, já que cuidara da maior parte da limpeza sozinha.
Além disso, bem cedo, pela manhã, teria de lidar com o mau
humor de Tonya, a nova faxineira do museu. Negociar com
o pessoal incompetente do bufê seria fichinha comparado
com a conversa que precisaria ter com a competente Tonya.
Apesar de distante, ela era vigilante, cheia de energia e não
tão defensiva quanto podia ser... sarcástica. Uma qualidade
peculiar para uma faxineira de meia-idade. Deborah
suspeitava, sem saber exatamente como, que a atitude de
Tonya, ou a reação desconfortável que sentia frente a ela,
estava relacionada ao fato de Tonya também ser inteligente,
educada e negra. Enfim, explicar o motivo por que todos
aqueles figurões (aqueles caras brancos) conseguiram fazer
toda aquela sujeira no chão imaculadamente limpo e
encerado do saguão seria mais ou menos como desarmar um
artefato explosivo.
Sorriu ao pensar que, depois, teria de trabalhar na
organização da exposição celta: quatro séculos de cruzes
irlando-escocesas, manuscritos iluminados e jóias. Dois anos
antes, eles nunca teriam emprestado as peças. Ao cair no
sono, ainda sorria.
O tinir inesperado da campainha do telefone acordou-a
como uma sirene. Confusa e ofegante, ela voltou à
superfície. Por um segundo, pensou que fosse a campainha
da porta da frente e, antes de poder articular-se, já
praticamente saíra da cama. Estava escuro, e o rádio-relógio
ao lado da cama lhe informou que eram quase três da
madrugada. Se estivesse acordada, teria deixado tocar, certa
de tratar-se de engano, mas, bêbada de sono, atendeu sem
pensar.
— Alô?
— Por que você não está no museu? Você precisa voltar para
lá.
— O quê? — por um segundo, ela sentiu-se perdida; depois,
conseguiu se lembrar. A mesma voz. — Quem está falando?
—Você precisa voltar! — ele disse, novamente, com a
mesma ansiedade e frustração de antes. — Você não pode
deixar que eles o levem!
— Levem o quê?
— O corpo!
— Se você me ligar de novo, em qualquer dos números,
chamo a polícia. Entendeu? — ela disse.
Com o indicador, ela apertou a lingüeta do aparelho e ficou
deitada no escuro, segurando o telefone e olhando para o
teto, esperando que a agitação passasse.
Corpo?
Que corpo?
Ela deve ter ficado assim, sem se mover, por uns seis
minutos, olhando os números rolarem no mostrador
iluminado do rádio-relógio, sem conseguir pegar no sono.
Na verdade, era como se todos os seus circuitos voltassem a
ser ligados e seu corpo fosse percorrido por uma onda de
energia, acendendo luzes, ligando utensílios domésticos de
maneira que sua cabeça ficasse cheia de barulhos e carga
elétrica. Ela podia sentir o cheiro de relâmpago na noite.
Corpo?
Deborah levantou-se, vestiu-se e pegou as chaves do carro.
CAPÍTULO 3
O museu estava escuro e o estacionamento, deserto. O que
era de esperar às três e meia da madrugada. E ela estava
sendo uma idiota. Deveria estar em casa, na cama.
Destrancou a porta da frente e verificou o painel de alarme.
Não havia disparado. Ninguém tentara entrar, e o saguão
estava exatamente como ela deixara.
Mas o alarme não disparara com ela, como sempre fazia
todas as manhãs quando ela chegava. O que significava que
não fora ativado. Ela olhou com mais atenção. Mesmo
bastante cansada depois do evento, com certeza se lembrara
de ativar o alarme... Rapidamente, alcançou os interruptores
ao lado da porta, acendendo todos ao mesmo tempo.
Nada. O saguão, com seu esqueleto de dinossauro, seus
balcões de informação e exposições temporárias, brilhou na
iluminação mortiça das luzes de emergência. Nada. Os
sussurros abafados de inquietação que a haviam impedido de
voltar a dormir depois do telefonema afloraram subitamente
e voltaram a diminuir, em volume um pouco mais elevado
do que antes. Alguma coisa estava errada.
Deborah tirou o celular do bolso e o ligou. O saguão ficava
no centro do museu; o prédio fora construído como metade
de uma roda de carroça, com cada raio tendo origem ali e
levando os visitantes às galerias de exposições até o amplo
corredor perimetral, ladeado por animais e pássaros
empalhados que conectavam o prédio em um enorme arco
semicircular. Com passos rápidos, atravessou o saguão,
passou pelos expositores dos índios Creek e pegou um dos
"aros" em direção ao corredor.
Estava bastante escuro. As luzes de emergência eram menos
freqüentes e os expositores (fósseis locais, mapas dos
períodos jurássico e cretáceo, um esqueleto quase completo
de velociráptor ao lado de uma série de modelos em
tamanho natural do animal em seu ninho) estavam todos
completamente escuros — enormes painéis de vidro
transparente, como as paredes de um grande aquário. A idéia
(formas despercebidas nadando atrás dos painéis) a
incomodava; por isso, passou por ali rapidamente. Apesar de
ainda não ter encontrado nenhum sinal de desordem, sentia
um gosto metálico na boca, como se alguma glândula
primordial em seu tronco cerebral tivesse ativado um alarme
milenar. Caminhou mais depressa, enquanto discava o
número da casa de Richard.
Sinal de chamar. Ela preparou-se para ouvir o tom de
surpresa na voz dele e, quando isso não aconteceu, começou
a correr com o celular grudado na orelha. No final do
corredor, fez uma pausa.
Esqueça a escuridão e continue caminhando. Não olhe para
os expositores.
O corredor perimetral, com seus animais e pássaros
empalhados retirados da galeria pré-histórica, era sua seção
favorita do museu. Mortos e vitorianos como eram, aqueles
espécimes expressavam exatamente o espírito de um museu.
Tinham um cheiro diferente, como bolas de naftalina e
formol, e eram muito mais antigos que o velociráptor:
mofados e pedantes, uma versão do aprendizado construída
por pessoas que, com suas espingardas, matavam aves em
pleno vôo para depois, debruçados sobre seus corpos mal-
empalhados, poder ruminar sobre seus nomes em latim. Ela
chamava a isso de Lógica do Colecionador de Borboletas.
Aqui está uma coisa bonita: vamos matá-la para que todos
possam ver o quanto ela era bela. Algum dia, dissera a
Richard, substituiria tudo; quando tivessem alguma coisa
para pôr no lugar. Ele apenas sorrira e dissera o que sempre
dizia:
— Desde que você não transforme meu museu em um
parque de diversões temático...
É claro que o conselho administrativo queria o maior
número possível de visitas.
— Se você insistir em fingir que isto não é um museu,
algum dia ele deixará de ser? ele costumava dizer. — Use
seus sinos e apitos para atraí-los até a porta, mas dê-lhes
alguma coisa com a qual possam aprender, alguma coisa que
carregarão para o resto de suas vidas...
O telefone dele continuava a tocar.
Deborah voltou a caminhar. Ela nunca dissera a Richard
que, na verdade, além de ofendê-la como curadora do
museu, a coleção de animais empalhados a amedrontava. Na
iluminação esverdeada e mortiça das lâmpadas de teto, ela
sentia a presença dos corpos mofados de animais mortos
havia muito tempo, como as górgonas na sombra de uma
catedral: mortas mas, de alguma maneira, observadoras e
alertas. Caminhou um pouco mais rápido, subitamente
consciente de que o corredor curvo tornava-se um pouco
mais iluminado.
Primeiro, ela sentiu alívio; depois, dúvida e pânico
crescentes. Havia apenas uma lâmpada acima do corredor, e
sua luminosidade, filtrando-se para chegar até a galeria
àquela hora, não poderia significar coisa boa. Ela começou a
correr, passando pelos leões mofados e altivos, com duros
olhos amarelados e dentes à mostra, pelas gaivotas com suas
crias congeladas, pelo imenso negror do búfalo com cabeça
abaixada e chifres abertos. Começou então a murmurar,
ofegante, enquanto, a cada passo, o surreal toque de luz
esverdeada tornava-se mais fraco.
— Não. Não. Não.
E então a porta entre os imóveis pingüins e as focas ali
estava, escancarada, sua luz esparramando-se pelo corredor,
a única porta desse final de prédio. Ao ver a abertura, ela
tomou consciência de que também podia ouvir um som,
distante e regular: uma campainha. Percebendo o que era,
ela desligou o celular. O ruído parou.
Richard vivia aqui, ou no prédio anexo, pelo menos desde
que o museu fora fundado. Na verdade, apesar de todos
acreditarem no contrário, a casa de Richard existia no
terreno desde antes da construção do museu, que fora
construído 35 anos antes, por ordem dele, como um
presente para a cidade. Durante quase duas décadas, ele
administrara o museu, mas sua fortuna e seu entusiasmo
igualmente consideráveis não haviam sido suficientes. Nos
últimos anos, ele entregara as rédeas da fundação a uma série
de curadores treinados. Deborah era a terceira, a de quem
ele mais gostava, em quem confiava e aquela que talvez
amasse como a uma filha.
O corpo.
Com o coração aos pulos, Deborah cruzou o batente da
porta que isolava o mundo particular de Richard do museu, a
porta que ele guardava como um pit bull idoso, a porta que
ele nunca - sob qualquer circunstância? Deixava aberta.
— Richard! - ela chamou.
Passou pela sala de visitas, a cozinha, a biblioteca e a sala de
jantar. Nada. Correu, ainda gritando, até a espaçosa escadaria
central, com seu longo corrimão de mogno cheio de curvas
suaves. Foi até o estúdio. Nada. O quarto de hóspedes, o
banheiro do corredor, o quarto que ele pretendia
transformar em biblioteca, mas que estava cheio de restos e
lembranças de sua vida de casado. Sua esposa morrera havia
nove anos, mas Deborah duvidava que ele tivesse jogado
fora qualquer de seus pertences. Verificou a sala de estar do
andar de cima, na qual nunca estivera, e um tipo de copa
servida por um elevador de serviço que Tonya usava para
trazer-lhe as refeições quando ele não estava se sentindo
muito bem - o que, ultimamente, acontecia com freqüência.
Parou apenas quando chegou à porta do quarto de dormir.
As portas eram grandes e duplas, revestidas com pesados
painéis de carvalho. Usando os nódulos dos dedos, ela bateu
com força, insistentemente.
— Richard - ela chamou. - Sou eu. Se você não abrir a porta,
vou entrar.
Sua voz parecia calma. Talvez mais alta do que
normalmente, mas não esganiçada nem externando pânico.
Ela girou a maçaneta. A porta abriu-se.
CAPÍTULO 4
O quarto estava vazio e a cama, arrumada. Nem sinal de
Richard. Ela verificou o banheiro e voltou ao patamar,
chamando por ele. Pela primeira vez, desde que aceitara o
trabalho, invadia seu santuário privado; esgueirar-se
sorrateiramente não lhe pareceu apropriado.
Ficou algum tempo parada no patamar e, em, seguida voltou
ao quarto, completamente perdida. Não havia nem sinal
dele.
Considerando o que você sentira medo de encontrar, ela
pensou, deveria sentir-se aliviada por não ter encontrado
nada. Mas ela não conseguiu sentir alívio.
Sentou-se no duro colchão da cama e olhou ao redor do
quarto. Graças a Tonya, o local estava imaculado, como
sempre. Na mesa de cabeceira, ao lado do telefone, havia um
bloco de papel no qual Richard rabiscara alguma coisa com
sua letra cheia de volteios. Tudo estava limpo e organizado, a
mobília cuidadosamente arranjada, a enorme estante de
livros contra a parede perfeitamente alinhada e sem
resquícios de poeira.
Deborah mordeu o lábio e inclinou-se para ler o que estava
escrito no bloco sobre a mesinha. Havia apenas uma palavra,
circulada várias vezes e marcada com uma seqüência de
interrogações.
Atreu???
Deborah olhou para a palavra e sentiu um tênue tilintar de
memória, uma memória literária que, em seguida, ela
afugentou. Onde diabos estará ele?
Apoiou a cabeça nas mãos e reparou alguma coisa no chão,
meio escondida pela enormidade da colcha, como se,
acidentalmente, tivesse sido chutada para baixo da cama.
Deborah abaixou-se e pegou o objeto. Era um fragmento de
cerâmica, bastante côncavo, como se fizesse parte de um
jarro redondo. E era pintada. Sobre um suave fundo azul-
turquesa, havia o fragmento do perfil de uma mulher, o olho
grande e amendoado, os cabelos de cachos negros. Parecia
um mosaico ou esboço cheio de graça, apesar de negligente,
quase irreverente. Ela segurou o fragmento na luz e esfregou
sua superfície com os dedos, sentindo a certeza súbita de
que não se tratava apenas de um pedaço de louça quebrada.
Aquilo era muito antigo.
Ela tinha quase certeza de não haver nada parecido com
aquele fragmento em nenhum período da história
americana. Ele lhe parecia familiar, mas familiar apenas no
sentido de que ela poderia ter visto cerâmica comparável,
não idêntica. Egito antigo? Não, a imagem era muito viva, o
rosto muito coquete. Poderia ser tão antigo quanto, mas ela
não tinha certeza. Mesopotâmia? Assíria? Não. De qualquer
maneira, se fosse realmente antigo, o que estaria fazendo ali?
O museu não possuía nenhum tipo de antiguidade clássica.
Ela olhou novamente, com atenção. Grego, talvez?
A palavra no bloco de anotações, circulada e marcada com
pontos de interrogação, voltou à sua mente: Atreu.
Aquilo também era grego.
Na mitologia grega, Atreu fora um dos descendentes de
Tântalo, certo? Seu irmão... Havia qualquer coisa relacionada
a esse irmão, ou aos filhos dele... Ela não se lembrava.
Deborah foi até a estante da parede ao sul do quarto e olhou
para as lombadas dos livros. Talvez encontrasse alguma coisa
sobre mitologia grega.
Ali estava. Na verdade, enquanto olhava as estantes, ela
deixou escapar um assobio de assombro. Cada um dos livros
do acervo de aproximadamente 400 volumes estava, de
algum modo, relacionado com a Grécia antiga: mitologia,
história, arqueologia, política, poesia, cultura, arte, filosofia.
Ela puxou um pesado volume, cujo título era Enciclopédia
da Grécia Antiga, e procurou o verbete Atreu. Começou a
ler distraidamente, sem saber exatamente o que fazia, o que
procurava.
Richard. Você está procurando por ele.
Não era de admirar que ela se lembrasse do nome. Atreu
fora um rei da dinastia de Micenas, a grande cidadela grega
da Idade do Bronze de cujos portões com leões esculpidos
Agamenon, de acordo com a lenda, liderara o exército que
sitiara Tróia durante dez anos. Fora sua casa amaldiçoada que
transformara suas gerações em feudos sangrentos, separando
irmãos, crianças e esposas, perpetrando as mais terríveis
vinganças em atos estarrecedores demais para poderem ser
verbalizados: fratricídio, patricídio, matricídio, sacrifícios
humanos, incesto, canibalismo. Deborah fechou o livro e
olhou fixamente para o pedaço de cerâmica que segurava,
enquanto fragmentos de memórias sobre história da Idade
do Bronze e arqueologia emergiam, vinham à tona,
completando o quebra-cabeça e reescrevendo a apavorante
mitologia. Não havia mais dúvidas. O perfil pintado na
cerâmica era grego. Micênico, para ser mais exato. Mas onde
estaria o resto dele? Qual seria sua relação com o antigo
nome mitológico?
Richard havia desaparecido. Aquela não era a melhor hora
para se preocupar com enigmas antigos e charadas
arqueológicas... A não ser que houvesse alguma ligação.
Ela abaixou-se para ler com mais facilidade os títulos da
estante inferior e, enquanto estava ali, reparou em uma
mancha vermelha no carpete. Colocou o dedo sobre ela e,
ao retirá-lo, sentiu-o pegajoso. Antes de sentir o cheiro,
sabia que era sangue.
CAPÍTULO 5
Quando, com o coração disparado, abaixou-se ainda mais,
seu rosto a apenas alguns centímetros da mancha vermelha,
Deborah pôde ver que o carpete estava pisado, formando
uma estreita trilha, como se alguma coisa tivesse sido
arrastada sobre ele. Não, arrastada não: rolada. Alguma coisa
pesada rolara sobre ele. Mesmo que a mancha de sangue não
tivesse se espalhado, ela percebeu que havia uma estreita
marca de alguma coisa mais nas fibras achatadas, alguma
coisa meio marrom e viscosa: graxa.
Ela voltou à mancha vermelha. Em alguma parte de seu ser
profundo, vazio e desesperançado, ela sabia que se tratava do
sangue de Richard.
Tentou concentrar-se para manter sob controle as
implicações do que estava vendo. Retomou seu pensamento
anterior. Alguma coisa rolara até a estante? Não, a graxa não
fora levada até a estante, fora trazida de lá. No centro do
quarto, a marca desaparecia. Na direção oposta,
encaminhava-se direto para a parede, ou melhor, para a
estante encostada na parede. Então, alguma coisa rolara pela
parede, o que era impossível, a não ser...
Deborah levantou-se e começou a passar as mãos sobre as
estantes, fazendo um esforço mental para manter a calma.
Não encontrou nada. Começou a empurrar os livros, mas,
indiferentes, eles escorregavam para o fundo da estante.
Havia centenas deles.
Pare, ela disse a si mesma. Pense. Se algum desses livros é...
Qual deles seria?
Atreu. Micenas.
Alguma coisa relacionada à velha obsessão de Richard pela
Guerra de Tróia? Ele adorava contar-lhe que as lendas
homéricas, histórias de deuses e heróis, foram baseadas em
eventos reais. Seu entusiasmo infantil era contagiante,
mesmo que não se pudesse confiar totalmente em sua
ciência arqueológica.
Richard não era arqueólogo. Era, sim, um entusiasta e, sendo
menos gentil, um diletante. Ele não queria que a história
social se desligasse da arqueologia; queria que as lendas e
todos aqueles contos juvenis de aventura e glória fossem
verdadeiros. Não queria ler livros de arqueologia para ficar
sabendo de novos princípios ou fatos revelados pela ciência.
Lia sobre arqueologia para provar a veracidade daquilo em
que acreditava. Ele era como Yigael Yadin, percorrendo a
região de Negev e do Monte Sinai, empunhando uma espada
em uma das mãos e uma cópia do Velho Testamento na
outra. Sabia em que acreditava e queria que a arqueologia
confirmasse suas crenças. Era como Schliemann, que
escavou Micenas e Tróia para provar que o que Homero
escreveu sobre Agamenon e Helena, Aquiles e Heitor, Ajax
e Odisseu não eram lendas poéticas e sim fatos
documentados.
Deborah afastou-se das estantes e percorreu as lombadas
com os olhos.
No canto da direita, na quarta estante de baixo para cima,
havia um volume preto e pesado, encadernado em couro e
gravado a ouro. A Ilíada, de Homero. O maior de todos os
relatos sobre a Guerra de Tróia.
Ela estendeu a mão para pegá-lo, puxou-o, sentiu que estava
preso, forçou-o um pouco para trás e parou. Lentamente, a
estante girou na direção dela.
Deborah ficou olhando. O espaço atrás da estante era
grande, um pouco maior do que a metade do quarto, e seus
olhos demoraram um pouco para reconhecer o interior. Sua
mente demorou bem mais para entender o que via.
A escuridão momentânea atrás da estante transformava-se
em um brilho suave que emanava dos objetos dispostos na
parede e de um único raio de luz que vinha do meio do teto
abobadado, desenhando um quadrado alongado e pálido
sobre o piso. Era ali, bem ao lado de um interruptor recuado,
que a trilha de sangue começava.
Devagar, ela deixou-se cair sobre os joelhos enquanto sentia
o medo que carregara como um fardo pesado se transformar
em uma outra coisa, uma esmagadora onda de desespero que
esvaziava seu coração e sua mente.
Richard estava deitado de costas, com os braços abertos,
como se tivesse sido crucificado. Uma das mãos estava
aberta, e a outra, fechada. Tinha o peito à mostra. Seu corpo
era magro e seus membros, espigados, frágeis. Parecia
impressionantemente velho, e a translucidez azulada de sua
pele dava um aspecto ainda mais terrível aos ferimentos
profundos em seu peito e abdômen. Com a graça de Deus,
os olhos dele estavam fechados.
Deborah pegou a mão dele, fria e aberta, e a trouxe até os
lábios. Com os olhos bem fechados, o ar esvaindo-se de seu
peito, começou a soluçar.
CAPÍTULO 6
Deborah não fazia a menor idéia do tempo que ficara
sentada ali. Na verdade, estivera agachada, meio ajoelhada,
como a suplicar em frente de um altar. Durante sete noites,
ela se ajoelhara daquela maneira ao lado de sua cama, depois
do velório prolongado do pai, repassando mentalmente as
palavras do Cadish, que prometera vida e continuidade, e
um Deus justo e cheio de amor que ela não conseguia mais
ver, e não vira mais desde então. As duas mortes eram
completamente diferentes, mas era como se os 20 anos que
as separavam tivessem desaparecido e ela tivesse voltado a
ser a garotinha de 13 anos, correndo o olhar dos médicos
para seus parentes e para o rabino que havia organizado a
cerimônia fúnebre e com o qual nunca mais falara. Não se
lembrava do aramaico do Cadish, mas a tradução para o
inglês de uma das preces ditas ao lado da sepultura, tornara-
se parte dela como um ferimento que jamais se cicatriza
completamente. Um fragmento dela voltou-lhe à mente.
Oh, Deus, cheio de compaixão, Tu que habitas as alturas,
conceda o descanso eterno sob o abrigo da Tua presença
divina entre os santos e os puros que brilham como a luz do
firmamento para a alma do meu amado que partiu para sua
morada derradeira.
Deus todo-poderoso, abrigue-o eternamente sob as asas da
Tua presença, permita que a alma dele receba a vida eterna e
que as memórias da minha vida possam me inspirar a viver
uma vida nobre e sagrada. Amém.
Doía tanto quanto antes, era amargo de uma maneira
diferente do Campari que Richard tanto adorava e mais
amargo ainda do que ela imaginava pudessem ser os
venenos. Corrosivo como a cal.
Cheio de compaixão? Talvez fosse melhor pensar em
insensível, caprichoso ou, talvez, simplesmente impassível.
Será que o Deus dos pais dela sequer notou o que acontecera
esta noite? Será que Ele percebera?
Meu Deus, Richard, pensou ela. Perdão, eu deveria estar
aqui.
Ela mal havia se movimentado desde que o encontrara.
Respirava de maneira lenta e regular, praticamente sem
movimentar o peito, como se estivesse tentando dividir a
imobilidade e o silêncio dele. Seus olhos nadavam, as
lágrimas se avolumando silenciosamente para, finalmente,
explodirem e escorrerem, caindo sobre o carpete como
pesados pingos de uma chuva de verão.
Entrecortando seu silêncio angustiado, porém, impunha-se
um grito insistente, uma voz oficial, como um policial
abrindo caminho na multidão que se aglomera em um
acidente de estrada; uma voz que impunha autoridade e
ordem; uma voz que substituíra a emoção pela razão. A voz
dizia que Richard havia sido assassinado e que aquele não era
apenas um local de sofrimento, mas um local de horror e até
mesmo de perigo e que ela precisava agir de modo
apropriado.
Mas Deborah não era capaz de sair dali, não tinha forças para
afastar-se dele e de seus ferimentos, os olhos embaçados de
lágrimas.
Apesar de terem sangrado muito, os ferimentos não eram
cortes, mas sim incisões um pouco maiores do que três
centímetros, agora circundadas por uma crosta vermelha e
ferrugem, com o centro ameaçadoramente escuro. O peito
estava manchado com fios de sangue escuro, mas a enorme
poça sobre a qual estava deitado formara-se do sangue que
vinha de suas costas. Será que ele fora atingido tão
profundamente (seis ou sete vezes, dizia a voz consistente e
voltada aos detalhes que normalmente ouvia nos funerais)
que a lâmina perfurara o corpo, chegando às costas? Que
tipo de arma faria tal coisa? Talvez uma faca muito grande,
quase uma espada.
Além disso, havia na pele duas reentrâncias ao lado de cada
cicatriz: dois pequenos hematomas, distantes mais ou menos
três centímetros de cada ferimento...
Rapidamente, ela virou-se para o lado, invadida por uma
náusea súbita que lhe deu vontade de vomitar sem que nada
lhe viesse do estômago. Seus olhos, ainda cheios de lágrimas,
pareciam estar desagradavelmente secos e ásperos. Ela
apertou-os com força, massacrada pela idéia de que teria de
lavar aqueles ferimentos, limpar o corpo...
Mas você não pode mexer no corpo, disse a voz, porque a
polícia vai precisar fotografar as coisas exatamente como
estão. Mais tarde, alguém se encarregará de lavá-lo.
— Ah, Richard. Ainda tínhamos tantas coisas a fazer! Tantas
coisas a dizer!
Ela disse isso em voz alta, e, como se fosse uma resposta, o
telefone tocou.
Por um longo momento, ela não olhou para o aparelho, mas
depois sua mão começou a afastar-se de Richard e ela levou
o telefone ao ouvido, seus movimentos ainda diminutos e
silenciosos, a respiração lenta.
— Sim? — ela disse.
— Eles levaram o corpo?
A mesma voz. Deborah não respondeu. Seus olhos
continuavam colados ao peito de Richard, àquele corpo
agora sem vida.
— Levaram?
Ela sentiu que parava de respirar. Ele voltou a falar, dessa
vez de modo mais insistente. Com urgência.
— Eles levaram o corpo?
— Não — ela disse. Não conseguia entender por que lhe
respondia.
— Espere aí — ele disse. — Estou indo.
O telefone foi desligado.
Enquanto as palavras se dissipavam, Deborah fixou o olhar
no telefone que tinha na mão. De repente, toda a
imobilidade que até então tomara conta dela desapareceu
como uma onda de corrente elétrica. Rapidamente, colocou-
se de pé, afastou-se do corpo e ligou para a polícia.
CAPÍTULO 7
Ele disse que iria até lá. Não explicou por que, o que queria
ou quanto tempo levaria para chegar. Não disse quem era,
como ficara sabendo do ocorrido no museu nem por que
estava tão ansioso para saber se o corpo de Richard havia
sido levado ou quem poderia tê-lo levado. Apesar disso, era
óbvio que, seja lá quem fosse ou o que quisesse, ele estava,
de alguma maneira, relacionado à morte de Richard Dixon.
Foi o que ela disse à atendente da emergência, um chamado
que funcionara como adrenalina em uma conversa que, até
aquele ponto, fora apática e dúbia. Ela tinha certeza de que o
homem estava morto?
— Ele tem vários ferimentos no peito e no abdômen — ela
disse. — Seu... corpo está num tipo de sala secreta. Ele fez
uma anotação sobre Atreu, o que me fez pensar em Tróia,
então tentei tirar uma cópia da Ilíada da estante, que se
abriu...
— Mais devagar, querida — disse a atendente.
Deborah começara de modo bastante metódico (múltiplos
ferimentos a faca...), mas perdera o controle. Sua voz falhava
e ela começava a gaguejar.
— Desculpe — respondeu, sentindo-se subitamente
abandonada e idiota. — Estou um pouco... estou...
Ela não sabia como estava e não conseguia encontrar as
palavras para começar a expressar.
— Tudo bem. Tente respirar um pouco.
Apesar do comentário sobre a sala secreta (que seria o
suficiente para destruir qualquer nível de credulidade) e de
seu engrolar sobre Atreu, a atendente não informara a
Deborah que a má utilização do tempo policial poderia lhe
causar muitos problemas. A mulher era capaz de entender
que aquilo era verdade, o que significava que Deborah
precisava recuperar o controle que estava tão claramente
perdendo. Ela limpou a garganta.
— Peço que me desculpe — ela voltou a dizer. — Richard
era muito... Éramos muito amigos.
— Este é o homem ferido?
— Morto, sim.
Ela disse isso de maneira bastante calma, a mente embotada,
as palavras corretas mas sem sentido.
Houve um silêncio momentâneo.
— Onde, exatamente, você se encontra? — perguntou a
atendente.
— Estou no quarto — disse Deborah, voltando a sentir-se
idiota. — Desculpe. Estou no Museu Colina dos Druidas, no
número 143 da Deerborne Street. A casa é anexa e
interligada ao museu. Pode ser que você tenha de vir por
ele. Não você, claro. As pessoas que vierem...
— Sim — disse a atendente. — Você pode esperá-los na
porta. A entrada fica perto daí?
— Na verdade, não — disse Deborah.
— Tudo bem — disse a atendente. — E esse homem que
ligou... você não tem idéia de quem seja?
— Não.
— Existe algum cômodo seguro na casa? Algum lugar onde
você possa trancar-se até que os policiais cheguem?
— Tem um banheiro — ela disse, voltando a sentir uma onda
de pânico por causa do tom de gravidade que a mulher
respondia a seu chamado misterioso.
— Ele pode ser trancado? A porta é sólida?
— Sim. Mas vou ter de desligar. Não tenho um telefone
sem fio. Mas tenho um celular, que posso usar caso...
— Tudo bem, isso é bom. Você está bem?
— Sim, estou bem — ela disse. — Agora, vou desligar.
— Tem certeza de que está bem?
— Sim.
— Entre no banheiro e tranque bem a porta, certo?
Deborah assentiu com a cabeça e, em seguida, confirmou
verbalmente. Desligou e sentou-se na beirada da cama por
um momento, olhando para a porta do banheiro. Depois,
olhou para o lado, levantou-se, deu dois passos e correu os
olhos pelo cômodo mal iluminado atrás da estante,
mantendo os olhos afastados do chão e do corpo caído,
percebendo, pela primeira vez, a impressionante — não,
inacreditável — coleção exposta em suas paredes.
CAPÍTULO 8
Mesmo sem ter entrado, Deborah sabia que os expositores
com frente de vidro continham artefatos dos quais fazia
parte o fragmento de cerâmica que, momentos antes, tivera
nas mãos. Era bastante suspeito que um dos expositores de
parede tivesse sua prateleira de vidro vazia. Deborah olhou
para baixo. Em um canto de sombras, a mais ou menos um
metro do quadrado central de luz, havia um amontoado de
fragmentos de cerâmica colocados de maneira aleatória,
restos de um pote que tinham a mesma cor turquesa do
fragmento que ela encontrara sob a cama.
Deborah ficou ali, olhando fixamente acima do corpo que se
encontrava a seus pés (Não importa o que aconteça, não
volte a olhar para ele), movendo lentamente o olhar pela
sala, num tipo de atordoamento que aumentava à medida
que ela absorvia o conteúdo daqueles expositores: um pote
de ouro com duas asas, que imaginou tratar-se de um
cântaro, quatro pratos decorativos com leões estilizados e
um par de brincos de focas, também de ouro. Havia um
pedaço de pedra — possivelmente uma lápide — entalhado
com a imagem de uma carruagem e seu condutor, uma bacia
de prata decorada com cabeças de touros, fios de contas de
vidro e de pedra polida e mais ouro: colares, pendentes,
diademas, anéis e broches, todos incrivelmente ricos e
delicados. Havia três expositores cheios de cerâmicas, desde
canecas minuciosamente decoradas com padrões
geométricos até canecas e jarros com guerreiros e cenas de
caça. O último expositor exibia pontas-de-lança, espadas e
adagas incrustadas com ouro e pedras preciosas, delgadas e
úteis, o bronze esverdeado pelo tempo, mas
impressionantemente bem conservadas. Se tudo isso for
autêntico...
Não havia razão para pensar que não fosse, a não ser pelo
óbvio. Havia ali de 40 a 50 peças.
Se elas fossem o que aparentavam ser, essa seria a maior e
mais valiosa coleção de artefatos micênicos ou minóicos fora
do Museu Nacional de Arqueologia de Atenas. Era
impossível estimar seu valor.
Então, aquilo tinha de ser cópia.
Era impossível que uma coleção desse vulto existisse. Há
muitos séculos, a maior parte dos sítios arqueológicos gregos
havia sido escavada ou pilhada. Tudo o que fora encontrado
em Micenas, eniTiryns e nos sítios minóicos de Creta estava
catalogado e documentado, as imagens reproduzidas em
centenas de livros de arte e história. Uma coleção como
esta, desconhecida da ciência arqueológica moderna, era
impensável.
Mas Deborah, colada ao chão com os olhos ainda molhados
de lágrimas, sabia que não estava olhando para cópias ou
reproduções de peças conhecidas. É verdade que, não sendo
especialista em antiguidades gregas, ela não era capaz de
identificar qualquer pote encontrado em Micenas, mas já
vira o suficiente dos mais famosos para saber que essa
pequena sala continha objetos tão grandes, ricamente
decorados e complexos quanto os que vira em outros
lugares. Sabia também que estes eram diferentes, parecidos o
bastante para receber o rótulo de micênicos, porém como
novas descobertas. Inclinando-se para dentro da sala para
poder ver melhor, ela se deparou com uma adaga de bronze
sobre um delicado suporte. A adaga era decorada com leões
que caçavam um cervo, incrustados em ouro e prata. Era
linda.Tinha 3.500 anos de idade, e Deborah tinha certeza de
que não tinha sido vista por nenhum arqueólogo sério ou
historiador vivo.
Nenhum arqueólogo sério.
O que significava aquilo? Ela forçou-se a admitir o pavor
embotado que se formou, como vidro moído, na base de seu
estômago. Sério significa ético. Se aquelas peças fossem
autênticas, só poderiam ter sido roubadas, contrabandeadas
sem o conhecimento da comunidade de arqueologia e
escondidas, limitando suas lições e prazeres ao consumo
particular. O medo e o desapontamento que sentiu a
deixaram extenuada e vazia, bloqueando suas lágrimas com
preocupação e fadiga súbitas.
— Richard - ela suspirou. - O que você fez?
E uma parte magoada e ressentida de si mesma, à qual ela
não queria dar ouvidos no momento, sussurrou: Por que não
me disse nada?
Ela se lembrou da indignação ao estilo Indiana Jones que
Richard costumava expressar: "Isso deveria estar em um
museu". Pois sim! Isso deveria fazê-la sorrir, mas o vazio que
sentia nas entranhas se transformava em algo medíocre e
triste. Novamente ela olhou para ele, ali deitado, pálido e
distante, seu corpo manchado com o vermelho de seu
próprio sangue.
Você era meu amigo, meu mentor, meu...
Ela não foi capaz de adicionar pai. E omitir essa parte
significava uma traição a si mesma, a seus valores, ao que
tentara realizar no museu.
A não ser...
Será que ele comprara essa extraordinária coleção no
mercado negro com intenção de exibi-la no museu? Ela
tentou respirar normalmente. Ele andava distraído e
misterioso ultimamente. Mas havia sido um segredo do tipo
"espere pra ver". Seria aquela sala apenas um depósito até
que a documentação dos objetos fosse regulamentada e a
coleção pudesse ser exibida no humilde museu deles? Teria
sido uma estratégia fantástica!
Mas a sala não parecia provisória. Sua onda de esperança e
idealismo dissipou-se. Richard estivera envolvido com a pior
espécie de contrabandistas de antiguidades e eles se voltaram
contra ele. De que outra maneira as evidências poderiam ser
explicadas?
Mas se eles conseguiram entrar, por que não levaram tudo?
Se aquilo se tratasse de um acordo malfeito, por que deixar
todas aquelas riquezas para trás? Por que os assassinos de
Richard não levaram tudo? Se...?
Deborah virou-se. Lentamente, quase sem ruído, a maçaneta
da porta do quarto começou a girar.
CAPÍTULO 9
Deborah tinha poucos segundos para decidir, e todas as
opções pareciam apostas arriscadas. Então, quando a porta
do quarto começou lentamente a ser aberta, ela deitou-se e
enfiou-se no único esconderijo do cômodo: sob a cama de
Richard.
Por um momento, fez-se silêncio. Deborah estava de
bruços, com as pernas do lado da cabeceira e o rosto voltado
para o pé da cama, a pouca distância da porta. Prendeu a
respiração e aguçou os ouvidos. Não houve entrada brusca
ou botas de policiais. Quem quer que estivesse entrando,
não deveria estar ali. Ela devia ter se trancado no banheiro.
Deborah colou-se ao chão, palmas das mãos abertas. Em
quase toda a extensão da cama, a enorme colcha tocava o
chão. A coberta garantia ao esconderijo infantil certa
proteção, mas, por outro lado, não permitia que ela visse o
que acontecia no quarto. A não ser por um ponto. Do lado
esquerdo, a colcha estava dobrada num V que se formara
quando ela se escondera. Devagar, ela virou a cabeça de
modo a poder ver alguma coisa.
Carpete, o pé de uma das mesinhas de cabeceira, o sombrio
espaço atrás da estante. A mão estendida de Richard. Isso é
loucura. Saia daí agora.
Não. Ela não gostara da maneira furtiva com que a porta se
abrira, do cuidado que aqueles pés haviam tomado ao entrar.
Passou-se algum tempo sem que Deborah ouvisse nada.
Tanto tempo que ela começou a pensar que o invasor havia
ido embora. Ela então ouviu, de maneira clara e distinta, um
longo expelir de ar, talvez um suspiro. Moveu-se um pouco,
tentando conseguir um campo de visão mais amplo na
abertura da colcha. Não conseguiu nada. No entanto, quem
estava no quarto, a menos de um metro de onde ela se
encontrava, deu dois passos rápidos, e um par de sapatos
apareceu em seu campo de visão: tênis brancos com o logo
da Nike no calcanhar. Tênis de mulher. Estavam
posicionados de modo a olhar para o corpo e para a sala
secreta onde ele estava caído. Enquanto Deborah olhava,
eles se apoiaram na ponta, inclinando-se para a frente, como
se a pessoa estivesse esticando o pescoço para poder ver
alguma coisa. Em seguida, tudo ficou parado.
Bruscamente, os pés se viraram em direção à porta e foram
embora. Deborah ouviu a porta abrir e fechar novamente,
muito menos furtivamente dessa vez. Depois, a distância,
ouviu alguma coisa mais, vozes masculinas subindo pelo vão
da escada: a polícia.
Agora.
Com um movimento rápido, ela rolou para fora da cama,
ajeitou a roupa com as mãos e abriu a porta do quarto. Ainda
no patamar, preparando-se para receber os oficiais que
subiam a escada, estava Tonya, a empregada de meia-idade,
com seus tênis Nike impecáveis que, com certeza, lhe foram
dados por alguma filha ou sobrinha. Ao ouvir a porta se
abrir, ela virou-se, boquiaberta, e olhou para Deborah com
indisfarçável animosidade.
CAPÍTULO 10
As duas mulheres se olharam em silêncio, indiferentes ao
ruído dos policiais uniformizados que, cautelosamente,
anunciavam sua presença enquanto subiam a escada. Um
deles era gordo e careca, apesar de não parecer ter mais de
30 anos; o outro era negro e magro.
— Srta. Miller? — perguntou o policial careca, desviando o
olhar de uma mulher para outra.
— Sim — disse Deborah, fazendo um esforço para descolar o
olhar da mulher negra. — Ali.
Os dois tiras trocaram olhares e o careca dirigiu-se para a
porta do quarto. Apesar de fazer pouco mais de 30 segundos
que ele havia entrado, parecia que uma eternidade se
passara. O outro policial vacilava, constrangido como se
tivesse interrompido um culto religioso, apesar de Deborah
não saber dizer se ele agia assim por causa das duas mulheres
ou do cadáver. Ele disse alguma coisa, mas Deborah não
estava prestando atenção, pois aguçava os ouvidos para ouvir
a conversa que o policial careca, ao sair do quarto, iniciara ao
rádio. Ela percebeu que ele estava pálido, mas tentando
mostrar-se corajoso. Estranho, pensou Deborah. Ela estivera
tão perdida em sua dor ao ver o corpo de Richard que não se
sentira horrorizada ou enojada com ele.
— Pensei em adiantar o trabalho do dia — disse Tonya. —
Eu sabia que teria um dia duro por causa do evento de
ontem à noite.
— E a senhorita?
— Sim? — disse Deborah, virando-se para o policial negro.
Ele segurava um bloco de anotações e olhava, ansioso, para
ela. É provável que estivesse preocupado em proceder
corretamente, ela pensou, sentindo uma estranha compaixão
por ele.
— Recebi um telefonema me dizendo que eu tinha de voltar
para cá — ela disse. — Acho que foi um pouco antes das
três.
Agora, eram quase quatro. Era isso o que Tonya chamava de
adiantar o trabalho?
— A senhorita conhece a pessoa que ligou?
Deborah disse que não e repassou seus movimentos e a
maneira como encontrara o corpo. Tonya tentou não
transparecer que ouvia cada palavra com extrema atenção.
— E a senhorita nunca tinha visto a sala atrás da estante? —
perguntou o tira careca, que assumira a liderança ao juntar-
se novamente a eles.
— Nunca imaginei que existisse.
— Nem eu — disse Tonya. Ela evitou olhar para Deborah.
— Vai demorar um pouco até que os especialistas cheguem
para isolar a cena do crime — disse o tira careca. — Tem
algum lugar onde vocês possam esperar?
Eles deixaram o tira negro vigiando o quarto. Descendo a
escada, Deborah indicou o caminho para a sala de estar,
onde ela e Tonya acomodaram-se silenciosamente em
cadeiras Queen Anne, olhando para as paredes, enquanto o
tira careca andava de um lado para o outro olhando,
aleatoriamente, para os quadros e objetos da sala. De vez em
quando, fazia anotações, como se quisesse provar a si
mesmo que era mais detetive que tira de bairro. Ficaram
assim uns 20 minutos, antes de ouvirem bater a porta da
frente da casa. Em seguida, ouviram vozes se avolumando,
como se um exército de investigadores e especialistas tivesse
entrado trazendo seus equipamentos.
— Por que não voltamos para cima? — perguntou o tira. —
Para o caso de alguém querer falar com vocês.
Ele parecia indeciso, mas elas seguiram sua liderança
levemente incerta e sentaram-se nas duas cadeiras de
espaldar alto do patamar enquanto o tira desaparecia para
falar com o encarregado.
— Sinto muito pelo que aconteceu com Richard — disse
Tonya. Foi um comentário inesperado, quase brusco: um
tipo de concessão, mas uma concessão que lhe ficou
atravessada na garganta.
Deborah assentiu com a cabeça, mas não soube o que dizer.
Tonya era uma boa empregada — na verdade, boa demais —
, e o tipo de orgulho que sentia por seu trabalho indicava
que o que fazia no museu era um grande incômodo. Ela era
uma pessoa franca e durona e — apesar de fazer um trabalho
que implicava receber instruções — ressentia-se com
qualquer demonstração de autoridade sobre ela.
Pelo menos, qualquer autoridade vinda de você, Deborah
lembrou a si mesma. Quando se tratava de Richard, ela se
mostrava respeitosa, até mesmo dócil. Era de Deborah que
ela não gostava. Ela chegara a essa conclusão porque sendo
mulher, branca e mais jovem, era ela a patroa de Tonya. Mas
achava que existia alguma coisa mais, alguma coisa pessoal,
um ressentimento que ela não conseguia precisar. Agora
Richard estava morto, e, no meio da noite, Tonya
esgueirava-se furtivamente pelo quarto dele...
Não pense nisso. Deixe a investigação para os detetives. Não
se envolva.
Deborah suspirou e continuou a observar enquanto a casa se
enchia de gente, pessoas munidas de cameras, evidências em
sacos plásticos e rolos de fita amarela. De vez em quando as
pessoas — homens, eram todos homens —conversavam
entre si e lançavam olhares silenciosos a ela e a Tonya, mas
durante um longo tempo ninguém se dirigiu a elas, o que fez
com que passasse a se sentir parte da audiência de uma peça
estranhamente íntima e surreal. Durante meia hora, eles
entraram e saíram, falando e fazendo anotações, iluminados
por ocasionais flashs de máquinas fotográficas, mas ninguém
falou com ela. Passados mais 20 minutos, chegou uma
policial, uma mulher encorpada que lhe ofereceu água e
tentou distraí-la enquanto, em uma maca coberta, tiravam o
corpo de Richard do quarto. Um homem que imaginou ser
patologista conversava com o detetive, que parecia estar
encarregado do caso. Ele gesticulava com as mãos, indicando
alguma coisa com aproximadamente 30 centímetros de
comprimento. Novamente com os dedos, indicou o
tamanho das incisões.
A arma.
— Srta. Miller? — disse o detetive, enquanto o médico-
legista se afastava. — Estamos prontos para conversar com a
senhorita.
Ele fez um gesto de cabeça para Tonya.
— Se a senhora não se incomodar de esperar aqui por
alguns minutos — ele disse —, voltaremos logo para lhe
fazer algumas perguntas.
Ele era alto, tinha mais ou menos a mesma altura que ela,
ombros atléticos, cabelos escuros e pele bronzeada. A maior
parte das mulheres o consideraria charmoso, pensou ela, não
se importando em descobrir por que não se sentia como
todas elas.
— Sou o detetive Chris Cerniga — ele disse. — Você pode
vir até aqui? Ele falou de modo delicado, como se o trauma
de retornar ao quarto
estivesse além das forças dela, apesar de seu olhar austero
titubear quando ela colocou-se de pé, com toda sua altura, e
dirigiu-se ao quarto. Ele aprumou o corpo, jogando os
ombros para trás um pouco mais do que o necessário, e
seguiu-a, passando pelo policial negro. Dentro do quarto
havia outro detetive, um homem que começava a mostrar
sinais de calvície, usando um conjunto manchado de tecido
sintético. Quando entraram, ele examinava a estante de
livros e não se virou.
— Dave — disse Cerniga. Quando virou-se para olhar para a
testemunha, seu olhar fixou-se nela. Apesar de não saber
precisar o motivo, parecia não estar sendo esperada. — Esta
é a srta. Miller — disse Cerniga. — Foi ela quem encontrou
o corpo.
— Detetive Keene — disse o homem calvo, sem oferecer a
mão ou exibir o distintivo. Na verdade, agora que estava
sendo apresentada a ele, o detetive agia como se ela não
merecesse tal privilégio, dando-lhe as costas e voltando a
examinar os livros na estante.
— Compreendo que isso seja extremamente difícil para você
— disse Cerniga —, mas gostaria que respondesse a algumas
perguntas.
Muda, ela assentiu com a cabeça. O quarto estava
exatamente como ela o deixara, a alcova escondida atrás da
estante ainda aberta, suas paredes iluminadas com seus
estranhos tesouros. Apenas o cadáver havia sido retirado. O
espaço no chão onde o corpo de Richard estivera ficara
marcado por uma mancha escura e poderosa sob o foco
peculiar das luzes, formando um retângulo ao redor do
ponto. Toda a alcova fora considerada cena de crime e
isolada com fita amarela. Deborah sentiu-se como se
estivesse vendo tudo aquilo com olhos alheios, ou como se,
acordada, estivesse tendo um sonho estranho, onde o
mundo havia se tornado irreal e distorcido.
— A senhorita saberia me informar se o museu possui algum
tipo de arma ritualística?
— Ritualística? — ela perguntou, incrédula. — Temos uma
machadinha em um dos expositores, no andar de baixo...
— Não — ele disse. Refiro-me a uma arma com lâmina
estreita, como uma adaga ou espada.
Ela ficou ali, parada, com a boca entreaberta, enquanto
tentava entender o que ele estava dizendo. Em seguida,
enrubesceu.
— Certo — ela disse. — Claro. Não. Não temos nada
parecido. Sinto muito.
Ela não sabia por que dissera sinto muito. Sentia as mãos
ligeiramente trêmulas. Cerniga conferia suas anotações.
— Noite dura para os idosos de Atlanta — disse o tira que se
apresentara como Keene, lançando um esgar para Cerniga.
— Como assim? — perguntou Deborah.
— É o segundo assassinato da noite — disse Keene,
encolhendo os ombros. — O outro aconteceu a um
quarteirão daqui. O cara também era idoso.
Ele fez o comentário como se estivesse falando de um
sanduíche.
— Existe algum tipo de relação? — perguntou Deborah,
igualmente intrigada com o conteúdo e o desembaraço da
conversa.
— Não — ele disse. Motivos totalmente diferentes.
— Lá fora, a senhora disse ao oficial que não sabia da
existência da sala atrás da estante, certo? — perguntou
Cerniga, levantando os olhos de seu bloco de anotações.
— Sim — disse Deborah.
— Esta noite a senhora simplesmente trombou com ela por
acaso — perguntou Keene?
Havia nos olhos dele um brilho que não a agradou, uma
mistura de arrogância e suspeita.
— Não foi por acaso — ela disse. — Eu estava procurando
Richard... o sr. Dixon... e acabei aqui. Encontrei este
fragmento de cerâmica e vi a marca de óleo ao pé da
estante...
Ela mostrou o fragmento de cerâmica que estivera
distraidamente segurando desde que o pesadelo começara e
percebeu que, imediatamente, os homens a fixaram com o
olhar.
— Sinto muito — ela disse, voltando a sentir-se como se
tivesse feito alguma coisa estúpida. — Eu devia ter entregue
isto ao primeiro policial que chegou. Ou deixado onde o
encontrei...
— Você acha? — perguntou Keene, sarcástico.
— Onde você encontrou isso? — perguntou Cerniga,
claramente irritado.
Deborah apontou.
— Ótimo! — rosnou Keene. — Quer dizer que a cena do
crime foi contaminada!
— Do que se trata? — perguntou Cerniga...
— Como assim? — perguntou Deborah.
— O fragmento de cerâmica — respondeu ele. — Do que se
trata?
— É o fragmento de algum vaso ou pote — ela disse,
afastando-se de Keene. — Parece antigo, mas pode ser uma
cópia. Talvez seja grego. Micênico.
— Grego? — perguntou Cerniga. Seu tom de voz parecia... o
quê? Impressionado? Intrigado? Alguma coisa do tipo.
— Onde está o resto? — perguntou Keene.
— Deve estar ali, eu acho.
Ela apontou para o canto da sala onde os outros fragmentos
se encontravam.
— Isso vale alguma coisa? — perguntou Cerniga.
— Depende. Se for autêntico, quer dizer, antigo, sim. Se for
falso, não vale nada. Mas se for verdadeiro... a história é
diferente — respondeu Deborah.
— Mesmo sem estar colado com o resto? — perguntou
Cerniga.
— Qualquer coisa que seja tão antiga assim, se for recolocada
no lugar corretamente, continuará sendo valiosa.
— Quanto vale? — perguntou Keene, interrompendo como
um parceiro de dança com botas ferradas.
— Não tenho idéia.
— Chute.
— Seria necessário ver a peça montada. Dependeria do
formato e do tamanho...
— Eu pedi que desse um chute. Afinal, onde estamos, em
um Antiques Road Show maluco?
— Milhares de dólares — ela disse, dando de ombros. — Uns
10 mil, talvez mais.
— Por isso? — perguntou Keene, mostrando-se subitamente
impressionado e surpreso.
— Pelo pote todo, pode ser — disse Deborah. — Se
realmente for micênico.
— Micênico?
— Da Idade do Bronze Micênica, da Grécia Antiga.
— Qual a idade dessa Idade do Bronze? — perguntou
Cerniga.
— De 3.000 até por volta de 200 antes de Cristo — disse
Deborah. — Por aí.
Por um segundo, os dois detetives olharam para o fragmento
que Keene tinha na mão com expressão de reverência, e
Deborah, curadora até os ossos, não conseguiu evitar um
sorriso.
— Então... essas outras coisas... — continuou Cerniga,
passando a mão sobre os expositores — são da Idade do
Bronze? São todas mice...?
— Micênicas. Parece que sim, mas...
— Mas, o quê? — perguntou Keene, dando a entender que
ela estava sendo pedante, desviando o assunto, em vez de ir
direto ao ponto.
— Não acredito que possam ser autênticas — disse Deborah.
— As pessoas saberiam de sua existência. Já as teriam visto
antes. É impossível trombar com uma coleção dessas assim,
dessa maneira.
— Mas se fosse uma coleção autêntica — disse Cerniga —,
quanto valeria?
— Milhões. Bilhões — ela disse. — Eu nem me atreveria a
avaliar uma coleção tão importante.
Um longo silêncio abateu-se sobre a sala enquanto os
detetives se afastavam dela para olhar para os artefatos de
ouro, bronze e cerâmica brilhando embotadamente na luz
suave.
Foi um momento de reverência, como sentar-se sozinha
num templo entre as sessões, como fizera durante anos
seguidos depois da morte de seu pai. Um momento
impregnado de memórias, constrangimento e tristeza.
Será que tudo se resume a dinheiro? Foi por isso que Richard
morreu?
— O que significa esta palavra? — perguntou Cerniga,
trazendo-a de volta à realidade enquanto mostrava o bloco
de anotações, agora dentro do saco de polietileno,
encontrado na mesa de cabeceira de Richard. — Atreu.
Você sabe o que significa? Alguma coisa pessoal ou
profissionalmente relacionada ao sr. Dixon?
Deborah balançou a cabeça.
— Apenas lendas — ela disse.
CAPÍTULO 11
Às cinco e quarenta da manhã, eles lhe deram permissão
para voltar para casa, dizendo-lhe que precisariam voltar a
falar com ela assim que tivesse descansado um pouco. Ela
lhes deu seu número de telefone e disse que, durante a
tarde, seria encontrada no museu. Pela segunda vez naquela
noite, dirigiu-se ao estacionamento para pegar o carro. Não
existia nada de parecido entre as duas vezes.
Richard. Meu Deus! Ela não tinha a menor idéia do que faria
quando a realidade de sua morte realmente se instalasse em
sua mente. No momento, sentia apenas um vazio no
coração, como se uma parte de si mesma tivesse sido
roubada, arrancada tão rapidamente que ela ainda não tivesse
tido a chance de sentir. Ela sabia que a sensação de perda
chegaria queimando, cortando e rasgando, mas, no
momento, sentia apenas um vazio, um vácuo que,
eventualmente, se encheria de sentimentos. E depois?
Como faria para lidar com a rotina diária, a administração do
museu, ou simplesmente para continuar vivendo, como se
tudo fosse normal? Essa parecia ser a pior parte. Nesse
momento, gostaria que as coisas nunca tivessem chegado a
tal ponto. Gostaria de poder pensar em seu trabalho sem
pensar no homem que o oferecera. Superar seu sofrimento
exigiria um pouco de esquecimento, o que lhe parecia
desleal, imperdoável.
Ainda estava escuro quando ela saiu da Juniper e entrou no
condomínio. Estacionou ao lado do Corniso branco e
caminhou até a porta da frente, mal notando o cricrilar dos
grilos no ar pesado e úmido. Chegava-se ao apartamento dela
por uma passagem estreita com um portão de ferro, sem
cobertura, a não ser pelas duas glicínias. Ela sentiu o ar
carregado de perfume enquanto abria o portão, mas foi
apenas no escuro corredor de tijolo aparente, parada à porta
de entrada do apartamento, as chaves a apenas alguns
centímetros da fechadura, que Deborah começou a
processar o cheiro. Não se tratava do odor de flores, mas de
especiaria, como algum licor ou colônia exótica com um
toque a mais: uma pitada de fumo de cachimbo que a fazia
lembrar de seu pai.
Espere.
Ela não se moveu. Ela respirou cuidadosamente como se o
cheiro fosse venenoso. Deborah não fumava e podia contar
quantas vezes havia usado perfume nos últimos seis meses.
Ela ia usar perfume hoje a noite mas como teve que acalmar
Richard e Tonya ela não tinha conseguido voltar para casa.
Havia outro apartamento nesta rua. Pertencia a senhora
Reynolds, uma viuva que nunca saia do apto a noite.
Ela virou a chave e esperou ouvir a porta se
abrir. Espere
Ela não se moveu. Ficou onde estava e respirou.
Captou, suspenso no ar, o aroma do jantar da noite anterior;
a massa que ela deixara sobre o fogão cheirava a alho e
manjericão. O cheiro familiar de uma casa aconchegante,
cheia de plantas protegidas do ar externo da Geórgia durante
um dia inteiro de verão. O que mais? Um toque de loção
após barba e o cheiro rançoso de fumo de cachimbo.
Fuja.
Deixando a porta aberta, ela virou sobre os calcanhares e,
rapidamente, caminhou em direção ao Toyota verde.
Apertou o alarme. As luzes internas do carro piscaram uma
vez e as travas soltaram. Ela correu até o carro.
Havia alguém no apartamento dela.
Deborah escancarou a porta do carro, onde bateu o joelho
enquanto entrava, e colocou as chaves na ignição. Com um
giro rápido, as travas voltaram ao lugar e o motor começou a
funcionar.
Graças a Deus.
Deborah ligou os faróis e avançou alguns metros com o
carro, de modo que eles iluminassem o caminho que dava
para o portão de ferro de sua casa. O facho de luz deu um
colorido imediato à noite; o verde exuberante das folhas das
camélias e o vermelho-terra dos tijolinhos saltaram na
escuridão. Assim como o branco da mão do homem que
segurava o portão de ferro batido.
A mão ficou ali por um segundo — talvez menos — para,
em seguida, largar o metal e desaparecer no caminho
escurecido pela folhagem. Depois de vibrar um pouco nas
dobradiças, o portão ficou imóvel.
Deborah saiu com o carro, ao mesmo tempo em que discava
um número em seu celular.
CAPÍTULO 12
Levada por uma viatura policial com as luzes piscando,
Deborah passou pelas portas do museu e entrou aspirando
grandes golfadas de ar para tentar recuperar a compostura
antes de começar a explicar-se.
Eles esperavam por ela no saguão inferior, ao lado do T. Rex
e da proa em forma de mulher-dragão da antiga nau. Ela
esperava um número maior de policiais. Os dois detetives
continuavam lá. Assim como Tonya. Quando entrou, Keene
olhou para ela, com rosto injetado e expressão irritada.
— Você farejou alguém em seu apartamento? — ele
perguntou, dando ênfase à palavra. Pelo menos eles já
sabiam o que ela dissera ao atendente. Ela não estava com
muita vontade de recontar a história.
— Sim, tive a clara impressão de que havia alguém lá — ela
disse, olhando então para Tonya. Não dava para saber se ela
ainda estava sendo interrogada. Bruscamente, a mulher
negra virou-se para o lado, mostrando a Deborah suas
tranças de cabelos grisalhos. Antes disso, lhe lançara um
olhar bastante claro: A rica sinhazinha quer privacidade?
Sinta-se à vontade.
— Alguma chance de podermos ganhar uma xícara de café?
— Keene perguntou a Tonya.
A empregada empertigou-se. Deborah preparou-se para
ouvir uma reclamação que não veio. Em vez disso, ela
simplesmente deu de ombros.
— Acho que hoje vocês não vão me deixar fazer muito,
além disso — ela disse. — Quer creme ou açúcar?
Deborah levantou uma das sobrancelhas. Cerniga virou-se
para a odiosa mulher-dragão da proa.
— É impressionante — disse Cerniga, olhando para cima,
utilizando um tom neutro.
— Não é? — concordou Deborah. Depois, arrependendo-se
um pouco, ela continuou: — Richard queria restaurá-la
adequadamente. Acho que ela se parece com a capa de um
dos discos do Whitesnake.
— Eu gosto — disse Cerniga, sorrindo e procurando o bloco
de notas em seu bolso.
— Por dez dólares você pode levar — disse Deborah,
sentando-se em sua escrivaninha. — Devo contar sobre a
pessoa que vi em meu apartamento?
— Na verdade, não — disse Cerniga. — A não ser que tenha
alguma coisa a acrescentar à versão que passou por telefone.
— Ah — disse Deborah, aliviada. — Acho que não.
— Você chegou a vê-lo?
— Só a mão dele, no portão.
— Branca?
— Sim.
Cerniga bateu a ponta da caneta esferográfica no canto do
bloco.
— Vamos conversar um pouco sobre o museu no
escritório? — perguntou.
Ela o conduziu, passando pelo balcão de informações e pelos
banheiros até a livraria (na verdade, era mais uma loja de
suvenires, mas Richard insistira que sua maior parte fosse
livros). O escritório ficava ao lado da loja. Havia duas
escrivaninhas com computadores e uma impressora, dois
telefones e uma estante. O restante da sala era ocupado por
uma mesa de reuniões oval, de mogno polido, com oito
cadeiras. Eles sentaram-se em uma das pontas. Keene não
tardou a entrar, resmungando coisas inaudíveis para um dos
policiais que estava do lado de fora. Ele não olhou para
Deborah.
— Não há muito o que dizer — disse Deborah, observando
a expressão desagradável de Keene, enquanto analisava as
paredes do escritório, escorregando os olhos dos pôsteres de
arte pré-colombiana para os de exibições fotográficas locais,
como um pastor furtivamente olhando as páginas de uma
revista Playboy. — Richard era um benfeitor local das artes
e da educação...
Keene resfolegou. Deborah olhou para ele.
— Alguma coisa ficou presa em minha garganta — disse
Keene, gesticulando com a mão e dando um sorriso de
contentamento.
— Ele sempre valorizou as artes, a cultura e a educação —
disse Deborah, cuidadosamente — e decidiu abrir um
pequeno museu. A entrada era gratuita. A coleção era...
errática.
— Erótica? — perguntou Keene, com sarcasmo.
— Errática — repetiu Deborah.
— Ah — disse Keene. — Isso é mau.
Deborah virou-se para Cerniga.
— Ele exibia todo o tipo de coisas — ela disse. — Objetos
do mundo todo exibidos em expositores fora de moda,
geralmente de maneira aleatória. Enfim, quando ele se
aposentou, decidiu dar uma incrementada no negócio. Criou
um conselho administrativo, contratou um curador...
— Você — disse Cerniga.
— Não da primeira vez — ela disse. — Sou a terceira. Estou
aqui há apenas três anos.
— De onde você veio?
— Minha tese foi sobre este museu — disse Deborah. — Mas
nasci em Boston e estudei em Nova York.
— Sim, seu sotaque parece com o de lá — disse Keene,
enfatizando seu sotaque sulino, para o caso de ela não ter
percebido. — Pensei que você só tivesse estudado lá.
Deborah ficou sem saber o que dizer. Keene não gostava
dela; não gostara dela desde o momento em que a vira.
— Desde então, venho tentando expandir e colocar foco na
coleção — ela disse, fazendo um esforço para concentrar-se.
— Na verdade, foi esse o motivo do evento de ontem.
Angariar fundos. Estávamos planejando trazer uma coleção
de antiguidades celtas...
— Isso é fascinante — disse Keene, com evidente desprezo.
— Que tal nos dar a lista dos convidados da reuniãozinha de
ontem à noite?
— Estávamos nos perguntando — explicou Cerniga,
desculpando-se levemente — se uma das pessoas que
participaram do evento pode ter ficado aqui dentro ou
voltado mais tarde.
Deborah demorou um segundo para entender o que ele
estava dizendo: ninguém se importava com o fato de
Richard estar morto. Importavam-se apenas com o fato de
ter sido assassinado.
Ela abriu uma das gavetas da escrivaninha, de onde tirou a
lista de confirmação de presença dos convidados.
— Esta é a lista de todas as pessoas que confirmaram
presença — ela disse. — Não posso garantir que tenham
estado todas aqui, mas posso verificar. Com certeza vou me
lembrar da maioria. Havia alguns que eu não conhecia, e
pode ser que Richard tenha convidado alguém mais,
informalmente.
Isso era típico dele. Fazia Deborah ter tudo organizado para,
em um segundo, desmantelar todo o esquema dela... O que a
deixava exasperada e fazia sorrir ao mesmo tempo.
— E os funcionários? — perguntou Keene.
— Tonya estava aqui — disse Deborah — e alguns de nossos
voluntários. O pessoal do bufê trouxe seus funcionários.
— Eram muitos?
— Três garçons e dois barmen — disse Deborah.
— A que horas foram embora?
— Tonya foi embora mais cedo — disse Deborah. — Por
volta das nove. Eu acho. Ela ficou apenas para ver se as
coisas corriam bem. Os voluntários ficaram por
aproximadamente mais uma hora. O pessoal do bufê saiu por
volta das 11:15hrs — acrescentou ela. — À meia-noite,
todos os convidados tinham ido embora.
— E a senhorita foi a última a sair? — perguntou Keene.
— Sim.
Bateram à porta e Tonya colocou a cabeça para dentro,
sorrindo, encabulada. Ela levantou as duas canecas de café
que trazia na mão, pedindo permissão para entrar. Cerniga
indicou o caminho e abriu espaço na mesa para as canecas.
Ela as colocou sobre a mesa, empurrando-as na direção dos
policiais. Não dirigiu o olhar para Deborah, nem lhe
ofereceu coisa alguma. Por um segundo, Deborah pensou
em pedir-lhe algo, talvez um café da manhã completo...
Poderia ter valido a pena, só para ver a cara dela.
Ah, sim. Humor. Seu esconderijo costumeiro...
Quando Tonya saiu, Keene virou-se para Deborah e dobrou
um pedaço de papel que parecia ter sido mandado por fax.
— Você já viu algo assim antes? — ele perguntou.
Ao se inclinar para ver, ela percebeu uma expressão no rosto
de Cerniga, um rasgo de irritação acrescido de um momento
de indecisão. No final, ele apenas franziu o cenho e,
rapidamente, desviou o olhar, como se estivesse bravo com
Keene por ele ter lhe mostrado a foto.
Era uma faca, ou pelo menos foi isso o que ela pensou,
apesar de ser longa e fina como uma espada, com cabo em
forma de cruz que virava para baixo, acabando um pouco
antes da lâmina. Se enterrada em um corpo até o cabo,
perfuraria a pele dos dois lados do corte.
...deixando pequenas cicatrizes simétricas...
A faca da foto estava enfiada no que parecia ser uma bainha
de couro preto. A ponta da bainha era arrematada com metal
brilhante e estava pendurada em uma corrente comprida,
elaborada para suspendê-la, como a um cinto. Era uma arma
elegante, porém de aparência letal, apesar de não ser isso o
que a tornava impressionante. Na parte de cima do cabo
escuro havia um disco de metal gravado com um símbolo
conhecido.
— É uma suástica? — ela perguntou.
— Acho que sim, não parece familiar? — disse Cerniga,
virando-se para ela e esticando a mão para pegar o fax. Seu
rosto estava inexpressivo.
— Eu nunca vi nada assim — ela disse, franzindo a testa.
— Nada parecido na coleção?
— Não.
— A suástica não é relevante — ele disse, passado um
momento. — O que estamos é tentando comparar o formato
da arma.
Agora foi a vez de Keene fuzilar o colega com o olhar,
apesar de Deborah não poder avaliar a razão daquele olhar.
Surpresa? Dúvida?
Ela abriu a boca para falar, mas novamente bateram à porta,
dessa vez mais apressadamente. Em seguida, apareceu um
dos policiais uniformizados.
— Tem aqui um sujeito que quer ver a srta. Miller. Disse ser
o advogado de Dixon.
Deborah fixou o olhar nele. Ela não sabia de nenhum
advogado, apesar de imaginar que ele tivesse um.
— Dixon está morto — disse Keene. — Ele não precisa
mais de um maldito advogado.
Havia alguma coisa errada naquele tom de voz, alguma coisa
errada na maneira que ele a olhou.
— Sou considerada suspeita? — perguntou Deborah.
— É claro que não — disse Cerniga, interrompendo.
Keene olhou para baixo.
— Eu também recebi notícias da patrulha que revistou o
apartamento dela. Nenhum sinal de arrombamento ou
qualquer tipo de busca.
Keene olhou com interesse para Deborah.
— Como assim? — perguntou Deborah. Vocês acham que eu
imaginei tudo?
— A senhorita teve uma noite muito estressante — ele disse,
gentil. — Mas longe de mim dizer que a senhorita tenha
imaginado.
Ele lhe deu um leve sorriso e ela sentiu-se enrubescer.
— Vocês acham que eu estou inventando coisas? — ela
perguntou, atônita. — Pensei que eu não fosse suspeita.
— Senhorita — disse Keene —, até que alguém seja
condenado, todos são suspeitos.
— Acho que não estou entendendo — disse Deborah,
voltando a sentir a mente pesada, aquela lentidão idiota,
como se estivesse bêbada ou sedada.
— Vocês acham que eu matei Richard?
— Ei, dona, estou apenas dizendo.
— Por favor, pare de apenas dizer — ela disse, com um
pouco de seu velho olhar desafiador emergindo em meio à
sua confusão. — Eu não entendo o que quer dizer com isso.
E prefiro que o senhor não me chame de dona.
— Isso — ele disse, olhando-a de cima a baixo com ironia
desajeitada — não será problema algum.
Deborah manteve o olhar sobre ele. Sentiu que perdia os
pés. Na verdade, percebeu naquela frase um sentido nunca
antes percebido. Sentia-se flutuando em mar aberto.
Embaixo dela, a água era fria e escura e, lá no fundo,
criaturas com bocas cheias de dentes, olhando, dando
voltas...
— E outra coisa — disse o policial. — Aquele zé-ninguém
que foi assassinado...
— O que tem isso? — perguntou Cerniga.
— Ele tinha um monte de coisas pessoais dentro de um bolso
interno. A escrita parece estrangeira. Grega, talvez.
— Grega? — perguntou Cerniga.
— Talvez — disse o tira. — Eles não tinham certeza. Estão
verificando.
— Não seria perfeito se fosse um caso internacional? —
perguntou Keene, com expressão azeda.
— Talvez você devesse dar uma olhada — disse Cerniga para
Deborah. — Para ver se você já o viu por aqui.
— Porque ele é grego e existe uma sala lá em cima cheia de
bugigangas gregas? — indignou-se Keene, em tom de
descrença sarcástica. — Você acha que isso pode significar
uma conexão?
— Talvez não. — disse Cerniga. Seus olhos estreitaram-se e
ele virou-se para Deborah. — A senhorita sabia que, nas
duas últimas semanas, o sr. Dixon fez uma série de ligações
internacionais para a Grécia?
— Não — disse Deborah, honestamente.
Mais segredos.
Cerniga suspirou e olhou para o tira uniformizado.
— Talvez não haja conexão — ele disse —, mas vamos
verificar a outra vítima.
— O caso não é nosso — disse Keene, agora petulante. — Já
temos as mãos cheias e não precisamos dessas malditas
conexões de um cadáver... rico, ferimentos de espada,
dentro de casa... com outro... mendigo, sem-teto,
assassinado a balas, ao ar livre!
— Ele era sem-teto? — perguntou Deborah, lembrando-se
do estranho que se movia furtivamente no estacionamento.
— Provavelmente — disse Cerniga. — Ainda não temos
certeza...
— Sem aviso, a porta abriu-se e um homem alto, jovem e
loiro entrou. Era magro e usava um terno claro e amarrotado
com camisa bege aberta no pescoço. Parecia não estar
acostumado a ser questionado.
— Srta. Miller? — ele perguntou, ignorando completamente
os policiais. — Sou Calvin Bowers. Eu era o advogado do sr.
Dixon. Como sou responsável pela herança dele, até o
museu, pensei em oferecer-lhe meus serviços.
Os olhos dele eram de um azul profundo e intrigante, quase
roxos em sua intensidade.
— A srta. Miller não foi acusada — disse Cerniga,
levantando-se e lançando um olhar irritado a Keene.
— Mesmo assim — disse Bowers, os olhos azuis lançando
perigosamente dardos na direção de Cerniga. — Mas este é o
segundo longo interrogatório a que a submetem em poucas
horas, e na mesma noite em que ela encontrou o corpo de
seu mentor. Acredito que quaisquer evidências que tenham
coletado em tais circunstâncias devam ser consideradas de
confiabilidade questionável, não é? Estou absolutamente
certo de que o júri pensaria como eu.
— Espere um pouco — disse Keene, levantando-se.
— Você é o encarregado da investigação? — Bowers
devolveu, rápido. A pergunta parece ter forçado Keene a
uma pausa, abalando sua
segurança. Ele olhou para Cerniga.
— O encarregado sou eu — disse Cerniga. — Podemos voltar
ao assunto do intruso do apartamento da srta. Miller?
— O intruso? — disse Bowers, dirigindo os olhos para
Deborah. — A senhorita está bem?
Ela assentiu com a cabeça, tensa, perguntando-se quem seria
ele e por que se colocava ao lado dela.
— Eu saí antes mesmo de poder olhar para ele.
Keene mostrou os dentes num sorriso.
Bowers virou-se para Keene.
— Se eu ficar sabendo que vocês criaram um ambiente de
interrogação hostil para essa testemunha — ele disse —, vou
anular o testemunho. Fui claro?
O sorriso de Keene diminuiu, apesar de não ter desaparecido
completamente, e ele assentiu com a cabeça.
— Quero deixar bem claro — disse Cerniga — que a srta.
Miller está sendo entrevistada, não interrogada.
— Vocês já definiram a causa do ataque realizado contra o sr.
Dixon? — perguntou Bowers, ainda na defensiva.
— Ainda não — disse Cerniga, que deixava que a grosseria
do colega o contaminasse. — Acreditamos que possa ter sido
um roubo que não deu certo, mas... — ele gaguejou.
— Sim? — disse Bowers, tentando ajudá-lo.
— Ainda não sabemos se está faltando alguma coisa.
— Isso, sem dúvida, deve ter sido assunto do interrogatório
que aplicou à srta. Miller — disse Bowers. — Presume-se
que ela tenha feito a verificação necessária para saber se falta
algum objeto no museu.
— Ainda não chegamos a isso, senhor — disse Cerniga.
Bowers não pôde evitar a ponta de um sorriso. Seria por
causa daquele "senhor" ou da maneira fácil como puxara o
tapete debaixo dos pés de Cerniga? Ele virou-se para
Deborah, sorrindo.
— Srta. Miller, a senhorita possui um inventário completo
da coleção do museu? — ele perguntou. — Isso pode ajudar
a polícia em seu interrogatório, dando-lhe outra coisa para
investigar, além da senhorita.
Os dois policiais mantiveram-se sentados, praticamente
imóveis, enquanto Deborah levantou-se para destrancar o
arquivo.
CAPÍTULO 13
Deborah e Calvin Bowers sentaram-se no saguão do museu,
naquele momento inundado pelo incongruente sol da
manhã. Richard estava morto, mas o sol continuava a bilhar.
Assim eram as coisas, pensou ela, mas aquilo não lhe parecia
certo. Na verdade, ela odiava aquilo tudo. Havia um policial
uniformizado parado ao lado da porta trancada, e os
detetives ainda estavam no escritório.
Longe da presença dos policiais, Bowers era uma pessoa
diferente, descontraída, com sorriso amplo e bastante
simpático. Sentou-se com as pernas estendidas à frente,
relaxado como se fosse um enorme gato, elegante, mas
pronto para agir. Deborah não sentia vontade de conversar,
e a aparência tranqüila dele fez que ela se sentisse insegura
sobre si mesma. Como ele a ajudara, porém, seria rude não
dizer nada.
— Quanto tempo trabalhou para Richard? — ela perguntou.
— Menos de um ano. Mas ele trabalhou com nossa empresa
muitos anos antes disso. Claro. Desde que comprou este
lugar, eu acho. Mas passei a tomar parte poucos meses atrás,
quando ele nos mandou calhamaços de trabalho para fazer.
Falamos por telefone algumas vezes e trocamos corres-
pondência oficial, mas nunca nos encontramos
pessoalmente.
Deborah estava impressionada. A atitude dele no escritório,
mostrando-se absolutamente ultrajado, fez a que ela — bem
como a polícia — acreditasse que Bowers fosse velho amigo
de Richard, que ele se sentia pessoalmente insultado pelo
crime e pela maneira como lidavam com ele. Mas tudo não
passara de um rompante profissional para desestruturá-los.
Seu interesse no caso era estritamente profissional.
— Não posso acreditar que ele não esteja mais aqui conosco
—, disse Deborah. Assim que as palavras saíram de sua boca
para o sol, ela arrependeu-se de tê-las dito, especialmente
para um estranho. — Sinto muito — corrigiu ela,
apressadamente. — Isso não passa de um clichê. Nem
começa a... Meu Deus, há tanto trabalho a ser feito.
Bowers acompanhou sua mudança de assunto com
naturalidade.
— Existem pessoas que podem ajudar a aliviar a carga, não
é? — ele disse. — Na certa você poderá contar com o
conselho administrativo do museu. Ofereço-me para ajudar.
Meu relacionamento com o sr. Dixon foi curto, mas ele era
cliente da firma havia muito tempo e está ligado ao valor da
propriedade, por isso tenho certeza de que eles ficarão
felizes em disponibilizar minha ajuda.
Disponibilizar minha ajuda. Ele parecia um cavaleiro
oferecendo seus serviços a uma dama em apuros.
— Acho que posso cuidar de tudo — ela disse, com uma
pitada de arrogância que não passava de reflexo. Na verdade,
ela não tinha a menor idéia de como poderia cuidar de tudo.
— Não duvido — ele disse, sorrindo para animá-la um
pouco.
— Desculpe — ela disse. — Não estou acostumada a...
... não ser totalmente autoconfiante?
— ...que as pessoas tomem conta de mim — ela disse. —
Richard me dava carta-branca...
Ela pegou-se sentindo um aperto na garganta. Sorriu e
afastou a sensação de maneira não muito convincente.
Simpático, ele assentiu com a cabeça, e durante um tempo
ela olhou para o saguão que ela e Richard haviam montado,
selecionado peça por peça...
— Então você é arqueóloga? — ele perguntou, olhando
criticamente para o expositor dos índios Creek.
— Na verdade, não — disse Deborah. — Sou diretora de
museu. Foi para isso que me graduei.
— E quais são as matérias exigidas para tornar-se uma
administradora de museu? — ele perguntou, voltando a
sorrir com simpatia de modo que ela pudesse relaxar um
pouco.
— Eu me formei em Língua Inglesa e Arqueologia — ela
disse —, mas muitas pessoas escolhem negócios.
— Acho o seu jeito melhor — ele disse.
— Eu também — disse ela e, dessa vez, seu sorriso era mais
amigável.
— Mesmo assim — ele continuou, indicando o expositor
contendo a magnífica machadinha de pedra —, você acaba
no meio de todas essas coisas! Olhe para essa pequena
machadinha. Uma arma bárbara, se é que se pode chamar
assim. Acho que podemos acreditar um pouco em Destino
Manifesto, não acha?
— Eu não acho que os americanos nativos fossem menos
civilizados do que os colonizadores brancos por terem uma
maneira menos eficiente de matar as pessoas — ela disse,
com um sorriso irônico.
— Americanos nativos — ele disse. — Engraçado, não é? As
pessoas pensam que podem consertar tudo com as palavras.
Deborah sentiu um rasgo de irritação, mas não teve tempo
para responder.
— Srta. Miller? — era Tonya.
Ela apareceu da longa galeria que dava para a residência.
Estava hesitante, com as mãos estranhamente cruzadas à
frente do corpo.
— Posso falar com a senhorita? — ela perguntou.
Deborah levantou-se.
— Em particular, se não for problema — disse Tonya.
Deborah inventou uma desculpa para Bowers e as duas
mulheres caminharam silenciosamente de volta ao escritório
do museu.
— Qual é o problema, Tonya? — perguntou Deborah, depois
de fechar a porta atrás delas. Ambas estavam em pé, tensas e
apreensivas.
— Acho que a senhorita sabe — disse Tonya. — Ouça. Eu
estava curiosa. Tenho um amigo na polícia e ele me contou
sobre o assassinato assim que receberam o chamado. Ele
disse alguma coisa sobre uma sala secreta e... eu quis ver o
que era, sabe? Não pensei que fosse o sr. Dixon. Eu não quis
dizer nada.
Deborah não conhecia Tonya muito bem, mas conversara o
suficiente com ela para que aquela última frase soasse de
maneira estranha. Tonya não falava como uma faxineira e
não usava sua cor a seu favor. Como Deborah observara
várias vezes, sua fala era correta e educada, tanto que ela
sempre se perguntara de que profissão executiva ela
despencara para acabar limpando banheiros em um museu.
Ela falava de maneira a deixar claro que ninguém tinha o
direito de menosprezá-la por sua aparência ou pelo tipo de
trabalho que fazia. A Tonya que Deborah conhecia nunca
diria "Eu não quis dizer nada" e, de alguma maneira, a frase
colocava toda a confissão sob uma nova luz, confusa e
incerta.
— Seria melhor que você tivesse esperado a polícia chegar
para ir até lá — disse Deborah, aborrecida.
— Sim, senhorita — disse Tonya, balançando a cabeça
como que espantada pela audácia de Deborah. — A
senhorita tem razão.
Nenhuma resposta malcriada, nenhuma insinuação bem
articulada do que a branca desgraçada deveria fazer com sua
suspeita. "A senhorita tem razão?"
Vindo de Tonya? De jeito nenhum.
Deborah apertou os olhos. Aquilo era como selecionar
figurantes para o filme"E o vento levou".
— Quer que eu lhe traga um café? — perguntou Tonya,
depois de um suspiro de alívio. — Estava pensando em
preparar um para mim, mas estava sentindo um nó no
estômago. Agora melhorei um pouco e acho que já posso
tomar alguma coisa.
Deborah conseguiu mostrar um sorriso e assentir com a
cabeça. Com uma mistura de descrença e desconforto, ficou
olhando enquanto Tonya se afastava. "Estava sentindo um
nó no estômago?" A quem ela estava tentando enganar? E
por quê?
Quando Deborah voltou ao saguão, Calvin Bowers
conversava com um homem alto de terno brilhante: Harvey
Webster. Ela sentiu o coração apertar, mas manteve o
queixo levantado e, rapidamente, caminhou na direção
deles.
Webster tinha expressão séria, mas seu rosto iluminou-se ao
vê-la. Ele não dava indícios de ter estado embriagado na
noite anterior, nem dava a entender que ela o tivesse
despachado.
— Que coisa horrível — ele disse, naquela sua voz baixa e
musical, quando ela se aproximou. — Simplesmente
horrível. Se eu puder ajudar em alguma coisa, é só chamar.
— Obrigada, Harvey — disse Deborah. — Vou chamar.
— A polícia me ligou imediatamente — ele disse. — Disse
que deveríamos fechar o museu.
— Como assim? — perguntou Deborah. — Por quanto
tempo?
— Não muito — ele disse. — Duas, talvez três semanas.
— Três semanas — disse Deborah.
— Talvez a gente consiga convencê-los a abrir mais cedo —
disse Bowers, entrando na conversa com seu estilo de
protetor de donzelas em perigo.
— Ele me pareceu estar falando sério — disse Webster. O
sorriso que lançou a Deborah não chegou aos olhos dela.
