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[eBooks] - Filosofia

FILOSOFIA -- ARTIGOS DIVERSOS
PRIMEIRO VOLUME

O ESPECIALISTA INSTANTÂNEO
EM FILOSOFIA

Jim Hankinson

Tradução e adaptação
Desidério Murcho

O QUE A FILOSOFIA É

Eis uma coisa que o leitor deve sempre evitar tentar explicar. Mas
pode desejar ficar com duas coisas claras desde o início.

Em primeiro lugar, a filosofia não é um assunto, é uma actividade.
Consequentemente, não se estuda: faz-se. É assim que os filósofos,
pelo menos os da tradição anglo-saxónica (que por qualquer razão
histórica obscura parecem incluir os finlandeses), têm tendência para
pôr a coisa. Em segundo lugar, a filosofia é em grande parte uma
questão de análise conceptual ou seja, pensar sobre o pensamento. Por
agora, limitemo-nos ao mais básico.

Isto é algo que alguns filósofos sentem ser impossível, mas não há
razão para o leitor lhes seguir o exemplo. Para o visitante casual que
observa de relance a paisagem, a filosofia parece desconcertantemente
difícil. Uma das suas maiores dificuldades é o facto de os filósofos,
salvo raras e honrosas excepções, acharem praticamente impossível usar
uma linguagem compreensível para as pessoas comuns, como por exemplo o
português. Acontece até que quando um filósofo quer referir-se à
Pessoa Comum (uma espécie que é improvável que tenha conhecido em
primeira mão, apesar de poder ter ouvido lendas de viajantes acerca
dela), usa a expressão "o homem que apanha a carreira 45 para a
Algés", aparentemente sem se dar conta de que já ninguém usa a palavra
"carreira", excepto para referir o percurso vicioso dos políticos, e
que Algés já não é também o exemplo ideal da mediocridade suburbana
lisboeta.

A sua tarefa, portanto, é alcançar pelo menos uma ténue compreensão do
mais profundo alcance do vocabulário técnico, tal como é usado, de
forma tão enigmática, pelo filósofo contemporâneo. Não se preocupe. A
competência linguística, como o Segundo Wittgenstein teria dito (que
não deve confundir-se, é claro, com o Primeiro Wittgenstein, que não
diria tal), é uma questão de pôr as palavras na ordem certa. O leitor
não terá realmente de compreender que quer dizer a maior parte disto,
se é que quer dizer alguma coisa.

AS MORTES DOS FILÓSOFOS

Segundo os epicuristas, a morte nada é para nós - mas apesar da
opinião deles, incluímos a seguinte lista de mortes filosóficas
bizarras, para efeitos de completude.

Há duas tradições no que respeita à morte de Empédocles. De acordo com
uma delas, morreu de uma perna partida; mas a outra defende que saltou
para a cratera do Monte Etna para provar assim que era um deus. Não se
sabe como poderia isto constituir tal prova.


Heraclito, contudo, contraiu hidropisia em resultado de viver de erva
e de outras plantas numa encosta de uma montanha, numa veneta
misantrópica. Ao ser informado pelos médicos que o seu estado não
tinha cura, tomou o tratamento a seu cargo, obrigando-se a ser coberto
da cabeça aos pés com estrume, sendo depois deixado na rua (ou talvez
tivesse acontecido apenas que ninguém o queria em casa). Segundo o
historiador Diógenes Laércio, "ele não conseguiu tirar o estrume, e,
estando assim irreconhecível, foi devorado pelos cães". Talvez os cães
não o tivessem devorado se soubessem quem era.

Nunca mencione a morte de Sócrates com cicuta numa cela ateniense; mas
se tiver a infelicidade de alguém lho mencionar, tente fazer notar que
a descrição da sua morte no Fédon de Platão é completamente
inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta: por isso, alguém
estava a mentir.

Pitágoras foi uma vítima do seu próprio vegetarianismo extremo. Ao ser
perseguido por vários clientes insatisfeitos, chegou a um campo de
feijão e, para não o pisar, ficou onde estava, acabando assim por ser
morto.

Crínis, o estóico (uma escola famosa pela sua atitude imperturbável e
indiferente em relação aos aspectos terrenos) morreu de medo com um
guincho de um rato. A filosofia estóica nunca conseguiu recuperar
completamente deste revés.

Crisipo, o estóico, por outro lado, morreu a rir de uma das suas
terríveis anedotas. Um macaco de uma velha, assim reza a história,
comeu uma vez uma grande quantidade dos figos de Crisipo, após o que
este lhe ofereceu o seu odre, dizendo "É melhor ele dar um golo para
acompanhar os figos", após o que desatou às gargalhadas. Depois
morreu. Com um sentido de humor assim, não temos de nos sentir
culpados se pensarmos que foi uma sorte nenhum dos seus 700 livros ter
sobrevivido.

Diógenes terá morrido de uma das seguintes três maneiras:

1) Porque não se deu ao trabalho de respirar.
2) Devido a uma grave indigestão em resultado de comer polvo cru.
3) Por ter sido mordido no pé ao dar polvo cru aos seus cães.