Então, aquela seria sua punição. Webster e o conselho
administrativo assumiriam o museu e fariam que ela se
afastasse pelas próximas semanas, enquanto se
reestruturavam. Ela olhou para o sorriso nem um pouco
ingênuo de Harvey Webster e achou que pudesse prever o
futuro: a consistente queda de seu controle sobre a coleção
até que a Liga Cristã dos Executivos brancos pudesse assumir
o poder, até que o museu se transformasse no que sempre
quiseram: uma espécie de parque temático de conteúdo
superficial e cofres cheios de grana.
— Vou conversar com os detetives — disse Webster,
enquanto se afastava. — Ver o que posso fazer.
E conseguir fechar o museu por um mês, provavelmente,
pensou Deborah, sentindo-se manipulada.
Cansada e frustrada por causa daquela sensação de
impotência que detestava, ela virou-se para o lado. Podia
sentir Bowers atrás dela, pronto para lhe dizer algumas
palavras encorajadoras. Ficou ali, de pé, com as mãos na
cintura, olhando para o saguão vazio e iluminado. Sem
Richard, ela ficara realmente sozinha, e o prédio parecia ser
apenas uma casca: vazio e sem sentido sem a presença dele.
Três semanas. Todo o trabalho promocional para as novas
exposições, a felicidade ao segurar as peças, o burburinho e
os cotovelos se tocando, os sorrisos educados permeando as
infindáveis histórias sobre os benfeitores, a cobertura de
imprensa daquela fantasmagórica proa de navio... Todo o
trabalho fora por água abaixo. Dentro de três semanas,
Atlanta teria se esquecido da existência do museu. E o que
ela faria naquelas três semanas? Andaria de um lado para
outro neste mausoléu cuidadosamente iluminado, enquanto
Keene e seus homens faziam piadinhas baratas sobre o
Homo erectus?
Uma idéia desanimadora.
— Pode ser que a gente consiga reabrir o museu mais cedo,
se você puder provar que nada está faltando — disse Calvin.
Ele estava atrás dela, mantendo uma distância respeitosa. Ela
virou-se e sorriu, agradecida.
— Não tenho muita certeza do motivo por que gostaria tanto
de mantê-lo aberto — ela disse. — Talvez porque uma parte
de mim pense que se eu quiser fingir que está tudo normal,
então...
— Compreendo — disse Calvin, descartando o final da
sentença. Deborah respirou fundo e tentou livrar-se do
pensamento.
— Hoje posso fazer um inventário completo para ter
certeza de que tudo está onde deveria estar — ela disse. — É
claro que, se alguma coisa na sala atrás da estante do quarto
de Richard estiver faltando, não terei como saber.
Ela encolheu os ombros e suspirou, sentindo que a
lembrança daquele lugar se impunha em sua memória como
um cheiro familiar e desagradável, o corpo estendido
daquele jeito, debaixo da luz...
Espere.
Alguma coisa estava faltando.
O pote de cerâmica fora retirado do expositor aberto atrás da
estante, e os outros expositores pareciam intocados, o que a
fazia pensar que nada fora retirado dali. Mas na sala secreta
havia aquela luz peculiar, o quadrado de luz que brilhava do
teto, jogando sua luminosidade fria sobre o corpo ferido de
Richard. Mas o que estivera ali, antes do corpo, que
precisava de iluminação especial?
Ela se lembrava que havia uma tomada no centro do piso.
Sim. Houvera um outro expositor no centro da sala. Ele era
grande e especial, continha a peça mais importante da
coleção; grande o bastante para que fosse necessário arrastá-
lo para fora sobre rodinhas, deixando marcas de graxa no
carpete... Mas o que poderia ser ainda mais valioso do que as
peças dos expositores de parede a ponto de ser levado
enquanto o resto do tesouro valioso fora deixado para trás?
CAPÍTULO 14
— Está a fim de fazer uma visita ao necrotério?
Isso vindo do detetive Cerniga. Deborah estava sentada,
muda. Ela estava a caminho do escritório, mas ele pedira que
parasse o carro. Não lhe vinha à cabeça nada que pudesse
dizer.
— Juro que sei que o senhor precisa de identificação formal
e tudo isso — ela disse, mas não me sinto preparada para
olhar novamente para ele. Sei que o corpo era de Richard.
Não existe dúvida quanto a isso. Preciso olhar para ele de
novo?
Ela detestava dizer aquilo, detestava mostrar-se fraca e
emotiva. Detestava a expressão confusa no rosto dele.
— Não — ele disse, dando mais leveza à expressão. — Eu
não me referia ao sr. Dixon. Sua identificação do corpo está
terminada. Refiro-me ao outro corpo. O do zé-ninguém. O
sujeito grego.
Estranho, ela pensou, enquanto assentia com a cabeça e o
seguia até o carro dele, que a idéia de olhar para um cadáver
pudesse lhe trazer alívio. Estranho que alguma outra pessoa,
a filha desse outro homem, talvez, tivesse sentido por esse
grego desconhecido o mesmo que sentira por Richard. O
pensamento ficou com ela enquanto ele dirigia, estacionava
e caminhava pelos corredores sem personalidade do
Instituto Médico Legal. Ficando alguns passos atrás, ela
evitava o olhar das pessoas, seguindo-o em silêncio
enquanto se dirigiam ao porão com encanamento aparente,
blocos de concreto pintados, passagens estéreis e cheias de
ecos.
Ela nunca estivera em um necrotério, mas já vira muitos, em
filmes de cinema e de televisão, o que fez que o lugar lhe
parecesse estranhamente familiar, apesar de suas gavetas
cheias de cadáveres. Tudo era exatamente como imaginara,
e, na verdade, chegou a sentir uma vibração de satisfação
peculiar, como se estivesse prestes a encontrar-se com uma
celebridade cujo rosto conhecia havia anos. A sensação
dissipou-se assim que o jovem assistente com seus óculos
retangulares descobriu o corpo.
Ele era idoso, talvez por volta dos 70 anos, troncudo, seu
corpo avolumando-se debaixo do lençol sintético. Seus
olhos estavam fechados e afundados, mas ela sabia que, se
estivessem abertos, seriam brilhantes e intensos, e olhariam
para ela enquanto cruzasse o estacionamento.
— Sim — ela disse. — Eu o vi perambulando pelo
estacionamento do museu nos últimos três dias, talvez. Ele
falou alguma coisa, mas não entendi o que dizia e, na
verdade, não se dirigia a mim. Estava só... você sabe, falando
sozinho.
— Acho que você não entenderia, pois falava grego — disse
Cerniga.
— Não era grego — disse o rapaz dos óculos. — A tradução
preliminar diz que falava russo. Apesar de que, se não me
engano, no alfabeto russo existem algumas letras gregas.
— O que talvez signifique que ele não tinha ligação com o
tesouro — disse Cerniga, franzindo o cenho.
— Tesouro? — perguntou o assistente, aproximando-se.
Depois de ignorá-lo por um momento, Cerniga disse:
— Podemos ver os resultados?
— Claro — disse o assistente, lançando a Deborah um olhar
intenso. Ele continuava a pensar na absurda palavra que
Cerniga dissera tão displicentemente: tesouro.
—Você deveria hospedar-se em um hotel — disse Cerniga,
para preencher o silêncio que o assistente deixara. — Seria
mais seguro. — Ele deixou as palavras suspensas no ar e, em
seguida, acrescentou, um pouco mais gentilmente: —
Considere isso um feriado.
Um feriado. Como se ela tivesse ganhado um presente. No
momento, não havia nada que ela quisesse menos do que
isso, mas talvez fosse melhor que ela se afastasse em vez de
ficar sentada à entrada do museu matutando...
...impotente...
...esperando permissão para fazer seu trabalho. Depois de
aproximadamente cinco segundos de silêncio pesado, a
decisão foi tomada.
— Tudo bem — ela disse. — Vou procurar um lugar para
ficar.
— Sem alarde — ele disse. Ela piscou e assentiu com a
cabeça, o rosto sem expressão.
O assistente retornou com uma bandeja de objetos
ensacados e uma lista impressa do conteúdo. Ele começou a
levantar os sacos. Não havia carteira ou qualquer coisa
parecida com documentos. Havia uma escova de dentes
quase nova, um alfinete de lapela em forma de escudo, um
envelope endereçado em russo e uma única folha manchada
de papel rasgado, escrita com garranchos em tinta preta.
Parecia fazer parte de uma carta.
— Existem mais evidências — disse o assistente —, mas
estão... danificadas.
Depois de lançar um olhar rápido e desajeitado para
Deborah, ele voltou a olhar para a bandeja.
Encharcado de sangue, ela pensou. Isso foi tudo o que eles
puderam salvar.
— Temos uma tradução? — perguntou Cerniga.
— Ainda não. Não sobrou muita coisa legível — disse o
assistente, verificando o papel. Ele pegou o distintivo de laca
vermelha, verde e dourada contendo a imagem de um
soldado com um fuzil e letras cirílicas ao redor da margem.
Na base do escudo havia uma adaga sobreposta pelo martelo
e pela foice soviéticos. — Aparentemente, o que está escrito
aqui é "Excelente Guarda de Fronteira", ou alguma coisa do
tipo. É dos anos 1950.
— O que significam essas letras na parte de baixo? —
perguntou Deborah.
— MVD — disse o assistente, olhando a folha de papel —
significa Ministério do Interior. Algum departamento sem
importância do governo, eu acho.
— O que estaria um velho soldado soviético fazendo em
Atlanta? — perguntou Deborah.
— Nada que tenha a ver conosco — disse Cerniga, dando de
ombros. — Vamos, vamos embora.
Richard estivera aprontando alguma; sua atitude recente, seu
contato com os advogados do museu, seus telefonemas para
a Grécia e até seu incomum entusiasmo pelo fundo de
captação de recursos, tudo indicava que o que acontecera na
noite passada não caíra do céu, simplesmente. Assim que
voltou ao museu, Deborah dirigiu-se a seu escritório e ligou
o computador. Todos os computadores da residência e do
museu estavam ligados em rede, de modo que, com a
combinação exata das senhas, era possível acessar, de
qualquer terminal, todos os arquivos das máquinas.
O computador demorou um pouco para inicializar. Ela
digitou sua senha e entrou na rede, mas percebeu que a
maior parte das outras máquinas — até a de Richard — não
apareceu. Ela fixou o olhar na tela do monitor.
Os policiais os levaram embora.
Em seguida, sua ficha caiu. Era provável que, apesar de
estarem em seus lugares, os computadores estivessem
desligados. A polícia havia feito o que nenhum funcionário
do museu jamais fizera, desligando-os assim que terminaram
de copiar o conteúdo de seus arquivos. Ela ficou ali, sentada,
encarando o computador inútil.
Alguma coisa mais estivera naquela sala secreta: alguma coisa
grande, algo que Richard guardara em segredo, mas que fora
o objetivo de algum plano. Ele estivera organizando alguma
coisa, talvez um expositor ou uma venda, alguma coisa que
mudaria a imagem do museu para sempre. Seria seu presente
para a população de Atlanta, ela tinha certeza. Richard não
esconderia seus tesouros, mantendo-os em seus aposentos.
Ele os exibiria ao público. Com certeza, era isso o que
estivera planejando. Mas alguma coisa saíra completamente
errada e a principal peça, que estivera sob a luz central da
sala secreta, fora levada... ou interceptada... antes de chegar
ali.
Alguma coisa se agitava dentro dela, um desafio, talvez um
sentido de propósito, um desejo... não... a necessidade de
fazer alguma coisa para ajudar a esclarecer as circunstâncias
da morte de Richard, trazendo a verdade à luz, como se ela
estivesse cavando e espanando algum artefato valiosíssimo,
um ato que traria graça e significado à sua morte vazia e sem
sentido. Ela diria à policia tudo o que descobrisse, assim que
descobrisse, mas faria alguma coisa. Precisava fazer alguma
coisa.
A porta abriu-se. Era Tonya.
— Sinto muito — ela disse, começando devagar. — Não
pensei que a senhorita estivesse aqui. Eu devia ter batido.
— Não tem problema — disse Deborah.
— Volto mais tarde — disse a empregada, dando um passo
atrás.
— Ah, Tonya — disse Deborah, rapidamente, como se
acabasse de ter um pensamento repentino. — Será que você
poderia ligar o computador do Richard no andar de cima?
Preciso baixar alguns recibos da festa de ontem.
Era uma mentira débil, pensou ela, mas que não faria mal a
ninguém, apesar de, por uma fração de segundo, Tonya ter
hesitado antes de sorrir e dizer "Claro".
A porta foi novamente fechada e Deborah ficou sentada,
esperando.
O relógio no canto inferior da tela do monitor virava minuto
a minuto. Deborah levantou-se apenas para voltar a sentar-
se. Tonya diria a Keene e ele se colocaria na frente dela com
aquele olhar malicioso pregado ao rosto. Deborah mexeu o
mouse e deu um clique no menu para desligar. Um novo
ícone, porém, apareceu na tela. Ela digitou mais uma senha
e conseguiu acesso.
Deborah não sabia o que estava procurando. Examinou uma
série de relatórios financeiros e planilhas, mas tudo parecia
estar no lugar certo. Abriu os arquivos de Richard e correu
os olhos pelas pastas. Uma delas causou-lhe um calafrio. Seu
título era bastante simples: "Atreu".
Rapidamente, ela clicou duas vezes sobre o documento e
esperou que o sistema, irritantemente lento, o abrisse. O
documento continha um arquivo simples, salvo em JPEG.
Uma foto?
Ela clicou e esperou que a imagem começasse a ser
carregada. A porta abriu-se. Era Calvin Bowers.
Deborah pretendia minimizar rapidamente a foto assim que
ela surgisse, mas ficou estática por uma fração de segundo ao
ver a tela encher-se com um rosto largo e estilizado, forjado
em ouro: uma máscara mortuária micênica.
CAPÍTULO 15
—Trabalhando um pouco? — perguntou Calvin Bowers,
olhando por cima dos ombros dela para a tela do
computador, agora branca. Ela fechara o arquivo no
momento em que ele entrara, mas não fora rápida o
suficiente para impedir que visse a máscara dourada.
— O senhor não costuma bater? — ela perguntou, o pânico
tomando conta dela.
— Sinto muito — ele disse, com um sorriso amável. — O
que era aquilo na tela do computador?
Deborah vacilou.
— Era uma máscara mortuária grega — disse ela. — Estou
pensando em usá-la na página do museu.
A resposta esfarrapada soou idiota e desajeitada.
— O museu tem uma dessas? — ele disse, num tom que não
era exatamente uma pergunta. Ele sabia que não.
— Uma página na internet? — ela perguntou.
— Uma máscara grega — ele disse.
— Não — ela admitiu. — Trata-se apenas de um tipo de
ícone arqueológico. Um símbolo.
Olhando para ela, ele ponderou um pouco.
— Devo dizer que a senhorita não sabe mentir — ele disse,
finalmente. — Não é seu estilo. O que, para mim, está
ótimo, mas se contar esse tipo de história à policia, corre o
risco de arrumar problemas sérios.
Ela franziu o cenho e desviou o olhar. Ele tinha razão. Sua
vida estava embasada na integridade, o que fazia que, para o
mundo, ela se tornasse péssima mentirosa. O quanto sua
retidão obstinada se entranhara nela mesma fazia-se
evidente no fato de ter tomado seu comentário como um
elogio. Definitivamente, mentir não era seu estilo.
— Pode ser que a máscara tenha ligação com a morte de
Richard — ela disse. — Não sei ao certo. OK?
— OK — ele disse. — Como assim?
— Não tenho certeza — ela disse. — Estou apenas
começando a especular.
— Sobre o quê?
Durante alguns momentos, ela ficou ali, sentada, pensando
mais no que poderia se lembrar do que em articular uma
resposta para ele. Quando ela começou a falar, ele primeiro
ouviu displicentemente e, depois, com mais seriedade,
inclinando-se para a frente, seu olhar apertado e cheio de
vida.
Deborah lhe disse que potes micênicos, jóias e armas eram
uma coisa, mas uma máscara mortuária era algo
completamente diferente. Os arqueólogos costumavam
encontrar todo o tipo de artefatos, em vários tipos de locais,
mas máscaras mortuárias eram encontradas em um lugar
apenas: em sepulturas. Sepulturas de pessoas ricas, ou seja:
túmulos de reis.
Além do mais, trata-se de um rosto.
Sim, aquilo também devia ser levado em consideração.
Armas e jarros, anéis e tigelas, todos tinham um valor
especial, mas nada evocava mais a grandeza do passado, em
termos humanos, do que a máscara mortuária de um
homem, mesmo que estilizada. Além de reais, as máscaras
mortuárias são pessoais e até mesmo íntimas; é como se
olhássemos o passado por intermédio de um túnel para
descobrir que ele termina em um espelho, todas as histórias
e lendas reduzidas ao rosto de um ser humano. Não era de
admirar, disse Deborah, que fossem tão valorizadas pelos
colecionadores e pelas hordas de pessoas que passavam pelos
expositores dos museus, seus olhos perdidos nos olhos da
máscara e, conseqüentemente, nos do homem que a usara
na morte.
Uma outra razão por que tais máscaras eram tão apreciadas
era que, normalmente, não ficavam muito tempo em
contato com o solo. Os túmulos eram, via de regra, bem
marcados, ou as pessoas simplesmente se lembravam do
local onde as cerimônias funerárias aconteciam, assim como
do tipo de tesouros enterrados com o corpo. O que significa
que as sepulturas eram pilhadas, freqüentemente logo após o
enterro e algumas vezes séculos mais tarde, depois da morte
da civilização, deixando apenas as lendas para os ladrões de
sepultura. Quando um arqueólogo conseguia chegar lá, os
objetos de maior valor já tinham desaparecido há muito
tempo. É claro que existiram exceções: a descoberta do
sarcófago de ouro de Tutancâmon feita por Carter, por
exemplo. E Schliemann, em Micenas.
Não se tratava apenas do fato de as máscaras serem raras. Se
alguma fosse encontrada hoje, as chances de tirá-la de seu
país de origem seriam virtualmente zero. As potências
econômicas do século XIX encheram seus museus nacionais
com tesouros levados de nações um dia poderosas no campo
da arte e da guerra e, mais tarde, reduzidas à ignomínia dos
colonizados. Mas esse tempo acabou e não se passa mais um
dia sem que se ouça algum apelo da Grécia, do Egito, do Irã
ou da índia, da Colômbia ou do Peru para que os
proprietários atuais devolvam a seus países de origem
estátuas, jóias, pinturas ou relíquias pilhadas há séculos por
agentes do império europeu. Não, as chances de que
tesouros mortuários micênicos tenham sido trazidos
atualmente para a América, sem levantar a mais leve suspeita
no radar da comunidade cultural, eram mínimas. Quase
nulas. O que a levou de volta a Schliemann.
— Schliemann? — perguntou Calvin. Ele estivera ouvindo
atentamente, inclinado para a frente, e esta era a primeira
palavra que pronunciara desde que ela começara a falar.
Deborah gostava de falar sobre o assunto, e gostava da
maneira como ele sabia ouvir.
— Preciso ler um pouco antes de falar mais sobre ele — disse
ela, com honestidade. — Richard era especialista no assunto,
mas, como não gostava que eu dissesse isso, tentava não
trazer o assunto à baila quando eu estava por perto.
Ela sorriu, pesarosa.
— Por que você não gostava dele? — perguntou Calvin. —
Você o conheceu pessoalmente?
Deborah riu.
— Heinrich Schliemann morreu muito antes de eu nascer —
ela disse. — Fez descobertas fantásticas, mas às vezes seus
métodos eram bem obscuros. E, se me lembro bem, vários
objetos desapareceram.
— Artefatos?
— Artefatos.
— Ouça — disse Calvin, depois de uma pausa meditativa. —
Preciso dar uma olhada na correspondência no andar de
cima, mas talvez possamos conversar um pouco mais
amanhã. Durante o almoço, talvez?
Foi uma pergunta cautelosa. Ele não queria mostrar-se muito
interessado — pelo menos, não nela — ou frívolo. Por que
será que perguntara? Para lhe dar a chance de falar um
pouco, ajudá-la a tirar a morte de Richard da cabeça?
Provavelmente. Ela imaginou que fosse gentileza, apesar de
preferir que ele simplesmente quisesse falar sobre
arqueologia. Richard teria achado ótimo.
— Claro — ela disse, tentando sorrir, porém mal pensando
nele. Sua mente já estava concentrada nos livros do andar de
cima e no que eles poderiam lhe ensinar sobre Heinrich
Schliemann.
CAPÍTULO 16
Deborah hospedou-se no Holiday Inn, do outro lado da
esquina. Quando sentou-se e pediu um hambúrguer no
quarto, a pilha de livros que havia emprestado do estúdio de
Richard (com a permissão de Cerniga) parecia uma parede.
Assistiu televisão, mudando de um canal para outro, até
sentir-se tomada até a medula pelo cansaço. Desligou o
aparelho, deitou-se e dormiu de roupa.
Passou a manhã seguinte manuseando os livros, lendo
rapidamente, verificando referências e, de vez em quando,
devorando capítulos inteiros. Quando terminou já era hora
do almoço, mas ela estava sem fome. Tomara muito café e
ainda sentia a cafeína dançando em suas veias, dizendo-lhe
que não precisava comer. Talvez suas leituras a tenham
deixado mais energética e vibrante do que a cafeína.
Primeiro, a comunidade arqueológica havia ridicularizado
Schliemann e sua convicção de que a Guerra de Tróia
realmente acontecera, mas ele foi até lá e descobriu Tróia ao
nordeste da Turquia, subitamente atraindo a atenção de
todos. Entretanto, muitos se mostraram previdentes e
mesmo seus discípulos ficaram alarmados com seus
métodos. Ele foi acusado de "jogar areia"em suas
descobertas, de deturpar os locais onde encontrara os
objetos, de estocá-los para provar a veracidade dos antigos
poetas e de exagerar a própria glória. Além disso, houve o
episódio do Tesouro de Príamo.
De acordo com Homero, Príamo era o rei de Tróia durante
o cerco dos gregos. Ele era pai de Heitor, Troilus e Paris, que
causara a guerra ao roubar Helena do irmão de Agamenon,
Menelau. Homero disse que a cidade de Priam era rica em
ouro, mas Schliemann chegou ao final de suas escavações
sem encontrar o metal. Quando as escavações estavam
sendo dadas por terminadas, ele, pessoalmente, encontrou
artefatos de ouro parcialmente cobertos de terra. Entre os
objetos havia uma extraordinária coleção de jóias. Essa
história impressionante — e, para muitos, duvidosa —
tornou-se ainda mais estranha quando, depois de terem sido
fotografadas sendo usadas por Sofia, esposa de Schliemann,
todas as jóias desapareceram. Convencido de que o
arqueólogo havia contrabandeado o tesouro para fora do país
e de seu alcance, o governo turco ficou furioso...
Se uma coleção de artefatos pôde ser desviada, por que não
outra?
Depois do trabalho realizado na Turquia, Schliemann iniciou
suas escavações micênicas com um objetivo específico. De
acordo com a lenda, quando Agamenon, rei dos gregos
vitoriosos, retornou a Micenas, foi ludibriado por sua esposa,
Clitemnestra, que o convenceu a tomar um banho e, com a
ajuda de seu amante, o matou. Ele foi enterrado com grande
pompa, e Schliemann acreditava que seu túmulo ainda
estava por ser descoberto.
O governo grego, como todos os outros, mostrou-se cético,
mas acabou lhe dando permissão para escavar. Schliemann,
convencido de que a câmara mortuária real encontrava-se
dentro das paredes da fortaleza, cavou um poço do lado de
dentro da entrada principal, certo de estar retirando massa e
não terra naturalmente compactada. Depois de cavar mais de
três metros, não encontrou nada. Ele começou a cavar um
novo poço, e depois outro e mais três. E as coisas
começaram a ficar interessantes.
Ele encontrou uma série de túmulos contendo restos
fragmentados de vários corpos. Eles usavam diademas feitos
de cobre e arame e, ao lado deles, havia vasos de prata e
facas de pedra de obsidiana. Na sepultura do quarto poço, ele
encontrou os restos de cinco cabeças de touro de prata com
chifres de ouro, espadas de bronze e taças de ouro. O mais
notável é que três dos corpos usavam magníficas máscaras
mortuárias.
Mas foi apenas quando ele voltou ao primeiro poço e cavou
mais fundo que a comunidade arqueológica mundial
finalmente voltou sua atenção e reverenciou aquela antiga
fortaleza localizada sobre uma colina grega. Nesse último
túmulo, ele encontrou o mais precioso de seus achados: mais
três corpos, dois deles usando máscaras de ouro e uma
terceira máscara, diferente de todas as outras, maior, mais
nítida, mais régia.
Em um telegrama, mais tarde descartado por ser considerado
apócrifo, foi reportado que Schliemann teria enviado um
telegrama para um jornal ateniense anunciando, com o
orgulho costumeiro, que havia "olhado para o rosto de
Agamenon".
O que não aconteceu. Na verdade, os corpos e os objetos
que os acompanhavam nas sepulturas eram três séculos mais
antigos que Agamenon, se é que tal pessoa realmente
existiu. A bem da verdade, alguns acadêmicos mostraram-se
bastante desconfiados a respeito da espetacular máscara de
"Agamenon". Diziam que ela possuía um formato diferente.
O nariz não combinava com as outras partes. O cavanhaque
parecia positivamente do século dezenove... Teria evoluído
do roubo e manipulação da verdade para a falsificação
descarada?
Mas, enquanto se acomodava na poltrona, absorvendo tudo,
Deborah sentiu uma nova possibilidade nascer em sua
mente. Seria possível que nas escavações micênicas tivessem
sido encontrados mais objetos do que Schliemann admitiu?
Seria possível que a máscara mortuária pouco convencional
associada (mesmo que imprecisamente) a Agamenon, que
agora ocupava um lugar de honra no Museu Arqueológico
de Atenas, fosse falsa? Nesse caso, teria existido uma máscara
autêntica, substituída por Schliemann? Será que a máscara
verdadeira havia "desaparecido" do mesmo modo que o
tesouro de Príamo desaparecera de Tróia? Será que aquela
máscara estivera no quarto de Richard apenas algumas horas
antes? Como diabos chegara lá?
Richard era capaz de deixar-se cegar por esperanças infantis,
mas não era tolo. Se acreditava que a sala atrás da estante
continha a maior coleção de artefatos micênicos fora da
Grécia, então devia ter alguma evidência apontando para sua
autenticidade. É quase certo que essa evidência estivesse
relacionada à origem: onde e quando a máscara fora
encontrada. Nos círculos arqueológicos, origem era tudo.
Teria Richard sido capaz de traçar o caminho de volta até o
momento em que a máscara fora encontrada? Se isso fosse
verdade, quem mais saberia? Seus assassinos? A pessoa para
quem estivera ligando na Grécia? Seria apenas coincidência
que um velho russo que aparecera apenas alguns dias antes
morresse na mesma noite e a menos de dois quarteirões de
distância do museu? Será que ele sabia alguma coisa sobre
esses artefatos antigos?
Ela pegou a lista telefônica da mesa de cabeceira e, com a
caneta na mão, discou um número.
— Delegacia de Polícia do Condado de Dekalb — respondeu
uma voz feminina.
— Sim — disse Deborah. — Estou ligando a respeito do
russo que foi assassinado nas proximidades do Museu Colina
dos Druidas, duas noites atrás.
— Qual é seu nome?
— Deborah Miller — ela disse, imediatamente sentindo que
não lhe diriam nada. — Eu trabalho no museu e ajudei a
identificar o corpo — acrescentou ela num impulso.
O que era verdade. Até certo ponto.
— Esse caso pertence ao detetive Robbins, mas ele não se
encontra no momento. Quer deixar recado?
— Acho que não — ela disse. — Estou apenas verificando o
andamento do caso.
— O caso está praticamente fechado — disse a mulher, do
outro lado da linha.
— Já? Eles têm algum suspeito?
— Não — disse a policial — e, considerando as
circunstâncias, é pouco provável que encontrem um. Eu não
esperaria muitas pistas para seguir, a não ser que possamos
encontrar uma arma conhecida para aquele tipo de bala.
— Considerando as circunstâncias — repetiu Deborah. — O
que quer dizer com isso?
A mulher claramente soltou um suspiro, e Deborah pensou
tê-la ouvido remexer alguns papéis. Quando voltou a falar,
ela parecia estar lendo.
— Sr. Sergei Voloshinov não era cidadão americano. Ele era
um estrangeiro residente com visto vencido e, até onde
sabemos, mentalmente instável. É provável que tenha
trombado com as pessoas erradas enquanto perambulava à
noite pelas ruas. Simples assim. Não creio que possamos
fazer muita coisa a respeito.
— Voloshinov — disse Deborah, escrevendo o nome no
bloco de notas do hotel. — Como descobriram o nome dele?
Ele carregava um envelope selado. Parece ter levado uma
vida dura nas últimas semanas. As autoridades russas e os
parentes foram avisados, mas é provável que seja enterrado
aqui.
— Parentes?
— Uma filha em Moscou. Alexandra.
— E a carta? O tradutor foi capaz de descobrir alguma coisa?
— Espere — ela disse, procurando. — Tradutor... tradutor.
OK — com voz sem expressão e uma pitada de tédio, ela
começou a ler diretamente da pasta que estava,
aparentemente, consultando. — O tradutor David Barrons
informou que a carta estava bastante danificada, contendo
apenas algumas palavras claras. Parte de uma sentença dizia
"Estou mais certo do que nunca de que os restos jamais
chegaram a Mary". A última palavra está difícil de ler e pode
estar incompleta. Parece que a carta tem mais de 20 anos.
Ela fez uma pausa.
— É bastante tempo — ela disse. — A senhora pode voltar
a ligar, mas acredito que o detetive Robbins não terá nada de
novo a dizer. Agora, se não se importa...
"Estou mais certo do que nunca de que os restos jamais
chegaram a Mary..."
Deborah pegou-se brincando com a sentença em sua mente.
Seria possível que se tratassem de restos arqueológicos?
Incluiriam uma máscara mortuária micênica? Será que esse
russo enigmático os estivera procurando quando caiu nas
garras de quem quer que a tenha levado da sala secreta do
quarto de Richard?
CAPÍTULO 17
Deborah voltou ao museu consciente de não ter nada além
de especulações, mas estava entusiasmada e queria dividi-las
com Cerniga, ou até mesmo Calvin Bowers. Tanto fazia.
Uma máscara mortuária micênica, desconhecida para o
mundo, contrabandeada da Grécia por Schliemann um
século atrás, e procurada por um russo solitário em Atlanta,
na Geórgia! Era extraordinário! Quase o suficiente para
manter sua mente afastada da morte de Richard, e sua
contribuição à polícia seria contar suas conjecturas: uma
maneira de prestar uma homenagem a Richard,
desvendando o mistério de sua morte. Quem sabe, talvez a
máscara pela qual morrera fosse redescoberta. Ela não era
capaz de pensar em qualquer outro monumento tão digno
da memória dele.
Mas teria de fazer uma coisa antes. Não havia comido nada
aquela manhã e sentia-se subitamente faminta. Lembrando-
se de que havia sobras da comida do evento, desceu até a
cozinha, nos fundos do prédio. Com a graça de Deus,Tonya
não estava por perto.
Descobriu as bandejas da geladeira e beliscou um pouco,
cheirando cautelosamente. Tentou o patê, que não achou
tão apetitoso quanto duas noites atrás. O que a fez se
lembrar. Ela foi até a parede do fundo, tirou o telefone do
gancho e discou para o bufê. A perambulação de seus pensa-
mentos incompletos, que mais tarde contaria a Cerniga (com
Keene dando risinhos sinistros ao fundo), teria de esperar
um pouco.
— Elegância e Sabor — disse a voz. — Posso ajudá-la?
— Sou Deborah Miller, do Museu Colina dos Druidas — ela
disse. — Posso, por favor, falar com a Elaine?
Como resposta, ouviu-se uma pausa, um ruído quando o
telefone foi entregue a outra pessoa. Uma nova voz,
escorregadia e empertigada, atendeu.
— Elaine Shotridge falando.
Deborah começou a listar suas queixas. Ela já lidara com
Shotridge antes e sabia que delicadeza e educação não
serviriam para nada. Por um momento, foi como se nada
tivesse acontecido. Como se este se tratasse de apenas mais
um telefonema de negócios. Richard estaria no andar de
cima, trabalhando em seu escritório esperando, animado,
para ouvir o entrevero entre Deborah e Elaine Shotridge, a
rainha tirana do serviço de bufês de Atlanta.
— Posso dizer, em nossa defesa — disse Shotridge — que o
espaço disponível na geladeira não correspondeu ao que
esperávamos.
— O espaço disponível na geladeira não tem nada a ver com
o fato de seus funcionários não terem feito a limpeza depois
do evento, ou de termos ficado sem vinho tinto.
— Ficaremos felizes em fazer um desconto no total da nota
— disse Shotridge. — Vamos dizer, 10%?
— Vamos pensar em 15% — disse Deborah. — Não posso
dizer que tenha ficado impressionada com sua seleção de
canapés.
— Srta. Miller — disse Shotridge, esfriando rapidamente o
tom. — Não faço objeções a dar desconto na nota, mas
questões de puro gosto não justificam uma tentativa de
pechincha. Fico indignada com qualquer insinuação de que
nossos canapés sejam qualquer coisa menos do que os mais
finos, artesanais...
Este seria o ponto em que ela deveria dizer à mulher que
Richard estava morto e que bater boca sobre alguns pratos
de canapés de gorgonzola não tinha a menor relevância em
sua lista de prioridades, mas não foi capaz. No momento, ela
funcionava adequadamente, coisa que não poderia fazer se
começasse a falar sobre a morte de Richard. Voltou a usar o
sarcasmo que tentara evitar.
— E eu fico indignada ao ter de pagar 30 dólares por um
prato de bolinhas de melão enroladas em presunto que têm
gosto de olhos de carneiro com couro de sapato — ela disse.
— Então, vamos deixar a pretensão de haute cuisine de lado,
por favor.
— Os amigos gregos do sr. Dixon elogiaram meu queijo feta
nas tortinhas de espinafre — bufou Shotridge.
— Espere um momento — disse Deborah, voltando a
colocar-se em foco. — Os amigos gregos do sr. Dixon? Que
amigos gregos?
— Os dois senhores com quem ele falava durante sua
apresentação — ela disse, astuta.
— E como você sabe que eram gregos?
— Pareciam ser gregos — disse Shotridge. — Falavam como
gregos e... ah, sim... o sr. Dixon me disse que eram gregos.
Ao que tudo indicava, Shotridge havia assumido a direção do
departamento de sarcasmo.
— O que mais eles disseram? — perguntou Deborah. Estava
certa de não haver nomes gregos na lista de convidados.
— Nada — disse Shotridge. — Estavam conversando entre
eles... em grego... eu estava passando a bandeja e o sr. Dixon
perguntou se podia pegar mais alguns para seus amigos
gregos, porque eles gostaram muito. Foi o melhor queijo feta
que já comeram, ele disse. Eles concordaram com a cabeça e
sorriram, e cada um pegou três. Depois, eu saí de perto.
— Não disseram mais nada?
— Não — ela disse. — 12%. É minha última oferta.
— Fechado — disse Deborah, desligando.
Era hora de falar com a polícia.
CAPÍTULO 18
Deborah colocou outro canapé na boca, que engoliu com
um desleixado gole de suco de cranberry. Estava se virando
para sair quando Calvin Bowers entrou.
— Calvin — ela disse, sem pensar. — Você gostava de
Richard?
Ele franziu a testa enquanto ajustava a mente para entender
a pergunta inesperada e o fato de ela tê-lo chamado pelo
primeiro nome.
— Na verdade, eu nunca o encontrei pessoalmente, mas,
sim, claro, acho que sim — ele disse. — Por quê?
—Você acharia difícil acreditar que ele seria capaz de
colocar o museu acima de sua fortuna pessoal e até de sua
reputação?
— De maneira nenhuma — ele disse.
Deborah assentiu com a cabeça. Aquela era a resposta certa.
Ela sentiu-se um milímetro mais próxima dele.
— Eu também não — ela disse.
Por um brevíssimo momento, ela viu a coleção grega
completa, com a máscara ao centro, disposta em expositores
brilhantes para o mundo, no saguão ou na sala especialmente
planejada que ficava no final do corredor longo e escuro,
organizada com textos educacionais e imagens: a melhor
coleção de antiguidades gregas fora de Atenas. Com certeza,
era esta a imagem que Richard estivera perseguindo.
Calvin, que a observava como se pudesse ver as imagens na
cabeça dela, assentiu com a cabeça.
— Entendo — ele disse. — Se eu puder fazer alguma coisa
para ajudar... Ela sorriu e, suspirando, percebeu que estivera
prendendo a respiração.
— E, por falar nisso — ele acrescentou —, não estou
encontrando parte da correspondência legal de Richard.
Havia alguma coisa guardada aqui em baixo?
— No escritório — ela disse. — É lá que eu guardo a maior
parte dos documentos relacionados ao museu. Você está
procurando alguma coisa específica?
Ele mostrou-se um pouco acanhado.
— Como eu disse, o sr. Dixon estava trabalhando com
alguns documentos relacionados tanto com sua fortuna
pessoal quanto com seus interesses no museu. Pode ser que
tenham alguma influência em seu testamento. A polícia vai
querer averiguar a situação legal do patrimônio dele, no caso
de isso ter alguma relação com o motivo.
Deborah assentiu com a cabeça, com postura executiva,
tomando o cuidado de mostrar que o fato não a incomodava.
— Então eram documentos pessoais — ela disse — e devem
estar nos arquivos da residência, não no museu. A não ser
que tenham chegado muito recentemente.
— Recentemente, quando?
— Se foram endereçados à casa dele, não mais do que um dia
ou dois — ela disse. — Se são pessoais, mas endereçados ao
museu, demora um pouco mais. A casa tem um número
diferente: 143. O museu é número 157. Não me pergunte, já
que fazem parte do mesmo prédio. Mas existem duas caixas
de correspondência. Eu cuido da correspondência
profissional, separo os catálogos de propaganda e encaminho
o que precisa ser analisado. Não recebemos muita coisa e, a
não ser que eu assinalasse alguma coisa importante, ele dava
uma olhada somente quando tinha tempo. Algum problema?
Ele estava parado e seus olhos haviam se estreitado, mas, ao
ouvir a pergunta dela, ele afugentou os pensamentos e
sorriu.
— Acredito que não. O problema é que eu detesto ver
documentos oficiais passando pelas mãos de qualquer um, a
não ser a pessoa endereçada. É o advogado que existe em
mim.
Os detetives Cerniga e Keene estavam no andar de cima, no
estúdio ao lado do quarto de Richard, onde examinavam a
lista de convidados e o inventário do museu. Deborah olhou
para a escadaria e decidiu tomar uma última precaução antes
de subir para falar com eles.
O banheiro feminino ao lado do escritório era um pequeno
cômodo quadrado, reservado aos funcionários do museu.
Havia um vaso sanitário e uma pia com sabão líquido, e um
secador de mãos elétrico que sempre deixava suas mãos
pingando. O interruptor estava ligado a um exaustor que
girava e zunia num volume quase tão alto quanto o da
descarga. Com aquele barulho e o secador de mãos ligado,
era espantoso que se pudesse ouvir qualquer coisa, o que fez
que ela se surpreendesse com o som alterado de vozes.
Deborah demorou um segundo para perceber de onde
vinham. Na parede acima do vaso sanitário havia um duto de
ventilação que não era o ventilador do exaustor, o sistema de
aquecimento e ventilação. No começo, ela mal prestou
atenção, mas então percebeu que as vozes eram masculinas;
na verdade, eram dos detetives com quem pretendia falar.
Mesmo com o ruído do secador de mãos, ela tinha certeza
de que as vozes eram deles.
A tubulação deve estar ligada ao estúdio, no andar de cima.
Ela nunca reparara antes. Por que deveria? Quantas vezes
alguém falara em voz alta naquela sala? Ela era o santuário
privado de Richard.
Uma das vozes era mais alta do que a outra. Cerniga? Não,
Keene.
O melhor que você tem a fazer é ignorar, ela pensou. Por
hoje, você já fez sua parte de abelhuda.
O secador de mãos parou com um ruído decrescente e as
vozes ficaram mais claras.
— Isso é o que você diz — rugiu Keene. — Como poderia
saber?
Uma resposta engrolada e inaudível de Cerniga, e um latido
que parecia a risada de Keene, em resposta. Depois, Cerniga
voltou a murmurar, mas Deborah não entendeu o que dizia.
Agindo por impulso, ela estendeu a mão e apagou a luz. O
banheiro caiu na escuridão e ouviu-se novo silêncio quando
o exaustor parou de funcionar. A voz de Cerniga, levemente
metálica por causa do eco da tubulação, anelava-se com
leveza de fumaça.
— Eu já lhe disse — ele falou, contido e irritado. — Se você
tem algum problema com isso, fale com seu capitão.
— Já fiz isso — gritou Keene em resposta —, e você sabe
muito bem que não adiantou nada.
— Quer dizer que a história está terminada, certo? — disse
Cerniga.
— Não, nem um pouco terminada — disse Keene. — Você,
transferido do Condado de Henry? Hoje de manhã eu liguei
para lá e ninguém nunca ouviu falar de você. Ninguém.
De repente, no escuro, Deborah sentiu-se desprotegida e
com frio. Tinha os cabelos da nuca arrepiados, como ficaram
quando ela sentiu o aroma de perfume e fumo de cachimbo
na porta de seu apartamento.
— Seu capitão lhe deu ordem para trabalhar comigo — disse
Cerniga. Agora, a voz dele era fria como o aço, como se
estivesse contendo uma fúria imensa. — Se você tem algum
problema com isso, deve reclamar para ele.
— Será que, ao menos, você é tira? — perguntou Keene. —
Eu vi muito bem a expressão em seu rosto quando lhe dei
aqueles formulários. Você nunca havia preenchido algo
parecido antes. Quero ver seu distintivo.
Nesse momento, alguém do lado de fora tentava abrir a
porta do banheiro. E Deborah não ouviu mais nada.
CAPÍTULO 19
Era Tonya. — Sinto muito — ela disse, não soando nem um
pouco verdadeira, até que percebesse o rosto pálido de
Deborah. — Não vi luz por baixo da porta e pensei... A
senhorita está bem? Parece que acabou de ver um fantasma.
— Está tudo bem — disse Deborah. — Estou... apenas um
pouco cansada. Os últimos dias não têm sido fáceis. Acho
que vou...
Mas ela não sabia o que fazer. Agitou vagamente a mão e
tentou sorrir, mas a preocupação no rosto de Tonya lhe dizia
que ela não estava acreditando.
— Precisa de alguma coisa?
— Não, obrigada.
— Quer que eu peça aos policiais para descerem?
— Não — disse Deborah, mais brusca do que tivera a
intenção de ser. — Quer dizer... Não. Tudo bem. Falo com
você mais tarde.
Deborah afastou-se da escadaria que levava ao estúdio de
Richard e caminhou em direção ao museu. Apressou o
passo, determinada. Ao passar pelos fantasmagóricos
espécimes de taxidermia vitoriana, estava quase correndo.
Entrou no escritório do museu, abriu o cofre e pegou seu
passaporte. Em dois minutos, estava no saguão com o T. Rex
e a senhora-dragão da proa do navio. Mais quatro minutos,
estava em seu carro, indo embora.
Seu celular estava desligado e ela o deixou assim.
Tudo o que precisava era ir para casa ou, pelo menos, para o
hotel. Dormir um pouco. Clarear as idéias.
Mas isso não vai mudar o que você ouviu pela tubulação.
O que era a mais pura verdade, ela pensou, enquanto passava
pelos faróis da Buford Highway em direção à rodovia
interestadual. Mas se ela pudesse colocar certa distância
entre si mesma e o museu, com seus estranhos tesouros, o
que ouvira poderia, de alguma maneira, fazer sentido.
Precisava apenas de um pouco de tempo consigo mesma.
Quando entrou na I-85, em direção ao centro da cidade,
sobressaltou-se com o guinchar de pneus na rodovia atrás
dela. Ela olhou pelo retrovisor a tempo de ver uma van
escura avançar o sinal vermelho no alto da colina e descer,
em disparada, atrás dela.
Motoristas de Atlanta, ela pensou. Sempre prontos a arriscar
a vida para chegar em casa cinco minutos mais cedo.
Ela manteve-se na pista da direita para dar passagem ao
motorista e perguntou-se para onde iria. Instintivamente,
havia começado a ir para casa, distanciando-se do Holiday
Inn, que ficava bastante próximo do museu. Perto demais de
Cerniga e de Keene.
Talvez eu fique algum tempo dirigindo por aí. Ou dê uma
caminhada no Parque Piedmont. Sim. Pego o caminho de
casa, estaciono na Juniper e dou uma volta no lago.
A idéia fez sentir um pouco de determinação. Ela relaxou
alguns minutos, voltando a seu estado de espírito costumeiro
enquanto deixava que o fluir do tráfego esvaziasse sua
ansiedade. Sua mente consciente, mais calma agora, voltou à
conversa que ouvira no banheiro. Poderia ter ouvido errado.
Era possível, ela supôs, mas estava preparada para apostar
que não. Poderia ter sido algum tipo de piada particular?
Menos provável ainda. Então, Keene suspeitava que Cerniga
— o homem encarregado da investigação sobre a morte de
Richard — não fosse sequer um tira? Como era possível? O
que isso significava?
Ao chegar à Curva Grady, ela ainda estava na pista interna,
com uma mureta de concreto à direita. A parte menos
consciente do cérebro, usada para dirigir, interrompeu seus
outros pensamentos, fazendo sinal para uma placa familiar:
Right Lane Ends, 500 metros.
Ela olhou pelo espelho retrovisor externo e começou a sair
para a esquerda, desviando bruscamente ao ver um
caminhão que se mantivera fora de seu campo de visão.
Preste atenção!
Ela afugentou todos os pensamentos e segurou o volante
com força.
O caminhão à sua esquerda ainda estava lá, aparentemente
desatento ao fato,de que ela quase o atingira. Ela aumentou a
velocidade para ultrapassá-lo, mas o caminhão emparelhou-
se com ela (agora que ela olhava com atenção, era na
verdade uma van).
Típico.
— Vá na frente, então, seu macho idiota — resmungou ela,
diminuindo a marcha para deixá-lo passar. Não lhe restava
estrada suficiente para defender seu ponto de vista, e o
tráfego de Atlanta se movia velozmente. Sem acostamento e
com o muro de concreto à sua direita, não havia espaço para
erros.
A van também diminuiu a marcha, mantendo-se
perfeitamente alinhada ao seu carro. Deborah virou-se para
o lado, pronta para lançar um olhar duro para o motorista,
mas os vidros tinham uma escura película de proteção solar
e ela não pode vê-lo.
Van?
Em sucessão rápida, pensou em duas coisas. Esta era a
mesma van que cantara pneus tentando alcançá-la quando
entrou na interestadual. O motorista à esquerda não era
apenas um idiota querendo apostar corrida com ela.
Lane Ends a 300 metros, dizia a placa. Entre à esquerda. —
Estou tentando — ela disse.
Ela virou e meteu a mão na buzina. Ele não se moveu. Ela
não esperava que ele saísse. Viera atrás dela desde o museu e
a encurralara de propósito. Pisou no acelerador, atingindo
90, 100 quilômetros por hora. À frente, ela via a estrada
transformar-se em uma estreita faixa marcada por cones
alaranjados, ao longo de outro muro de concreto que
apareceu à sua frente.
A van a seu lado acelerou e avançou, centímetro a
centímetro, em direção à pista de Deborah. Ele a estava
espremendo. À sua direita, a escura massa do muro cresceu
subitamente. Ela estava ficando sem espaço. Em meio ao
pânico crescente, Deborah tinha absoluta certeza de que se
ele não se movesse e ela atingisse a parede na velocidade em
que estava, a colisão a mataria.
Lane Ends, 150 metros.
Ela pisou fundo no freio, tão fundo que a traseira de seu
Toyota derrapou levemente e a lateral chocou-se contra o
beiral de cimento, num baque inesperado e seguido do
ranger cantante do metal. Por uma fração de segundo, a van
ao seu lado pareceu avançar, mas logo começou também a
frear, diminuindo a velocidade para acompanhá-la.
Ela reduzira para 40 quilômetros por hora, mas a parede à
frente era ameaçadoramente grande.
Ótimo, pensou ela. Vou parar completamente.
E depois? E se ele também parasse? E se saísse do carro?
Por um breve momento, ela viu o corpo de Richard estirado
ao chão, tão pálido e tão velho. O que fizeram com ele foi
impiedoso.
Ela fixou os olhos na parede de concreto à frente e meteu o
pé no acelerador.
CAPÍTULO 20
Fazer aquilo seria loucura. Seria, ela pensou, como se a sólida
massa de concreto viesse em sua direção, uma coisa
temerária e suicida.
Seria também a última coisa que o motorista da van poderia
esperar e, quando ele percebesse o que Deborah estava
fazendo e acelerasse para encurralá-la, ela estaria a uns 10
metros à sua frente e escorregando para a esquerda, quando
a parede viesse ao seu encontro.
Ela bateu na quina em meio a uma chuva de estilhaços de
vidro, mas o carro quase não diminuiu a marcha e ela rabeou
em direção ao tráfego sob um coro de buzinas e guinchos de
freadas.
Isso foi loucura! Você poderia estar morta!
— Se eu tivesse parado, estaria.
Isso calou a outra voz. Por algum tempo.
Ela colocou-se na pista do meio, sentindo sua respiração
voltar ao ritmo normal. Com as ondas que fazia com as
mãos, ela começou a pedir desculpas aos motoristas ao
redor, que ficaram irritados com tudo aquilo. Deborah virou
então o retrovisor a tempo de ver a van preta pegar a
próxima saída e sumir.
Deborah não foi caminhar no parque. Saiu da interestadual a
tempo de parar em um caixa automático, de onde tirou a
maior quantia permitida em espécie. Depois, deixou seu
carro avariado em um estacionamento de uma sinagoga
reformista, O Templo, que certa vez pensara em freqüentar.
Caminhou até a estação Centro de Artes MARTA e concluiu
sua jornada no trem urbano que a levaria diretamente ao
terminal de Hartsfield-Jackson, no Aeroporto Internacional
de Atlanta.
Alguém invadira seu apartamento e — pior — esperara por
ela. Alguém tentara tirá-la da estrada. Alguém matara
Richard. O mais estranho e perigoso de tudo era saber que as
pessoas a quem ela mais quisera recorrer — a polícia — não
eram, nesse caso, confiáveis. Precisava sair dali. Para muito
longe. Além de sua bolsa (estufada com correspondência do
museu que não tivera tempo de abrir), ela não levava
bagagem alguma, mas como não dava muita importância a
roupas, aquilo não a incomodava. Ao chegar, compraria o
que precisasse. Ao chegar onde?
Isso ela ainda não havia decidido, e a decisão tomava conta
de seus pensamentos enquanto se deixava sentar em um dos
bancos de plástico do vagão de trem quase vazio, que eram,
por razões que ultrapassavam sua compreensão, de um
alaranjado tão odioso que chegava a causar náuseas.
Poderia voltar para sua casa em Brookline, ficar com sua mãe
e irmã, pensou ela, imediatamente se dando conta de que
não faria tal coisa. Suas visitas a Massachusetts, como sua
mãe gostava de frisar, eram poucas e espaçadas e talvez,
como resultado, eram períodos de negociações difíceis,
estressantes e que envolviam muita manipulação. Era mais
ou menos assim que as coisas vinham acontecendo desde a
morte de seu pai.
Olá, mãe, é Debbie. Tem alguém tentando me matar.
Importa-se se eu der uma passada por aí?
Céus, aquilo nunca funcionaria.
Ela saiu do trem e caminhou em direção ao terminal sul,
passando pelo burburinho da multidão até o balcão de
embarque Delta. Sentiu-se feliz por não ter ligado com
antecedência e estava resolvida a escrever seu nome errado
na passagem. Alguma coisa que parecesse apenas um erro de
datilografia, o suficiente para atrasar qualquer busca policial
nos computadores dos aeroportos.
Não! Eles são a polícia! Você pode confiar neles. Conte-lhes
sobre a van. Você precisa confiar neles, ou...
O caos voltará a reinar? Exatamente.
Ela verificou os monitores, depois dirigiu-se a uma fila curta
dominada por uma família de aparência atormentada, com
enormes malas que vazavam de dois carrinhos. A
funcionária no balcão, cabelos rigorosamente presos num
coque e olhos cansados, estava explicando alguma coisa
sobre bilhetes eletrônicos. Deborah olhou para trás dela. Há
poucos metros dali, havia portas nas paredes de painel de
vidro, portas para a área de carga e descarga, para a estrada e
para o mundo normal e corriqueiro...
Onde motoristas assassinos tentam jogar você contra sólidas
paredes de concreto ou, se você parar, a encurralam num
viaduto deserto com uma faca que deixa equimoses
simétricas ao redor da perfuração.
Ao virar-se bruscamente, ela trombou com um homem de
meia-idade num terno de três peças. Ele suava e, como a
maior parte dos viajantes aéreos, parecia ansioso.
— Desculpe — disse Deborah.
O homem, que parecia mais surpreso do que indignado, não
disse nada. Mais por constrangimento do que por qualquer
outra coisa, ela virou-se e voltou para o balcão.
Procure um policial.
Que a entregaria a Cerniga? Não. A única pessoa que parecia
estar do lado dela era um advogado de quem, até dois dias
atrás, ela nunca ouvira falar.
— Posso ajudá-la? — disse a funcionária, abrindo seu sorriso
ensaiado.
A família trocava palavras ansiosas e examinava seus cartões
de embarque como se estivessem escritos em código.
— Ainda tem assentos vagos? — ela perguntou.
— Para este vôo? — respondeu a funcionária. — Você gosta
de correr riscos, não é?
Deborah deu um sorriso cansado, mas não disse nada. A
funcionária consultou a tela.
— Sim — ela disse. — Mas você terá de andar rápido. A
segurança tem agido como ursos. Ida e volta ou só ida?
— Ida e volta — disse Deborah —, mas posso deixar a data
da volta em aberto?
— Claro — disse a funcionária, digitando em seu teclado. —
Pronto. Como quer pagar?
Apesar de não querer usá-lo, o cartão de crédito parecia ser a
única opção. Na certa, ainda não teriam começado a
procurar por ela. Enquanto a funcionária verificava o preço,
ela colocou seu MasterCard sobre o balcão.
— Vamos ver — ela disse. — Uma viagem de ida e volta, de
Atlanta para Atenas, com volta em aberto.
INTERLÚDIO
França, 1945
Edward Graves tirou seu capacete branco de policial militar,
colocou-o sob sua sacola de lona no lado do passageiro da
cabine do caminhão Opel e entrou com passos decididos no
correio do vilarejo. Estivera um pouco preocupado com essa
etapa do plano porque não falava francês, mas, no fim,
acabou não precisando usar a língua. Mostrou ao agente de
correio sua identidade militar cuidadosamente falsificada e
esperou enquanto uma mulher idosa tagarelava —
aparentemente agradecida — sobre a liberação. Ele assentiu
e sorriu, desejando que ela o deixasse em paz.
— Um pacote, monsieur — disse o agente, segurando-o
com ar triunfante como se tivesse, pessoalmente,
atravessado o Canal da Mancha a nado para trazê-lo.
Sem dizer uma palavra, Graves pegou o pacote e retirou-se,
sem tirar os olhos do agente de correio do Reino Unido até
estar novamente seguro no caminhão. Rapidamente, abriu a
encomenda, usando os dentes quando a fita adesiva resistia.
Ele tinha dedos longos e ágeis, que tremiam levemente
enquanto tiravam a carta e o maço de notas britânicas.
Contou-as rapidamente e, em seguida, olhou para o
envelope, que não continha nada além de um endereço de
entrega em Londres e o nome do remetente: Randolph Fitz-
Stephens. Amassou o envelope e atirou-o pela janela, girou a
chave para dar partida e esperou que o motor começasse a
funcionar.
Três horas depois, ele estava olhando para o lado do cais
enquanto o navio de transporte St. Lo afastava-se do porto
de Cherburgo carregado de soldados que voltavam para casa
e de bens pessoais, produtos franceses (principalmente
vinho) e alguns caixotes, cujo transporte fora pago por
cidadãos como ele. Os carregadores não levaram mais do
que dez minutos para tirar a caixa da carroceria do Opel e
levá-la para o controle. Ele tivera de ficar próximo, tentando
não chegar muito perto, procurando não mostrar ansiedade,
caso os marinheiros começassem a bisbilhotar à procura de
valores. Em marinheiros e negros não se podia confiar.
Dentro de duas semanas ele estaria voltando aos Estados
Unidos. Então, Randolph Fitz-Stephens não teria como
encontrá-lo, mesmo que soubesse por quem procurar, coisa
que não sabia. Seriam todos os britânicos assim tão cretinos?
Umas poucas fotos dos produtos haviam deixado o sujeito
com água na boca. No início, Graves pensara em pedir 10
mil libras adiantadas, mas quando ficou sabendo do
entusiasmo dos britânicos, dobrara a quantia e o sujeito nem
pestanejara. Rico e burro, pensou Graves: do jeitinho que ele
gostava. Mesmo assim, é provável que pudesse ter tirado
mais dele, o que era uma pena. Entretanto, era engraçado
pensar no sujeito sentado no cais em Southampton, ou fosse
qual fosse o maldito lugar para o qual ele devia ter mandado
a caixa, esperando, semana após semana, pela chegada da
encomenda e, depois, escrevendo cartas educadas para um
homem que não existia, em alguma merdinha de povoado
francês insignificante!
As coisas não poderiam ter funcionado melhor. Se seus
companheiros abrissem o bico, era possível que ele ainda
tivesse de lidar com perguntas sobre aquele comandante do
Sherman, mas ninguém acreditaria na história daqueles
negros. Além disso, não havia nada ligando Edward Graves,
sargento da polícia militar, ao nome daquele recibo de
transporte. Considerados todos os aspectos, o verão acabara
sendo ótimo. A guerra — uma guerra sobre a qual sempre se
mostrara, no mínimo, ambivalente — havia terminado e ele
preparara o terreno para um grande futuro nos Estados
Unidos.
A guerra na Europa havia realmente acabado, mas só poucas
semanas antes, e ainda havia grupos espalhados de tropas
alemãs que ou não sabiam do fato, ou resolveram continuar
lutando mesmo assim. A 200 quilômetros a noroeste de
Cherburgo, um submarino solitário e avariado, com sua torre
de comando e equipamentos de rádio destruídos por uma
mina perdida, foi um dos antigos U 146, um submarino
alemão tipo VIIB, vindo de Saint-Nazaire, estava,
literalmente, à deriva, operando com controle mínimo de
leme havia duas semanas. Durante esse tempo, o mar bravio
havia arrancado os restos da antena do rádio, tornando
impossível qualquer tipo de contato com a nação-mãe ou
seus agentes. O capitão sabia que a guerra estava indo mal e
que as forças do Terceiro Reich estavam, provavelmente,
em seus estertores, mas ele fizera carreira militar e
abominava a idéia de abandonar seu navio claudicante, caso
ainda houvesse trabalho a ser feito. Incerto sobre quais
ancoradouros para submarinos estavam em poder dos
alemães, decidira esperar mais um dia antes de tentar
mandar um SOS. A equipe de salvamento, se conseguisse
chegar antes que o submarino afundasse completamente,
seria provavelmente americana. Ele esperaria até que
estivessem próximos o bastante para tirar os homens da água
antes de emborcar o navio.
O grande azar do navio de transporte St. Lo fora ter
aparecido no campo de visão do submarino com três horas
restantes no relógio e dois torpedos ainda em seus tubos,
prontos para serem lançados.
PARTE II
SOBRE O MAR ESCURO COMO O VINHO...
O Cadish expressa o espírito do imperecível no homem
porque se recusa a dar o triunfo à morte; porque tem o
poder santificador de fazer que as flores secas, caídas da
árvore da espécie humana, novamente floresçam e voltem a
crescer no coração do homem. Saber que para todos os que
morrem permanecerão sobre a vasta terra aqueles que,
pobres ou ricos, enviarão esta prece; saber que louvarão sua
memória como a herança mais sagrada — que
conhecimento mais satisfatório ou santificador se pode
esperar? Este é o conhecimento que nos é legado pelo
Cadish.
— Uma meditação sobre o Cadish, extraída de The Sabbath
and Festival Prayer Book, elaborado pela Assembléia
Rabínica da América e pela Sinagoga Unida da América.
CAPÍTULO 21
A decisão de ir para a Grécia tinha sido automática. Fora lá
que tudo comecei. De lá o tesouro era originário. De lá
vieram os convidados misteriosos de Richard que
compareceram ao evento. Para lá Richard estivera
telefonando em segredo. Era o lugar de onde ela deveria
começar, uma vez que não podia confiar na polícia de seu
país. E lá ficaria bem distante do museu e de quem quer que
estivesse dirigindo a van. Ela estava certa de que, de alguma
maneira, essas coisas estavam ligadas. A cada quilômetro que
voava, chegava mais perto de suas origens e ficava mais
distante de seus desfechos assassinos.
Deborah nunca dormia em aviões. Ela os achava muito
desconfortáveis, por causa de sua altura, e não gostava da
idéia de dormir entre estranhos. Ter de dividir esse tubo de
metal voador com eles já era ruim o suficiente, e ela não
tinha intenção alguma de perder a consciência no caminho.
Entretanto, mais do que em qualquer outro dia, ela desejaria
roncar pelo Atlântico afora até chegar ao Mediterrâneo e às
águas azuis e brilhantes do mar Egeu.
Por mais que tentasse enganar seu corpo, fazendo-o pensar
que fosse noite, ela não conseguia dormir. Estava exausta, e a
perspectiva de voar por dez horas ou mais para desembarcar
em Atenas, em plena madrugada, pareceu-lhe
excessivamente depressiva. Mas sua mente, com sua
torrente de subtextos, as palavras oscilando em seus olhos
como legendas contraditórias em um filme estrangeiro,
sabotou todas suas tentativas de pegar no sono. Agora não
era hora de relaxar, seu cérebro dizia. Precisava fazer planos.
Não tinha dinheiro em espécie (será que a moeda usada na
Grécia ainda era o dracma ou já haviam mudado para o
euro?) nem hotel reservado. Não tinha sequer idéia de como
se metera nessa viagem maluca ou o que a levou a tomar tal
decisão. Dormir estava fora de questão.
Olhando sem ver para o filme, comeu o que quer que
tenham colocado à sua frente e passou metade da "noite" (os
bloqueadores de luz estavam abaixados e a maioria dos
passageiros dormia como bebês) andando de um lado para o
outro. Sabia que aqueles que a olhavam achavam-na irritada.
Ela viu o homem do terno de três peças com quem trombara
na fila do check-in, mas ele estava lendo e pareceu não a
notar.
Duas horas se passaram. Depois três. Por algum tempo, ela
pensou que tivesse cochilado, mas quando olhou para o
relógio viu que os ponteiros não tinham avançado. Sentada,
ela pensava e esperava, e perguntava-se que diabos faria
quando pousassem. Bem, pelo menos estaria segura.
O homem com o terno de três peças colocou o livro sobre o
colo e girou o tronco sobre a cintura para esticar os
músculos enrijecidos por causa do longo vôo. Ao fazer isso,
lançou um olhar desinteressado para trás, onde a americana
alta inclinava-se por sobre o companheiro de assento para
ver o sol matinal pela fresta da janela. Ele estava certo de
que ela não o reconhecera, o que achou ótimo. Quando
pousassem, ele teria de ficar perto dela, mas não muito.
Afinal, não havia razão para pressa, e a sincronia seria o mais
importante de tudo.
CAPÍTULO 22
Estava quente em Atenas, um calor seco e poeirento que se
grudou à pele de Deborah assim que ela começou a suar. A
poeira parecia concreto moído, o que lhe pareceu verossímil
quando, do ônibus que a levou do aeroporto, ela olhou para
a cidade. Durante a cobertura olímpica, Atenas e arredores
se pareciam com ruínas antigas e idílicos vilarejos brancos
presos a penhascos rodeados de água azul e céu mais azul
ainda. Ela não se preparara para os muitos quilômetros de
blocos de cimento sem personalidade. Difícil dizer se não
estavam terminados ou se estavam sendo demolidos.
O homem sentado do outro lado do corredor devia ter pelo
menos 50 anos, era magro e musculoso e excessivamente
asseado. Estava abraçado com uma garota bem mais nova,
uma beleza curvilínea de rosto petulante que, a não ser pela
maneira de proprietário com que ele acariciava seu pescoço,
poderia ser sua filha. Deborah desviou o olhar, mas, com
exceção das fachadas de concreto das ruas, não havia para
onde olhar. Que diabos você está fazendo aqui?
— Procurando algumas respostas e tentando passar
despercebida — resmungou ela para si mesma. — Não
necessariamente nessa ordem.
Em uma livraria do aeroporto, ela comprara o The Rough
Guide to Greece. Descobriu, depois, que fora publicado em
1995 e que os preços eram fornecidos em dracmas. E a
moeda na Grécia, como veio a descobrir mais tarde, já fora
convertida para o euro. Ela não saberia dizer quais outras
informações do livro estavam desatualizadas e, como não
conseguia sentir nada além de desânimo, não se importou
muito com o fato. Escolheu um dos hotéis, o Aquileus, que
ficava no centro de Atenas, e ligou para lá de um quiosque
de informações, torcendo para que o número estivesse
atualizado. Deu sorte. Com a reserva feita, Deborah pegou o
ônibus e seguiu pelo longo e desanimador trajeto até a
cidade.
Desceu do ônibus na praça Sintagma. Graças à confluência
dos jardins nacionais e do prédio do Parlamento, esta foi
uma das partes mais exuberantes que ela veria da cidade.
Dali, colocou-se na Ermou e foi em direção ao oeste.
Demorou algum tempo para localizar-se nas ruas laterais,
pois seus nomes eram escritos em grego, pouco familiar
porém legível, e finalmente chegar às dependências frescas
do saguão do Aquileus. A garota no balcão da recepção era
muito parecida com a do ônibus, bela e de pele escura, olhar
franco e um pouco entediado. Deborah, que sempre se
aborrecia com a efusão dos funcionários dos hotéis
americanos, gostou dela imediatamente.
Registrou-se com seu nome verdadeiro. Afinal, Atlanta
estava extremamente distante daquele antigo prédio do
Velho Mundo, com seu piso de mármore, e da recepcionista
linda e decidida.
— A senhora não tem bagagem?
— Não — disse Deborah, sorrindo desconfortavelmente,
como se aquilo fizesse dela uma pessoa excêntrica ou
suspeita.
— OK — disse a garota, que, na verdade, não se importava.
— Aqui está sua chave.
O quarto se revelou bem agradável e possuía a mesma
elegância descontraída do saguão. O pequeno elevador e a
escadaria extremamente estreita a deixaram hesitante, mas o
hotel oferecia o necessário, e era isso o que importava. O
banheiro também era todo de mármore — mármore
verdadeiro, que mostrava um leve brilho quando você
virava a cabeça, e não as imitações tão comuns nos Estados
Unidos —, e as cortinas eram longas e pesadas. Deborah
fechou-as e, no escuro, deitou-se no colchão firme. Ao som
do forte zumbido do ar-condicionado, em pouco tempo caiu
no sono.
Sonhou que estava dirigindo na I-85, em direção ao centro
de Atlanta. Sem aviso, a rodovia ficava cada vez mais
estreita, a enorme parede de concreto mostrava-se
ameaçadora acima, mas ninguém lhe dava passagem. Ela
estava mais frustrada do que amedrontada — o que
normalmente acontece nos sonhos —, até perceber que um
em cada dois motoristas usava a máscara mortuária dourada.
Quando acordou, o quarto estava tão escuro e silencioso que
por um momento ela sentiu-se desorientada. Tentou
encontrar o caminho até o banheiro, mas percebeu que já
estava nele, retirando o sabonete azul e branco da
embalagem decorada com um Parthenon estilizado, antes
que pudesse lembrar-se onde estava.
Grécia.
Em que estivera pensando? Ela voltou ao quarto e tirou o
telefone do gancho, mas interrompeu a ação.
Não. Não havia ninguém para quem pudesse ligar.
Deu uma conferida em seus minguados pertences, tomou
uma ducha, espiou o sol brilhante e os fundos dos prédios
pelas cortinas e desceu até a recepção. A bela morena com
olhos incertos e avaliadores fora substituída por um homem
de mais ou menos 60 anos, que a olhou com olhar
inexpressivo quando ela lhe perguntou se ele falava inglês.
— É claro — ele disse, encolhendo os ombros e parecendo
um pouco desconcertado, como se ela tivesse lhe
perguntado se ele sabia ler.
— Como faço para chegar ao Museu Nacional de
Arqueologia? — ela perguntou.
De trás do balcão, ele tirou um mapa com a localização do
hotel já marcada.
— A senhorita está aqui — ele disse. — O museu está aqui.
A senhorita poderia caminhar, mas está muito quente.
Melhor um táxi.
Não havia nenhuma entonação que indicasse pergunta, mas
ele esperou como se tivesse feito uma. Deborah examinou o
mapa, procurando, sem sucesso, uma escala que indicasse a
distância.
— Táxi para ir, a pé na volta — disse o funcionário. — Vai
estar mais fresco.
Ele pegou o telefone e esperou. Deborah assentiu com a
cabeça e ele discou.
No banco de trás do táxi, ela observou o concreto
indefinível da cidade, tráfego lento e ruidoso, e especulou
vagamente se a polícia já teria começado a procurar por ela.
Não levariam muito tempo para verificar o passaporte e os
cartões de crédito, mas ela não tinha a mínima idéia do que
estariam preparados para fazer. Pode ser que fosse suspeita
da morte de Richard, mas não seria uma suspeita forte. Pelo
menos não tão forte a ponto de fazerem contato com a
Interpol. Isso se fossem eles quem a polícia americana
chamaria.
Não sabia também se a polícia tinha algum tipo de
envolvimento.
Keene era da polícia. Apesar de não gostar dela, ele era um
policial verdadeiro. Cerniga, que lhe parecera mais sensato,
mais equilibrado... Quem poderia dizer quem era? Uma parte
dela sentia vontade de ligar para lhes dizer que não estava
exatamente fugindo... Mas aquilo não faria o mínimo
sentido. Talvez pudesse ligar para Calvin Bowers.
E qual seria a desculpa para tal ligação? Perguntou uma voz
em sua mente. Você acha que ele está sentindo sua falta?
Acha que está procurando aquela mulher desajeitada,
racional e emocionalmente lesada que encontrou enquanto
ela estava sendo interrogada por causa de um assassinato
cruel...?
Cale a boca.
Deborah pagou o motorista do táxi e saiu para o calor do dia.
O museu era afastado da rua e ficava no alto de uma
escadaria. Ela passou por um pórtico de colunas, comprou
ingresso e entrou, sentindo a simplicidade do lugar, suas
salas esparsas, brancas e cheias de ecos, as janelas colocadas
abaixo dos tetos altos e vazios, a coleção de estátuas com
suas minúsculas placas de identificação.
Era uma antítese à maior parte dos museus americanos,
despido e sem fazer qualquer tipo de concessão ao valor do
entretenimento ou verniz de alta cultura, e apenas algumas à
educação. De certo modo, era bastante grego: uma enorme
caixa compartimentada onde nada que pudesse distrair a
atenção das obras exibidas, expostas com uma simplicidade
que chegava à austeridade, era permitido. Não havia apertos
de mão, cores alegres ou diagramas para captar o olhar."Se
você quiser saber mais", parecia dizer, "e você vai querer,
compre um livro ou, melhor ainda, volte para a escola." Ela
gostava daquilo, especialmente da coleção de arte cicládica,
com sua estatuária estranhamente pós-moderna, lembrando
Moore e Picasso, artistas 4 mil anos posteriores.
Observou cuidadosamente a coleção de arte micênica, indo
de expositor em expositor com uma lentidão estudada que a
deixava sozinha nas salas por onde passavam os turistas
apressados. Nada do que viu era exatamente o que Richard
tinha escondido atrás da estante em Atlanta. É claro que
havia outras coleções em outros lugares, mas esta era a maior
e a mais completa, e Deborah voltou a pensar que, se a
coleção de Richard fosse composta de meras cópias, elas
teriam sido feitas por um artesão improvisando sobre um
tema; ou seja, não eram cópias exatas de originais
conservados. Em outras palavras, ou as peças eram reais (o
que seria chocante), ou falsificadas (o que seria arrasador).
Deborah passou a maior parte do tempo admirando as
máscaras mortuárias, a máscara de "Agamenon" (ela ficou
satisfeita ao ver que o museu não a chamava por aquele
nome inexato). Ela olhou para a máscara, tentando lembrar-
se da imagem que vira no computador do museu, cada vez
mais certa de que também se tratava de uma cópia.
A máscara de "Agamenon" era um pouco maior do que a
original, dourada, um pouco assimétrica — apesar de não ser
capaz de dizer se a assimetria se tratava de um efeito
artístico ou do resultado de ter ficado sob toneladas de terra
e pedras por três milênios e meio. Tinha nariz fino,
sobrancelhas levemente arqueadas, lábios finos, bigode farto
e barba. As orelhas, parcialmente distantes dos cabelos e da
barba, pareciam abas. O que mais impressionava, porém,
eram os olhos. Eles eram amendoados e não havia íris ou
pupila. Eram rasgados de um lado a outro e pareciam abertos
e fechados ao mesmo tempo. Davam a impressão levemente
estranha de que o rosto estava dormindo, ou melhor,
estacionado entre a vida e a morte.
— Já faz algum tempo que está olhando para ela.
A voz na altura de seus cotovelos era profunda e com
sotaque carregado. Deborah virou-se e viu um homem,
avançado na meia-idade, provavelmente grego, com olhos
sérios e injetados, observando-a com expressão de
divertimento contemplativo.
— Desculpe — disse Deborah, apressadamente olhando ao
redor para ver se estava atrapalhando alguma excursão. É
provável que esse homem fosse um guia. Ela estivera tão
envolvida em sua... o quê? pesquisa? passeio? trabalho de
detetive?... que não notara sua presença. Ele poderia ter
estado ali, observando-a, muito tempo.
— Desculpas são desnecessárias — disse o homem,
dispensando-as de modo tão expressivo que seu rosto
envelheceu dez anos no processo. Seus olhos negros
brilhavam como balas de chumbo. — Estou acostumado
com pessoas observando a máscara, mas poucas são tão...
exaustivas — ele disse, procurando a palavra com cuidado —
em sua observação. Estudante de arqueologia, talvez?
Deborah sorriu.
— Sou curadora de museu — ela disse. — Americana.
— Desculpe — ele disse. — Eu não quis dar a entender que
se tratava de falta de conhecimento. Meu inglês é...
Ele gesticulou com a mão:
— ...trôpego, pouco confiável.
— De maneira nenhuma — disse Deborah, seu sorriso
aflorando, tornando-se genuíno. — Apesar de ser
arqueóloga, conheço apenas as Américas. Em assuntos
gregos, ainda me considero estudante.
— Ótimo — ele disse, assentindo com a cabeça. — Então,
você veio determinada a provar que essa nossa máscara é
falsa.
— Não — ela disse. — Muitas pessoas já tentaram?
Ele novamente balançou os ombros à moda do Mundo
Antigo, envelheceu rapidamente, e virou a palma das mãos
para cima.
— De tempos em tempos — ele disse, assentindo com a
cabeça, satisfeito com a frase. — Os arqueólogos mais sérios
não os levam em consideração, naturalmente, mas sempre
existirá um mercado para a conspiração, certo?
Deborah concordou com a cabeça, perguntando-se,
desconfortável, se realmente viera para testar a autenticidade
da máscara. Ele aproveitou o silêncio dela para oferecer-lhe
a mão.
— Dimitri Popadreus — ele disse.
— Deborah Miller — disse ela.
Dar seu nome foi uma ação reflexa e, por uma fração de
segundo, ela perguntou-se se seria seguro. Mas o
pensamento — infrutífero — foi substituído por outro.
— Espere — ela disse. —
Popadreus? Ela consultou seu guia.
— O senhor não é...?
— O diretor do museu — ele disse. — Sim, sou eu.
Ele inclinou-se um pouco.
— De vez em quando, gosto de caminhar entre os visitantes
— ele disse —, para ver para onde dirigem sua atenção, que
geralmente não é muita, e o que os entedia, o que
normalmente é quase tudo. Turistas são criaturas muito
estranhas — ele disse, desviando o olhar para as esculturas
espalhadas, rodeadas de pessoas. — Nunca consigo entender
por que eles vieram.
Ele voltou a encolher os ombros e ela sorriu, satisfeita.
— Seu museu exibe peças do Novo Mundo? — perguntou
ele.
Novo Mundo, ela pensou. Durante 500 anos, os europeus
colonizaram as Américas, e ainda as consideravam novas.
Bem, refletiu ela, olhando ao redor da enorme sala branca
com seus tesouros da Idade do Bronze, talvez por aqui o
tempo passe mais devagar. Para o diretor do museu, ela
apenas disse "Basicamente", e o gesto depreciativo que fez
poderia facilmente fazer parte do repertório dos gregos. Seu
museu era pequeno, ela disse, e não oferecia mostras de
categoria internacional.
A não ser, claro, pela secreta coleção micênica do andar de
cima...
— Então, ela é autêntica? — perguntou ela, brincalhona.
— E por que não seria? — ele respondeu, olhando-a de
perto. — Estilisticamente, é diferente das outras, mas isso
não prova nada. Se tivéssemos centenas delas para comparar,
seria outra história. Mas não temos. Temos seis. As variações
podem ser conseqüência do gosto dos diferentes artesãos, ou
do rosto do homem morto, ou...
Ele voltou a fazer seu movimento de ombro, sua marca
registrada, e, para dar ênfase, soltou um suspiro.
— Não existe razão para duvidar do relatório de Schliemann,
que especifica quando e onde foi encontrada — ele disse. —
Mas fazer tal coisa naquele tempo, com os recursos tão
limitados que tinha? É ainda mais inacreditável, não?
— Acho que sim — disse Deborah. — O senhor já pensou
em mandar datar a máscara, só para encerrar o caso?
— Sim, já pensamos nisso — ele disse —, mas não é possível.
Alguns métodos são inadequados. A análise de... como
vocês chamam? Pó das plantas?
— Pólen...
— Isso mesmo. Datação de amostras de pólen. Fazer tal
teste quando a peça foi encontrada talvez tivesse sido útil,
apesar de que o metal polido oferece pouca aderência ao
pólen. Agora, depois de centenas de anos sendo manuseada,
tal coisa pode ser considerada sem sentido.
— C-14? — sugeriu Deborah.
— Para datação com radiocarbono seria necessário quebrar
um pedaço da máscara — disse o diretor do museu. — O
que, naturalmente, seria inaceitável, principalmente porque
não existe nenhuma boa razão para expor tal peça a um teste
tão destrutivo, e porque o ouro não se adapta. Se ela tivesse
sido fundida com carvão e um pouco do carbono
conseguisse penetrar o metal, talvez... Mas isso não
garantiria resultados convincentes. Por que eu danificaria a
peça, se ninguém vai ficar satisfeito com os resultados do
teste?
— E a datação com hélio? — perguntou Deborah.
— Pode ser, no futuro — ele disse, assentindo com a
cabeça, com gravidade —, mas precisamos ter certeza da
precisão do método e de que não prejudicaria a máscara.
Ele lançou-lhe um olhar astuto.
— Para alguém que não está interessada em provar a
autenticidade da máscara, a senhorita tem muitas perguntas.
Deborah sorriu.
— Curiosidade profissional — ela disse. — De um curador
para outro.
— Muito bom — ele disse, sorrindo. — Conte-me sobre seu
museu.
Ela lhe contou, falando sobre a enorme machadinha de
pedra, sobre o restante da nova mostra dos índios Creek e
sobre as peças celtas itinerantes que logo chegariam. Ele
assentiu com a cabeça, sorriu e conseguiu mostrar-se
entusiasmado; até mesmo impressionado. Ela estava,
obviamente, se depreciando. Como poderia não estar, tendo
uma conversa dessas em frente a essa coleção?
Depois de alguns minutos, levada por um crescente
constrangimento em virtude do orgulho que sentia pelo
Museu Colina dos Druidas, um constrangimento que o
delicado encorajamento dele não conseguia dissipar, ela
voltou ao assunto do ouro micênico.
— Deixe-me fazer mais uma pergunta — ela disse.
— Por favor.
— Assumindo que essa máscara seja realmente autêntica,
qual probabilidade de Schliemann ter descoberto uma outra
como esta, uma que nunca tenha sido mostrada ao público?
Mais tarde, quando teve chance, ela pensou no rosto dele
como uma casa grande e isolada, de frente para a rua, com as
janelas iluminadas, prometendo luz e fogo de lareira. Depois
de feita a pergunta, as cortinas se fecharam. Por um
momento, ele simplesmente olhou para ela, ou através dela.
— Isso me parece bem pouco provável — ele disse,
categórico. — Eu não vejo como tal coisa poderia ter
acontecido. — Ele olhou para o relógio de pulso e sorriu,
mas o sorriso era cuidadoso e não chegou aos olhos escuros.
— Agora, peço que me desculpe. Tenho trabalho a fazer.
Por favor — ele disse, uma versão de seu sorriso anterior
voltando a surgir —, aproveite a visita. E — acrescentou ele,
virando-se para ela depois de ter dado vários passos — volte,
por favor. Mencione meu nome à porta e eles não cobrarão
ingresso.
Deborah ficou olhando enquanto ele se afastava,
perguntando-se o que poderia ter dito para fazê-lo bater
numa retirada claramente apressada e desconfortável.
CAPÍTULO 23
No caminho de volta do museu, Deborah parou em uma
barraca de rua e comprou uma mochila amarela: sua
bagagem atual. Depois, procurou a loja mais barata que pôde
encontrar e encheu a mochila de roupas, perguntando-se
vagamente se aquilo significava que pretendia ficar mais de
um ou dois dias. Comprou shorts, camisetas, roupas de baixo
de algodão, um maio que provavelmente lhe ficaria pequeno
e um vestido longo e flutuante feito de um tecido macio e
transparente que poderia ser musselina. Era um modelo bem
grego ou, pelo menos, o que ela imaginava ser um vestido
grego clássico. Atualmente, todas as mulheres têm aparência
genericamente européia. As mais novas se vestem de uma
maneira vistosa que sugere impetuosidade e ingenuidade
curiosamente sensual; as mais velhas usam imensos xales
sobre camisolões que devem ser tão quentes quanto um
forno. Ela esperava que suas novas aquisições a tornassem
parecida com as locais, apesar de saber que as chances nesse
sentido eram mínimas. Ela não vira ninguém, homem ou
mulher, tão alto quanto ela e a maior parte do tempo sentia
olhares curiosos sobre si.
Na Themistokleous, Deborah encontrou uma grande livraria
com uma boa coleção de guias e livros históricos em inglês.
Comprou vários livros de arqueologia e de arte — alguns
deles ela vira na estante de Richard — e uma edição de dois
volumes de capa mole de Mitos gregos, de Robert Graves. A
confusão de tópicos clássicos despertados pela visita ao
museu a deixara claramente consciente do quanto havia
esquecido ou nunca soubera sobre Homero, Ésquilo e
Eurípedes. Tinha muito trabalho a fazer.
Já passava das quatro da tarde quando chegou de volta ao
hotel, cansada e faminta. Uma parte dela teria ficado feliz
em cair na cama, mas ela precisava comer alguma coisa e
estava ansiosa para começar a ler os livros. Leu por
aproximadamente uma hora e meia, tomou uma ducha
rápida, vestiu algumas de suas roupas novas e, levando
alguns livros com ela, voltou para o calor seco e poeirento
da rua.
Caminhou da Ermou até a praça Sintagma e continuou até o
Plaka, o recém-recuperado centro turco da cidade velha.
Ali, os carros atenienses e o concreto eram esquecidos e as
ruas de paralelepípedo tinham casas neoclássicas cobertas
com terracota. As esquinas tinham igrejas ortodoxas cheias
de domos, minaretes e tijolos rústicos. Muitas das
construções, curiosamente, davam a impressão de ser bem
menores. De vez em quando, ela via ruínas mais antigas:
resquícios de um arco romano, parte de uma coluna do
período clássico grego. Aquele ambiente tinha sobre ela um
efeito apaziguador, ao contrário do museu (e da conversa
levemente codificada que tivera com o diretor). Esta era a
Atenas que esperara secretamente encontrar: uma cidade
próspera e elegante, fortemente comprometida com seu
passado histórico.
Era este o pensamento que lhe passava pela mente quando
levantou a cabeça e viu, pela primeira vez, a Acrópole e
parte de um edifício de colunas (dóricas ou iônicas? A essa
distância, era impossível dizer), banhados de luz dourada.
Era de tirar o fôlego. Ela parou onde estava e olhou para o
monumento, sentindo a força do lugar. De acordo com seu
guia, o que via era parte do Propileu, ou Templo de Atenas
Nike, e não o Parthenon propriamente dito, que era
consideravelmente maior. O mármore pálido e refinado da
estrutura parecia brilhar, iluminado por um fogo interior que
lhe dava destaque e aparência irreal. Fora lá, diziam as
lendas, que o pai de Teseu esperara notícias do filho que
partira de Atenas para lutar contra o Minotauro, que vivia no
labirinto debaixo do Palácio de Cnossos, em Creta. Teseu
havia prometido anunciar o sucesso de sua viagem alçando
velas brancas aos navios, mas, em sua alegria, esqueceu-se de
alçá-las. Quando, com suas velas negras, seus navios
chegaram ao porto, seu pai, pensando que o filho estivesse
morto, atirou-se em um precipício.
Lendas. Definitivamente, aquele lugar estava repleto delas.
Talvez fosse isso o que motivasse pessoas como Richard, ou
Schliemann. Em um lugar como este, talvez as histórias de
deuses e heróis em guerra realmente pudessem ser
verdadeiras.
Ela comeu kebabs de cordeiro grelhado, uma salada de
tomates, azeitonas e queijo feta em um restaurante com
mesas na calçada chamado Os Cinco Irmãos. Deborah leu —
o que atraiu o interesse romântico dos garçons — observou
os gatos magros que se via por toda parte esgueirando-se
pelas pernas das cadeiras do restaurante e decidiu que,
fossem quem fossem os gregos que disseram a Elaine
Shotridge que o queijo de suas tortinhas de feta era tão bom
quanto os gregos, estavam sendo, na melhor das hipóteses,
educados e, na pior das hipóteses, sarcásticos. Este sim era o
queijo verdadeiro: úmido, salgado e de sabor pronunciado,
maravilhosamente complementado pela leve doçura dos
tomates cobertos com azeite de oliva. Ela leu o guia o
bastante para descobrir o caminho para a Acrópole, pagou a
conta e saiu.
Em pouco menos de uma hora o lugar estaria fechado. Não
teria tempo suficiente para ver tudo adequadamente e, com
certeza, precisaria voltar para ver o Museu da Acrópole, mas
seria bom dar uma olhada geral na luz e na temperatura mais
suaves do final da tarde. Seu guia dizia que, àquela hora,
haveria menos turistas, pois a maior parte dos passeios
noturnos guiados era para o Monte Filopappou, de onde se
tinha a melhor vista do Parthenon ao pôr-do-sol.
Do mercado romano, Deborah caminhou rapidamente,
subindo a rampa que rodeava a grande pedra sobre a qual
estava situado o Parthenon. Ficou satisfeita ao notar que a
maior parte dos pedestres descia a rampa: turistas em cores
vistosas e chapéus ridículos, com rostos, braços e pernas
vermelhos e suados. Havia alguns adolescentes impetuosos
carregando mochilas que pareciam (e faziam questão de
parecer, pensou ela) prontos para escalar uma outra
montanha, mas a maioria parecia cansada e um pouco
desanimada. O que causaria aquilo? Exaustão,
desapontamento, a inevitável e enlouquecedora constatação
da própria ignorância, o acúmulo diário de locais
intensamente comentados em um amontoado
desconcertante de pedras sem significado? Mesmo pensando
como historiadora e arqueóloga, ela não podia culpá-los.
Lembrou-se do comentário de alguém a respeito de ser
turista: "O que eu vejo me aborrece e o que não vejo me
preocupa".
Mas ela não conseguia ser tão blasé. Ao aproximar-se do
topo, olhou para as erupções pedregosas conhecidas como
Areopagus, ou Montanha de Ares. Fora ali que São Paulo
pregara, onde os turcos fizeram o cerco à Acrópole, 500
anos antes do nascimento de Cristo, onde — numa Atenas
ainda mais antiga — se sentara o conselho dos nobres antes
da primeira (e rudimentar) democracia. De acordo com a
lenda, Orestes fora ali julgado ali pela morte de sua mãe,
Clitemnestra, uma vingança de filho contra ela, que matara
seu pai, Agamenon, filho de Atreu e rei de Micenas.
Atreu. Talvez a última palavra escrita por Richard. Esta
palavra a levara até o corpo dele, atrás da estante. Mas o que
a palavra significara para ele, quando a escrevera e marcara
com os pontos de interrogação?
À direita, ela passou pelo templo de Atenas Nike e
continuou pelo Propileu até o topo da Acrópole. O
Erecteion com as cariátides — colunas em forma de
mulheres — estava à esquerda. Bem em frente, estava o
Parthenon. Ela parou para olhá-lo, feliz por estar sozinha.
Não era de espantar que ela fosse uma das estruturas mais
louvadas do mundo. Sua enorme plataforma de degraus e
fileiras de colunas dóricas anunciavam grandeza e mistério
desconhecidos em qualquer outro lugar. Obviamente, ela
não fora sempre assim, e a maior parte dos visitantes ficaria
horrorizada pelas pinturas berrantes e o amontoado de
estátuas que Péricles mandara construir depois da batalha de
Maratona. Ela perdera seu telhado no século XVII, durante
um cerco, quando o templo — ocupado pelos turcos como
depósito de pólvora — explodiu e queimou durante dois
dias. De acordo com seu guia, sua maior ameaça atualmente
eram os turistas, que entravam sempre que os guardas de
segurança não estavam olhando, e a chuva ácida. A terrível
poluição de Atenas estava corroendo o mármore com
velocidade alarmante...
— A estrutura mantém uma proporção perfeita de nove
para quatro em todas as suas dimensões — disse uma voz na
altura de seu ombro.
Deborah virou-se e olhou para o rosto de um estranho que,
apesar de estar extasiado com a estrutura à frente deles,
estava, aparentemente, falando com ela.
— Verdade? — ela perguntou.
E, quando o sorriso dele ficou mais amigável, ela soube
quem era. Apesar de agora estar vestido de maneira bem
diferente, ele estivera no aeroporto de Atlanta. Ela
praticamente trombara com ele quando pensara em não
pegar o avião, no qual, agora se lembrava, ele também voara.
Ele assentiu com a cabeça e olhou rapidamente para ela.
Depois, voltou a olhar para o templo.
— Imagino que a senhorita tenha encontrado a pequena
coleção de Richard — ele disse. — Ou melhor, encontrou o
que estava faltando.
Então, como uma lingüeta entrando em um trinco, uma
outra parte da memória de Deborah se abriu, e ela
reconheceu uma outra característica dele: a voz.
"Eles levaram o corpo?", ele perguntara, com aquele sotaque
macio e pouco americano.
Deborah ficou boquiaberta e, incrédula, começou a afastar-
se, envolta em uma onda de terror.
CAPÍTULO 24
Ele era um homem alto, com peito e ombros largos, não
muito bem vestido ou atlético, mas forte. Devia ter uns 45
anos, talvez menos. E tinha os olhos pregados nela.
— Fique longe de mim — ela disse. O som saíra meio
engasgado e parecia absurdo, infantil. Ela deu um novo passo
para trás, limpou a garganta e cuspiu nos blocos de mármore
trincados a seus pés. O gesto pareceu chamar a atenção dele,
mas só por um momento. Ele deu um passo na direção dela,
que ficou consternada ao ver sua rapidez.
— Srta. Miller — ele disse. — Precisamos conversar.
— O senhor dá mais um passo e eu chamo a polícia — ela
disse, agora com voz mais firme.
— Por que a senhorita tem tanta confiança na polícia? — ele
perguntou, secamente.
O tom educado com que dissera o nome dela e a amargura
sardónica daquela última resposta tornavam o sotaque dele
ainda mais evidente. Ele era inglês e não australiano ou sul-
africano, pensou uma parte de seu cérebro — uma parte
antiga e animalesca que via o mundo em termos de caça e
caçador, uma parte que assumira o comando e lhe dizia que
tais nuanças eram irrelevantes. Antes, ela mal sentira a
presença daquela parte, mas, agora, confiava nela e sentia
que enrijecia os músculos de suas panturrilhas e desviava o
olhar para os grupos mais próximos de turistas. Observava
seus movimentos equilibrados e cuidadosos como se
lembrasse onde fora seu último lugar seguro.
Não havia nenhum por perto. Ele sincronizara
perfeitamente sua aproximação, e a Acrópole, que parecera
agradável e silenciosa — até mesmo espiritual —, agora
parecia mortalmente deserta.
— Não existe motivo para sentir medo — ele disse. Seu tom
era mais impaciente do que consolador.
— Certo — ela disse. Aquele instinto de sobrevivência pré-
histórico observava o chão em busca de uma pedra que
pudesse ser usada como arma, mas os gregos haviam
aprendido que qualquer coisa pequena o suficiente para ser
carregada seria levada pelos turistas. Não havia nada que
pudesse levantar sem um guindaste.
— Estou do seu lado — disse o homem, dando um passo
cuidadoso na direção dela.
— Eu não tenho lado — ela disse, desafiadora. Ele arriscou
um olhar rápido para além das costas dela. Um grupo de
turistas emergia do Propileu, uns 200 metros atrás,
formando um semicírculo ao redor do guia, câmeras em
punho. Ela respirou fundo e outra peça do quebra-cabeça
caiu no lugar: ele cheirava a fumo de cachimbo e perfume.
Sentir aquele cheiro agora que sua adrenalina começava a
pulsar fez com que se lembrasse de ter sentido o mesmo
cheiro quando se chocara contra ele no aeroporto, mas não
fizera a ligação com o intruso em seu apartamento.
— A senhorita tem uma coisa que procuro — ele disse —, e
estou preparado para negociar para consegui-la.
Considerando o que minha família já pagou pela peça em
questão, me parece mais do que razoável.
— Eu não sei do que o senhor está falando — ela disse.
— Vamos lá — ele disse, sorrindo indulgente. — Estou
preparado para pagar bem mais do que qualquer museu
poderá oferecer.
Outra lingüeta encontrou o trinco na mente de Deborah.
— O senhor me seguiu hoje — ela disse.
— É claro que sim — ele encolheu os ombros. — Como era
sua intenção. Ele é louco, pensou ela. Só pode ser.
— O senhor acha que, se eu tivesse qualquer coisa que
tenha pertencido a Richard, eu a venderia a seu assassino? —
perguntou ela, afastando-se em direção aos turistas, que
pareciam estar infinitamente longe dali.
O rosto dele abateu-se
— Então Richard está morto. Imaginei que isso pudesse
acontecer. Ela olhou para ele.
— O senhor sabia que sim.
— Eu vi os carros de polícia e me perguntei... Mas pensei...
Tinha esperança...
Sua voz tornou-se seca. Por um segundo, ele pareceu
menor, mas em seguida seus traços ficaram mais nítidos e
duros.
— Entendo — ele disse. — Não é de estranhar que tenha
saído do país. — Tratava-se de um tipo de acusação, mas ele
não esperou pela resposta dela. — Mas se você pensa que o
fato de ter sujado as mãos de sangue vai aumentar a quantia
que estou preparado para pagar, sinto avisá-la que está
enganada. Na verdade, o único significado real de sua
brutalidade assassina é que não poderá vendê-la a nenhum
museu. — Ele sorriu, contrafeito. — Sugiro que reconsidere
seus termos rapidamente, — ele disse —, ou serei obrigado
a informar seu paradeiro à polícia.
Essa mudança de atitude fez que Deborah sentisse a cabeça
vazia. Ele está tentando confundir você.
Ela sentiu um ódio cruel e violento pelo homem à sua
frente, um ódio que a fazia sentir vontade de esmurrar o
rosto dele. Mas talvez fosse exatamente isso o que ele
quisesse fazer: desequilibrá-la, fazer com que perdesse o
controle.
— Pensa que não sei o que fez? — disse ela, superando uma
onda de náusea, com voz pouco mais alta do que um
sussurro. — Você matou Richard.
De novo, os olhos dele se estreitaram, como se tivesse
tentando medi-la.
— Você sabe que não tive nada a ver com isso — ele disse.
Não era uma negação apaixonada, apenas uma afirmação
sensata de alguma coisa que ele pensou que ela soubesse. —
Por que eu teria lhe telefonado?
— Você soube da morte dele assim que aconteceu.
— Não — ele disse, seus olhos fechando-se
momentaneamente. — Não fui eu. Eu sabia que haveria
uma... transação naquela noite. Liguei para lá e ninguém
respondeu. Então, liguei para você.
— Eu sei sobre a máscara — ela disse. Foi uma coisa idiota de
se dizer, mas ela queria mantê-lo um pouco desequilibrado
até que conseguisse alcançar o grupo de turistas. — Vou tirá-
la de você e entregá-lo à polícia.
— Tirá-la de mim — ele repetiu, parecendo confuso por um
momento. — Do que está falando?
— Ela está com você — ela disse. — Eu sei disso.
— Ele balançou a cabeça e, num gesto de pai exasperado,
virou-se para o lado. Era a oportunidade que ela estivera
esperando.
Deborah saiu correndo.
CAPÍTULO 25
Ela não olhou para trás. Olhava para o chão irregular e corria
com a cabeça abaixada, suas longas pernas o mais estendidas
possível. Ela não parou até colocar-se no meio do grupo de
turistas espantados, parando bruscamente e chocando-se
contra um homem troncudo que reagiu, irritado, numa
língua que ela não conhecia. Ela gaguejou algumas desculpas
e, quando conseguiu descobrir quem era a guia, disse:
— Estou sendo perseguida por um homem. Será que alguém
pode chamar a polícia?
Meia dúzia de celulares apareceram, e Deborah, tendo ao
fundo o cenário de uma das mais famosas estruturas do
mundo, sentiu-se subitamente feliz por viver no século XX,
com poluição e tudo.
Ela disse ao policial que encontrou olhando para as confusas
ruínas dos antigos teatros, ao pé da Acrópole, que um
homem a estivera seguindo mas que, aparentemente, fugira
assim que ela se juntara aos turistas. Não, ela não sabia quem
era ele. Sim, ela gostaria de ter uma carona até o hotel. Não
mencionou que ele cruzara o Atlântico atrás dela.
— A senhora vai ficar aqui? — perguntou o policial, um
jovem lacônico que parecia pouco confortável com esta
americana com aparência de cegonha.
— Preciso pegar minhas coisas — ela disse. — Depois,
talvez...
Talvez o quê? Fugir novamente?
— Se quiser, eu posso esperar e levá-la ao aeroporto — ele
disse.
— Fugir como você fugiu de Atlanta, como acabou de fugir
do inglês? Para onde? Eles estão aqui também. Eles a
seguiram...
— Sabe de uma coisa? — ela disse. — Esqueça. Eu estou
bem. O cara foi embora. Posso voltar sozinha ao hotel.
Ainda tenho de ficar alguns dias em Atenas.
CAPÍTULO 26
Ela suspeitava que o homem misterioso com sotaque
britânico estivesse esperando por ela no hotel. Ele a seguira
desde antes de entrar no avião, fora atrás dela no museu e,
deliberadamente, aproximara-se dela na Acrópole. Era
impossível que não soubesse onde estava hospedada.
Tentando manter o bom senso enquanto caminhava pelas
ruas silenciosas do Plaka até o Aquileu, conseguiu recuperar
sua velha rebeldia. Fora o sorriso sábio do jovem policial que
finalmente desencadeara a sensação que estivera ali bem
antes, antes que o estranho falasse com ela no Parthenon,
antes até que ele saísse dos Estados Unidos, talvez até mais
cedo, quando fugira de seu próprio apartamento. Fugira.
Era essa a palavra, e era isso o que ela detestava. Deborah
Miller não se acovardava. Brigava pelo que acreditava.
Mantinha-se firme com sua mente ágil, uma mente
obstinada e, como Harvey Webster salientara, no que agora
parecia ser o século XIV, uma desbocada. Ela decidiu não
continuar fugindo.
O saguão do hotel estava fresco, um pequeno refúgio do
mundo lá fora. O senhor idoso estava novamente a serviço.
Ele parecia ter encolhido por causa do cansaço, mas
iluminou-se quando ela se aproximou, virando-se
automaticamente para os escaninhos às suas costas, onde
ficavam as chaves. Ele não precisou perguntar o número do
quarto.
Deborah agradeceu e pegou a chave, que era grande e de
latão, como ela achava que as chaves, em Atenas, deveriam
ser.
— Algum recado para mim? — ela perguntou. — Alguém
ligou? Ele franziu o cenho, pressentindo alguma coisa.
— Não, senhorita — ele disse. — Algum problema?
— Acho que não — ela disse. — Vou fazer uma ligação
internacional do meu quarto.
— Não precisa me avisar antes — ele respondeu.
— Eu sei — disse ela. — Mas acho que, logo, vou receber
outro chamado. Meu telefone ficará ocupado por alguns
minutos. Se alguém ligar, por favor, peça para voltar a ligar
por volta das dez horas.
Caso ele tivesse ficado perplexo com a quantidade de
informações irrelevantes, não deixou transparecer.
— Tudo bem, senhorita — ele disse, com uma pequena
mesura.
Seu quarto estava exatamente como o deixara. O fato não a
surpreendeu, mas ela era cautelosa o bastante para verificar o
local sistematicamente. No caminho de volta, estivera
pensando quem seria a pessoa a receber aquele telefonema
internacional. A primeira pessoa da lista era sua mãe, mas a
perspectiva de ter de explicar a situação a deixava exausta. A
não ser que a polícia tivesse ligado para sua família — um
pensamento aterrador —, eles nem saberiam da morte de
Richard. Ela sabia que não poderia ter aquela conversa sem
acabar sentindo-se responsável de alguma maneira. O
pensamento a entristeceu, porque, pela primeira vez em
muitos anos, ela realmente gostaria de contar tudo à sua mãe
— para o bem das duas —, como deveria ter feito quando
tinha 10 anos.
Desculpe, mãe, ela pensou. Mais tarde eu conto. Conto tudo.
Prometo.
Deborah pegou a carteira e discou um número. O telefone
tocou por longo tempo. Depois, um homem resmungou do
outro lado.
— Calvin? — ela perguntou.
— Sim, quem diabos está falando? São quatro horas da
maldita manhã.
— É Deborah Miller.
Fez-se uma pausa. A sonolência e a irritação desapareceram
da voz do advogado.
— Deborah? Onde diabos você está?
— Estou na Grécia, Calvin — disse ela, com voz calma. — E
vou continuar aqui, pelo menos por enquanto.
— O que está acontecendo?
— A polícia está procurando por mim?
— Sim. Mas não seriamente — ele disse. — Não tenho
certeza. Um deles me perguntou onde você estava, mas foi
só isso.
— Qual deles?
— Qual deles? Que diferença isso faz?
— Faz muita diferença. Qual deles?
— Keene — ele disse. — Não acho que ele goste muito de
você. E vai ficar furioso quando souber que você saiu do
país.
— É provável que ele já saiba. Ouça, Calvin, sei que não nos
conhecemos, mas preciso confiar em alguém e, como você
já teve negócios com Richard eu... bem... acho que isso vai
ter de bastar.
— Claro — ele disse, agora completamente acordado. —
Como posso ajudar?
— Qualquer coisa que você puder encontrar no computador
de Richard sobre Schliemann, Micenas, Agamenon ou
Atreu e me mandar por e-mail.
— O quê? Não tenho acesso ao computador dele.
— Mas pode ter. Como representante dos bens dele.
Richard foi assassinado por causa de alguma peça daquela
coleção secreta do andar de cima, alguma coisa que eles
levaram.
— Que peça está
faltando? Ela hesitou.
— Não tenho certeza, mas acho que se trata de uma máscara
mortuária — ela disse.
— Como a que você tinha na tela do computador — ele
disse.
— Talvez — ela disse. — Por favor, confie em mim. Tenho
seu endereço de e-mail no cartão que você me deu. Vou
enviar meu endereço e você me manda tudo o que
encontrar.
Ela hesitou antes de fazer o último arremesso.
— Acho que existe uma chance de que a polícia não prenda
o assassino de Richard. Acho que eles não querem fazer isso.
— Como assim? Você acha que a polícia está... envolvida?
— Ainda não sei — ela disse. — Mas eu daria uma boa
investigada naqueles detetives antes de lhes dizer qualquer
coisa.
Ele vacilou, ficou quieto. Ela esperou que ele digerisse.
— OK — ele disse, finalmente. — Vou fazer isso.
— Calvin...
— Sim?
— Se eles começarem a dizer que eu matei Richard — ela
disse —, não acredite.
De repente, ela percebeu que tinha mais coisas na cabeça, na
ponta da língua, mas desligou antes que disesse alguma
asneira.
Deborah assistiu 10 minutos de televisão, banhou-se
rapidamente em água dura (quando estava fora, ela sempre
sentia falta da água de Atlanta) e estava quase pronta para ir
para a cama quando o telefone tocou.
— Srta. Miller — disse a voz com sotaque britânico, agora
familiar. — Imagino que a tenha surpreendido hoje.
— Não se preocupe — ela disse. — Mas precisamos começar
essa conversa em termos de igualdade.
— Como assim? — ele perguntou.
— Você sabe o meu nome, mas eu não sei o seu.
A hesitação foi apenas momentânea, e ela imaginou tê-lo
ouvido suspirar.
— Muito bem — ele disse. — Meu nome é Marcus Fitz-
Stephens.
É claro que ele poderia estar mentindo, mas ela não se
importou. O mais importante era ter forçado o gesto.
— Que tal começarmos pelo começo?
CAPÍTULO 27
Enquanto, naquela noite, caminhava sozinha da Acrópole de
volta ao hotel, ela pensara no encontro que tivera com o
inglês e pouca coisa fizera sentido. Ou ele era um ótimo ator
e psicólogo experiente, ou a noção que ele tinha dos fatos
não se encaixava com a dela. A idéia de que pudesse tentar
convencê-la de não ser o assassino de Richard, fingindo
acreditar que ela cometera o ato, era absurda, o que dava a
entender que ele estivesse enganado. A não ser que quisesse
matá-la, por que a seguiu para conversar com ela em um
lugar público? Essas perguntas levaram a uma outra, ainda
mais estranha: ele realmente achava que ela estava com a
máscara? Pode ser que sim. De outra maneira, por que ele
acreditaria — como parecia acreditar — que ela queria ser
seguida por ele?
Perguntas como essas, assim como sua maldita teimosia, a
fizeram voltar ao hotel, onde sabia que ele entraria em
contato com ela, em vez de ir à rodoviária ou ao aeroporto.
Agora, ela estava sentada, imóvel, com o bloco de notas com
o nome do hotel sobre a cama, ao lado dela, uma caneta
esferográfica na mão e o receptor do telefone preso entre o
ombro e a bochecha.
— Tudo bem, Marcus — ela disse. — O que pretende?
— Apesar de tê-la assustado — ele disse —, temo que tenha
cometido uma injustiça ao dizer que você matou seu patrão.
A formalidade do seu discurso fazia que o conteúdo de suas
palavras parecesse ainda mais absurdo, mas ela conseguiu
superar.
— Você está certo, cometeu uma injustiça — disse Deborah,
cautelosa, esperando para ver onde ia dar aquela conversa.
— Temo também que a senhorita realmente acredite que eu
possa... tê-lo assassinado.
— Correto — ela disse. — E agora você vai me dizer que
não.
— Certamente — disse ele.
Do outro lado da linha, ela não ouvia nada além daquela voz
culta e tranqüila, nenhum ruído, nenhuma voz ou barulho
de trânsito. Era provável que, como ela, estivesse sentado
em um quarto de hotel...
— Mas quando você ligou pela primeira vez, em Atlanta,
perguntou-me se eles haviam levado o corpo — ela disse. —
Quem eram eles e, se você não sabia que Richard estava
morto, por que perguntou sobre o corpo dele?
— Eles eram dois executivos gregos com quem, acredito,
Richard tenha feito uma transação. Uma transação que
parece ter ido muito mal.
— E a referência ao corpo?
Dessa vez, o silêncio dele foi bem mais longo. Na verdade,
tão longo que ela se perguntou se a ligação havia caído.
Quando voltou a falar, a voz dele parecia sair da escuridão,
como uma leve bola de fumaça, como se ele tivesse afastado
a boca do receptor e tivesse começado a falar antes de
recolocá-la no lugar apropriado. Ela lembrou-se do cheiro
que sentira do lado de fora de seu apartamento e imaginou
que ele estivesse fumando seu cachimbo. Era uma imagem
estranha que tornava sua voz mais contemplativa e até
mesmo agradável.
Isso porque meu pai também fumava cachimbo.
— Você nunca tinha visto a coleção especial de Richard até a
morte dele, certo? — ele perguntou.
— Isso é importante?
— Significa que você não sabe o que foi tirado de lá — disse
ele.
— Fico feliz por saber que você não acha que eu tenha feito
isso — ela disse.
— Acredito que tenhamos aqui uma falta de confiança mútua
— ele disse. — Um tipo de hipótese de trabalho. Prefiro
pensar que você seja inocente quanto ao assassinato e ao
roubo, e que você pense o mesmo de mim. Por enquanto.
— Por enquanto — ela disse.
— Então, posso pensar que você não tem a posse do que foi
retirado da coleção pequena e extraordinária atrás da estante.
E, sim, eu a vi antes, mas não pessoalmente, na noite em
que ele morreu.
— Continue — ela disse, não lhe dando tempo.
— O que você imagina que tenha sido tirado de lá?
— Uma máscara mortuária — ela disse. — Como a que está
no Museu Nacional de Arqueologia. A que Schliemann disse
pertencer a Agamenon.
— Schliemann disse — ele repetiu. — Você não acredita que
as escavações dos túmulos de Micenas contivessem os restos
do homem que liderou os gregos contra os troianos, não é?
— Não — ela disse.
— Pois Richard acreditava — ele disse.
— Richard era... — ela afugentou o sorriso que começava
a formar-se em seus lábios — um sonhador.
— Talvez seja exatamente por isso que ele nunca tenha
lhe mostrado os tesouros que amealhou, tesouros que fariam
com que a coleção de seu museu parecesse ridícula.
Deborah controlou-se e respondeu com voz calma.
— Você acha que a máscara da coleção de Richard veio dos
túmulos escavados por Schliemann em 1890? — ela
perguntou.
— Você sabe qual foi a mensagem que Schliemann
telegrafou para um jornal de Atenas ao chegar ao final de
suas escavações em Micenas? Ele escreveu: "Eu olhei para o
rosto de Agamenon".
— Eu li que essa história é apócrifa — disse Deborah. —
Mais tarde, ele negou ter mandado o telegrama.
— Bem, é normal que tivesse negado, não acha? — disse
Marcus, inabalável. — Desde que a máscara à qual se referia
nunca chegou às mãos das autoridades do governo em
Atenas.
— Você acha que a máscara exibida no museu é falsa?
— Não, ela é autêntica — ele disse. — Mas não é a máscara à
qual Schliemann se referia. Havia uma outra. Ela veio da
câmara mortuária mais rica de toda a escavação, e ele
manteve seu conteúdo secreto.
— Você acha que Richard tinha a máscara que Schliemann
acreditava ter sido a máscara mortuária de Agamenon? — ela
perguntou, cuidadosa, verbalizando o que ele dava a
entender. Isso seria impossível, mesmo que um Agamenon
histórico tivesse realmente existido. Mas ela ainda não havia
ouvido a afirmação mais extraordinária de Marcus.
— Não apenas a máscara — disse a voz ao telefone. — Você
teve a oportunidade de ver a riqueza da coleção com seus
próprios olhos, não é?
— Sim — ela disse. Ela percebeu que ele estava ficando
levemente sem fôlego, alguma coisa como medo ou
excitação tomava conta dele enquanto ouvia, um
estremecimento que, com uma golfada de possibilidades,
mesmo que remotas, eliminava suas dúvidas a respeito desse
homem.
— Em nenhum momento lhe pareceu estranho que os
assassinos deixassem a coleção para trás, levando apenas a
máscara?
— Sim — admitiu ela —, apesar de achar que a máscara é
mais... valiosa, única.
— E é mesmo — disse Marcus. — Mas a máscara não foi
simplesmente retirada do expositor, não é?
— Não — ela disse, a falta de ar aumentando enquanto sentia
uma verdade sinistra bailando, ainda fora da visão e do
alcance.
— Eles levaram todo o expositor — ele disse. — Era uma
caixa grande e teve de ser levada sobre rodas.
Deborah lembrou-se das marcas de graxa sobre o carpete, da
tomada no piso e do enorme retângulo de luz. O que quer
que estivesse exposto no centro daquela sala, teria de ser
bem maior do que uma única máscara. Os pêlos de seus
braços eriçaram-se. O quarto estava absurdamente frio.
— Então, o que era? — ela forçou-se a perguntar.
— Perguntei se eles tinham levado o corpo — ele disse.
— Não me referia ao de Richard, mas sim ao de Agamenon.
CAPÍTULO 28
Aquilo era impossível. Era absurdo que aquela pequena sala
em Atlanta contivesse o corpo de Agamenon. Era
impossível que um arqueólogo do século XIX pudesse
desenterrar e manter intacto um corpo que estivera no solo
por 3.500 anos.
Ela lhe disse isso e, em seguida, sentiu-se subitamente
irritada por ter gasto tanto tempo ouvindo tamanha
barbaridade e por Richard ter acreditado em tal coisa. Foi
invadida por um abatimento que conseguira manter afastado
até aquele momento. Ela exigiu um número para poder ligar
de volta (ele não definiria mais os termos da conversa), que
ele lhe deu sem hesitação.
Depois de desligar e de ficar mais de uma hora sentada sobre
a cama, ocorreu-lhe uma possibilidade. Pensou algum
tempo, querendo descartar a idéia absurda de Marcus
(Agamenon?). Depois, pegou o telefone e começou a discar.
Demorou exatamente três minutos para que a delegacia de
polícia do Condado de Dekalb localizasse o telefone de
David Barrons, o homem que traduzira a carta russa do
imigrante ilegal chamado Voloshinov. Ela desligou e voltou
a discar. Barrons atendeu ao segundo toque, parecendo estar
bem acordado e alerta.
Deborah forneceu detalhes vagos sobre si mesma, tentando
parecer oficial sem, no entanto, apresentar-se como uma, e
foi direto ao assunto.
— A linha na carta que se referia aos restos. O senhor tem
alguma idéia sobre que restos poderiam ser?
— Eu acho que a palavra, em russo, era ostaki — ele disse,
aparentemente tão entusiasmado por falar no assunto que
não se importou em perguntar quem era ela, ou por que
estava interessada. — E pode significar várias coisas. Coisas
antigas. Restos. Coisas deixadas para trás.
— Antiguidades?
— Imagino que sim. Espere um pouco. Vou dar uma
olhada em minhas anotações.
Fez-se uma pausa, ela pôde ouvir um ruído ao fundo que
poderia ser uma televisão ligada, e ele voltou ao aparelho.
— Eu disse ostaki, certo? Espere, não é isso. — Agora, ele
parecia mais intrigado do que desanimado. A palavra é
ostanki. Eu não havia notado o n. Hã...
— O quê? — perguntou Deborah. Havia um tom de espanto
na voz dela. — O que significa?
— Bem, tem um significado parecido — disse o tradutor. —
Continua querendo dizer restos, só que, agora, um pouco
mais específico.
— Continue — disse Deborah, com um pouco de ansiedade
na voz.
— Agora, significa restos humanos. Sabe, como um cadáver.
Deborah fechou os olhos.
— Estranho — disse Barrons.
— E a última palavra daquele fragmento — pressionou
Deborah, sentindo o ritmo de seus batimentos cardíacos
aumentar. — Você escreveu Mary. Sabe o que isso significa?
— Não tenho certeza de que essas palavras estejam corretas
— ele disse. — A carta estava muito danificada e manchada.
Além disso, foi muito mal escrita. As letras se pareciam mais
com MAGD, mas como não sei o que significa, traduzi
como Mary.
— O senhor acha que poderia ser parte de um nome? O
nome de uma pessoa... ou lugar?
— Acho que sim, mas não tenho certeza.
Deborah agradeceu, desligou e deitou-se de costas, olhando
para o ventilador de teto por alguns minutos. Depois,
verificou se a porta estava trancada e voltou para a cama. Em
menos de cinco minutos, havia adormecido.
Durante as primeiras horas, Deborah dormiu
profundamente, mas estava acordada antes do raiar do dia.
Ficou mais de uma hora sentada na escadaria do Museu
Nacional de Arqueologia esperando dar oito horas, para que
ele fosse aberto ao público. Ao mencionar o nome de
Popadreus, lhe disseram que o diretor do museu já estava em
seu escritório, mas que não poderia ser interrompido.
— Ele está esperando por mim — ela disse, o que
provavelmente era verdade, mesmo que não exatamente da
maneira como ela colocara.
— Espere aqui — disse a frágil oficial militar aparentemente
responsável pela entrada. Deborah não tinha certeza se tinha
sido abrupta em função de sua insegurança com a língua ou
de sua personalidade, e repreendeu a si mesma por não ter
aprendido mais algumas frases em grego. Ela supôs que,
confinados à própria língua, era impossível que os turistas
não acabassem parecendo presunçosos e se dessem ares de
superioridade, confortáveis ao acharem que o mundo
deveria acomodar-se a sua falta de capacidade de
comunicação. Sentindo uma pontada de dor, ela sorriu e
disse "Efharisto". A oficial fez um pequeno sinal de cabeça
ao reconhecer a palavra, mas não retribuiu o sorriso.
Uma porta se abriu e Popadreus apareceu no saguão,
conversando com um homem alto e de pele amarelada, que
usava óculos pesados e terno. Alguns homens nunca se
sentem confortáveis vestindo terno, ela pensou, mas este
vestia o seu como se fosse uma segunda pele. Os ternos
davam uma aparência de autoridade familiar e confortável.
Ao virar-se de frente para eles, o diretor do museu a viu e
liderou o outro homem na direção dela. Enquanto se
aproximava, Popadreus lançou-lhe um olhar torto.
— Mais estudos das peças? — ele perguntou. — Ou de mim?
— Ambos — ela disse, sorrindo.
— Naturalmente. — Ele virou-se para seu convidado de
aparência formal. — A srta. Miller é curadora de um museu
americano — ele disse — e tem interesse em nossa coleção
micênica. Este — ele disse a Deborah — é Alexander Davos,
Ministro da Cultura e Antiguidades.
— Muito prazer — disse Deborah, pega de surpresa
enquanto apertava a mão que o ministro lhe oferecera.
— Espero que a senhorita não esteja interessada em comprar
alguma peça do nosso amigo aqui — disse o ministro,
sorrindo seu sorriso político. A voz dele era suave, seu
inglês impecável e as palavras ditas rapidamente, de modo
que quase não abria a boca. — Preferimos que nossos
tesouros fiquem em solo nacional.
— É claro — disse Deborah. — É uma pena que isso não
tenha sido sempre possível.
Quando virou-se para Popadreus, havia um brilho qualquer
no olhar dele, mas, em seguida, o sorriso voltou-lhe aos
lábios e ele desistiu de falar o que pensara.
— É verdade — ele disse. — Bem, Dimitri, preciso ir
embora —, ele disse a Popadreus. — Você vai... — ele
concluiu a sentença falando rápido, em grego. O diretor do
museu assentiu com a cabeça e apertou a mão dele.
— Srta. Miller — disse Davos. — Foi um prazer.
Em seguida, ele caminhou rapidamente até as portas de
entrada. Os funcionários do museu o reconheceram e
fizeram sinais de cabeça, numa mistura de cumprimento e
mesura.
— Espero não o ter ofendido — disse Deborah.
— É claro que não — disse Popadreus. — A senhorita
queria falar comigo?
— Sobre as escavações de Schliemann.
— De novo — ele disse, inclinando a cabeça para o lado
com expressão lacônica. — Naturalmente. Talvez queira vir
até meu escritório.
Ele seguiu na frente, ela foi atrás. Popadreus caminhava
rápido, e mesmo com seus passos largos ela teve dificuldade
em manter o ritmo.
O escritório dele era tão espartano quanto o resto do museu:
paredes vazias, mobília velha — mas não antiga —, estantes,
alguns diplomas em grego sobre papel amarelado e um
pôster emoldurado anunciando uma exposição egípcia.
O diretor tomou seu lugar atrás da escrivaninha e indicou-
lhe uma cadeira. A maneira brusca com que o último
encontro entre eles terminara havia desaparecido. Ele se
mostrava amável e até mesmo feliz por vê-la.
— Café? — ele ofereceu. — É de verdade, não é Nescafé.
Deborah aceitou, por educação. Imaginou que poucas
pessoas teriam o privilégio de tomar café naquele pequeno
reino isolado. Ele pegou o telefone e falou rapidamente.
Depois, voltou sua atenção para Deborah.
— Então — ele disse —, a senhorita tem perguntas.
— Os círculos de câmaras mortuárias micênicas — ela
começou — continham corpos?
— É claro que sim — ele disse. — Afinal, eram
sepulturas.
— O que quero saber é se ainda existiam corpos ali na
época das escavações.
— Ah — ele disse, acomodando-se na cadeira. — Sim, havia
restos parciais.
— Verdade? Depois de todo aquele tempo?
— A senhorita já ouviu falar dos homens dos brejos de
turfa do norte europeu?
— É claro — ela disse.
Os corpos dos quais ele falava (os Homens de Lindow e de
Tollund eram os mais famosos) foram encontrados no norte
da Britânia e da Escandinávia. Eles pertenciam à Idade do
Ferro — basicamente do século anterior ao nascimento de
Cristo — e, aparentemente, foram vítimas de sacrifícios
ritualísticos. Eles foram assassinados e jogados nos brejos,
onde ficaram até o século XX, quando foram descobertos
durante trabalhos de construção realizados em Manchester.
Estavam em estado de preservação tão fantástico que, em
um caso específico, um policial local acreditou se tratar de
uma vítima de assassinato recente. Ossos, dentes, músculos,
pele, cabelos, conteúdos estomacais, o garrote em torno do
pescoço, tudo perfeitamente preservado.
— Mas os homens dos brejos de turfa foram preservados
pelos elementos químicos do brejo, o óleo que faz com que
a turfa queime — ela disse. — Trata-se de uma composição
de solo muito rara. Não existe nada parecido em outra região
do globo.
— É verdade — ele disse, sorrindo, aparentemente satisfeito
com o fato de ela saber o que dizia. — Mas as mesmas
condições podem ser repetidas artificialmente, caso o corpo
esteja intacto ao ser descoberto.
— Mas isso não seria possível.
— A senhorita conhece Hamlet, srta. Miller? — ele
perguntou. — De Shakespeare.
— Sim, eu li — ela disse, franzindo a testa. Quando estava na
faculdade, seu velho professor de Shakespeare gostava de
dizer que todas as coisas realmente importantes levavam a
Shakespeare.
— A senhorita se lembra do que o coveiro disse a Hamlet
quando ele lhe perguntou quanto tempo os corpos ficavam
intactos sob a terra?
— Não, não me lembro — ela disse.
— Ele respondeu que um corpo queimado do sol dura mais
tempo, porque a pele ficou curtida a ponto de manter a água
fora do corpo por algum tempo, e "a água é o maior
degradador do seu maldito cadáver".
— O senhor está me dizendo que as condições áridas da
região desidratam o corpo? — disse ela, entendendo o que
ele estava tentando dizer e avançando com a idéia.
— As cerimônias fúnebres egípcias colocavam os corpos
diretamente nas areias quentes do deserto — ele disse. — A
aridez absorvia a umidade do corpo, mumificando-o. As
práticas mais tardias dos egípcios, como remoção dos órgãos,
ataduras impregnadas de elementos químicos e assim por
diante, não passaram de tentativas de recriar a desidratação
natural causada pelas areias do deserto para os corpos
enterrados em câmaras mortuárias.
— Mas certamente um corpo tão ressecado ficaria aos
pedaços ao entrar em contato com o ar.
— Sim — ele disse —, e a maior parte deles seria reduzida a
pouco mais do que ossos bastante quebradiços.
Deborah começou a sentir que algumas de suas certezas com
relação ao ridículo do que Marcus lhe dissera começavam a
mudar um pouco, como se o solo onde se apoiavam
começasse a tremer ou afundar.
— O que foi que Schliemann encontrou em Micenas? —
perguntou Deborah.
— Na sepultura do círculo A, ele encontrou ossos de várias
pessoas, até de crianças. Os ossos foram cuidadosamente
ensacados e tirados do local.
— Para onde foram levados?
— Para cá — ele disse. — Nós não os exibimos, mas estão
guardados nas câmaras mortuárias do museu.
Deborah ficou boquiaberta por alguns minutos.
— Aqui? — ela perguntou.
— Sim — ele disse, sorrindo com a reação dela. — Não se
trata de nenhum segredo.
— Mas não passam de fragmentos de ossos, certo? — ela
perguntou.
— Sim, com exceção de um — ele respondeu. — Um corpo
encontrado próximo à máscara na qual estava interessada
ontem.
Deborah fixou o olhar nele.
— Havia... carne? — ela perguntou.
— Aparentemente sim — disse o diretor, com seu
conhecido meneio de ombros. — Schliemann disse que
havia um corpo intacto, contornos faciais... tudo, enfim. Ele
reuniu alguns embalsamadores locais para ver se conseguia
preservar os restos, tentando reproduzir as mesmas
condições que preservaram os homens dos brejos de turfas,
imagino. Algum tipo de álcool, resina talvez.
— E foi bem-sucedido? — perguntou Deborah, ainda
encarando-o.
— Por Deus, não — disse Popadreus. — O corpo
desintegrou-se.
Sozinha, de pé em frente às máscaras mortuárias de ouro,
Deborah especulou. Se os corpos realmente ficaram
desidratados pela aridez do solo grego, seria possível que
Schliemann, que claramente tentara salvar um corpo, tivesse
aplicado a técnica de embalsamento num corpo cuja
existência ele nunca revelara ao governo grego? Seria esta a
causa de seu telegrama famoso (e infame) sobre ter olhado
para o rosto de Agamenon, que, mais tarde, desmentiu
como apócrifa, pois estivera se referindo a um corpo que
decidira esconder das autoridades? Mas, por quê? O
Schliemann sobre o qual ela lera era um sonhador que sabia
promover sua própria imagem. Será que ele não teria
alardeado sua descoberta para os quatro cantos do mundo?
Mas em Tróia ele não revelou suas descobertas aos turcos.
Depois de fotografar os pertences que disse terem sido de
Príamo, rei de Tróia, eles desapareceram. Será que algum dia
foram reencontrados? Muitos dos livros do quarto de
Richard estavam bastante ultrapassados, e mesmo que alguns
reproduzissem a imagem de Sofia, esposa de Schliemann,
adornada com as jóias desaparecidas, nenhum deles oferecia
qualquer explicação sobre o que acontecera com elas. O que
não significava que havia alguma explicação a ser dada. Ela
olhava para as imóveis máscaras douradas e se perguntava:
será que Richard adquirira o corpo intacto do rei de
Micenas?
CAPÍTULO 29
Em outro restaurante do Plaka, Deborah jantou cedo, tomou
um copo de retsina e depois voltou ao hotel para ler As
memórias de Heinrich Schliemann, de Leo Deuel e ver se
conseguia descobrir alguma coisa sobre o desaparecimento
do Tesouro de Príamo. Sentada sobre as pernas, ela leu com
um lápis na mão, sublinhando partes que considerava
importantes. A história apresentada por Deuel era
basicamente a seguinte:
Era 1873. O governo turco estava ameaçando revogar a
permissão que concedera a Schliemann para escavar porque
suspeitava (com razão) que ele já havia contrabandeado
objetos descobertos em Tróia para fora do país. Ele parecia
estar escavando aleatoriamente, mudando de local e de
níveis, aparentemente alheio ao fato de que suas descobertas
pertenciam a períodos diferentes. Ele estava convencido de
que, no nível mais baixo, estaria a Tróia descrita na Ilíada de
Homero, uma obsessão que o cegava para a destruição que
seus homens fizeram dos outros níveis do povoado e até
mesmo para o roubo de algumas de suas descobertas.
O triunfo estranho e controvertido de Schliemann
aconteceu em uma manhã de junho, apenas alguns dias
antes do fechamento da escavação. De acordo com
Schliemann, ele se encontrava caminhando ao redor das
escavações quando viu um brilho de metal na base de uma
parede. Ele começou a escavar a peça, rapidamente
revelando um depósito de ouro, vasos, taças e diademas,
jóias e outros tesouros. Ele disse que se tratava do Tesouro
de Príamo, uma coleção cujo valor apenas dos objetos de
ouro totalizava mais de um milhão de francos. O tesouro era,
ele disse, a prova derradeira da veracidade da descrição que
Homero fizera das riquezas de Tróia.
Foram levantadas perguntas sobre seu relatório — bastante
vago e contraditório — e sobre o local onde fora encontrado
o tesouro, o que, no entanto, logo tornou-se irrelevante.
Desprezando totalmente seu acordo com os turcos, para
quem a descoberta significava um tesouro nacional que
deveria ter sido entregue ao Museu de Constantinopla, ele
imediatamente enviou as peças para Atenas, onde vivia na
época. Os objetos foram contrabandeados em seis cestos e
um saco, seu conteúdo escondido até mesmo de seus
companheiros de escavação.
Dezessete anos depois, quando suas escavações em Micenas
tiveram um final glorioso, ele voltou a escavar em Tróia.
Encontrou quatro cabeças de machado de valor incalculável
e voltou a ter o mesmo comportamento, contrabandeando
os objetos de Tróia para a Grécia e, para facilitar sua
subseqüente reexportação, declarando-os como egípcios aos
oficiais da alfândega. Ele não tinha intenção alguma de
deixar tais tesouros na Grécia. O destino deles era Berlim.
Berlim?
Deborah releu várias vezes essa passagem relevante. Os
objetos escondidos, em ambos os casos — o Tesouro de
Príamo e os machados de pedra —, foram enviados para a
Alemanha, onde, com a morte de Schliemann, em 1890,
foram colocados numa ala especialmente construída no
Museu de Etnografia de Berlim. Fora o último presente do
arqueólogo a sua nação de origem. Mas não foi o ponto final
de sua perambulação. O capítulo de Deuel fechava com um
torturante pedaço de história.
No final da Segunda Guerra Mundial, o exército russo
invadira Berlim e, na queda vergonhosa daquela cidade, os
tesouros troianos de Schliemann desapareceram,
presumivelmente levados como pilhagem pelas tropas
russas. O livro não mencionava se os tesouros foram
espalhados, roubados ou simplesmente destruídos. Na época
em que foi impresso, seu paradeiro era desconhecido e
provavelmente estivesse perdido para sempre.
Russos?
Ela fechou o livro, deitou-se na cama e olhou para o
ventilador de teto, vendo o rosto de Sergei Voloshinov, um
soldado da União Soviética...
Poderia Schliemann ter feito em Micenas o mesmo que fez,
por duas vezes, em Tróia, secretamente exportando uma
quantidade mais valiosa de descobertas não declaradas do
que as que declarara? Em Tróia, ele se mostrara convencido
de seus direitos de proprietário quando se tratava de suas
descobertas e, apesar de parecer menos ansioso para
esconder suas descobertas das autoridades gregas do que se
mostrara com os turcos (sua atitude com relação aos
"orientais" turcos era etnocêntrica, para não dizer racista), é
bastante plausível pensar que ele considerasse apenas os
alemães como merecedores de tal prêmio. Mas se isso fosse
verdade, por que não havia nenhum registro sobre o assunto
em Berlim? Será que ele não teria orgulhosamente mostrado
esta e outras de suas descobertas aos diretores de museu da
Alemanha?
Acontece que Schliemann ressentiu-se amargamente do
desprezo que o público alemão nutria por ele. Na verdade,
ele não passava de um excêntrico. Esse homem, que
construíra para si uma mansão clássica a apenas alguns
quarteirões de distância de onde Deborah agora se
encontrava, que chamava seus criados por nomes
mitológicos e insistia que toda a sua correspondência fosse
escrita em grego clássico, esse homem, com certeza, fazia
suas próprias leis. Se tal homem tivesse descoberto e
preservado o que febrilmente acreditava ser o corpo de
Agamenon, em toda a sua pompa funerária, o que não teria
sido capaz de fazer para guardá-lo para si mesmo? Mas, se ele
precisava manter o assunto em segredo, como teria o corpo
chegado até um pequeno museu em Atlanta, Geórgia, e que
tipo de ligação teria aquele segredo com o russo morto que
estivera perambulando pelo estacionamento do museu
alguns dias antes?
Na manhã seguinte, depois de um café da manhã com
presunto defumado, queijo feta, pão quentinho, iogurte e
mel, Deborah encontrou a bela jovem no balcão de
recepção e perguntou se havia um computador onde
pudesse conectar-se com a internet.
— Existe um cibercafé na esquina da Ermou com a Voulis
— ela disse, imediatamente oferecendo o mapa do hotel e
circulando a intersecção com uma caneta.
Deborah não teve dificuldade para encontrar o local, que
mais se parecia com um bar. Ela entrou no cibercafé,
bastante vazio, e viu um balcão com banquetas cromadas,
uma parede espelhada com um cartaz de propaganda do
conhaque Mataxa e uma solitária máquina de pinball. Estava
pensando em ir embora quando uma voz de homem disse
"Neh?".
Ele devia ter uns 25 anos, e seu rosto redondo era a única
parte do corpo seu que ela podia ver, pois ele parecia estar
saindo do chão. Havia uma escada bem atrás do bar.
— Parakalo — ela disse —, mipos milateh anglika?
Você fala inglês? Aquela era, basicamente, a única frase em
grego que ela conhecia. Se ele respondesse qualquer coisa
que não fosse sim, ela estaria frita.
— Sim — ele disse, sorrindo, um pouco incerto.
— Estou procurando um computador — disse ela.
O sorriso dele flutuou.
— Internet? — ela aventurou-se, seus dedos,
involuntariamente, digitando um teclado imaginário.
O sorriso dele retornou, dessa vez enfeitado com uma pitada
de triunfo.
— Lá embaixo — ele disse, descendo a escada, mudando
o que acabara de dizer para "Aqui embaixo" enquanto
caminhavam.
Ao final da escada, ele orgulhosamente indicou quatro
terminais de computadores alinhados em mesas contra a
parede, cada um com sua cadeira de cromo, lápis e um belo
bloco de papel.
Ela iluminou-se em sinal de agradecimento. Ele mostrou o
navegador da web no monitor e, em seguida, os preços
afixados em uma tabela pregada à parede. Dois euros pela
primeira meia hora, um euro por cada meia hora seguinte.
Uma pechincha.
— Café, gostaria? — ele perguntou.
— Aceito, obrigada — ela disse.
— Nescafé — acrescentou ele, franzindo o rosto como
que pedindo desculpas.
— OK?
Ele saiu e ela entrou na página do Hotmail. Demorou menos
de cinco minutos para criar um novo (e gratuito) endereço
de e-mail com o nome ridículo de
embaixadorantigo2@hotmail.com visto que pelo menos um
daqueles cinco minutos foi gasto com sua perplexidade ao
descobrir que o endereço embaixadorantigo1@hotmail.com
já estava tomado. Ela verificou o endereço de Calvin no
cartão que ele lhe dera e digitou:
Calvin,
Como prometido, envio meu novo endereço. Imagino que
não tenha muito espaço, por isso peço que não mande fotos
ou arquivos muito pesados. Por favor, informe-me de todas
as novidades.
Por aqui, tudo é diversão e frivolidade. Saudades.
D
Aquilo lhe pareceu suficientemente vago.
Ela não sabia por que adicionara "Saudades" no final, ou se a
frase servia para tornar a mensagem secretamente inócua.
Ao mesmo tempo, ela colocara sua inicial, que entregaria o
jogo a qualquer um que lesse. Será que ela realmente sentia
saudades dele? Não, aquilo era absurdo. Ela nem sequer o
conhecia. Sentia, talvez, falta de conversar com alguém que
parecesse acreditar nela, que parecesse estar do lado dela,
mas era só isso.
E o fato de ele ser bonito, simpático e inteligente não valia
nada...?
Nada, nada mesmo, ela decidiu, meio séria. Se havia outras
vozes sussurrantes em seu cérebro, eram simplesmente por
causa da histeria provocada pela situação em que se
encontrava e deveriam ser urgentemente ignoradas.
Ela olhou para o relógio de pulso. Restavam-lhe ainda 20
minutos, e seu café ainda não havia chegado. Entrou no
Google e digitou a palavra "Micenas". O primeiro link a
levou diretamente ao site oficial do truste arqueológico
grego. Ele fornecia um pouco de história básica, algumas
fotos, horários de funcionamento durante a temporada e
preços. Ela tentou uma nova busca, dessa vez digitando
"Tesouro de Príamo". Ao entrar no primeiro link, viu que o
rapaz de rosto de lua cheia voltava com seu café.
— Efharisto — ela disse. — Obrigada.
— Paracalo — ele respondeu, colocando a caneca sobre a
mesa. — Você é inglesa? — ele perguntou.
— Americana — ela disse.
Fora dos Estados Unidos, aquela palavra era capaz de
provocar uma vasta gama de reações, por isso ela fez a
observação meio na defensiva, o que foi desnecessário.
— Ah — ele disse, encantado. — Élvis Presley!
— Certo — ela disse, sorrindo, na medida em que o sorriso
franco que ele deu o deixou cinco anos mais jovem.
— Blue swathe shoes — ele disse.
— Certo — ela repetiu. — Blue suede shoes.
Deus queira que ele não resolva cantar, ela pensou.
Mas ele não cantou. Na verdade, voltou sua atenção ao
computador, claramente interessado em olhar para a tela. Ao
que tudo indicava, dois euros não compravam privacidade.
— Príamo — ele disse, balançando a cabeça em sinal de
aprovação.
— Sim — ela disse.
— Pusskin — ele disse.
— O quê? — perguntou ela, educadamente.
— Pusskin — ele repetiu, pegando o bloco de papel e
escrevendo a palavra com o toco de lápis. — Museu Pusskin.
Ela franziu o cenho, interrogativa.
Ele inclinou-se sobre o teclado.
— Posso? — perguntou ele.
— Hã... OK — ela disse, saindo da frente enquanto ele
digitava algo e clicava em um link que levou ao site oficial
do Museu Pushkin, em Moscou. Atônita, ela observou
enquanto ele clicava dois outros links que trouxeram à tela a
imagem de uma caixa expositora com o que era, quase
certamente, a coleção dos artefatos que Schliemann chamara
de Tesouro de Príamo.
Deborah mal podia acreditar no que via. O tesouro
descoberto em Tróia, contrabandeado e desaparecido estava
na tela do monitor, bem na frente de seus olhos,
aparentemente exposto em um museu em Moscou!
O texto abaixo, em inglês meio quebrado, dizia que o display
continha as descobertas feitas em Tróia por Heinrich
Schliemann, no final do século XIX, um tesouro que ficara
guardado em uma torre do zoológico de Berlim até ser
"liberado" pelas tropas russas. Durante meio século, o
tesouro ficou novamente enterrado, dessa vez na câmara
mortuária de Pushkin, até que, em 1994, o museu admitisse
sua existência ao mundo e o colocasse em exibição,
aparentemente tarde demais para ter sido publicado em
qualquer dos livros da estante de Richard. A posse do
tesouro fora disputada pela Turquia, pela Grécia, pela
Alemanha e por muitos arqueólogos. As disputas legais ainda
estão em andamento...
— Muito velho — disse o jovem. — Muito bonito.
— Sim — disse Deborah.
E se, depois de todos esses anos, uma porção do tesouro de
Schliemann ressurgiu, por que não uma outra? Ela resolveu
ligar para Marcus e marcar uma reunião.
CAPÍTULO 30
Deborah sugeriu que se encontrassem em um restaurante, e
Marcus fez a escolha — Kostoyiannis, um lugar elegante na
Zaimi, bem atrás do museu de arqueologia. Ele não precisou
consultar um mapa ou guia.
Deborah chegou deliberadamente mais cedo, passou várias
vezes pela frente do lugar, observou-o de uma vitrina de loja
de departamentos do outro lado da rua e, finalmente,
entrou. Dez minutos adiantada. Ela estava ansiosa, e o fato
de que o restaurante parecesse ser freqüentado exclusiva-
mente por gregos locais fez com que se sentisse ainda mais
desconfortável, como se os fragmentos de inglês que se
acostumara a ouvir no Plaka lhe proporcionassem uma
sensação de segurança e familiaridade.
Ele chegou na hora exata, bastante elegante num terno
cinza-claro. Antes de sentar-se, dirigiu-se ao maître em
grego. Deborah deu um sorriso forçado.
— Gostei que tivesse ligado — ele disse. — Temos muito
que conversar.
Ao telefone, ela lhe dissera que ainda não confiava nele e
que desconfiava que fosse responsável pelo assassinato de
Richard, mas ele dissera que aquilo era bobagem. Para dizer
a verdade, ela não sabia em quem acreditar, mas achava que
as estranhas histórias sobre reis mortos havia muito tempo,
contadas por este homem não menos estranho, faziam mais
sentido do que ela gostaria de admitir. Era a única maneira
de entender o motivo do desejo evidente que ele sentia de
conversar com ela.
— Os mezédes daqui são excelentes — ele disse.
Ela concordou num sinal de cabeça, como se soubesse o que
eram, e consultou o cardápio, que estava escrito em grego.
Ela engatinhou pela lista, desmembrando as letras da melhor
maneira possível, e, como conseguiu reconhecer apenas
quatro itens, sentiu-se derrotada e um pouco defensiva.
— Quer que eu peça para você? — ele perguntou,
percebendo a indecisão dela.
— Não, obrigada — ela disse, querendo que ele pedisse.
— Você deveria experimentar o cozido de coelho —
sugeriu ele. — É a especialidade da casa.
Ela fez uma pausa. Pensou em recusar, mas acabou
desistindo.
— OK — concordou. — Então peça um para mim. E os...
— Mezedes?
— Certo — ela disse.
Ele fez o pedido em grego, escolheu uma garrafa de retsina
cujo sabor era menos ácido do que a maioria, colocou seu
cachimbo sobre a mesa e olhou para ela.
— Já que deixamos claro que o nível de confiança mútua é
bastante baixo, acho melhor deixarmos a etiqueta de lado e
irmos direto ao assunto, como vocês, americanos, gostam de
dizer.
— Isso seria ótimo — disse ela, colocando seu copo sobre a
mesa e olhando-o direto nos olhos. — Vamos dizer que
ambos estejamos procurando pelas mesmas coisas: o
assassino de Richard e o tesouro que tinha em seu poder,
inclusive — ela engoliu em seco, detestando dizer aquilo em
voz alta — o corpo de um antigo rei de Micenas.
— Agamenon — disse Marcus.
— Seja quem for — ela disse.
— Então, posso acrescentar um "seja quem for" ao negócio
da busca pelo assassino de Richard? — ele replicou. — Não
fui eu, acredito que não tenha sido você, e isso é tudo o que
me importa. Não conheci Richard e presumo que as
autoridades encarregadas vão procurar e julgar seu assassino.
— Talvez — disse Deborah.
As sobrancelhas dele se franziram, mas ele esperou até que o
garçom servisse a comida antes de continuar.
— O que quer dizer?
Não era por aí que ela queria começar a conversa, mas o
ponto lhe pareceu relevante. O fato de não ter certeza de
poder confiar nele não poderia fazer-lhe mal e, se desse uma
demonstração de boa-fé, poderia conseguir mais dele.
— Existem dois detetives investigando o assassinato, um
chamado Keene e outro Cerniga — ela disse. — Só que
parece que Cerniga não é policial.
Ela contou-lhe a conversa que ouvira, e o rosto de Marcus
empalideceu.
— Sua vez — ela disse, cortando seu guisado, que, como ele
dissera, estava excelente.
— Muito bem — ele disse. — Deixe-me oferecer-lhe isso. O
Atlanta Journal-Constitution revelou que o corpo de Richard
foi apunhalado, mas não deram detalhes sobre os
ferimentos. Eu acredito que os ferimentos tenham sido
feitos por uma lâmina curiosamente longa, com um cabo
curvo para baixo dos dois lados. Estou certo?
Ela lembrou-se do corpo coberto de sangue, dos ferimentos
espalhados pelo cadáver pálido de Richard e da poça de
sangue que se formou abaixo dele. Lembrou-se da estranha
arma na foto com a suástica no cabo e sentiu um
estremecimento.
— Como sabe — ela disse —, se não foi você quem o
matou?
— Richard não foi o primeiro a morrer dessa maneira — ele
disse. — Dez anos atrás, em um vilarejo francês na costa
britânica, um outro homem idoso morreu com o mesmo
tipo de ferimento.
— Dez anos atrás? — perguntou ela. — Na França? Tem
certeza de que exista ligação?
— Ah, sim, tenho certeza. Na verdade, sei exatamente
qual é a ligação. Ela esperou que ele mastigasse uma porção
de sua refeição e tomasse
um gole de vinho.
— O cavalheiro em questão era um comprador potencial
para o antigo corpo real que acabou indo para a América e
para a coleção do sr. Dixon. Fazia muitos anos que ele estava
tentando realizar a compra.
— Você acha que Richard teve alguma coisa a ver com isso?
— perguntou ela, incrédula.
— Não — respondeu ele. — Na verdade, acho que as pessoas
que mataram o primeiro homem são as mesmas que
mataram o sr. Dixon. Eles também têm estado à procura do
corpo e não se deixariam deter por nada. Na França, não
tiveram sucesso e demoraram 10 anos para descobrir
novamente a pista. Acho que, seja quem for que tenha
realizado a venda, manteve-se escondido depois do
assassinato na França, mas os assassinos ainda estavam à
espera quando a peça voltou ao mercado, no início deste
ano. Eles interceptaram a transação, e o resto você já sabe.
— Richard estava vendendo o corpo? — perguntou Deborah.
Isso significava que ele realmente havia escondido a história
dela, que não pretendia expô-lo no museu. Ela sentiu um
aperto no coração.
Marcus assentiu com a cabeça, primeiro lentamente e, agora,
mais rápido. Ele colocou o cachimbo apagado na boca e
mascou o bocal.
— Sim — disse ele. — É possível que estivesse de posse do
corpo desde que ele saiu da França, há 10 anos. E decidiu
vendê-lo. Quando começou a fazer insinuações para
conseguir compradores, os assassinos finalmente
conseguiram localizá-lo.
— Anos depois? — perguntou Deborah. — Quem estaria
pronto a matar... pelo menos duas vezes... e esperar décadas
por um cadáver? Por que isso vale tanto para eles?
— Trata-se da mais extraordinária descoberta histórica jamais
feita — ele disse, com simplicidade e um pouco de
veemência.
— Acredito que existam pessoas que não concordem com
isso.
— Os colecionadores são uma raça estranha — disse Marcus.
— Seus desejos beiram a obsessão. E por uma peça como
esta, tão rica em história e valor de mercado, alguma coisa
tão saturada de lenda e poder... alguns homens fariam
qualquer coisa para colocar as mãos em uma peça assim.
— Como você ficou sabendo do corpo? — ela perguntou.
— Já faz algum tempo que ando de olhos abertos — ele disse,
com um sorriso desolado. — Há muitos anos sei da
existência do corpo, dos tesouros do túmulo e de outras
peças micênicas que foram deixadas para trás. Assim como
sei que, quando desapareceram, foram transportadas com
outros artefatos menos interessantes ou valiosos. Sabia
também que, se algum dia encontrasse um deles, estaria bem
perto de encontrar o corpo de Agamenon. Um dos artefatos
é bem representativo, talvez até único. Alguns meses atrás,
essa peça reapareceu no lugar menos esperado. Sabe onde
foi encontrada?
Ele sorriu novamente, mas dessa vez era um sorriso fino e
duro, completamente desprovido de humor.
— Como poderia saber? — respondeu Deborah, irritada
com seu ar de sabedoria. — Não sei do que se trata.
Ele colocou o cachimbo sobre a mesa, inclinou-se para a
frente e segurou as mãos dela. Seus dedos eram longos e
frios; ela começou a afastar-se, mas ele segurou-as com força
a aproximou-se mais, seu rosto subitamente com expressão
de lobo e seus lábios afastados, mostrando os dentes.
— Trata-se — ele disse — de uma proa de navio do início
do Renascimento espanhol, metade mulher, metade cobra.
Isso lhe soa familiar, srta. Miller?
CAPÍTULO 31
Deborah tentou lembrar-se do ar jubiloso com que Richard
desempacotara a grotesca mulher-dragão. Fora a dois ou três
meses atrás. Ela chegara de manhã e lá estava a proa, em
toda sua abominável glória. Estivera exposta durante o
primeiro evento para arrecadação de fundos. Suas fotos
haviam sido publicadas nos jornais...
— Sim — disse Marcus, observando Deborah fazer suas
ligações. — Não sei por quanto tempo ele estava de posse
dela, ou porque resolveu revelá-la naquele momento, mas,
assim que a vi, sabia do que se tratava e o que estivera sendo
transportado com ela. E assim como eu soube, tenho certeza
de que outras pessoas também souberam.
— Talvez a intenção fosse essa — disse Deborah. — Se ele
pretendia vender o corpo e seus tesouros, talvez o fato de
exibir aquela aberração fosse uma maneira de anunciar que
ele realmente tinha a posse do que dizia ter.
Deborah olhou para a comida em seu prato, subitamente
sem apetite.
— O que foi? — perguntou Marcus.
— Nada — ela mentiu.
— Você está se perguntando por que ele nunca lhe contou a
respeito — ele disse; por que ele nunca deixou o legado para
o museu.
— Isso mesmo — disse ela.
— Eu não sei — ele disse, gentilmente. — E suponho que
nunca saberemos.
— Estranho, não é? — comentou ela. — Você trabalha
vários anos com uma pessoa e pensa que a conhece bem,
sabe o que quer da vida e, de repente...
Ela fez um meneio de ombros.
— Se pelo menos eu soubesse mais sobre quem pudesse
ter feito a ligação da proa do navio com Agamenon — disse
Marcus.
— Acabo de pensar em uma coisa — disse Deborah,
concentrando-se.
— Você disse que achava que Richard havia se
encontrado com dois executivos gregos. Eles compareceram
ao evento do museu na noite em que Richard foi
assassinado. Seus nomes não constavam da lista de con-
vidados e eu nunca os vi. Aparentemente, passaram algum
tempo com ele, mas...
Deborah teve uma idéia. Era provável que não passasse de
esperança desesperada, mas, mesmo assim, fazia sentido, um
sentido que reforçava a imagem do Richard que ela
conhecera.
— Richard era obcecado pelas lendas gregas — ela disse
—, pela Guerra de Tróia. Ao mesmo tempo, era um homem
de princípios. Pode ser que, algum tempo atrás, ele tenha
comprado a coleção inteira. Que tenha passado anos
estudando-a em segredo, tentando descobrir se era
realmente autêntica, com a intenção de fazê-la parte da
coleção do museu. Mas — ela continuou, falando
rapidamente, não vendo nada ao redor além da idéia que se
desdobrava em sua mente — parte dele acha que Agamenon
— porque ele realmente acredita que o corpo pertencia a
Agamenon — não deveria ficar nos Estados Unidos. Ele
pertence à Grécia. Richard era parecido com Schliemann no
que se refere a sua paixão por provar que Homero estava
certo, mas os dois não se pareciam quando se tratava de ética
de possessão. Pode ser que ele tenha sido procurado... ou
tenha iniciado contato com alguma organização de
antiguidades gregas, talvez até o governo grego. Ele lhes
disse o que tinha e revelou aquela proa de navio ao mundo
de modo que soubessem que estava dizendo a verdade.
Talvez tenha feito um acordo: eles levariam o corpo de
Agamenon de volta à Grécia e ele ficaria com o restante da
coleção para exibir no museu. Alguns representantes da
organização grega vêm para ver a peça. Alguma coisa sai
errada. Ou eles não são as pessoas que ele imaginava que
fossem, ou...
Sem palavras, ela sentiu-se subitamente derrotada. Tudo
aquilo não passava de especulação que não a levaria a lugar
algum.
Mas Marcus não pensava assim. A luz que estivera nos olhos
dela foi transferida para os dele.
— Se você estiver certa — ele disse —, eles vão tentar
trazê-lo de volta à Grécia. Mas não se arriscarão a trazê-lo de
avião; o colocarão em um navio.
— Como Schliemann fez — ela disse.
— Precisamos ir a Corinthos — disse Marcus, colocando
seus talheres sobre a mesa, como se quisesse sair
imediatamente.
— Corinthos? Por quê?
— Você tem um guia turístico, ou algo do tipo? — ele
perguntou. — Um mapa?
Deborah tirou seu Rough Guide da bolsa e abriu na página
do mapa da Grécia e regiões vizinhas.
— Olhe — disse ele, apontando para o mapa. — Atenas
está bem aqui. Qualquer carregamento vindo dos Estados
Unidos será desembarcado no porto de Pireus, aqui. Mas
Pireus é um porto muito importante para ser conveniente ao
contrabando e requer que os navios atravessem o
Mediterrâneo, passem pela Itália e dêem a volta pelo
Peloponeso e pelas Cíclades. Mas eles podem economizar
bastante tempo e evitar muitas inconveniências se passarem
por Corinthos e depois seguirem para Pireus. O uso do canal
significa uma economia de 200 a 300 mil milhas de mar
aberto.
E continuou:
— Se formos a Corinthos, poderemos descobrir se existem
navios programados para chegar dos Estados Unidos. A
passagem pelo canal é complicada e precisa ser marcada com
antecedência. Poderíamos ficar de olho nas cargas que
chegam e até mesmo interceptá-las.
— Isso só acontecerá dentro de algumas semanas — disse
Deborah.
— E nós estaremos prontos.
— Imagino que possamos avisar as autoridades antes da
chegada deles — ela disse.
— Mas tudo indica que são as autoridades quem estão
trazendo a carga.
Deborah balançou a cabeça.
— Não acho que o governo grego faça vista grossa a roubo e
assassinato para recuperar um tesouro nacional.
— Não? — perguntou ele. — Os gregos são bastante
nacionalistas quando se trata de sua herança histórica. O que
não é nada surpreendente, considerando a maneira como
foram roubados durante séculos.
— Principalmente pelos britânicos — Deborah lembrou-o.
— A frisa do Parthenon era a jóia da Acrópole até que lorde
Elgin a tirasse de lá e a levasse para Londres.
E agora fazia parte da coleção do Museu Britânico e, apesar
dos constantes pedidos dos gregos, não havia a menor
indicação de que fosse devolvida a Atenas. Lorde Elgin
afirmara que, se tivesse deixado a frisa onde estava, ela teria
sido destruída pelos turcos, e pode ser que tivesse razão.
Agora, entretanto, os britânicos recusavam-se a abrir mão
dos mármores — apesar de ocasionalmente usarem a
precariedade das instalações dos museus gregos como
motivo, tratava-se mais do fato de a lei favorecer o
proprietário na quase totalidade dos casos.
— Obrigado pela lição sobre usos e costumes culturais —
chicoteou Marcus. — Podemos, por favor, voltar a nosso
assunto?
Deborah sorriu, surpresa ao perceber que começava a gostar
dele.
— Sabe — ela disse —, você ainda não me contou como se
envolveu nessa história. Sim, você é um historiador e
colecionador de arte; sim, você parece ser tão obcecado
quanto Richard pela arte micênica e suas lendas. Mas como
ficou sabendo sobre o corpo e que ele estava sendo
transportado com aquela carranca espanhola do século XVI?
Ela continuava a sorrir. Como o tom que usara fora bastante
leve, ela surpreendeu-se ao ver que ele parecia distante.
— O velho cavalheiro que foi morto na França me
contou tudo — ele disse. — Décadas antes, ele estivera em
contato com um negociante inescrupuloso, mas nunca
pusera os olhos no corpo.
— E por que ele lhe contaria tudo?
Marcus franziu o cenho.
— Ele era meu pai — ele disse.
CAPÍTULO 32
Assim que o pequeno cibercafé subterrâneo abriu suas
portas, Deborah entrou. O jovem de rosto de lua cheia
mostrou-se feliz ao vê-la, talvez lisonjeado. Ela evitou
qualquer tipo de conversa e recusou o café; havia um brilho
no olhar dele que ela não queria explorar ou encorajar. Ele
pareceu ficar um pouco desapontado, mas não invadiu a
privacidade dela.
Havia duas mensagens em sua caixa de correspondência do
Hotmail. Uma era uma mensagem automática de boas-
vindas do serviço de e-mail; a outra, de Calvin, era
angustiantemente curta.
"Computadores confiscados. Eles sabem onde você
está.Também sinto saudades."
Não havia nenhum anexo.
Deborah soltou um grande suspiro e perguntou-se se deveria
responder. Ela não sabia o que lhe dizer. Afinal de contas,
mal conhecia o homem. Mas Richard confiara nele, e isso
deveria contar alguma coisa. Para ser mais exata, talvez fosse
prudente deixar alguém saber que planejava ir a Corinthos
com um homem que, até 24 horas antes, ela acreditara ter
sido o responsável pela morte de Richard. Seus olhos
pousaram no fragmento da última sentença: Também sinto
saudades. Ela sentiu uma onda absurda de prazer, que logo
afugentou.
Não dê uma de adolescente ridícula.
Respirou fundo e digitou antes que tivesse a chance de
mudar de idéia.
"Vou para Corinthos com Marcus. O clima está perfeito.
Gostaria que você estivesse aqui."
Aquilo era uma brincadeira, ela disse a si mesma, uma
tentativa de amenizar a estranheza da situação. Assim que
enviasse, ela provavelmente se recriminaria, odiando a
superficialidade do tom do e-mail.
Bem, pensou ela. Agora é tarde demais. Onde estava, não
havia nada que pudesse fazer se Calvin achasse que ela
estava ficando caída por ele, e aquele e-mail não poderia lhe
fazer mal algum. Talvez ele ficasse menos tentado a contar
seu paradeiro à polícia. Aquele foi um pensamento cruel. E
bastante dissimulado. Ela não estava simplesmente flertando
com ele (embora de maneira pateticamente ambígua e
adolescente) para mantê-lo sob controle. Estava fazendo isso
porque uma parte dela queria, porque gostava da maneira
como ele sorria e esticava as pernas à frente dele quando se
sentava...
Vamos parar de sonhar.
Afinal de contas, Deborah não era de romances. Não era de
relacionamentos (fosse qual fosse o significado da maldita
palavra) e, com certeza, não era de cair de amores.
Além disso, você não confia nos homens, ela lembrou a si
mesma.
Nem mesmo nos bonitinhos?
Especialmente nos bonitinhos.
De qualquer maneira, ele sairia em disparada assim que
percebesse qualquer interesse da parte dela. Era bastante
provável que Calvin Bowers pudesse escolher entre todas as
advogadas atraentes e bem-sucedidas de Atlanta. Uma
relação de longa distância (palavra odiosa) com uma fugitiva
de pernas de cegonha não seria prioridade em sua lista.
Enquanto olhava para a tela, recebeu uma nova mensagem.
Por um segundo, pensou que ele estivesse respondendo ao
e-mail que acabara de enviar e sentiu o coração subir-lhe à
garganta, ao mesmo tempo que sentia uma onda de
humilhação tomar conta dela. Mas era um e-mail com
endereço desconhecido, cheio de letras e números.
Franzindo a testa, ela o abriu.
Continha oito palavras e nenhuma pista de quem o havia
mandado.
"Volte imediatamente para casa. Sua vida corre perigo."
CAPÍTULO 33
Como poderia estar correndo perigo maior agora do que
correra em Atlanta? Aquilo não fazia o mínimo sentido.
Pensando bem, talvez aquele e-mail nem fosse para ela.
Ninguém, além de Calvin, tinha seu novo e-mail e ela não
acreditava que ele o tivesse dado a alguém. Volte
imediatamente para casa. Sua vida corre perigo. É provável
que se tratasse de alguma brincadeira de hacker, enviada a
ela e a milhões de outros endereços aleatórios — uma
brincadeira não muito engraçada, ela admitia, mas... Por isso
era tão pouco específico em seu enunciado: tentava ser
relevante a todos que o recebessem. Era possível que
funcionários de escritório entrassem em pânico e saíssem
correndo porta afora para voltar para casa. Talvez fosse ainda
mais provável que esses funcionários de escritório
estivessem rolando de rir como sempre faziam com pedidos
suspeitos de números de contas bancárias que,
supostamente, levariam à transferência de milhões de
dólares de algum banco da África. Para ela, o e-mail parecera
mais verdadeiro, porque estava longe de casa, não conhecia
ninguém e havia saído (fugido) do país por causa de um
assassinato... Se ela corria algum perigo, esse perigo ficara
em Atlanta.
A não ser, claro, que o assassino a tenha seguido de Atlanta
até a Grécia...
Bobagem.
Quando chegou ao hotel, havia uma mensagem telefônica
de Marcus. Ele não a encontrara. Ela estava ficando
acostumada a pensar nele como um aliado e até mesmo
como amigo. A mensagem secreta do computador, mesmo
que racionalmente pudesse culpar algum adolescente com
talento para escrever em código, abalara um pouco aquele
sentimento. No momento, ela não sentia muita vontade de
conversar com Marcus.
— Deborah — ele disse, com voz carregada de ansiedade —,
onde diabos você se meteu? Eu falei com o operador dos
navios em Pireus. No próximo mês, apenas um navio
contêiner está escalado para passar pelo canal de Corinthos.
Ele está três semanas atrasado; deve ter ficado detido em
New Orleans. Vou até Corinthos para ver se consigo
descobrir o que aconteceu. Ligue-me quando chegar.
Corinthos era bem próxima de Micenas. Ela sabia que, em
algum momento, iria até lá.
Com a ajuda do recepcionista do Aquileus, ela fez reserva
em um hotel de preço razoável em Corinthos e ligou para
Marcus, secretamente esperando que ele tivesse saído. Tinha
saído, de fato, mas não deixara a secretária eletrônica ligada,
apenas uma voz impessoal dizendo o número da caixa
postal. Ela não queria ficar parada, esperando que Marcus
voltasse. Sentia-se impaciente e queria fazer alguma coisa.
— Sim — ela disse ao telefone. — Diga-lhe que Deborah
ligou e que estará no Ephira, em Corinthos. Podemos nos
encontrar lá.
Havia mais uma coisa a fazer antes de partir. Ela desceu até a
recepção com olhar sério e perguntou ao recepcionista se
podia ajudá-la.
— Preciso fazer uma ligação internacional, mas não tenho
certeza do número — ela lhe disse. — Sei apenas o nome.
— Podemos tentar — ele disse. — Mas pode custar caro.
— Tudo bem.
— Que país?
— Rússia — ela disse. — Moscou. O nome da mulher é
Alexandra Voloshinov.
Se a resposta dela causou-lhe espanto, ele não demonstrou.
Ele fez três ligações, falando grego e rabiscando números
entre elas. No último chamado, ele passou para o inglês e
entregou-lhe o telefone. A voz do outro lado era feminina e
tinha um sotaque que Deborah presumiu ser russo.
— Existem três Alexandra Voloshinov em Moscou. A
senhora quer os três números?
Deborah anotou os números, desligou e discou o primeiro
da lista.
O homem que atendeu não falava inglês e ficou irritado
porque ela continuou com suas perguntas. Quando ele bateu
o telefone na cara dela, o recepcionista sorriu
sardônicamente e sublinhou o segundo número.
— Da — atendeu uma mulher.
— Desculpe — disse Deborah, falando dolorosamente
devagar, odiando o fato de não ser capaz de falar russo,
sentindo uma mistura de futilidade e idiotice. — Estou
tentando falar com Alexandra Voloshinov, mas não sei falar
russo. Sou americana. Estou ligando a respeito...
— Meu pai — ela disse, com voz inexpressiva. — Eu já sei.
— Sinto muito por sua perda — disse Deborah, sendo
verdadeira e, ao mesmo tempo, ouvindo a falta de emoção
em sua própria voz.
— Alguma notícia? — perguntou a mulher. Ela não parecia
estar curiosa ou esperançosa.
— Na verdade, não — disse Deborah, sentindo-se
traiçoeira. — Gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
Como a mulher não dissesse nada, Deborah pressionou.
— Você conhece alguma pessoa ou lugar com as iniciais
MAGD ligados à seu pai?
A mulher não hesitou.
— Magdeburgo — ela disse. — Na Alemanha. Ele morou
lá algum tempo.
— Certo — disse Deborah, confiante.
Alemanha, de novo?
— Seu pai trabalhou para o Ministério do Interior — ela
disse, tentando ganhar tempo. Não sabia o que mais queria
saber. — A MVD?
Dessa vez, fez-se uma pausa. Quando a mulher voltou a
falar, seu tom era brusco.
— Sim. Muitos anos atrás.
— O que ele fazia?
— O que ele fazia? — ela repetiu, curiosa.