Depois do período antigo a qualidade das mortes filosóficas decaiu
consideravelmente, apesar de valer talvez a pena registar que Tomás de
Aquino morreu na retrete, tal como já tinha acontecido a Epicuro.
Francis Bacon morreu em resultado de uma pneumonia que apanhou quando
tentava congelar uma galinha na neve, em Hampstead Heath. É talvez o
único homem que alguma vez morreu em resultado de uma investigação
relacionada com a comida e não por a ter efectivamente comido.

Finalmente, Descartes teve a pouca sorte de morrer por se levantar
demasiado cedo. Atraído pela corte da Rainha Cristina da Suécia,
descobriu para seu horror que ela queria ter explicações diárias e que
a única hora que tinha livre era às cinco da manhã. O choque matou-o.

A CENA CONTEMPORÂNEA -- Os Filósofos Anglo-Saxónicos

Os filósofos anglo-saxónicos (incluindo, é claro, os finlandeses), têm

tendência para negar que fazem parte de uma qualquer escola ou
corrente: na verdade, costumam encarar o sectarismo filosófico como um
perigoso hábito continental, devendo por isso ser desprezado. No
entanto, têm realmente tendência para se juntar, como se precisassem
de apoio, acreditando talvez, possivelmente com razão, que precisam
dele. São invariavelmente classificados em bloco como "filósofos
analíticos", mesmo que nunca tenham na verdade analisado nada.

Antes da Primeira Guerra Mundial, as duas personalidades mais
importantes da filosofia britânica eram provavelmente (lembre-se,
nunca se comprometa, se o puder evitar) Bertrand Russell e G. E.
Moore. Russell conseguiu a sua reputação com a publicação de Principia
Mathematica, cujo co-autor foi A. N. Whitehead, e que por isso é por
vezes conhecida como "Russell e Whitehead", à maneira dos grandes
estudos sobre sexo. Esta obra é uma exposição extremamente detalhada
da lógica simbólica formal e como tal não é uma leitura recomendável
para viagens longas de comboio; na verdade, não é uma leitura
recomendável em nenhuma situação.

Moore, para não ser ultrapassado no que respeita a títulos latinos
sonoros e portentosos, reagiu com o seu influente tratado Principia
Ethica, no qual sustentava que a palavra "bem" é indefinível, apesar
de ser o nome de uma qualidade não natural. Um conceito de Moore muito
discutido neste contexto é o da "falácia naturalista". No entanto, é
muito difícil dizer exactamente o que é isso: a ideia de Moore parece
ser a de que não podemos definir termos éticos em termos de termos não
éticos e que não se podem deduzir proposições éticas de proposições
factuais não éticas.

Esta confusão faz com que a falácia naturalista seja extremamente
útil, especialmente se o leitor seguir os passos do próprio Moore e
nunca argumentar a favor da ideia de que isto é uma falácia, mas se
limitar antes a asseverar que é. O leitor pode complementar isto de
maneira muito útil, numa conversa de café, com outro conceito de
Moore, o argumento da questão em aberto. Este argumento defende que,
seja o que for que se verifique factualmente em relação a um objecto
ou propriedade particular (que as pessoas gostam dele, por exemplo; ou
que sabe a queijo), continua a ser uma questão em aberto se isso é um
bem ou não. Moore era famoso pela sua robusta aproximação à filosofia,
não admitindo disparates sem sentido; uma vez informou uma turma
atónita que nada era mais certo do que o facto de ter duas mãos. Não
se sabe claramente quem tinha estado disposto a duvidar disso.

Quanto a Russell, as suas outras grandes contribuições para a
filosofia (para além das suas outras actividades, que incluíam o
pacifismo e a promiscuidade, podendo assim serem definidas pelo slogan
dos anos sessenta "Make Love Not War", o que Russell fez até uma idade
invejavelmente avançada) incluem a descoberta do paradoxo de Russell,
com o qual pôs fim a uma coisa depreciativamente conhecida por teoria
ingénua dos conjuntos, assim como a teoria das Descrições. A teoria
das Descrições é uma tentativa de analisar a lógica da linguagem
natural (não se esqueça desta expressão) e, em particular, o problema
dos nomes próprios. Este último, tal como a maioria dos problemas
filosóficos, não é um problema para mais ninguém a não ser para os
filósofos. Russell usou como exemplos algumas frases regularmente
usadas pelos ingleses, como "O actual Rei de França é careca" ou
"Scott escreveu o Waverley". Esta última, segundo Russell, significa
na realidade que "alguém escreveu o Waverley; só uma pessoa escreveu o

Waverley; e se alguém escreveu o Waverley, essa pessoa era Scott". Com
isto uma pessoa pode sentir-se tentada a inferir que os filósofos
sabem tanto acerca da linguagem comum como sabem acerca das pessoas
comuns (ver a Introdução).