— Qual era o trabalho dele? — reformulou Deborah.
— Eu não sei — ela disse.
Subitamente, Deborah franziu o cenho, sabendo que
Alexandra esquivava-se.
— Sinto muito, mas não estou entendendo — ela disse,
tentando parecer educada.
— A MVD — disse a mulher, evasiva. — Ele trabalhava lá.
Deborah mudou de tática.
— O que é a MVD?
— Ela não existe mais — disse Alexandra Voloshinov. Fez-se
outra longa pausa e, em seguida, com evidente relutância,
ela acrescentou. — Originariamente era chamado de NKVD.
— NKVD? — repetiu Deborah.
O recepcionista, que, levemente surpreso, estivera ouvindo
a conversa, aprumou o corpo. Seus olhos arregalaram-se e
mostraram-se assustados. Por um segundo, Deborah pensou
que ele fosse dar um passo atrás. Ela lhe fez um sinal com a
boca perguntando "O quê?", mas ele continuou apenas
encarando-a. Sua atitude confortável e lacônica havia
desaparecido. Ele parecia nervoso, quase amedrontado.
— Sinto muito — disse Deborah ao telefone. — Não sei do
que se tratava.
— Eu não quero falar sobre essas coisas, não por telefone —
disse a mulher.
— Por favor — disse Deborah. — O que eram a MVD e a
NKVD?
— Um tipo de polícia — disse a mulher, e Deborah percebeu
que mesmo essa resposta inadequada lhe custava grande
esforço. — Polícia secreta. Eles observam, em seus países e
em países estrangeiros.
— Como espiões? — disse Deborah, ainda olhando para o
recepcionista paralisado, tomado por uma onda de aflição
que beirava o pânico.
Como era possível que algumas letras maiúsculas lhe
causassem tanto pavor?
— A NKVD tornou-se MVD — disse a mulher,
pronunciando cuidadosamente, um toque de apreensão
claramente perceptível em sua voz. — A MVD
transformou-se em KGB.
Aquelas letras, Deborah conhecia.
CAPÍTULO 32
O ônibus parado no terminal Kiffisou 100, com película de
controle solar bastante escura nos vidros das janelas, tinha,
com a graça dos céus, ar-condicionado e não era a carroça
velha cheia de bodes e galinhas que ela — de modo bastante
condescendente — temera. Dito isso, tratava-se do principal
meio de transporte utilizado pelos locais, e ela não
identificou nenhum estrangeiro a bordo.
Demorou uns 40 minutos para saírem da cidade, quando o
cenário mudou completamente, transformando-se em
espaços abertos e montanhosos, prodigamente pontilhados
com oliveiras; o azul cristalino do mar brilhando do lado
esquerdo enquanto dirigiam-se da Ática para o Peloponeso,
que abrigava uma incrível densidade de locais antigos da
Grécia: Corinthos, Micenas, a Tirinto da Idade do Bronze,
Epidaurus com seu incomparável teatro e Argos, em razão
da qual a região — Argólida — foi nomeada.
Deborah aproveitou a oportunidade para esticar as pernas e
respirar um pouco de ar puro quando o ônibus fez uma
parada rápida em Elefsina, dando tempo aos passageiros para
comprarem lanches e refrigerantes extremamente caros.
Continuaram a viagem e chegaram ao canal, cruzando uma
ponte de vigas sobre o sulco profundo. De lá, tinham uma
breve vista dos penhascos até o canal aberto na rocha, onde
enormes barcas moviam-se como barcos de brinquedo
centenas de metros abaixo. A viagem terminou na rua
Ermou, de onde caminhou até o hotel.
O Ephira estava localizado na movimentada Ethnikis
Andistasis, a alguns quarteirões do frontão do mar. Era um
hotelzinho pequeno, limpo e de cores vibrantes que mais se
parecia com um centro para executivos do que um hotel
para turistas. Para os turistas, saciados com as ruínas
espetaculares da antiga Atenas, a cidade de Corinthos não
tinha nem de longe o charme de Delfos, Epidaurus ou
Micenas. Deborah passou pela porta giratória de vidro e
esperou até que um homem que supôs ser o proprietário se
afastasse de um tabuleiro de gamão e do que lhe pareceu ser
um copo com café extremamente forte. Atrás de uma
palmeira plantada em um vaso, o adversário dele, um
homem em mangas de camisa, observava-a descaradamente.
O mais velho entregou a Deborah uma chave de cartão
magnético e, em seguida, pegou um pedaço de papel do
escaninho numerado.
— Srta. Miller? — ele perguntou, verificando uma segunda
vez. — Isso é para a senhorita.
O bilhete estava escrito num rabisco feito a lápis de letras
longas, provavelmente dele. Dizia: "Encontre-me na
Acrocorinthos às cinco da tarde. Marcus".
Deborah franziu o cenho. Não gostava que lhe dissessem o
que fazer. De qualquer maneira, o bilhete evitava que ficasse
sentada esperando pelo chamado dele.
Ela dormiu durante uma hora, voltou a sair para a rua,
comeu torta de espinafre que acabara de sair do forno em
uma padaria e caminhou até a praia de pedregulhos. Na praia
apinhada, só havia gregos. Ela olhou para a água azul e
observou o constante desfile dos petroleiros e dos navios de
carga que se afunilavam, ela supôs, canal adentro. Um pouco
antes das cinco horas, pegou um táxi e foi direto para
Acrocorinthos. Imaginou que chegaria adiantada, mas isso
lhe daria tempo para dar uma olhada nas ruínas antes que
Marcus chegasse.
No tempo da Grécia clássica, a Corinthos Antiga era um
local extremamente rico e, depois de um breve hiato, voltou
a ser poderosa sob o domínio dos romanos. Estava
estrategicamente situada de modo a controlar o comércio
entre os mares Egeu e Iônico, e servindo de ponte entre o
leste o oeste do Mediterrâneo. Na época dos gregos, abrigara
um importante Templo de Apolo e, durante o domínio
romano, sua importância religiosa foi acompanhada de
opulência fabulosa, de modo que a cidade tornou-se
sinônimo de luxúria, excessos e "pecados da carne".
Corinthos era também o local onde fora construído um
santuário romano para Vénus (a quem os gregos chamavam
de Afrodite), que era cuidado por 1000 prostitutas sagradas.
São Paulo passara ali mais de um ano, e a cidade abrigava
uma importante comunidade cristã antiga, mas a Nova Igreja
lutava para manter a cabeça acima das águas hedonistas. São
Paulo não conseguiu eliminar a cultura pagã da cidade,
deixando essa tarefa a dois fantásticos terremotos que
aconteceram durante o séculoVI (sem dúvida ocasionados
pela ira de Deus), que causou grande destruição e o
abandono da antiga Corinthos.
Deborah estava entusiasmada com a quantidade de
monumentos a serem visitados. A não ser por algumas
partes do Templo de Apolo e a grande extensão do fórum
romano, a maior parte da cidade ainda não fora escavada, o
que fazia com que o lugar parecesse estranhamente real e
doméstico de uma maneira especial, coisa que não acontecia
com as ruínas de Atenas. Nos Estados Unidos, ela era
antropóloga e arqueóloga, uma estudiosa dos povos antigos,
não de suas maravilhas arquitetônicas. Todo esse negócio
sobre Schliemann e seus tesouros a haviam desviado do que,
no passado, sempre fora seu foco de interesse: a
oportunidade de vislumbrar coisas da vida das pessoas
comuns que haviam povoado as cidades. Nos livros sobre
Tróia e Micenas, ela mergulhara em lendas, histórias de
feitos épicos e tesouros. Por mais que essas coisas
encantassem o público — e o sinal evidente da condição de
diletante que pessoas como Richard e Marcus também se
deixassem seduzir — eram considerados basicamente
acidentais por arqueólogos sérios. Mesmo em Atenas, a
elegância simples das ruínas fora irresistível e fizera o
passado remoto heróico e estético, de maneira que as vidas
humanas jamais poderiam ser. Nas ruínas mais modestas da
cidade próspera e efervescente de Corinthos, ela pôde sentir
o eco de pés há muito ausentes perambulando pelas rotinas
diárias.
O táxi andou rápido pela Skoutela. Dentro de pouco tempo
estava parando numa rua secundária repleta de cafés e lojas
para turistas, suas vitrines cheias de reproduções de
cerâmicas e estatuetas de gesso. Ao longo das calçadas
abarrotadas com suportes para cartões-postais, havia ônibus
estacionados com seus vidros escuros e motores
funcionando. Os portões nas paredes atrás deles deixavam
entrever a vastidão branca do fórum, pontuadas por capitéis
de colunas elaboradamente entalhados: colunas coríntias,
lembrou-se Deborah. Durante o domínio romano, a velha
simplicidade dórica e a elegância jônica foram substituídas
pelas colunas coríntias, bem mais ornamentadas, seus
capitéis entalhados com padrões de folhas de acanto. Ela
esticou o pescoço para ver mais, mas o táxi voltou a
movimentar-se e ela perdeu tudo.
Por um momento, ela pensou que ele estivesse apenas
procurando um lugar melhor para estacionar. No entanto, ao
passarem pela entrada do lugar e continuarem sem parar até
uma ruazinha estreita, ela deu uns tapinhas no ombro do
motorista.
— Estamos a caminho da cidade velha, certo?
— Acrocorinthos — ele disse.
Ela presumiu que Acrocorinthos fosse a parte mais elevada
da cidade antiga, talvez uma escarpa de rochas sobre a qual
estivesse o Templo de Apolo.
— Ela não está ali dentro? — ela perguntou, olhando para
trás pela janela, para as ruínas da cidade velha cuja muralha
se afastava rapidamente à medida que o táxi deixava para trás
o tráfego de turistas e ficava sozinho na estrada.
— Não — disse o motorista, apontando pela janela. — Lá
em cima.
Suspensos no penhasco de uma montanha quase vertical, a
centenas de metros acima e olhando para a cidade velha e
para toda a região ao redor, quase invisível por causa da
distância e do brilho da luz do sol, havia muros e torres
entalhadas. Quando o motor do carro começou a forçar, o
motorista olhou para trás e deu-lhe um sorriso.
Deborah não retribuiu. A subida era longa e, sinceramente,
ela duvidava que os ônibus de turistas fossem até lá, mesmo
que seus motores agüentassem. A estrada ziguezagueava
numa série de curvas fechadas e, mesmo assim, a inclinação
parecia ser praticamente impossível. Ela duvidava que
houvesse alguém lá em cima, especialmente naquele sol
escaldante da tarde. As marchas do táxi gemiam e vibravam;
por um segundo, o motor pareceu ter morrido, mas o
motorista deu uma ré forçada e depois fez que o carro
continuasse avançando, subindo devagar, inexoravelmente,
em direção ao pico.
Nos 15 minutos que demoraram para subir, não passaram
por nenhum outro veículo. Abaixo deles havia terras
cultivadas e as comuns plantações de oliveiras. No entanto,
ao subirem mais, os campos organizados deram lugar ao solo
arenoso e árvores ocasionais de tronco baixo e retorcido,
alguns pinheiros e oliveiras antigas. Era um território
agreste, árido, exposto e de difícil acesso, mesmo com a
tecnologia do século XXI. Era evidente que não se dirigiam a
uma cidade como a que ficara abaixo, mas a uma fortaleza.
A suspeita de Deborah foi confirmada assim que os
primeiros sinais de rampas e muros se fizeram ver, mas ela
ficou surpresa ao notar que não se tratavam de antigas
fortificações gregas ou romanas. Elas eram feitas de tijolos e
azulejos, talvez bizantinos, ou medievais. Algumas delas
pareciam ser ainda mais antigas, remanescentes da ocupação
e guerra turcas. Eram os primeiros sinais das hostilidades que
duravam longa data e que ela via, perguntando-se se o fervor
nacionalista dos gregos havia descartado todo o resto.
Diferente da maior parte de seus compatriotas que Deborah
encontrara até agora, rápidos para oferecer uma percepção
ou comentário sobre a cultura e a história de sua nação, o
motorista do táxi se mantivera calado.
Ao chegarem ao pico, o carro dirigiu-se a um amplo
estacionamento, empoeirado e completamente deserto e,
apesar de o motorista não ter desligado o motor, parou. Ela
pagou-o controlando o impulso raro e covarde de pedir que
ficasse esperando. Como estava adiantada para o encontro,
podia esperar um pouco. Apesar de o pensamento não ser
muito encorajador, ela saiu, produziu um sorriso e disse um
"Efharisto". O motorista abriu um sorriso largo, olhou para o
topo estéril e ensolarado da montanha e expressou-se num
meneio de ombros: "É o seu funeral, turista". Enquanto se
afastava, ele colocou a mão para fora da janela, como se
estivesse acenando, e olhou-a pelo retrovisor até
desaparecer de vista.
Deborah virou-se para o portão enferrujado com seu arco
alto e caminhou, lenta e cautelosamente, até a longa rampa
que levava ao forte, parando nos focos de sombra antes de
chegar ao calor insuportável das rampas mais baixas do
contraforte. Ela havia trazido apenas uma garrafa de água, e
seu celular não funcionava fora dos Estados Unidos. De
repente, perguntou-se como faria para descer e pediu a Deus
que Marcus viesse de carro.
Ela já podia dizer que Acrocorinthos não era apenas um
forte. Algumas das edificações parcialmente arruinadas se
pareciam com capelas, algumas com mesquitas,
provavelmente construídas umas sobre as outras através dos
séculos enquanto esta superioridade impressionante era
tomada e retomada em uma luta contínua para controlar a
região. O lugar não deixava dúvidas quanto à sua importância
estratégica. Escalando um dos muros mais altos da
fortificação, com seus nichos para canhões e mosquetes,
Deborah poderia ver tudo lá embaixo; não apenas a cidade
velha que vislumbrara antes, aninhada no sopé da
montanha, mas até o golfo de Corinthos. De cima das
camadas de muros e torres ela poderia ver, ao leste, o golfo
Sarônico na direção de Atenas. Quando começou a seguir
pelo caminho que serpenteava pelos prédios e fortificações
arruinadas, ela protegeu os olhos do sol com as mãos e olhou
para cima, para as linhas crescentes das ameias. Não havia
ninguém por perto, e o ar estava pesado com o zunido
estridente dos grilos e gafanhotos, a algazarra aumentando e
diminuindo em intensidade, como uma corrente elétrica
rasgando o ar em ondas de calor.
A cidadela, se é que era isso, era grosseiramente
concêntrica, com linhas de defesa interna ziguezagueando
loucamente ao longo dos contornos da montanha. O topo
era mais uma crista com uma torre quadrada claramente
definida, avultando sobre os muros de paralelepípedos e
grandes extensões de grama seca pelo sol. Ela andava com
dificuldade, consciente do suor que lhe banhava o rosto e os
ombros, sentindo o peso dos sapatos. O dia estava quente
demais para isso...
No meio da subida, onde o caminho abria-se em um espaço
com piso pavimentado, ela parou e olhou para o caminho
que percorrera e o distante azul do mar. E foi naquele
momento, quando colocou as mãos sobre os quadris e
respirou profundamente, que ouviu um ruído agudo e uma
chuva de fragmentos de pedra; quando a primeira bala
ricocheteou na construção ao lado dela.
CAPÍTULO 35
Deborah moveu-se por instinto, mas seu primeiro impulso
foi mais o de acenar e gritar de raiva do que tentar esconder-
se. Sem nenhuma prática de servir de alvo, ela pensou que
aquilo estivesse acontecendo por algum maldito erro, que
era um exemplo cretino de alguma espécie de brutamontes
grego que havia decidido começar a atirar em esquilos. E ela,
por acaso, estava por ali. O segundo tiro passou zunindo por
sua orelha e um pedaço do azulejo bizantino na parede atrás
dela explodiu. O que diabos...
Mesmo quando ela se abaixava no chão de pedra, mesmo
quando rolava na direção de um monte irregular de pedras
que antigamente pode ter sido a quina de uma construção,
mesmo quando ouviu o baque do terceiro tiro na terra onde
estivera havia pouco, parte de seu pensamento continuava a
acreditar que aquilo não passasse de um engano.
Seu coração foi tomado por uma onda de incredulidade e
ultraje.
Ninguém se atreve a atirar em mim!
Então, houve uma nova pausa; um intervalo de silêncio na
tarde. Fique quieta. Ouça. Respire.
Ela esperou, sentindo dor no pulso e um arranhão no braço.
Quando se atirara aó chão, caíra de mal jeito. Seus cabelos
cobriam-lhe os olhos, e a poeira grudava no suor que
banhava seu corpo. Isso era loucura. Mesmo que estivesse,
deliberadamente, sendo usada como alvo, tratava-se de um
lunático, certo?
Algum maluco brincando de fazer tiro ao alvo em turistas. A
alternativa — de que eles estivessem atirando nela, mais
especificamente em Deborah Miller — era muito
perturbadora para ser considerada no momento. Ela
descartou o pensamento e flexionou o pulso. Distensão,
provavelmente.
Onde estava ela?
Foi o primeiro pensamento produtivo que teve. Olhou para
trás, para onde caminhara sob o arco e até a rampa, tentando
ver se conseguia encontrar os buracos de bala e fazer alguma
dedução sobre o trajeto do atirador. Essa era a melhor
maneira de lidar com a situação, ela pensou, forçando algum
tipo de racionalidade para combater a crescente onda de
pânico que se apossava dela. Sim: lógica, dedução, razão.
Essas eram as coisas para as quais tinha talento. Eram as
coisas que a manteriam viva...
Deus, será que as coisas chegariam a tal ponto?
Ele deve estar lá em cima, ela pensou. Era obviamente uma
posição privilegiada que lhe daria a melhor posição para
atirar. Ela deu uma espiada, tentando descobrir qual seria o
campo de cobertura dele, se estivesse na torre.
O quarto tiro acertou uma pedra a poucos centímetros da
cabeça dela, quebrando-a em dois pedaços, um dos quais
acertou-a direto na têmpora. Ela atirou-se novamente ao
chão, sentindo o choque do impacto e a dor, perguntando-
se por um momento se havia sido atingida. Colocou a mão
ao lado da cabeça e sentiu a grossa viscosidade de seu
próprio sangue.
Não está jorrando. O ferimento foi superficial.
Mas não parecia ser superficial. Por um segundo, o mundo
girou.
Convulsão?
Era só o que lhe faltava.
Ela forçou-se a olhar ao redor, movimentando-se por etapas,
tentando não o incentivar. Precisava proteger-se melhor.
Incentivá-lo. Ela assumira que se tratava de um homem.
Marcus? Quem mais sabia que ela estava lá? A não ser que
fosse um ato aleatório cujo alvo fosse qualquer um que
aparecesse...
Ela adoraria poder acreditar nisso, mas não. Aquelas balas
tinham seu nome escrito nelas. O absurdo da frase clichê
não era tão engraçado assim, uma fala de um filme que ela
vira por acidente, uma das aventuras de Hitchcock, como
Intriga internacional, ou Os 39 degraus. Ficou deitada na
poeira, sentindo o sol queimar sua pele e pensando em
coisas malucas. Era como se estivesse assistindo a si mesma
através de um telescópio ou, para ser mais exata, assistindo
uma outra pessoa e ouvindo seus pensamentos como num
filme dublado.
Dê o fora daqui.
Se ficasse ali deitada o dia todo, o atirador poderia descer e
encontrá-la. Na verdade, não precisaria nem procurar. Sua
proteção era precária, e ela sabia que ele devia estar a alguns
metros de onde se encontrava e que podia vê-la claramente.
Ela não perceberia se ele se movimentasse até que entrasse
em seu campo de visão e começasse a atirar. Mas ele não
precisava esperar que ela se movesse. Com certeza, ele
esperava que ela desse uma de coelho, que fica paralisado de
modo que o olhar fixo do predador sobre ele seja sua
perdição: aquela imobilidade era metade estratégia e metade
terror. Era exatamente isso que ele esperava que ela fizesse.
Por isso, precisava correr. Deus do céu, não...
Sim. Era o único jeito. Ela rolou e ficou de cócoras, tentando
liberar o peso do pulso e, imediatamente, saiu em disparada,
como um fragmento caído dos blocos de pedra. Tinha dado
o equivalente a quatro passadas largas quando ouviu o
primeiro tiro. Como não viu para onde ia, imaginou que ele
estivesse atrás dela. Mais duas passadas e chegou a um muro
da altura da cintura, arruinado pelo tempo. Pulou por cima
dele enquanto a próxima bala passou perto. Raspando
fortemente a perna em uma lasca de pedra, caiu na grama
áspera do outro lado, gritando e segurando o ferimento.
Duas outras balas ricochetearam na pedra em seguida e,
depois, fez-se novamente silêncio.
Quantos tiros ele disparara? Não importava. Ela não sabia
nada sobre armas. Mesmo assim, aqueles últimos tiros se
pareciam mais com frustrações. Talvez ele tivesse,
deliberadamente, descarregado a arma e agora, enquanto
recarregava, ela estaria salva por algum tempo. Talvez este
fosse o momento certo para tentar dar mais uma corrida...
Não! Fique onde está, atrás da parede. Aqui você está segura.
Mas ela sabia que seu primeiro pensamento era melhor. Era
uma aposta, mas uma aposta que poderia acrescentar uma
distância vital entre ela e o atirador. Forçou-se a se levantar
rapidamente e a correr mais alguns metros.
Pensara corretamente. Antes de ouvir o novo tiro,
conseguira ganhar uns 600 metros, ou mais. A bala acertou a
alguns metros à sua direita e ela não pôde evitar um sorriso
ameaçador enquanto corria: conseguiu driblar esta, não é?
Continuou, correndo de um lado para outro, pulando sobre
o chão irregular, sem quebrar o ritmo. Como se fosse uma
gazela. Suas pernas, magras e compridas, suas pernas de
cegonha ou de flamingo, que podiam alcançar o Canadá,
vingaram-se, em 10 segundos, de todos os insultos e
comentários jocosos que, durante a vida toda, lançaram a seu
respeito. Quando ouviu o último tiro, ela voltou à guarita
interna. A não ser que seu pretendente a assassino estivesse
se movendo muito rapidamente montanha abaixo, ela agora
estaria invisível para ele.
Mas havia apenas uma estrada para a cidade. Se ele viesse
guiando atrás dela, poderia compensar sua má pontaria. Ela
tinha quase certeza de que, quando chegara, não havia carro
algum no estacionamento. O que queria dizer que ele viera
caminhando, trazido por um carro que — como o dela — se
fora, ou havia escondido o veículo em algum lugar. Ela
ponderou suas opções enquanto passava pelo arco da guarita
e descia a rampa de pedra que levava ao estacionamento.
Espere. Tente recuperar o fôlego. Talvez seja melhor pensar
em se esconder...
Ela não viu nenhum carro, ou qualquer lugar onde alguém
pudesse estar escondido. Com fúria, tentou pensar, tomar a
decisão de começar a correr pelo estacionamento
empoeirado e pelo caminho espiral que levava montanha
abaixo. Ela se manteria grudada à encosta da montanha, de
modo que ele não pudesse atirar nela de cima, e continuaria
a caminhar. Demoraria meia hora para chegar à cidade,
talvez menos se pudesse manter-se em movimento. Mesmo
nervosa, desidratada e exausta como estava. Apesar de sentir
as pernas latejando, ainda não começara a mancar e era
provável que pudesse avançar até a metade do caminho
antes que ele voltasse a importuná-la. Talvez alguém
passasse por ali e ela conseguisse pegar uma carona...
Desde que — independentemente de estar a pé, ou em
algum carro escondido — ele não fosse mais rápido do que
ela. Deborah aumentou a velocidade, deixando que a
inclinação em declive constante a levasse para baixo até que
estivesse quase fora de controle, arremessando-se estrada
abaixo com passos cambaleantes. Dois minutos depois, ela
mal notou a dor que queimava sua perna. Cinco minutos.
Sete. Então ela ouviu o distante ruído de um pequeno
motor. Havia uma motocicleta descendo a estrada.
CAPÍTULO 36
Havia uma boa chance de que ele não a tivesse visto desde
que deixara Acrocorinthos e de que pudesse apenas
adivinhar o quanto ela descera. Ela olhou para os lados, em
busca de um lugar para se esconder, enquanto a rotação do
motor da motocicleta aumentava.
Está andando mais rápido. Chegando mais perto. Na encosta
da montanha daquele lado havia apenas uma vala de
concreto para drenagem e um íngreme muro de retenção.
Do outro, a parte mais baixa era o limite de uma plantação
de oliveiras, as árvores contorcidas e atarracadas.
Ela disparou pela estrada, correu uns 20 metros plantação
adentro e atirou-se ao chão de barriga para baixo. Antes que
a poeira assentasse, ela ouviu a moto fazendo a curva. Pode
ser que ele a tenha visto correr em busca de abrigo. Tudo o
que precisava fazer era olhar atentamente para a rala sombra
das árvores, onde facilmente a veria. Estou segura, ou devo
dar o fora?
Ela manteve-se imóvel. O ruído do motor ficara mais baixo.
Ele estava diminuindo a marcha.
Ela sentiu um ímpeto de correr, mas, com certeza, ele a
veria. Forçou-se a ficar ali, imóvel (de novo a tática do
coelho), sequer mexendo a cabeça para tentar vê-lo, até que
ele entrasse em seu campo de visão.
A moto era pouco mais do que uma lambreta, umas 200
cilindradas, no máximo. Tinha uma cor escura e indefinida,
manchada de ferrugem. O homem que dirigia parecia ser
delgado, usava botas, uma camiseta manchada e o que
poderia ser calças de gabardina. O capacete verde fluores-
cente que usava cobria todo o seu rosto e parecia mais
adequado a uma motocicleta maior e mais rápida.
Marcus?
Não havia como ter certeza, mas ela achava que não. Havia
um objeto longo e fino embrulhado num trapo e preso à
traseira: uma espingarda.
De repente, ele se virou e o visor escuro do capacete olhou
direto para ela, de modo que quase pôde sentir os olhos dele.
Ela lembrou-se do amarelo vivo de sua mochila e desejou
que tivesse se deitado sobre ela. Mas a moto acelerou um
pouco e ele continuou, ganhando velocidade enquanto
descia.
Salva. Pelo menos por enquanto.
Deborah ficou ali, deitada, por um ou dois minutos, ouvindo
seu batimento cardíaco diminuir e sua respiração voltar ao
normal.
Ele voltaria. Desceria mais ou menos uns 400 metros e
voltaria a subir na esperança de pegá-la em espaço aberto.
Se, em vez de ziguezaguear pela estrada, ela descesse direto
para baixo, em direção à cidade, estaria protegida pelas
oliveiras por mais de 1.000 metros. Demoraria mais tempo e
não sabia que tipo de cobertura teria depois, além de ter de
cruzar a estrada quando essa atravessava a plantação. Por
enquanto, porém, essa era a opção mais segura.
Pensou em livrar-se da mochila, mas resolveu cobri-la com
uma camisa parda que comprara para as noites mais frias.
Entretanto, não fez nada antes de colocar uma pedra do
tamanho de um melão dentro dela. A pedra não seria de
grande ajuda, caso eles continuassem jogando o jogo do
caçador e da caça distante, mas, se ele se aproximasse, ela
ficaria feliz em ter alguma coisa para usar como arma. Pelo
peso que sentiu e a maneira como forçava as alças da
mochila, Deborah imaginou que, se o atingisse com um
golpe certeiro, seria capaz de matá-lo. O pensamento a
deixou um pouco nauseada. Engoliu um grande gole de água
e, com ouvidos atentos, começou a andar rápida e
silenciosamente por entre as árvores perfumadas e
empoeiradas.
Sendo pequenas e dispersas, as oliveiras não ofereciam copas
frondosas, sombras densas ou a limitação de linhas de visão
imposta por uma floresta real, de modo que ela continuou
andando, pronta para atirar-se novamente ao chão caso
ouvisse o motor da motocicleta. Se, por outro lado, ele
tivesse decidido estacionar ao lado da estrada e vir a pé atrás
dela, certamente a veria antes que ela tivesse a chance de
vê-lo.
Bem, é bobagem pensar nisso agora.
Depois de alguns minutos de descida íngreme, ela viu, a uns
20 metros, um sulco de concreto no chão da plantação e
soube ser ali que a estrada cruzaria seu caminho. Se ela
começasse a descer o muro de retenção, seria vista de
qualquer lugar. Voltou a colocar-se de barriga ao chão e
rastejou mais uns 10 metros até chegar à borda, até poder
ver além das árvores acima da estrada, três metros abaixo, e
chegar a uma plantação de oliveiras do outro lado. Olhou
para todos os lados, alertando os sentidos para sinais da moto
ou de seu motorista.
Nada.
Avançou, sentindo uma súbita pontada de dor tanto no
pulso como na coxa. Ignorou as duas enquanto passava uma
perna e depois a outra pela aresta do muro de retenção, até
que ficasse pendurada pelas mãos. Deixou-se cair numa vala,
raspando o cotovelo e o rosto contra a pedra enquanto
tentava absorver o choque dos últimos metros com os
joelhos. Foi uma aterrissagem desajeitada, mas ela arrastou-
se para fora da vala e foi para a estrada, olhando de um lado
para o outro à procura de seu perseguidor.
Ainda nada.
Deborah galopou pelo asfalto quente até chegar às árvores
do outro lado e, mancando por causa da dor na coxa que se
tornava mais intensa, avançou em direção ao próximo
cruzamento.
Tudo indicava que ele tivesse ido embora. Agora, ela estava
num nível bem mais baixo, mais próxima das construções
das fazendas que podiam ser vistas além da cidade velha e do
aglomerado de cafés e lojas para turistas que se amontoavam
na rua que ficava na frente das ruínas romanas. Será que ele
teria coragem de atirar nela agora? Ele perdera a chance e
fora embora, talvez para informar... alguém.
Novamente as árvores diminuíram e ela voltou a ver o céu.
Na distância, podia ver os telhados e as cinco colunas
monolíticas do antigo Templo de Apolo. Deborah rastejou
os últimos metros que faltavam antes de chegar ao final do
muro de retenção, olhou para os dois lados da estrada, para
as fileiras mais longínquas das oliveiras antigas e para a
liberdade. Estava prestes a jogar uma das pernas sobre o
muro quando lhe ocorreu que deveria certificar-se de que,
dessa vez, a queda seria um pouco melhor e olhou pela
borda.
Abaixo dela, aninhada em uma vala de drenagem, estava a
motocicleta. Ao lado dela, deitado sobre a grama e com a
espingarda apontada para a curva da estrada que se fechava
abruptamente montanha acima em direção a Acrocorinthos,
havia uma figura esguia com um capacete verde-limão.
CAPÍTULO 37
Ele estava a menos de três metros, e Deborah teria apostado
um bom dinheiro que fora por causa do capacete que ele
não a ouvira aproximar-se. Rapidamente, ela voltou para trás
— muito rápido, na verdade — e deitou-se sobre a grama
seca e empoeirada, perguntando-se se seu movimento teria
chamado a atenção dele. E agora?
Ele parecia ter cavado um buraco, preparado uma toca de
raposa quase militar — como provavelmente fizera no topo
de Acrocorinthos —, esperando que ela se aproximasse,
descendo estrada abaixo, cega e cretina como apenas um
turista poderia ser. A idéia deixou-a irritada, como se uma
pedra tivesse se alojado em suas entranhas.
Se ela pulasse sobre ele, pensou, teria uma vantagem
momentânea. Poderia girar sua mochila extremamente
pesada e... Mas o capacete lhe dizia que tal abordagem seria,
no mínimo, arriscada e, com uma sensação que poderia ser
de alívio, ela descartou a possibilidade.
Poderia ficar ali, esperando, mas só Deus sabia quanto tempo
ele ficaria lá. O sol estava baixando, e, mesmo que ainda
faltassem algumas horas para escurecer, ela não gostava da
idéia de estar ali ao anoitecer, especialmente se ele estivesse
com ela.
Poderia tentar distraí-lo, jogando pedras por baixo dos
arbustos, como costumava ver nos filmes. Assim, quando ele
se levantasse para investigar, ela passaria correndo. Deborah
franziu o cenho, rolando lentamente até ficar de costas e
olhando para o céu por entre os galhos das árvores. O que
lhe pareceu uma maneira certa de ser morta.
Não. Agir sob a influência de um impulso ingênuo para
apresentar-se e, de alguma maneira, conseguir, na conversa,
sair dessa enrascada estava fora de questão. Gostaria de fazer
alguma coisa mais construtiva, mas este parecia ser o plano
mais seguro: ficaria quieta até que ele decidisse abandonar
seu posto.
Em seguida, passaram-lhe mais clichês de filmes pela cabeça,
todos mais para o lado da comédia do que do drama, apesar
de ser provável que todos eles terminassem com uma bala
na cabeça: o impulso irresistível de espirrar, o toque do
celular, a súbita vontade de urinar. Ela forçou-se a parar de
pensar e a ficar completamente imóvel, especulando sobre o
absurdo da situação, os dois deitados ali, em silêncio; a
cabeça dela a menos de uma dúzia de passos de distância do
homem que tentava matá-la.
Agora, isso era inevitável. Não apenas ficara claro que ela
não estava lidando com um idiota metido a brincar com
armas que a teria confundido com um coelho. Ficara claro
que ele estava atrás dela, especificamente dela. Pela primeira
vez, a importância de saber quem era aquela pessoa deu
lugar à importância de saber o motivo por que estaria
fazendo aquilo.
Ela fugira para a Grécia para evitar o que, em casa, lhe
parecera perigoso. Deitada aqui, a cinco metros do
motociclista, era difícil não perceber a ironia — assim como
a estupidez — daquela decisão.
"Volte imediatamente para casa. Sua vida corre perigo."
Agora, aquelas palavras não pareciam nem um pouco
arbitrárias...
Ela sentira medo que um dos policiais encarregados de
investigar a morte de Richard não fosse um tira de verdade e
tinha certeza de que alguém a estivera seguindo com um
propósito bastante incomum em mente. E aquela pessoa era
Marcus, com quem ela fizera um tipo de pacto de
investigação. Apesar de que isso também começava a lhe
parecer questionável. Entretanto, mesmo colocando toda a
idiotice de lado, ela não conseguia entender por que alguém
gostaria de vê-la morta. Não era porque ela tivesse
descoberto alguma coisa significativa sobre a morte de
Richard. Mas quem sabe? Com certeza assassinos gostariam
de tê-la viva para que, eventualmente, pudesse vir a se
incriminar completamente com suas ações absurdas.
Mas, e se a coisa não estivesse relacionada com o que ela
sabia, mas sim com o que eles pensavam que ela soubesse?
Ela tivera acesso momentâneo à coleção — agora
parcialmente — secreta de Richard, assim como aos seus
arquivos no computador. Talvez ela tivesse realmente visto
algo significativo sem saber o quê, alguma coisa que juntasse
os pontos de Agamenon a Schliemann, a Richard e a seus
assassinos. Ela olhou para o extraordinário azul do céu.
Ouviu o zunido dos grilos e perguntou-se onde teria pisado
na bola.
Nesse exato momento, ouviu um movimento abaixo. O
motociclista estava se mexendo.
Ah, Deus. É agora.
Por um momento, ela pensou que ele tivesse decidido
escalar o muro de retenção para poder olhar melhor para a
estrada abaixo. Fechou os olhos e concentrou-se o mais que
pôde, mas não conseguiu decifrar os sons que vinham de
baixo. Num único movimento, ela colocou-se de cócoras e
virou-se o mais silenciosamente possível,
inconscientemente levantando sua pesada mochila, pronta
para acioná-la caso uma mão e um capacete ultrapassassem o
limite do muro.
O som da motocicleta sendo ligada soou tão alto em sua
imobilidade nervosa que ela quase gritou. Um segundo
depois, ela teve a presença de espírito de atirar-se de volta
ao chão de modo que ele não pudesse vê-la quando passasse
por ali.
Durante 20 ou 30 segundos, ficou deitada, seguindo o som.
Ele subia novamente a montanha, na esperança de
encontrá-la descendo. Deborah esperou uns 10 segundos
mais, olhou para a estrada para ver se ele estava fora de vista
e atirou-se muro abaixo. Apesar do grito de protesto emitido
por seu tornozelo, ela imediatamente disparou numa corrida
trôpega pela estrada e o que prometia ser a última plantação
de oliveiras antes que chegasse às fazendas, mais abaixo.
Ainda conseguia ouvir o ruído da motocicleta subindo a
montanha. Se ele virasse a cabeça lá em cima, ela pensou,
poderia vê-la correndo entre as árvores. Mas era possível
que ele não olhasse para trás; além disso, tentar seguir pela
estrada levaria mais tempo e ela ficaria ainda mais exposta.
Suas passadas largas tornaram-se curtas e desiguais, um
membro claudicante que ficava cada vez mais
comprometido. Não. Se voltasse à estrada, ele certamente a
pegaria.
Deborah não demorou mais do que um minuto para cruzar a
próxima plantação de oliveiras. Mal parou, ao chegar à
inclinação abrupta que levava à estrada principal. O som da
motocicleta havia praticamente desaparecido, e ela tinha
certeza de que, se ele tivesse voltado, seria capaz de ouvi-lo.
Olhou, pulou e, em vez de cruzar a estrada, correu ao longo
dela. Uns 50 metros à frente, a estrada fazia uma curva
fechada para o norte e descia em direção às ruínas e à baía.
Ela baixou a cabeça e tentou bloquear a dor que sentia ao
correr. Sua camisa estava encharcada de suor e seu rosto
pingava tanto que seus olhos ardiam por causa do sal. Um
pouco depois de fazer a curva, seu tornozelo cedeu e ela
caiu na vala ao lado da estrada.
Dessa vez, ela gritou, mais de frustração do que de dor,
como se um instinto ancestral adormecido por longo tempo
houvesse decidido ser aquela a emoção mais produtiva.
Enquanto tentava colocar-se novamente sobre os pés, ouviu
— ou imaginou ter ouvido — o ruído do motor da moto.
Por um breve momento, ela fez uma pausa para ouvir
melhor. Sim. Era ele. Estava voltando e, a julgar pelo som do
motor, vinha depressa. Ele a vira.
Agora, começa a corrida.
Ela olhou para a frente. A estrada estendia-se como uma
longa fita de asfalto quente e brilhante. Uns 100 metros à
frente, havia algumas casas ao lado da estrada, mas estavam
no meio de um pasto e não pareciam ser mais do que
pequenos depósitos. Mais adiante, havia uma cerca alta ao
redor da parte posterior das ruínas, algumas das colunas se
faziam visíveis por trás das árvores existentes no local. Uns
200 metros à frente, a estrada fazia uma bifurcação. Se
pegasse a da direita, estaria na rua dos cafés e lojas para
turistas em pouco mais de um ou dois minutos.
Se tivesse aqueles minutos, o que ela duvidava. Forçou suas
pernas a funcionarem tão rápido quanto possível. O sangue
de sua coxa escorrera até ficar estancado na meia, deixando
o que parecia ser um corte quase do comprimento da perna
dela. Ela afugentou a imagem da cabeça. Não era tão feio
quanto parecia. O que mais importava agora era a
desidratação, a exaustão e a leve torcida de tornozelo, que
diminuíra pela metade sua velocidade.
Apenas mais alguns metros...
Ela passou pelas casinhas e pelo bode solitário que tomava
conta delas. O som da motocicleta diminuíra um pouco
enquanto a estrada o levava para o lado leste da montanha,
mas agora voltava a ficar mais audível. Uma curva a mais e
ele estaria bem acima da cabeça dela. Deborah correu.
As colunas antigas do Templo de Apolo fizeram-se visíveis,
mas as ruínas pareciam desertas e com o alambrado grosso
que as separava da estrada, provavelmente não faria muita
diferença se, do outro lado, estivesse um ônibus cheio de
fuzileiros navais em férias. O motor da moto voltara a ficar
distante. Talvez ele reconsiderasse, pensasse que ela tivesse
voltado a se esconder e fosse embora. Mesmo com a dor no
tornozelo, Deborah sorriu, apertando os dentes como um
antigo romano mordendo uma tira de couro durante uma
cirurgia. Seguiu correndo e, sentindo a cabeça leve, sem
querer, começou a ir de um lado para outro na estrada
flamejante.
A diferença no som do motor quando a moto fez a curva foi
como um outro tiro. Num momento, não passava de um
zumbido distante, talvez uma cigarra, ou uma máquina de
cortar grama; em seguida, todas as barreiras do som
desapareceram e a moto vinha rugindo atrás dela. Ela não se
virou. Se ele estivesse em posição de atirar nela agora, a
única coisa que podia fazer era esperar que errasse. Não
tinha mais energia para atirar-se ao chão.
Ela correu 10, 15, 20 metros até chegar à junção e entrada à
direita num trote claudicante e cheio de dor. O perímetro
das ruínas antigas era cercado com enormes blocos de pedra
que abafavam e reduziam pela metade o ruído da moto. À
frente, ela viu as mesas e cadeiras nas calçadas, a súbita
explosão de cores do expositor de cartões-postais, a frente de
uma loja, um ônibus... pessoas.
Às cegas, entrou no primeiro café que encontrou e,
tentando chegar à cozinha, derrubou uma mesa de metal. O
lugar estava vazio, apenas o garçom fumava ao lado do bar.
Quando a mesa caiu, ele olhou para o chão com uma mistura
de irritação e surpresa. Em seguida, uma mulher de meia-
idade, vestindo preto e com os cabelos presos em coque na
altura da nuca, rosto marcado e severo, veio na direção dela,
com olhar fulminante.
Deborah foi abandonada pelo ímpeto de continuar
correndo, ou talvez o tivesse deixado ir. Ela perdeu o
equilíbrio e caiu no chão, espalhando mesas e cadeiras.
Ferida e sangrando, exausta como jamais se sentira, não
tinha condição de mover-se.
— Sinto muito — gaguejou ela, enquanto o rosto da
mulher entrava em foco.
A mulher gritou alguma coisa para o garçom e voltou-se
novamente para Deborah, seu rosto duro amolecendo-se
numa expressão preocupada.
— Aes OK — ela disse, enquanto o garçom colocava uma
garrafa de água nas mãos dela.
A mulher levantou a cabeça de Deborah e pressionou a boca
da garrafa contra a dela.
Ela deu um grande gole, sentindo o líquido fresco e
delicioso como se fosse uma corrente de vida.
Mesmo sentindo que ainda pudesse desmaiar, Deborah
apoiou-se nos cotovelos e forçou-se a olhar para fora, para
além do caos de mesas e cadeiras ao redor. O motociclista
estava lá. O visor sem rosto do capacete verde-limão virou-
se, impassível, para olhá-la. Depois, produzindo um som
metálico, a moto acelerou e disparou pela rua, até sumir de
vista.
CAPÍTULO 38
A mulher grega que disse chamar-se Sofia (como a esposa de
Schliemann) ofereceu água e comida a Deborah: cordeiro
grelhado e pepino em fatias. Depois, limpou sua pele
esfolada e arranhada, desinfetando o ferimento da coxa com
iodo que tirou de uma velha garrafa marrom com tampa de
vidro. Falava apenas algumas palavras em inglês, a maior
parte relacionada a seu cardápio, mas falava sem parar, num
tom amigável que acalmou Deborah.
Deborah lhe disse que fora perseguida por um homem de
motocicleta. Não mencionou nada sobre ter sido alvo do
atirador e não acatou a sugestão de Sofia para que chamasse a
polícia. Apesar de não saber por quê, sentia que a grega
estava levemente aliviada, talvez por saber que sua história
seria ouvida com ceticismo. Quando finalmente Deborah
levantou-se e disse que se sentia bem o suficiente para pegar
um táxi ou ônibus para voltar ao hotel, Sofia simplesmente
disse "Não" e começou a gritar para o garçom, até que ele
saísse, com cara de bravo, para retornar no banco do
motorista de um velho Fiat.
Agradecida e um pouco apreensiva ao entrar no veículo
pequeno e enferrujado, Deborah aceitou uma garrafa de água
e um filão de pão e depois — ainda mais surpreendente —
ganhou um abraço. Sofia, que despejava uma torrente de
grego incompreensível, lhe dava tapinhas nas bochechas e
um último sorriso de encorajamento enquanto Deborah,
encolhendo as pernas longas e feridas dentro do carro,
sentia, pela primeira vez desde que chegara à Grécia,
vontade de chorar.
Sofia certificou-se de que o garçom soubesse o caminho do
hotel, pois o inglês dele parecia reduzir-se aos nomes de
jogadores de futebol ingleses (Beckham, Scholes, Owen, ele
dissera, sorrindo e fazendo ruídos entusiasmados, porém
pouco específicos), e eles voltaram para a cidade nova e para
o Ephira.
Por razões que não conseguia discernir claramente, Deborah
esperava receber alguma notícia assim que chegasse ao
hotel: um bilhete de Marcus ou o próprio, fumando seu
cachimbo e sentado no saguão do hotel; talvez uma palavra
de Calvin. O fato de não encontrar nada ou ninguém para
mostrar interesse ou preocupação pela tarde infernal que
tivera deixou-a profundamente deprimida. Teria sido bom
ouvir uma palavra de Calvin hoje.
Ah, um pouco de auto-piedade para juntar à que sentira na
adolescência. Fantástico.
Entretanto, enquanto agradecia ao garçom, que longe da
presença de Sofia mostrou-se mais feliz por poder ajudar, e
ao voltar para o quarto, ela pensou que não se tratava
somente do anticlímax. Era mais do que isso.
Ela fugira de Atlanta porque se sentira em perigo, mas ali
não estava mais segura do que lá, além de não ter feito
nenhum progresso no sentido de descobrir o motivo da
morte de Richard. Não encontrara nada realmente
significativo. Enquanto bebericava um café que esfriava
rapidamente, sentia a sensação de ter falhado com Richard e
consigo mesma. Agora, ficara bastante claro que nenhuma
descoberta que pudesse fazer traria sentido à morte de
Richard, caso ela realmente achasse que isso pudesse tornar
a morte do amigo mais compreensível ou aceitável. Esfregou
o tornozelo inchado e aceitou as palavras que, de repente,
apareceram em sua cabeça. Hora de voltar para casa.
Verificou se a porta estava trancada, deitou-se nua sob o
lençol e dormiu até a manhã seguinte. Durante a noite,
acordou apenas uma vez, com o ruído alucinante de uma
motocicleta percorrendo seus sonhos.
A depressão com a qual fora para a cama retornou assim que
acordou, como uma ressaca ou memória de alguma perda
terrível, e ficou com ela a manhã toda. Passou pela recepção
antes de tomar café, mas não havia recados para ela. Ao que
tudo indicava, Marcus a abandonara. Foi até o cibercafé e
verificou seu e-mail, mas não havia nenhuma mensagem.
Trocou o curativo da coxa, limpando-o cuidadosamente para
ter certeza de que não havia infeccionado. Até agora,
parecia tudo bem, mas o corte era profundo e a região ao
redor estava vermelha e inchada. Talvez ela conseguisse um
pouco de loção anti-séptica com o recepcionista. Mas, por
alguma razão, sentiu-se sem energia e sentou-se na cama,
olhando o domo da basílica e o mar pela janela.
Era realmente hora de voltar para casa, encarar o problema,
contar o que descobrira para os profissionais que entendiam
do assunto e prestar muita atenção para não acabar sendo
presa por atrapalhar a investigação do assassinato de seu
amigo e mentor. Tinha apenas mais uma coisa a fazer antes
de voltar a Atenas e ao aeroporto: a única coisa que sempre
soubera ter de fazer antes de partir.
Capítulo 39
— Mikines — gritou a mulher que pegara seu bilhete. Ela
usava óculos com lentes bem escuras e, na cabeça, um
turbante engraçado, com vários tons de amarelo tendendo
ao mostarda. — Mikines — ela repetiu, apontando para a
porta do ônibus como se Deborah estivesse lhes causando
um grande prejuízo.
Deborah desembarcou e analisou o entroncamento
poeirento da estrada com seu antigo posto de gasolina,
enquanto, numa nuvem de fumaça acre e escura, o ônibus
sumia a distância. Ao se afastar, o motorista inclinou-se pela
janela e apontou o dedo na direção de uma longa estrada
vicinal.
Mikines (três sílabas) era um vilarejo moderno que se
desenvolvera próximo ao local onde existira a antiga
Micenas, embora a velha cidadela ficasse três quilômetros
montanha acima. Deborah colocou a mochila e seguiu na
direção indicada pelo motorista, testando seu tornozelo e o
curativo da coxa antes de começar a caminhada. Ela
estremeceu e, em seguida, decidiu que ele estava apenas
enrijecido e que o desconforto passaria assim que seus
músculos esquentassem. A dor não passaria completamente,
mas poderia piorar caso ela andasse muito. Como este seria
seu último dia e ela visitaria a cidade que dera início a toda
aquela história, chegaria até lá nem que tivesse de passar
uma semana se convalescendo em algum hospital da
Geórgia. Afinal de contas, não tinha nada melhor a fazer.
O vilarejo ficou rapidamente para trás, deixando apenas um
punhado de hoteizinhos e restaurantes com enormes pátios
protegidos por guarda-sóis empoeirados. Os ônibus de
turistas chegariam mais tarde, ela pensou, e os restaurantes
ficariam repletos de britânicos, alemães e americanos
protegendo-se do sol inclemente da tarde, especialmente
porque os sítios arqueológicos não possuem muita sombra.
Passados os cafés, havia apenas terras cultiváveis com
oliveiras anãs de troncos retorcidos — pontos de verde
embaçado na luz forte — e os eucaliptos altos e perfumados
que acompanhavam a estrada. As oliveiras que vira no dia
anterior lhe bastariam por longo tempo.
Ao avistar as impressionantes muralhas vermelho-douradas
da cidadela elevando-se das montanhas áridas a nordeste, ela
fez uma pausa para beber água e admirar. De onde estava,
não via nenhuma decoração ou coluna. Era robusta e
grandiosa, um local repleto de lenda e pujança.
Comprou o bilhete de entrada e subiu a rampa pavimentada
que levava ao célebre portal dos leões. As paredes da
fortaleza eram feitas de enormes pedras irregulares. Na
verdade, blocos imensos. Os poetas os chamaram de
ciclópicos, fazendo alusão ao fato de que a cidade fora
construída pelos fantásticos gigantes de um olho só. Era
difícil não se deixar impressionar e até mesmo maravilhar
com a capacidade dos antigos moradores de transportarem
esses vastos blocos de pedra, colocando-os no lugar certo,
sobrepondo-os e cimentando-os sem os equipamentos
modernos de construção. Aqui, como em Stonehenge ou
nas grandes pirâmides, Deborah sentiu avolumar-se a
extraordinária presunção de habitante do século XXI. As
pessoas estavam tão acostumadas ao conceito de evolução
cultural que facilmente viam seus ancestrais como
inferiores, mas quando se deparavam com conquistas como
esta, era difícil imaginar o que seriam capazes de fazer —
caso pudessem voltar no tempo — para contribuir para a
civilização que florescera ali. Sem veículos motorizados,
computadores ou acesso à eletricidade, que maravilhas o
mundo moderno seria capaz de produzir para essas pessoas
mortas e há tanto tempo esquecidas? Nada. Ela talvez
pudesse lhes contar alguns princípios da ciência e da
astronomia, mas nada que pudesse provar. É possível que
eles a executassem por bruxaria ou — mais provável e
infinitamente pior — a ignorassem, como ela ignorou o
sem-teto da rua Rosweel que lhe dissera que o mundo estava
acabando.
Ela passou sob o relevo dos dois leões de pedra e novamente
se perguntou se Richard estivera certo. Será que, com o sol
brilhando em suas lanças e seus capacetes com presas de
javalis, marchou por este mesmo portal um enorme
exército? Estaria Agamenon em pessoa em sua carruagem de
guerra, liderando a coluna com seus cavalos batendo as patas
no mesmo chão que ela agora pisava? Aqui, olhando para os
muros imensos e para os leões que o guardam, entrando na
cidade e, finalmente, sendo apresentada ao círculo de
câmaras mortuárias que Schliemann cavara da terra árida e
vermelha, tudo aquilo lhe parecia perfeitamente possível.
"Que é ele de Hécuba, Hécuba que é dele, para chorar por
ela?", perguntou Hamlet, depois que um ator representara o
sofrimento da rainha troiana pela morte do marido, Príamo.
De repente, as lembranças de algumas aulas de Literatura
que tivera na faculdade lhe vieram à mente. Qual seria o
significado daquelas histórias antigas? Que importância tinha
se Agamenon marchara pelo portal dos leões? O que
importava que seu corpo tivesse sido encontrado e ocultado
por Schliemann? Nada disso traria Richard de volta. De
repente, ela sentiu vontade de estar longe dali, de estar de
volta a Atlanta. Reconstruindo sua vida, ou — não pensara
nisso antes — recomeçando em qualquer outro lugar.
Mas ela chegara até ali e, assim como as milhares de pessoas
que passavam por ali a cada ano, cumpriria sua tarefa de
visitar o local. É claro que as sepulturas agora estavam vazias
e nada em suas profundezas de pedra lembrava as
extraordinárias descobertas de Schliemann, feitas pouco
mais de um século antes. Deborah inclinou-se sobre o sítio e
deu uma olhada, perguntando-se vagamente o que teria
esperado encontrar ali. Alguma pista que passara
despercebida de visitantes através dos anos?
Andou pelas rampas, olhando para as colinas áridas,
observando os bodes e sentindo o cheiro de tomilho
selvagem que crescia por ali. No ponto mais alto, passeou
pelos pisos do palácio e analisou uma pequena sala de
banhos onde, de acordo com as lendas, Agamenon fora
assassinado por sua esposa e seu amante, Egisto. Foi até as
tumbas em forma de domo atribuídas aos dois assassinos de
Schliemann e para as ruínas da impressionante "casa das
colunas", no canto sudoeste da cidade. Mesmo à seus olhos
de arqueóloga, tudo parecia indistinto, uma surpreendente
confusão de paredes baixas, portais e poeira dos tempos. De
acordo com o que lera em seu guia, você podia caminhar
pelas rampas até a passagem secreta e, em algum lugar ali
atrás, havia uma escadaria escura e traiçoeira que levava a
uma cisterna construída no século XII a.C. O livro dizia que
a passagem terminava em uma inclinação de 70 metros que,
abrupta e inesperadamente, dava em uma fonte cuja
profundidade era desconhecida. Apesar de a idéia de
caminhar sob a terra fresca e escura lhe soar vagamente
convidativa, ela sentia-se cansada, e o lugar parecia ser
perigoso. De repente, a exaustão, a busca infrutífera e o
estresse dos dias anteriores pareceram descer sobre ela como
as asas de um pássaro enorme e escuro, e tudo o que queria
era colocar-se a caminho de casa. Saiu do sítio e começou a
andar pela estrada em direção ao vilarejo, sentindo-se
deprimida e um pouco perdida, incerta dos motivos que a
levaram até ali, certa de não ter encontrado nada.
De volta à rua que fazia uma curva suave ao redor da
montanha, alinhada por algum tempo às ruínas das casas de
mercadores da Idade do Bronze, Deborah afastou-se do
estacionamento, que ficava cada vez mais cheio. Sentindo
um pouco de auto-piedade, dirigia-se ao ponto de ônibus
quando notou uma aglomeração de pessoas do outro lado da
rua. Parecia haver alguma coisa mais ali, alguma ruína.
Depois, deu uma olhada em seu guia e, antes de recolocá-lo
na mochila, fez uma breve ponderação a respeito do que lera
sobre a cidadela. Ela sentia calor e não olhava para a calçada
atrás de si, o que fazia com que parte de seu cérebro se
rebelasse contra a idéia de sair de sua rota para fazer um
passeio vago, mas quando a pequena multidão se dissipou,
ela viu claramente uma passagem íngreme, sustentada por
pesados blocos de pedra, que se estreitava à entrada da
montanha. Acima, havia um V escuro, apontado para cima.
O sinal lhe pareceu familiar, a imagem no alto da porta, com
a profunda impressão que causava e a escuridão triangular
acima. Ela já vira aquilo antes, havia muito tempo, talvez em
alguma palestra da faculdade.
E tinha outra coisa, algo que a vinha incomodando, uma
vaga lembrança que veio à luz de sua mente investigadora.
Ela desviou os olhos da imagem da porta e livrou-se da
mochila. Ao abrir o zíper para pegar o guia, sua garrafa de
água caiu e rolou pelo chão.
Deborah encontrou a página que procurava. Estava
manchada de suor e protetor solar, mas seus olhos não
precisaram de mais do que um segundo para passar por ela.
O portal dos leões. Os muros. A sepultura de Clitemnestra.
A casa dos pilares. Ela virou a página para uma que nunca
tinha visto. Lá estava a porta que dava para a montanha.
Sobre ela, a frase que, nos últimos dias, sua memória lutara
para resgatar: "O Tesouro de Atreu".
CAPÍTULO 40
Sem dúvida, pensou ela enquanto atravessava a rua, era mais
um daqueles nomes extravagantes que tinham mais a ver
com os aficionados dos mitos antigos do que com
arqueologia. Para ser mais exata, não tinha nada a ver com
Richard, nada que ela pudesse entender ao examinar o lugar
agora. Mas caminhou mais depressa ao descer a enorme
passagem revestida de pedras que levava ao portal escuro e
vazio, forçando-se a dar uma nova olhada no guia, para o
caso de conseguir alguma outra informação, qualquer coisa
que pudesse lhe ser útil.
De acordo com o guia, tratava-se de uma câmara mortuária
diferente das sepulturas que vira dentro dos muros da
fortaleza. Às vezes, esse tipo de câmara mortuária era
chamado (e ela não pôde evitar engolir em seco ao deparar-
se novamente com a palavra) a câmara mortuária de
Agamenon.
Mais mitologia, ela disse a si mesma. Estritamente para
turistas. Nada mais. Supor que todas as descobertas do local
tenham alguma coisa a ver com Agamenon é como aquelas
pessoas que dizem ter vivido vidas passadas e que estão
sempre ligadas a alguém famoso: a dama de companhia de
Cleópatra ou o jardineiro de Maria Antonieta... coisas de
turista.
É, mas mesmo assim... O lugar tinha uma espécie de força,
ou seja lá como chamassem isso. Ela olhou para o portal que,
frio e escuro, mostrava-se à sua frente. Ele tinha uns 15
metros de altura. Talvez o lugar do descanso final do rei. Ela
voltou ao livro. A câmara mortuária era mais ou menos da
mesma época de Clitemnestra, a esposa assassina de
Agamenon, e, como datava de 13 séculos antes de Cristo,
correspondia aproximadamente à data da destruição de Tróia
definida pelos arqueólogos.
O que quer dizer que, afinal, pode ser que Agamenon tenha
mesmo sido enterrado ali.
Era chamado de Tesouro de Atreu por causa de uma tradição
folclórica que ligava o túmulo à antiga casa real de Micenas,
combinada à fixação bizarra de Schliemann de que aquela
casa real havia depositado seu ouro e objetos preciosos do
lado de fora dos muros da cidade. Um estudo acadêmico
recente descartava a idéia de que a estrutura escavada por
Schliemann fosse alguma coisa além de uma sepultura e dizia
que era essa, e não as sepulturas mais antigas encontradas
dentro da cidade, a fazer jus aos saques realizados em Tróia.
Caso Atreu e seu filho Agamenon tenham realmente
existido, fora este seu lugar de descanso final — e não as
câmaras mortuárias onde Schliemann encontrara as máscaras
mortuárias e tesouros.
Quase sem fôlego, Deborah entrou na escuridão da tumba.
Ela era circular e enorme, talvez com 30 metros de
circunferência. O teto, apenas vagamente visível, tinha a
forma de domo, gerando um outro nome para aquele estilo
de câmara mortuária: colmeia. A não ser por uma entrada
existente em um dos lados, a câmara estava vazia. Deborah
sentou-se no chão ao centro e, enquanto o último grupo de
turistas se retirava protegendo os olhos da claridade, esperou
que seus olhos se acostumassem ao escuro.
Teve de admitir que havia pouco para ver e novamente
sentiu o desapontamento tomando conta dela. Vista de
dentro, havia apenas o telhado, a alcova escura ao lado, na
qual provavelmente eram enterrados os corpos, e a entrada
principal, agora iluminada pelo sol. O lintel sobre o sólido
portal devia pesar várias toneladas, ela pensou, mas o peso da
construção acima era incalculável. Não era de espantar que
tivessem deixado uma abertura triangular na parte de cima.
Originariamente, pode ter sido coberto por um fino painel
de pedra, colocado do lado de fora, de modo a parecer
compacto e aliviar o peso do lintel. Apesar de muito
impressionante, não trazia nenhuma informação relevante à
sua vida ou à morte de Richard.
Outro beco sem saída.
Ela sorriu, deprimida com seu trocadilho triste, porém
preciso, fechou os olhos e apoiou o queixo nas mãos.
Durante quase um minuto, estivera sentada no silêncio
fresco e escuro do lugar quando percebeu que não estava
sozinha. Ela virou-se em direção ao ruído e viu alguém
vindo em sua direção.
— Eu sabia que você acabaria vindo até aqui — disse a voz.
Deborah conhecia aquela voz, mas, calada, levantou-se na
escuridão, mesmo depois de achar que tivesse lhe dado um
nome.
Não pode ser.
Foi quando viu uma pistola apontando em sua direção e todo
o resto sumiu de sua mente.
CAPÍTULO 41
— Tonya? — perguntou Deborah. — O que é que você está
fazendo aqui? — Então, quando a arma elevou-se até a altura
de sua garganta, ela acrescentou: — Vire essa coisa para lá.
— Não fale comigo como se eu fosse a empregada —
disse Tonya, num tom rude.
Mas você é a empregada, Deborah teve vontade de dizer.
Você é! Em vez disso, ela disse simplesmente:
— Eu não entendo. Por que você está aqui? Eu não...
— Então, cale a boca e escute — ela disse. — O próximo
ônibus de turistas deve chegar dentro de mais ou menos um
minuto e eu quero ter certeza de que você não fará
nenhuma idiotice, OK?
— OK — disse Deborah, esquecendo-se de todos seus
pensamentos sobre Atreu e Agamenon, concentrando-se
única e exclusivamente na ponta da pistola automática.
— Vamos começar com algumas regras básicas — disse
Tonya. — Primeiro, dê um passo à frente para que eu possa
atirar em você.
Deborah, que inconscientemente se movia em direção à
mulher, ficou paralisada.
— Segundo — disse Tonya —, se você tentar falar com
alguém, eu vou...
— Atirar em mim? — perguntou Deborah. Apesar do
tremendo esforço necessário, ela fingiu estar se divertindo.
Forçou seus olhos a se despregarem da arma e encontrarem
os de Tonya. — Não, você não vai atirar. Você já reparou no
número de negros na Grécia,Tonya? Eles vão pegar você em
poucos minutos.
Não foi a coisa certa a dizer.
— Talvez — disse Tonya, com frieza ainda maior. — Mas
não estou nem um pouco preocupada.
Ela disse aquilo sem nenhuma entonação dramática e com
tanta decisão que Deborah deu um passo atrás,
imediatamente convencida de estar ouvindo a verdade.
Pensou também que o fato de ter feito menção à cor da pele
da mulher a tornara ainda mais decidida, além das razões que
ultrapassavam o costumeiro desconforto que sentiam uma
pela outra. De maneira vaga e sem sentido, Deborah sentiu
que a presença de Tonya naquele lugar e o fato de ela estar
com uma arma na mão tinham alguma coisa a ver com raça.
Raça?
— Vim até aqui para recuperar uma coisa que nunca lhe
pertenceu — disse Tonya. — Ou, caso falhasse, para matar
você. Tanto faz que seja uma ou outra alternativa, e espero
cumprir as duas. Não me importo de morrer ou ser jogada
em uma prisão grega.
Ela falava com a resignação resultante de um ódio duradouro
e amargo. Dava arrepios em ouvir, e Deborah, que sabia não
haver como protestar contra o absurdo da situação e contra
o fato de Tonya não demonstrar nenhum tipo de fraqueza
ou compaixão, perguntou:
— Por quê?
A mulher negra deu um leve sorriso sarcástico, um daqueles
esgares do tipo como-se-você-não-soubesse, sem nem uma
pitada de brincadeira; na verdade, um sorriso um pouco
ferido, constrangido e até mesmo triste.
— Por quê? — ela repetiu.
— Sim — disse Deborah. — Se você vai atirar em mim,
acho justo que eu saiba por quê.
— Pelo pai que eu nunca conheci — ela disse.
Deborah encarou-a.
— Isso lhe parece justo? — perguntou Tonya, levantando
um pouco mais a pistola.
CAPÍTULO 42
Richard era seu pai? — perguntou Deborah. — Como isso é
possível? — Não é nada disso, sua cretina — disse Tonya. —
Não dê uma de engraçadinha comigo, ou eu juro por Deus...
— Que você me dá um tiro agora mesmo — disse
Deborah. O que dissera não era uma pergunta ou
brincadeira. Ela podia sentir a fúria mal contida nos olhos da
mulher e sabia que ela seria capaz de atirar.
— Isso mesmo — disse Tonya.
— Você está trabalhando com Marcus?
— Quem diabos é Marcus?
— Cerniga, então.
— Cerniga? — repetiu Tonya — O tira?
— Ele não é tira — disse Deborah. — Pelo menos, não de
acordo com Keene.
Fez-se um longo silêncio, mas estava muito escuro para ler
adequadamente a expressão de Tonya. Quando falou, a voz
dela parecia insegura.
— Não estou trabalhando para ninguém.
— Com toda certeza, você não é uma empregada — disse
Deborah.
Eu deveria estar com medo, pensou Deborah, vagamente.
Não tinha razão alguma para pensar que aquela mulher não
seria capaz de matá-la. Na verdade, achava que Tonya estava
procurando uma razão para isso. Ela não sabia por quê, e a
referência ao pai de Tonya não fazia o menor sentido, mas
não havia dúvida de que a mulher que considerara uma
empregada a odiava e que a escolha incorreta das palavras
poderia fazer que acionasse o gatilho e abrisse um buraco em
seu coração, mesmo na presença de testemunhas.
Dito isso, Deborah estava cansada de sentir-se amedrontada.
"Se for agora", disse Hamlet em sua mente,"não há o que
esperar. Estar pronto é tudo." Ela não tinha certeza de estar
pronta para morrer, mas tinha certeza absoluta de não estar
pronta para implorar por sua vida.
— Você está certa — disse Tonya. — Não sou uma
empregada.
Deborah sentiu uma pitada de sorriso na voz dela.
— E daí?
— Não importa — ela disse. — Para você, não passo de
alguém interessada em descobrir a verdade. Você deveria ser
capaz de fazer as ligações. Certo, arqueóloga?
Aquilo foi pronunciado indistintamente.
— A verdade sobre o quê?
— O pequeno esconderijo de Richard atrás da estante.
Deborah ficou quieta. Não tinha a menor vontade de voltar
ao assunto.
— Além do fato de você querer me matar — ela disse —, por
que eu deveria lhe contar?
— Atirar em você não é o suficiente? — perguntou Tonya.
Ela parecia insegura, indecisa.
— Atiraram em mim ontem — disse Deborah com um
sorriso implacável, como se a repetição do ocorrido apenas a
entediasse. — Por que não vamos para fora? Não podemos
conversar no escuro.
Tonya virou-se para a entrada. Um grupo de pessoas se
aproximava, e a voz da guia, dizendo meias verdades acima
de suas cabeças, podia ser ouvida.
— OK — ela disse. — Mas fique perto de mim até
chegarmos no carro.
— Você alugou um carro? — perguntou Deborah. — Que
eficiência! Eu tenho andado de ônibus ou de táxi. E você
conseguiu passar pela alfândega com uma arma. O que
também deve ter exigido inteligência.
— Quer calar a boca e caminhar? — ordenou Tonya.
Com um meneio de ombros, Deborah caminhou lentamente
para o retângulo de luz.
Não sentia a indiferença que fingia sentir. Pelo menos, não
inteiramente. Mas o abatimento que sentira antes não a
abandonara inteiramente, e o que sentia tinha mais a ver
com curiosidade do que com medo. De alguma maneira, a
não ser por um interesse distante no desfecho das coisas e
na maneira como Tonya se envolvera na história, a apatia
que sentira a libertara de tudo. Nada além disso.
Ela caminhou para a luz, espremendo-se entre a
aglomeração de turistas que se afunilava para entrar na
câmara mortuária. Tonya deu alguns passos rápidos para
alcançá-la e fez gestos significativos com a pequena bolsa na
qual escondera a mão direita, para lhe mostrar que seu dedo
continuava no gatilho da arma. Deborah sorriu com
compreensão despreocupada, e o cenho franzido e
determinado de Tonya brilhou numa expressão de
desconforto.
Eu não dou a mínima, disse uma voz na cabeça de Deborah.
Você quer me matar? Foda-se.
Sem se falar, elas caminharam até o estacionamento e Tonya
a levou a um pequeno Renault vermelho, dizendo-lhe que
se sentasse no banco do passageiro. Deborah obedeceu,
convencida de que a mulher negra de meia-idade estivesse
improvisando, de que nunca fizera algo parecido antes e de
que não tinha a menor idéia do que faria em seguida. Mas o
ódio constante em seus olhos não se dissipara, e Deborah
sabia que corria perigo.
Dentro do carro fazia um calor infernal e cheirava a plástico
derretido. Tonya deu partida e abaixou o vidro da janela.
— Não tem ar-condicionado — ela disse, quase
desculpando-se.
— Tudo bem — disse Deborah. Se isso era um seqüestro,
tratava-se de um bastante estranho.
— Vou dirigir até o vilarejo — disse Tonya — e vamos
conversar.
— OK — disse Deborah. — Posso tomar alguma coisa?
Estou com muita sede.
Tonya lançou-lhe um olhar rápido e, por um segundo,
Deborah pensou que ela fosse explodir "Sou eu quem faz as
perguntas" ou qualquer coisa absurda do gênero, mas ela
simplesmente assentiu com a cabeça e voltou a olhar para a
estrada.
— Quando você viu a coleção de Richard pela primeira vez?
— perguntou Deborah.
— Na noite em que ele morreu, enquanto você estava
escondida no banheiro ou em outro lugar qualquer.
— Mas você sabia que a coleção estava lá — disse Deborah,
lembrando-se de ter visto os tênis de Tonya enquanto se
escondia embaixo da cama.
— Mais ou menos — disse Tonya. — Eu sabia que havia
alguma coisa lá, e sabia que era o que você estava
procurando.
— Como assim?
— Não sabia o que estava procurando, mas sabia que estava
procurando alguma coisa — disse Tonya, ríspida. — OK?
Deborah não disse nada. Elas haviam deixado a antiga
cidadela para trás e agora faziam a passagem obrigatória pelos
restaurantes e lojas de suvenir que se alinhavam ao lado da
estrada que levava às ruínas. No cruzamento onde havia o
ponto de ônibus, ela virou à esquerda, entrou no vilarejo e
parou em um café menos movimentado.
— Saia do carro — disse Tonya.
Deborah obedeceu e, seguindo as indicações de Tonya,
sentou-se em uma das três únicas mesas na calçada. O lugar
parecia estar deserto. Deborah olhou para a rua. Havia
apenas uma loja para turistas, uma enorme fachada
anunciando "As Melhores Reproduções de Antiguidades da
Grécia!", que, provavelmente, fazia a maior parte de suas
vendas aos ônibus de turistas, cujos guias ganhavam
comissão da loja. Alguns poucos turistas caminhavam pelo
vilarejo.
Por um longo momento, as duas mulheres olharam-se em
silêncio, ambas tentando aferir o rumo que tomaria a
conversa. Em seguida, apareceu o garçom. Deborah pediu
água e ouzo. Quando sua bebida chegou, ela girou os cubos
de gelo no copo até que o líquido passasse de transparente a
leitoso.
— Que diabo de bebida é essa?
Deborah empurrou o copo na direção dela. Tonya, que tinha
tirado a mão da arma de dentro da bolsa, olhou com suspeita
para a bebida, cheirou e bebeu um gole.
— Alcaçuz? — perguntou ela, espantada. — Parece absinto.
— Só que mais forte — disse Deborah.
— Deixa a gente louca como o absinto? — perguntou
Tonya, tentando se proteger. — Ou cega?
— Acho que não.
— Um ponto para New Orleans — disse Tonya, com um
toque de prazer, dando um pouco de arrogância ao
comentário.
— Você é da Louisiana?
Tonya assentiu com a cabeça, incapaz de evitar o orgulho no
olhar.
Com um movimento de cabeça, Deborah levantou o copo,
fazendo um brinde. New Orleans? Agora o sotaque de
Tonya fazia sentido. Ela sabia que, na Geórgia, as pessoas de
New Orleans eram confundidas com nova-iorquinas. Talvez
por causa dos portos.
Por causa dos portos...
De acordo com Marcus, o navio de carga atrasado estava no
porto de New Orleans. Uma coincidência?
— O que é? — perguntou Tonya.
— O que é o quê?
— O que está faltando na coleção?
— Você não sabe mesmo? — perguntou Deborah.
— Não, mas você vai me dizer — disse Tonya, novamente
com frieza de aço.
— Depende do que você acredita — disse Deborah. —
Richard e esse sujeito britânico chamado Marcus acham que
se trata do corpo de Agamenon.
Tonya não reagiu, mas Deborah teve certeza de que não foi
por que o nome não significasse nada para ela.
— Existe uma máscara mortuária — disse Deborah. — E
outros objetos de sepultura. Armas. Jóias. Talvez cerâmicas.
Mas a máscara e o corpo são os mais importantes.
— Valiosos?
- Se forem autênticos — disse Deborah, bebericando o ouzo.
— De valor incalculável.
— Estão com você?
— Eu nunca os vi — disse Deborah. Tonya olhou-a com
dureza e Deborah bateu o copo na mesa. — Ouça, Tonya,
tenho estado um farrapo nos últimos dias. Richard era meu...
amigo. E se você quiser saber a verdade, ele era como um
pai para mim. Vim até aqui porque me senti em perigo e
porque pensei que pudesse... não sei, ajudar de alguma
maneira. Ontem, alguém tentou me matar. De verdade. Não
foi um simples empurrão num ponto de ônibus e sim uma
tentativa contínua que durou algumas horas.
— Quem foi? — perguntou Tonya. Sua expressão era uma
mistura de surpresa e curiosidade.
— Não tenho a menor idéia, mas vou lhe dizer uma coisa:
me cansei da brincadeira. Não tenho o que você está
procurando e não sei quem teria. Aparentemente, não sei de
muitas coisas e, a não ser que você estoure meus miolos com
aquela sua espingardinha de chumbo, pretendo pegar um
ônibus de volta a Atenas amanhã de manhã e tomar o
primeiro avião para Atlanta.
Tonya pensou no que ela dissera, seus olhos fixos no rosto
de Deborah, como se estivesse procurando qualquer sinal de
enganação. Passado um longo momento, ela desviou o olhar,
soltou um suspiro e ajeitou-se na cadeira.
— A polícia estará esperando por você — ela disse.
— Eu sei — disse Deborah. — Acho que chegou a hora de
entrar na dança. Mas acho que eles não vão conseguir me
condenar por nada além de estupidez e paranóia.
— Você disse que Cerniga não é tira — disse Tonya. —
Tem certeza? Deborah contou-lhe a história enquanto
Tonya franzia o cenho.
— Eu confio em Keene — disse Deborah. — Não gosto
dele, mas confio nele. Pode ser que tente me enquadrar,
mas posso lidar com isso e se tiver problemas vou até o país
vizinho e me entrego ao primeiro tira de bairro que
encontrar. Aliás, é o que deveria ter feito desde o começo.
Ela fez um meneio de ombros diante da constatação de seu
mau julgamento, e Tonya fez um pequeno movimento de
cabeça, com certa simpatia. A expressão anunciou uma
mudança de estado de espírito, e as duas mulheres puderam
relaxar um pouco. A bolsa de Tonya — e conseqüentemente
sua pistola — ainda estava à seu lado, mas sua mão se afastara
dela.
— OK — disse Deborah. — Então você veio até aqui
atrás de alguma coisa que nunca viu, supostamente por ter
pensado que estivesse comigo. Você vai roubá-la de mim
para depois vendê-la?
Tonya balançou a cabeça e franziu a testa.
— Não — ela disse, como que desgostosa com a idéia. — A
não ser pelo que significa para a minha família, não estou
nem um pouco interessada na coisa em si.
— Seu pai? — perguntou Deborah.
— Isso mesmo.
— Eu não entendo — disse Deborah.
Tonya sorriu, dessa vez com pesar, e, em seguida, fez um
gesto para o garçom, que se retirara para a sombra do
interior do café.
— Traga-nos mais dois copos dessa maldita bebida de
alcaçuz — ela disse, segurando o copo de Deborah. — OK
— ela disse, voltando sua atenção a Deborah com um último
olhar avaliador e um meneio de ombros decidido. — O que
eu sei é o seguinte.
CAPÍTULO 43
Tonya bebeu um gole de ouzo e olhou para o copo como se
ainda não tivesse certeza se gostava ou não da bebida.
Deborah esperou, perguntando-se se Tonya estava indecisa
quanto a lhe contar a história.
— OK — disse Tonya, inclinando o corpo para a frente e
colocando as mãos sobre a mesa, como se fosse uma
executiva. — Meu pai morreu na Segunda Grande Guerra.
Ele fazia parte da Divisão de Tanques 761 e comandava um
tanque Sherman M4A3E8: o que os operadores de tanque
chamavam de "Oito Fácil", por causa de sua maciez.
— Ele era comandante de tanque? — perguntou Deborah,
incapaz de conter sua surpresa. Ela não sabia que soldados
negros ocupavam tais postos.
— Isso mesmo — disse Tonya. Ela não se mostrou indignada,
apenas orgulhosa. — O batalhão 761 era composto
exclusivamente de negros. Em outubro de 1944, eles foram
de navio da Inglaterra para a Normandia como parte do
Terceiro Exército de Patton. Lutaram na Batalha do Bulge e
no sudeste da Alemanha. Chegaram a libertar alguns campos
de concentração.
Deborah piscou. Os campos de concentração.
Nos anos 1920, no breve momento de estabilidade entre as
condições desastrosas do Tratado de Versalhes, que pôs fim
à Primeira Guerra Mundial, e a Depressão, que colocou um
ponto final na República de Weimar, a família de Deborah
havia se mudado da Alemanha para os Estados Unidos,
fugindo dos duvidosamente denominados Socialistas
Nacionais que assumiram a política alemã. Na época, seu
avô, um jovem solteiro à procura de oportunidades,
escolheu os Estados Unidos, embora, pelo que ela soubera,
de modo relutante e sem saber muito em que se
transformaria o Socialismo Nacional — que logo ficou
conhecido como nazismo — sob o domínio de Hitler. Três
anos depois, sua avó se mudara da Polônia para Boston.
Apesar de muitos terem ficado, o horizonte europeu
oferecia um futuro bem mais incerto. Os parentes judeus de
Deborah, tanto na Alemanha como na Polônia, sentiram a
violência da "filosofia" nazista, e muitos não sobreviveram
ao final da guerra. Ela os conhecera apenas como jovens,
seus rostos ingênuos em velhas fotografias, e subitamente se
envergonhou por isso. Seus pais se tornaram pessoas bem-
sucedidas e demonstravam surpreendente falta de
preocupação com seu passado judeu.
— Deixem que os mortos enterrem os mortos — seu pai
costumava dizer. — A tradição é construída pelas pessoas
que caminham para a frente. Muitos costumam culpar o
passado pelo presente. É preciso superar. Continuar.
Os pais de Deborah não falavam sobre os membros da
família que ficaram na Europa. Apesar de assentir com a
cabeça com ar grave quando algum programa de TV falava
sobre o Holocausto, seu pai nunca falou sobre ele — agora
que ela pensava nisso. Ele nunca pronunciara a palavra em
voz alta.
— Não adianta olhar para trás — ele dizia. — Isso só
impediria de vislumbrar o futuro que se pode criar para si
mesmo.
Apesar da profissão que escolhera, Deborah sempre vira
aquilo como uma atitude útil e positiva ante a vida. A
arqueologia lidava com a descoberta de um passado morto,
ela costumava dizer a si mesma; com o aprendizado daqueles
que já se foram; com descobrir quem foram eles e não com
definir o presente ou o futuro. Na verdade, nunca lhe
ocorrera que isso pudesse ser uma tentativa de compensar a
estranha falta de passado de sua própria família.
Ela franziu o cenho. A referência aos campos de
concentração a deixara desconfortável, um pouco instável,
como se os marcos de pedra pelos quais tivesse passado mil
vezes tivessem mudado, inesperadamente, sob seus pés. Ela
olhou para Tonya, que a observava atentamente.
— Sinto muito — ela disse. — Continue.
— Meu pai morreu no final da primeira semana de maio de
1945 — disse Tonya, com um sorriso amargo. — A guerra
estava oficialmente terminada, mas parece que a luta
continuou por algum tempo. É assim que acontece nas
guerras, certo?
Ela fez uma pausa e voltou a apoiar as costas na cadeira.
Deborah afugentou suas preocupações para ver Tonya com
novos olhos. A mulher negra não parecia ter idade
suficiente para ter tido um pai na guerra, mas supôs que isso
pudesse ser possível. Na raiz, seus cabelos eram brancos, o
que poderia significar que os tingisse de preto. Os olhos,
sim, eram velhos. Deborah estava surpresa — e um pouco
envergonhada — por não ter notado antes.
Estranho, pensou ela, pensar que as pessoas nascem e
chegam aos 60 anos e que alguém que realmente tenha
lutado na mais mítica das guerras ainda esteja vivo, ainda se
lembre de como foi.
— Eu nunca o vi — disse Tonya. — Quando ele começou o
treinamento, minha mãe estava grávida. Nasci quando ele
estava na Inglaterra, esperando para ser escalado. Cresci com
a história que contaram a minha família: ele morreu em ação
no sudeste da Alemanha, no último dia da guerra. Como não
havia motivos para duvidar dos relatórios oficiais... Eu cresci,
fui para a escola, consegui emprego como jornalista e
repórter free-lance em Louisiana e, oito anos atrás,
finalmente ingressei no Atlanta Journal Constitution.
Mudei-me para Atlanta e comecei a me interessar por
escrever a história de meu pai. Consegui analisar alguns
registros oficiais e tentei fazer contato com alguns
sobreviventes da divisão à qual meu pai pertenceu.
Encontrei um sujeito chamado Thomas Morris, ainda vivo e
morando em College Park. Ele servira no mesmo pelotão
que meu pai e, quando entrei em contato, descobri que ele
havia sido o piloto do tanque comandado por meu pai.
Pensei que a morte de um comandante de tanque em
serviço significasse que o tanque fora destruído e fiquei
surpresa ao saber que um dos membros da equipe ainda
estivesse vivo. Descobri que não é bem assim que funciona.
Quando um tanque é atingido, a carcaça pode explodir, ou
vibrar internamente, matando alguns e mutilando outros,
mas deixando um ou dois intactos. A não ser que pegue
fogo, naturalmente, coisa a que os Sherman eram propensos.
Pegando o copo, sem beber, Tonya continuou:
— Enfim, liguei para o tal Morris e o convenci a
encontrar-se comigo. Mas desde o começo ele se mostrou
astuto: amigável e tudo mais, porém... cuidadoso, como se
estivesse escondendo alguma coisa. Contou-me muitas
histórias sobre meu pai, como se encontraram, como ele era,
as cartas que escrevia para minha mãe... ficou claro que
gostava dele, que foram amigos. Mas quando comecei a fazer
perguntas sobre a morte de meu pai, sua memória tornou-se
um tanto vaga. De repente, ele não conseguia se lembrar de
nada além do que o exército já havia me informado. Eles
estavam ao norte de Munique, seu pelotão separado do resto
da divisão, quando se chocaram com um comboio alemão
que lutara de Berlim até chegar ao sul, aparentemente
tentando escapar para a Suécia. Houve luta e eles
conseguiram dominar o comboio, mas meu pai morreu no
processo.
Tonya encolheu os ombros, resignada.
— Continuei com minha pesquisa — ela disse. —
Imaginei que daria um bom artigo para o AJC, ou um bom
argumento para um livro, e encontrei muita informação,
mas nada sobre as circunstâncias da sua morte. Depois de
algum tempo, acostumei-me com a idéia de que a memória
de Morris havia se mostrado seletiva porque ele tentara
eliminar alguma coisa dolorosa, ou traumática. Então, o livro
de Kareem Abdul-Jabbar sobre o 761 foi publicado e eu
abandonei o projeto. Continuei com meu trabalho regular,
pois achei que não tinha muita coisa a acrescentar.
— Para que seção você escreve? — perguntou Deborah.
— Gastronomia — ela disse, sorrindo um pouco melancólica
—, mas eu escrevia, não escrevo mais. Parei de escrever
para trabalhar no Museu Colina dos Druidas.
— Por quê?
—Vou chegar lá — ela disse. — Três meses atrás, sem mais
nem menos, recebi um telefonema. Era de Thomas Morris,
o piloto do meu pai. Ele me disse que tinha uma coisa
importante a me dizer e que não tinha muito tempo. Fui vê-
lo, e ele estava muito mal. Devia estar com mais de 80 anos
e estava com câncer nos pulmões. Disse que precisava tirar
um peso da consciência... além dos 60 anos de tabagismo.
Ele disse que meu pai não morreu no tanque. Eles se
chocaram contra o comboio alemão exatamente como os
relatórios oficiais disseram, mas o comboio em si era
estranho: o equipamento não se enquadrava à missão, ele
disse. Não entendi muito bem o que ele quis dizer com isso,
mas o principal é que tudo no comboio parecia estar lá para
proteger um único caminhão. Os alemães deram a vida para
defendê-lo.
Tonya continuou:
— Enfim, apesar de ter sofrido sérias perdas, o pelotão de
meu pai conseguiu destruir os tanques inimigos e capturar o
caminhão. Meu pai foi o primeiro a pegar a carga, mas
Morris e alguns outros estavam por perto quando ele a abriu.
Tratava-se de um enorme caixote, marcado com um número
de despacho por navio. Eles mandaram uma mensagem de
rádio para o quartel-general informando a situação e, por
algum tempo, ficaram esperando, cuidando de seus
ferimentos e prestando homenagem aos mortos. Quase se
esqueceram do caixote. Entretanto, algumas horas se
passaram e meu pai ficou curioso para saber o que os nazistas
haviam tentado defender com tanta coragem. Disse que iria
abrir só para dar uma olhada. Alguns dos homens disseram
que ele deveria esperar até que a polícia militar chegasse,
mas, como ele sofrera baixas em seu pelotão por causa do
caixote, ele achou que tivesse o direito de saber o motivo da
morte deles. Ele usou um pé-de-cabra que tirou da lateral do
tanque para abri-lo. Morris e o resto da equipe estavam de
pé, ao lado dele. Os policiais militares chegaram quando ele
abria o caixote. Morris disse não ter visto muita coisa, a não
ser por uma enorme figura entalhada, meio verde, parte
mulher, parte...
— Cobra — disse Deborah — ou dragão. Sim.
— Exatamente. Imaginei que você já soubesse disso — disse
Tonya. Dois dias antes de me chamar, Morris vira a mesma
figura em um dos cadernos do jornal para o qual eu
trabalhava. Um artigo sobre uma nova mostra em seu
museu.
— Então, você empregou-se lá para descobrir o que mais seu
pai vira — completou Deborah.
— Em parte — disse Tonya. — Mas tem mais. Seja o que for
que meu pai tenha visto naquele caixote, aquilo o deixou
pasmado. Quando os PMs chegaram, imediatamente
mandaram os soldados de volta a seus veículos. Havia um
jovem oficial... branco, naturalmente... que comandava o
show. É preciso lembrar como eram as coisas entre brancos
e negros, naquele tempo. Os soldados brancos ressentiam-se
da igualdade outorgada às tropas negras, mesmo que não se
tratasse de igualdade verdadeira. Durante o treinamento das
unidades negras nos Estados Unidos foi dito que, a cada fim
de semana, quando as tropas eram dispensadas para visitar as
cidades vizinhas, pelo menos um soldado negro era
assassinado por turbas de brancos. Freqüentemente, a polícia
militar estava envolvida e, se não participava da matança, o
que às vezes ocorria, com certeza não movia uma palha para
condenar os responsáveis, civis ou militares. Muitos dos
negros pensavam que nunca seriam recrutados. Foi somente
após a perda maciça de divisões de tanques depois do Dia D
que eles foram mandados à França como soldados de campo
e não para prestação de serviços gerais de base.
Com um novo tipo de amargura tomando conta de sua voz,
ela continuou:
— Ainda assim, foram tratados como covardes e inaptos
para a realização das tarefas por muitos comandantes
brancos, mesmo que os integrantes do pelotão 761 fossem
constantemente elogiados por homens brancos que atuavam
nas proximidades, por causa de seu valor e determinação
quando se encontravam em batalha. Mesmo que morressem
lutando por seu país, o país não queria saber deles.
Ela voltou a ajeitar as costas e respirou fundo.
Apesar de calada, Deborah continuou olhando e ouvindo,
com medo de quebrar a frágil trégua.
— De qualquer maneira — disse Tonya —, enquanto
retiravam as coisas do local, o caminhão e o caixote estavam
sendo guardados por um policial. Morris nunca ficou
sabendo o nome dele, mas disse que era um desses garotos
sulistas e que fez questão de deixar bem claro como se sentia
a respeito do batalhão, que chamou de "tropa de negros",
dando a entender que seriam capazes de roubar qualquer
coisa de valor que encontrasse no caminhão. Quando eles
perguntaram o que havia dentro do caixote, ele pegou sua
arma e disse que explodiria os miolos de quem resolvesse se
aproximar. Os operadores abandonaram seus veículos, mas
meu pai voltou. Uns dois minutos depois, Morris ouviu um
tiro e, em seguida, mais dois. O PM voltou e disse que um
dos alemães, ainda vivo, atirara em meu pai antes que o
policial pudesse acabar com ele. Todos sabiam se tratar de
uma mentira, mas sabiam também que levariam a pior se
tentassem protestar. O atirador de Morris foi nomeado
comandante e substituído por um novato. Morris foi o
último sobrevivente da equipe. Três dias depois do incidente
com o comboio, o atirador nomeado comandante foi morto
por uma mina, e o restante faleceu nos últimos anos. Há um
mês, Morris morreu de câncer.
Pressentindo que havia mais, Deborah esperou.
— Mas — disse a Tonya, inclinando-se para a frente —
ele disse que meu pai viu alguma coisa "inacreditável"no
caixote, algo de que não queria falar a respeito até que
pudesse olhar melhor, e Morris achava que o que matou
meu pai aquele dia não estava relacionado ao costumeiro
problema entre brancos e negros: estava relacionado ao
conteúdo do caixote. E foi por isso que larguei meu emprego
para ficar perto dele. E por isso estou aqui, com você.
Deborah ficou calada por algum tempo. Em seguida, assentiu
com a cabeça.
— Lembra-se do sem-teto que foi morto perto do museu,
na noite em que Richard foi assassinado? — ela perguntou.
Tonya anuiu com a cabeça.
— Eles disseram que não havia ligação — ela disse.
— Pode ser que não haja — disse Deborah. — Mas ouça.
Eu falei com a filha dele. Ele era russo e... adivinhe...
membro da KGB, ou da organização que se tornou KGB.
— O que ele estava fazendo em Atlanta?
— Não tenho certeza — disse Deborah —, mas estou
começando a pensar que estivesse atrás do mesmo caixote
que seu pai viu na carroceria do caminhão alemão.
Tonya arregalou os olhos e, depois, apertou-os de maneira
quase dramática.
— Encontraram uma carta com ele — Deborah disse. — A
maior parte estava muito danificada para ser lida, mas havia
referência a alguns "restos", que o autor da carta acreditava
nunca ter chegado a seu destino, uma cidade chamada
Magdeburgo, na Alemanha. Ainda não tive tempo de
verificar, mas não ficaria surpresa se descobrisse que fica na
divisa com a Suíça. Sejam o que forem os "restos"... e
poderiam ser restos humanos e, portanto, o corpo de
Agamenon... seu pai ajudou a impedir que saíssem do país.
Tenho certeza disso.
— Os russos — continuou ela — levaram muitas
antiguidades de Berlim. Que estão com eles até hoje.
Entretanto, mesmo sendo o maior, mais valioso e lendário
carregamento do lote, escorregou-lhes pelos dedos.
Cinqüenta anos depois, eles continuam procurando por ele.
Fez-se um enorme silêncio entre elas. Na rua, uma buzina
tocou e alguém gritou algumas palavras em grego; um outro
respondeu com risadas. Mas, sentadas, imóveis e com os
olhos fixos uma na outra, as duas mulheres mal ouviram.
CAPÍTULO 44
As duas mulheres pediram almoço, o que — pensou
Deborah — poderia parecer surreal, considerando a natureza
do relacionamento entre elas nos Estados Unidos e o fato de
que, menos de uma hora antes, Tonya lhe apontara uma
arma. Mas não foi o que aconteceu. Em vez disso,
desenvolveu-se entre elas uma união tácita e inesperada que
ia muito além de serem duas americanas (bastante
incomuns) em uma terra estranha. Tratava-se de duas
mulheres decididas tentando, sem muito sucesso, entender
perdas e tragédias.
Deborah contou tudo a Tonya: Richard, Marcus, seus e-
mails para Calvin (apesar de ter omitido suas tentativas de
flerte, se é que se podia chamar assim) e a mensagem em
código que recebera antes de sofrer a tentativa de assassinato
em Acrocorinthos. Contou-lhe tudo o que sabia sobre o
corpo de Agamenon, sobre os altos e baixos da reputação de
Schliemann, sobre a MVD e até mesmo sobre a maldita proa
de navio cujo reaparecimento súbito desencadeara os
acontecimentos.
— E esse tal Marcus, desapareceu? — perguntou Tonya.
— Parece que sim — disse Deborah. — Não consegui
falar com ele nem em Corinthos nem em Atenas. Imagino
que tenha deixado o país.
— Você acha que foi ele quem tentou matá-la ontem?
— Tenho quase certeza de que não foi ele — disse
Deborah, com os olhos apertados. — Não sei se foi ele quem
organizou tudo. Mas acho que não. Não sei o que poderia
ganhar com isso, mas, ao mesmo tempo, não sei o que
qualquer pessoa poderia ganhar. O que não me leva muito
longe.
Depois de uma nova pausa,Tonya fez a pergunta que estivera
suspensa entre elas desde que começaram a trocar
informações.
— Então — ela disse. — E agora?
Deborah simplesmente balançou a cabeça. Ela não tinha a
menor idéia.
— Estou pronta para voltar para casa — ela disse. — Não
vejo o que mais possa fazer. E você?
— Bem, eu ia matar você — disse ela, sorrindo. — Na
verdade, o projeto ainda é tentador. Não sei quem assumiria
o comando no museu, mas, com certeza, não seria uma
pessoa tão controladora quanto você.
— Obrigada — disse Deborah, retribuindo o sorriso.
— E se fôssemos fazer umas compras? — sugeriu Tonya,
dando um sorriso que a deixava 10 anos mais jovem e
olhando para a loja de suvenires do outro lado da rua. — O
único outro programa que me atrai é ir a uma igreja. Você
prefere as compras?
— Ainda não comprei nada — disse Deborah, sorrindo com
relutância. — Tudo bem. Afinal, que mal pode fazer?
Elas pagaram a conta e foram para a loja com vitrines
repletas das "melhores reproduções de antiguidades gregas";
entraram olhando uma para a outra com ar pesaroso. Mesmo
que tentassem ser otimistas, ambas estavam desapontadas
com o final de suas respectivas investigações.
Ao entrar, pararam impressionadas. O lugar era enorme, do
tamanho de um hangar, e cada centímetro estava coberto
por prateleiras, expositores e ganchos pendurados nas
paredes. Deborah olhou embasbacada: estátuas de mármore
e gesso de todos os tamanhos, miniaturas de vasos, tigelas,
ânforas, peças geométricas e esculturas cicladenses como as
que inspiraram Moore e Picasso no Museu Nacional de
Arqueologia, urnas clássicas vermelhas e pretas decoradas
com cenas mitológicas, esfinges de bronze e cocheiros
copiados dos originais existentes em Delfos, cabeças de
touro baseadas nas de Creta, peças da Idade do Bronze, dos
períodos clássico e romano, de todos os tipos e formatos.
Alguns não passavam de suvenires baratos, outros eram
réplicas de qualidade. Tonya pegou um pequeno Príapo de
bronze e fez uma careta.
— Esses gregos têm bastante auto-estima — ela disse.
Deborah mal ouviu o comentário dela. Sua mente começava
a andar muito depressa e seus olhos esforçavam-se para
manter o ritmo. Suas pernas acompanharam, e, por um
momento, ela se esqueceu da dor que sentia no tornozelo.
Ela ignorou as quinquilharias. E até mesmo as peças
intermediárias. Apesar de serem bem-acabadas e perfeitas
para presentear, elas não chamaram sua atenção. Seus olhos
se dirigiram para as prateleiras de cima, onde estavam os
objetos que poderiam estar expostos no Museu Nacional de
Arqueologia, peças que pareciam não ser autênticas apenas
por causa das etiquetas de preço. Não era simplesmente a
aparência de verdadeiras que as fazia especial. Elas pareciam
ser antigas, como se tivessem acabado de ser retiradas do
solo. Potes, pratos e até bronzes: todos davam a impressão
de ter milhares de anos e, como se isso não bastasse,
Deborah estava convencida de que algumas peças não eram
reproduções, mas peças recentes inspiradas nos artefatos
antigos. Ela não vira peças como aquelas em nenhuma das
muitas lojas para turistas em
Atenas ou Corinthos. Na verdade, o único lugar onde vira
peças parecidas fora na sala secreta atrás da estante de
Richard.
— Por favor — ela disse, pegando pela mão uma vendedora
que pareceu espantar-se com a urgência em sua voz. —
Onde vocês conseguem essas peças?
— Elas vêm de toda parte — disse a garota. — Algumas são
feitas no exterior.
Deborah percebeu que a garota não estava prestando muita
atenção.
— Não — ela disse, não me refiro à loja toda. Refiro-me a
essas peças. As mais caras.
A garota, talvez pressentindo a possibilidade de uma boa
comissão, resolveu lhe dar toda a atenção, tornando-se
educadamente engraçada.
— Estas são daqui mesmo — disse ela. — Trabalhos
especiais, feitos por uma família que trabalha no ramo e
produz peças de alta qualidade há muitas gerações. Não são
reproduções, são trabalhos de arte.
Deborah esforçou-se para manter a calma.
— Estou muito interessada em comprar uma — disse ela,
gesticulando vagamente em direção à estante de bronzes,
que, definitivamente, não poderia transportar para casa sem
aumentar consideravelmente o espaço em sua bagagem. —
Mas gostaria muito de conhecer o artista.
Tonya se aproximou e ficou ouvindo e conversa com
interesse confuso.
— Sinto muito, madame — disse a garota —, mas os artistas
são muito reclusos. Algumas vezes eles vêm trazer as peças,
mas, normalmente, ficam em casa, onde têm sua própria...
qual é a palavra? Onde os trabalhos de metal são feitos.
— Forja? — contribuiu Tonya.
— Isso mesmo — disse a garota. — Forja.
— E onde eles moram? — perguntou Deborah.
— Sinto muito, madame, mas não posso lhe dizer. É a casa
deles.
— Sim — disse Deborah —, mas...
— Sinto muito. Não
posso. Deborah pensou
rápido.
— Ouça — ela disse. — Estou procurando uma coisa
muito específica, que precisa ser feita sob encomenda.
Venho procurando essa peça por todo o país e acabo de
decidir que quero fazer uma encomenda a esses artistas.
— Todas as peças são exclusivas — disse a garota.
— Sim, mas a peça que quero tem de ser feita de acordo
com certas especificações. Se você me colocar em contato
com os artistas, vai receber a comissão da mesma maneira
que se eu tivesse adquirido a peça aqui na loja.
A garota hesitou e, em seguida, balançou a cabeça.
— Sinto muito — ela disse. — Não posso fazer isso.
— Você ainda quer que seja feita em ouro? — Tonya
perguntou a Deborah.
A garota lançou um rápido olhar a Deborah, que recobrou
sua segurança e disse:
— Se eles forem capazes de fazer no tamanho que quero. A
garota piscou.
— Venha comigo, por favor — ela disse.
CAPÍTULO 45
A casa, uma vulgar estrutura de argamassa branca, ficava do
outro lado do vilarejo. As três mulheres caminhavam
rapidamente, falando pouco, como se todas achassem que
pronunciar uma palavra pudesse lhes custar uma
oportunidade única. Num telefonema apressado, a garota
avisara a família que estariam recebendo visitas. Um menino
de aproximadamente 10 anos, descalço, acariciando um gato
branco, as esperava à soleira da porta.
Ele as conduziu pelo corredor estreito, passando por uma
cozinha que cheirava a orégano até uma sala de estar onde
um homem idoso e sua esposa esperavam, ambos vestindo
roupas de tecido escuro e pesado. A sala estava
surpreendentemente vazia; algumas fotos preto-e-branco
emolduradas eram a única decoração.
A vendedora da loja falou em grego com o casal, indicando
Deborah com um movimento de cabeça. O homem, que
tinha um pesado bigode grisalho, murmurou alguma coisa,
mas não mostrou nenhum tipo de expressão que pudesse ser
lida. Então, ele resmungou alguma coisa para a esposa e ela
assentiu com a cabeça uma vez, dirigindo um olhar avaliador
para Deborah.
— O que a senhora está querendo? — ele perguntou,
simplesmente. Deborah ficou surpresa. Pensou que ele não
falasse inglês.
— Bem — disse ela. — Na verdade, não sei...
Para ganhar tempo, ela olhou para Tonya e, em seguida,
disse, subitamente:
— Uma máscara mortuária. Uma máscara mortuária de
ouro, como as encontradas em Micenas.
Aquelas foram palavras mágicas. O rosto do velho iluminou-
se num sorriso. Ele comunicou-se rapidamente com a
esposa, que também abriu um sorriso, dirigindo-se em grego
às americanas, suas mãos postas à frente, como se estivesse
pronta a bater palmas. O velho ficou de pé e começou a
coxear pela sala, fazendo-lhes sinal para que o seguissem.
— Como as máscaras encontradas por Herr Schliemann,
certo?
— Exatamente.
Eles passaram pela cozinha e foram até um quintal
circundado por barracões, vários deles com chaminés de
metal.
— Forno de cerâmica — ele disse, apontando para um. —
Forja — disse, levando-as a outro.
— Herr Schliemann dormia no vilarejo — ele disse. — Três
casas abaixo, nesta mesma rua. Não apenas ele. Muitas
pessoas famosas. Himmler e Goebbels também dormiam lá.
Deborah lançou-lhe um olhar, esperando que ele dissesse
estar apenas brincando.
— Os nazistas — perguntou ela.
— Certamente — ele disse, com um meneio de ombros.
— Na época, Micenas era muito importante. O próprio
Schliemann era... como eles costumavam dizer... um super-
homem teutônico. — Ao fazer o comentário, ou lembrar-se
dele, deu um sorriso torto. Deborah e Tonya trocaram um
olhar de cumplicidade.
Ele empurrou uma porta pesada e acendeu a luz. O galpão
tinha piso de cimento e, ao fundo, uma série de braseiros.
Havia várias bigornas e uma parede repleta de ferramentas
de cabos longos, fórceps enegrecidos pelo fogo, alicates
azulados e cabeças de martelos que, com o uso, tornaram-se
lustrosas como cromo. Ao longo de outra parede, havia uma
bancada de trabalho coberta com estátuas de cera em
diferentes estágios de preparação.
— Usamos apenas técnicas antigas — ele disse. —
Mesmo com os moldes de bronze. Cada figura de cera é
usada apenas uma vez; cada molde serve para fazer apenas
uma estátua. Um processo muito lento, muito caro. Hoje em
dia, ninguém mais trabalha assim.
— Com certeza
— O senhor já fez alguma, antes?
— Uma ou duas — ele disse, com um meneio de ombros.
— Muitos anos atrás. Pequenas, assim.
Ele juntou as mãos para indicar uma área de
aproximadamente 15 centímetros de largura.
— Elas podem ser maiores? — perguntou Deborah. — No
tamanho natural?
— É claro — ele disse, repetindo o meneio de ombros que
fez Deborah se lembrar do diretor do museu de Atenas. —
Mas o ouro é caro. E muito difícil de encontrar.
Antigamente, no tempo de Agamenon, o ouro tinha muitas
impurezas. Estanho. Zinco.
— O senhor pode fazê-la exatamente como eram? Com a
mesma mistura?
O velho franziu o cenho.
— Quase — disse ele. — As máscaras originais eram
diferentes umas das outras. É provável que tenham sido
feitas com metais de lugares diferentes, o que significa que
não existe uma composição única e... correta. Qual cópia vai
querer? A de Agamenon?
— Não — disse Deborah. — Quero uma máscara parecida,
mas diferente. O senhor pode fazer uma?
Ele assentiu com a cabeça e levantou um dedo solitário,
como se lhes pedisse para esperar. Em seguida, saiu do
galpão e demorou-se um pouco. Enquanto esperavam, as
mulheres sorriram e deram uma olhada ao redor, estudando
o trabalho em andamento. Quando o velho voltou, segurava
o que Deborah pensou ser uma das fotos em preto-e-branco
da sala de estar.
— Olhe — ele disse, mostrando a primeira foto.
O coração de Deborah deu um salto. A foto monocromática
mostrava um homem curvado sobre a bigorna. Ele segurava
uma enorme máscara mortuária, diferente de todas as que
vira no Museu Nacional de Arqueologia. A mesma que vira
na tela do computador de Richard.
— Meu avô — disse o ferreiro, orgulhoso. — Veja.
Aproximou a outra foto de Deborah. Ela mostrava dois
homens sorrindo para a câmara: um moreno, com bigode
espesso e expressão jovial, e o outro, também de bigode,
mais magro e com ar professoral, com óculos de metal sem
aro. Ambos vestiam antiquados ternos escuros com
colarinhos curiosamente pequenos.
— Meu avô, de novo — disse o velho.
— Quem é o outro homem? — perguntou Tonya.
— Este — disse o ferreiro, batendo o vidro da moldura com
o dedo, como um condutor chamando os violinos com a
batuta —, este é Heinrich Schliemann.
CAPÍTULO 46
No momento em que vira a foto, Deborah ficara sabendo.
Seu coração encolheu-se ao reconhecer a pose habitual de
Schliemann, uma mistura de acadêmico confuso e showman
pomposo. As mulheres demoraram uns 10 minutos para
conseguir sair da casa. Levavam consigo duas peças do casal
de idosos e várias do showroom, que não chegaram a ver, na
tentativa de fazer a saída um pouco mais palatável. Durante
aquele tempo, Deborah quase não foi capaz de pensar. Era
como se as notícias de uma emergência familiar tivessem
sido interrompidas por uma ligação de telemarketing e ela
tivesse perdido o bom senso e a boa educação. Precisava sair
daquele galpão, daquele vilarejo e daquele país. Estava tudo
terminado.
Porque, do ponto de vista de Deborah, aquelas fotos podiam
significar apenas uma coisa. Tanto a máscara quanto todas as
peças pelas quais Richard perdera a vida foram falsificadas
por um talentoso artesão grego no final do século XIX. O
fato de Richard e Marcus — e talvez pessoas dos governos
grego e russo — terem sido ludibriados e pensarem que
eram peças autênticas não lhe servia de consolo. Todas as
investigações e pesquisas que fizera, arriscando a vida,
arriscando sua liberdade e reputação como acadêmica e
executiva nos Estados Unidos, tinham se baseado em uma
mentira.
A maneira como a máscara e as outras peças haviam
chegado à América não tinha a menor importância. Não
importava se havia um corpo. Não importava que os
soviéticos estivessem atrás dele havia 50 anos. Não
importava quem estava de posse das peças. Tudo não passava
de lixo que não valia mais do que um punhado de suvenires.
E por isso o pai de Tonya fora morto. Richard fora morto.
Tudo não passava de uma piada sem graça, uma piada de
terrível mau gosto que se tornava cada vez mais amarga a
cada cadáver que criava. De volta à rua ensolarada do
vilarejo, Deborah sentiu vontade de vomitar.
Tonya não precisou perguntar a Deborah como ela se sentia,
ou o que pensava daquilo. Apesar de ter demorado um
pouco mais a perceber, tudo ficara claro para ela a partir do
momento em que enxugara as lágrimas de humilhação dos
cantos dos olhos. Antes mesmo de saírem do galpão, ela
soube muito bem das conseqüências dos atos daquelas
pessoas, orgulhosamente expostas nas fotos emolduradas.
Será que Schliemann sabia, estivera envolvido? Uma
pequena travessura para ajudar a construir sua mansão em
Atenas? É provável que não. De qualquer maneira, não fazia
diferença. O pai de Tonya morrera a troco de nada. Teria
sido melhor, ela pensou, se tudo não tivesse passado de
racismo. Pelo menos o ódio e a indignação que sentia teriam
sentido. Da maneira como as coisas aconteceram, seu pai se
tornava uma vítima inocente de um acidente estúpido. Sim,
tudo não passava de uma piada de mau gosto.
Eles deixaram seus endereços para que a garota da loja lhes
enviasse os objetos comprados, distribuindo generosamente
seus euros. Elas não precisariam mais deles. Estavam
voltando para casa. Enquanto caminhavam até o pequeno
Renault, Deborah tentou, mas não conseguiu lembrar-se de
nada que comprara.
— Quer uma carona de volta a Atenas? — perguntou
Tonya.
— Preciso voltar ao hotel em Corinthos para pegar
minhas coisas — Deborah disse. — Ver se Marcus ou Calvin
ligaram. Vou para Atenas amanhã de manhã.
— Tem certeza?
— Sim.
Tonya assentiu com a cabeça. Tirou as chaves do carro da
bolsa e, agindo por força de um impulso que havia muito
tempo parecia tentar suprimir, apertou o braço de Deborah.
Uma vez mais, os olhos delas se encontraram, e as duas
mulheres sorriram e anuíram com a cabeça, apertando os
olhos para conter as lágrimas, sem dizer uma palavra. Tonya
entrou no carro e partiu. Deborah não acenou em
despedida. Começou a caminhar até o ponto de ônibus. Um
carro tocou a buzina e ela virou-se na direção do muro de
uma casa para sair do caminho. Novamente o ruído da
buzina. Ela virou-se, irritada, e viu que era um táxi. O
motorista pensou que ela estivesse procurando um.
O que mais estaria uma americana palerma fazendo por aqui?
— Quer ver a cidade velha?
Não, ela não queria, mas uma parte dela sabia que agora
estava pronta para dizer adeus a Richard. A essa altura, ele já
devia ter sido enterrado. Ela se despediria dele aqui, na
fortaleza pela qual fora tão fascinado, mesmo que estivesse
enganado. Abriu a porta de trás do táxi e entrou sem dizer
nada.
Tudo o que acontecera nos últimos dias parecia longínquo e
irrelevante, dissipado pela meia descoberta que fizera no
vilarejo. Um último ato de fechamento, e ela iria para casa.
Ela ainda tinha o bilhete que comprara pela manhã e eles a
deixaram usá-lo. Micenas estava exatamente como antes, a
não ser pelo fato de que, agora, parecia menor, menos
grandiosa, como um teatro depois que você teve a chance
de visitar a vulgaridade empoeirada dos bastidores. Ela subiu
a mesma rampa que levava ao portal dos leões, viu o mesmo
círculo de sepulturas onde tudo começou e foi até a
acrópole. Como já era tarde, a maior parte dos turistas havia
ido embora ou, mais provavelmente, ido aos restaurantes e
lojas de suvenires. Alguns estariam voltando a Atenas,
outros para Delfos, com a sensação de magnitude mitológica
e história invejavelmente intacta.
Do ponto mais alto da cidadela, Deborah olhou para os
muros de construção ciclópica, os círculos de câmaras
mortuárias, para as casas de mercadores, a estrada e para a
empoeirada vegetação rasteira das encostas das montanhas.
— Estou aqui por sua causa, Richard — murmurou ela. —
Vim para tentar ajudar. Gostaria de não ter vindo, mas acho
que precisava vir. — Ela abaixou-se e pegou um punhado de
terra e pedriscos. — Adeus, Richard. Você foi um bom
homem. Um mau historiador e curador, mas um bom
homem. Eu o amei muito.
E, no ar vazio, ela atirou o punhado de terra num arco, de
forma que parte dela caísse nas sepulturas.
Por um momento, ela ficou ali, em silêncio, olhando ao
redor. Atrás das montanhas, o sol começava sua lenta
descida, e os últimos guias turísticos saíam da cidadela para
dar uma breve olhada no Tesouro de Atreu. Apenas uma
pessoa ficara com ela nas ruínas, um garoto magro, por volta
de 18 anos, que, sentado nos degraus onde ela estava,
fumava e olhava através dela com olhos pequenos e duros.
Quando sentiu o olhar dela sobre ele, levantou-se
lentamente com um leve sorriso lateral enrugando seus
lábios pálidos. Não estivera sentado sobre um degrau, mas
sobre um capacete de motocicleta verde-limão.
CAPÍTULO 47
Deborah ficou completamente imóvel. O rapaz estava a
menos de 30 metros, perto o bastante para que ela pudesse
observar cada detalhe da tragada displicente que dava no
cigarro e a maneira como, examinando-a com ar divertido,
ele atirou para longe a bituca ainda em brasa. Ela ainda
estava lá, de pé, olhando para o garoto, quando ele levantou-
se lentamente, ainda sorrindo e olhando de soslaio,
arrogante, divertindo-se com alguma piada particular. Era
magro, porém musculoso e, a não ser pelo tom azulado da
cabeça raspada, extremamente pálido. Seus olhos eram
pequenos, bem próximos um do outro. Ele parecia olhar
para o vazio, ignorando-a deliberadamente e, ao mesmo
tempo, divertindo-se com o pânico que causava nela.
Quando decidiu olhar diretamente para ela, o rapaz o fez
com a presunção de um showman, como se ali houvesse
uma multidão para assistir a seu inevitável triunfo. Ele veio
para matá-la, dessa vez de perto.
Deborah deu uma rápida olhada ao redor, afastando os olhos
dele na tentativa de quebrar o encanto de naja. A acrópole
não era alta, mas, se ela se atirasse sobre a borda,
provavelmente quebraria algum membro ao rolar entre as
ruínas do próximo círculo concêntrico do sítio arqueo-
lógico. Mesmo assim, em questão de segundos, ele a
alcançaria. A cidadela fora planejada para resistir aos ataques
e oferecia apenas uma saída: a escadaria sobre a qual ele
agora languidamente se colocava. Não havia nenhum outro
lugar para ir, a não ser para cima e para trás na esperança de
que ele a seguisse e ela encontrasse uma maneira de passar
por ele.
Ele esperou até que os olhos dela voltassem a pousar nele
para, absorto, começar a desabotoar a camisa. Aquela atitude
a incomodou de maneira irracional. Não pelo que a camisa
aberta revelava. Havia uma faca na cintura dele, mas não era
a mesma que matou Richard — disso ela tinha certeza. Era
uma grande faca de caça com lâmina longa que terminava
numa ponta cruel. Apesar disso, a faca era menos alarmante
do que as tatuagens. Mesmo de onde estava, ela podia vê-las:
uma máscara mortuária decorada que ia de mamilo a
mamilo, da garganta ao púbis, e, sobre ela, um pássaro,
talvez uma águia com ar imperial. Sim, uma águia romana,
ela pensou. Havia uma palavra escrita em código sobre a
máscara, e, mesmo que ele estivesse lhe dando bastante
tempo para sentir medo, Deborah não conseguiu adivinhar
sua origem, apesar de poder fazer uma idéia de seu
significado.
Ele demorou uma eternidade para mover-se e, quando o fez,
foi com uma espécie de gingado que tinha a intenção de
amedrontar, os dedos de uma mão abertos e esticados para a
frente, a outra mão buscando a faca. Deborah assustou-se e
ele deu uma risada infantil. Ela não esperou para ver o que
aconteceria depois; virou-se e começou a correr, tentando,
freneticamente, lembrar-se do mapa em seu guia turístico.
Ele não foi atrás dela, pelo menos não imediatamente.
Quando, por sobre os ombros, ela olhou para trás, viu que
ele pegara seu capacete e começava a caminhar lentamente
na direção dela. Ele ainda sorria, como se a idéia de uma
caçada o deixasse feliz. Seus gestos pareciam estudados e ele
parecia confortável como se estivesse vivendo um filme
fantástico. Talvez ele fosse o Exterminador: lento,
inexorável, brutalmente frio. Deborah continuou a correr
em direção ao muro mais ao norte.
O castelo de Micenas, como muitos outros, tinha o que se
chamava uma porta dos fundos: uma saída secreta para, na
eventualidade de um cerco, a entrada de suprimentos e a
saída de soldados. Ficava distante da entrada principal e,
comparada ao sólido maciço espetáculo do portal dos leões,
não passava de um pequeno buraco na muralha da fortaleza.
Deborah a vira de manhã. Tinha quase certeza de que ficava
no muro ao norte, mas não sabia dizer exatamente onde, e
no momento a visão que tinha dos muros não era das
melhores. Ela correu até chegar aos fundos do palácio real e,
caminhando rapidamente, fez uma rápida investigação do
muro. Ele avançava em um longo arco para o leste, maior do
que ela imaginara.
A passagem secreta deve ser por ali.
Ela virou-se para a direita e novamente saiu em disparada.
Mesmo que conseguisse sair pela passagem, ele poderia
alcançá-la chegando pela frente, mas lá embaixo ainda
haveria turistas e os guardas de segurança do sítio. Deu uma
olhada para trás e o viu a uns 30 metros atrás dela, sua boca
levemente aberta e cabeça abaixada, como um cão de caça.
Não, ela pensou, como uma hiena.
Deborah manteve-se afastada da casa com colunas e chegou
ao largo caminho sobre a muralha. Novamente virou para a
direita em direção ao leste, passando pelos ameados em
direção aos fundos da cidadela. Agora, movia-se mais
rapidamente, consciente de que ele tinha alcançado maior
velocidade e que provavelmente tivesse percebido o que ela
pretendia fazer. Ouviu-o subir ao topo do muro e seguir
atrás dela.
Ela aumentou a velocidade. Pensou que, com o capacete, ele
parecia mais amedrontador; como se o fato de não ser
possível ver-lhe os olhos o fizesse menos humano e, por
isso, mais perigoso. Mas ter visto olhos dele não fazia com
que se sentisse mais confortável. Eles pareciam cheios de
uma malícia cega e estúpida, bem pior do que o autômato
que fora antes. E as tatuagens...
Alguma coisa parecia familiar naquelas tatuagens. Alguma
coisa relacionada à máscara, ela pensou, o que não fazia
sentido. Ela sabia que, por vários dias, a imagem da máscara
estava e estivera olhando para várias representações dela
mesma. É claro que era familiar. Mesmo assim, havia alguma
coisa...
Depois de dar mais meia dúzia de passos, Deborah teve de
reconhecer a dúvida que se instalara em sua mente e que
começava a se tornar consciente. Nenhum dos braços
daquela muralha lhe parecia familiar. Naquela manhã, ela
vira a passagem dos fundos de cima, mas não estivera tão
distante nas ruínas.
— Não — ela disse em voz alta. — Não. Por favor, Deus,
não.
Mas, a cada passo, a verdade ficava cada vez mais inevitável.
Ela calculara mal sua localização. A passagem secreta ficava
mais perto do canto oeste da acrópole do que imaginara. Ela
continuaria correndo sobre a muralha, mas não havia saída,
e tudo o que estava fazendo era distanciar-se das pessoas que
ainda estivessem na entrada. Ela contou cinco passos e
decidiu seguir adiante.
Deborah olhou para trás. O muro fazia uma leve curva e o
rapaz ficara temporariamente fora de visão.
Um momento tão bom quanto os outros.
Ela chegou à pedra do monte da acrópole e escalou o topo
da plataforma. Pode ser que isso fosse exatamente o que
precisava. Se ele não a tivesse visto fazer aquilo, pode ser
que passasse por ela, e então Deborah poderia voltar, correr
pelo centro da cidadela e cruzar o portal dos leões em busca
de segurança. Desesperada, ela avançou, esfolando os dedos
contra as pedras até conseguir jogar os ombros sobre o topo
e lançar-se sobre a plataforma. Olhou para baixo e respirou.
Ele não estava lá. Ela conseguira.
Ao começar a levantar-se, ela o viu, de pé, na plataforma.
Agora, estava muito mais perto, olhando para ela. Momentos
antes, ele fizera a mesma coisa, talvez com a intenção de
cair sobre ela. De qualquer maneira, ela perdera uma
vantagem crucial e ele agora estava entre ela e ambas as
saídas. Deborah estava completamente encurralada.
CAPÍTULO 48
Nenhum lugar para ir, a não ser para baixo. No mais distante
canto a oeste das ruínas, ela viu um portal triangular na
pedra com seu topo arqueado em ponta, como as janelas
quase góticas do Templo Ohabei Shalom, em Brookline, que,
até os 13 anos, ela freqüentara durante o sabá e as
cerimônias festivas: era a passagem para a cisterna secreta
sobre a qual lera, a que tinha uma inclinação bem íngreme.
Sua hesitação durou apenas um segundo.
Nenhum outro lugar para ir...
Ela correu até lá e entrou no buraco. A entrada devia ter um
metro de largura por três ou quatro de altura. Pelas centenas
de anos de uso, as pedras do piso adquiriram brilho. A
passagem era fria, escura e sinistra e, ao entrar, ela teria de
comprometer-se... com alguma coisa. Ela não sabia bem o
quê, mas uma idéia começava a se formar em sua mente:
uma idéia difusa e terrível.
Dando uma olhada para trás, ela enfiou-se lá dentro. Se ele
não tivesse percebido que ela viera até ali, ainda teria uma
chance. Mas, na verdade, essa chance não existia. Ele
estivera muito perto. Agora, ela o via vindo em sua direção,
mais próximo do que nunca, perto o suficiente para que ela
pudesse ler a palavra tatuada sobre a máscara e a águia:
Atreu.
Por um momento, Deborah apenas ficou ali, olhando para
ele, boquiaberta apesar de a palavra não ter sido uma grande
surpresa. Foi apenas a realidade horrível e transparente que
fez gerar uma pausa. Ele continuou a aproximar-se, sorrindo
de maneira desagradável, e ela não teve outra escolha senão
encarar as profundezas subterrâneas e improvisar.
Os primeiros passos não foram tão ruins, mas, numa curva,
toda a luz desapareceu. As paredes eram
surpreendentemente polidas, como que plastificadas. Não
havia corrimão ou corda com os quais pudesse guiar-se, e ela
começou a diminuir a marcha, sentindo as extremidades do
caminho com os pés. Outra curva e ela se encontrou na mais
completa escuridão. Deu dois passos e tropeçou, seu
tornozelo machucado cedendo quando ela pisou em falso.
Ela conseguiu recuperar o equilíbrio, evitando cair mais do
que uns poucos degraus, apoiando-se com as mãos e
causando uma onda de dor que, do pulso machucado, foi até
a cabeça como uma enxaqueca e, em seguida, tornou-se uma
dor suportável. Endireitou o corpo e deu mais dois passos
capengas. Ela precisava de luz.
Deborah podia ouvi-lo vindo atrás dela, seus passos ecoando
no túnel. Ele também diminuíra a marcha, mas não tinha
razão para apressar-se. Ela supôs que ele a tivesse em suas
mãos, exatamente como queria. Não havia onde se
esconder, nenhum nicho no qual pudesse se esgueirar
enquanto ele passasse. Tudo o que havia era o súbito final da
passagem e, como o guia dissera, um declive de 70 metros
na escuridão que levava ao poço frio e fantasmagórico,
abaixo.
Ela tirou a mochila e procurou alguma coisa nos bolsos
laterais. Encontrou seu celular, que não usara desde que
chegara à Grécia. Sabia que não conseguiria fazer ligações
fora dos Estados Unidos e que, ali onde estava, não
conseguiria sinal, mas era possível que tivesse bateria
suficiente para lhe dar...
Luz!
Assim que abriu o aparelho, a pequena tela digital brilhou
com uma luz verde. Não era muita, mas, na escuridão da
caverna, era melhor do que nada. Ao segurar o celular à sua
frente, mantendo-o um pouco acima do solo, ela viu os
degraus entrarem num foco suave e fosforescente, como se
o piso estivesse coberto por aquelas plantas microscópicas
que fazem com que as ondas dos oceanos tropicais
brilharem no escuro. Cautelosamente, retomou seu ritmo.
Não demorou muito para que perdesse a noção de quantos
degraus descera, mas imaginou que fossem pelo menos 50.
A passagem fizera várias curvas fechadas pelo caminho,
girando pelo chão pedregoso como um maldito saca-rolhas,
ou uma toca de coelho.
E eu sou a Alice, ela pensou. Mas o Coelho Branco está atrás
de mim, e não ao contrário, e, em vez de um relógio de
bolso, ele tem uma faca.
Deborah continuou avançando, descendo, um braço
estendido para sentir a parede fria e o outro estendido à
frente, segurando o celular com sua luz esverdeada.
Enquanto isso, tentava lembrar-se do que lera no Rough
Guide, A passagem era longa e difícil, dissera o guia, e fazia
muitas curvas, mas ela não se lembrava se mencionava seu
comprimento. 60? 80? Alguma coisa do tipo, talvez, mas
nenhum número a ajudava a lembrar-se nada do livro, a não
ser a maneira como terminava: um súbito declive pelo nada
e para as águas profundas da morte.
No livro, a cisterna lhe parecera incômoda e traiçoeira, mas
estar ali naquela escuridão sepulcral era aterrador. Mesmo
com a fraca luz do celular, ela poderia não parar a tempo, e
não haveria nenhuma equipe de resgate ou mão amiga para
tirá-la de lá.
De qualquer maneira, você morreria na queda, disse uma
voz em sua mente. Mesmo que batesse contra a água.
Setenta metros? Seria como cair sobre concreto.
— Cale a boca — ela disse em voz alta. — Cale a boca.
Enquanto contava os 10 próximos passos com a intenção de
se distrair, um novo pensamento começou a tomar forma.
Será que não haveria uma corda cruzando a passagem ao
chegar ao declive? Talvez... Se ela fosse rápida —
especialmente agora, que se movia com mais velocidade do
que ele graças à luz limitada do celular —, poderia soltar a
corda de um dos lados, segurá-la e descer pela escuridão da
cisterna. Ele não veria o final da passagem, daria mais um
passo e o chão sumiria sob os pés dele. Ele cairia no poço,
passando por ela, gritando nas águas negras lá embaixo.
Deus, ela pensou, enquanto a idéia abominável insistia em
permanecer em sua mente, a sensação dos dedos dele
tentando agarrar-se à rocha, passando por sobre o tecido de
suas roupas, enquanto tropeçava e caía no vácuo escuro...
Deus.
Seria capaz de fazer isso, mesmo que tivesse corda suficiente
e ela estivesse presa com segurança à parede? Será que
conseguiria soltar a corda a tempo? Teria forças para ficar
pendurada no escuro, esperando pelo som da aproximação
dele, com o vazio da vasta cisterna ao redor dela, esperando
que ele cometesse o erro que ela não cometera? E se ele
percebesse o que havia feito e ficasse sentado à margem,
morrendo de rir, enquanto ela ficava lá, pendurada (70
metros...), com seus braços queimando pelo esforço de
agarrar-se à corda? E se fosse chutada para baixo e caísse...
Queimaremos a ponte quando chegar a hora, ela pensou. Era
uma das frases prediletas de Richard.
— Deborah — chamou uma voz atrás no túnel. Uma voz
melodiosa e alegre, um tipo de escárnio. — De-bo-rah.
Era ele.
Deborah hesitou e, em seguida, continuou, com o coração
batendo mais rápido do que nunca e uma náusea tomando
conta dela. Não diga nada. Continue caminhando.
— Vou pegar você, Deborah — cantarolou ele.
Uma coisa era certa: ele não era grego. Era americano. Do
sul? Talvez.
— Como se sente? — ele perguntou. — Prestes a morrer
sem saber por quê.
Ele riu da piadinha, mas Deborah não estava ouvindo.
Recusava-se a ouvir.
A passagem fez nova curva fechada, e mais outra. Depois,
acabou.
Por um momento, ela passou a luz do telefone ao redor, mas
não havia como escapar à terrível verdade.
Não havia uma corda à beira do declive. Na verdade, não
havia declive algum. Eles não protegeram a cisterna com
uma corda porque ela fora aterrada. O guia turístico estava
desatualizado e ela estava em maus lençóis.
CAPÍTULO 49
Seu último avanço em velocidade criara certa vantagem
entre ela e seu perseguidor, e, durante alguns segundos, ela
acreditou que ele pudesse ter mudado de idéia e decidido
voltar. Tê-lo esperando à saída seria melhor do que ser pega
ali, encurralada como um rato. A imagem reavivou sua
coragem.
Eu não sou o rato, ela pensou. O rato é ele. Fuinha arrogante
e assassino...
Agora, ele estava bem próximo. Além do ruído dos passos,
ela ouvia algo mais, alguma coisa pouco mais alta do que a
pesada respiração dele. Ele está assobiando.
Era um assobio longo, monótono, as notas misturadas e
indistintas, como se ele estivesse assoprando ar entre os
dentes com os lábios recuados como um chacal, ou — a
imagem retornou — uma hiena. A displicência que ele a
mataria, a petulância cabal e despreocupada do ato a
deixaram subitamente furiosa. Ela colocou o celular aberto
no chão sobre o último degrau da passagem e caminhou até
o final do túnel.
Ele estava quase chegando. Sem a luz esverdeada para
orientá-la, ela juraria que ele estava a ponto de tocá-la.
Pressionou o corpo contra a parede da maldita cisterna
onde, através dos anos, tantos turistas idiotas tinham, sem
dúvida, caído para a morte e seus músculos curvaram-se da
coxa ao ombro como uma aranha numa daquelas teias em
formato de funil, tensos e prontos para saltar. Ela teria
apenas um breve momento de vantagem. Não havia tempo
para meias medidas.
Quando o assobio parou, os olhos dela ainda não tinham
definido o contorno do corpo dele, mas ele fez-se visível ao
parar em frente ao celular com o rosto subitamente claro e
demoníaco na luz esverdeada.
O Coelho Branco...
Ela viu os olhos dele se estreitarem, desacostumados à luz
depois de tanta escuridão, e atirou-se para frente, chutando-
lhe o rosto com toda a força que tinha em seu pé bom.
Acertou e ele cambaleou para trás.
— Surpresa — ela disse, dando-lhe um soco na bochecha.
Ele caiu para trás, estatelado sobre os degraus e resfolegando
em busca de ar, mas aquilo tirou-o do campo iluminado e ela
o perdeu. Deu novo chute sem conseguir alcançá-lo e quase
perdeu o equilíbrio. Aproximou-se um pouco, percebendo
tarde demais que talvez sua silhueta estivesse visível na luz
verde que estava a uns 60 centímetros atrás dela. A faca dele
atingiu-a no ombro e ao lado do pescoço.
Recuando, ela caiu para trás, agarrando o ferimento,
primeiro de modo instintivo e depois procurando algum
sangramento. Não tinha a menor idéia de como fizera isso,
mas fizera. Com os dedos, procurou algum ferimento nas
artérias. Não encontrando nada, não perdeu mais tempo
com exames. Chutou o telefone e atirou-se para o lado
direito — longe da mão que segurava a arma — e foi
novamente para cima dele, de cabeça baixa como um touro
furioso.
Pode ser que alguém do tamanho dela tivesse alguma
vantagem lutando nos degraus onde ele estava, mas ele era
bem mais baixo e parecia estar completamente despreparado
para enfrentar a fúria que se apoderou dela. Alguma coisa
lhe tocou o ombro (o rosto ou o braço dele?), e ela o
empurrou com força contra a parede. Deborah ouviu um
barulho surdo — a cabeça dele contra a pedra — e o
inconfundível ruído da faca caindo no chão. Ela não pegou a
faca nem esperou para ver se ele estava consciente. Passou
por sobre o corpo caído e, desvairada, começou a correr
degraus acima.
Por duas vezes tropeçou nos degraus traiçoeiros (a única
informação correta fornecida pelo guia). Podia sentir o ar
ficando mais morno à medida que subia. Apesar de ainda
estar bastante escuro, à sua frente havia luz, calor e vida. Ela
continuou correndo, pulando cegamente, chocando-se
contra as paredes nas curvas, sem nunca parar. Depois, a
escuridão dissipou-se um pouco e o contorno de algumas
pedras do piso fez-se visível. Na próxima curva havia luz,
que ela sugou como se fosse oxigênio. Depois de cinco
passos, mais uma curva e ela estava fora, meio cega pela
luminosidade e subitamente invadida por uma onda de suor,
tremedeira e uma dor excruciante no ferimento do ombro.
Nada disso a impediu de continuar a correr de volta às ruínas
do palácio, passando pelo círculo de câmaras mortuárias e
até o portal dos leões que levava à saída. Lembrando-se do
mito de Orfeu que tentara salvar sua esposa do reino dos
mortos, ela não olhou para trás.
CAPÍTULO 50
Dessa vez, ela contou aos guardas, que, por seu turno,
chamaram a polícia. Perguntaram-lhe se ele estava morto,
mas ela não sabia dizer. Achava que não. Pode ser que
estivesse inconsciente. Demorou 20 minutos até que a
viatura policial chegasse e, quando finalmente pegaram suas
lanternas e chegaram à boca do túnel da cisterna, outros 10
ou 12 haviam passado. Dois policias se aventuraram a entrar,
um deles com a pistola em punho, mas o ruído de uma
motocicleta saindo do estacionamento disse a Deborah que
não encontrariam ninguém lá dentro. Sem dúvida, ele
deixara sua toca de coelho enquanto ela reportava o
incidente aos guardas, saindo silenciosamente pela passagem
secreta e caminhando até a motocicleta estacionada aos pés
do muro da fortaleza.
Cansada e aborrecida, ela sentou-se ao sol de final de tarde
enquanto um dos policiais revirava um velho estojo de
primeiros socorros em busca de alguma coisa para fazer um
curativo em seu ombro. Graças a Deus, o ferimento no
pescoço era superficial, tornando-se bem mais profundo na
altura do ombro. O que fez que levasse mais tempo para
estancar o sangue. O policial dizia algumas palavras de
encorajamento que ela mal ouvia e várias vezes teve de ser
cutucada para responder a suas perguntas.
Devolveram seu celular e anotaram seu nome e o nome do
hotel em que estava hospedada, mas quando ela disse que
pretendia pegar o próximo avião para os Estados Unidos, eles
puseram seus blocos de anotações nos bolsos e olharam para
o relógio. Eles a levaram de volta a Corinthos e a deixaram
no Esphira, salvando-a de ter de fazer uma viagem de ônibus
e uma caminhada que não sabia ser capaz de fazer.
No hotel, não havia recado algum e, apesar de se sentir
tentada a ir até o cibercafé para verificar seus e-mails,
resolveu que seria melhor não correr riscos. Avisou a
recepcionista que fecharia sua conta pela manhã e trancou-
se no quarto com um sanduíche comprado no bar do saguão
do hotel. Comeu rapidamente, bebeu um pouco de água,
tomou uma ducha, marcou seu vôo de retorno e, por
impulso, pediu uma refeição kosher, coisa que nunca havia
feito antes.
Confiando em Deus ao enfrentar coelhos brancos assassinos?
Dificilmente.
Sem ter planejado — pelo menos não conscientemente —,
ela ligou para Calvin Bowers, discando rapidamente para que
não tivesse de pensar no que fazia, ou no que iria dizer.
— Alô? — ele atendeu. Parecia sonolento e um pouco
irritado. Era melhor que ela começasse a pensar na diferença
de fuso horário antes de fazer aquelas ligações. Por um
momento, ela ficou ali, sentada, segurando o aparelho sem
dizer nada, entrando em pânico como se tivesse 14 anos de
idade e estivesse ligando para algum quarterback iniciante,
ultrapassando os fios de teia de aranha que davam estrutura à
cultura e à hierarquia do curso colegial. Em silêncio,
lembrando-se de ter feito a mesma ligação, sem se dar conta
do quanto estava sendo idiota até que o quarterback (Tim
Andrews: o nome dele se mantinha preso em um pequeno
calabouço escuro na cabeça dela) começara a rir.
— Deborah — perguntou Calvin Bowers. — É você?
A voz, subitamente preocupada, acolhedora e até
esperançosa, pelo menos até onde o evidente desprezo de
Tim Andrews pudesse permitir, a trouxe de volta à
realidade, ou até o que se poderia chamar de si mesma.
— Sim — ela disse. — Peço desculpas por estar amolando
você. Sou péssima em calcular...
— Tudo bem — ele disse. — Onde você está?
— Vou voltar para casa amanhã — ela disse. — Hoje alguém
tentou me matar. De novo. Mas eu estou bem.
Aquele "de novo" mais parecia uma piada. Enquanto
respondia às perguntas preocupadas que ele fazia, ela
continuava a ouvir o eco de seu próprio cinismo e
perguntava-se de onde viera aquilo. O pânico, o estresse, o
desapontamento brutal, a sensação de fracasso, o terror e a
exaustão haviam evaporado como uma névoa matinal
dissipada pelo sol do meio-dia, e ela sentiu-se
inexplicavelmente feliz.
— A que horas chega seu vôo? — ele perguntou. — Vou
esperá-la no aeroporto.
Ela verificou o horário e lhe passou o número do vôo,
perguntando-se vagamente por que ele faria tal coisa e por
que ficava tão feliz que ele fizesse.
— Ótimo — ele disse. — Vai ser bom vê-la de novo.
Ela sorriu e pensou naquilo por um momento antes de
simplesmente responder "Sim".
No dia seguinte, tomou o primeiro ônibus para Atenas, ligou
para o aeroporto para verificar se o vôo estava no horário e
pegou um táxi para o Museu Nacional de Arqueologia.
Popadreus estava em seu escritório, usando o mesmo — ou
outro muito parecido — imaculado terno escuro e tinha os
cabelos alvoroçados, talvez por causa da pressa. Quando
percebeu que era ela, seu habitual sorriso lacónicamente
bem-humorado desapareceu por um segundo e demorou um
pouco para readquirir o equilíbrio.
— Srta. Miller — ele disse. — Que bom vê-la. Infelizmente,
hoje estou muito ocupado.
— Vim apenas me despedir — disse. — Meu avião parte em
— olhou para o relógio — três horas.
Ao ficar sensivelmente aliviado, o sorriso dele tornou-se
mais afável.
— Que pena — ele disse, aparentemente sendo sincero. —
Sente-se, por favor. Aceita uma xícara de café? Não é...
— Nescafé — ela completou a frase por ele, sorrindo. —
Sim, por favor. Obrigada.
Ele fez o pedido por telefone, com os olhos pregados nela.
Quando ele desligou, Deborah inclinou-se para a frente,
decidida a ir direto ao ponto.
— Não vou tomar muito de seu tempo — ela disse. —
Quero apenas dizer-lhe por que vim para cá.
Ao perceber seu tom decidido, ele ajeitou-se na cadeira,
como que se preparando para receber más notícias.
— Não vim simplesmente como turista — ela disse. — O
homem para quem trabalho, aquele que estabeleceu e
fundou o museu que gerencio, foi assassinado alguns dias
atrás. Encontrei o corpo dele em meio a uma coleção
pequena, mas aparentemente valiosa, de antiguidades gregas,
que, acredito, ele tivesse intenção de incorporar ao museu.
Entretanto, havia alguma coisa faltando. Nunca a vi, mas
acredito tratar-se de um corpo usando uma máscara
mortuária e outras relíquias de um rei de Micenas da Idade
do Bronze. Acho que Richard... o homem assassinado...
acreditava que o tesouro fora descoberto por Schliemann e
contrabandeado para uma coleção particular na Alemanha.
No final da guerra, os alemães tentaram contrabandear os
restos para uma cidadezinha chamada Magdeburgo e depois
para a Suécia, mas foram interceptados por uma divisão de
tanques americanos. A coleção foi parar no mercado negro,
tendo passado pelas mãos de pelo menos um colecionador
interessado e do governo russo, que queria levá-la a Moscou
por acreditar que tinha nas mãos o Tesouro de Príamo.
Também acho que Richard acreditava que se tratasse dos
restos do próprio Agamenon.
Fez-se uma pausa.
— E o que você acha? — disse o diretor do museu. A voz
dele saiu baixa e uniforme, até mesmo controlada. Não
demonstrou nenhum choque ou incredulidade. Mas
Deborah não esperava que o fizesse.
— Se realmente existir um corpo, ou partes dele — disse
Deborah —, estou praticamente certa de que não seja tão
antigo nem pertença a Agamenon. Tenho também certeza
de que a máscara mortuária e os outros tesouros de sepultura
foram manufaturados por um artesão grego local, no final do
século XIX. Não sei dizer como foram parar na Alemanha,
ou quem os levou para lá, mas agora sei o que aconteceu
com eles no final da guerra, assim como sei que acabaram
em uma sala secreta ligada a um pequeno museu de Atlanta,
Geórgia.
O café chegou. Ambos ficaram em silêncio enquanto era
servido, olhando-se, cautelosos.
— Essa história é muito interessante — disse Popadreus.
— Mas estou curioso para saber por que me contou tudo isso
antes de partir.
Foi o primeiro lance errado da parte dele. Concentrado em
adoçar o café, Popadreus evitou olhar para ela.
— Acho que sabe porquê — ela disse.
— É mesmo? — o tom era mais de pergunta do que de
desafio. — Como assim?
— Acho que o governo grego ficou sabendo, quiçá por esta
instituição, que um corpo talvez tivesse sido roubado da
escavação de Schliemann, que esse corpo ficara perdido na
Alemanha por quase 50 anos e depois, em algum outro
lugar, por mais algum tempo. Ele apareceu em Atlanta, mas
seu proprietário pode ter sido convencido a devolvê-lo à sua
pátria natal. É até possível que ele tivesse oferecido o corpo
e os tesouros de sepultura em troca do direito de manter o
restante da coleção nos Estados Unidos. O Ministro da
Cultura e Antiguidades... que por acaso encontrei aqui no
museu... pode ter sugerido a averiguação do caso, talvez
autorizando o pagamento de uma alta soma para recuperar
os objetos perdidos, de grande valor para a identidade
cultural grega.
O silêncio de Popadreus durou um longo momento. Em
seguida, ele suspirou e sorriu.
— Interessante — ele disse. — Uma hipótese inteiramente
baseada em especulações. Mesmo assim, muito interessante.
— Obrigada — disse Deborah, tomando um gole de café.
— De fato, tão interessante que eu gostaria de saber o
final da história.
Deborah abaixou a xícara e olhou para ele. Popadreus não
estava caçoando ou tentando descartar sua síntese. Tratava-
se de uma outra coisa, alguma coisa aparente em seus olhos,
o conhecimento de alguma coisa que lhe causava certa
tristeza. Era uma verdadeira inquirição, um convite, quase
uma súplica, e tinha a intenção de relevar tanto quanto
perguntava.
— OK — ela disse. — Bem, eu diria que existem alguns
especialistas em artefatos micênicos, provavelmente
empregados por este museu ou que estejam, de alguma
maneira, lhe prestando serviços, que foram enviados a
Atlanta para um encontro e negociação com o dono do
corpo de modo a trazê-lo de volta à Grécia, esperando
encontrar provas de sua autenticidade. Ao mesmo tempo,
um homem russo também foi a Atlanta para tentar botar as
mãos no tesouro. Não sei dizer se ele estava agindo sozinho
ou, como os outros, servindo seu país.
Disso ela estava praticamente certa. A história tinha,
entretanto, alguns finais alternativos e ela não tinha certeza
sobre qual deles abordar primeiro.
— Quando os gregos viram os artefatos, ficaram
satisfeitos o suficiente para removê-los imediatamente, mas
o proprietário fez algumas objeções que terminaram num
desacordo violento...
Popadreus levantou a mão, pedindo que ela parasse. Por um
segundo ele ficou ali, sentado, a palma de uma das mãos
levantada e uma expressão dolorida no rosto. Quando falou,
Deborah percebeu que ele havia notado alguma coisa que
não o deixara convencido da versão da história.
— Vamos tentar a alternativa B — ele disse.
— Os dois agentes... adidos culturais, ou como os queira
chamar... ficam impressionados com o que vêem — disse
Deborah — Impressionados a ponto de querer levar o corpo
para submetê-lo a um exame mais minucioso. Richard
concorda que removam expositor contendo-o o corpo e
seus tesouros, feliz por o estar devolvendo à Grécia, mas
ainda com pretensões de manter o resto da coleção no
museu. Depois que os agentes gregos levam o corpo, alguém
mais aparece, percebe que chegou tarde para a negociação
que tentara impedir e mata tanto Richard como o russo
disfarçado de mendigo para monitorar o movimento do
museu. Enquanto isso, os agentes gregos examinam a peça
recuperada e decidem que não é autêntica. Decidem tentar
mandá-la para a Grécia e, com medo de serem acusados do
assassinato de Richard, preferem agir por baixo do pano.
— Com medo também — interveio o diretor do museu — de
comprometer seu governo. Afinal de contas, seria
extremamente ruim para a imagem do país que se tenha ido
tão longe para recuperar alguma coisa que acabou se
mostrando sem valor cultural ou histórico.
Isso era o mais perto que ele chegaria de uma confissão.
— Então, podemos pensar que uma outra pessoa matou
Richard — disse Deborah.
— O povo grego tem muito orgulho de seu passado,
especialmente de seu passado remoto — disse Popadreus. —
E tem motivos para isso. Eles precisam disso. Ajuda-os a
manter sua identidade. Dito isso, não acredito que um grego
fosse capaz de tirar a vida de uma pessoa para trazer um
morto para casa.
Ele fez uma pausa, subitamente vencido e abatido.
— Richard Dixon era um homem íntegro e amigo da
Grécia. Se o que ele tinha a oferecer não era o que
acreditava que fosse... mesmo que talvez não se tratasse do
conteúdo de uma tragédia antiga... uma pílula amarga e
indigesta tanto para ele quanto para nós. Aceite minhas
sinceras condolências.
Deborah olhou para o piso. Não tinha certeza a quem ele se
referia com a palavra "nós", mas parecia incluí-la e ela
sentiu-se sensibilizada com isso. Mas não conseguiu dizer
nada.
— A senhorita vai perder o avião — ele disse,
levantando-se.
Ela piscou duas vezes e, enquanto se levantava, deu um
sorriso forçado.
— Obrigada pelo café — disse ela. — Estava muito bom.
— A senhorita é sempre bem-vinda — ele disse.
INTERLÚDIO
França, 1997
Dois dias antes, Randolph Fitz-Stephens completara 87 anos.
Seus médicos desaconselharam a viagem, dizendo que
poderia ser perigosa. Mas ele não lhes dera ouvidos. Esperara
metade de sua vida por isso e não deixaria que sua saúde
fosse um empecilho. Por mais de meio século ele esperara,
procurando arquivos e registros, pressionando investigações
internacionais durante quase meio século, sem nenhum
resultado, a não ser o desprezo de todos aqueles em quem
confiara. Todos, menos seu filho. Marcus gostaria de ter
estado ali quando ele a vira, mas ele teria tentado impedi-lo
de fazer a viagem no estado em que estava. Por isso, Marcus
não poderia saber de nada até que chegasse a hora de
aplaudi-lo pela decisão tomada.
Em poucos dias, eles trariam Agamenon, rei de Micenas,
para a Inglaterra! Depois, e somente depois, começariam as
negociações com o Museu Britânico. Caso Randolph não
sobrevivesse para ver o herói da Guerra de Tróia exposto
com pompa abaixo da frisa do Parthenon salva por lorde
Elgin, podia ao menos contar com Marcus para cuidar de
tudo.
Ele sempre soubera que existiam problemas com a
documentação. O caos dos últimos dias de guerra e dos que
depois se seguiram foi um pesadelo administrativo. Não era
de surpreender que americanos inescrupulosos tivessem sido
capazes de desviar a carga que deveria ter sido levada para
outro lugar, assim como não era de admirar que não
existissem registros corretos que levassem ao seu destino
final. O que nunca lhe ocorrera é que algum navio sem
nome pudesse ter levado seu precioso tesouro ao fundo do
mar ou que, 50 anos depois, um banco de areia em
movimento arrastasse os destroços do navio naufragado até a
costa britânica.
Um garoto de aparentemente 12 anos fora o primeiro a
mostrar interesse pelo caixote peculiar, agora apodrecido
pela água do mar, um caixote do qual retirara algumas
bugigangas para vender nas lojas de antiguidades locais. Foi
apenas quando pegou-se numa discussão sobre a idade de
uma ânfora que Marcus percebeu estar lendo os relatórios de
salvamento de uma herança de valor incalculável, adquirida
por sua família. Teria o corpo do homem sobrevivido à
viagem e — pior — aos anos passados sob a água?Tudo
dependeria do modo como fora preservado. Mesmo que
apenas um fragmento de osso tivesse restado, ainda assim
todos aqueles anos de trabalho teriam valido a pena.
Mesmo não tendo qualquer outro parâmetro de julgamento,
a não ser que o caixote parecia estar cheio, o negociante
afirmava que o conteúdo do caixote estava intacto. Fora
esquivo a respeito dos outros interessados, mas Randolph
tinha certeza de estar preparado para pagar mais do que
qualquer outra pessoa. Ele ainda tinha as fotos, agora
bastante desbotadas e amassadas, que seu primeiro contato
duvidoso lhe havia mandado, décadas antes. Seria ele a
reclamar a posse das peças. Moralmente, elas já lhe
pertenciam.
À mesa de metal no café designado, ele sentou-se ereto
como um cabo de vassoura, esperando. O agente estava uma
hora atrasado. Enquanto tomava seu chá (ou o que quer que
fosse o nome do resultado de um saquinho de chá em xícara
de água morna), Randolph tentou não pensar numa viagem
de volta sem ter botado os olhos no agente e,
principalmente, no corpo.
Um homem cruzou a praça do vilarejo, seus olhos dirigidos
ao pátio do café.
Ele deve ser o agente.
A irritação de Randolph por ter sido deixado esperando
dissipou-se como uma névoa.
— Sr. Fitz-Stephens? — perguntou o homem, sentando-se à
sua frente. — Ao que tudo indica, monsieur Thibodaux teve
um imprevisto, mas acho que posso ajudar.
— Ele não vem a meu encontro? — perguntou Randolph, a
névoa voltando, mais espessa do que nunca, de maneira que,
por um segundo, ele sentiu-se sufocado.
— Trata-se mais de irmos ao encontro dele — disse o outro.
— O senhor se importa em fazer uma pequena caminhada?
Meu carro está estacionado do outro lado da praça.
— Aonde iremos? — respondeu Randolph, levantando-se
lentamente, com as juntas enferrujadas.
— À praia — disse o outro, despreocupadamente. Ele não
tinha nenhum sotaque francês.
Caminharam, dirigiram e caminharam novamente,
adentrando apenas alguns metros na areia dura e escura do
local deserto onde os destroços do st. Lo vieram dar, seu
casco avariado e inundado. O dia, que já estava encoberto,
escurecia mais a cada minuto, prometendo chuva forte.
Randolph deixara seu guarda-chuva no café. Suas pernas
doíam e ele já tinha andado uma distância maior do que
normalmente caminhava em uma semana.
— Estou curioso — disse o jovem. — O que o senhor
acredita existir dentro do caixote?
— O corpo de Agamenon, rei da Grécia, preservado por
Heinrich Schliemann, com tudo o que havia em sua
sepultura — disse Randolph. Ele entoou a frase como se
fosse uma litania: uma afirmação reverente e íntima de fé e
respeito. - Ea popa do galeão — acrescentou ele —, apesar
de não estar interessado nela.
— Algo mais? — perguntou o homem. Ele sorria de maneira
meio seca. Apesar de Randolph já ter visto outras versões
desse sorriso quando mencionava o que acreditava ter estado
a bordo do St. Lo, havia alguma coisa diferente nessa
manifestação, alguma coisa mais fria. Procurou alguns sinais
de vida na praia, sentindo uma pontada de ansiedade ao
perceber que não havia ninguém por perto.
— O que mais poderia haver? — perguntou ele, fingindo
surpresa para mascarar seu desconforto. — O que mais
alguém poderia querer?
O homem riu uma vez, um insolente ronco sem conotação
de divertimento.
Eles haviam acabado de contornar uma saliência de pedra
irregular que irrompia abruptamente da areia brilhante
lavada pelo mar e depararam-se com uma onda. Ela tinha
uns três metros de altura, diminuindo quando a praia
terminava nas águas escuras.
— Isso o diverte? — perguntou Randolph, que não
gostara muito dele.
— Cinqüenta e três anos — disse o outro, com desprezo
indisfarçável — e o senhor ainda não sabe com o que está
lidando! Juro por Deus que o matar será um ato de
misericórdia. E, por falar nisso, este é o monsieur
Thibodaux.
O corpo estava caído com o rosto sobre a rocha, meio
submerso na maré intrusa, de modo que os cabelos em sua
cabeça flutuavam brevemente a cada onda.
— Quem é você? — perguntou Randolph, incapaz de
despregar os olhos do cadáver à sua frente.
— Apenas mais um cliente terrivelmente desapontado do
agente — respondeu ele, dando um meio sorriso enquanto
olhava para o corpo — que não avaliou corretamente as
reivindicações das partes interessadas.
Para sua surpresa, Randolph pegou-se retribuindo o sorriso.
— Você também não conseguiu o que queria — ele disse.
— Mas vou conseguir — disse o outro. — E o senhor não
estará em posição de dizer a ninguém que esteja lá.
— Meu filho vai encontrá-lo — disse Randolph. — Assim
como vai encontrar Agamenon.
— Sabe — disse o outro —, detesto vê-lo morrer tão
confiante. E se eu lhe dissesse o conteúdo do caixote e
depois o matasse? Com certeza, isso acabaria com esse
sorriso que tem no rosto. O que acha? Quer morrer na
ignorância ou prefere saber o que vem procurando às cegas
por todos esses anos?
Randolph vacilou, hesitante, e, supondo que seu silêncio
fosse de concordância, o homem jovem sacou de sua arma
peculiar, com lâmina reta e extremamente longa, para, em
seguida, lhe contar.
O velho caiu lentamente, seus olhos arregalados, atingido
menos pela lâmina em seu peito do que pela idéia que
entrara em sua cabeça, uma idéia que se apoderou dele como
uma onda de terror enquanto, quase imediatamente, as águas
do Atlântico o levavam às pálidas areias aos pés das dunas.
PARTE III
Retorno a Ítaca
Apesar de recitado em memória dos que partiram, o Cadish
não faz nenhuma referência à morte. Trata-se, sim, de um
reconhecimento, em meio à dor, de que Deus é justo
mesmo que, às vezes, não reconheçamos Suas razões.
Quando a morte parece nos sobrecarregar negando a vida, o
Cadish renova nossa fé na importância da vida. Por
intermédio do Cadish, manifestamos publicamente nosso
desejo e intenção de assumir uma relação com a comu-
nidade judaica de nossos pais. Garantindo, assim, a
continuidade da tradição que une geração a geração,
expressamos nossa fé imorredoura no amor e na justiça de
Deus, e oramos para que Ele apresse o dia em que Seu reino
possa, enfim, ser estabelecido e a paz reine sobre a terra.
— Meditação sobre o Cadish extraída do The Sabbath and
Festival Prayer Book elaborado pela Assembléia Rabínica da
América e da Sinagoga Unida da América.
CAPÍTULO 51
O vôo da Delta partiu de Atenas pouco depois do meio-dia
com destino ao JFK e, depois, Atlanta. Todos diziam que
seria uma viagem de 14 horas. Pela janela, Deborah olhou
para o céu azul e para a névoa de calor na pista, verificando
o espaço disponível para suas pernas com a desesperança e a
autodepreciação costumeiras.
É melhor você encarar a realidade, ela pensou. O mundo foi
programado para mulheres menores.
Enquanto levantavam vôo, ela tentou dar uma última olhada
para a Acrópole, mas não conseguiu ver nada além dos
pálidos retângulos de concreto desbotado que compunham
uma porção desanimadoramente grande da charmosa cidade.
Sua permanência na Grécia chegara ao fim e ela voltava para
casa. Se tudo caminhasse bem, ela pensou, acabaria se saindo
melhor do que os gregos na Guerra de Tróia. Muitos deles
nunca regressaram e muitos voltaram aos lares apenas para
encontrar o caos e a morte à sua espera. Mesmo tendo se
saído melhor do que os outros, Odisseu demorou 10 anos
para conseguir voltar a ítaca e ao pandemônio desencadeado
por seu retorno. Na primeira hora que passou, Deborah
examinou o plano de vôo em uma revista de vôo, olhando
distraidamente para todos os lugares onde nunca estivera,
perguntando-se quantos deles teria a chance de conhecer
antes de morrer.
Se a última semana servir como modelo, pensou ela, é
melhor que logo, você faça um safari, para não se esquecer
como é.
Engraçado. Na verdade, o ambiente estéril e impessoal do
avião, seu zumbido abafado e a pressão que sentia nos
ouvidos fizeram o fato de ter, por duas vezes nos últimos
dias, lutado pela própria vida quase impossível de acreditar e
até de imaginar. Pela primeira vez desde que ouvira o ruído
do motor da motocicleta subindo e descendo a estrada de
Acrocorinthos, talvez desde que os tiros ecoaram pelas
ruínas, ela perguntou-se se tudo não passara de um acidente
ou de uma coincidência colossal.
No túnel da cisterna, ele chamou-a pelo nome. Chamou-a
de Deborah.
A lembrança causou-lhe um estremecimento.
"Prestes a morrer sem saber por quê."
Nas duas vezes fora o mesmo homem. Ele levava no peito
uma tatuagem com a palavra que Richard, perplexo,
escrevera na noite que morrera. Não fora acidente nem
coincidência. Alguém queria vê-la morta.
Mas por que ela? Matar Richard por tesouros que acabaram
não tendo valor algum era uma coisa, mas não fazia o menor
sentido persegui-la em outro continente poucos dias após o
evento. Se ela pôde descobrir que o ouro e os tesouros de
sepultura foram manufaturados pelo artesão do vilarejo
como suvenir para turistas ávidos, por que não era capaz de
descobrir quem a estava perseguindo? Não fora difícil
descobrir. Com certeza, as pessoas que estavam atrás das
peças sabiam do que se tratava e que não eram valiosas. E se
o sujeito que tentara matá-la sabia, porque continuaria a
persegui-la?
Não fazia sentido.
(...sem saber porquê)
Será que a coleção era verdadeira? Ela não tinha provas
concretas em contrário, apenas um palpite e alguma
informação circunstancial. Seria possível que Popadreus a
tivesse induzido a pensar que a coleção fosse uma fraude
para afastá-la de cena enquanto esperava que o tesouro fosse
transferido de volta à Grécia? Sim, era possível, ela supôs,
sem muita convicção. Se eles conseguissem trazer o corpo
mascarado a Atenas, colocando-o em exposição, ela
imediatamente saberia de onde ele viera, o que poderia
lançar o governo em um complexo processo legal sobre
quem tinha direito à posse do tesouro e como ele fora parar
nas mãos dele.
A não ser que você já esteja morta, disse em sua cabeça uma
voz que adorava dizer esse tipo de coisa. Você comenta com
Popadreus seu interesse na máscara mortuária e, de repente,
está sendo perseguida por um assassino. Coincidência?
De jeito nenhum. Ela simplesmente não acreditava que o
diretor do museu fosse capaz de planejar um esquema tão
sangrento. O que ela sabia não ser um argumento muito
forte, mas era tudo o que tinha.
Ela ajeitou-se no banco, fechou os olhos e,
propositadamente, dirigiu o pensamento a Calvin, que
prometera esperá-la no aeroporto. Ela sorriu por dentro, o
terror que sempre reservara aos relacionamentos dando, por
um breve momento, lugar ao prazer antecipado, evitando
todos os alertas — alguns deles baseados em exemplos
trágicos de seu próprio passado.
Mas por baixo disso tudo, a frase do assassino (prestes a
morrer...) ecoou na cabeça de Deborah com um toque de
verdade. Ela não tinha a menor idéia do que estava
acontecendo. Na verdade, quanto mais descobria, mais
alguma coisa parecia estar errada, como se ela estivesse
tentando completar um quebra-cabeça cujas peças tivessem
sido misturadas com as de outro jogo. Quanto mais ela
pensava ser capaz de ver, mais ela pressentia outra peça por
trás, um cenário completamente diferente que não era capaz
de ver.
Milagrosamente, ela dormiu por umas três horas. Quando
acordou, as aeromoças estavam acabando de retirar o jantar
e o avião preparava-se para pousar em Nova York. Assim
que aterrissaram e enquanto esperava o vôo para Atlanta,
Deborah comprou e leu vorazmente o New York Times.
Quarenta e cinco minutos antes de pousarem em Atlanta, a
aeromoça, comissária de bordo ou seja lá como se chamam
atualmente essas pessoas apareceu ao lado dela, abaixando-se
com um sorriso conciliatório que não era suficiente para
encobrir certa preocupação.
— Srta. Miller? — perguntou ela, mostrando dentes
perfeitos ao expandir o sorriso. — Deborah Miller?
— Sim — disse Deborah. — Algum problema?
— Não, nenhum problema — mentiu a mulher,
alegremente. — Dentro de pouco tempo vamos pousar em
Atlanta e eu só queria confirmar se a senhorita estava no
assento correto.
— OK — disse Deborah, cautelosa.
— Quando aterrissarmos — ela disse, uma das aeromoças
virá buscá-la.
— Por quê? Acho que não estou entendendo.
— Precisamos deixar que saia primeiro.
— Primeiro?
— Antes dos outros passageiros — disse a comissária de
bordo, com o sorriso esticando-se como um elástico.
— Como assim? — perguntou Deborah. — Por que eu? O
que está acontecendo?
CAPÍTULO 52
A inquietação de Deborah crescia, mas quanto mais pedia
detalhes à equipe de bordo, mais eles diziam não saber e
pediam que se acalmasse, sempre com sorrisos
condescendentes como se estivessem lidando com uma
garotinha de três anos de idade que estivesse fazendo birra.
Pelo menos não havia ninguém sentado ao lado dela. Assim
ela não precisaria passar os 20 minutos restantes de vôo
agüentando olhares de curiosidade. Por que eles queriam
que ela saísse primeiro? E quem eram eles? Será que este era
um esquema de alguma maneira montado por Calvin para
evitar que enfrentasse a espera e o empurra-empurra que
acontecia a cada final de vôo? Aquilo lhe pareceu
remotamente plausível. Talvez tivesse a intenção de
protegê-la de algum passageiro do avião. Ela lançou um olhar
rápido ao redor, levantando-se e piscando os olhos para os
rostos inexpressivos atrás dela. Não viu ninguém com
aparência familiar, e a única pessoa que lhe deu atenção foi
uma criança que fez um comentário com a mãe sobre "a
moça alta" que estava na frente da tela do filme. Deborah
sentou-se e voltou a afivelar o cinto antes que tivesse de
encarar mais alguma censura educada dos comissários de
bordo.
Pode ser que Calvin não fosse a única pessoa esperando por
ela no aeroporto. A idéia deixou-a ansiosa. Mas, mesmo que
alguém em terra firme quisesse causar-lhe mal, como
poderia fazer que a equipe de bordo fosse conivente?
Da mesma maneira que o "detetive" Cerniga assumiu um
caso sem ser tira, ela pensou.
Sentiu que o avião começava a descer enquanto seu
estômago parecia flutuar pelo corpo, como um barco
levantado por uma onda inesperada. Começou a tamborilar
os dedos no apoio de braços do assento. O sistema de alto-
falantes anunciou os requisitos de sempre: bandejas das
mesas presas contra o assento da frente, assentos na posição
vertical, cintos afivelados...
Vamos lá. Se é para pousar, que seja logo.
Deborah olhou pela janela. O avião embicou sobre um
punhado de nuvens e, em seguida, viu a cidade espalhada. À
espera. Numa tentativa de manter a mente ocupada,
procurou orientar-se de modo a descobrir para que bairro
olhava, mas não tinha a menor idéia. Nada lhe parecia
familiar. Muitos complexos industriais, depósitos e enormes
estacionamentos. Em seguida, casas brancas quase invisíveis
sob um manto de árvores e estradas largas e congestionadas,
alinhadas por postos de gasolina. Poderia ser qualquer lugar.
A aeromoça que a avisara que seria levada antes dos outros
passageiros sentou-se em um assento dobrável ao lado da
porta da cabine e afivelou o cinto de segurança. No breve
momento em que seus olhos se encontraram, a mulher
rapidamente desviou os dela. Surpreendida sem seu sorriso
profissional, ela parecia cansada e um pouco ansiosa.
Deborah perguntou-se se aquilo tinha alguma coisa a ver
com ela.
O avião emitiu um zunido baixo e um estalido quando o
trem de pouso foi acionado, um som mecânico que lembrou
a todos como era espantoso que um enorme tubo de metal
como aquele pudesse voar.