A atitude correcta em relação à História da Filosofia Ocidental, de
Russell, é elogiar o seu estilo, lucidez e humor, ao mesmo tempo que
se manifestam algumas reservas quanto ao seu conteúdo: "Uma leitura
maravilhosa, claro, mas não pensas que é um pouco tendenciosa?" A
expressão "não pensas" faz parte de uma pergunta de retórica, e nunca
deve ser tomada literalmente.

Talvez o mais influente encontro filosófico ocorrido antes da Primeira
Guerra Mundial tenha sido o que ocorreu em 1912, quando (o Jovem)
Wittgenstein se encontrou com Russell em Cambridge, e lhe perguntou (a
Russell) se ele (o Jovem Wittgenstein) era um completo idiota; é que,
se acaso o fosse, iria para piloto de aviões. Russell disse-lhe que
fosse escrever qualquer coisa; o Jovem Wittgenstein assim fez, Russell
leu uma linha e disse-lhe que ele era demasiado esperto para ser um
aviador.

A guerra interrompeu a carreira do Jovem Wittgenstein em Cambridge,
mas regressou depois disso já como Primeiro Wittgenstein, passando a
dominar a vida filosófica de Cambridge, e não só, durante os trinta
anos seguintes. Sendo uma personagem encantadoramente excêntrica,
apaixonado por filmes medonhos, vivia numa cadeira de espaldar debaixo
de um aquecedor eléctrico, num quarto do Trinity College, que para
além disso estava completamente vazio. Publicou um único livro em toda
a sua vida, o Tractatus Logico-Philosophicus, no qual trata de
problemas como a estrutura da proposição, a questão de saber como tem
a linguagem significado, assim como as noções de verdade e falsidade.

As suas investigações fizeram-no acreditar que só as proposições
construídas através dos conectivos lógicos a partir de proposições
atómicas tinham sentido. Daí o nome "atomismo lógico" que designa este
tipo de filosofia. Tudo o resto não tinha literalmente sentido, o que
nos livra da metafísica, juntamente com muitas outras coisas. Na
verdade, tem a consequência infeliz de fazer com que quase todo o
Tractatus seja ele próprio destituído de sentido, se o que afirma for
verdade.

O Primeiro Wittgenstein reconhecia isto, dizendo que só se de alguma
maneira já soubermos o que ele quer dizer podemos compreender o seu
livro; e que a sua filosofia é como uma escada que deitamos fora
depois de a subirmos. Muitas pessoas interpretaram a metáfora
literalmente. A última frase do livro resume a ideia: "Do que um homem
não pode falar, tem um homem de fazer silêncio.", ou, para o
especialista instantâneo realmente ambicioso: "Wovon man nicht
sprechen kann, darüber muß man schweigen."

Depois disso Wittgenstein deixou a filosofia por uns tempos,
convencido que já tinha dito tudo. Contudo, acabou mais tarde por
mudar de ideias: este é o ponto crucial em que o Primeiro Wittgenstein
se torna no Segundo Wittgenstein e, enquanto tal, a segunda figura
(depois do Primeiro Wittgenstein) verdadeiramente influente da
filosofia do período entre as duas guerras.

No Tractatus, Wittgenstein pensava que as proposições têm significado

porque são como imagens dos factos que referem. Mas o Segundo
Wittgenstein discordava disto, assimilando ao invés o significado ao
uso, concedendo ainda que a linguagem comum era mais complexa (e mais
rica em significado) do que o Primeiro Wittgenstein pensava. O
resultado póstumo disto é a sua obra Investigações Filosóficas. Morreu
em 1951; desde essa altura que têm aparecido regularmente, em
publicação póstuma, apontamentos, registos de aulas, listas de
compras, notas que escrevia à senhoria, etc., dando a Wittgenstein a
distinção extraordinária de ter escrito apenas um livro em toda a sua
vida, mas mais ou menos quinze depois de morto. E tudo leva a crer que
a sua actividade editorial póstuma está para durar.

Depois da Guerra, a filosofia inglesa centrou-se em Oxford, apesar de
Cambridge discordar desta ideia, quando uma misteriosa entidade
conhecida por "filosofia de Oxford", ou, ironicamente, "filosofia
linguística", veio à existência. Os seus principais expoentes eram
Gilbert Ryle, um fumador de cachimbo de renome, e J. L. Austin, outro
fumador de cachimbo de renome. Austin era conhecido pelas suas "manhãs
de Sábado", nas quais um grupo de filósofos distintos, que se
distinguiam sobretudo por fumarem todos cachimbo, se reuniam para
discutirem as subtis nuánces da linguagem comum ou para discutirem
minhoquices, conforme a sua perspectiva. Estas discussões tinham
tendência para acabar por distinguir seis significados diferentes de
expressões como "carrinho de mão", não sendo por isso surpreendente
que provocasse raiva e escárnio entre os que eram excluídos por
qualquer razão, como, por exemplo, não serem suficientemente espertos
ou não fumarem cachimbo.

Contudo, aceita-se geralmente, excepto, como é natural, em Oxford, que
a partir da Guerra o centro de gravidade da filosofia anglo-saxónica
se mudou para a América do Norte (até mesmo o bocadinho finlandês), um
estado de coisas que pode ter talvez alguma relação com o facto de as
universidades americanas pagarem enormes salários. O Grande Patriarca
da filosofia americana é Willard van Orman Quine ("Van" para os
amigos), conhecido por sustentar que a distinção de Kant entre o
analítico e o sintético (ver Glossário) é, na melhor das hipóteses,
vaga e, na pior, inútil, tal como por ter chamado a um livro seu From
a Logical Point of View por causa de uma música popular caraíba de
Harry Belafonte.

Os seus sucessores incluem Saul Kripke, no campo da lógica filosófica
e no estudo da modalidade (não vale a pena saber o que é isto), cuja
obra mais importante, Naming and Necessity sobre nomes próprios,
sentido e referência, mundos possíveis e muitos outros termos que
encontrará no Glossário , vale a pena mencionar de passagem por
constituir, talvez, a obra filosófica mais significativa escrita
depois da guerra.

O leitor reparará também que o nome absurdo é uma ajuda tão grande na
filosofia americana como o foi para os positivistas de Viena muitos
dos quais foram parar à América, talvez por isso mesmo , impressão
essa confirmada por Alvin Plantinga, um lógico modal e um filósofo da
religião (uma combinação ligeiramente instável) e Robert Nozick, um
anarquista político da direita radical que pensa que se deve
privatizar tudo.

Um filósofo americano importante é John Rawls, cuja obra magna, Uma
Teoria da Justiça, se tem vendido muito bem. Basicamente, Rawls

defende que a justiça pode ser analisada em dois princípios:

1. Toda a gente deve ter a mesma liberdade e, dado esse
constrangimento, tanta liberdade quanta for possível;
2. As desigualdades entre as pessoas só se justificam se os que
estão pior estiverem na realidade melhor do que estariam num outro
sistema qualquer mais igualitário.

Tenha cuidado com isto: não é tão idiota como parece à primeira vista,
apesar de ser verdade que permite desigualdades extremas, o que pode
ser usado contra ele a não ser, é claro, que o leitor calhe ficar
beneficiado. Este tipo de coisa é conhecido como teoria da justiça
distributiva e pode em algumas circunstâncias vir mesmo a jeito.

Os Continentais

Há duas variedades principais de continentais: os franceses e os
alemães.

O movimento filosófico continental mais importante nos últimos tempos
foi talvez o existencialismo, que teve partidários franceses e
alemães. O expoente francês principal foi Sartre, um polímato
invejável que combinava a filosofia com a agitação política marxista,
a autoria de romances e peças de teatro, e uma capacidade prodigiosa
para o álcool. Foi ele que introduziu o slogan "a existência precede a
essência", que quer dizer, mais ou menos, que devemos estar menos
preocupados com o tipo de coisas que as coisas são, do que com o facto
de serem.

Os existencialistas resistem a ser classificados, insistindo
geralmente na autonomia do individual: logo, têm tendência para ficar
um bocado irritados só pelo facto de lhes chamarmos existencialistas.
O existencialismo, ou pelo menos a sua linha francesa, tem conexões
literárias muito fortes, sendo Camus e o próprio Sartre os seus
maiores expoentes. A literatura tende a concentrar-se no conceito de
acte gratuit (refira-a em francês, claro), que constitui supostamente
a essência da afirmação existencialista da sua própria existência. Mas
para o resto das pessoas parece-se mais com um caso de crueldade
caprichosa. Uma vez que o acte gratuit, pelo menos na literatura, tem
tendência para ter uma natureza violenta ou, no mínimo dos mínimos,
anti-social, viver com um existencialista (pelo menos com um
existencialista francês) deve ser de arrasar com os nervos.

Os alemães, dos quais vale a pena referir Martin Heidegger e Karl
Jaspers, são um bando muito diferente. Não têm pretensões literárias,
felizmente, e tendem a ser mais explícitos quanto às suas influências,
referindo filósofos como Kierkegaard e Edmund Husserl, um filósofo
alemão dos princípios do século que desenvolveu de uma maneira
sistemática e tipicamente alemã o conceito de fenomenologia, i.e., a
tentativa de penetrar, por entre as aparências superficiais das
coisas, na realidade básica da nossa apreensão consciente delas (ou
coisa assim).

O existencialismo não arrasta consigo qualquer compromisso religioso
para qualquer dos lados: Sartre era ateu, Jaspers cristão; Heidegger
era nazi, mas isto é em geral convenientemente esquecido. Um ponto
interessante a notar é que os livros de filosofia escritos em inglês
têm geralmente de ter três elementos nos seus títulos, sendo Language,

Truth and Logic (Linguagem, Verdade e Lógica), Truth, Probability and
Paradox (Verdade, Probabilidade e Paradoxo) e Mind, Language and
Reality (Mente, Linguagem e Realidade) alguns exemplos proeminentes,
ao passo que o número de elementos exigidos para os títulos
existencialistas parece ser de apenas dois, como em Sein und Zeit (Ser
e Tempo), de Heidegger, e em L'Etre e le Neant (O Ser e o Nada), de
Sartre. Os filósofos analíticos anglo-saxónicos têm tendência para
desprezar o existencialismo por não ser suficientemente analítico; os
existencialistas têm tendência para desprezar os filósofos analíticos
anglo-saxónicos por não serem suficientemente.