Agora, ela podia ver alguns carros, um ônibus MARTA e
mesmo uns dos raros pedestres de Atlanta. Em seguida,
topos de árvores, fios de eletricidade e, subitamente, uma
movimentada rodovia e um viaduto, quase em tamanho real.
Eles cruzaram a estrada com três pistas de cada lado e uma
cerca de alambrado e logo avistaram a pista com símbolos e
letras pintados espalhando-se em meio a quilômetros de
vegetação rasteira. Sentiram um outro tranco uns metros
adiante, um momento de paralisia quando a aeronave
parecia estar flutuando sem motores ou gravidade e, depois,
o tocar das rodas sobre o asfalto e o refluxo do freio. A
inércia impulsionou Deborah para a frente.
O avião ainda manobrava para chegar ao terminal quando
um dos comissários de bordo, um jovem atlético que ela
imaginou ser homossexual, apareceu ao lado dela.
— Onde está sua bagagem, srta. Miller?
Estupefata, ela olhou para ele, fazendo um sinal com a
cabeça em direção aos compartimentos. Ele ergueu os
braços e retirou uma mochila e uma sacola de compras.
— Alguma coisa mais?
— Não.
— Assim que o avião pousar — ele disse, como se estivesse
pronto a participar de uma corrida montanha abaixo —, nós
sairemos.
Sem dizer nada, ela assentiu com a cabeça. Com a boca seca,
ela olhava ao redor sem saber o que procurava. Lembrou-se
de um recital de piano do qual participara aos dez anos de
idade quando, com as mãos trêmulas e molhadas de suor,
espiara pela cortina do Centro de Eventos Brookline para ver
se encontrava o pai na platéia. Agora, sentia-se de modo
parecido, como se estivesse com medo de subir ao palco.
O avião diminuiu a marcha, virou, deu ré, ajustou os
comandos e parou. Antes que o aviso de apertar os cintos se
apagasse, o comissário a seu lado ajudou-a a levantar-se e a
conduziu à porta da saída. A mulher que estivera sentada ali
lhes deu passagem, mostrando-se atarefada e desviando o
olhar enquanto passavam.
O acompanhante de Deborah puxou uma alavanca no
mecanismo de segurança e levantou o painel da porta,
revelando o mundo. No tubo colado à porta, homens da
manutenção e mulheres com uniformes impermeáveis e
jaquetas cor-de-rosa fluorescente moveram-se para o lado,
para dar lugar a um policial uniformizado. Ao lado dele,
Deborah viu Keene e Cerniga.
— Obrigado — disse Keene ao comissário. Pode deixar
que agora nós cuidaremos de tudo.
O tira uniformizado pegou a bagagem que estava com ele e o
comissário de bordo voltou para o avião sem dizer nada.
— Por favor, srta. Miller, venha conosco — disse Keene,
aproximando-se.
Ao final do túnel, havia uma agitação e um homem de
cabelos alvoroçados e olhar ansioso apareceu correndo, com
os guardas de segurança a seus pés. Era Calvin Bowers.
— Deborah — ele gritou.
— Tirem esse cara daqui — berrou Keene.
— Eles estão tentando me levar! — Deborah gritou na
direção de onde Calvin, agora impedido de continuar pelos
guardas, tentava ver o que estava acontecendo.
— Sou advogado dela — ele gritou. — Vocês não podem
prendê-la sem me levar junto.
Não estamos prendendo ninguém — disse Cerniga, ainda
olhando para Deborah —, mas poderemos fazer isso, se
continuarem com essa confusão.
Calvin conseguiu libertar-se e adiantou-se alguns metros
para juntar-se a eles. O guarda de segurança seguiu-o como
um cão de caça.
— Podemos conseguir outros tiras? — perguntou Deborah a
Calvin.
— A senhorita está completamente segura — disse Cerniga.
— Com você? — ela disparou em resposta. — Verdade?
Vamos ver seu distintivo.
A expressão desapareceu do rosto de Cerniga.
— Não temos tempo para bobagens — ele começou.
— Eu disse que quero ver seu distintivo! — repetiu
Deborah, com voz estridente e em um volume mais alto do
que pretendia.
Cerniga olhou de soslaio para Keene. Com um meneio de
ombros, o outro detetive desviou o olhar. Cerniga fez uma
cara furiosa e colocou a mão no bolso da jaqueta, de onde
tirou um objeto de couro preto do tamanho de uma carteira.
Ele o abriu e mostrou a ela.
Deborah olhou. A carteira continha uma foto de Cerniga e
três letras grandes: FBI.
CAPÍTULO 53
— FBI? — perguntou Deborah. Instintivamente, ela
olhou para Keene, que encolheu os ombros e concordou
com a cabeça.
— Isso não era necessário — disse Cerniga.
— Espere um momento — disse Calvin. — Por que esse caso
foi para a esfera federal? Quem faz parte dessa jurisdição?
— Eu faço — disse Cerniga. Keene havia se afastado um
passo para observar. Deborah podia ver que ele se divertia.
— Isso é loucura — disse Calvin, não conseguindo evitar que
sua indignação balançasse seu comedimento profissional. —
Você não pode se passar por tira para depois...
— O senhor está enganado — disse Cerniga, fincando os pés
no chão.
— Num caso como este, posso fazer exatamente isso.
— Sinto muito — disse o comissário, reaparecendo na
altura do cotovelo de Deborah, com olhar envergonhado. —
Os passageiros estão esperando para desembarcar. Será que
os senhores poderiam resolver essa história no interior do
aeroporto?
Cerniga deu meia-volta e conduziu o grupo.
Eles passaram pelo controle de passaportes e pela alfândega,
mostrando uma chuva de distintivos e explicações e ainda
discutindo entre eles. Mesmo sendo a principal participante
dessa marcha degradante, Deborah era, ironicamente, a mais
calma do grupo. Afinal de contas, ela dizia a si mesma,
poderia ter sido bem pior. Enquanto batia boca a respeito da
identidade de Cerniga, sentira-se muito mais segura do que
no avião e, para falar a verdade, mais segura do que em
qualquer outro momento que se seguiu à conversa entre os
policiais que ouvira pela tubulação de ar. Calvin, no entanto,
não se deixou convencer facilmente.
— Continuo querendo saber por que os federais estão
participando nesse caso! — exigiu ele.
— Eu já lhe disse — respondeu Keene. Ele rapidamente
deixara de se divertir, voltando a ser o mal-humorado de
sempre. — Os objetos roubados foram levados para fora do
país e existem acusações de contrabando internacional.
Aparentemente um caso complicado demais para nós,
pobres policiais.
O tira uniformizado deixou-os em uma viatura policial
branca e preta. Deborah e os três homens foram no
Oldsmobile velho de Keene, estacionado do lado de fora da
esteira de bagagens, em sentido à rodovia Interestadual 85.
Os tiras sentaram-se no banco da frente; Deborah e Calvin,
no banco de trás, muito mais quente e intimista. Vários
minutos se passaram sem que ninguém falasse.
Deborah lançou um olhar a Calvin. De cenho cerrado, ele
olhava pela janela, mas ao sentir o olhar dela virou-se,
sorrindo.
— Não era assim que eu planejara recepcioná-la — ele disse.
Deborah simplesmente assentiu com a cabeça.
— Onde vai ser? — perguntou Keene, do banco da frente.
— Como assim? — perguntou Calvin, ríspido.
— Estou apenas perguntando onde a senhorita quer ser
deixada — disse Keene. Ele sorriu para Cerniga, que, pelo
que Deborah pôde ver, não mostrou nenhum tipo de reação.
— E eu tenho escolha? — perguntou ela.
— Quer ir à sua casa para tomar uma ducha? —
perguntou Keene. — Ou prefere que a deixemos no museu?
Ela não gostou da idéia de ter Keene por perto enquanto
tomava banho.
— Ao museu — ela disse. Naquela noite, quando fosse
para casa, poderia ficar sozinha para relaxar, o que era bem
melhor do que quebrar sua melhor louça ou ser
educadamente interrogada.
E se Calvin quiser ir com você?, ela perguntou-se.
Cale a boca.
Deborah olhou pela janela e mordeu o lábio até que o sorriso
desaparecesse.
— Vamos voltar ao assunto do motivo que a levou a sair
do país — disse Cerniga.
Desde o encontro no aeroporto, ele se tornara sucinto e até
belicoso. Deborah não sabia dizer se era por ter sido
obrigado a revelar seu status de agente, em vez de simples
detetive. Talvez seu estado de espírito tivesse começado
antes disso. Ela tinha a clara impressão de que ele não ficara
muito satisfeito com sua pequena excursão internacional,
apesar de ninguém, como rapidamente percebera, a ter
proibido de deixar o país.
— Já lhe disse — ela disse. Há mais de uma hora
conversavam no pequeno escritório do museu e ela já estava
começando a perder a paciência.
— Srta. Miller — ele disse. — Com base em suas
atividades até a presente data, não seria muito difícil acusá-la
por obstrução da justiça. Se continuar insistindo em não
cooperar, não terei outra escolha a não ser fazer exatamente
isso.
Ele não estava blefando. Estava bravo e talvez até se
sentindo um pouco humilhado pela maneira como ela
escapara, impedindo o andamento satisfatório do caso
durante sua ausência. Ela precisava se mostrar menos
defensiva. Afinal de contas, mesmo tendo se mostrado
pouco confiável no início, como agente federal ele era, com
certeza, um aliado para ajudar a desvendar o mistério da
morte de Richard. Se ela não o tratasse como tal, poderia
acabar sendo vista como suspeita.
— OK — ela disse. — Saí do país porque meu amigo foi
assassinado, porque havia alguém esperando por mim em
meu apartamento e porque pensei que o senhor não fosse
um tira de verdade. Fui para a Grécia porque o pouco que eu
sabia sobre as circunstâncias da morte de Richard apontava
para lá e eu queria ver se conseguia... Não sei.
— Dar uma de Nancy Drew — disse Keene, sem tirar os
olhos de seu bloco de anotações.
Deborah deu de ombros.
— Eu não sabia em quem confiar — ela disse. — Sair do país
fazia sentido.
— Só se for o tipo de sentido que se aprende numa escola de
museus — caçoou Keene. — Aqui fora, no mundo real, não
significa merda nenhuma.
— Não existe uma coisa chamada escola de museus — disse
Deborah —, mas se o senhor está se referindo a academia,
ou qualquer outro aspecto do mundo no qual trabalho, trata-
se de algo tão palpável quanto o que o senhor faz.
— Verdade? — perguntou Keene, movimentando a cabeça
como se estivesse a provocá-la para que se atrevesse a lhe
dar um soco.
— Sim, é verdade — ela disse, olhando-o com desprezo.
— Vamos repassar mais uma vez o que lhe aconteceu na
Grécia — disse Cerniga, falando alto e compassadamente e
jogando, pela terceira vez na última hora, água fria no bate-
boca petulante que acontecia entre Deborah e Keene.
Até agora, Deborah lhes dissera a verdade sobre sua viagem
à Grécia. Em todos os aspectos, menos dois. Primeiro, não
revelara a hipótese de que a máscara mortuária desaparecida
estava, na verdade, sendo usada por um cadáver
parcialmente preservado. A polícia ainda estava procurando
um artefato de valor estritamente monetário. O fato de que
estivera procurando pelo corpo de Agamenon lhe parecia
agora muito ridículo para ser contado. Se pudesse manter
segredo, ela poderia salvar a dignidade daqueles que haviam
sido ludibriados e acreditaram na história: Richard, o
Ministério da Cultura e Antiguidades do governo da Grécia,
Sergei Voloshinov e talvez até Marcus, mesmo que ela não
estivesse predisposta a lhe fazer concessões.
Ela tentara despertar o interesse de Cerniga pela morte do
russo, mas ele não engoliu, e Keene rolara os olhos quando
ela mencionara as letras referentes a "restos" como prova.
— Não se trata nem de coincidência — zombou ele. — Na
mesma noite, dois traficantes de drogas foram mortos no
Condado de Fulton.Você acha que eles botaram a cara na
rua para comprar também uma máscara mortuária? Talvez
uma peça decorativa para colocarem no suporte de armas de
sua Mercedes?
— O russo não estava envolvido — disse Cerniga, acabando
com o sarcasmo do colega da única maneira aceitável para
ele. — Esse caso está encerrado.
— Não entendo aonde esta conversa pode nos levar — disse
Calvin Bowers. Ele parecia cansado e um pouco desanimado,
como se tivesse dormido mal na noite anterior. — Por que
não retomamos a reunião amanhã de manhã, caso ainda
existam perguntas a serem respondidas por minha cliente?
Alguém bateu à porta do escritório. Cerniga abriu-a eTonya,
vestindo um macacão cinza e armada com uma vassoura,
colocou a mão sobre a porta.
— Estou indo embora e vou trancar tudo — ela disse. —
Querem alguma coisa antes que eu vá?
Ela não olhou para Deborah.
— Obrigado — disse Cerniga, balançando a cabeça. —
Não precisamos de nada.
Tonya inclinou a cabeça em sinal de respeito e começou a
sair. Mas parou a meio caminho, aparentemente presa de um
pensamento, e virou-se para Deborah.
— Srta. Miller — disse ela com formalidade. — Gostaria
de dar meu aviso prévio de duas semanas. Eu gostava muito
do sr. Dixon, mas acho que, desde que ele se foi, não existe
mais lugar aqui para mim.
Deborah teve de pensar rápido. A atitude da mulher negra
era esnobe e desafiadora, e o sorriso de Keene parecia
confirmar o que Deborah sentia. Mas havia alguma cautela
no olhar dela, alguma coisa que lhe dizia" Jogue o jogo...".
A segunda coisa que Deborah ainda não reportara à polícia
sobre sua viagem fora o encontro com Tonya na Grécia e
que ela também tivera um assunto pessoal a tratar — por
mais falso que pudesse parecer — relacionado às
antiguidades desaparecidas.
— Tudo bem — ela disse —, mas vou bloquear seu
pagamento se tudo não estiver em ordem quando você sair.
Estive fora por apenas alguns dias e, ao que tudo indica, você
mal pegou na vassoura durante esse tempo. Você apareceu
para trabalhar?
— Aproveitei a oportunidade para visitar minha família
em Louisiana
— disse Tonya, seu ar desafiador atingindo o ápice. — O
museu não estava aberto, e a polícia estava atrapalhando o
tempo todo. Sem querer ofender
— continuou ela, fazendo um gesto de cabeça para Keene.
— Não se preocupe — ele disse, achando graça.
Muito esperta, pensou Deborah, controlando a vontade de
sorrir. Ao chamar a atenção para Keene, ela desviou a
atenção das pessoas da pequena história que inventara. A
decisão de manter Tonya fora de seus relatos sobre a Grécia
fora correta.
— Srta. Miller? — disse Tonya, com tom arrogante, como se
ela fosse a curadora e Deborah a empregada. — Posso vê-la
hoje à noite antes de ir embora? Precisamos conversar sobre
alguns documentos e impostos.
— Claro — disse Deborah, defensiva.
Assim que a empregada — ou repórter — saiu, Deborah
perguntou-se o que ela ainda fazia ali e por que tentava
manter-se sob o radar do FBI, especialmente depois que as
duas mulheres haviam decidido que os tesouros que
estiveram procurando não passavam de falsificações. Bem, o
último comentário de Tonya deixara um tipo de reunião
marcada. Antes de ir para casa, ela saberia do que se tratava.
— Eu tenho uma pergunta — disse Keene quando a porta
fechou-se atrás de Tonya. — Se a senhorita tivesse roubado
a máscara, o que faria com ela?
Deborah pensou a respeito. Era provável que Keene
estivesse fazendo o que, de acordo com sua mente pouco
sutil, seria uma acusação, mas, mesmo assim, era uma
pergunta válida.
— Se eu não estivesse trabalhando para algum comprador
específico, acho que tentaria vendê-la no mercado negro —
ela disse. — Ou enterraria as peças até que as coisas se
acalmassem, até que os principais colecionadores parassem
de procurar por elas.
Keene levantou uma das sobrancelhas, ironicamente. Pode
ser que ele não estivesse esperando uma resposta verdadeira,
mas considerou-a útil.
— E se você estivesse trabalhando para um comprador
específico — disse Cerniga. — Vamos supor, o governo
grego, e não tivesse vindo aqui para roubar a máscara, mas
para inspecioná-la?
Deborah tentara ser vaga a respeito de suas conversas com
Popadreus, mas Cerniga percebera.
— Acho que faria o possível para que fosse autenticada —
disse ela.
— E como faria isso?
Deborah soltou um suspiro.
— O ideal seria que a máscara fosse examinada por um
especialista — ela disse —, apesar de que os homens em
questão pudessem ser, eles mesmos, especialistas. Depois, eu
a levaria a um laboratório onde testes verdadeiros pudessem
ser realizados.
— Certamente — disse Cerniga —, caso Richard
estivesse vendendo ou doando a peça, ele teria, antes de
mais nada, provado sua autenticidade ao comprador.
— Não, se não pudesse levá-la de um lado para outro com
facilidade — disse Deborah —, ou se estivesse tentando
mantê-la em segredo. Se ele pensasse que a máscara pudesse
transformá-lo num alvo para negociantes menos
escrupulosos, ele a manteria escondida, fornecendo o
mínimo de informações apenas ao comprador interessado.
De qualquer modo, ele não podia simplesmente enviar os
resultados dos testes de laboratório ao comprador como
prova de sua autenticidade. O comprador exigiria estar
presente aos testes.
— Eu não entendo — disse Keene. — Se a máscara é uma
grande peça de ouro, deve ter muito valor. Qual a
importância de ser tão antiga, ou do lugar de procedência?
— Não se trata apenas do valor intrínseco — disse Calvin. —
Estamos falando de valor cultural, da estética da máscara, de
suas ligações históricas e seus elos com mitos e lendas. É isso
que torna o valor da máscara incalculável.
— Continuo sem entender — insistiu Keene, orgulhoso com
o fato, como se pensasse que aquele monte de besteiras o
tornasse um homem e atirador melhor.
— Na verdade, não existe diferença entre o valor
intrínseco e o cultural — disse Deborah. — O ouro tornou-
se valioso apenas porque as pessoas decidiram gostar dele e
por se tratar de um metal relativamente raro. O mesmo
acontece com os diamantes. Não existe nada especialmente
mais valioso com relação aos diamantes do que em relação a
qualquer outro composto ou elemento raro, a não ser que as
pessoas decidiram gostar deles. Estamos falando da mesma
coisa. Mas enquanto o ouro e o diamante são continuamente
extraídos de muitos lugares, uma máscara mortuária de
Micenas é uma peça única. Não haverá mais nenhuma sendo
fabricada, mas como é impossível separar seu valor de sua
época, a quem pertenceu e assim por diante, o processo de
autenticação torna-se essencial.
— E como eles fazem isso? — perguntou Cerniga. — A
senhorita disse que fazem testes de laboratório. Como o quê?
Datação com carbono?
— É impossível datar ouro com carbono — ela respondeu.
— A datação com radiocarbono mede a metade da vida do
material, que já foi orgânico. Não funciona para trabalhos
com ouro; pelo menos não de maneira confiável.
— Que outros tipos de testes de laboratório existem?
— Nenhum que seja cientificamente confiável sem que
se tenha provas concretas sobre a origem.
— Então, por que diabos estamos perdendo tempo com
essa conversa?
— perguntou Cerniga.
— Existiam outras peças na coleção que poderiam ser
datadas com carbono — disse Deborah. — Artefatos de
cerâmica, por exemplo. Não sabemos o que havia junto com
a máscara no expositor. Caso existissem outros itens que
supostamente tivessem vindo do mesmo sítio arqueológico,
datá-los forneceria maiores parâmetros para definir a
autenticidade da máscara.
O que Deborah não mencionou foi que qualquer fragmento
do corpo humano encontrado com a máscara poderia ser
facilmente datado. Se Agamenon realmente estivera deitado
naquela pequena sala atrás da estante, um teste de
radiocarbono provavelmente determinaria a idade do tecido
até uns 100 anos, mais ou menos. Antigamente, uma
quantidade considerável de tecido teria de ser destruída
durante a execução do teste — coisa que os arqueólogos
detestavam fazer. Como alguém disse uma vez, "Aquele que
destrói uma peça para descobrir o que é abandonou o
caminho da sabedoria". Enfim, a MAS (accelerated mass
spectrometry) mudou tudo isso. Atualmente, os melhores
laboratórios (MAS machines custam milhões de dólares) têm
a capacidade de conseguir alguns resultados utilizando
apenas minúsculos fragmentos de material testável.
É evidente que tais laboratórios eram raros e distantes, e se
os gregos quiseram aplicar tais testes, tiveram um número
limitado de opções nos Estados Unidos. Felizmente para eles
e para ela, pensou Deborah, ela sabia da existência de um
desses laboratórios. Ele ficava a menos de duas horas de
carro dali.
Capítulo 54
— Quer uma carona até seu apartamento? — perguntou
Cerniga.
Foi uma pergunta estranha. Calvin estava de pé ao lado dele,
e Deborah percebeu a maneira rápida com que desviou os
olhos. Cerniga fora mais rápido do que ele. Com seu carro
ainda parado no estacionamento do Templo (a não ser que o
tivessem rebocado), Deborah não conseguiu pensar em
nenhuma razão para recusar.
— Antes de ir embora, preciso conversar com Tonya
sobre sua documentação empregatícia — ela disse. — Pode
ser que demore alguns minutos.
Ela não se atreveu a olhar para Calvin.
— Posso esperar — disse Cerniga.
Deborah deu um sorriso forçado e disse "Obrigada" antes de
começar a mexer em alguns papéis que estavam sobre sua
escrivaninha.
— Então, acho que vou embora — disse Calvin.
Deborah olhou para cima. Por um segundo, seus olhos se
encontraram em frustração silenciosa.
— OK — ela disse. — Imagino que nos veremos amanhã.
Ela não sabia o que ele estava pensando, ou o que estivera
esperando que acontecesse naquela noite — nem mesmo
tinha certeza do que ela própria estivera esperando —, mas
ele ficara claramente desapontado com a gentileza
profissional de Cerniga.
— Certo — Calvin disse. Hesitou por um segundo como
se quisesse dizer alguma coisa, mas estava apenas matando
tempo. Quando Cerniga virou-se para olhá-lo, ele começou
a afastar-se. O som da porta fechando-se atrás dele foi tão
definitivo que Deborah sentiu vontade de gritar.
— Você queria ver a empregada?
— Sim — disse Deborah, voltando à realidade. — Estarei
de volta assim que puder.
Com essa desculpa, ela saiu da sala o mais rápido que pôde,
sem correr. Calvin estava quase chegando à porta do saguão.
Ela o chamou pelo nome.
Ele parou e virou-se para ela. Deborah lembrou-se da
primeira conversa que tiveram e de como ele a irritara com
seu comentário de que a machadinha no expositor a menos
de cinco metros de onde se encontravam era uma arma que
pertencera a uma cultura bárbara. A lembrança fez com que
sorrisse.
— O que foi? — ele perguntou.
— Oi — disse Deborah. — Sinto muito ter...
Ela fez um gesto vago na direção do escritório.
— Certo — ele disse —, não tem problema. A gente se vê
amanhã.
— Sim — ela disse, de repente sentindo-se uma garotinha
idiota. — OK.
Ele ficou algum tempo parado, a parte de cima de seu corpo
num leve balanço, como se estivesse tendo impulsos
contraditórios. Em seguida, afastou-se com um sorriso de
desculpas.
— Amanhã — ele disse.
— Sim.
— Vou ficar esperando.
Ela olhou-o ir embora, incerta de querer mais alguma coisa
no momento.
Tonya estava limpando a pia da cozinha. Quando viu
Deborah entrar, foi rapidamente à seu encontro, olhou por
cima dos ombros dela e fechou a porta.
— Oi — ela disse, inclinando-se num abraço breve. — Como
vai, tudo bem?
— Sim — disse Deborah. — Só um pouco cansada.
— Aposto que sim — disse Tonya. A expressão que tinha no
rosto era a de uma amiga preocupada, e Deborah pegou-se
perguntando como o relacionamento delas, que sempre lhe
parecera tenso, fora alterado pelo encontro que tiveram em
Micenas. — Ouça — continuou ela, com voz apressada —,
sinto muito pelo que houve há pouco. Diga-me que não
mencionou o nosso encontro na Grécia.
— Pode ficar tranqüila, não falei nada.
— Ainda bem, obrigada. — disse Tonya, expressando seu
alívio com o corpo todo.
— Por quê? — perguntou Deborah. — Você sabia que
Cerniga trabalha para o FBI, certo?
— Sim — respondeu Tonya. — Ele me contou assim que
voltei, como se isso fosse fazer com que eu lhe contasse
todos os meus segredos. Não acreditei, mas liguei para
verificar. Tenho quase certeza de que ele fala a verdade. Mas
uma coisa me deixa intrigada. Por que os federais estão
envolvidos no caso? Isso não faz muito sentido.
— O corpo... e é bom que saiba que mencionei apenas a
máscara, não disse nada sobre o corpo... foi trazido de fora,
provavelmente contrabandeado em águas internacionais.
Isso transforma o caso em um crime federal, não é?
— Claro — disse Tonya —, mas quando eles ficaram
sabendo disso?
Ao entender o que Tonya queria dizer, Deborah ficou
calada, ouvindo o eco de seu próprio pânico como quando
ouviu a conversa entre Keene e Cerniga pelos dutos de ar do
banheiro.
— Eles estão aqui para investigar o assassinato, certo? —
perguntou Tonya. — Eles vieram juntos. Naquele momento
eles não sabiam coisa alguma sobre contrabando e peças
roubadas. Pelo menos não disseram nada. Então, por que o
FBI está envolvido? Liguei para um amigo que trabalha na
delegacia do Condado de Clayton e perguntei-lhe quais são
os motivos mais comuns que justificam o envolvimento de
federais em casos de assassinato. Sabe o que ele me disse?
— O quê?
— Crimes de racismo — ela disse.
— Crimes de racismo?
— Ele não hesitou nem um minuto. Foi a primeira coisa que
lhe saiu da boca. Crimes de racismo.
E ali estava, novamente, aquela sensação de estar
completamente fora dos trilhos, procurando pistas erradas,
montando as peças do quebra-cabeça errado...
— Mas como o assassinato de Richard poderia ser
considerado crime de racismo? — perguntou Deborah,
espantando a insegurança familiar que sentia. — Ele era
homem, branco e, pelo que eu saiba, não era homossexual.
A mulher dele morreu há muitos anos, mas... Não, ele não
era homossexual.
— Mas e se o crime de racismo que eles estão investigando
não tiver nada a ver com Richard? — ponderou Tonya. — E
se aconteceu há muitos anos?
Ah, meu Deus, pensou Deborah, aí vem.
— Seu pai? — ela perguntou. — Você acha que eles estão
investigando a morte de seu pai?
— Estou apenas especulando — disse Tonya, pensativa. —
Fiz um monte de perguntas. Entrei em contato com as
autoridades militares e pensei até em exumar o corpo dele.
Pode ser que alguém tenha decidido descobrir.
— Então, por que manter a investigação em segredo?
Especialmente de você?
— Você me pegou — ela afirmou. — Mas, por enquanto,
prefiro guardar as coisas pra mim mesma. Entende o que
quero dizer?
Lentamente, Deborah assentiu com a cabeça, pensativa, sem
ter nada mais a dizer. Crime de racismo? Ela não acreditava
naquela história, mas sabia que dizer isso a Tonya colocaria
em risco a recente amizade entre elas. Para a repórter
disfarçada de empregada, a história da morte do pai era
essencial e estava ligada a assuntos profundamente
emocionais. Deborah conhecia Tonya o suficiente para saber
o tipo de reação que ela teria caso demonstrasse qualquer
tipo de ceticismo sobre o assunto. Ela se tornaria
recalcitrante e defensiva, secretamente magoada e ofendida,
o que faria com que se fechasse como uma ostra.
Alguma novidade?
Deborah ficou ali parada, em silêncio, com expressão grave.
— Falando em manter as coisas em segredo — disse
Tonya, tornando-se repentinamente íntima e surpresa —,
reparei que, ultimamente, você tem usado maquiagem e
perfume... Pergunto-me quando você percebeu que a
profissão que escolheu não lhe tirará as credencias caso
resolva, de vez em quando, parecer mais feminina.
Deborah ignorou o comentário, corando. Ela começara o dia
com uma fina camada de batom e algumas gotas de Chanel
no 19, produtos que estavam guardados e sem uso quase
tanto tempo quanto o ouro de Schliemann fora enterrado
em Micenas.
— Já houve um tempo — disse Deborah com arrogância
brincalhona — que as empregadas conheciam seu lugar.
— E aqueles eram os bons tempos — disse Tonya. Ela
pontuou seu comentário com uma risadinha de desprezo e
saiu da cozinha levando um balde e um escovão.
Deborah sorriu e pegou-se voltando à conversa anterior e
como ela poderia causar problemas no futuro. Crime de
racismo?
— E por falar nisso — disse Tonya, enfiando a cabeça pela
fresta da porta. — Aquela cidade que você disse ficar
próxima da fronteira com a Suíça... como era mesmo o
nome?
— Magdeburgo.
— Sim, foi o que pensei — disse Tonya. — Mas não é. Pelo
menos, não que eu pudesse encontrar. Existe uma
Magdeburgo perto de Berlim, mas não faria muito sentido
tentar contrabandear coisas para uma outra cidade distante
apenas algumas milhas, passando pelos Aliados que estavam
nos calcanhares deles, certo?
— Acho que não — disse Deborah, franzindo o cenho. —
Talvez exista mais coisa a ser descoberta.
— Talvez — disse Tonya ao sair.
Deborah ligou o computador do escritório, entrou na
internet e procurou por "Magdeburgo" no Google. A
primeira página de resultados veio em alemão. Uma delas
parecia ser sobre um teatro, outra era um site turístico e
nenhuma delas disponibilizava mapas localizando a cidade
na Alemanha. A opção oferecida pelo mecanismo de busca
para localizar "Magdeburgo"não ajudou muito. Entretanto, a
próxima página disponibilizou o que parecia ser um site da
câmara do comércio, surpreendentemente em inglês. Um
link para direções a levou a um mapa.
Tonya estava certa. Magdeburgo ficava no meio do país,
aproximadamente 160 quilômetros a sudoeste de Berlim, na
chamada província Saxony-Anhalt. É evidente que mandar
o corpo naquela direção seria o mesmo que o mandar para as
mãos dos aliados. E, caso a intenção dos alemães fosse
simplesmente afastá-lo dos russos que estavam se
aproximando pelo leste, continuava sem explicação o fato de
ter ido parar a mais de 400 quilômetros ao sul.
Retornando à sua busca, Deborah tentou uma outra página.
Um único artigo em inglês destacou-se do resto. Ela clicou
no link e seu espanto aumentou ao ler:
Sangue e Florescência
Novas Evidências sobre a Atrocidade de Magdeburgo
Durante a construção de um novo edifício, em 1994, os operários
encontraram esqueletos de 32 corpos, aparentemente todos de
jovens assassinados ao mesmo tempo. Como a sepultura parecia
datar de algum momento entre 1945 e 1960, inicialmente pensou-se
que se tratasse da descoberta da evidência de mais uma das
atrocidades cometidas pelos nazistas, apesar de não ser comum que a
Gestapo cavasse uma vala comum no centro de uma cidade.
Entretanto, evidências mais recentes sugerem que a atrocidade não
ocorreu no final da Segunda Guerra, mas sete anos mais tarde, e que
os criminosos eram membros da polícia secreta soviética.
Embora tenha se tornado comum a análise de pólen em exames
forenses de corpos para determinar a causa da morte, o biólogo
Reinard Szibor, da Universidade Otto von Guericke, de Magdeburgo,
usou pólen nesse caso para demonstrar que as vítimas morreram no
início do verão. Szibor descobriu que os crânios de sete das vítimas
continham pólen de bananeiras, limeiras e centeio, plantas cujo
pólen é disseminado nos meses de junho e julho, coincidentemente
depois da queda do nazismo, em 1945.
Isso coloca a responsabilidade do crime inteiramente nas
costas da inteligência soviética.
Isso era tudo. A perplexidade de Deborah aumentou. Por
que a culpa caía automaticamente sobre os soviéticos? Qual
era a relação daquela história com Voloshinov, o homem
supostamente sem-teto que morrera próximo ao museu:
seria aquele massacre relevante à busca que ela realizava para
descobrir os assassinos de Richard e a trilha para as
antiguidades falsificadas que, aparentemente, levaram os
matadores a Richard? Não havia razão para pensar que sim,
mas, de alguma maneira, todos aqueles cadáveres pareciam
estar ligados, como se cada osso que ela descobria às cegas
fosse parte de uma criatura maior e mais estranha, cuja
verdadeira natureza pudesse ser desvendada apenas quando
ela tivesse uma visão geral do esqueleto completo.
Aquilo fazia tanto sentido quanto a nova idéia de Tonya
sobre crimes de racismo, apesar de ela estar evitando pensar
no assunto. Enquanto caminhava ao encontro de Cerniga,
Deborah disse a si mesma que aquela hipótese não estava
baseada em nenhuma forte evidência. Tratava-se apenas de
uma observação feita pelo tira amigo de Tonya sobre a
participação dos federais em crimes de assassinato. Não
trazia qualquer prova concreta. Mas ela se pegou lembrando
do rapaz magro que, por duas vezes, tentara matá-la na
Grécia: o olhar cruel e arrogante, a cabeça raspada, as
tatuagens... Crime de racismo?
Cerniga a levou para casa num silêncio empedernido e
profissional. Ele esperou atrás dela até que abrisse a porta do
apartamento e parou à soleira da porta enquanto ela se
certificava de estar realmente sozinha e de que tudo estava
em ordem. Ela não percebeu isso até que ele fosse embora.
A princípio, tudo lhe parecera normal. Depois de estar de
volta por pouco mais de uma hora, porém, Deborah
começou a notar alguns pequenos detalhes incongruentes:
roupas que ela havia jogado no cesto de roupas sujas agora
estavam penduradas, uma gaveta de escrivaninha trancada,
livros fora de lugar nas estantes. Marcus lhe dissera que não
mexera em nada e ela acreditara nele. Caso ele tivesse lhe
dito a verdade, alguém mais estivera lá desde que partira e,
aparentemente, procurando alguma coisa. Fizera tudo com
calma, como se soubesse que ela não estava lá e não voltaria
logo. E fora bem-sucedido ao encobrir o que buscava. Se ela
não tivesse uma natureza perversamente controladora,
pensou, desanimada, era possível que não notasse as coisas
fora do lugar. No entanto, ela não tinha a menor idéia do
que procuravam.
Ela ligou para Cerniga e lhe contou o que descobrira, mas
disse que não queria ver ninguém. Ao dar uma nova olhada
pelo apartamento, usou um martelo que tirou de uma gaveta
da cozinha para afundar uns pregos há muito cobertos de
tinta na porta.
— É provável que eu leve uns 10 minutos para sair de
casa amanhã de manhã — resmungou ela, deixando o
martelo sobre a mesa, onde não poderia deixar de vê-lo.
No silêncio do apartamento, com a pesada umidade de uma
noite de verão em Atlanta ao redor, ela começou a
perguntar-se se fazia a mais remota idéia do motivo da morte
de Richard Dixon. Na Grécia, tudo lhe parecera mais claro,
apesar de tudo aquilo agora lhe parecer distante e longínquo,
uma distância no tempo e no espaço que fazia com que as
experiências vividas lá fossem tão estrangeiras e exóticas
como as próprias ruínas. Lá, seus problemas e confusões
pareciam apropriados, mas ela tivera esperanças de, ao voltar
para casa, encontrar certa clareza que estava relacionada à
familiaridade do ambiente. Entretanto, agora que estava ali,
com a estranheza da presença dos policiais ainda
acontecendo no museu, com as teorias estranhas de Tonya
cercando-a e com o buraco que a morte de Richard deixara
em tudo o que antes lhe fizera sentido como lar, ela sentia-
se completamente perdida.
Num impulso, Deborah pegou o telefone e discou.
— Alô?
— Oi, Calvin — ela disse. — É Deborah. Peço desculpas por
já ser um pouco tarde.
— Pensei que uma das coisas boas de sua volta ao país fosse o
fato de eu poder voltar a dormir bem — ele disse.
Ela sorriu, o desconforto dissipando-se ao sentir o prazer na
voz dele.
— Não me diga que você precisa do sono da beleza — ela
brincou. O tom que usara implicara justamente você. Ela
mordeu o lábio enquanto ria.
— Como você parece estar acordada o tempo todo,
independentemente do continente onde esteja, pode
continuar — ele disse. — Ao que tudo indica, esse negócio
de sono da beleza não passa de mito.
Ela corou e mudou o rumo da conversa antes que pudesse
estragar tudo ao usar de sarcasmo, dizendo que ele não
perdia uma oportunidade de flertar.
— Você achou estranho que os federais tenham vindo para
investigar a morte de Richard antes que alguém dissesse
qualquer coisa sobre contrabando ou dos tipos de crime que
envolvem estados e nações diferentes?
— Na verdade, eu não havia pensado nisso — ele disse,
tentando focar-se rapidamente. — Mas agora que você
mencionou o fato... Em que está pensando?
— Você consegue pensar em alguma razão por que a morte
de Richard pudesse estar ligada a algum crime de racismo?
Ele ficou em silencio por um segundo, como se lhe tivessem
tirado o chão debaixo dos pés.
— Crime de racismo? — ele perguntou. — Contra Richard?
Como?
— Eu não sei — disse ela, humilde. — Estava apenas
especulando.
— Um pensamento bem estranho para se ter no meio da
noite — ele disse.
Novamente, ela pôde ouvir aquele sorriso. Pelo menos ele
não dissera "cabecinha oca".
— Eu sei — ela disse, afastando a idéia por enquanto. —
Sinto muito. Não devia ter incomodado você.
— Você não me incomoda — ele disse. — Gosto de
conversar com você. Antes... com os tiras... quer dizer... —
ele hesitou. — Assim é melhor.
— Sim — ela disse.
— Você está bem? Quer que eu vá até aí?
A hesitação dela foi um pouco longa demais antes de dizer,
distraidamente, que estava bem e que não havia necessidade.
Que estava segura em sua casa.
— Se você tem certeza... — ele disse.
— Você gostaria de pegar uma estrada amanhã? — ela
perguntou. — Primeiro, preciso ter certeza de que Cerniga
não vai precisar de mim, mas estava pensando seriamente
em fazer uma viagem.
— Ah, é? — ele disse. — Claro. Para onde?
— Atenas — ela disse.
— Você vai voltar à Grécia? — ele perguntou, bastante
chocado. Mostrou-se preocupado e até mesmo em pânico.
— Atenas, Geórgia — ela disse, rindo. — Cidade dos Geórgia
Bulldogs e onde se encontra o Center for Applied Isotope
Studies.
— O que diabos significa isso? — ele perguntou, mostrando-
se aliviado.
— É lá que fica uma máquina enorme e caríssima que pode
muito bem ter sido a primeira parada para alguém que
acreditava que se tratava do corpo de Agamenon quando
saiu do quarto de Richard.
— O corpo de quem? — ele perguntou.
E ela lhe disse.
CAPÍTULO 55
Logo pela manhã, Deborah conversou com o agente Cerniga
por telefone. De acordo com ele, não precisaria falar com ela
hoje. Ela podia dar andamento aos trabalhos que vinha
realizando "na área", mas precisava deixar o celular ligado e
não podia sair do estado. Deborah concordou e conseguiu
esquivar-se de problemas posteriores, aplicando esquisitices
em vez de simples mentiras.
Por que você simplesmente não lhe conta sobre o
laboratório, que pode ser importante se concentrar num
lugar onde os gregos — se é que foram realmente os gregos
a levar o corpo mascarado — visitaram? — ela perguntou a si
mesma.
Porque talvez fosse apenas um beco sem saída. Porque as
peças roubadas não eram suficientemente valiosas para ser
procuradas. Porque ela suspeitava que Cerniga ainda
mantinha segredo sobre o verdadeiro veio de sua
investigação. Apesar de serem argumentos verdadeiros, não
constituíam a verdadeira razão. A verdadeira razão era que,
se fosse descoberto que Richard pusera tanta energia numa
coleção que não valia nem o espaço de exposição que
ocupava, sua reputação iria pelo ralo.
Tem certeza de que não é por que você está curtindo dar
uma de Nancy Drew?
Não, pensou ela, desafiadora. Não é isso.
Ela ligou para Calvin e perguntou se podia apanhá-lo em
frente ao se escritório. Antes de sair com ela, ele tinha
trabalho a fazer no escritório. Ele conseguira fazer que o
passeio deles merecesse ser brindado com champanhe e um
cesto de morangos, e Deborah pegou-se prestando atenção a
detalhes para se fazer bonita para ele, uma coisa que não
fazia parte de seu repertório. Colocou brincos e passou
perfume, coisas que fez com uma sensação de alegria
adolescente, que era tão estranha quanto verdadeira.
Experimentou um batom mais escuro, mas aquilo seria um
passo grande demais e ela limpou os lábios, sentindo-se
constrangida tanto por ter cedido ao impulso quanto por ter
se acovardado.
Deus do céu, ela pensou, odeio essa história de fazer a corte.
Ou seja qual for a palavra que o século XX inventou para
isso. Todo aquele jogo cuidadoso para cima e para baixo, os
sorrisos amarelos, as conversas movidas a associações de
palavras, as decepções menores, as indiferenças estudadas e
o exaustivo clima de caçada. Sim, é isso aí. Cortejar é como
jogar tênis para perder — conseguir um ESCORE respeitável
de modo que não pareça que você entregou o jogo, mas
acaba perdendo do mesmo jeito. É como jogar tênis de salto
alto e usando burca.
Ou, disse uma outra voz vinda dos cantos mais escuros de
sua mente, ela estava apenas com medo da realidade para a
qual apontavam todas as evidências: relações amorosas
(palavras aterrorizantes) e a mais absurda das vacas sagradas,
ou seja, sexo?
Quem liga para isso? Ela pensou com seus botões, fugindo do
pensamento como se corresse o risco de ser eletrocutada por
ele. Vamos dizer apenas que eu odeio essa história de fazer a
corte e paramos por aí, certo?
Certo.
Decidida, ela optou por um vestido de verão profissional o
bastante para justificar sua visita ao laboratório e ao mesmo
tempo casual, como se ela o tivesse simplesmente tirado do
cabide sem prestar muita atenção.
O que provavelmente devesse ter feito...
Deborah foi até o carro determinada a não se olhar no
espelho.
O escritório de Calvin ficava em um edifício de vidro que
parecia o iridescente azul de uma chapa quente. Ela podia
ser vista através do Parque Centenário, em direção ao
Centro da Coca-Cola e o anúncio iluminado de uma das
áreas mais caras da cidade, onde o preço dos terrenos
começava a competir com os de Boston e Nova York.
Deborah, que normalmente não se deixava impressionar por
coisas do tipo e considerava a opulência contrária aos valores
que cultivava, ficou espantada ao perceber que sentira uma
pontada de prazer ao ver Calvin sair, sorrindo, pelas portas
de vidro fume do prédio: um daqueles que ficava bem com
suas linhas graciosas e simples.
— Belo edifício — ela disse, quando se afastavam.
Ele deu um meneio de ombros.
— É muito escuro por dentro — ele disse. — E os
elevadores não são suficientes. Mas moro bem ali, na
esquina.
Sorrindo, ela deslizou pelos semáforos até chegar à rodovia
do norte, perguntando-se se aquilo seria um prelúdio ou um
convite.
Depois de 45 minutos na I-85, cruzaram a Rota 316 em
direção a Atenas, falando de livros, cinema e comida sem
jamais fazerem qualquer referência a Richard ou à missão
que desempenhavam. A cidade os surpreendeu, mostrando-
se por inteiro — depois de quilômetros de floresta de
pinheiros — como a deusa que lhe dera o nome e nascera, já
adulta, da cabeça de Zeus. Seis meses antes, Deborah
participara de um simpósio na universidade de lá e ainda
tinha com ela o mapa do campus. Consultou o mapa apenas
uma vez antes de encontrar a Riverbend Road e o CAIS
(Center for Applied Isotope Studies).
Como era verão, o lugar não tinha o fervilhar dos alunos que
habitavam o campus durante o período de aulas, mas o
Center for Applied Isotope Studies, além de ser integrado à
universidade, atuava também comercialmente, e por isso
estava sempre movimentado. Ao falar com a recepcionista,
Deborah confirmou ter ligado antes para marcar uma
reunião e que trouxera uma amostra que precisava de
preparo. Sim, Deborah disse, estava preparada para pagar as
taxas extras para o preparo do material, e não, não estava
interessada em contador de cintilação líquida, apenas na
datação com carbono. Enquanto ouvia, Calvin ficou
esperando com cara séria e sentindo-se um peixe fora
d'água. Ao levar os detalhes que anotara ao laboratório, a
recepcionista sorriu para Calvin e ele retribuiu, um pouco
nervoso.
— Eu não entendo — ele disse. — Você tem uma amostra?
— Nada relevante — ela respondeu. — Fique calmo.
O técnico que veio conversar com eles era um jovem de
pele amarelada e barba aparada. Talvez fosse do Oriente
Médio, quem sabe até norte-africano, mas falava sem
qualquer sotaque.
— Eu sou o dr. Kerem — ele disse. — Por favor, venham
comigo. A senhorita trouxe uma amostra?
Deborah mostrou um tubo de ensaio fechado, contendo o
que parecia ser um fragmento de madeira um pouco maior
do que uma farpa.
— Isso é suficiente? — perguntou Calvin. Deborah olhou
para ele.
— Mais do que suficiente — disse o técnico. — E precisa de
preparo?
— Por favor — disse Deborah. — Estamos quase certos de
que se trata de um fragmento de um galeão do século XVI,
mas precisamos de confirmação científica.
— Muito bem — ele disse, levando-os a uma enorme sala
retangular com luzes fluorescentes que zuniam com a carga
constante de eletricidade.
— Os testes são feitos com essas máquinas? — perguntou
Deborah.
O equipamento da sala era uma série de consoles, cilindros
de metal, instrumentos de complexidade estonteante,
quilômetros de fios coloridos — a maior parte deles
encapsulados em caixas de arame com arestas de metal
pintado de azul. De repente, Kerem desabrochou num
sorriso largo e orgulhoso, como se tivesse recebido um
elogio pelo desempenho de um filho na escola.
— É um National Electrostatics 1.5SDH-1 Pelletron
Accelerator Mass Spectometer — ele disse. Você pensou
que fosse bem maior, certo?
— É verdade — disse Deborah, achando que aquela era a
resposta desejada.
— 500 kV — disse Kerem, ainda brilhando de orgulho. —
Pode medir concentração isotópica. Essa beleza fará os
Goliahs entrar na competição, e eu estou dizendo detecção a
nível de 1/2%.
Deborah e Calvin se mostraram devidamente
impressionados.
— Isso mesmo — disse Kerem, como se alguém o tivesse
contradito. Apontou para os vários componentes,
explicando nomes e funções, aparentemente supondo que
Deborah soubesse muito bem do que ele estava falando.
— Uma fonte íons — ele disse, indicando o conteúdo de
uma das áreas encapsuladas. — Aquilo — ele disse,
apontando para cada seção do aparato — é o ima de injeção,
aí temos o acelerador pelletron também, o ima de análise,
copos de Faraday, analisador de eletrostática, e o detector de
partículas Carbono 14. Se tiver menos de 60 mil anos, nós
pegamos.
— Certo — disse Deborah. — Excelente.
Kerem esticou a mão para o tubo de ensaio contendo o
fragmento de madeira.
— Pode deixar isso comigo — ele disse. — Cuide da
burocracia na recepção e eu entrarei em contato assim que
os testes forem feitos. Vai custar 400 dólares.
— Quanto tempo até que eu tenha os resultados?
— De dois a três meses — ele disse. — É urgente?
O desapontamento tomou conta da expressão de Deborah.
— Mais ou menos — ela disse.
Duas semanas?
Ela pensou rápido.
— E os outros resultados, quando ficam prontos? — ela
perguntou.
— Outros resultados?
— Sim — ela disse, olhando para Calvin. — Há pouco mais
de uma semana, nosso museu mandou algumas amostras.
Restos mortais e alguns fragmentos de cerâmica. Foram
trazidos por uns homens gregos. Talvez pudéssemos pegar
os dois resultados no mesmo dia.
Ela prendeu a respiração. O técnico franziu o cenho e virou
as páginas em sua prancheta.
— Não vejo nenhuma outra amostra de sua instituição em
pendência — ele disse.
— Pode ser que tenha dado entrada com o nome de Dixon
— insistiu ela. — Richard Dixon. Ele é o diretor do museu e
o responsável pelas despesas maiores.
Outra pausa. Deborah mordeu o lábio.
— Dixon — ele disse. — Sim, aqui está. — Pagaram uma taxa
extra para apressar o processo e os resultados estarão prontos
amanhã à tarde. Mas o telefone de contato é diferente.
Teremos de enviar por correio.
— Tudo bem — disse Deborah, seu coração aos pulos. —
Talvez possamos passar por aqui amanhã, antes de enviá-los.
O sr. Dixon está realmente ansioso para ficar sabendo de
tudo assim que os resultados ficarem prontos. Temos de
tomar uma decisão importante sobre um expositor.
— Tudo bem — disse Kerem. — A senhorita está
hospedada na cidade?
—Vou daqui para o hotel — disse Deborah, evitando olhar
para Calvin.
CAPÍTULO 56
Eles pediram dois quartos. Apesar disso, Deborah achava
que a chance de que acabassem usando apenas um eram
bastante grandes. O pensamento deixou-a nervosa e
desastrada. Não tinha certeza do que ele estava pensando e
supôs que ele também deveria estar imaginando a mesma
coisa sobre ela. Suas inseguranças — que eram sempre a voz
mais alta em situações como esta — aumentavam sua
ansiedade.
Situações como esta.
Aquilo era uma piada. Parecia até que acontecia toda
semana. Na verdade, havia sido... já fazia muito tempo para
ser capaz de lembrar. Ela espantou aquele pensamento e
ficou observando-o comer enquanto comia.
Deborah teria ficado feliz com um sanduíche e uma cerveja,
que Atenas, sendo uma cidade de estudantes, tinha um bom
estoque. Talvez, ela pensou, pudessem pegar uma balada
local com som no estilo do REM e do B-52s. Entretanto,
apesar de não saber exatamente quais, Calvin tinha outros
planos que pareciam estar direcionados a dar um requinte
maior à noite.
Ele reservara uma mesa no que deveria ser o bistrô mais caro
e elegante da cidade, onde poderiam ter certeza de não
encontrar nenhum estudante. Pediram carneiro e ele
declarou ser um ótimo bordo, dando-se ares de entendido
no assunto. Deborah resistiu ao impulso de pedir uma
cerveja apenas para impor seu ponto de vista — em parte
porque, no momento, não tinha tanta certeza de seu ponto
de vista e, em parte, porque se divertia ao vê-lo dando um
toque de classe ao encontro deles. Apesar disso tudo, a
formalidade imposta pelo bistrô fez que Deborah se sentisse
desconfortável. O lugar, que mais parecia um templo do que
um restaurante, era surpreendentemente silencioso e
tornava qualquer comentário carregado de significados.
Incapaz de pensar em alguma coisa que tivesse significação
especial, ela optou por abdicar do controle e deixar que ele
falasse.
Ele lhe contou sobre seu trabalho, enfatizando o tédio geral
em vez dos detalhes — o que a fez sentir-se aliviada — e
sobre sua paixão pela pesca com iscas artificiais, igualmente
dispensando os detalhes.
— É apenas uma questão de estratégia — ele disse. —
Escolher a melhor isca e condições para cada peixe. Ou,
melhor ainda, confeccionar suas próprias iscas, sempre
inventando novas, aprendendo a enganar os peixes.
Ela sorriu.
— Sei que pode parecer fácil para um homem com meu
salário — ele disse —, mas pode acreditar: enganar uma truta
marrom num rio de corredeiras... é melhor do que qualquer
negócio ou contrato que possa surgir, independentemente
da grana.
Deborah gostou de ouvir aquilo.
— Então você é um estrategista — ela disse.
— Eu gosto de buscar excelência — ele disse, assentindo
com a cabeça e sorrindo de modo a fazer com que o
conteúdo da conversa se tornasse totalmente irrelevante. —
Gosto de caçadas sobre as quais se tenha de pensar, planejar.
— Uma caçada aos peixes? — ela perguntou.
— O que mais, além disso? — perguntou ele,
sorrindo. Ela riu e ficou um momento a analisá-lo.
— Você me lembra um pouco Richard — ela disse.
Ele franziu a testa, sem saber se o comentário era um elogio.
— Como assim?
— Acho que é só uma sensação — ela disse, corando um
pouco, desejando ter ficado de boca fechada.
— Continue.
— Bem, vocês dois têm um tipo de esperteza brincalhona
— ela disse, procurando as palavras adequadas. — Quer
dizer, um tipo de inteligência que pode ser um pouco
desconcertante.
— Para você? — Ele riu. — De maneira alguma.
— Não quero dizer que seja exatamente intimidadora —
disse ela. — Trata-se de um tipo de consideração, talvez até
premeditação, que mantém as pessoas à distância, como se
vocês estivessem o tempo todo analisando; como se as
pessoas fossem pequenos peixes e vocês estivessem cuidado-
samente lançando suas iscas, ou seja lá o que fazem.
— Amarrando — ele riu.
— Que seja.
— Não sei quanto a mim — ele disse —, mas entendo o que
você quis dizer sobre Richard. Algumas vezes, quando ele
olhava para você, era como se soubesse de todos os seus
segredos.
— E você tem muitos segredos?
— Nenhum — ele disse, afastando o momento pensativo
com um sorriso.
— Não acredito — ela disse.
— De qualquer maneira — ele disse, voltando à conversa
anterior —, não sei se gosto dessa versão que me coloca
como astuto e tolerante, por mais inteligente que eu possa
parecer. Não me parece muito saudável.
— Ah, eu não sei — ela fez um meneio de ombros e olhou
para longe, como se aquilo não importasse. — Tem certo
fascínio.
Ela pegou a taça de vinho e, com os olhos baixos, deu um
longo gole.
Quando voltaram ao hotel, ficou claro que ainda não sabiam
como terminaria a noite. Haviam flertado um pouco, sempre
escapando para a defesa assim que alguma coisa mais
profunda ou física se tornava visível no horizonte. Deborah
disse a si mesma que tinha tido o suficiente, que, por não ter
prática, era melhor avançar devagar e que não conhecia bem
o cara. Mas quando, no corredor em frente da porta do
quarto dela, ele inclinou-se para beijá-la, ela entregou-se
inteiramente ao momento.
Depois de entrarem no quarto, beijaram-se um pouco mais,
primeiro docemente e com cautela; depois, com mais
desejo. Mesmo assim, quando as mãos dele buscaram os
botões de sua saia, ela sentiu, quase contra sua vontade, seu
corpo enrijecer. Ele parou e olhou para ela. Deborah corou,
insegura do que dizer ou fazer, desejando que os olhos dele
não estivessem grudados nos dela. O olhar silencioso de
Calvin deixou-a ainda mais desconfortável, fazendo com que
desviasse o olhar, enlouquecida pela sensação dos olhos dele
sobre ela, até que ele esticasse a mão e apagasse a luz do
quarto.
As cortinas pesadas bloqueavam qualquer réstia de luz. Seu
coração deu um salto na escuridão, como se ela estivesse de
volta à passagem micênica, penetrando na antiga cisterna.
Ele continuou a beijá-la e, lenta e cautelosamente, buscou
permissão com as mãos, começando a mover-se sobre ela,
que, protegida pela liberdade da escuridão, sentia-se como se
tivesse soltado de si uma velha casca. Era como estar bêbada
ou de férias, sem lenço e sem documento. Ela puxou-o para
perto, controlando uma vontade inesperada e assustadora de
chorar.
CAPÍTULO 57
Quando Deborah acordou, Calvin estava ocupado,
procurando um lugar para tomarem café da manhã. Por
alguns minutos, ela simplesmente ficou ali, consigo mesma,
preocupando-se de maneira mais ou menos específica sobre
como seria seu dia. Tomou uma ducha, vestiu-se e,
enquanto olhava para o nada através do jornal, ele voltou.
Tomaram café da manhã com omeletes e waffles num
pequeno restaurante. As omeletes estavam excelentes, os
waffles, suspeitosamente frios no meio, eram, sem dúvida,
industrializados. Comeram apressadamente e falaram pouco,
como se estivessem com pressa. Na verdade, ainda tinham
algumas horas antes que os resultados ficassem prontos, mas
não podiam ficar no hotel, neste ou em qualquer outro
restaurante. Em cinco minutos, Deborah olhou três vezes
para o relógio. Acabaram concordando em esperar no
laboratório. Era melhor que ficassem sabendo assim que os
funcionários estivessem prontos a dizer-lhes alguma coisa.
Deborah tinha a sensação de ter voltado à adolescência,
esperando que os médicos que operavam seu pai saíssem do
centro cirúrgico. Ficara seis horas na sala de espera, ao lado
de um homem sonolento, incapaz de pregar os olhos e
olhando tão atentamente o avançar do ponteiro de minutos
que chegara a vê-lo mover-se. Várias vezes, as portas pelas
quais o levaram se abriram, dando passagem a algum
residente, tão apressado a caminho de casa que nem sequer
percebia a presença dela.
Quando o médico finalmente apareceu, na fração de
segundo antes que a porta se fechasse atrás dele, o coração
dela deu um pulo, metabolizou-se em esperança pura e ela
pulou sobre os pés. Ao finalmente colocar-se inteiramente
de pé, já havia ficado sabendo da morte do pai pela
expressão do rosto do médico. Então ficou ali, feito boba,
inteiramente sozinha na sala excessivamente branca,
enquanto ele tentava encontrar as melhores palavras e o
vizinho sonolento voltava à consciência. Quando conseguiu
acordar completamente, o vizinho, que no aspecto religioso
era mais conservador do que sua família sempre fora, disse a
Deborah para rasgar a roupa sobre o coração, em sinal de
pesar. Ela obedeceu, desnorteada. Foi o último ato
remotamente ortodoxo que cometeu. Na semana seguinte,
ela comeu apenas dois camarões. Como sua família fora
bastante cuidadosa em manter a alimentação kosher, não
seria capaz de entender a atitude dela. Ela não se alimentara
mais nos preceitos kosher desde que pedira a refeição no
vôo de volta da Grécia, assim como nunca retornara ao
judaísmo.
Na verdade, ela se arrependia daquele dia e dos camarões
furtivos, sua versão própria, aos 13 anos, do desprezo pelo
Deus que levara seu pai. Fora um gesto medíocre, que seu
pai teria considerado ofensivo não pela violação da prática
religiosa ortodoxa, mas por sua mesquinhez rancorosa.
Bem, pensou ela. Tudo isso faz parte do passado.
A não ser, é claro, que aquilo não fosse verdade. Não
verdadeiramente. Ela se lembrara do fato ao esperar pelos
resultados do teste, mas tinha certeza que dessa vez seria
diferente. A morte de seu pai fora um final e o começo de
uma fase nova e bastante difícil.
Certamente, pensou ela, os resultados do teste serão um
final, não um começo, não um recomeço. O corpo era
antigo ou não. Ponto final.
Durante uma hora e meia, eles esperaram na recepção antes
que o dr. Kerem finalmente aparecesse.
— Vocês são bastante ansiosos — ele disse, oferecendo um
envelope endereçado do qual tirou um maço de folhas
dobradas, com impressão de computador. — Estou pronto
para colocar esses resultados no correio, mas imagino que,
mesmo assim, queiram vê-los.
— Claro — disse Deborah, fingindo uma calma tão ridícula
que fez o doutor a olhar por cima das lentes dos óculos. É
claro que queriam ver o relatório. Afinal de contas, tinham
passado várias horas esperando.
Kerem entregou-lhe um maço de folhas para cada teste.
Cada um consistia em um gráfico acompanhado por páginas
de números e esquemas técnicos que se avolumavam. Pela
narrativa do técnico, foi o que Deborah supôs.
— O que temos aqui? — perguntou Calvin, passando a mão
pelo primeiro maço.
— As cerâmicas — disse Kerem. — As análises indicam, de
maneira consistente, que pertencem ao século XVIII ou
XIX. Não podemos precisar exatamente, porque se trata do
período quando o uso disseminado de combustíveis fósseis
pode alterar os resultados.
— Tem certeza? — perguntou Deborah. — Não existe a
possibilidade de serem antigos?
— O que quer dizer com "antigos"?
— Idade do Bronze — ela disse. — Vamos dizer, século
XVII a.C.
— De jeito nenhum — ele disse.
Deborah sentiu seu corpo afrouxar como se, de repente, o ar
tivesse saído de um balão em suas entranhas. Mesmo não
sendo uma surpresa, aquilo era deprimente. Richard morrera
por aquelas falsificações sem valor e — o que era ainda pior
— vivera por elas.
— E os restos humanos? — perguntou Calvin.
— Um caso diferente — disse Kerem.
Deborah demorou um segundo para perceber o que ele
havia dito.
— Diferente, como? — perguntou Calvin. Ele parecia
concentrado, olhos brilhantes e incisivos.
— O corpo não é do mesmo período das cerâmicas — disse
Kerem.
— É muito mais antigo? — perguntou Deborah, meio sem
fôlego.
— Ah — disse Kerem. — Não é mais antigo, mas sim mais
recente.
— O quê? — disse Deborah, espantada.
— Mas não muito — disse Kerem. — Por volta dos anos
1950.
— Tem certeza? — perguntou Calvin.
Kerem mostrou-se um pouco aborrecido.
— A máquina MAS detecta a deterioração do radiocarbono
— ele disse — calcula a idade com base no nível de
deterioração do isótopo radioativo... naturalmente presente
no material orgânico... e tem precisão para medir idades
entre 50 e 60 mil anos. Qualquer coisa mais antiga do que
isso não contém mais radiocarbono. Do outro lado do
espectro, temos o fato de que extensas pesquisas nucleares
realizadas nos anos 1950 aumentaram consideravelmente o
nível de radiação nos materiais orgânicos. A diferença entre
os materiais desse período e os anteriores e posteriores a
esses testes é marcante. Os restos humanos pertencem
claramente ao período anterior aos testes atômicos, mas
posteriores aos séculos XVIII, XIX. O corpo pertence ao
século XX e é provável que a morte tenha ocorrido em
meados de 1940.
Deborah sentiu sua mandíbula ceder. Anos 1940? Aquilo
não fazia o menor sentido.
— Posso dar uma olhada? — perguntou Calvin.
Ao receber o envelope de Kerem, Calvin olhou
interrogativamente para as páginas de informações.
Deborah gostaria de perguntar a Kerem se ele tinha certeza,
mas sabia que sua pergunta seria inútil e ofensiva.
— OK — ela disse, vagamente. — Certo. Bem, acho que
vamos indo.
— Os outros resultados ficarão prontos dentro de algumas
semanas — disse Kerem. — Devo enviá-los ao museu pelo
correio?
— Outros resultados? — perguntou Deborah, ainda se
sentindo lenta e entorpecida, como se estivesse bêbada.
— Seu galeão espanhol — ele disse.
— Claro — ela disse. — Sim. Por favor, mande para o museu.
Ele agradeceu, pegou o envelope das mãos de Calvin e
deixou-os no saguão vazio e pálido, que agora se parecia
ainda mais com uma sala de espera de hospital.
— Você está bem? — perguntou Calvin.
— Sim — ela mentiu. — Vou ligar para Cerniga.
Não havia escolha. A brincadeira de detetive havia acabado.
— Tudo bem — disse Calvin, examinando-a com o olhar.
— Uma atitude inteligente. Enquanto você liga para ele, vou
até o banheiro. Depois, pegamos nossas coisas e botamos o
pé na estrada.
Era quase uma pergunta, como se essa recente sensação de
conclusão pudesse lhe sugerir passarem alguns dias juntos
nas montanhas. Alguma coisa do tipo. Ela mal ouviu o que
ele dizia, indicando que concordava num assentir com a
cabeça enquanto procurava seu celular.
Então não era Agamenon. Ela nunca acreditara em nada
diferente, pelo menos não ultimamente, mas essa estranheza
era nova e alarmante. Não se tratava de um corpo
desenterrado depois de passar séculos debaixo da terra, nem
de alguns ossos tirados de um cemitério qualquer no final do
século XIX. Era um corpo mais recente e menos conectado a
Schliemann, à suas escavações, a Micenas e à arqueologia em
si. Sem dúvida, era recente o bastante para que uma nova
pergunta tomasse conta dos pensamentos de Deborah
enquanto, trêmula, discava o número de Cerniga. Ela
pensara mais na busca pelas peças perdidas da coleção de
Richard em termos de como, o que e por quê. Agora,
aquelas perguntas eram eclipsadas por outra: quem?
De quem era o corpo que estivera exposto atrás da estante
de Richard?
E quem o matara?
CAPÍTULO 58
— A gente Cerniga — disse a voz na linha.
— Sim, aqui é Deborah Miller — ela disse. — Estou em
Atenas.
— Você está onde?
— Atenas, Geórgia — disse ela. — Acabei de descobrir uma
coisa que você precisa saber.
— Continue.
Ela continuou. Deu a entender que fora ao laboratório para
descobrir a idade do galeão e que, por acidente, esbarrara
nos resultados da caixa de Agamenon. Como Cerniga não
dissesse nada, ela avançou, indo de um ponto a outro sem
fazer nenhuma tentativa consciente de esconder o que quer
que fosse. Mesmo assim, não mencionou que Calvin estava
com ela, ou pensou no assunto, até que ele, com ar solene e
sorrindo para ela, emergisse no saguão. Ela virou-se para
poder concentrar-se no relato que fazia a Cerniga.
— Qual é o telefone do Laboratório CAIS? — perguntou
Cerniga, depois de ouvi-la descrever os resultados do teste.
Deborah deu uma olhada no recibo do teste do galeão e
passou-lhe o número.
— É provável que eles não forneçam nenhuma informação
além dessas — acrescentou ela.
— Eu não quero mais detalhes — ele disse. — Quero
informações sobre as pessoas que levaram as amostras para
serem testadas. No momento, encontrá-las é mais
importante do que os resultados. Volte a Atlanta e mantenha
seu celular ligado.
É claro que era mais importante, pensou ela ao desligar.
Como não pensara nisso? Não se tratava de um antigo
mistério arqueológico e sim da morte de seu amigo mais
querido. Eles estavam procurando um assassino, não um
corpo, e o fato de ter, de alguma maneira, se esquecido disso
fez se sentir ferida, humilhada e culpada.
Deborah dirigiu com o pé fundo no acelerador, tentando
entender o que havia descoberto até agora. Os novos
acontecimentos a deixaram envolvida com seus
pensamentos e, apesar de não ter se arrependido do que
vivera com Calvin na noite anterior, uma parte dela gostaria
que ele tivesse vindo em seu próprio carro. Ela não queria
conversar. Não queria mostrar-se bem-humorada ou
carinhosa. Queria pensar e não estava acostumada a falar até
que soubesse o que dizer. Normalmente, os silêncios entre
eles podia ser medido em frações de segundo, mas, agora, ela
se sentia confusa, insegura e meio amedrontada. E não
queria falar ou deixar que essas emoções tomassem vida.
— Alguma coisa errada? — perguntou Calvin.
Ela balançou a cabeça e forçou-se a responder.
— Nada. Estou concentrada, pensando.
— Na estrada ou nos resultados?
Começara a chover. Ela ligou o limpador de pára-brisa e
abaixou um pouco o encosto do banco.
— Ambos — ela disse, sem sorrir ou tirar os olhos da
estrada. Com aquela palavra, pretendia encerrar a conversa.
— O que você acha desse corpo? — perguntou Calvin.
Ela percebeu que ele não se importava tanto com o corpo
quanto com o restabelecimento do diálogo entre eles, mas
não conseguiu continuar o jogo. Deu um meneio de
ombros.
— Nenhuma idéia? — ele insistiu.
— Na verdade, não.
Ele virou-se para o lado e olhou pela janela salpicada de
gotas de chuva.
— Tem certeza de que está tudo bem? — perguntou ele. —
Conosco, quero dizer.
— Está tudo bem, Calvin — ela disse, com voz irritada. Cale
a boca e me deixe em paz. — Estou apenas tentando me
concentrar.
Na verdade, os pensamentos dela estavam ligados a três
coisas: à idade do corpo, ao fato de crimes de racismo
fazerem parte da jurisdição do FBI e à morte, durante a
Segunda Guerra Mundial, de um comandante de tanques
negro que nunca vira sua filha. Mas se quem matou Richard
e tentou matá-la na Grécia soubesse que o corpo do caixote
não era o de Agamenon, mas o do pai de Tonya, o esquecido
comandante Shermann executado por sua curiosidade por
um policial racista 50 anos há, porque estaria tão ansioso —
tão mortalmente ansioso — para botar as mãos nele?
O toque do seu celular tirou-a de suas ponderações. Ainda
"La Cucaracha". A brincadeira de Richard. Há mais de uma
hora viajavam em silêncio e agora se dirigiam para a parte sul
da cidade, saindo das colinas cobertas de florestas que
circundavam a Red Top Mountain, onde as águas do Lago
Allatoona brilhavam, escuras, por entre as árvores
encharcadas pela chuva.
— Por favor, me passe o celular — disse Deborah,
inclinando-se na direção de Calvin, quando o celular
escorregou de suas mãos e caiu no chão aos pés dele.
— Quer dizer que você não perdeu a língua? — ele
comentou. Foi uma brincadeira bastante sem graça.
— É que... obrigada — ela disse, tirando bruscamente o
telefone das mãos dele. — Alô?
— Sou eu, Cerniga. — disse o agente do FBI. — Onde você
está?
— Estou à meia hora do perímetro norte. Talvez menos. Por
quê?
— Vou lhe dar o endereço de onde deve ir — ele disse. —
Quero que chegue aqui o mais rápido possível. Não vá a
lugar nenhum antes.
— OK. Pode falar.
— Você precisa estacionar para anotar?
— Pode deixar que eu me lembro — ela disse, prendendo o
celular entre o ombro e a cabeça enquanto, impaciente,
usava a mão livre para indicar a Calvin que queria que
anotasse.
— O quê? — ele perguntou.
— Uma caneta — ela cochichou, afastando a boca do bocal.
— Está bem — disse Cerniga. — Greencove Street, 136. Fica
a uns 20 minutos ao sul do aeroporto. Saia da I-85 na saída
para Palmetto, pegue a rampa à esquerda e ande seis
quilômetros até Haysbridge Road. Vire à esquerda e depois à
direita, na Greencove. É o primeiro prédio à esquerda.
Mesmo sendo bem afastado da rua, você vai poder vê-lo.
Parece abandonado.
Deborah repetiu a informação para Calvin, que anotou
rapidamente e com expressão de censura por ter sido
reduzido à condição de estenógrafo.
— Que lugar é esse? — ela perguntou. — E por que quer que
eu vá até lá?
— É o lugar onde os gregos ficaram entocados — disse
Cerniga, com voz decidida. — E onde estavam guardando o
caixote.
— Como você os encontrou? — perguntou Deborah,
subitamente entusiasmada.
— Ligamos para o laboratório. Eles nos passaram a
informação.
— Certo — disse Deborah. — Claro. Isso é ótimo.
— Nem tanto — disse Cerniga. — Alguém chegou antes de
nós.
— E... — Deborah teve dificuldade para encontrar as
palavras. — Está tudo bem?
— Venha até aqui — ele disse, desligando.
CAPÍTULO 59
— Vou deixar você antes de ir para lá. — ela disse a Calvin,
sem desviar V o olhar da estrada. — Onde é melhor para
você?
Ela sentiu que Calvin se virara para ela, mas ele passou algum
tempo sem dizer nada.
— Calvin? — ela disse.
— Eu fiz alguma coisa errada? — ele perguntou. — Você se
arrependeu da noite passada?
— Não — ela disse, incerta de estar falando a verdade. — Só
acho melhor não chegarmos lá juntos.
— Por que não?
— Bom, eles não pediram que você fosse.
— Legal — chicoteou ele. — Sabe de uma coisa, Deborah?
Tudo bem. Mais tarde preciso passar pelo museu, mas você
pode me deixar em meu escritório.
Ela quase protestou; quase pediu desculpas; quase tentou
explicar que não se tratava dele e sim do fato de não querer
que fossem vistos como um casal pelas pessoas — o que
tornaria as coisas reais e assustadoras — e da apreensão que
sentia sobre o que encontraria ao chegar ao endereço dado
por Cerniga. Mas desistiu e disse apenas "OK".
Depois de deixá-lo na frente do escritório e vê-lo sair do
carro em direção à torre de vidro despedindo-se secamente,
ela rapidamente deixou a cidade para trás. Uma vez que
passara por Turner Field, a única saída era na I-20, pelo
retorno e pelas placas de indicação para o aeroporto e
pequenas cidades como Fairburn, Jonesboro e Unicorn City,
cujos nomes não lhe eram familiares. Enquanto os carros
rareavam e as saídas se seguiam ao longo da rodovia
arborizada que causava a sensação de falta de espaço além da
faixa de asfalto e concreto, ela começou a pensar que tivesse
perdido sua saída.
Olhou para as letras desiguais da anotação de Calvin e para a
estrada no momento exato em que via a placa para Palmetto
surgir a sua frente.
Diminuiu a marcha, pegou a rampa e seguiu cuidadosamente
as instruções enquanto a rodovia se transformava numa
estrada de duas pistas circundada por pastagens pontuadas
por celeiros castanho-avermelhados com acabamentos de
madeira pintada de branco. A cidade poderia estar a horas de
distância, num mundo completamente diferente. Quase uma
outra época.
O número 136 parecia ter sido designado de maneira
aleatória, pois não havia outras propriedades visíveis na rua.
Como Cerniga dissera, a propriedade ficava afastada da rua e
mal se fazia visível na chuva constante. O local parecia
abandonado e em ruínas. Era uma velha casa,
provavelmente vitoriana, grande e enfeitada com guarnições
cor de mel e uma torre quadrada de um dos lados. Se ainda
pudesse ser salva, talvez voltasse a ser uma casa espetacular
— charmosa, apesar do tamanho, e elegante sem ser
ostensiva. No momento, estava circundada por carros e
iluminada pelas luzes das viaturas policiais, de modo que
parecia ser o coração de uma tempestade, com suas paredes
intermitentemente inundadas por luzes piscantes, azuis e
vermelhas.
Os pensamentos sobre Calvin se dissiparam enquanto,
respirando fundo, Deborah estacionava o carro e saía na
chuva. Com a cabeça baixa, ela correu pelo caminho de
pedregulhos que levava até a casa. O oficial uniformizado,
que estava nos degraus à entrada e claramente a esperava,
liberou sua passagem assim que ela lhe disse seu nome.
Era evidente que fazia muito tempo que a casa estava
desabitada. A mobília era esparsa e as peças pareciam
abandonadas, como se tivessem sido deixadas para trás
quando, depois da morte do proprietário, as melhores peças
foram vendidas. De algum lugar na casa chegava até ela o
barulho contínuo de um vazamento de água. Um cano
furado ou uma goteira? Provavelmente uma goteira.
— Aqui em cima.
Era Keene, apoiado no corrimão de uma escada poeirenta.
Deborah tirou os fios de cabelo molhado do rosto e subiu os
degraus enquanto Keene descia a seu encontro.
— Ah — ele disse, visivelmente satisfeito. — Ninguém
menos que Sua Eminência, a curadora do museu.
— Como assim? — ela perguntou, muito apreensiva para
argumentar.
— Prepare-se — ele disse. — A visão não é das mais
agradáveis.
O primeiro corpo estava no patamar, deitado de costas. Sua
camisa fora aberta e a palavra "Atreu" — agora familiar —
estava tatuada em letras grandes que lembravam letras
gregas. Além do limite das letras, a pele era pálida e sem
manchas, mas sob o corpo havia uma poça irregular de
sangue coagulado. Com uma das mãos, Deborah apoiou-se
contra a parede.
— A tatuagem foi feita depois de ele estar morto — disse
Cerniga, saindo de um cômodo que devia ser um quarto. —
Ele levou dois tiros nas costas, à queima-roupa. Só depois a
tatuagem foi feita. O sangue foi causado pelos tiros. Garanto
que, de costas, a visão é bem pior.
Ele falava rapidamente, suas palavras carregadas do que ela
achou ser raiva e frustração.
— Ele lhe parece familiar?
Deborah examinou-o com o olhar. Ele era magro, devia ter
uns 50 anos e pele escura. Os cabelos e o bigode eram um
pouco mais longos do que ditava a moda, e salpicados de fios
brancos. Ela balançou a cabeça.
— Acho que não — ela disse. — Ele é grego?
— De acordo com seu passaporte, sim — disse Cerniga. Ela
não tinha certeza se aquilo era uma brincadeira. —
Encontramos outros documentos com eles, mas ninguém foi
capaz de lê-los. Estamos encaminhando tudo para tradução,
mas sim, são gregos.
— Os documentos?
— As vítimas — ele disse. — Tem outra no quarto. Dê uma
olhada nele para ver se o reconhece. Uma olhada cuidadosa,
por favor, srta. Miller. Depois, desça e me conte o que ainda
não me contou e tentaremos descobrir o quanto está
encrencada.
Ele passou rapidamente por ela e desceu a escada pisando
duro, mas parou a meio caminho.
— Se tivesse me contado sobre o laboratório, poderíamos
ter conseguido este endereço há alguns dias, e os dois
homens ainda estariam vivos. Imagino que queira pensar um
pouco sobre isso — disse ele.
Ela ficou paralisada, como se ele tivesse lhe dado uma
bofetada no rosto. Do outro lado do patamar, Keene a olhava
com olhos duros e implacáveis. Deborah rapidamente
desviou o olhar, sentindo o rosto arder e sua boca abrir-se
involuntariamente. Tentava encontrar palavras para
responder, como se o que dissesse pudesse ser útil,
verdadeiro ou remotamente apropriado.
CAPÍTULO 60
Quando Deborah chegou em casa, a chuva havia parado e as
ruas vibravam com o coro dos grilos e dos sapos. Saiu
pesadamente do carro para o ar quente e úmido da noite.
Uma umidade opressiva, densa como um banho turco,
roubando-lhe o pouco de energia emocional que lhe restara
depois do encontro com Cerniga em Palmetto.
Na verdade, não fora uma reunião e sim um espancamento
verbal, uma torrente de denúncias sobre sua intromissão
amadorista, sua necessidade irracional de guardar segredos
das únicas pessoas que tinham capacidade para fazer com
que os assassinos de Richard enfrentassem a justiça e sua
culpa pela morte dos dois gregos. Mais tarde, quando se
juntara a eles, Keene contentou-se em assistir. Deborah não
chorara e não choraria, mas depois de fracamente externar
sua inocência e indignação, ela sentara-se ali, em silêncio,
para ponderar sobre a situação, sabendo que não adiantava
argumentar, pois sabia — e essa era a pior parte — que o
agente do FBI estava certo.
Era verdade que, no começo, ela tivera boas razões para
suspeitar da polícia e de Cerniga em especial, assim como
era verdade que a suspeita que nutria com relação a Cerniga
continuara, mesmo depois que ele se apresentara como
agente do FBI, porque ele continuara a lhe esconder
informações, mas isso não justificava as táticas que ela
utilizara. É claro que, como investigador encarregado do
caso, ele estava no direito de lhe contar apenas o que
achasse necessário. Ela, por outro lado, não tinha esse direito
e, na verdade, eles até poderiam alegar que ela tivesse feito o
suficiente para ser acusada de obstrução da justiça. O que
poderia ser determinado pela pressão exercida sobre o FBI
pelo governo grego, por terem falhado em proteger seus
cidadãos. Consigo mesma, Deborah tinha certeza de que o
governo grego diria pouco ou nada, mas o fato de talvez
conseguir safar-se da acusação não amenizava sua culpa.
— Tudo o que você precisava fazer era pegar o telefone —
Cerniga rugira em sua cara. — Tudo o que tinha a fazer era
dizer "Sabe de uma coisa, agente Cerniga? Aposto que eles
levaram o caixote para a Universidade da Geórgia, para fazer
uma datação com carbono". Isso era tudo o que teria de ter
feito. E teria se transformado em heroína. Mas isso não teria
sido o suficiente para você, não é?
Ela não fora capaz de pensar em nada para dizer. Nem de
articular uma explicação que a satisfizesse. Por que fora até
Atenas sem lhes dizer? Teria feito isso por Richard,
desvendando a verdade por trás de sua morte em função da
obrigação filial que sentia? Talvez. Uma possibilidade bem
menos digna que insistiu em apresentar-se em sua mente
somente quando se encontrava a caminho de casa foi a de
que fizera tudo aquilo para impressionar Calvin. A idéia fez
que se sentisse exaurida e vazia, eviscerada pela vergonha e
o autodesprezo.
— Quem você pensa que é? — dissera Cerniga. — Algum
tipo de detetive amadora, tentando dar uma de esperta,
divertindo-se em passar a perna em dois profissionais? Suas
especulações, além de atrasarem nosso trabalho e custarem a
vida de dois homens, não trouxeram nada de relevante.
Você pensa que isso se trata de arqueologia? — ele concluiu,
consternado com o absurdo da idéia. — Sabe, srta. Miller,
para uma mulher bem educada, você pode ser incrivelmente
idiota.
Aquele comentário ainda buzinava em sua cabeça enquanto
a noite caía no silêncio de seu apartamento. Ela tentou ouvir
música e assistir televisão para se distrair, mas achou que
seriam atos irreverentes e desrespeitosos para com os
homens mortos. Além disso, achou que não tinha o direito
de fugir de tal estado de espírito. Resignando-se ao silêncio e
à própria culpa, ficou por algum tempo deitada na cama,
sentindo a brisa sobre a pele suada. Depois, levantou-se e
verificou seu e-mail. Nada. Ela meio que estivera esperando
receber alguma coisa de Calvin, mas talvez fosse melhor
que, no momento, ela não tivesse de lidar com as
reclamações dele. Sem dúvida, ele tinha todo o direito de
sentir-se magoado e frustrado com a maneira como ela o
excluíra na viagem de volta de Atenas, mas ela dera
prioridade ao pressentimento do que estava para ser
descoberto sobre o romance que vivera na noite anterior.
Será que ele entenderia?
Mas aquilo também não era inteiramente verdadeiro.
Alguma coisa dentro dela fizera que se voltasse para si antes
de falar com Keene e Cerniga: uma sensação de que deixara
Calvin aproximar-se demais e que agora precisava distanciar-
se um pouco para que ele não a sufocasse com suas
atenções.Talvez sua famigerada autoconfiança e seu orgulho
isolador — que a seguraram tão bem durante os primeiros
anos de faculdade, quando se sentia diferente das outras
garotas — se tivessem subitamente voltado contra ele como
quando se pisa no rabo de um cachorro manso e amigável.