Já falámos o suficiente sobre o positivismo lógico e, em qualquer
caso, os seus expoentes estão na realidade mais próximos da tradição
anglo-saxónica. Nos anos trinta, muitos deles fugiram da Europa e de
Hitler em direcção à América, onde Rudolph Carnap e Carl Hempel têm
sido particularmente influentes desde a Guerra, especialmente na
filosofia da ciência. Entre os ingleses, o mais importante dos
positivistas lógicos (que, a propósito, incluem o Primeiro, mas não o
Segundo, Wittgenstein) foi A. J. Ayer (refira-se sempre a ele como
"Freddie"), que continua a ser conhecido pela sua primeira obra,
Language, Truth and Logic, apesar de ele mais tarde ter acabado por
pensar que estava tudo errado de uma ponta à outra, o que deve ter
sido muito humilhante. Ayer foi também muito influenciado por Russell,
inclusivamente na condução da sua extravagante vida pessoal.

Falta discutir um grande movimento do pensamento continental: o
estruturalismo e o seu obscuro sucessor, o pós-estruturalismo, que por
sua vez parece ter-se tornado no positivamente opaco pós-modernismo.

O estruturalismo começou originalmente com Saussure como um método em
linguística, tendo-se espalhado para a antropologia com Lévi-Strauss,
e desde então nunca mais parou, pelo menos em França e nos
departamentos de literatura inglesa das universidades americanas.
Quase ninguém admitirá hoje em dia ser um estruturalista e em qualquer
caso é muito difícil defini-los com precisão. No entanto, é importante
ter ideias firmes acerca deles. São quase completamente ignorados nos
departamentos de filosofia britânicos, o que demonstra as preocupações
rigorosamente analíticas da filosofia britânica ou a sua
extraordinária insularidade depende do lado em que o leitor estiver.
Certifique-se de que está de um lado qualquer, mas de um apenas. Uma
característica do estruturalismo e do pós-estruturalismo é a sua
desconfiança em relação às disciplinas académicas, e a sua gíria
impenetrável.

Entre os seus expoentes mais importantes incluem-se Roland Barthes (no
campo da crítica literária e das suas ramificações sociais), Michel
Foucault (história, sociologia e, por fim, sexo) e Jacques Derrida
(linguagem, crítica literária, retórica). Este último é em muitos
aspectos o mais interessante, apesar de ser também o mais
irritantemente obscuro. As opiniões variam imenso quanto ao seu
estatuto como pensador: génio ou charlatão, depende do gosto.
Aborreceu em especial os filósofos analíticos (quer dizer, os
anglo-saxónicos), pelo menos os que se deram ao trabalho de o ler, por
tentar mostrar que por debaixo da superfície cuidadosamente cultivada
de rigor, lógica, análise e investigação desapaixonada, a filosofia
analítica é uma actividade altamente tendenciosa, retórica e
subjectiva.


Ele fez isto empregando um método conhecido como desconstrucionismo,
que se tornou entretanto numa imensa indústria americana. Consiste
essencialmente em mostrar que qualquer obra literária gera
necessariamente dentro de si mesma contradições fatais, minando assim
o argumento que avança ostensivamente.

Note-se que de facto o desconstrucionismo se desconstrói a si mesmo
(um pouco como o Tractatus de Wittgenstein), um facto que não parece
preocupar os próprios desconstrucionistas (para grande irritação dos
filósofos analíticos: esta pode ser uma técnica que valha a pena
imitar).

A grande vantagem do pós-modernismo é que ninguém, incluindo os seus
expoentes, faz ideia do que seja. Dizer de uma coisa (ou, na verdade,
seja do que for) que é "pós-moderno" é um golpe útil muito usado pelos
seus defensores principais, incluindo Deleuze e Baudrillard.

As melhores estratégias a adoptar com a filosofia continental em geral
são as seguintes:

a) Afirmar que não faz, literalmente, sentido.
b) Dizer, causticamente, que seja ela o que for, não é filosofia (a
estratégia analítica);
c) Comentar cuidadosamente que não deve ser afastada
irreflectidamente. (Esta técnica funciona melhor quando alguém está
a defender uma das duas outras ideias.)

O Que a Filosofia não é

Uma concepção errada, mas comum, vê a filosofia como qualquer coisa
que na verdade é mais ou menos como a religião. Uma boa estratégia a
adoptar em relação a isto é observar que a filosofia trata de
questionar e fazer desmoronar os dogmas, ao passo que a religião trata
unicamente da sua aceitação e defesa.