Um rabo que talvez tenha sido duas vezes pisado. Porque ao
sentar-se sozinha na sala escura diante à tela do computador
ligado, olhando para sua caixa de mensagens vazia, ocorreu-
lhe que tanto o impulso de afastar-se de Calvin quanto o de
manter segredo sobre suas descobertas ao FBI podem ter
sido idênticos.
E só agora você descobre isso? Sabe, Debs, Cerniga estava
certo. Para uma mulher inteligente, você pode agir de
maneira bem estúpida.
Ela ainda estava perdida em seus pensamentos quando
percebeu que a luz de sua secretária eletrônica estava
piscando. Apertou o botão para ouvir os recados e ouviu
uma voz familiar e inesperada, educada e um pouco formal.
— Olá, Deborah — dizia.
Aquela voz a levou de volta à noite em que tudo começara,
à noite da morte de Richard.
— Olá, Marcus — ela disse, como se ele estivesse ali, na
frente dela, de cachimbo em punho.
— Sinto muito, não consegui me encontrar com você na
Grécia — disse Marcus. — Estava seguindo uma outra pista,
que me trouxe de volta aos Estados Unidos. Ouça, Deborah,
precisamos conversar. Essa história... — no esforço para
encontrar as palavras certas, a voz dele tornou-se um pouco
mais alta e carregada de ansiedade — ...esse assunto que
tenho examinado não é nada daquilo que imaginávamos. É...
não tenho muita certeza, mas... — ele fez uma pausa e
Deborah pensou ter ouvido um barulho no fundo. — Ligo
mais tarde — ele disse.
Não havia mais mensagens.
CAPÍTULO 61
Deborah voltou ao computador. Marcus vai voltar a ligar, ela
pensou. E mesmo que não ligasse, era provável que ela já
soubesse tudo o que ele sabia. Marcus havia descoberto que
o corpo e todas as peças eram falsas e que o empenho de
ambos fora em vão. Por isso a voz dele parecia tão...
Perturbada?
... impaciente. Desapontada. Ela conhecia muito bem a
sensação.
Apesar de a racionalização fazer certo sentido, ela continuou
a sentir-se desconfortável e pouco convencida. Entrou no
Google e, por algum tempo, olhou para o cursor, piscando
no campo de busca. Lentamente, seus dedos digitaram cinco
letras: "Atreu".
A tela piscou, ficou branca e começou a mostrar os
primeiros dos milhares de sites encontrados, uma página por
vez: projetos estudantis sobre mitos gregos, estudos sobre
drama antigo, uma versão de Dungeons and Dragons na
Grécia antiga e até mesmo algumas fotos turísticas de
Micenas. No estado de espírito em que se encontrava, o
brilho do sol e os rostos sorridentes lhe pareceram
grotescos.
Ela voltou à página anterior e adicionou outras palavras ao
campo de busca: "Agamenon", "câmara mortuária", "ouro",
"Schliemann"...
Nada. Apenas uma sugestão para verificar se as palavras
estavam corretamente digitadas.
Deborah tentou "Atreu" com "cerâmica", "sepultura",
"tumba" e "corpo", recuperando versões das páginas que já
tinha visto, organizadas de maneira um pouco diferente.
Tentou "Atreu" com "1940", com "Segunda Guerra
Mundial", com "Tanque Sherman". Os dois últimos
recuperaram um grupo diferente de sites, mas nenhum deles
parecia conter a palavra Atreu, focalizando apenas as
palavras-chave referentes à guerra. Ela suspirou, lutando
contra a onda de apatia que tomava conta dela, e digitou
"Atreu, crime de racismo". Enquanto esperava pelos
resultados, ouviu alguém batendo à sua porta.
Ela olhou para o relógio. Dez e meia. Tomara que não seja
Cerniga ou, pior, Keene.
Calvin, ela pensou, numa mistura de alívio, conflito,
vergonha e ansiedade quando o nome dele lhe veio à
cabeça.
Ao colocar o olho no visor da porta, deu um passo para trás,
franzindo o cenho. Era Tonya.
CAPÍTULO 62
Deborah achou estranho que Tonya viesse vê-la em seu
apartamento. As duas se sentaram na cozinha para tomar a
garrafa de vinho que Tonya trouxera. Na verdade, elas só
tinham conversado uma vez, o que acontecera num
pequeno vilarejo da Grécia. Agora, tudo aquilo lhe parecia
distante e improvável.
— Hoje à tarde, o agente Cerniga voltou ao museu — ela
disse. — Contou-me o que aconteceu. Pela expressão de
Keene, imaginei que você iria gostar de tomar um pouco de
vinho.
Deborah sorriu em agradecimento, mas era um sorriso
lívido.
— Keene realmente não gosta de mim — ela disse.
— Se isso lhe serve de consolo, acho que ele tampouco gosta
de mim.
— O que você estava fazendo no museu? — perguntou
Deborah. — Pensei que tivesse pedido as contas.
— Tenho de trabalhar até o final do contrato — ela disse,
sorrindo. — Enfim, ainda não arrumei um novo emprego.
Na verdade, eu apenas pedi as contas para mostrar aos
federais que não somos amigas, mas precisava pedir-lhe que
me dê uma segunda chance. Se eu for acusada por obstrução
da justiça, terei de declarar o fato quando fizer a entrevista
para o novo emprego. Se o ATLANTA JOURNAL CONSTITUTION
quiser de que eu trabalhe como investigadora, pode ser que
isso ajude, mas tenho a impressão que eles vão me querer de
volta na coluna de críticas gastronômicas e, nesse caso, não
vão querer antecedentes criminais em minha ficha — ela
disse. — Nunca pensei que, na vida real, fosse acabar
limpando banheiros.
— Isso não pode ser verdade — Deborah disse. — É só...
— Até que eu arrume um trabalho melhor — ela disse. —
Exatamente como minha mãe costumava dizer. — Com um
meneio de ombros, ela deu um sorriso velhaco. — Mas
quero saber como foi sua noite com o advogado Calvin
Bowers.
Deborah ficou embasbacada.
— Cerniga disse alguma coisa? — ela perguntou, sem
vontade de falar no assunto.
— Com todos os diabos, Deborah. É claro que não — disse
Tonya. — Ninguém tinha me dito nada, até agora. Estava
apenas especulando.
— Nunca confie numa repórter — brincou Deborah.
— Que tal confiar numa empregada? Vamos lá, Deborah,
quero todos os detalhes.
— Tivemos uma noite agradável — disse Deborah.
— Aposto que sim. Você continua usando batom.
— Você veio até aqui para me dar dicas de beleza ou para
ouvir as novidades?
— Que novidades? — perguntou Tonya, com olhar de
suspeita brincalhona, achando que Deborah queria desviar o
assunto.
— Os resultados dos testes realizados no corpo — disse
Deborah. O tom de sua voz soou lento e triste à seus
próprios ouvidos. A tentativa que Tonya fazia de descartar a
responsabilidade de Deborah pela morte dos dois gregos não
estava alcançando muito sucesso. A verdade flutuava,
insinuando-se entre elas e fazendo Deborah se sentir
distante e isolada, como se estivesse no final de um longo
túnel.
— Você encontrou o corpo? — perguntou Tonya.
— Não, mas vi os resultados da datação com carbono.
— Era o que imaginávamos?
— Mais ou menos. As cerâmicas e provavelmente o ouro são
do século XIX. O corpo é da metade dos anos 1940.
Cuidadosamente, Tonya colocou seu copo sobre a mesa.
— Você acha que pode ser o corpo do meu pai?
— Não sei.
— Mas o que você acha?
— Acho que é possível — disse Deborah, exausta e
deprimida demais para argumentar. — Mas tem muita coisa
que ainda não faz sentido...
— Isso explica por que os federais estão envolvidos no caso
— disse Tonya, levantando-se, corando com o entusiasmo
que transbordava em seus olhos. — Realmente se trata de
um crime de racismo.
— Não sei — disse Deborah, balançando a cabeça. — Não
entendo por que as pessoas estariam tão ansiosas para botar
as mãos num corpo, mesmo que existam evidências da causa
da morte. Sei que os militares não gostam que essas coisas
venham à tona. Enfim, as novidades já ficaram velhas.
Duvido que eles considerem isso uma grande coisa.
Tonya produziu um rápido olhar de indignação.
— Sinto muito — disse Deborah. — Só acho que...
— E se o cara realmente o matou — interrompeu Tonya —,
o policial militar... se é que foi ele., e mais tarde tornou-se
importante? Isso poderia ser um problema. Pode ser que
alguém esteja tentando proteger o assassino, ou sua família.
— Talvez — disse Deborah. Ela nunca se sentira tão
desanimada e humilhada, mas Tonya, envolvida com sua
versão da história, não parecia perceber.
— Você não acha possível? — perguntou Tonya.
Aquilo era um desafio que Deborah não estava a fim de
encarar.
— Pode ser que sim — ela disse.
— Mas você não tem muita certeza.
Tonya não estava disposta a desistir. Ela queria apoio e
encorajamento para sua hipótese, coisa que não estava
conseguindo.
— Você não acha que a morte do meu pai mereça atenção?
— ela perguntou, com uma pitada daquela arrogância
conhecida de Deborah. — Você não acredita que alguém se
importe com o assassinato de um negro ocorrido em 1945?
Deborah tentou consertar a situação, achando que já era
tarde para isso.
— Não estou dizendo isso — ela disse. — Apenas acho que
as coisas não se encaixam. Por que o assassino de seu pai se
daria ao trabalho de colocar o corpo dele com as peças e a
máscara mortuária?
— Para esconder o fato de que ele era americano — ela
chicoteou em resposta — e que havia tirado a vida de um
dos seus.
— Mas você disse que o corpo do seu pai foi enterrado —
disse Deborah. — Ninguém tentou encobrir o fato de ele
estar morto. Não houve necessidade disso. Eles sabiam que,
em 1945, a palavra de um PM branco seria suficiente para
silenciar uma divisão de soldados negros.
O rosto de Tonya foi contorcido por um espasmo de ódio.
Mas não se tratava apenas de ódio. Nos olhos dela havia
humilhação e dor, como se Deborah a tivesse agredido
fisicamente.
— Nesse caso, está tudo bem — ela disse, marchando em
direção à porta.
— Não é isso o que estou dizendo — disse Deborah,
levantando-se e indo atrás dela. — Não estou dizendo que
eles tivessem razão.
— Sei muito bem o que está dizendo — disse Tonya, sem
parar de caminhar.
— Tonya — disse Deborah, implorando um pouco. — Sinto
muito. Hoje tive um dia difícil... Não tive a intenção...
— Tudo bem — disse a outra mulher por cima do ombro,
escancarando a porta. — Vejo você no museu.
E ela foi embora, deixando atrás de si a reverberação da
porta, que fechara com força. Deborah ouviu o ruído dos
passos dela afastando-se, mas sentia-se sobrecarregada e
excessivamente triste para tentar alcançá-la.
A chave de ouro para o fechamento do dia, ela pensou, a
debanda de sua última aliada.
Ela apagou a luz da sala e foi desligar o computador. Ao
direcionar o mouse para "desligar", percebeu que havia
alguma coisa na tela. Eram os resultados de sua última busca:
Atreu, crimes de racismo.
O primeiro site era um que não tinha visto antes. Deborah
clicou e esperou.
A página que apareceu tinha como cabeçalho "Southern
Poverty Law Center: grupos de ódio racista por região".
No meio da página havia um mapa vermelho da Geórgia,
salpicado por símbolos coloridos: bandeiras dos
confederados, suásticas, um capuz branco, uma bota de
couro de cano alto e largo, um crucifixo. Abaixo dos
símbolos, havia uma lista das organizações correspondentes
aos símbolos: Separatistas Negros, Ku Klux Klan, Identidade
Cristã, Skinheads, Neoconfederados, Neonazistas. Todas
eram subdivididas em grupos específicos, desde a Nação do
Islamisno e o Novo Partido Pantera Negra até os Cavaleiros
Brancos da Carolina do Norte, um grupo chamado
Revolução Negra em Brooks, Geórgia, e um grupo Socialista
Nacional em Morrow. O coração de Deborah deu um salto.
No final da lista havia vários grupos com a denominação
"Outros".
O símbolo que o representava, o único no mapa, estava
situado em Atlanta. A pequena imagem parecia um pequeno
triângulo amarelo, mas quando inclinou o corpo para frente
para poder ver melhor, Deborah sentiu um arrepio ao ver
que o triângulo tinha olhos como os que se cortam em
abóboras. Era uma máscara mortuária de ouro.
CAPÍTULO 63
Seu primeiro impulso foi ler toda a informação oferecida
pelo site. O segundo, foi ligar para Cerniga.
Ele já deve saber, ela disse a si mesma. Por isso ele está aqui.
Na verdade, o assunto foi sempre este. Nada de Schliemann.
Nada de Agamenon. Isto. Seja lá o que for.
Ela voltou ao site e continuou clicando até passar por toda a
informação oferecida.
A entrada para Atreu levava a um texto bem mais curto do
que os dos outros grupos de ódio.
Organização de pequeno porte, provavelmente extinta, com
tendência skinhead. A Organização Atreu foi aparentemente
fundada nos anos 1950, mas, por ter ficado em segredo
estrito, muitos analistas negam que tenha realmente existido
e, por várias décadas, pode ter desaparecido ou se mantido
em estado dormente. No início do século XX, seu nome
reapareceu nas tatuagens de skinheads e anúncios da
internet que sugerem uma sociedade pequena e secreta. Suas
atividades não são claras, mas parece que, como outros
grupos skinheads cultivam a violência e o ódio por
homossexuais e não caucasianos, especialmente judeus e
negros. A imagem da máscara de ouro, vista em alguns
banners e tatuagens ligadas ao grupo, parece datar da
fundação da organização, apesar de ter significado obscuro.
A máscara, de novo.
Deborah olhou para ela. Sua mente queria afastar-se dali,
mas alguma coisa a prendia, como um anzol que se prende
ao cabelo ou ao tecido da roupa. De alguma maneira, a
máscara parecia diferente da verdadeira, como se ao ser
diminuída tivesse sido privada da arte primitiva, tornando-se
bela e precisa, um logo parecido com uma máscara de teatro,
ou...
Um logo.
Deborah já o vira antes. Tinha certeza disso. A essa altura,
ela conhecia a máscara de cabeça para baixo. Mas havia
alguma coisa sobre essa miniatura computadorizada e
estilizada que lhe era familiar e que não se tratava da máscara
em si nem das inúmeras reproduções que vira, ou da peça
exposta no Museu de Arqueologia de Atenas.
Agora que pensava nisso, lembrava-se de ter sentido o
mesmo impulso quando vira a tatuagem pela primeira vez
no peito do jovem assassino de Micenas: uma vaga sensação
de já ter visto aquela imagem antes, não a máscara em si,
mas essa impressão em miniatura dela...
Depois de passar algum tempo olhando para a imagem na
tela, ela levantou-se e começou a andar de um lado para
outro na sala, tentando lembrar-se quando a vira pela
primeira vez. De repente, ficou completamente paralisada.
A imagem finalmente ficara clara em sua mente, não os
minúsculos pixels amarelos e dourados na tela do
computador, não a tinta preto-azulada das tatuagens sobre a
pele pálida, mas tinta negra sobre papel branco e grosso.
Ela voltou à realidade, indo rapidamente até o banheiro e a
bolsa que fora e voltara com ela da Grécia. Ela estava pesada
e cheia de correspondência que, por duas semanas, ficara
por abrir: cartas e contas que pegara na noite do evento no
museu e nunca entregara a Richard, porque, quando o vira
da próxima vez, ele já estava morto. Ansiosa, ela repassou a
correspondência e viu: um envelope comercial branco, mais
pesado do que o normal e com textura de linho. Endereçado
em máquina de escrever manual, ele fora enviado a Richard
no endereço do museu — razão por que veio parar em suas
mãos. Se tivesse sido mandado para a casa dele, ela nunca o
teria visto. No canto superior esquerdo, onde o endereço do
remetente deveria estar, havia apenas uma pequena máscara
estilizada.
Parecia bastante inócuo, e Deborah estava certa de que, ao
vê-lo pela primeira vez, pensara que se tratasse de um
pedido de doação para alguma companhia de teatro. Mas no
contexto de tudo o que acontecera, no contexto daquele
pequeno ícone amarelo na tela do computador sobre sua
escrivaninha, ele era tudo, menos inócuo.
Deborah abriu o envelope com cautela e alguma dificuldade,
usando uma faca para cortar o papel grosso. Com o braço
esticado, jogou os fragmentos numa tigela sobre a mesa
enquanto cobria a boca com a outra mão. Ela decidira que,
se visse um pó branco, não respiraria até conseguir chegar à
rua.
Mas não havia pó nenhum, apenas uma folha do mesmo
papel caro, datilografada na mesma máquina. Não havia
assinatura ou data. Dizia simplesmente:
Estamos cientes do objeto que se encontra em seu poder e
dos planos que tem com relação a ele. Você deve mudá-los.
Se o objeto não for parar nas mãos daqueles destinados a
assumirem a causa do grande homem, sua maldição — como
a espada do próprio Deus Todo-Poderoso — cairá sobre sua
cabeça e as dos degenerados com quem você se associa. Não
permita que ele saia do país, ou espere receber retribuição
quando seus terríveis poderes forem inevitavelmente
liberados.
Cuidadosamente, Deborah colocou a carta sobre a mesa e
afastou-se dela como se as palavras estivessem contaminadas
com antraz ou algum gás venenoso.
— Não é sobre a arqueologia, ela disse, repetindo o que
Cerniga havia dito.
A NÃO SER QUE ESSES MALUCOS QUE LUTAM PELA SUPREMACIA
BRANCA ACREDITEM SER OS DESCENDENTES DE AGAMENON...
Era isso.
Eles pegaram a Guerra de Tróia — o modelo lendário de
nobreza e resolução honrosa — e o transformaram em
alguma coisa muito mais brutal e perturbadora: um
genocídio, uma tentativa da Grécia como poder número um
da Europa para erradicar seu correlato no Oriente Próximo:
ocidentais contra orientais, caucasianos contra árabes, as
terras que foram a pátria da igreja cristã primitiva contra os
infiéis da Turquia. Eles pegaram Aquiles, Agamenon e o
resto e os transformaram em ícones nazistas, heróis que
colocam culturas estrangeiras sob seus pés arianos.
Mesmo que se tratasse de história mal contada, ou má
interpretação de literatura e cultura, Deborah sabia que
aquilo fazia sentido. Pelo menos fazia sentido para quem
escrevera aquela carta, dizendo que a guerra da Idade do
Bronze de Agamenon fora uma cruzada racista. Além disso,
tudo indicava que os integrantes do grupo Atreu — fossem
quem fossem — queriam o conteúdo do caixote para dele
fazerem uso escabroso. Como dissera a carta, o caixote
continha a "espada do próprio Deus Todo-Poderoso" e a
capacidade de "liberar seus terríveis poderes".
O que foi que Marcus dissera? Não é nada daquilo que
imaginávamos.
Cerniga estava certo. Não se tratava de arqueologia. Não se
tratava de história, arte ou dinheiro. Deborah ainda não sabia
o que havia no caixote — e talvez soubesse menos do que
antes, pois suas suposições pareciam estar erradas —, mas
sabia por que as pessoas estavam preparadas para matar por
ele. Elas fariam qualquer coisa para botar as mãos nele
porque acreditavam que continha uma arma. Uma arma de
poder extraordinariamente destrutivo.
CAPÍTULO 64
— Sim — disse Deborah ao telefone —, é urgente.
Repetiu seu nome e ficou sentada, esperando. A sala estava
iluminada apenas pela tela do computador. A voz que veio
ao telefone era brusca e irritada.
— Cerniga — ele disse. — O que você quer?
— Encontrei uma carta enviada a Richard um dia ou dois
antes da morte dele — ela disse. — Ele não chegou a
recebê-la e eu acabei de abri-la, mas tenho quase certeza de
que explica o motivo por que quiseram me matar na Grécia.
Eles não puderam encontrar a carta e pensaram que eu a
tivesse lido.
— O que ela diz?
Deborah leu novamente o texto, segurando a folha de papel
perto da luz da tela do computador, de modo a poder vê-la
dentro do saco plástico em que a colocara. Dessa vez, ela
não correria riscos. Ao terminar, fez-se uma longa pausa.
— Agente Cerniga? — ela disse. — Ainda está aí?
— Você está em casa?
— Sim.
— Fique onde está e não fale com ninguém.
— Trata-se de uma arma — ela disse, assim que ele chegou
— não é? Ele não estava sozinho. Atrás dele esgueirava-se
Keene, de cara amarrada.
— Vamos lá, Cerniga — ela disse. — É uma arma?
Cerniga suspirou e começou a analisar a carta. Não disse uma
palavra até terminar.
— Você tem mesmo que saber de tudo, não é? — ele disse.
Deborah gostaria de ter sorrido de maneira vagamente
autodepreciativa, mas os olhos dele eram duros e a boca não
passava de um fio. Cerniga olhou para Keene, como se a
irritação que sentia o impedisse de dizer qualquer coisa.
— Conte a ela — pediu ele.
— Tudo? — perguntou Keene, lançando um olhar de dúvida
ultrajada ao agente do FBI.
— Claro. Se isso fizer que ela cale a boca e pare de meter o
nariz em nosso trabalho por 10 minutos...
Deborah corou e olhou para baixo.
— OK — disse Keene, sentando-se. — Sim, achamos que
seja uma arma. Desde os anos 1950 existem referências
feitas ao grupo Atreu. Elas acontecem em ondas, sempre
repletas de vagas bobagens apocalípticas. Mas nunca
assumiram responsabilidade de nada e, apesar de sabermos
que têm ligações com grupos violentos de extrema direita,
não sabemos o que querem. Durante algum tempo, parece
que foram liderados por um multimilionário homem de
negócios local, chamado Edward Graves, que talvez seja o
fundador da organização. Ele morreu na metade nos anos
1960 e não sabemos se alguém tomou seu lugar. O que
sabemos é que grande parte de seu dinheiro parece ter se
perdido, e existem indicações de que uma boa quantia tenha
sido destinada ao futuro de Atreu. Enfim, a maior parte dos
especialistas pensou que o grupo tivesse morrido, mesmo
depois que seu nome ressurgiu, alguns anos atrás. Mais tarde,
o nome surgiu novamente, relacionado à morte de um
cidadão britânico na França.
— O pai de Marcus.
— Imagino que sim. Os federais não sabem o que o velho
estava fazendo lá, a não ser que estivesse tentando comprar
alguns restos arqueológicos no mercado negro. A polícia
britânica revistou a casa dele e encontrou provas de algum
tipo de ligação com Edward Graves no final da Segunda
Guerra. Elas faziam referência a uma máscara...
— Graves estava no exército durante a guerra? — perguntou
Deborah, interrompendo.
— Sim — disse Cerniga. — Ele era policial militar. Por quê?
Existe mais alguma coisa que você não tenha nos contado?
Deborah engoliu em seco. Tonya queria manter sua história
em segredo.
— Então? — pressionou Cerniga, com voz alterada. Ele
parecia mais cruel e perigoso do que nunca, e a imagem dos
dois gregos assassinados voltou à mente de Deborah.
Homens que Deborah poderia ter salvo...
— O pai de Tonya — ela disse. — No final da guerra, ele era
comandante de uma divisão de tanques composta
exclusivamente por homens negros. Dirigia-se ao sul da
Alemanha...
Ela lhes contou toda a história, até a possibilidade de que o
corpo com a máscara fosse o de Andrew Mulligrew, pai de
Tonya.
Keene fez cara de desdém e olhou para baixo. Cerniga fez
que ela repetisse duas vezes a história, fazendo anotações
que voltava a conferir. Ao que tudo indicava, aquilo era
novidade para eles. Entretanto, provavelmente não mudasse
nada, pois se tratava apenas de uma história antiga, tão
relevante para encontrar o atual paradeiro do caixote quanto
as escavações de Schliemann. Mas Deborah ficou feliz por,
finalmente, poder fornecer algum dado que ele ainda não
conhecia, mesmo que as duras linhas do rosto dele não se
suavizassem quando ele olhou para ela.
— Pensei que a tatuagem de águia que vi no peito daquele
jovem na Grécia fosse romana — ela disse. — Mas não era,
não é verdade? Era alemã.
— Existe uma ligação entre as duas — disse Cerniga. — O
Terceiro Reich se imaginava descendente dos antigos gregos
e romanos.
— Então — sugeriu Deborah — essa arma...?
— Você simplesmente não consegue esquecer o assunto, não
é? — comentou Cerniga.
— Apenas pensei que, se soubesse o que está acontecendo,
talvez pudesse ajudar — disse ela.
— Do mesmo modo que ajudou com aqueles dois corpos em
Palmetto? — perguntou Keene.
Deborah voltou a olhar para baixo. Quando Cerniga voltou a
falar, usou uma voz seca e mecânica.
— Com base no padrão de iluminação usado na sala atrás da
estante de Richard — ele disse —, achamos que o caixote
expositor com o corpo e os objetos de sepultura devia medir
dois metros por um, mais ou menos do mesmo tamanho de
um caixão de defuntos. Achamos também que estava
apoiado sobre pés e, apesar de o corpo estar a uns 30
centímetros de profundidade, é quase certo que não
estivesse ao nível do chão. Se assumirmos que tinha um
metro de altura, estaremos falando de uns 20 metros cúbicos
de espaço escondido abaixo do corpo. Espaço suficiente para
esconder uma quantidade significativa de armas.
— E não estamos falando de uma caixa de pistolas — disse
Keene, com um sorriso apetitoso.
— Nós achamos — disse Cerniga, com a voz ainda
desprovida de qualquer emoção além da franqueza
desapiedada — que a arma está mais próxima das WMDs que
nunca encontramos no Iraque. Foram criadas na Alemanha
nazista durante o último ano de guerra e contrabandeadas,
camufladas em antiguidades falsificadas. Sabemos que o
programa nuclear alemão era bastante avançado, mas não
nos parece possível que tivessem material para fabricar
qualquer tipo de bomba. Isso, porém, não significa que não
tivessem material que pudesse, mais tarde, ser transformado
em um projeto qualquer, talvez no que eles chamavam de
bomba suja.
— Se havia material radioativo no caixote — disse Deborah,
em voz baixa —, foi tão bem protegido que não se espalhou.
Se tivesse vazado, mesmo que em pequena quantidade, os
testes de C-14 teriam detectado uma alta elevação de
partículas radioativas.
Ela ainda estava tentando fingir que isso era uma troca de
idéias e não uma punição por suas ações ou inações
anteriores. Você quer saber o que está acontecendo? Cerniga
parecia dizer. Aqui está. E se vai ficar morrendo de medo,
não culpe ninguém além de si mesma.
— Estamos inclinados a pensar que a arma seja química ou,
mais provavelmente, biológica — disse Cerniga. — Os
nazistas fizeram pesquisas extensas na área.
Nos campos de concentração, ela pensou, sentindo, de
repente, aquele velho buraco nas entranhas.
—Varíola seria interessante — sugeriu Keene, com um
sorriso afetado.
— Um estoque de varíola, ou de alguma epidemia de gripe,
talvez alguns frascos pequenos de peste bubônica...
Novamente, Deborah abaixou os olhos, mas apenas por um
momento.
— Richard sabia disso? — ela perguntou.
— Ele não tinha a menor idéia — disse Cerniga. — Pensava
estar prestes a anunciar uma das maiores descobertas
arqueológicas do século e em como daria ao museu um lugar
de destaque, tornando-se um ídolo nacional para o povo
grego.
Essa notícia, pelo menos, era boa, mas na boca de Cerniga
parecia completamente idiota.
— Assim como você — ele continuou, como se ela não
tivesse entendido —, ele não tinha a menor idéia do que
estava acontecendo.
— Ele pensava que se tratasse de arte e história — disse
Keene, sorrindo com franqueza na cara de Deborah, que
voltou a olhar para baixo.
— Dá para acreditar?
— E o russo? — perguntou Deborah. — A carta que ele
carregava indica...
Cerniga interrompeu-a com um grito furioso.
— O que diabos você pensa que é essa investigação? — ele
ameaçou, com o rosto injetado e pulsando. — Você acha
que queremos que nos dê informações como se você fosse
uma maldita especialista, algum gênio que pode fazer nosso
trabalho por nós? O russo, como já lhe disse umas 50 vezes,
é irrelevante para o caso.
— Eu só pensei... — começou ela, sentindo-se diminuída
com a fúria dele.
— Pare com isso — ele disse. — Ou volte para seus livros e
pense em voz alta com eles. Você não é mais uma suspeita,
OK? Do meu ponto de vista, você não passa de uma
obstrução. Saia de nosso caminho e fique fora. Tire umas
férias.
— Ei — disse Keene, detestavelmente animado —, por que
você não vai para a Rússia?
— Pode ir a qualquer lugar — disse Cerniga. — Contanto que
eu não a veja por perto até que o caso seja resolvido.
Entendeu?
Muda, Deborah assentiu com a cabeça.
CAPÍTULO 65
Chovia na praça Vermelha. Nos dois dias em que estivera
em Moscou, chovera tão implacavelmente que, para ela, era
impossível imaginar a cidade sem o céu cinzento, as árvores
encharcadas, o brilhante calçamento de pedras e os
minaretes cintilantes.
Dois dias.
Ela sabia que aquilo não passava de loucura. Nunca deveria
ter ido até lá. Apesar de, na última década, ter saído
pouquíssimas vezes dos Estados Unidos, nas últimas semanas
embarcara em duas viagens não planejadas para a Europa. Ela
não podia se dar a tal luxo e por meses estaria pagando pelos
passeios ridículos. A viagem à Grécia custara caro, mas a
Rússia, que se tornara capitalista recentemente, ganhara de
longe. De muito longe. Por que diabos ela resolvera ir?
Por sentir despeito por Cerniga? Para acatar seriamente a
sarcástica sugestão dele e de Keene, como se aquilo pudesse
varrer o desprezo com que a chamaram de tola e amadora?
Ou para tirar outras imagens de sua cabeça?
Os gregos assassinados, seus olhos abertos...
Ou apenas para enfiar a cabeça em um buraco no chão a um
continente de distância?
Esta, pelo menos, chegava perto.
Mas ainda havia outras perguntas a serem respondidas.
Cerniga dissera que o caso não era sobre arqueologia. Dissera
que não era sobre o russo, assim como não era sobre
Magdeburgo. Mas havia mais alguma coisa, ela tinha certeza
disso. Ela não poderia dizer se era alguma coisa que ele não
sabia ou que simplesmente não quisesse contar, mas havia
algo mais, alguma coisa que ninguém dissera antes, alguma
coisa relacionada ao cerne dessa farsa trágica. Deborah
sentira desde o começo aquela sensação de que as pistas que
seguia pertenciam a um lobo ou a algum animal maior e mais
estranho, alguma coisa que ela não reconheceria até que
virasse a esquina e o encontrasse, à espreita.
Por isso fora à Rússia. Apesar da falta de grana e de bom
senso, ela precisara ir, decidida a seguir um pouco mais as
pegadas da besta até que desaparecessem completamente, ou
que ela se desse a conhecer.
No dia anterior, depois do vôo interminável para chegar a
Moscou, ela fizera três coisas. Reservara um quarto de hotel
em Belgrado por meio da Garden Ring, que ficava a apenas
uma estação de metrô do Kremlin. Segundo, visitara o
Museu Pushkin e olhara, exausta e maravilhada, para o
Tesouro de Príamo, a coleção de artefatos antigos que
Schliemann, há centenas de anos, escavara em Tróia e
contrabandeara para a Alemanha. Ela ainda não tinha
certeza do significado daquilo para sua busca presente, mas
tudo indicava que a morte do antigo agente soviético,
ocorrida a uma quadra do museu de Atlanta, na noite em
que sua coleção de objetos da Guerra de Tróia, não era mera
coincidência. O fato de a coleção de Richard ser falsa não
diminuía o fato de, em 1945, as duas coleções estarem em
Berlim e ambas terem desaparecido quando os russos
invadiram a cidade com seus tanques.
A terceira coisa que fizera fora ligar para Alexandra
Voloshinov, a filha do russo morto. Na verdade, ligara duas
vezes. Na primeira, um homem atendeu, mostrou não
entender a língua dela e desligou. Na segunda, foi a própria
mulher quem atendeu, mas não foi muito cooperativa,
apesar de ter ficado com o telefone do hotel de Deborah,
para o caso de mudar de idéia.
No dia seguinte de manhã, porém, ela ligara.
— Meu marido não gosta que eu fale sobre meu pai — ela
disse. — Quer dizer, sobre o trabalho dele. Mas vou me
encontrar com você.
Elas deveriam encontrar-se na Praça Vermelha, onde, em
um dos lados, havia um prédio de arquitetura antiga no qual
funcionava um shopping center sofisticado e uma loja de
departamentos GUM. Do outro lado da praça, como que
para evidenciar um contraste, estava o túmulo de Lenin,
atrás do qual se via o muro vermelho do Kremlin. Deborah
abraçou o próprio corpo para compensar a falta de
aquecimento do casaco inadequado que usava e olhou para o
sudeste, onde os extravagantes domos em formato de cebola
da igreja de São Basílico brilhavam, na chuva, em tons de
vermelho e dourado. Deborah sentiu uma onda de prazer
por encontrar-se num lugar impossível de ser superado.
Ela tinha idade suficiente para lembrar-se do significado da
União Soviética para os americanos durante os anos 1970 e
1980, mesmo que o conhecimento sobre a ameaça e a
competição da Guerra Fria que tinha na época estivesse mais
relacionado aos filmes desgastados e esportes de rivalidade
em grande parte sem sentido. Mesmo que o verão ainda
estivesse na metade, uma parte dela ficara surpresa ao ver
que a praça não estava coberta de neve. Talvez a mesma
parte que ficara espantada com o ícone familiar do
McDonald's ao lado de um prédio cuja austera fachada de
pedra ainda conservava o emblema da foice e do martelo.
Ela sabia que a União Soviética estava acabada, mas aquele
emblema permanecia tão palpável na umidade do ar que as
armadilhas do capitalismo democrático ocidental mais se
pareciam com decorações de Natal que dentro de poucas
semanas seriam sombriamente retiradas.
Alexandra Voloshinov era gorda como seu pai, tinha uns 40
anos e a pele clara, rosto inexpressivo e um pouco duro.
Seus olhos eram escuros e cautelosos e nunca chegaram a se
fixar nos de Deborah, como se estivessem sempre olhando
para outra pessoa. Ela usava um casaco longo e escuro e um
lenço azul-claro na cabeça. Deborah, que, sem nenhuma
razão, esperara alguém mais jovem, deu um passo para o
lado, desculpando-se e saindo da frente dela antes de
perceber quem era.
— Deborah Miller — disse a mulher. A voz dela não tinha
entonação e o rosto não mostrava nenhum tipo de emoção,
educação ou saudação.
— Sim — disse Deborah, sorrindo. — Você deve ser
Alexandra.
— Sergei Voloshinov era meu pai — disse ela, como se
aquilo fizesse uma grande diferença. — Por que veio até
aqui?
Deborah, que ficara animada quando a mulher concordara
em encontrá-la, sentiu-se decepcionada. A russa continuava
a não querer falar, não queria que ela tivesse vindo.
— Estou tentando entender o que aconteceu com seu pai
porque acho que a morte dele está ligada à morte de outro
homem.
— Mas você não é da polícia.
— O outro homem que morreu era meu melhor amigo.
A mulher ponderou sobre isso, segurando a bolsa como se
fosse um escudo diante do estômago volumoso.
— A polícia acredita que ele estava no lugar errado. Que foi
assaltado, só isso — disse a russa.
— Não acho que isso seja verdade.
— Sr. Miller — começou a russa.
— Senhorita — corrigiu Deborah, sorrindo.
A russa fez uma pausa e, em seguida, o rosto dela vincou-se
num espelho do sorriso de Deborah.
— Não é casada — ela disse. — Provavelmente uma boa
idéia.
— Por enquanto — disse Deborah —, definitivamente uma
boa idéia. A mulher russa assentiu. Então, sem aviso, pegou
no braço de Deborah
e começou a guiá-la na direção de São Basílio.
— Meu pai — ela disse, sem olhar para Deborah — era... Ele
não batia muito bem da cabeça.
— Ele era... mentalmente desequilibrado?
Alexandra pensou um pouco e deu um sorriso distante.
— Louco — ela disse. — Meu pai era louco.
Como não conseguisse pensar em uma resposta, Deborah
deixou que a mulher continuasse.
— Minha mãe morreu há seis anos — ela disse. — Meu pai
ficou triste por longo tempo. Não comia. Não saía de casa.
Não fazia nada além de ficar sentado no apartamento.
Passados um ou dois anos, ele foi...
Com a mão, ela fez um gesto vago que era mais carregado de
exasperação do que tristeza.
— ...ele voltou a ficar interessado por seu antigo trabalho.
Excessivamente interessado. Sempre lendo e falando a
respeito. Para todo mundo! Para mim, minha família,
pessoas que trabalhavam em lojas e restaurantes, pessoas nos
parques e nas praças. Qualquer um. Sempre a mesma coisa:
ele tinha orgulho de ser russo, de trabalhar por seu país, de
conhecer seus segredos, de não confiar nos americanos ou
nos ingleses. Mas ele também não confiava no velho
governo soviético! Eles eram mentirosos e assassinos. Mas o
que temos agora? Hambúrgueres e gangues de rua, roupas
caras e a máfia cada vez mais poderosa, enquanto os pobres
morrem de fome do mesmo jeito que acontecia no tempo
de Stalin e dos czares... Sempre a mesma coisa. Tudo igual.
A voz dela foi ficando cada vez mais dura, enquanto repetia
a litania que, sem dúvida, ouvira diversão vezes.
— Ele era um velho louco — ela disse. — Todos ficavam
bravos com ele. Todos riam dele. Acho melhor que ele
tenha morrido. Melhor para ele. Para a minha família. Para
mim.
Ela falou aquilo como que desafiando Deborah a discordar.
— Por que ele foi para os Estados Unidos, se não gostava dos
americanos?
— Por que ele era louco. — Ela deu um meneio de ombros.
— Não sei.
— Será que ele estava em busca de algum caso antigo, do
tempo em que trabalhara com a MVD?
— Em busca?
— Tentando resolver — disse Deborah. — Investigando,
tentando descobrir alguma coisa sobre o passado dele.
— Talvez — disse a filha do velho morto, sem curiosidade.
— Ele escreveu muitos cadernos sobre suas atividades, mas
nunca li o que escreveu.
— Você ainda tem os cadernos?
— Em minha casa — ela disse. — Caixas e caixas deles. Eles
fizeram uma limpeza no apartamento dele e mandaram tudo
para casa. O que faço com eles? Por que iria querer tal coisa?
— Posso vê-los?
Alexandra olhou para ela.
— Seu amigo que morreu — ela disse. — Era seu amante? A
franqueza da pergunta fez Deborah rir.
— Era mais como um pai — ela disse.
A russa franziu o cenho e ponderou por um momento.
— Tudo bem — ela disse, olhando para a frente. — Você
pode vê-los.
Elas foram de metrô, Deborah imitando a mulher e dando-
lhe nenhum comentário. De vez em quando, Deborah se
pegava extasiada, olhando para os entalhes e mosaicos que
decoravam as velhas estações: fazendeiros ucranianos com
os braços carregados de fardos de trigo, perto de tratores
russos que levavam arados, imagens de Lenin em posição de
oratória, entalhes elegantes e triunfais da infantaria e dos
tanques russos. Era um mundo completamente diferente,
assim como o que vira na Grécia.
— Você disse que seu pai viveu em Magdeburgo —
comentou Deborah assim que saíram do metrô. Alexandra
não mostrara nenhum interesse em conversarem em meio a
tanta gente dentro do trem.
— O quartel-general da MVD ficava na Alemanha Oriental
— ela disse. — Meu pai... trabalhou lá quando jovem.
— Nos anos 1950?
— Sim.
Deborah franziu o cenho. Aquilo não fazia o menor sentido.
Por que os alemães haviam tentado mandar um corpo para
uma cidade que cairia nas mãos dos russos e se tornaria parte
do império soviético? Magdeburgo ficava a sudoeste de
Berlim, mas não estava distante o suficiente da fronteira da
Polônia para que pudesse ser considerada segura e, com
certeza, nem um pouco próxima da consideravelmente mais
segura Suécia. De qualquer modo, se a história de Tonya
fosse verdadeira, os americanos haviam cruzado com o
comboio alemão bem mais ao sul de Magdeburgo. O que
deixava uma alternativa desconcertante no topo da lista de
possibilidades: Cerniga estava certo. Não havia conexão. Seja
ao que for que a carta russa fizera referência, não fora ao
comboio atacado por Andrew Mulligrew.
Os restos nunca chegaram a Magdeburgo...
Mesmo assim, ela sentiu a ligação como alguma coisa fora de
alcance, como um quadro que precisasse ser pendurado do
lado certo para que seus traços fizessem sentido.
— Você disse que seu pai sempre falava das mesmas coisas
— ela disse. — Que era obcecado com antigos assuntos e
idéias.
— Obcecado — disse Alexandra, gostando da palavra. —
Isso mesmo.
— Aconteceram eventos especiais pelos quais ele tenha
ficado especialmente obcecado?
Alexandra hesitou.
— Apenas no geral — ela disse. — Nada em particular.
Ela desviou o olhar e, pela primeira vez, Deborah teve
certeza de que ela não dizia a verdade.
***
Alexandra e o marido viviam em um edifício decrépito e
cinzento, em formato de caixão, do tempo de Brejnev, a
uma boa meia hora do centro da cidade. Chegava-se até ele
por um pequeno bosque de bétulas prateadas de troncos
brancos e brilhantes. Deborah e Alexandra subiram até o 14°
andar em um elevador raquítico que cheirava a urina
rançosa e era pintado em um tom de verde terrivelmente
desagradável. O interior do apartamento era pequeno e
quase sem mobília, assim como o exterior era mofado —
apesar de limpo —, mas Alexandra não pareceu sentir
nenhum constrangimento por isso. Na verdade, ela
conduziu Deborah para dentro com uma graça imperial,
orgulhosa do que tinha e da maneira como cuidava de sua
casa. Da janela, Deborah contou três prédios idênticos e
inúmeros outros similares na direção de onde vieram.
O marido de Alexandra, Vasily, um homem troncudo em
mangas de camisa que parecia ter uns 50 anos, não falava —
ou dizia não falar — inglês.Vasily olhou detalhadamente
para Deborah, medindo-lhe a estatura desajeitada, quando,
sentindo-se um pássaro perdido, ela entrou na sala de visitas.
Com expressão séria e voz direta, Alexandra conversou com
ele em russo enquanto, várias vezes, ele lhe dava seu
consentimento. Por fim, ele cumprimentou Deborah mais
afavelmente do que ela imaginara ser possível e saiu,
assobiando.
— Vai comprar as coisas para o jantar — disse Alexandra.
— Você come conosco.
Aquilo era um tipo de convite e Deborah agradeceu,
pensando também que Alexandra pedira que o marido saísse
para fazer comprar para que pudessem ficar sozinhas e
conversar.
Havia quatro caixas grandes de papelão, marcadas com o que
Deborah imaginou ser apenas o endereço do apartamento.
— Ali — disse Alexandra, fazendo um gesto para o canto do
apartamento onde elas estavam empilhadas. — Pode abrir.
Ela foi até a cozinha fazer café, deixando Deborah sozinha e
com a clara impressão de que a filha do homem morto
ficaria feliz em atear fogo nelas. Ao abri-las, Deborah
encontrou-as cheias de antigas pastas de papel manilha e
papéis, alguns meticulosamente datilografados e organizados,
outros apenas pacotes de papéis cobertos com o que
pareciam ser rabiscos aleatórios. Deborah respirou fundo.
Como era de esperar, tudo estava escrito em russo e ela não
conseguia ler nenhuma letra.
— Será que você pode me ajudar a ler algumas coisas? —
Deborah perguntou a Alexandra assim que ela retornou
segurando uma bandeja de café com bolinhos.
— Não tem nada importante aí — ela disse, com desprezo.
— Se você pudesse me dizer ao menos o que significam os
títulos das pastas... Alexandra franziu profundamente o
cenho, rosnou como um enorme
urso e ajeitou-se, de cócoras, ao lado da caixa mais próxima.
— Nada — ela disse. — Tudo bobagem.
Pelo que Deborah pôde ver, uma grande parte das pastas
continha cartas, muitas delas com envelopes oficiais,
marcadas com emblemas da União Soviética.
— Do que falam? — ela perguntou.
— Das suas... — ela procurou a palavra. — Obsessões.
— Trata-se de informação secreta? — perguntou Deborah.
— Quer dizer, é perigoso você me contar alguma coisa?
Inesperadamente, um sorriso triste abriu-se no rosto de
Alexandra.
— Não — ela disse. — Meu pai trabalhava para o diretório
dos Guardas da Fronteira. Era soldado e oficial menor; um
burocrata. Trabalhava com homens que faziam trabalhos
secretos e perigosos. Homens de poder. Mas ele? Não.
— Então, eu não entendo. Existe alguma coisa nessas caixas
que você não queira me mostrar?
Alexandra levantou-se com tamanha rapidez que Deborah
chegou a piscar, certa de que a mulher fosse lhe dar um
soco. Em vez disso, ela chutou duas vezes a primeira caixa,
derrubando e espalhando seu conteúdo, dizendo algumas
frases quebradas em russo. Seu rosto, normalmente
inexpressivo, ficou inundado de ódio.
Deborah levantou-se, pedindo desculpas.
— Não — disse Alexandra, ainda furiosa. — Não é você
quem deve se desculpar e sim ele.
E chutou novamente a caixa, arrebentando-a.
— Seu pai? Por quê?
— Por causa disso. Dessa bobagem... sem sentido.
— Eu não entendo — repetiu Deborah, segurando as mãos
de Alexandra, como se tentasse acalmá-la. — Por favor, me
conte. Do que se tratam essas cartas?
Lentamente, Alexandra acalmou-se, mas seu rosto
continuava vermelho de raiva.
— Meu pai foi um tolo — ela disse, a amargura se
transformando em vergonha. — Durante muitos anos ele foi
um bom soldado para seu país, trabalhando para os velhos
comunistas na Alemanha Oriental.
— Em Magdeburgo — contribuiu Deborah.
— Sim, em Magdeburgo. Eles lhe deram medalhas e prêmios.
Então, ele foi transferido para a Rússia e seu... STATUS?
— Graduação?
— Isso mesmo. Ele foi rebaixado. Eles passaram a não confiar
mais nele. Ele continuou trabalhando para a KGB durante 15
anos, mas nunca voltou a ser o que era. Quando terminou...
Quando se aposentou, continuava ocupando o mesmo
STATUS... graduação... que tinha quando fazia parte da
Deutsch Democratic Republic, da Alemanha Oriental.
— E o que foi que ele fez? — perguntou Deborah, agora
cautelosa, certa de estar perto de ouvir alguma declaração
importante.
— Ele escreveu isto — ela disse, pegando um punhado de
cartas.
— Sobre o que são?
Alexandra ficou muito quieta e sua cabeça pendeu um pouco
para frente, seus olhos quase se fechando, como se estivesse
fazendo uma prece. Suas mãos se movimentaram
independentemente dela, como se movidas pelo tato,
tirando uma única folha da pilha de papéis.
Era um papel diferente dos outros, brilhante e repleto de
imagens: uma fotografia em preto-e-branco marcada com
traços, flechas e rabiscos de letras cirílicas em tinta vermelha
de caneta de ponta de feltro. Com os olhos ainda
semicerrados, Alexandra colocou-a cuidadosa e
delicadamente sobre o carpete, como se fosse extremamente
frágil ou explosiva, e empurrou-a na direção de Deborah.
— O que é isso? — perguntou Deborah, pegando a foto e
olhando para a mulher russa que, ainda em silêncio, estava
de cócoras à sua frente. Quando não obteve resposta,
Deborah examinou a fotografia.
Na verdade, eram quatro fotos da mesma pessoa, tiradas de
posições levemente diferentes. Tratava-se de um homem
deitado de costas com os olhos fechados e a boca levemente
aberta. Duas das fotos eram de tronco e cabeça, cinzentas e
obscuras. As outras duas eram closes de seu rosto, com
contrastes mais definidos. Ambas mostravam um furo na
testa do homem, levemente desviado do centro. Parecia um
furo de bala.
— Eu não entendo — disse Deborah com um toque de
paciência tomando conta de sua voz. A mulher russa estava
sendo exageradamente dramática. — Quem é ele?
Alexandra continuou sem dizer nada e Deborah sentiu a
estranha sensação de que ela esperava por alguma coisa.
Deborah franziu o cenho e voltou a olhar para a foto.
— O quê? — disse a mulher russa. — Quem é...?
Enquanto a mulher russa fazia as perguntas, as feições
daquele rosto começaram a fazer sentido na mente de
Deborah: os cabelos finos e pretos distantes do rosto e das
orelhas, a cor da pele, as sobrancelhas, o queixo, o formato
da boca, a grossa fatia do bigode perfeitamente aparado...
— Não — ela disse. — Não pode ser.
Deborah olhou para as fotos e para as linhas e flechas
desenhadas sobre elas.
— Não pode ser — repetiu ela. — Ele se parece com...
— Hitler — disse Alexandra, olhando para Deborah. — Ele
se parece com Hitler.
— Adolf Hitler — disse Deborah. — Sim, mas...
— No final da guerra — disse Alexandra, sua voz apenas um
fiapo —, Hitler suicidou-se em um... BUNKER de concreto,
certo?
— Sim — disse Deborah. — Ela não estava raciocinando
corretamente. Era como se estivesse perdida em meio a uma
névoa ou, pior ainda, como se tivesse acabado de sair de
uma. Sem ter a menor idéia do que a esperava quando
chegasse ao outro lado.
— Os russos foram até lá e encontraram o corpo dele junto
com os dos outros — disse Alexandra. — Foram levados
para exames e sepultamento, mas os corpos já estavam em
adiantado estado de decomposição por causa do calor. Então,
foram mandados para Moscou. Foram levados ao quartel-
general da SMERSH, Inteligência Militar, conforme as
ordens da NKVD.
— Em Magdeburgo — contribuiu Deborah. Ela falava
devagar. A névoa estava se dissipando, mas agora sentia-se
como se tivesse sido virada de cabeça para baixo, afundando
da mesma maneira que se imaginara afundando na escuridão
da cisterna em Micenas, caindo pela distância
incomensurável com lentidão aflitiva.
— Sim, Magdeburgo — concordou Alexandra. — Tudo foi
muito direto. Verdadeiro. Todos sabiam disso. Exceto meu
pai. O louco do meu pai foi trabalhar lá e ficou obcecado
com a idéia...
— De que o corpo dele nunca tivesse chegado a Magdeburgo
— disse Deborah, ouvindo sua própria voz como se fosse
um sino distante ecoando em sua cabeça. Ela repetiu a frase,
incluindo uma palavra da carta que Sergei Voloshinov levava
no bolso na noite em que morrera. — Os restos de Adolph
Hitler nunca chegaram a Magdeburgo.
Mas isso significa que o corpo que você mandou datar com
carbono...?
Não. Richard tinha o corpo de Hitler em sua sala secreta, em
Atlanta? Era impossível. Como poderia? Como o corpo teria
chegado lá?
Do mesmo jeito que o Tesouro de Príamo terminou no
Museu Pushkin, disse uma voz na cabeça dela.
CAPÍTULO 66
Três horas se passaram. Vasily voltara das compras e estava
na cozinha desempacotando os ingredientes do jantar,
enquanto Alexandra cozinhava. Sentada em uma poltrona
de chintz, Deborah olhava para as caixas e deixava que as
novas informações se acomodassem em seu cérebro.
Se Sergei Voloshinov estivesse certo, ela — e nesse caso,
Richard, Marcus e o pai dele — estiveram muito longe das
pistas. Deborah presumira que a carta que levava com ele ao
morrer fizesse referência ao corpo do caixote, ao corpo que
estava sendo levado pelo comboio alemão e que acabara em
uma sala secreta atrás da estante do quarto de Richard.
Hipótese na qual ela agora acreditava. Entretanto, estivera
errada ao pensar que o corpo estivesse sendo levado a
Magdeburgo por vontade dos alemães. A intenção deles era
chegar em segurança à Suécia. Foram os russos quem
mandaram o corpo para Magdeburgo — o que aconteceu
mais tarde —, e, naquela altura, caso Voloshinov estivesse
certo, eles estariam lidando com um corpo completamente
diferente.
Voloshinov não era o único a ter acreditado que o corpo
considerado de Hitler, que os russos encontraram em
Berlim, pertencesse a um dos vários homens usados pelos
sósias do FÜHRER. Fora o corpo de um desses sósias que fora
levado a Magdeburgo para ser examinado, verificado e
eventualmente enterrado, enquanto o verdadeiro
desaparecera. Voloshinov fez uma pesquisa de mais de 10
anos para descobrir a história da divisão americana que
interceptara o comboio alemão a poucas milhas da fronteira
da Suíça e mais tempo ainda para descobrir o que acontecera
com o conteúdo transportado pelo comboio. Quando
acreditou ter descoberto o lugar onde o corpo se
encontrava, conseguiu um visto e voou para Atlanta.
Foi assim que os superiores dele trataram suas teorias. Tanto
que a recusa em abandoná-las resultara na proibição de
avanços em sua carreira e na nomeação para um emprego
burocrático em Moscou. Mas Deborah — graças à ajuda
relutante que Alexandra dera na tradução — entendera o
âmago da teoria de Voloshinov e não tinha tanta certeza de
se tratar apenas da loucura de uma teoria conspiratória.
Para começar, havia provas consideráveis de queVoloshinov
fora a única pessoa envolvida na pesquisa de sua teoria,
muito tempo depois de ter recebido ordens para abandoná-
la. Muitas outras pessoas tiveram suas dúvidas sobre os restos
enterrados em Magdeburgo. O próprio Stalin acusara
britânicos e americanos de terem deixado Hitler escapar, ou
mesmo de o terem enviado a algum país estrangeiro —
provavelmente na América Latina. O que talvez não
passasse de informação espúria destinada a pintar os Aliados
de bonzinhos — e até mesmo amigáveis — com relação ao
homem que os russos tinham boas razões para desprezar.
Como também ficava claro que Stalin tinha certeza de que
os russos tinham encontrado o corpo certo.
A história, como Deborah agora era capaz de enxergar, era
derivada de uma combinação de arquivos oficiais, relatos de
testemunhas e rumores, sendo que o cenário final era
inconsistente e até contraditório. Aparentemente,
Voloshinov não tinha qualquer problema com tais
inconsistências e, na verdade, dava atenção aos furos e
problemas com os relatos como se apontassem para falhas na
versão oficial dos eventos. Uma linha particular de
argumentos veio de um coronel da MVD chamado
Menshikov, cujo testemunho escrito constava em cartas
endereçadas diretamente a Voloshinov, cartas bastante
parecidas com as que levava consigo na noite de sua morte.
Ao que tudo indica, antes de encontrar-se com o pai de
Alexandra e depois com um recruta aprendendo o ofício em
seu posto na Alemanha Oriental, Menshikov fora homem de
infantaria da Unidade 79 da SMERSH, que atuara nas linhas
de frente durante a queda de Berlim. De acordo com seu
relato, ele estava presente quando a revista no bunker foi
feita. Ele ouvira o testemunho dos sobreviventes e — de
acordo com a mesma testemunha — ficara olhando
enquanto os corpos de Hitler e Eva Braun foram retirados de
uma cova rasa no jardim da chancelaria.
De acordo com a testemunha, Hitler morrera no dia 13 de
abril de 1945, vítima de um tiro de sua pistola Mauser dado
por ele em sua própria cabeça. A noiva dele tomou
cianureto. Os dois corpos foram então levados para fora,
encharcados com gasolina — comprada dias antes para esse
fim - e incinerados sob a supervisão do assistente de Hitler,
major Otto Gunsche. A cremação foi testemunhada por
Gunsche, Martin Bormann, Joseph Goebbels, Heinz Linge
(mordomo de Hitler) e Erich Kempka (seu motorista), mas,
em virtude do pesado bombardeio soviético, a pira foi
abandonada antes que a incineração chegasse ao fim. Os
guardas do prédio - inclusive Ewald Lindloff e Hans Reisser,
que enterraram os corpos — declararam que depois da
tentativa de incineração os corpos ficaram irreconhecíveis.
Outros membros do alto comando alemão também
cometeram suicídio, incluindo toda a família Goebbels:
Joseph, Magda e seus seis filhos.
Foi apenas vários dias depois da morte de Hitler que os
russos encontraram o que acreditavam ser os restos dele.
Dias em que, de acordo com Voloshinov, o corpo
verdadeiro de Hitler havia sido colocado em um caixote,
entregue a um comboio armado e mandado em direção ao
sul, rumo à fronteira da Suíça. O corpo que os soviéticos
desenterraram, ele disse, pertencia a um dos sósias de Hitler,
apesar de não saber qual deles. Algumas evidências
apontavam para Gustav Weber, outras para um ator
chamado Julius Schreck, membro do Partido Nazista desde
os anos 1920 e motorista favorito de Hitler. De acordo com
Voloshinov, foi um desses homens quem fora
convenientemente fotografado pelos alemães antes que a
pira o deixasse irreconhecível. Fora esse corpo — não o de
Hitler — a ser colocado em um caixote de madeira e
transportado para um laboratório de patologia russo em
Berlim. No dia 8 de maio de 1945, enquanto a Europa
celebrava o Dia da Vitória, um médico-legista russo, o dr.
Faust Sherovsky, e uma patologista em anatomia, Major
Anna Marantz, fizeram a autópsia dos restos mortais.
Mais tarde, o corpo foi enterrado em um terreno
abandonado na Klausenerstrasse, em Magdeburgo, onde
ficou até 1970, quando a KGB, aparentemente na tentativa
de evitar que Hitler alcançasse o STATUS de mártir para os
simpatizantes da extrema direita e os nacionalistas alemães,
desenterrou e destruiu o corpo, espalhando os restos no rio
Ehle, perto do vilarejo de Biederitz.
Além do espaço de tempo entre a morte de Hitler e a
descoberta do corpo pelos soviéticos, um hiato que
certamente permitiu que o corpo verdadeiro desaparecesse,
Deborah inicialmente pensara que não se podia dar muito
crédito à história de Voloshinov. Entretanto, quanto mais
ficava sabendo ao pressionar Alexandra para que traduzisse
cada pasta, mais ela se assombrava.
Os relatos fornecidos pelos alemães capturados que
encontraram o corpo de Hitler depois do suicídio e que
depois participaram do ritual de cremação não
correspondiam em detalhes significativos. Os ferimentos à
bala foram identificados como sendo na têmpora ou no
canto de um dos olhos. Um dos relatos dizia que o corpo
estava sobre um sofá, junto com o de Braun; outro, que
estava sozinho em uma cadeira. As manchas de sangue no
sofá eram de tipo diferente.
Mas a primeira coisa que realmente chamou a atenção de
Deborah foi o bizarro detalhe sobre a jornada que o corpo
realizou de Berlim a Magdeburgo. De acordo com relatórios
oficiais, os russos enterraram o corpo na estrada para depois
desenterrá-lo novamente. Esse padrão curioso foi repetido
umas nove ou 10 vezes entre as duas cidades. O Estado não
ofereceu nenhuma razão clara para justificar a ocorrência, e
Voloshinov tirara suas próprias conclusões, assumindo que
os soviéticos ficaram em conflito entre querer saber mais
sobre o corpo e fazê-lo desaparecer. Os dois impulsos
divergentes eram conseqüência da profunda incerteza sobre
a natureza do corpo, uma insegurança persistente sobre
terem botado as mãos no corpo errado.
Mesmo quando a autópsia formal foi realizada, os resultados
levantaram tantas perguntas quanto responderam. Os
alemães que sobreviveram ao BUNKER insistiam que Hitler
havia se suicidado — como sugeriam as impressionantes
fotografias cuja veracidade era impossível verificar —, mas o
corpo mostrava sinais de cianureto e fragmentos de vidro na
boca. Nenhuma bala fora encontrada. É claro que o líder
nazista poderia ter tomado uma ampola de veneno enquanto
atirava em si mesmo e que a bala ficara perdida, mas, com
certeza, a discrepância causara algum desconforto. Em um
exame posterior do BUNKER, foi encontrado um pedaço de
escalpo, aparentemente expulso no momento da saída da
bala. Esse pedaço foi mantido separado e, pelo que Deborah
podia ver, ainda se encontrava em posse do governo russo,
apesar de continuar claramente sem ter sido submetido a um
teste de DNA para determinar sua origem. Voloshinov via
como suspeita a recuperação desse pedaço de osso,
acreditando tratar-se de uma tentativa das autoridades para
fechar os buracos do relatório de autópsia. Além do mais, ele
não podia determinar a identidade do corpo ou provar
categoricamente que tenha vindo do mesmo corpo.
Os exames odontológicos realizados em um pedaço de ponte
dentária encontrada no jardim da chancelaria pareciam
novamente confirmar que o corpo pertencia a Hitler, mas os
registros oficiais usados para verificar esses exames foram
baseados nas memórias pouco confiáveis da assistente
Kaethe Hausermann e do ortodontista Fritz Echtmann. Os
dois trabalhavam para o dentista de Hitler, dr. Fritz Blaschke
e eram nazistas declarados que — de acordo com
Voloshinov — poderiam, antecipadamente, ter tramado um
testemunho falso. O crucial pedaço de ponte poderia, ele
argumentava, ter sido reconstruído e colocado onde foi
encontrado para despistar os russos. Mais tarde, foi
descoberto que os nazistas haviam planejado uma fuga
estratégica para os restos mortais de Hitler com o objetivo
de criar algumas evidências para convencer os russos sem,
no entanto, provar nada. Por isso o corpo foi
convenientemente queimado, para que não pudesse ser
reconhecido sem ser destruído, de modo que os russos
pudessem continuar procurando por ele. Por isso os alemães
permitiram que as fotos convenientemente parecidas
caíssem nas mãos dos russos. Só que, ele se perguntara, um
nazista leal e respeitador fotografaria o corpo de seu líder
antes de ele ser incinerado? Não fazia sentido, a não ser
como estratégia para dificultar o acesso a informação.
Quando, em 1970, os restos foram finalmente desenterrados
e destruídos pela KGB,Voloshinov argumentava, os
soviéticos estavam mais empenhados em dar um fim à
constante disputa sobre um corpo que sabiam não pertencer
a Hitler do que confiscar ao mundo um potencial santuário
nazista. Esse ato sugere que os russos acreditavam ser
impossível — mesmo com as novas técnicas forenses —
provar que o corpo fora realmente de Hitler.
Não era ele. Eles sabiam que não. Os soviéticos levaram um
corpo a Magdeburgo e não queriam admitir ao mundo que
pegaram o corpo errado. Mas foi o que aconteceu. Pegaram
o corpo errado e sabiam disso.
A peça final de evidência que desencadeou a obsessão
deVoloshinov por sua cruzada pessoal estava relacionada a
seu amigo e mentor, Menshikov. Fora o testemunho inicial
que Menshikov dividira com o pai de Alexandra sobre o que
vira e não vira em Berlim, em maio de 1945, que colocara
lenha na fogueira do pensamento deVoloshinov. Deborah
achava que o fragmento de informação passado a
Voloshinov fosse mais surpreendente e convincente do que
todo o resto. Quase sem respirar, ela leu o relato três vezes.
Em um canto de um dos cômodos do BUNKER que se parecia
com um quarto ligado ao corredor central que levava à
escadaria que dava para o jardim onde os corpos foram
incinerados, Menshikov, movendo-se com cautela, sua
submetralhadora firmemente segura nas mãos, encontrara
uma adaga. Não era uma adaga alemã, mas sim um objeto
muito mais belo e estranho, com uma lâmina fina feita de
bronze e decorada com imagens de leões e um cocheiro:
uma arma ritualística grega da Idade do Bronze.
Finalmente a ligação.
Mas não fora a adaga micênica que levara Voloshinov a
perseguir aquele caixote por metade do globo terrestre, por
mais de 50 anos. Nem as inconsistências dos registros
oficiais que o mantiveram pesquisando e escrevendo ao
governo enquanto sua graduação e STATUS lhe eram gradual-
mente tirados. Fora o ódio pelo que os nazistas foram e um
relacionamento profundo e paradoxal com seu próprio país e
suas autoridades problemáticas. Finalmente, um evento
crucial que o motivara fora a morte de seu amigo
Menshikov, secretamente executado por seu próprio
governo, com 30 outros russos, por ter se recusado a acabar
com uma rebelião na Alemanha Oriental, em Magdeburgo,
em 1953. Foi esse fato, mais do que qualquer outro, que
levou Sergei Voloshinov a perseguir sua causa.
Ainda sentada na poltrona, Deborah levantou a faca que
Menshikov encontrara, a adaga que entregara a seu discípulo
em sua busca pela verdade, o único objeto além dos papéis
encontrados nas caixas. Ela mal precisou olhar para a adaga.
Deborah tinha certeza de que ela fizera parte da coleção que
agora se encontrava em uma sala secreta de um pequeno
museu de Atlanta.
É isso, ela pensou. Essa é a peça que faltava no quebra-
cabeça.
CAPÍTULO 67
Deborah olhou pela janela enquanto Moscou ficava para trás
e pensou em Alexandra e em seu marido, que serviram um
jantar que incluíra caviar e vodca, como se ela fosse uma
embaixadora e eles tivessem a obrigação de mostrar sua
cultura e hospitalidade. No início do jantar, Vasily a
observara cuidadosamente, mas depois de algum tempo sua
atenção voltou-se para a esposa, cujo silêncio habitual
parecia ser mantido apenas com grande esforço. À medida
que o jantar progredia, Deborah pensou que o rosto de
Alexandra lembrava uma represa, prestes a ser rompida.
Quando a garrafa de vodca circulou pela terceira vez pela
mesa, a represa arrebentou.
— Você acha... — ela começou, as bochechas rosadas —
...você acha que, talvez, meu pai não estivesse louco?
Ela mal podia respirar, mal conseguira articular as palavras, e
Deborah sentiu um silêncio e uma cautela bastante densos
tomarem conta da sala enquanto ela tentava decidir. Será
que Alexandra sempre tivera esperanças de que seu pai não
fosse o palhaço que pintaram, fazendo com que sentisse
tanta vergonha e constrangimento, nunca tendo sido capaz
de engolir completamente aquela história? Isso talvez
explicasse por que ela havia permitido que Deborah visse os
arquivos que, sozinha, ela jamais teria lido.
Deborah olhou enquanto a mulher lutava com seus
sentimentos e sentiu-se feliz por poder ser honesta.
— Não — ela finalmente disse. — Não acho que ele fosse
louco. Acho que... — ela fez uma pausa, ainda meio
surpreendida com a idéia. — Acho que ele estava certo.
Nesse momento, rompeu-se a represa e Alexandra chorou
por si mesma e pelo pai.
Agora, ela sabia. Algumas vezes, Deborah tivera a impressão
de estar no caminho errado, de que a história que descobrira
estava de alguma maneira errada, mas agora sabia por quê.
Não se tratava de arqueologia, a não ser pelo fato de os
nazistas se enxergarem como os novos gregos. O próprio
Hitler se via como um novo Agamenon, travando sua guerra
xenofóbica contra povos inferiores. Quando a guerra
terminou e ele cometeu suicídio, queria ter recebido um
enterro de pompa, como os gregos e reis da antiguidade.
Ela lembrou-se da conversa com o artesão de Micenas sobre
a lista de nazistas famosos que visitaram as escavações —
assassinos e lunáticos, como Himmler e Goebbels, que
consideravam Schliemann um super-homem teutônico, em
parte porque ele havia desenterrado outros super-homens:
os heróis do exército de Agamenon. De certo modo, tudo
aquilo fazia um sentido deformado. Por isso Hitler quisera
que as Olimpíadas de 1936 fossem realizadas em Berlim, ela
pensou. Como herdeiros da supremacia física e cultural dos
gregos antigos, ele acreditava ser o direito da Alemanha
hospedar os jogos. Antes de ir para o aeroporto, ela folheara
um livro sobre a estética nazista em uma livraria em
Moscou, o que fizera com um tipo de pavor, com medo que
contivesse imagens de selvageria e degeneração, mas
acontecera o contrário. A arte nazista era contida, clássica e
evitava o abstrato e o expressionismo a favor do
conservadorismo. Acima de tudo, os nazistas amavam a arte
e a arquitetura da Grécia antiga. O livro continha várias
plantas de arquitetura — muitas delas elaboradas pelo
próprio Hitler — baseadas ou copiadas dos originais
clássicos. Mesmo a "filosofia" política ariana tinha
embasamento na estética greco-romana, ou em uma versão
nacionalista, etnocêntrica e racista dela que defendia que o
declínio da civilização clássica — que culminou na
degeneração dos tempos modernos — era conseqüência
direta da mistura racial. Ao se purgarem dos povos
"inferiores", os nazistas acreditavam estar reconstruindo uma
idade do ouro exemplificada pela arte e cultura da Grécia
antiga.
No final, eles haviam vestido seu general com os artefatos da
sepultura de Agamenon em homenagem a sua ambição
imperial e dignidade clássica, e os objetos —
independentemente de saberem se eram ou não falsos —
acabaram se transformando em meras armadilhas: artefatos
de sepultura. Era o corpo que contava.
De repente, Deborah surpreendeu-se com o fato de que, em
todos os papéis deVoloshinov, não encontrara nenhuma
menção à possibilidade de Hitler não ter morrido no
BUNKER. Tudo estava relacionado ao corpo real, que escapara
às mãos russas, e não à velha noção de Stalin de que o
homem vivo talvez tivesse escapado. Havia, ela supôs, muita
informação rolando para que aquela conspiração em
particular vingasse, apesar de ter sido alimentada com
bastante intensidade. O que levantava uma outra pergunta.
Por que os nazistas, com um país em chamas a seu redor, se
preocuparam em preservar o corpo de seu líder? Um líder
cujos planos haviam falhado e já se encontrava morto?
Para uma próxima vez, disse uma voz nefasta na mente de
Deborah.
Não se tratava de um simples corpo, mas sim de um ícone,
um monumento como o corpo de Lenin, exposto do lado de
fora das muralhas do Kremlin mesmo depois que o sistema
social que lutara para criar finalmente caíra por terra,
quebrando-se como um símbolo. Quaisquer que fossem os
motivos que os russos tiveram para destruir os restos
enterrados em Magdeburgo, eles sabiam que o mártir de
uma causa perdida tornava-se parcialmente menos perigoso
do que o homem vivo. Os ossos dele poderiam transformar-
se em um ponto de partida para os simpatizantes do
nazismo...
OK, pensou Deborah, e depois, o que aconteceu?
Algum sósia do corpo fora deixado para os russos
identificarem, mas, no trajeto para a Suécia, o verdadeiro
corpo de Hitler — coberto de riquezas micênicas — fora
interceptado por uma divisão que claramente se opunha a
tudo o que Hitler representava: uma divisão de tanques
composta exclusivamente por homens negros.
Irônico, não?
Ela supôs que, se o corpo tivesse ficado com eles, teria sido o
fim da história, mas a Alemanha nazista não tinha o
monopólio do nazismo.
— Uma coisa muito estranha — disse Deborah, em voz alta.
Fora isso que o pai de Tonya dissera ao motorista, Thomas
Morris, sobre o conteúdo do caixote. — Uma coisa muito
estranha.
Acho que Hitler enfeitado com as pompas de Agamenon
justificam o comentário, ela pensou.
Um policial militar teria roubado o caixote, matando o
comandante negro do tanque no processo, um crime que ele
acreditava — corretamente — não seria considerado sério o
bastante para merecer investigação completa. É provável
que, no início, ele apenas soubesse que as peças eram
valiosas, não que eram gregas. Ele procurou compradores
para a máscara mortuária e os outros objetos para conseguir
dinheiro para transportar o corpo de Hitler. Feito isso,
mandou o caixote para os Estados Unidos, mas, por alguma
razão, ele nunca chegou lá, e o PM perdeu contato. Então,
ele formou uma sociedade secreta de extrema direita para
tentar encontrá-lo.
Durante muitos anos, a localização do caixote permaneceu
desconhecida, até aparecer em uma praia francesa. Richard
ficou sabendo por canais no mercado negro e trouxe-o para
Atlanta, mas decidiu que o corpo — que achava ser de
Agamenon — deveria ser devolvido à Grécia.
O que não aconteceu. E ela não tinha a menor idéia de onde
estivesse, ou com quem. Será que ainda seria o que aqueles
nazistas mortos há tanto tempo queriam? Uma maneira de
unir todos os malucos que acreditavam na supremacia
branca sob uma única bandeira, reagrupando-os, fazendo
com que se multiplicassem, mandando-os avançar para
tomar Tróia de dentro de seus muros e subdivisões, dos
prédios de escritórios e pequenos negócios, todos caindo nas
mãos do inimigo que sempre estivera escondido entre eles,
como os gregos no cavalo de madeira? Com certeza, seria
impossível. Ou estaria apenas sendo ingênua? Deborah
lembrou-se do mapeamento dos grupos racistas no site do
Southern Poverty Law Center, da maneira como a tela se
enchera de ícones, a KKK, as Nações Arianas, os Novos
Confederados... Talvez não fosse tão impossível assim.
Tão logo o avião pousasse, ela ligaria para Cerniga e lhe
contaria tudo. Sobre Hitler e Voloshinov, sobre Magdeburgo
e a queda de Berlim, sobre...
... que ele estivera errado?
Também. Não seria uma conversa fácil.
Ela pensou em Calvin e perguntou-se o que ele faria com
todas aquelas informações. A noite passada, na cama, ela
finalmente deixara sua mente retornar à última noite antes
de pegarem os resultados no Laboratório CAIS, à noite que
passaram juntos, mas ficou surpresa ao descobrir que não se
lembrava de quase nada. Suas memórias estavam mais nas
pontas dos dedos do que em sua mente, pois ele havia
apagado as luzes e as cortinas pesadas do hotel bloqueado
completamente as luzes da rua. Na manhã seguinte, ele
acordara mais cedo e ela se recriminara por não ter tido a
chance de vê-lo sem as roupas de trabalho, talvez porque tal
lembrança fizesse com que o encontro dos dois parecer mais
real, mais concreto que o vago manusear desajeitado de
corpos no escuro, que era tudo o que seu cérebro conseguia
relembrar.
Bem, pensou ela, não precisa ser a única vez. Da próxima, eu
posso olhar e depois lembrar.
Talvez. Mas, para retomar aquele momento, seria preciso
uma conversa mais difícil do que qualquer uma que tivesse
de ter com a polícia.
CAPÍTULO 68
— Isso não passa de uma bobagem chamada teoria da
conspiração — disse Keene.
Cerniga fora relutante ao concordar em vê-la e aparecera no
apartamento dela com Keene a tiracolo.
— Ouçam — disse Deborah. — Temos um russo morto tão
obcecado por Hitler a ponto de segui-lo até o Museu Colina
dos Druidas...
— Só porque um velho soviético maluco acreditava que...
— Ouçam — repetiu Deborah. — Vocês acham que tudo
isso não passa de enrolação, da mesma maneira que algumas
pessoas acham que a chegada do homem à Lua foi filmada
em estúdio, mas, na verdade, é a conclusão mais prática para
os fatos. Temos um grupo neonazista atrás de alguma coisa
que vocês imaginam ser uma arma. Temos um colecionador
de arte atrás do que ele acredita ser um artefato antigo.
Temos um corpo da metade dos anos 1940 enfeitado como
se fosse um antigo herói militar. E se todos fizerem parte da
mesma história? E se vocês não estiverem procurando um
equipamento nuclear ou uma epidemia de varíola? E se o
corpo for ao mesmo tempo o artefato e a arma?
Keene abriu a boca para protestar, mas Cerniga estava
ouvindo. A irritação com que ele a dispensara na última
reunião que tiveram fora substituída por um tipo de
resignação, mas, quanto mais ela falava, mais desconfortável
ele parecia ficar. Deborah acreditava que, lá no fundo, ele
sabia — por mais absurdo que isso pudesse ser — que talvez
ela tivesse razão.
— Como assim? — ele perguntou.
— Talvez a arma não seja química ou biológica — disse
Deborah. — Talvez seja ideológica. Política. Para esses
nazistas malucos, Hitler é um deus e um pai. Os significados
dos quais seu corpo está carregado chegam às raias da magia.
— Magia?
— É o que eles acham. Trata-se mais de uma bandeira, um
talismã, um ícone, o supremo símbolo humano do que eles
são e acreditam.
— OK — disse Cerniga —, mas por que isso poderia ser
considerado uma arma?
— Porque as pessoas se arrebanham atrás de símbolos como
esse. O corpo deveria ter sido eliminado há várias décadas,
destruído pelos inimigos de todos os valores personificados
por Hitler. O fato de o corpo ter agora reaparecido em todo
o seu esplendor é visto como uma ressurreição. É um
triunfo, um estandarte de guerra; e, independentemente de
estarem certos ou errados, o grupo Atreu acha que pode
ajudá-los a fazer exatamente isso: guerra.
— Contra quem?
— Judeus, árabes, negros, homossexuais, aleijados,
esquerdistas, casais inter-raciais — disse Deborah, contando
nos dedos das mãos — e qualquer um que os ajude ou
acredite em seu direito de existir.
Agora, os dois olhavam para ela, silenciosos,
desconfortáveis.
— A redescoberta do corpo de Hitler e sua posse entre
amigos poderia ser exatamente o que é preciso para dar
início ao jogo — ela disse.
— Isso não poderia acontecer aqui — disse Keene, com voz
baixa.
— Espero que você esteja certo — disse Deborah.
— Mesmo que acontecesse, eles não sairiam vencedores.
— Da última vez, eles perderam — Deborah disse a Keene
—, mas veja o que aconteceu ao longo do caminho. Enfim,
não será como já foi. Dessa vez não teremos tanques,
uniformes e invasões. Serão ataques terroristas: explosão de
uma ponte, tiroteio no McDonald's, bomba em um posto de
gasolina. Não é necessária uma luta aberta para trazer
conseqüências inaceitáveis. Uma baixa que seja, em uma
guerra como esta, já é demais.
Depois de um longo silêncio, Cerniga levantou-se. Ele
parecia irrequieto, como se o quebra-cabeça que estivera
montando tivesse sido revirado por Deborah. Agora, o
contexto lhe parecia diferente, mais perturbador e estranho
do que antes, mas fazia sentido.
— Eu não sei — ele disse. — Parece-me... não sei. Mas
temos de investigar. Estou quase certo de que você tem
razão, mas pode ser que haja mais. Obrigado.
Deborah assentiu. Keene analisou os laços dos sapatos.
— Ouça — disse Cerniga, mudando de estado de espírito
enquanto caminhava até a porta. — Fui muito duro com
você. A morte daqueles gregos não foi culpa sua. Não foi
você quem deu os tiros...
— Eu sei, mas se eu tivesse lhe contado...
— Mesmo assim, não foi culpa sua.
Ele esperou e ela fez um pequeno sinal com a cabeça, sua
boca presa numa linha apertada.
—Você tem alguém com quem possa ficar? — ele
perguntou. — Amigos, família?
Deborah desviou o olhar.
— Sim, tenho alguém — ela disse, perguntando-se se aquilo
ainda era verdade.
CAPÍTULO 69
Depois que eles foram embora, Deborah sentou-se na
beirada da cama e, pela janela, ficou olhando a noite e a
chuva. Uma garoa consistente viera e se fora, para depois
retornar com mais intensidade. Trovões rebentavam no
oeste. Teriam relâmpagos — provavelmente muitos deles —
antes do final da noite.
Ela deu uma olhada em seu livro de endereços e procurou o
número da casa deTonya. Não sabia se o número estava
atualizado e não conseguia lembrar-se do que havia usado
antes, mas era tudo o que tinha. O telefone tocou oito vezes
antes que fosse ativada a secretária eletrônica. Deborah
gaguejou uma desculpa e depois, ainda mais desajeitada, um
tipo de plano, uma absurda estratégia de contingência
envolvendo todos os tipos de produtos queTonya chamava
de "coisas de mulher": maquiagem, perfume... coisas do tipo.
Lixou as unhas e colocou a lixa de metal no bolso.
Deborah ligou para Calvin e também foi atendida pela
secretária eletrônica. Como não pôde pensar em nenhuma
fala breve e inteligente que fosse apropriada —
especialmente se ele estivesse lá sentado, ouvindo o que ela
dizia —, desligou. Mesmo já sendo bastante tarde, ela tentou
o escritório, mas recebeu outra mensagem eletrônica. Estava
se preparando para ir para cama quando se lembrou da queda
de Calvin por trabalhar à noite e que poderia estar
trabalhando no museu. Ela poderia aparecer lá para
trabalhar, como que por acidente, e eles poderiam retomar a
conversa.
Pronta para explicar por que nem lhe dirigiu a palavra na
volta da visita ao laboratório? Por que você novamente
deixou o país sem lhe contar nada?
Deborah vestiu-se e, do celular, ligou para o museu,
enquanto fechava a porta do apartamento.
Tocou por um longo tempo antes de ser atendida. Era
Calvin, e parecia impaciente.
— Sim, Deborah, o que você quer?
— Como você sabia que era eu?
— Quem mais me ligaria a essa hora?
— Estou indo para aí — ela disse. Não estava a fim de pedir
desculpas por telefone.
— Assim, de repente? — ele perguntou. Sabia que ele estava
bravo e não podia culpá-lo por isso. — Você sai do país sem
nem ao menos me telefonar e depois bate a minha porta...
— Na verdade, essa porta é minha — ela disse, decidindo ser
engraçadinha para amenizar a situação. — Você está no meu
museu.
— Isso não faz a mínima diferença.
— Podemos falar sobre isso pessoalmente? — perguntou ela.
Calvin fez uma pausa para ponderar.
— OK — ele disse.
— Quer que eu leve alguma coisa? — ela perguntou. —
Comida chinesa?
— Por que você não vem até aqui para vermos como as
coisas se desenrolam antes de tomarmos a atitude apressada
de jantarmos juntos?
— Combinado — ela disse.
— Imprimi um cardápio da internet — ele disse, quando ela
entrou no escritório do museu. — É do Jardim de Hong
Kong.
— Pensei que a gente fosse ver como as coisas rolam antes
de tomarmos alguma atitude apressada — ela disse.
— Eu estava brincando — ele disse.
Eles ainda não haviam sorrido um para o outro.
— E sobre o que era a brincadeira? — ela perguntou.