O leitor irá igualmente encontrar pessoas (se não tiver cuidado) que
afirmam estar interessadas numa coisa chamada "Filosofia Oriental" ou
"Misticismo Oriental". Só há uma coisa a fazer quando confrontado com
este tipo de pessoa: faça notar firmemente que, seja a Filosofia
Oriental ou o Misticismo Oriental o que forem, não são filosofia. Seja
firme em relação a isto. Não se trata de subestimar os praticantes
desta arte arcaica: algumas pessoas dão-se bastante bem e o misticismo
pode levar-nos longe.

Nota: Como Ser um Místico

1. Invente alguns paradoxos sem sentido (tais como "a única luz
verdadeira encontra-se nas trevas", ou "cada passo em frente é um
passo atrás").

2. Use com um ar misterioso provérbios sem qualquer significado (tais
como "em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão" ou
"quanto maior é a altura, maior é a queda").

3. Professe uma crença em pelo menos um absurdo metafísico palpável,
tal como na afirmação que Tudo é o Uno Único ou que a Realidade Comum
é meramente uma Ilusão Básica em Comparação com a Vera Luz da
Divindade. Não se esqueça de Falar com Letras Maiúsculas.


4. Dê a entender de maneira obscura que a Via para a Iluminação,
apesar de Longa e Árdua, será no Fim Cumprida; e sugira que um bom
método para o conseguir é entrar numa Relação Física de Comunhão
consigo mesmo.

5. Adopte permanentemente um Sorriso Benigno, que para todos os
efeitos práticos não se consiga distinguir do Esgar Inane.

GLOSSÁRIO

Não se esqueça da regra de ouro do especialista instantâneo: as coisas
soam sempre melhor em línguas que as pessoas não sabem. Por qualquer
razão, isto é especialmente verdade do alemão. Assim:

Zeitgeist O Espírito do Tempo, a perspectiva prevalecente da
humanidade num certo tempo histórico (se é que há alguma).

Weltanschauung (esta é mesmo boa) A Visão do Mundo; a Mundividência.
Experimente em comentários como "isso é o tipo de coisa que obriga uma
pessoa a mudar de Weltanschauung".

Erkenntnis Conhecimento; é também o nome da revista fundada pelos
Positivistas Lógicos vienenses (pessoas como Otto Neurath, Carl Hempel
e Rudolph Carnap), que eram conhecidos por:

Der Wiener Kreis O círculo de Viena.

Sinn und Bedeutung Sentido e Referência: uma distinção entre dois
tipos de significação devida a Frege e uma das pedras de toque da
lógica filosófica moderna.

Gesamtheit Totalidade: muito útil no dictum de Wittgenstein: "Die Welt
ist die Gesamtheit der Tatsachen, nicht der Dinge" (o mundo é a
totalidade dos factos, e não das coisas). Não confundir com
"Gesundheit" ("Santinho!").

Mas o especialista instantâneo não consegue safar-se só com o alemão.
Tem de ter alguma ideia (ainda que ténue) do vocabulário técnico
português.

Lógica Uma palavra muito útil. Pode designar tanto um sistema formal
de raciocínio (como a silogística aristotélica), como pode ser usada
de maneira mais vaga para indicar a força argumentativa de um
fragmento de raciocínio. "Qual é a lógica desse argumento?" é uma
pergunta útil para se fazer, especialmente se está a precisar de algum
tempo para escapar de uma situação delicada.

Um Argumento, que na linguagem filosófica é a exposição racional de um
ponto de vista e não, como por vezes se pensa, uma maneira de enganar
retoricamente a outra pessoa (apesar de ser surpreendente como uma
coisa degenera tantas vezes na outra), pode ser válido ou inválido,
relevante ou não. Um argumento é válido se consiste em premissas
ligadas de tal forma que, se forem verdadeiras, então a conclusão que
se tira delas é verdadeira. É relevante só se todas as premissas forem
verdadeiras e for também válido (assegurando assim a verdade da
conclusão).


A Consistência é uma excelente arma no arsenal do especialista
instantâneo. Duas ou mais proposições são inconsistentes se é
impossível que todas sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Nunca é de mais
apontar as inconsistências das outras pessoas. Mas evite que lhe façam
o mesmo.

As Proposições são unicamente frases que são verdadeiras ou falsas,
como "O presidente Clinton é um esquilo"; assim, segundo esta
definição, "Que dizes se formos para minha casa ver a minha colecção
de queijos antigos?", não é, estranhamente, uma proposição, apesar de
ser uma proposta com algum futuro. As proposições atómicas são
proposições básicas que afirmam algo acerca de uma coisa qualquer,
tendo por isso sido vistas pelo Primeiro Wittgenstein (mas não pelo
Segundo Wittgenstein, é claro) como as partes fundamentais da
linguagem.

Derivabilidade A relação entre as premissas de um argumento relevante
ou válido e a sua conclusão: se x deriva y, então y segue-se de x
(impressiona bastante mais falar de derivabilidade do que afirmar que
uma coisa se segue da outra).

Condicionais Proposições da forma "se...então..."; são as peças
básicas para a construção de argumentos lógicos.