— Imaginei que você estivesse vindo para cá para pedir
desculpas e que teria muito a dizer... a julgar pelo que ouvi
sobre aquela casa em Palmetto... e que, conseqüentemente,
eu estaria mais bonzinho do que você merece e...
— Cale a boca e deixe-me ver o cardápio — ela disse.
Agora ele sorriu e ela retribuiu com uma versão parecida,
mas que zombava um pouco mais de si mesma.
— O que você quer comer? — ele perguntou.
— Frango xadrez — ela disse.
— O que mais?
— Guioza.
— Só isso?
Parado ao lado dela, sua voz era divertida e brincalhona.
— Ah — ela disse, olhando para cima e sorrindo para
Calvin enquanto ele a abraçava —, você quer saber o que
mais, além da comida?
— Isso mesmo.
— Hmmm — ela murmurou, pensativa. — Acho que é isso
mesmo. Talvez um rolinho primavera.
Sorrindo, ele afastou-a de si.
- Brincadeira — ele disse.
— Uma garota precisa se alimentar bem — ela disse. — A
gente resolve a sobremesa mais tarde.
— Tudo bem — concordou ele. — Quer dar uma olhada e
ficar a par das coisas? Já faz algum tempo que estou aqui e
você tem muita coisa para me contar.
O museu estava aninhado em uma clareira, a uns 200 metros
da rua principal. Enquanto eles caminhavam sob os pés de
carvalho e as seringueiras, o frescor da noite recém-lavada
chegava a embriagar.
Calvin ouviu o relato — já bastante editado — sobre seus
últimos dias e segurou a mão de Deborah quando ela contou
o quanto se sentira culpada pela morte dos gregos.
— Não foi culpa sua — ele disse. — A única pessoa
responsável é a que atirou neles.
Ela apertou a mão dele e seus olhos se encontraram. Ele
usava calças de gabardina, mocassins e camiseta branca por
baixo da camisa caqui. Advogado sulino em roupa esporte,
como ele gostava de dizer. Na luz que vinha das luminárias
com lâmpadas de sódio, os traços do rosto dele eram
perfeitamente equilibrados e atraentes. Ela sorrira
livremente, uma recompensa pela compreensão dele, e, no
momento seguinte, estavam no restaurante que era enorme,
vermelho e no estilo Disney: a China vista por fabricantes
de globos de neve.
Assim que chegaram ao balcão, a comida que pediram estava
pronta e embalada para viagem, o que não evitou que a
chuva os pegasse desprevenidos assim que saíram do
restaurante. Antes de decidirem se a chuva iria piorar ou
melhorar, ficaram, por um momento, abrigados sob o
enorme pórtico vermelho do restaurante. Resolveram dar
uma corrida.
Os trovões começaram depois de terem corrido dois
quarteirões: uma grande parte deles eclodindo atrás de um
relâmpago que foi em direção ao centro da cidade. Eles riam
e corriam no meio da chuva. Calvin cantou um pouco de
Fred Astaire e Deborah dançou por poças d'água que
chegaram a cobrir seus sapatos. A enxurrada caía nos bueiros
e nas tubulações de esgoto com barulho estrondoso. As
ferroadas que ainda sentia no tornozelo não atrapalharam a
diversão de correr pela chuva com aquele homem lindo,
sentindo as roupas lhe colarem ao corpo e os cabelos
pingando. Assim que saíssem da chuva, teriam de tirar a
roupa. Seria a única coisa inteligente a fazer...
Ao chegarem ao museu, Deborah ria tanto ao tentar colocar
a chave na fechadura da porta que mal conseguia parar em
pé. Estava tão completamente encharcada que parecia ter
caído em uma piscina com roupa e tudo. Calvin tirou a
camisa, e sua camiseta parecia pintada sobre a pele.
Quando a porta abriu, eles quase caíram na imobilidade fria
do saguão do museu, seus risos ecoando em alvoroço. Era
como se fossem crianças e estivessem fazendo folia em uma
igreja, ela pensou, com todo aquele incontido bom humor
chacoalhando um silêncio reverente e embolorado. Calvin
fechou a porta atrás de si, sorrindo de orelha a orelha.
— Acho que me molhei — ele disse.
Deborah simplesmente olhou para ele.
Não. Não. Não. Isso não. Tudo, menos isso.
A camisa caqui pingava nas mãos dele. O reflexo da luz da
entrada fazia com que seu corpo brilhasse no vidro escuro e
açoitado pela chuva atrás dele, como se ele fosse um santo.
A camiseta branca colada ao corpo musculoso, o tecido fino
e transparente, encharcado, mais parecia uma segunda pele,
como uma pele descascada de réptil, de modo que ela pôde
ver nas linhas desbotadas debaixo da camiseta, escuras e
azuladas, uma tatuagem da máscara mortuária sobreposta por
uma águia alemã e uma única palavra: Atreu.
CAPÍTULO 70
Então, pensou ela, é verdade. Ela havia se perguntado,
sentido medo, lutado para não acreditar, mas ali estava.
Se eu der as costas e agir normalmente, ela pensou, talvez
ele não perceba. Ele vai se enxugar, voltar a vestir a camisa e
pensar que eu nunca vi a tatuagem. Vai pensar que
conseguiu escapar como quando apagou as luzes no quarto
do hotel. Vai pensar que eu não sei do que se trata.
Mas fingir não era o maior talento de Deborah. Nunca fora.
Ela podia ir embora, ficar de boca fechada ou tentar matar
um ou dois minutos, mas ele esperava que jantassem juntos,
e provavelmente muito mais do que isso. Ela não seria capaz
de olhar nos olhos dele. Não seria capaz de sorrir sem
perguntar se ele havia mostrado a tatuagem a Richard antes
de enfiar a adaga nazista no peito dele. Não seria capaz de
ouvir a voz dele sem ouvi-lo sussurrar ao celular, no
banheiro do Centro de Estudos Aplicados de Isótopos, o
endereço da casa onde os dois gregos se encontravam.
Ela não precisava perguntar a ele o que havia feito, ou como.
Tudo ficara bastante claro. As coisas haviam caído num
buraco que se formara no peito dela onde, poucos minutos
antes, seu coração e pulmões estiveram, enchendo-a de
certezas como se ela tivesse visto tudo com seus próprios
olhos.
E você sabia. Convenceu-se de não saber, mas sabia.
Deborah poderia dar-lhe as costas, conversar, rir como se
nada tivesse acontecido e, mais tarde, depois do jantar e da
tentativa de fazerem amor, chamar os federais e acabar com
aquilo de uma vez por todas. Teria de agüentar apenas
algumas horas, ou até menos, se encontrasse uma maneira
de dar um telefonema sem levantar suspeitas.
Você pode usar o banheiro, ela pensou. Afinal, foi isso o que
ele fez quando ordenou que os gregos fossem mortos.
— Tudo bem com você? — perguntou Calvin, dando aquele
sorriso fácil e felino.
— Sim — ela disse, virando-se e sorrindo. — Só que estou
muito molhada. Acho que vou trocar de roupa.
— Coma primeiro — ele disse. — Eu sempre quis jantar ao
lado de uma relíquia de alguns milhares de anos. O que você
acha de comermos ao lado daquele índio ali?
Ela forçou os lábios a se esticarem.
— Claro — ela disse. — Arrume as coisas enquanto vou me
lavar.
— Tem certeza que está tudo bem? — ele perguntou. —
Você parece, não sei... nervosa.
— Vamos chamar isso de expectativa — ela disse.
— Pela comida chinesa? — ele perguntou, com um sorriso
astuto e ensaboado.
E você o achava atraente.
— Não só pela comida chinesa — ela conseguiu responder.
Ele sorriu e deu um passo na direção dela, os braços
estendidos.
— Não até que eu me lave — ela disse, afastando-se
enquanto sorria.
— Talvez eu vá com você — ele disse, desconfiado.
— Você pode usar o banheiro dos garotos, que fica logo ali.
— Os homens adultos também podem usá-lo? — ele
perguntou. Ele estava dando uma de brincalhão. Ela sentia
vontade de gritar.
— Só dessa vez — ela disse, afastando-se mais um passo.
— Ande logo — ele disse. — Se demorar muito, vou atrás de
você.
Deborah sentou-se no vaso sanitário dentro do cubículo
trancado e pegou o celular. Suas mãos tremiam.
Por favor, meu Deus, faça com que esteja funcionando.
Vamos lá...
Senhor do Céu, que manda consolo a todos os corações
preocupados, vamos a Ti em busca de conforto nessa hora
difícil.
As palavras vieram soltas de alguma memória há muito
perdida e ela expulsou-as, como que forçando a si mesma a
acordar de um sonho. Olhou para o celular. É possível que a
tempestade de raios tenha obstruído o sinal, especialmente
na clareira onde o museu estava localizado.
Ela tirou o cartão de Cerniga da bolsa e digitou os números.
— Sim — ela disse, ao ser atendida por uma voz feminina.
— Posso falar com o agente Cerniga, por favor?
— O agente Cerniga tirou a noite de folga. Posso anotar seu
recado?
— Preciso encontrá-lo imediatamente. Trata-se de uma
emergência relacionada ao caso no qual ele está trabalhando.
Vamos lá. Vamos lá.
— Qual é o caso?
— Richard Dixon e os dois gregos — ela disse, explosiva. —
Por favor, não tenho tempo para isso.
— E quem está ligando? — ela perguntou, inabalável.
— Deborah Miller — ela disse. — Por favor, preciso falar
com ele imediatamente.
O barulho do chute na porta do banheiro fez com que ela
caísse para trás, estirada nos ladrilhos do piso. Caiu de mau
jeito e o celular rolou pelo chão.
Calvin Bowers pegou-o e atirou-o na privada.
— Você realmente precisa tomar uma providência a
respeito da condução de som pelos dutos de ventilação —
ele disse, com voz calma e equilibrada e rosto impassível.
Aquele era um homem que ela nunca vira antes. — Este
prédio não oferece a mínima privacidade.
CAPÍTULO 71
Ela não chorou. Não implorou. Não tentou explicar ou
apelar para seu senso de justiça, amizade ou romance
porque, instintivamente e sem nenhuma sombra de dúvida,
ela sabia que tudo aquilo havia sido real. Normalmente, ela
teria ficado em pânico, mas a estranheza da situação a
impedia de sentir o terror que sabia ser apropriado, fazendo
com que se sentisse estranhamente equilibrada, distante e
cheia de rebeldia justiceira. Ela se recusava a chorar ou a
implorar.
Mas Deborah ainda não tinha acabado de levantar-se quando
ele a atingiu com um soco na lateral da cabeça. Não doeu
tanto quanto a surpreendeu, por causa da brutalidade, e ela
agachou-se ao lado da privada. Com Bowers ainda
bloqueando a porta, não havia nenhum outro lugar para
onde ela pudesse ir.
Ocorreu-lhe, então, que ele poderia estar planejando matá-la
exatamente ali, onde estava. Mas, o que poderia fazer?
Acomodou-se de cócoras e olhou para cima. Seus olhos se
cruzaram por um breve momento e ele lançou-lhe um
sorriso de palhaço. Deliberadamente mau.
— Sabe de uma coisa? — ele disse, agora irreconhecível. —
Acho que vai ser melhor assim. Eu realmente não suportaria
que você me tocasse de novo.
Deborah tencionou o corpo, mas não disse nada.
— Você ouviu o que eu disse... — ele continuou, ainda
bastante calmo, adicionando, num sussurro que era quase
carinhoso — ...judia?
Em seguida, ele ajeitou o pulso e levou o braço para trás,
preparando-se para atingi-la novamente. Deborah atirou-se
para a frente atingindo seu corpo com a cabeça, como uma
lança, jogando-se contra ele com toda a força que conseguiu
reunir nas pernas. O soco dele atingiu-a no ombro,
provocando dor. Ao atingi-lo, Deborah fez que ele perdesse
o equilíbrio e caísse de costas no chão. Com um ruído seco,
sua cabeça bateu com tanta força contra o piso que ela
chegou a estremecer, mesmo que ao se atirar sobre ele
tivesse sentido a esperança horrível e vaga de que o impacto
pudesse ter lhe tirado a vida.
Por um segundo, Calvin ficou deitado de costas; ela por cima
dele. Da cabeça dele não saía sangue e, apesar de seus olhos
terem rolado para cima por alguns momentos, ela sabia que
ele estaria de pé em menos de um minuto. Passou por cima
dele, escancarou a porta do banheiro e correu para o interior
do museu.
Vá até um telefone.
Ela correu sem parar até o escritório, procurando suas
chaves no trajeto, suas enormes passadas cada vez mais
desiguais à medida que seu tornozelo começava a doer.
Agora não, ela pensou. Não há tempo para sentir dor.
Deborah havia chegado ao saguão quando ouviu a porta do
banheiro batendo contra a parede. Ele viria atrás dela.
Ela hesitou. Se fosse ao escritório agora, ficaria encurralada.
Era provável que ele chegasse lá antes que ela pudesse fazer
a ligação e, com certeza, antes que alguém viesse em seu
socorro. O telefonema teria de esperar. Ela precisava sair
dali. A estrada ficava a 800 metros e ela conhecia o local
melhor do que ele.
Deborah virou-se para cruzar o saguão e deu de cara com
ele, do outro lado da proa fantasmagórica, indo em direção
às portas de entrada, passando por ela pendido para o lado,
como um galeão avariado. Talvez a batida na cabeça o tenha
deixado um pouco confuso.
Muito bom, pensou ela.
Pode ser que tenha pensado que ela já tivesse saído. Talvez
tivesse perdido a noção do tempo ao perder
momentaneamente os sentidos. Muito bom.
Mas não o suficiente. Enquanto, no escuro, ela prendia a
respiração na esperança de que ele saísse na chuva e ela
pudesse trancar-se no escritório para ligar para Cerniga, ele
diminuiu a marcha e parou, olhando para as portas fechadas
como se fosse um animal. Depois, girou sobre os calcanhares
e curvou o corpo. Parecia estar olhando para alguma coisa
no chão. Ela deu uma olhada por trás da mulher-cobra verde
que sorria para ele e o coração dela deu um pulo. Ele estava
pegando um saco plástico branco que estava no chão.
De muito longe, como se visse o reflexo de um sonho
absurdo, ela percebeu o que era: a comida chinesa.
Ele está testando para ver se ainda está quente.
Apenas alguns minutos atrás, aquilo seria o jantar deles, sua
experiência compartilhada, um tipo de preliminar. A
lembrança foi tão grotesca que ela levou alguns segundos
para perceber que ele estava tentando imaginar quanto
tempo estivera fora do ar; a distância que ela se encontraria.
Bowers colocou a mão no bolso, tirou o celular enquanto
ajeitava o corpo e discou um número.
Ao primeiro som de sua voz abafada, Deborah começou a
afastar-se. Dois, três passos silenciosos, seu tornozelo cedeu
e ela caiu, desajeitada, com os olhos ainda voltados para o
homem que falava ao telefone. O ruído da queda ecoou
brevemente e ele virou-se, localizando-a no saguão escuro
enquanto ela disparava pelo único caminho possível: o
corredor que dava para as portas duplas que levavam ao
museu propriamente dito.
Ela conhecia o museu como a palma de sua mão. Poderia
esconder-se. Poderia voltar por onde viera. Poderia passar
pela residência e sair por ali...
As portas duplas à sua frente abriram-se.
Entre as portas, com os braços estendidos e o celular seguro
pelo queixo, estava o garoto careca da tatuagem que ela
deixara desacordado na escadaria subterrânea da cisterna em
Micenas. O Coelho Branco.
— Sim — ele disse ao telefone enquanto avançava na
direção dela. — Ela está bem na minha frente.
De trás de si, como se fosse um mágico ou STRIP-TEASER, ele
tirou sua faca. Era diferente da que usara na Grécia. Esta
tinha a lâmina mais longa e fina, com cabo levemente curvo
para baixo e uma pequena suástica na parte de cima. Era a
faca que matara Richard. Essa faca, ela pensou, com uma
profunda pontada de tristeza, pertencia a Calvin.
CAPÍTULO 72
Não havia como escapar. Calvin vinha atrás dela,
aproximando-se rapidamente; o garoto, posicionado à frente,
cantarolava e olhava para ela. Deborah poderia correr até um
deles, mas não gostava de suas chances; não haveria
qualquer elemento surpresa e o outro chegaria sem demora.
Ela não tinha uma arma ou maneira de escapar. Não tinha
nenhuma chance.
Tirou um vidro de perfume da bolsa. Chanel no 19. Por um
segundo, ela apontou-o para o careca e ele cambaleou, não
por causa dos olhos, mas porque deu risada.
— Jogue isso — disse Calvin. Ele agia de modo mais
cauteloso, como se pensasse que aquilo pudesse ser um
bastão. — Não vamos machucar você. Só quero que
responda a algumas perguntas.
— Como o quê? — ela perguntou, ainda conseguindo
mostrar-se desafiadora.
— Como há quanto tempo você sabe de tudo — ele disse. —
E quem mais sabe.
— Me dá uma mordida.
— Não acho que seja o momento apropriado para
demonstrar seu feminismo patente — ele disse.
Calvin levou a mão em direção à canela. Ouviu-se um breve
som de rasgar, como um velcro, e, em seguida, ele colocou-
se novamente em pé, apontando uma pistola para ela.
Deborah virou-se para olhar para ele e apontou o
vaporizador do perfume para ele.
— Sua puta — disse o garoto, ainda rindo com desdém. —
Você é absolutamente patética.
Ele deu dois passos rápidos na direção dela, que, capitulando
dramaticamente, deixou que o vidro caísse no chão. Ele
explodiu em uma pequena chuva de fragmentos de vidro e
aroma, uma combinação de flores e almíscar.
Com três passos largos e rápidos, Calvin chegou perto dela e
segurou-a pelo braço.
— Venha conosco e faça tudo o que mandarmos. Assim,
pode ser que sobreviva esta noite.
Mesmo que fosse verdade, ela pensou, era aí que terminava
a história. Uma vez satisfeito por saber tudo o que você sabe,
ou assim que descobrir que ninguém sabe que você está
aqui, você estará morta.
Apenas algumas horas, talvez menos.
O garoto guiou-a e ao mesmo tempo arrastou-a pelo museu,
até a residência e depois pela porta de trás do
estacionamento particular de Richard. Ali, havia um táxi:
uma velha van azul, escura e sem janelas, estacionada com o
motor ligado. Ela reconheceu a van como o carro que
tentou fazer com que saísse da estrada no dia em que fugira
para a Grécia. Os vidros tinham película bastante escura, mas
havia luz no interior do veículo e ela pôde ver alguém se
virar e olhar para fora, outro garoto careca.
Ótimo, ela pensou. Ele tem seu exército particular. Seu
próprio movimento da Juventude de Hitler.
— Aqui está um presentinho que você não merece — Calvin
lhe disse.
— Você vai poder ir no banco de trás.
— E isso deve me deixar feliz? — ela perguntou.
— Claro — ele respondeu. — Não era isso que você estava
querendo?
Mesmo agora, vivendo a iminência de sua própria morte, ela
sentiu uma onda de curiosidade tomando conta dela. Está lá!
Usando fita adesiva prateada, eles prenderam as mãos dela
para trás. Com força, o garoto empurrou-a para dentro e
fechou a porta, trancando-a com chave pelo lado de fora. Ela
caiu no chão da van. Todos os bancos haviam sido retirados.
Quando eles entraram na frente e ligaram o motor, ela
virou-se para olhar o caixote ao lado dela.
Ele não tinha nada de mais, pelo menos do ângulo que
olhava: um caixote grande em forma de caixão de defunto
de madeira pintada de preto. Ela não conseguia ver a tampa,
que, ao que tudo indicava, era de vidro. A única coisa que
quebrava a insignificância do objeto era um fio elétrico que
serpenteava a poucos centímetros dele. Um grosso cobertor
escuro havia sido jogado sobre ele. Enquanto a van
começava a se movimentar, ela ficou ali, deitada, sentindo a
presença da coisa ao lado dela.
Eles guiaram por cerca de 15 minutos, ela pensou. Por
algum tempo, no início e no fim da jornada, seguiram
relativamente devagar por locais escuros e ruas curvas, mas,
no meio, foram mais depressa, e os prédios do lado de fora
lançavam reflexos de luzes distorcidos através das janelas e
no sentido do teto. Chovia sem parar e os limpadores de
pára-brisa rangiam e chiavam.
Quando pararam, o garoto desceu primeiro e ficou longe
pelo menos um minuto antes que o ruído da porta de trás
sendo aberta fizesse Deborah levantar a cabeça.
— Devagar — disse Calvin do seu banco. — Se fizer alguma
idiotice, ganha uma bala na cabeça. Entendeu?
Ele está falando sério.
Deborah não disse nada, mas arrastou-se até conseguir
colocar os pés no chão de pedriscos. O garoto esperava por
ela, ainda empunhando a faca, olhando-a através da chuva
com olhar divertido e cheio de malícia.
— Você me machucou lá na Grécia, judia.
Ele tinha uma voz petulante, com o sotaque rural mais
detestável da Geórgia. Era um garoto raquítico e seria
completamente ridículo — um mero estereótipo de revista
em quadrinhos — se não fosse tão agressivo e cheio de ódio.
— Só porque você tentou me matar, seu jeca — ela disse.
O tapa que ele lhe deu na orelha foi tão forte que ela pensou
que seu tímpano tivesse rompido. Lágrimas começaram a
lhe rolar pelos olhos e, involuntariamente, ela dobrou o
corpo, mordendo o lábio ao tentar conter um soluço.
— Veja como fala — ele disse.
Ela não disse nada, mas ajeitou o corpo, sentindo que Calvin
se aproximava.
— Coloque a rampa no lugar — disse Calvin. — Eu cuido
dela. Dê-me a faca.
Impassível, Calvin olhou para ela, mas ao se deparar com o
olhar de desprezo de Deborah, deu de ombros e sorriu um
pouco.
— Legal, não é? — ele perguntou, mostrando a faca de
lâmina fina. — Uma adaga da Luftwaffe do Terceiro Reich.
Ganhei do meu mentor.
— Edward Graves — ela disse.
O rosto de Calvin contraiu-se.
— E como você soube disso? — ele perguntou. — Diga-me
o que sabe e quem mais sabe de alguma coisa e faremos um
trato.
— Como o que você fez com Richard?
— Richard era um idiota como homem de negócios — ele
disse. — Tenho certeza de que faremos melhor.
— Eu não apostaria nisso.
Ele fez novo meneio de ombros.
— Se você quer dar uma de mártir, quem sou eu para
impedi-la? — ele perguntou. Calvin levantou a adaga para
que ela pudesse vê-la. Deborah viu seu rosto refletido na
lâmina. Sua imagem parecia distante, uma imagem de sonho,
clara e estranha como uma sereia afastando-se das ondas.
— Ajude-me com isso — disse o Coelho Branco. Ele
empurrava o enorme caixão preto pela rampa de madeira
que colocara na porta traseira. O caixão continuava coberto
com um cobertor escuro.
— Fique aqui — disse Calvin.
Ele não precisaria tê-la avisado. Estavam estacionados atrás
de um enorme prédio de pedras, em um pátio murado e
com portão de ferro pelo qual passaram, mas que agora
estava fechado e, ao que tudo indicava, eletronicamente
fechado. Não havia para onde ir. Se tentasse correr, ele
atiraria nela na mesma hora.
Bowers virou-se e colocou os braços ao redor da caixa com
rodinhas enquanto o garoto a empurrava em direção ao chão
de pedriscos.
— Precisamos levar isso para dentro — disse o garoto. — O
que vamos fazer com ela?
Deborah sentiu um desejo urgente de falar, de adiar
qualquer decisão que ele pudesse tomar.
— Você quer saber desde quando eu sei? — ela disse. — Há
muito tempo. Lembra-se da noite que passamos em Atenas,
quando você me disse saber o que eu queria dizer quando
lhe contei sobre a aparência de Richard? Na primeira vez
que nos encontramos, você me disse que nunca encontrara
Richard. E você acha que nunca me ocorreu que a única
pessoa além de mim que havia visto o endereço do
laboratório iria mandar os resultados para você?Você acha
que nunca me ocorreu que enquanto eu lhe mandava e-
mails com detalhes dos meus passos na Grécia algum maluco
estava tentando me matar? Acha que nunca me ocorreu que,
fosse quem fosse o maluco, ele pensava que eu sabia alguma
coisa, alguma coisa que você me vira estudando no
computador de Richard, ou que você era a única pessoa que
sabia que eu havia visto a carta que mandou para Richard no
museu? Na verdade, Calvin, foi antes disso tudo. Foi no
primeiro dia em que nos encontramos, quando você disse
que aquela machadinha "bárbara" era uma evidência do
Destino Manifesto. Você acha que todas essas coisas não se
juntaram em minha cabeça, levando-me a pensar que você
fosse um idiota, integrante de algum grupo de supremacia
branca?
Na verdade, as coisas não se juntaram. Não dessa maneira.
Deveriam ter-se juntado, mas não foi assim. Não até que eu
visse sua tatuagem. Além do mais, você deveria ter
percebido que homens com a aparência dele não convidam
mulheres como você para jantar.
Ah, é? Pois azar o deles.
Agora você consegue recuperar sua atitude anti-romântica e
desafiadora. Pior para você que não percebeu tudo antes,
quando falou com Cerniga e não lhe disse absolutamente
nada sobre todas as pistas que estava começando a juntar,
todas aquelas pequenas migalhas de pão velho que levavam
diretamente à porta de Calvin Bowers.
Na época, ela não sabia. Pelo menos, não tinha certeza.
Calvin olhou para ela. Parecia não se importar com a chuva
que lhe escorria pelo rosto.
— A quem mais você contou isso?
Deborah calou-se, olhando para ele com toda a rebeldia e
desprezo que conseguiu arrebanhar.
Ele sorriu levemente. Um sorriso divertido e duvidoso que
deixava claro que não confiava nela, mas que, por enquanto,
estava tudo bem.
— Vamos trancafiá-la com o caixão — ele disse. — Até que
esteja pronta para falar. Se tiver alguma dúvida de que
falamos sério, logo verá uma coisa que a fará mudar de idéia.
CAPÍTULO 73
Ela supôs que fosse uma casa ou que, algum dia, fora uma.
Mas não se parecia com nenhuma casa que vira antes.
Parecia-se mais com um templo, um templo grego antigo,
feito de pedras brancas e colunas. Cerniga havia sugerido
que Atreu pudesse ter herdado um monte de grana vinda
dos negócios escusos realizados por seu fundador no tempo
da guerra. E provável que essa casa tenha sido construída
com esse dinheiro. Atrás do muro do pátio, ela podia ouvir o
ruído do tráfego relativamente próximo, mas não tinha uma
idéia muito clara da direção de onde vinha.
— Essa casa foi construída por meu predecessor — disse
Calvin, conduzindo-a pelo cotovelo —, o homem que
colocou tudo isso em andamento 50 anos atrás. Sr. Edward
Graves. Um grande homem e amigo meu. Quase um pai.
Gostaria que ele estivesse vivo para ver isso. Mantenho essa
pequena sala ritualística para nossa pequena organização,
mas a ligação legal é muito tortuosa.
— Trata-se de uma monstruosidade burguesa — disse
Deborah.
— Não estava me referindo a casa — disse Calvin — apesar
de também ter sido construída por ele. Entretanto, a casa
não tem importância. Não passa de uma concha.
— Para proteger o quê?
— Você já vai descobrir — ele disse, parecendo feliz e até
um pouco excitado.
Acima de uma escadaria de degraus baixos, havia um
conjunto de portas duplas e Deborah começou a andar em
direção a elas enquanto o garoto trazia a rampa de tábuas de
madeira da van para lá.
Afastando-se do Coelho Branco e de seu maldoso olhar de
soslaio, Deborah fez uma pausa e esperou que Calvin
destrancasse as portas, enquanto se perguntava se
conseguiria sair correndo. Será que levar um tiro agora seria
pior do que o que a esperava lá dentro?
— Entre — disse Calvin, gesticulando como um nobre do
século XVIII.
Eles entraram num saguão quadrado e passaram por um
corredor de piso de madeira escura e quadros pendurados
nas paredes: corpos masculinos atléticos, paisagens
escarpadas e desenhos de armas antigas. Uma das paredes
exibia fotos em preto-e-branco de estátuas — ou
reproduções — clássicas expostas em um museu com
suásticas penduradas, todas datando do final de 1930 e
marcadas simplesmente com o título "Berlim". Uma delas
mostrava o mais alto comandante nazista em uniforme
completo, inspecionando o famoso atirador de dardos.
Depois, com um olho e a pistola ainda apontados para
Deborah, Calvin levantou e arrastou um tapete persa para o
lado, revelando um retângulo de madeira menos desbotada
que a do piso circundante. Abriu um par de trincos de latão
e o piso cedeu lentamente: uma portinhola revelou uma
rampa de pedra que descia abruptamente para as entranhas
da casa.
— Por aqui — disse Calvin, ainda mais satisfeito com a
expressão de Deborah.
Desconfortável, ela aproximou-se e olhou para baixo. Havia
alguma coisa familiar a respeito daqueles grandes blocos de
pedra que formavam as paredes.
— Continue — ele disse, cutucando-a com o cano da arma.
Com o corpo retesado, ela começou a descer, enquanto,
atrás dela, Calvin acendia uma enorme lanterna. Deborah
abaixou-se para passar pela abertura no piso e, por um
momento, sentiu o cheiro morno de madeira da casa, mas, à
medida que descia a rampa, o odor era substituído pelo frio
aroma de terra úmida. A luz da lanterna se refletia nas
paredes. Conforme avançavam, cautelosamente, ela sentia a
temperatura cair. Já tinham percorrido metade do caminho
antes que ela pudesse ver o que estava no final da rampa
emparedada.
— Ah, meu Deus — ela disse.
— Exatamente — disse Calvin. — Impressionante, não é?
No fundo, havia um par de portas pesadas entre duas sólidas
colunas. Acima do sólido lintel havia uma pedra triangular
entalhada com dois leões imperiais. Era o tesouro de Atreu
de Micenas reproduzido exatamente como teria sido o
original e transportado ao centro de Atlanta, entalhado em
granito da Geórgia.
Deborah estremeceu.
— Não é uma réplica exata — disse Calvin. — Tem apenas
um terço do tamanho do original. Demorou dez anos para
ser construída secretamente por escultores particulares.
Extremamente particulares. A maior parte do trabalho foi
feita por nossos membros. O trabalho não foi registrado em
nenhuma planta da casa. Podem procurar o quanto
quiserem. Nunca encontrarão nada.
Atrás dela, o garoto tentava trazer o caixão rampa abaixo.
— Eu não entendo — ela disse. — Pensei que... eu
simplesmente não entendo.
Calvin sorriu aquele seu sorriso gentil e conhecedor, tirou
uma pesada chave do bolso e pendurou a lanterna em um
gancho na parede.
— Foi o que imaginei — ele disse, enquanto colocava a
chave na fechadura. O mecanismo clicou em vários lugares
das portas maciças e, quando ele abriu os trincos revelando
uma imensa e impenetrável escuridão, ela ouviu um eco que
vinha de dentro.
— Você achou que, ao ver isso, eu acreditaria que estava
falando sério sobre me matar? — ela perguntou,
recuperando um pouco do seu equilíbrio. — Pois isso apenas
me convence de que você é maluco.
— Não é isso — ele disse, abrindo as portas e focalizando a
lanterna. — Isso.
Aquilo era exatamente como a tumba que vira em Micenas,
uma enorme colmeia de proporções ciclópicas, mais cinza
do que a original. Fora os enormes suportes para tochas e as
flâmulas vermelhas com o símbolo da suástica, era
exatamente igual, mas a única coisa que importava, a única
coisa que Calvin focalizou com a luz de sua lanterna foi o
corpo estirado ao chão.
Ele estava de costas, com um dos braços estirado, como se
estivesse em posição de súplica.
Deborah fechou os olhos com força e apertou os dentes de
modo a não deixar escapar um soluço.
No chão, a seus pés, havia um cachimbo quebrado. Marcus
tivera o mesmo destino do pai.
CAPÍTULO 74
— Vamos trancá-la aqui por algum tempo — disse Calvin
—, enquanto fazemos pequenos ajustes no nosso plano.
Depois a gente conversa.
— Você o matou na Grécia e depois o trouxe de volta? —
ela perguntou.
— Por quê?
Ela não se importava. Falava porque não queria ficar
trancada no escuro com o cadáver de Marcus.
— É claro que não — ele disse. — Ele voltou da Grécia e
veio me procurar. Na verdade, me encontrou.
— E você o matou — ela disse.
— Exatamente — ele confirmou.
— Por quê? — ela perguntou, tentando engolir a
instabilidade em sua voz. — Como Richard, ele era apenas
um colecionador entusiasta que pensava ter encontrado o
corpo de Agamenon.
— Isso mesmo — concordou Calvin. — Até me encontrar.
De alguma maneira, ele fez uma conexão entre mim e meu
predecessor e descobriu minha pequena câmara mortuária,
que, na verdade, acabou se transformando na sepultura dele.
Por enquanto.
Ele riu de sua piadinha.
— Depois de descobrir minha... — ele procurou as palavras
— ... orientação filosófica, começou a fazer uma busca bem
diferente. Quando o encontrei, ele havia feito o que você,
aparentemente, não fez.
— E o que ele fez? — ela perguntou, ainda sem se importar.
— Ele descobriu o conteúdo do caixote.
Enquanto ele dizia isso, o garoto, que estivera empurrando
um expositor para o centro do cômodo, olhou para cima.
— Está quase pronto — ele disse —, só falta um pouquinho.
Deborah tentou pensar rapidamente. Quanto mais ela ficava
sabendo, mais poderia ter contado a outras pessoas. E isso
poderia mantê-la viva.
— Eu sei de tudo — ela disse.
— Certo — disse Calvin, com desdém. — É claro que sabe.
— Sei que se a polícia fizer um teste de balística em sua
arma, irá atrás de você por causa da morte de Sergei
Voloshinov, o agente da MVD que você matou porque,
tanto quanto eu, ele sabia o que você tem naquela caixa.
Aquilo o imobilizou. Por um segundo, ele ficou realmente
surpreso, mas, em seguida, começou a sorrir.
— Quer saber o que mais eu sei? — perguntou Deborah,
desafiando o silêncio e a presunção dele.
Ignorando Deborah, ele virou-se para o garoto que apalpava
a parte inferior da caixa, localizava o fio elétrico e o ligava à
tomada. Debaixo do cobertor fez-se uma luz que acentuou
nitidamente os contornos rústicos dos trincos. Ao mesmo
tempo, um painel de iluminação suave que até então estivera
invisível acendeu-se, bem acima. O garoto deu alguns passos
para trás, em direção à parede, e observou. Sua expressão era
ansiosa e até um pouco amedrontada.
— O momento da verdade — disse Calvin.
Ele deu um passo na direção do caixão e, devagar,
reverentemente, retirou o cobertor.
A caixa continha o corpo encarquilhado de um homem
precariamente preservado, apesar de praticamente invisível
por baixo da cintilante máscara de ouro e da flâmula
manchada pelo tempo, que era de um vermelho desbotado
sobreposto com uma águia negra estilizada.
— Você deveria tê-lo deixado apodrecer em Berlim — ela
disse.
O garoto virou rapidamente a cabeça para olhá-la e, por um
segundo, ela pensou que tivesse ido longe demais. Mas
Calvin estava dando aquele seu sorriso escorregadio e
satisfeito consigo mesmo, que pareceu ter acalmado o rapaz.
— Finalmente nosso general está em casa — murmurou
Calvin, com um brilho no olhar que ela nunca vira antes. —
E a missão de Atreu foi cumprida. Trouxemos os restos
mortais de Adolf Hitler para a América. Nosso povo se
reunirá ao redor de seus ossos. Quem poderá conter exército
semelhante?
Então, ela estivera certa. Aquilo não servia para salvá-la, pelo
menos não agora, mas, finalmente, ela acertara.
CAPÍTULO 75
— Ela sabia! — sibilou o garoto.
— Isso não importa — disse Calvin, ainda sorrindo, feliz por
ter a posse de seu troféu.
— Cara, precisamos conversar. Agora.
Os olhos fixos de Calvin finalmente se despregaram do
cadáver meio mumificado para se encontrar com os do
Coelho Branco. Por um segundo, ele apenas olhou para o
garoto, assimilando a ansiedade dele. Em seguida, afastou-se
e saiu da câmara mortuária.
— E o que vamos fazer com ela? — perguntou o garoto.
— Deixe-a trancada aqui — disse Calvin, voltando um
sorriso para Deborah. — Por enquanto.
Deborah sentou-se na tumba em forma de colméia, o mais
distante possível do corpo de Marcus, olhando para o caixão
com tampa de vidro que estava no centro da única luz do
cômodo, e pensou. Na remota esperança de que, no caso de
estar se envolvendo com ela, Calvin lhe contasse sobre a
arma, Deborah mantivera abafadas suas suspeitas sobre ele.
Bem, agora ela sabia, e saber não lhe serviria de nada.
Mas não foi essa a única razão para que você ignorasse suas
dúvidas sobre ele, não é?
Ela as ignorara porque se não fossem verdadeiras...
Se você pudesse convencer-se de que não eram
verdadeiras...
... talvez eles tivessem se casado e ido morar numa casinha
com cerca de madeira para criar seus dois filhos saudáveis?
Irônico, não é? Ela sufocara sua intuição na tentativa de
fazer com que o relacionamento funcionasse, como se ela
fosse alguma heroína de filme de TV. E agora seu amado (e
seu capanga, o Coelho Branco) estava se preparando para
matá-la. Eles a torturariam até que ela lhes dissesse que, na
verdade, não contara nada aos federais e depois a matariam
para esguichar seu sangue em algum ritual fúnebre primitivo
para o assassino de milhões de pessoas. Chegava a ser
engraçado. Quase.
Mas ela ainda não se rendera completamente e, enquanto
pensava sobre seu "relacionamento "com Calvin, brincava
com a fina lixa de unhas de metal que tinha no bolso traseiro
da calça. Agora, ela fincava sua ponta na fita prateada que
amarrava seus pulsos, empurrando com força, até sentir que
furava a fita. Segurando o metal com firmeza, fez
movimentos para cima e para baixo, sentindo as camadas de
fita se soltarem até poder se livrar dela e atirá-la nas sombras.
Deborah levantou-se e foi em direção ao caixão, apalpando-
o para encontrar o trinco. Encontrou dois, um em cada
ponta, abriu-os e levantou a tampa. A não ser pelo leve odor
— talvez de formol —, o corpo, diferente do que imaginara,
quase não tinha cheiro. Ela segurou a máscara com as duas
mãos e soltou-a.
Apesar de encarquilhado, o corpo pertencera a um homem.
Havia um pequeno bigode e um cacho de cabelos pretos
sobre a testa, perambulando sobre o que parecia ser um
buraco de bala. Os olhos estavam fechados e perdidos nas
órbitas.
Por quantas mortes este homem foi responsável? Quantas
mais esses ossos semi-apodrecidos poderão causar?
Ela procurou por uma arma, uma pedra solta com a qual
pudesse esmagar o corpo num ato final de revolta.
Ou você talvez pudesse tentar outra coisa.
Caminhando ao redor do caixão, ela pensou no caso. Não
havia nada mais a ser feito. Por isso, precisava tentar.
Demorou uns 15 minutos. Quando terminou, puxou um dos
fios elétricos que podia ver até arrancá-lo da parede. Sem
faíscas ou ruídos, as luzes se apagaram, deixando-a no
escuro. Deborah sentou-se contra a parede fria, ouvindo o
ruído abafado dos trovões enquanto seus olhos tentavam —
sem sucesso — definir algumas formas na escuridão. Já fazia
alguns minutos que estava ali quando ouviu a porta sendo
destrancada. Ela levantou-se e colocou as mãos para trás
antes que as portas se abrissem.
Talvez seja Cerniga.
Mas era o Coelho Branco. E Calvin, atrás dele.
— A puta quebrou a instalação elétrica — disse o garoto.
— Não tem importância — disse Calvin.
— Não consigo ver um palmo adiante do nariz — disse o
garoto, tentando enxergar com os olhos pequenos e duros.
Deborah ficou feliz ao perceber que estavam agitados e até
um pouco apavorados. Estavam preocupados que ela talvez
tivesse guiado a polícia ou os federais até lá.
— Mudança de plano — disse Calvin, voltando a ficar
calmo.
Enquanto o garoto recolocava o cobertor sobre o expositor e
começava a tirá-lo dali, Calvin apontou sua pistola para o
rosto de Deborah. Depois, deu um sorriso diminuto e
quebradiço ao dizer "Adeus, Deborah".
CAPÍTULO 76
Deborah não hesitou. Assim que viu a arma, deu um passo
para trás, e depois outro. Ele ainda estava iluminado, mas,
pela expressão de irritação que tinha no rosto, ela podia ver
que não podia localizá-la nas sombras. Calvin hesitou,
movimentando a arma de um lado para outro.
Silenciosamente, ela deu mais dois passos para trás e ficou de
cócoras, encolhendo-se o mais possível. Imóvel e mantendo
os olhos no espaço iluminado onde ele estava, ela tirou um
dos sapatos e jogou-o delicadamente. Ele caiu a uns três
metros de distância e o ruído foi suficiente para chamar a
atenção de Calvin. Imediatamente, ele atirou uma vez e duas
mais, o ruído dos tiros eclodindo no espaço confinado.
Ao ouvir o ricochete, Deborah encolheu-se ainda mais,
prendendo a respiração enquanto as balas batiam contra a
parede de pedra.
— Ande logo — disse o garoto do lado de fora, agora
bastante impaciente. — Precisamos dar o fora daqui.
Movimentando-se o menos possível, Deborah olhou para
cima para averiguar se os olhos de Calvin tinham se
acostumado ao escuro. Ele ainda estava olhando para dentro,
com a arma levantada. Não sabia se a tinha acertado.
— Você acertou a puta? — perguntou o Coelho Branco,
olhando por sobre o caixote que tentava empurrar pela
rampa. Ele parecia nervoso.
— Preciso de ajuda para fazer isso. Não temos tempo...
— Você acha que sim? Entre lá e verifique, para termos
certeza.
— Para que ela passe por mim no escuro, como fez com
você em Micenas? — perguntou Calvin, finalmente
abaixando a arma. Agora, ele olhava para o garoto e, pela
rigidez do corpo dele, Deborah imaginou que Calvin não
gostava que lhe dissessem o que fazer. — Não importa — ele
disse. — Ela está morta mesmo.
Ainda não, seu filho da puta.
Assim que se afastou, as pesadas portas foram fechadas e
trancadas. A tumba caiu numa escuridão absoluta.
Deborah suspirou e perguntou-se se rezara enquanto as balas
ricocheteavam pelas pedras das paredes.
Talvez um pouco, sim. Uma parte de você ainda é...
E agora? Parecia que eles não iam voltar — o que era bom —
, mas pareciam ter certeza de que ela não era mais um perigo
para eles — o que era estranho. Não queriam uma refém e
não quiseram levá-la com eles. Será que imaginavam que ela
morreria de fome, trancada naquele cômodo, com um
cadáver?
— Ela está morta mesmo — Calvin dissera.
Lorota, ou ele realmente acreditava nisso?
O pensamento deixou-a alarmada. Quanto tempo demoraria
até que Tonya encontrasse o perfume? Aquele fora o código
que deixara na secretária eletrônica. Se a vaga suspeita que
sentia com relação a Calvin estivesse correta, ela deixaria um
sinal com o qual Tonya tropeçaria durante a limpeza. Seria
alguma coisa feminina que Deborah normalmente não
usava. Alguma "coisa de mulher" como dissera Tonya: um
risco de batom no espelho, um brinco estrategicamente
posicionado, uma poça de Chanel no 19 que qualquer
mulher perceberia no momento em que entrasse no prédio.
Eram estes os sinais de sua descoberta...
E de outra tentativa frustrada de ser...
O quê? Mulher? Bobagem. Ela não precisava de homem
nenhum para provar sua feminilidade. É o que você diz. E
continuará a dizer.
Qualquer perda, qualquer pontada de arrependimento por
não continuar o flerte com Calvin foi dissipada, reduzida à
insignificância. Mas o olhar nos olhos dele quando a
chamara — de forma tão cuidadosa e peculiar — judia.
Que o maldito vá direto para o inferno.
Ela sabia que estava certa e, se alguma parte de si mesma
desejasse que não tivesse descoberto, precisaria encontrá-la
e livrar-se dela — mesmo que lhe partisse o coração —,
porque tratava-se de algo sentimental, idiota e
autodestrutivo. Saia dessa e deixe que tudo se queime com
ele.
Que tudo se queime...
Assim como metade da família de sua mãe fora queimada
em Auschwitz por pessoas como Calvin Bowers, pelo monte
de ossos que Atreu fazia tanta questão de preservar.
Que tudo se queime.
Demorou algum tempo até que ela percebesse que o quarto
não parecia tão frio quanto antes, e mais tempo ainda para
que percebesse a maneira exata como eles pretendiam
acelerar sua morte. Sem qualquer esperança, ela apalpava as
paredes em busca de alguma pedra solta, quando percebeu
que estavam mornas.
Que tudo se queime.
Você está imaginando coisas.
Mas era bastante evidente e, quanto mais ela pensava, mais
ficava claro que as pedras estavam ficando cada vez mais
quentes. Depois de um ou dois minutos, teve absoluta
certeza de sentir cheiro de fumaça. Tateou até encontrar as
portas e aguçou os ouvidos.
Ela está morta mesmo.
Meu Deus.
A casa estava em chamas e a câmara mortuária de pedras
nada mais era do que um grande forno. Muito antes que as
sólidas portas de madeira queimassem, muito antes que os
bombeiros chegassem para controlar o fogo, ela estaria
morta, desidratada e assada como uma múmia enterrada nas
fornalhas das areias do Saara. E por um momento em que, na
escuridão de breu, se parecia com desespero — não com
depressão ou falta de esperança, mas com o desespero em
todo o seu horror e aniquilação —, a frase voltou a sua
mente...
Que tudo se queime.
CAPÍTULO 77
Não, pensou Deborah. Ela não desistiria. Ainda não. Bateu
na porta pedindo socorro até que a tensão de sua garganta a
fizesse sentir vontade de vomitar. O ar estava sendo
consumido rapidamente e ela podia sentir a fumaça que não
podia ver. Voltou a apalpar as pedras das paredes sentindo-se
tomar por uma onda de pânico enquanto o ar se tornava
cada vez mais pesado e acrimonioso. Forçou-se a enxergar
na escuridão, para o caso de as chamas virem de baixo, mas
sabia que a tumba fora cavada no chão; se conseguisse
empurrar as pedras para trás, encontraria apenas a terra
argilosa da Geórgia.
Pense!
Ela pensou em escalar a parede, mas o formato de sino da
câmara mortuária tornava a tentativa impossível, e, mesmo
que conseguisse chegar ao topo, não havia nenhuma saída.
De qualquer maneira, lá em cima a fumaça estaria mais
densa e o ar, mais quente. Duplamente mais quente, pois
parecia que toda a estrutura acima estava em chamas.
Como mariscos cozidos em pedras quentes, ela pensou. As
chamas não precisam aparecer para que você fique bem
cozida.
Tonya não encontraria o perfume até a manhã seguinte e,
mesmo que encontrasse, a polícia não saberia para onde ir.
Pense.
Mas não havia nada em que pensar. Ela não podia sair dali e,
portanto, não podia fazer soar o alarme. Os bombeiros
acabariam chegando — depois que algum vizinho visse as
chamas e desse o alarme —, mas então seria tarde demais.
As pedras mais próximas da porta estavam mais quentes e,
instintivamente, Deborah afastou-se delas. Aquilo fazia
sentido: o fogo se alastrava pela casa e pelo porão, mas os
fundos da tumba davam para a terra. É claro que, naquele
enorme forno, fazia uma diferença. Pode ser que ali
demorasse um pouco mais a morrer, mas a diferença seria
medida apenas em minutos.
Então, uma coisa lhe ocorreu.
— Trata-se de uma réplica perfeita do original — Calvin
dissera. OK. O que sei sobre o original que possa ajudar?
Nada. Não sei de nada. É uma câmara fechada por portas de
madeira que vai levar mais tempo para queimar do que você
vai levar para assar. Não, havia mais uma coisa.
Ela correu até a porta e estirou-se contra as pedras mornas
do lado esquerdo do enorme batente.
Isso é loucura. Lá atrás está mais fresco.
Ela começou a procurar reentrâncias onde pudesse apoiar-se
nas pedras.
Você não pode escalar. É côncava.
— Os primeiros três metros são verticais. Eu só preciso
subir um pouco.
Deborah encontrou um nicho com os dedos e começou a
puxar. No início devagar, um pé e depois outro saíram do
chão e procuraram apoio nos enormes blocos de pedra. Os
dedos dos pés doíam enquanto procuraram apoio. Nada.
Tossindo, ela caiu sobre o chão de terra.
Não adianta.
Foi até o outro lado da porta, tomando todo o cuidado para
não tropeçar no corpo que estava contra a parede.
Novamente tentou subir, tateando com as mãos e puxando
seu peso para cima. Dessa vez, seu pé encontrou apoio e ela
conseguiu subir uns 50 centímetros, o que lhe permitiu
chegar ao lintel da porta. Meio caindo e meio mantendo o
equilíbrio, ela agarrou o canto quadrado e, com um grito,
deixou que seu corpo se pendurasse. Por um segundo, ficou
segura em apenas uma das mãos, golpeando o escuro com a
outra até conseguir agarrar o lintel com ambas as mãos. Ao
fazer isso, ela soube que não poderia levar o corpo para cima
por causa da dor que sentia no braço. Acabaria caindo. Ao
sentir a aresta de madeira machucar a palma de sua mão,
sentiu um alívio e tentou levar o corpo para cima.
O lintel tinha mais de 30 centímetros de profundidade,
espaço suficiente para que pudesse ficar de cócoras abaixo da
enorme pedra triangular. Ela colocou a mão sobre a pedra,
sentindo seu calor, mal se permitindo sentir esperanças.
— Você disse que se tratava de uma réplica exata, seu filho
da puta — ela murmurou. — Agora, vamos ver se é verdade.
Levantou-se devagar, segurando os blocos de pedra nas
laterais do enorme triângulo de pedra entalhado, o ângulo do
domo fazendo com que se inclinasse para trás no espaço
escuro. Então, ela esticou o mais que pôde um pé para trás,
posicionou-se para dar um chute no painel de pedra quente
que, do lado de fora, tinha os dois leões entalhados.
— Uma réplica — ela cuspiu. — Com um terço do tamanho
original.
O que significa que esse pedaço de pedra não deve ter mais
do que três centímetros de largura, e os originais eram
elaborados para evitar o peso excessivo sobre os lintéis...
Ela chutou com força.
Nada além de um barulho de ossos na perna que fez com
que ela gritasse, perdesse a concentração e quase caísse de
volta ao chão.
Voltou a chutar, dessa vez com mais força, gritando a cada
vez que seu pé se chocava contra a pedra.
Fez uma pausa e chutou novamente, com mais força ainda,
sabendo que poderia machucar a perna.
Não foi o que aconteceu. Dessa vez, a pedra inabalável
pareceu ter se trincado um pouco. Ela deu mais um chute e
ouviu um pequeno ruído. Deborah sorriu um sorriso de
lobo.
Mais dois chutes e ela ouviu fragmentos de pedra caindo.
Um terceiro e conseguiu ver luz: uma luz vermelha e
bruxuleante e, mesmo que amedrontadora, ainda assim uma
luz.
Voltou a ficar de cócoras no lintel e começou a bater os
punhos contra a pedra. Uma outra fenda, cor de âmbar no
escuro, como lava escorrendo da boca de um vulcão durante
a noite, e um pedaço de pedra do tamanho da cabeça de
Deborah caiu. Exultante, ela apoiou o corpo na pedra,
empurrou e lançou outro golpe forte. O bloco cedeu um
pouco, rangendo como um molar quebrado. Várias vezes ela
repetiu o movimento até que o triângulo se partisse em
pedaços, abrindo dois terços da ponta.
Ela empurrou novamente e ouviu o ruído da pedra se
partindo no chão. Agora, conseguiria passar pelo buraco,
pensou, apesar de que a visão do inferno queimando lá fora a
forçasse a fazer uma pausa. Parecia que todo o
madeiramento do lado inferior da casa estava em chamas. A
qualquer momento iria ceder, arrastando a tumba com ela.
Se Deborah não saísse imediatamente, não conseguiria mais
sair. Deu mais uma olhada na câmara mortuária, agora
iluminada pelas chamas do lado de fora, e passou para o lado
externo do lintel.
O calor que sentiu na pele foi tremendo. Abaixou-se, virou o
rosto contra a parede e, lentamente, pendurou-se nas mãos
até chegar o mais baixo possível, de modo que pudesse pular
e rolar, amenizando o choque nos joelhos e tornozelos.
A rampa de pedra era a única coisa que não estava em
chamas. O que a havia mantido viva até agora, pensou ela,
fora o fato de ter estado abaixo — e não acima — da fumaça
e das chamas mais fortes, mas teria de subir e passar por elas
para poder sair. Abaixou a cabeça e correu. À medida que a
rampa acabava em nada, o calor aumentava terrivelmente.
Ela puxou a pequena alavanca que encontrou na parte de
cima da rampa e o alçapão do teto caiu com a visão de uma
chama abençoada enquanto o ar de baixo era sugado num
grande incêndio.
Ela enfiou a cabeça para fora, sentindo os cabelos arrepiarem
e o coração encolher. O caminho por onde viera
transformara-se num muro de chamas. Não havia como
voltar por ali. Assim como não havia saída, se ficasse onde
estava. Sem se permitir tempo para pensar, ela subiu, saiu e
esgueirou-se pelo corredor com suas paredes cobertas de
fogo, com a fralda da camisa sobre a boca e a respiração
acelerada.
No final do corredor, Deborah deu com uma porta e
colocou a mão na maçaneta. O metal estava tão quente que
ela ouviu a pele da palma de sua mão fritar como se estivesse
numa frigideira. Retirou rapidamente a mão e continuou a
correr, agora tossindo enquanto a respiração se tornava cada
vez mais difícil. A maçaneta da próxima porta estava mais
fria, mas, ao abri-la, descobriu que dava para um armário.
Deu um grito sufocado e caiu de joelhos, colocando o rosto
contra o chão em busca de um pouco de ar. Comparado ao
que ela estivera respirando, o ar parecia ar puro das
montanhas. Deborah levantou-se e continuou a correr. De
repente, a sua frente, viu as portas que davam para fora.
Ouviu um enorme ruído, seguido pelo madeiramento que
cedia, caindo numa chuva de fagulhas. Deborah abaixou a
cabeça e correu enquanto a tábua do piso onde estivera
apoiada explodia como se tivesse sido dinamitada. Em
seguida, as portas, seus trincos fervendo e, finalmente, o ar
frio e úmido da noite.
O caminho da varanda até a entrada de carros estava
iluminado não só pelo fogo que rugia de modo
impressionante atrás dela, mas pelas luzes dos três
caminhões de bombeiros. Os vários homens que estavam
conectando as mangueiras olharam boquiabertos para
Deborah. Enquanto o primeiro deles veio correndo
encontrá-la com uma máscara de oxigênio nas mãos, ela
ouviu um deles exclamar:
— Eles disseram que não havia ninguém lá dentro! Eles
disseram...
— Tem mais alguém lá dentro? — perguntou o bombeiro
que levava a máscara, ajudando-a a descer os degraus,
cuidando dela como se fosse uma criança. De repente, ela
sentiu-se fraca, quase sem condições de falar ou de
caminhar. Sentiu-se feliz por poder apoiar-se nele.
— Alguém? — perguntou ela.
— Ainda tem alguém lá dentro? — ele voltou a perguntar.
— Não estamos conseguindo controlar o fogo. Estamos
apenas evitando que se alastre.Vamos ter de deixar queimar.
Não há mais ninguém lá dentro, certo?
Ela pensou por um momento e balançou a cabeça.
Que tudo se queime.
CAPÍTULO 78
Era de manhã. Por precaução, Deborah passara a noite no
Hospital Grady Memorial. Recebera algumas doses de
oxigênio e teve seus ferimentos, queimaduras e hematomas
tratados por várias enfermeiras até que, finalmente, de
manhã bem cedo, depois de um curto sono reparador, foi
liberada para ir para casa. Cerniga e Keene vieram vê-la às
seis.
— Teve uma noite muito agitada? — perguntou o agente
federal.
— Mais ou menos — ela respondeu.
— Quer me contar o que aconteceu?
— Aqui não — ela disse. — No meu canto.
— Na sua casa?
— No museu — ela disse.
Àquela hora, o trânsito ainda não estava complicado e eles
chegaram ao museu em menos de 20 minutos.
— Podemos conversar no quarto de Richard? — ela
perguntou.
— Claro — disse Cerniga. — Por quê?
— Não sei — respondeu Deborah, com um meneio de
ombros. — Privacidade, acho.
Cerniga sentou-se na escrivaninha de Richard com o bloco
de anotações a sua frente. Deborah sentou-se na única
poltrona, de costas para a estante de livros, consciente da
sensibilidade da pele de seus braços e mãos. Um dos
membros estava enfaixado. No hospital, haviam lhe dado
vários cremes e loções para as queimaduras, mas a pele ainda
estava quebradiça e sensível, tinindo com o toque do ar.
Keene observava, desconcertado e calado.
— Isso significa o encerramento do caso, certo? — ela
perguntou.
— Ao que tudo indica, sim. — ele disse. — Passarei meses
fazendo todo trabalho burocrático, mas farei o possível para
não incomodá-la.
— Você tem certeza que era ele?
— Bowers? — perguntou Cerniga. — Sim, encontramos a
van pegando fogo numa ravina, perto de Virgínia Highlands.
— Acidente?
— Difícil dizer — respondeu ele. — Parece que foi
incinerada.
— Incinerada?
— Esse tipo de mártir político adora uma auto-imolação —
ele disse. — Apesar de não entendermos por que fariam isso
quando, aparentemente, haviam conseguido escapar com o
que queriam. Dois corpos foram removidos. Um deles era
claramente o careca que você descreveu. O outro, o
motorista, era, ao que se presume, Calvin Bowers. Temos de
esperar pela análise do dentista, mas tudo indica que sim.
Num caixão, na parte traseira da van, havia um terceiro
corpo. Era de quem estou pensando?
— Não — ela disse. — Eles não conseguiram escapar com o
que estavam procurando. Talvez tenha sido este o motivo
por que se auto-incineraram. O terceiro corpo era de
Marcus. Troquei os corpos e deixei o outro queimar na
câmara mortuária de Atreu. Quando o levaram, estavam
com pressa e não olharam com atenção, mas imagino que
não tenham demorado muito para descobrir.
Keene assobiou baixinho.
Cerniga olhou para ela. Apesar de continuar calado, Cerniga
parecia estar bastante impressionado. Como estava ansiosa
para que tudo aquilo terminasse e nem um pouco
interessada que ele sentisse admiração ou pena dela,
Deborah desviou o olhar.
— A máscara mortuária sobreviveu ao fogo? — ela
perguntou, de repente.
— Não de maneira que você queira expor. Sinto muito.
— Tudo bem — ela disse. — Marcus gostaria de ter sido
cremado numa pira funerária com a máscara de Agamenon.
Ou — continuou ela, sorrindo com tristeza — alguma coisa
do tipo.
— Você sabe que quando os alemães invadiram a Grécia —
disse Cerniga —, Hitler deu instruções detalhadas, pedindo
que Atenas não fosse bombardeada. Ele via a cidade como
sua pátria espiritual. Dizem que a Segunda Guerra Mundial
foi uma guerra moderna em termos de tecnologia, mas
antiga em termos de seus objetivos.
— A aniquilação do inimigo — disse Deborah. — A
erradicação das cidades estrangeiras e dos povos
considerados inferiores.
— E, considerando que nunca tiveram muitos membros, um
objetivo bastante audacioso para Atreu — disse Cerniga. —
Imagino que seja esse o preço dos segredos e das paranóias.
Não se pode conseguir adeptos à porta dos supermercados.
Mesmo assim, eles tinham um monte de grana.
— Graves ?
Por um momento, Cerniga pareceu confuso.
— Graves, com G maiúsculo — disse Deborah. — Edward
Graves, o policial militar.
— Certo. Sim. Parece que enquanto estava na França ele
conseguiu levantar muito dinheiro, do qual fez bom uso ao
retornar aos Estados Unidos. Era um grande empreendedor
e homem de negócios. E bastante respeitado.
Deborah fez expressão de desânimo. Não viu ali nenhum
paradoxo.
— Agora que sabemos quem estava na direção de Atreu —
disse Cerniga —, vamos conseguir acessar suas contas
bancárias. Imagino que acabaremos descobrindo que Calvin
Bowers era dono de uma bela fortuna. Sem muito dinheiro,
ele não teria sido capaz de orquestrar um plano dessa
magnitude.
Deborah desviou o olhar. Pensou que havia se deixado
fascinar e até mesmo atrair pela atitude segura e confiante de
Calvin. O pensamento fez com que se sentisse
desconfortável. Sempre se achara imune a essas coisas.
Talvez isso não seja possível. Não inteiramente. É melhor
não baixar a guarda...
— Quando voltou a ver Bowers — perguntou Cerniga,
interrompendo os pensamentos de Deborah —, você já
sabia?
— O quê? — perguntou ela, voltando a olhar para ele como
se estivesse saindo de um transe.
— Você sabia que ele era o cara, o nazista, a pessoa que
matou Richard? Por um segundo, ela ficou calada. Depois,
olhou para o vazio como se
estivesse distraída e balançou a cabeça.
Quando Cerniga e Keene foram embora, ela ficou sentada
exatamente onde estava por dez longos minutos, pensando
em Marcus e em Richard e até mesmo um pouco em Calvin.
Ela pensara que a máscara de Atreu fosse a placa de ouro
sobre o corpo antigo, mas não era. Era um rosto que Calvin
— e pessoas como ele — usavam diariamente; a mentira
constante que lhes permitia viver no mundo sem serem
reconhecidos, intocados pelo pânico, horror e descrença
que seus rostos verdadeiros causariam. Quantos deles
existiriam hoje na Geórgia, na América, vivendo vidas
comuns, mas, intimamente, odiando, desprezando e
desejando a destruição completa de todos os que não se
pareciam com eles ou não tivessem os mesmos valores e as
mesmas crenças? O pensamento deixou-a gelada e
deprimida, como uma armadura de ferro apertando seu
coração e pulmões.
Crianças e seus pais, ela pensou.
No final, tudo se reduz a isso. Deborah e seu pai, Tonya e
seu pai, Marcus e o dele, Alexandra e o dela. Menos
literariamente, Richard. Talvez até Calvin e Graves, o PM
fascista que fora o mentor de Calvin em Atreu. Atreu, ele
mesmo, e Agamenon; Agamenon e Orestes, que se vingou
da mãe assassina... Príamo e Heitor. Aquiles e Pirro. As
incontáveis — e, para ela, sem nome — vítimas dos campos
de concentração, pais, filhos e parentes. A maldição de
Atreu é a repetição dos assassinatos e vinganças impostas aos
sucessores. Agora, sentada ali sozinha, ela via como tudo se
espalhara como sangue sobre tecido, como um contágio,
corrompendo qualquer um que o tocasse. Ela virou-se para
seu livro: THE RISE AND FALI OF NAZI GERMANY.
Calvin estava morto. Um suicida incapaz de conviver com
seu fracasso. Análises odontológicas, claro. Quem mais
poderia ser? Atreu fora duas pessoas. Realmente patético.
Mas a quantidade de ódio que os dois carregavam era
desproporcional e, portanto, bastante letal.
Ela fez uma pausa, subitamente distraída.
Dois? Não. Havia um terceiro homem, alguém que ela vira
apenas uma vez, sentado na van que a levara ao pequeno
monumento funerário de Calvin...
O que significava...
Que ela precisava ligar para Cerniga. Ajeitou-se na cadeira
quase que no mesmo instante que ouvia o alarme soar
quando o trinco da estante atrás dela começou a ser
lentamente aberto.
CAPÍTULO 78
Ela não imaginara que o espaço atrás da estante pudesse ser
mais frio que o resto do quarto. Portanto, o frio que sentira
descer-lhe da nuca pela espinha deveria estar em sua cabeça.
— Olá, Calvin — ela disse, sem se virar na cadeira.
Passando por ela, ele caminhou até a porta e trancou-a.
Estava abatido, sua descontração desaparecera, seu terno
havia há muito ultrapassado o estilo um pouco amarrotado
que ele gostava de usar, seus cabelos estavam desalinhados,
seu rosto manchado de sujeira, de óleo e de sangue.
Novamente, ele segurava a longa adaga nazista apesar de
que, agora, a levava pendurada na mão como se não se
lembrasse que estava ali. Deborah não gostou daquela falta
de previsibilidade psicótica que ele afetava.
— Você não ficou surpresa ao me ver? — ele perguntou.
— Não muito — disse Deborah. — Este último show de
horror vai depender de seu nível de criatividade. Tenho lido
alguma coisa sobre a estética nazista: beleza e purificação por
meio do genocídio. Se não fosse tão repulsivo, poderia ser
divertido. Imagino que a polícia vá encontrar as balas que
você deixou nos corpos incendiados na van.
— Infelizmente, minhas últimas balas — ele disse. — Apesar
de que isso — continuou ele, lembrando-se da adaga — tem
uma certa justiça poética, não acha?
Ela olhou para a faca, mas manteve-se imóvel.
— Justiça — insistiu ele, dando um passo na direção dela e
falando com mais insistência —, por causa do que você fez a
noite passada. O que você fez com...
— Der Führer? — ela perguntou, com um tom de desprezo
permeando sua cautela. — Ótimo. Ele finalmente recebeu a
vergonhosa cremação que merecia. E sabe qual a melhor
parte? Foi você quem botou fogo nele.
— Cale a boca — ele disse, levantando a faca.
O que você está fazendo?
Ela não tinha a mínima idéia. Estava, de propósito, fazendo
com que ficasse furioso, talvez porque isso pudesse tirar sua
concentração quando ele resolvesse atacá-la. Talvez por ter
um dia admirado um homem tão idiota.
— Você não passa de um idiota — cuspiu ela. —
Supremacia branca? Isso é uma piada.
— Cale a boca, judia! — ele gritou.
—Você não pode me machucar — ela disse, levantando-se e
aprumando os ombros. — Seu pentelho idiota e
infantilizado, com suas flâmulas, SLOGANS e idéias imbecis,
seu...
Ele veio para cima dela, golpeando o ar de modo selvagem.
A pequena parte réptil do cérebro de Deborah deliciou-se
enquanto se abaixava, se defendia e chutava. Ela não deu
tapas ou arranhou, mas atingiu o rosto dele com os punhos
fechados. Ele se aproximou como um boxeador, abraçando-a
para evitar que o atingisse novamente. Ela tentou acertar
seus testículos com o joelho, mas ele previu e rolou para a
esquerda, empurrando-a para trás e fazendo-o cair sobre a
cama. Ele foi atrás dela, prendendo-a ali, lutando para
controlar as mãos dela enquanto levantava a adaga.
Então, alguém bateu à porta.
— Srta. Miller?
Era Tonya. Calvin arregalou os olhos e apertou uma das
mãos ao redor do pescoço de Deborah. Ela lutou e ele soltou
a adaga para tentar subjugá-la. Mesmo assim, Deborah não
conseguiu falar ou gritar. Ela se debatia, ouvindo o som
abafado da voz de Tonya do outro lado da porta.
— Acabei de chegar e não sabia se a senhorita estava aqui...
— ela disse.
Calvin fez uma pausa, a mão prendendo com força o
pescoço de Deborah.
— Ela não sabe — ele sussurrou. — Sbh... — Para surpresa
de Deborah, ele respondeu. — Por favor,Tonya, dê-nos
alguns minutos.Você nos pegou... desprevenidos.
— Ah, sinto muito, Sr. Bowers — disse Tonya, respeitosa e
constrangida do outro lado da porta. — Volto mais tarde.
— Tudo bem — ele disse.
Não! Não vá embora! Volte, por favor!
Ele ficou ouvindo até que se fizesse silêncio. Depois deu um
sorriso apavorante que Deborah já tivera a oportunidade de
vislumbrar e murmurou:
— Precisamos consumar nossa relação.
— Pode apostar que não.
Aquele foi o pensamento que Deborah não conseguiu
expressar. Quem disse as palavras foi Tonya.
Ela estava bem atrás dele. Ele virou-se e caiu enquanto ela
jogava a chave, tendo, antes disso, metido a antiga
machadinha na lateral da cabeça dele. Enquanto ele
estrebuchava e caía no chão, Deborah sentou-se na cama,
segurando o pescoço e tentando recuperar o fôlego.
— Para uma arma bárbara, essa machadinha até que
funciona bem — disse Tonya.
Deborah olhou para ela.
— Diga-me uma coisa — perguntou Tonya. — Você não
derramou todo aquele perfume por acidente, não é?
CAPÍTULO 80
DOIS MESES DEPOIS
O evento para arrecadação de fundos estava quase
terminado. A comida — que melhorara bastante desde a
última vez — fora servida e os funcionários do bufê
Elegância e Sabor começaram a limpar tudo
compulsivamente. A única coisa que faltava era Deborah
fazer o brinde de agradecimento.
Ela foi até o pódio e olhou para o quarteto de cordas que
parara de tocar e aproveitava o intervalo para molhar a
garganta. Olhou para a multidão de pessoas que começava a
colocar foco nela e localizou Tonya, que, ao fundo, dava um
sorriso iluminado, fazendo sinal para que Deborah
começasse. Alguém começou a bater na borda do copo com
uma colher e fez-se silêncio no saguão do museu.
— Boa noite, senhores e senhoras — disse Deborah. Em
seguida, fez uma pausa, esperando que as últimas conversas
morressem. — Não quero aborrecê-los com um longo
discurso, mas gostaria de dar algumas informações. Primeiro,
em nome do museu, gostaria de agradecer a presença de
todos e a oferta de ajuda que nos deram depois dos tempos
difíceis que passamos. Seu apoio, moral e financeiro, tem
sido de grande valia para nos ajudar a manter o nível de
qualidade dos serviços do museu.
Aplausos. Enquanto isso, ela assentiu e sorriu.
— Gostaria de aproveitar a oportunidade para lhes
apresentar uma nova funcionária — ela disse. — Tonya
Milligrew, que já está conosco há alguns meses, agora em
nova função. A partir de agora, ela será a diretora de
comunicação do museu, responsável por toda a publicidade,
relacionamento com a comunidade e tudo o mais que eu
jogar nas costas dela. Certo, Tonya?
A multidão virou-se para olhá-la, e Tonya, sorrindo
humildemente, levantou uma das mãos, numa mistura de
cumprimento e de culpa. O fato de aquele mar de rostos ser
maior e mais diversificado do que normalmente era
resultado do trabalho queTonya já começara a fazer, coisa
que Deborah e Richard juntos não conseguiriam ter feito em
tão pouco tempo.
— Gostaria também de anunciar duas novas mostras, uma
permanente e outra temporária, que virão ao Colina dos
Druidas no próximo ano. A exibição permanente será sobre
a cultura escrava da Geórgia no século XIX: um estudo
emocionante sobre a herança afro-americana na região,
incluindo um documentário que será mostrado no auditório
e uma exposição que combinará artefatos, fotografias e
documentos, cobrindo o período de captura e comércio dos
escravos na África e os navios negreiros até a vida nas
plantações e a Underground Railroad . Esperamos conseguir
peças de museus pequenos e sem recursos e de coleções
particulares em Savannah e outros lugares do estado. Vamos
também apresentar material sobre a vida em Atlanta antes da
libertação dos escravos.
Mais aplausos. Dessa vez, mais longos e entusiasmados.
— A exposição temporária ficará aberta nos três primeiros
meses do ano que vem e será uma oportunidade rara que os
americanos terão de ver uma mostra de antiguidades gregas.
Graças ao Sr. Dimitri Popadreus, diretor do Museu Nacional
de Arqueologia de Atenas, o Museu Colina dos Druidas será
o primeiro museu não europeu a mostrar essa peculiar
exposição itinerante de peças de ouro, bronze e cerâmica
micênicos. A mostra, como vocês podem imaginar, será
extraordinária, diferente de qualquer coisa vista na região e
talvez até no país. Estamos muito orgulhosos por isso.
Mais aplausos.
Essa mostra era, obviamente, uma homenagem de
Popadreus às boas intenções de Richard e à diplomacia de
Deborah, mas, mesmo assim, era um ato extremamente
generoso. A oferta fora voluntária e inesperada e chegara
apenas três dias antes. O tom lânguido da voz do grego
ecoando por uma ligação internacional cheia de ruídos
parecia vinda do passado. A delicadeza do gesto a deixara
emocionada. Em algum canto de seu coração, ela sentira que
Richard teria achado que tudo valera a pena pelo simples
fato de poder mostrar ao povo da Geórgia a cultura que
inspirou Homero e a ele. Pode ser que ele até tenha achado
que morrer por isso tenha valido a pena.
— E, antes de terminar — ela disse —, quero fazer um
brinde ao homem que contribuiu para que tudo isso fosse
possível, um homem do qual sentimos imensa falta esta
noite...
A voz dela tremeu e falhou. Deborah fez uma pausa,
voltando a abrir a boca e forçando um sorriso enquanto a
multidão esperava, compreensiva e paciente. Mas as palavras
não vinham. Ela preparara vários minutos de fala sobre o
que Richard significara para a comunidade e para ela. Tinha
histórias de sua coragem como líder nas artes, sobre seu
senso de humor e sua compaixão. Ficara metade da noite
acordada tentando encontrar uma maneira de expressar seu
amor pelo homem que partira, mas, agora, as palavras
teimavam em lhe fugir.
— Sinto muito — ela conseguiu dizer.
Fez uma pausa para se recompor, ainda sorrindo de modo a
pedir desculpas, e abriu a boca para dizer alguma coisa,
qualquer coisa. Seus olhos ficaram inundados de lágrimas,
que começaram a escorrer por seu rosto. Novamente ficou
sem palavras.
De alguma maneira, com a visão turva, seus olhos
encontraram os de Tonya no fundo do saguão e ela pôde vê-
la levantando o copo e fazendo um brinde silencioso.
Deborah imitou o gesto e todos os presentes levantaram seus
copos e disseram "Richard Dixon".
— Um discurso emocionante — disse Harvey Webster. —
Não pensei que estivesse preparada.
— Você é um mestre do elogio às avessas, Harvey — disse
Deborah, sorrindo.
Cinco minutos mais e todos iriam embora. Cinco minutos
mais e ela também poderia ir para casa, dormir, voltar a
gerenciar o museu e a viver uma vida normal. Cinco
minutos mais para aturar aquele bode velho.
— Tem mais uma coisa que talvez você gostasse de
anunciar — ele disse —, mas achei melhor falar-lhe em
particular.
Deborah ficou tensa. O comitê administrativo iria tentar
afastá-la, cortar seus fundos, ou...
—Vá em frente — ela disse, tomando um grande gole de seu
Martini seco.
— A Liga Cristã dos Executivos de Atlanta está se desfazendo
— ele disse. — Achamos que ficou fora de moda. Mas como
nosso último ato filantrópico, vamos doar uma soma
significativa ao museu.
— Isso é muito generoso da parte de vocês — disse Deborah,
sentindo um grande alívio. Tirar a Liga e seus interesses
escusos de suas costas lhe daria mais liberdade para
administrar o museu, ao mesmo tempo aumentando a
suspeita. Suspeita que vinha acompanhada de culpa a medida
que o Museu recebia o apoio deles.
— É o mínimo que podemos fazer — disse Webster,
sorrindo e mostrando aquela língua molhada e indolente.
— O momento é extremamente oportuno — disse Deborah.
— Por que decidiram desmanchar a Liga?
— Pareceu-nos apropriado — ele disse, com os olhos fixos
nela.
— O FBI acredita que o grupo Atreu estava ligado a outros
ramos de negócios oficiais — disse Deborah, a propósito de
nada. — Os federais acham que eram financiados por
algumas organizações respeitáveis que concordavam com a
supremacia da raça branca.
— Verdade? — disse Webster. — Nunca ouvi falar nesse
grupo.
— Tenho certeza de que não — ela disse. — Eles são a célula
do que pode ser considerada uma organização terrorista.
Pensamos que tivessem botado as mãos em uma arma muito
perigosa, mas, no fim, a arma acabou sendo mais ideológica
do que prática.
— Nossa! — ele disse, ainda sorrindo; ainda fingindo uma
curiosidade bem-educada; ainda jogando o jogo. — Você
disse Atreu? Parece um nome latino.
— Grego — ela disse, também sorrindo. — Ele foi o
patriarca de uma dinastia amaldiçoada, responsável pelos
mais terríveis atos de brutalidade contra os membros de sua
própria família. Por isso, seus descendentes foram
condenados a lutar em guerras sem sentido e a morrer de
maneira violenta pelas mãos de suas esposas e de seus filhos.
Como figura ligada ao ódio e à violência atrelados à antiga
glória grega, esses neonazistas o usaram e aos seus
descendentes como símbolo, uma representação de tudo o
que queriam alcançar, especialmente contra pessoas como
Tonya e eu.
— Extraordinário — ele disse.
— Sim.
Com esforço, ele produziu um sorriso sem graça.
— Sempre vai existir alguma coisa relacionada a pessoas
como vocês, não acha? — ele disse. — Sempre haverá uma
causa, alguma injustiça a ser reparada.
— Sim, claro — ela respondeu. — Realmente espero que
sim.
— Cruzadas — ele disse, em tom de parente sábio ? podem
ser muito dispendiosas.
— Eu sei — disse ela —, mas sempre valeram a pena. Alguns
meses atrás, um homem sem-teto foi assassinado. Um russo.
Ele era um cruzado. Sua luta, sua obsessão lhe tiraram tudo.
— Bem, aí está — ele disse, sorrindo.
— Ontem, recebi uma carta da filha dele — disse Deborah.
— O governo russo devolveu-lhe todas as medalhas que
ganhou e prestou-lhe uma homenagem póstuma por
serviços prestados ao país.
— Mesmo assim, ele continua morto, certo?
— Sim — ela disse —, mas sua filha voltou a amá-lo, e nada
pode superar isso.
Enquanto se afastava, seu celular tocou.
Era Cerniga. Ele disse que tentara comparecer ao evento de
arrecadação de fundos — como demonstração de apoio —
mas ficara preso no trabalho. Disse que estava feliz por ela
estar se dando bem e por ver o museu se recuperando.
Talvez ela concordasse em tomar um drinque com ele
qualquer dia desses,"só para botar a conversa em dia".
Deborah olhou para as pessoas que admiravam a proa com a
mulher-dragão esverdeada (agora autenticamente provada
como sendo do século XVI), admirando seu sorriso vítreo
para os seres marinhos. Deborah passara a apreciá-la.
Continuava a achá-la fantasmagórica, mas agora via nela
algum tipo de inteligência, como se fosse a última
brincadeira que Richard fizera com ela.
— Obrigada — ela disse a Cerniga. — Eu gostaria muito.
— Então?
— Eu tenho o número de seu celular — ela disse.
— Tudo bem — ele disse, inseguro.
Deborah desligou e começou a procurar por Tonya. Apesar
da atitude proativa dos funcionários do bufê, ainda restava
uma mesa cheia de pratos e guardanapos usados, e ela
precisava fazer com que as pessoas começassem a ir embora
de modo a poder terminar seu trabalho e conseguir ir para
cama num horário razoável. O dia seguinte era sábado, e ela
havia decidido — como dissera ao telefone, na noite
anterior, a sua mãe, incrédula — participar do Shabbat Balak
na Havurat Lev Shalen, uma sinagoga reconstrucionista que
encontrara na internet. Era a primeira vez que fazia isso
desde que se mudara para Atlanta. Isso marcaria o
recomeço, o que ela considerava imensamente tentador. De
qualquer maneira, melhor do que o batom e o perfume que
recolocara no armarinho do banheiro para serem usados em
um futuro próximo. Ela diria adeus a Richard, Marcus e
talvez até a seu pai e a todos os mortos sem nome da família
de sua mãe com as palavras "El Moleh Rachamim", ditas
consigo mesma:
Oh, Deus, cheio de compaixão, Tu que habitas as alturas,
conceda o descanso eterno sob o abrigo da Tua presença
divina entre os santos e os puros que brilham como a luz do
firmamento para a alma do meu amado que partiu para sua
morada derradeira.
Deus todo-poderoso, abrigue-o eternamente sob as asas da
Tua presença, permita que a alma dele receba a vida eterna e
que as memórias da minha vida possam me inspirar a viver
uma vida nobre e sagrada. Amém.
Ela passara a acreditar naquilo? Na verdade, não. Mas pode
ser que, com o tempo, viesse a acreditar, porque uma parte
dela sentia que deveria dizer aquelas palavras para fazer com
que se tornassem verdadeiras, que se pudesse dizê-las na
presença de outras pessoas que tentavam sobreviver no
mesmo mundo, com as mesmas verdades duras, as mesmas
misturas de equilíbrio e paradoxo, e então talvez fosse
possível alcançar o recomeço que ela vislumbrava. Pelo
menos havia esperanças e isso, ela pensou, valia muito mais
do que imaginara.
Programa da TV americana no qual as pessoas levam objetos antigos para serem
analisados e avaliados por especialistas. (N.T.)
Jogador de futebol americano que comanda o time nas jogadas e no ataque;
representante do técnico no campo. (N.T.)
Jogador de futebol americano que comanda o time nas jogadas e no ataque;
representante do técnico no campo. (N.T.)
Jogo de imaginação e fantasia em que cada jogador assume um papel. Envolve atuação,
histórias, interação social, jogos de guerra e de dados. Um grupo de amigos cria
personagens que se desenvolvem e crescem a cada aventura concluída. (N.T.)
Força aérea alemã no período nazista. (N.T.)
O autor faz um trocadilho com as palavras"graves", que, com minúscula, significa
"túmulo" e, com maiúscula, refere-se ao sobrenome do fundador e benfeitor do grupo
Atreu. (N.T.)
Rota de fuga utilizada pelos escravos americanos. (N.T.)
Lançamento Gênesis do Conhecimento A Máscara de Atreu - A. J. Hartley links ao final da mensagem digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia Sinopse: Uma Sala Secreta Um corpo caído encontra-se rodeado por uma extraprdinária coleção de antiguidades gregas - um tesouro roubado dos nazistas. O Rosto da Morte Uma Máscara mortuária micênica de valor inestimável desapareceu juntamente com os ossos de um herói lendário. Um Graal O ladrão envolve a curadora do museu em uma aterradora teia de assassinatos.
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