Contrafactuais Um tipo de condicional na qual o primeiro bocadinho (a
antecedente, "se...") é falso, tal como: "se os porcos tivessem asas,
os carros da polícia seriam obsoletos". São interessantes para os
filósofos porque é muito difícil analisar as suas condições de
verdade; e dão muito jeito ao especialista instantâneo em comentários
como "Não sei muito bem como interpretar essa contrafactual". São por
vezes conhecidos como "condicionais subjunctivos", geralmente por
pessoas que querem fazer notar que sabem latim.

Condições de Verdade As condições debaixo das quais uma coisa é
verdade; tendo isto em consideração, faz-se um espalhafato enorme com
esta coisa.

Trivialidade Ao contrário do que poderia talvez esperar-se, não é uma
característica geral de toda a actividade filosófica, mas antes um
conceito lógico. Uma coisa é trivialmente verdadeira se a sua verdade
se segue sem qualquer inferência lógica especial de qualquer outra
coisa: assim, se ambas as frases, "p" e "q" são verdadeiras, "p" é
trivialmente verdadeira. É surpreendente como se conseguem irritar
pessoas bastante fleumáticas com comentários como "Isso é verdade;
mas, é claro, é apenas uma verdade trivial".

Racional (1) com razões; (2) (Matemática) um número que pode ser
expresso como uma função de dois outros; (3) tudo o que nós mesmos
dizemos.

Irracional (1) sem razões; (2) (Matemática) um número que não pode ser
expresso como uma função de dois outros; (3) tudo o que os outros
dizem.

Analítico e Sintético Uma distinção útil de Kant entre dois tipos de
verdade: as verdades analíticas são as que são verdadeiras unicamente
em virtude do significado das palavras nelas contidas,
independentemente do estado do mundo (como "Nenhum solteiro é

casado"); as verdades sintéticas, por outro lado (como "nenhum
bacalhau é cantor de ópera"), são verdadeiras ou falsas em função de
circunstâncias empíricas (poderiam existir bacalhaus que cantassem no
Coliseu). Uma das grandes tragédias da vida é o facto de as verdades
analíticas, apesar de certas e indubitáveis, serem de pouquíssima
utilidade, ao passo que as verdades sintéticas, apesar de muito úteis,
não serem de forma alguma certas e indubitáveis. Kant, na verdade,
discordava disto, pensando que poderiam existir verdades sintéticas a
priori (ver a seguir), tais como as verdades da geometria. Mas
infelizmente estava enganado.

A priori e a posteriori Um tipo de distinção semelhante. As verdades a
priori podem ser conhecidas independentemente de quaisquer factos
empíricos; as verdades a posteriori não.

Necessidade e Contingência As verdades necessárias são as que não
poderiam não ser verdadeiras; as contingentes são as que poderiam.
Assim, a frase "Jorge Sampaio é Presidente da República" é
contingentemente verdadeira, ao passo que a frase "Jorge Sampaio é
Jorge Sampaio" é necessariamente verdadeira (o que mostra que podem
existir verdades necessárias infelizes). Outra maneira de pôr a coisa,
muito usada pelos americanos, é dizer que as verdades necessárias são
verdadeiras em todos os mundos possíveis.

Mundos Possíveis A extravagante criação de filósofos fantasiosos como
Leibniz: um mundo possível é qualquer estado de coisas que poderia
verificar-se (mas que em geral, infelizmente, não se verifica). Os
realistas (ver a seguir) em relação aos mundos possíveis, como David
Lewis, sustentam que existem realmente infinitos mundos possíveis, não
sendo menos reais (apesar de serem, confusamente, menos actuais) do
que este. Isto tem a consequência reconfortante de fazer com que
existam mundos perfeitamente reais (apesar de, infelizmente, não serem
actuais) nos quais somos devastadoramente bem-parecidos, ricos e por
aí fora.

O Idealismo, enquanto conceito filosófico, não quer dizer uma
preocupação com o bem-estar das focas bebés (nem sequer com o
bem-estar de actrizes francesas eminentes que se preocupam com o
bem-estar das focas bebés), nem uma fé na Irmandade Humana, mas antes
a noção introduzida por Berkeley segundo a qual os objectos exteriores
não existem realmente senão enquanto objectos de percepção. Na
verdade, os idealistas têm muita dificuldade em explicar exactamente o
que querem dizer com isto, pois têm a tendência de sustentar que isto
não quer dizer que os objectos são ilusórios; mas parece também que a
tese que sustentam é ontológica e não epistemológica. O idealismo
contrasta com o

Realismo, que é a crença que sustenta que os objectos exteriores estão
realmente lá fora e não apenas quando alguém se dá conta deles. O
realismo, contudo, é um termo múltiplo e ambíguo em filosofia. Na
filosofia da ciência, é a ideia segundo a qual as leis científicas se
referem a relações reais existentes no mundo físico, o que contrasta
com o instrumentalismo: a ideia segundo a qual as leis científicas são
meramente modelos de previsão. Putnam inventou recentemente uma coisa
a que chamou "realismo interno", no qual não existe um "mundo já
feito" (uma expressão útil), mas em que, no entanto, as coisas não são
por isso irremediavelmente subjectivas (o que é exactamente o mesmo do
que comer o bolo e conseguir ficar com ele ao mesmo tempo). Putnam

sustenta que isto é de inspiração kantiana e talvez seja por essa
razão que é tão difícil (se não impossível) de perceber; além disso (e
por isso mesmo) é ideal para o especialista instantâneo.

Nominalismo a posição segundo a qual os universais (por vezes
conhecidos por categoriais: termos gerais como "gato" e "mesa"), não
existem independentemente da colecção das suas instâncias, isto é, não
existem independentemente dos gatos e das mesas que fazem parte da
mobília do mundo. Neste sentido, os realistas acreditam que existem
entidades universais individuais que explicam o facto de sermos
capazes de ordenar o mundo em grupos coerentes de coisas. Platão era
um realista neste sentido (e também em alguns outros).

Semântica Uma distinção útil para ter em mente, especialmente quando
falamos com apanhados por computadores, é a que existe entre a
semântica e a sintaxe. Fornece-se uma semântica para um argumento (ou
seja para o que for) quando se fornece um método de traduzir os
símbolos que contém para qualquer coisa que tenha significado: dar uma
semântica para uma linguagem pressupõe, ou envolve, uma teoria do
significado. Contrasta com a sintaxe, que é apenas a gramática formal
do sistema, que determina unicamente se os símbolos estão
correctamente juntos ou não. Pode assim seguir-se a sintaxe de um
sistema sem ter a mínima ideia da sua semântica. Na verdade, isto é em
grande parte o que faz o especialista instantâneo em filosofia: ele
sabe, de preferência, como manipular os termos de uma linguagem, como
o Segundo (mas não, é claro, o Primeiro) Wittgenstein diria; mas não
faz a mínima ideia do que quer afinal dizer tudo aquilo.

O Especialista Instantâneo em Filosofia, de Jim Hankinson
Gradiva, 1996, 78 pp.
Trad. e adaptação de Desidério Murcho


Divulgar a filosofia, estimular o pensamento
Desidério Murcho

Como é natural, as minhas opiniões sobre o ensino e a divulgação da
filosofia devem ser criticamente avaliadas por si e deve ter em mente
que diferentes pessoas têm diferentes ideias sobre a natureza da
filosofia e consequentemente sobre o seu ensino e divulgação. O leitor
deve procurar expor-se às várias opiniões para que possa formar a sua
própria opinião informada e crítica. As minhas palavras procuram
ajudá-lo a atingir esse objectivo. Mesmo que discorde das minhas
opiniões, ficarei amplamente satisfeito; o importante é permitir que
forme a sua opinião, com base em dados abundantes e fidedignos.

Defendo que a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e
argumentos. O leitor pensará que esta definição é tão lata que será
pacífica, mas engana-se: muitas pessoas discordam até desta
caracterização, pelo menos na sua prática, ainda que a aceitem em
teoria. No entanto, não vou defender aqui esta ideia; quero apenas
tornar explícito que esta é a caracterização que determina
praticamente todas as minhas opiniões seguintes.

Mas que acontecerá, perguntará o leitor, com aqueles que discordam
desde logo desta caracterização? Bom, é claro que quem discorda desta
caracterização acha que o que direi a seguir nada tem a ver com a
filosofia; aceito isso, até porque também eu acho em geral que o que
essas pessoas fazem nada tem a ver com a filosofia. Mas o importante é
notar que, ainda que aquilo a que chamo filosofia seja completamente
diferente daquilo a que outras pessoas chamam filosofia, temos com
certeza ambos o direito de estudar, ensinar e divulgar a nossa prática
intelectual. Isto é sem dúvida pacífico.

Como o leitor já reparou, a minha caracterização não serve para
distinguir a filosofia de outras actividades cognitivas, como as
ciências: também elas são um conjunto de problemas, teorias e
argumentos. Mas a filosofia é um conjunto de problemas, teorias e
argumentos sobre os nossos conceitos mais básicos, como a realidade, o
conhecimento, o significado, o bem, a mente, a beleza, o número, a
inferência, e muitos outros. Os filósofos pensam acerca dos problemas
associados a estes conceitos e propõem teorias, sustentadas por
argumentos. Divulgar e ensinar a filosofia é introduzir esses
problemas de uma maneira elementar, assim como as teorias que procuram
resolvê-los e os argumentos que as sustentam, apesar de estes não
serem em geral elementares mas isso não é uma dificuldade, uma vez que
também a física não é elementar, e no entanto não só é ensinada desde
cedo aos jovens, como é divulgada ao público leigo.

A divulgação e o ensino da filosofia em Portugal tem sido dificultada
por dois obstáculos, resultando ambos de uma confusão conceptual
infeliz. Em primeiro lugar, confundem-se os textos altamente
especializados da filosofia com os textos de divulgação e introdução.
Em segundo lugar, confunde-se a filosofia com a sua história.

A felicidade de O Mundo de Sofia foi ter percebido que não se pode
introduzir e divulgar a filosofia através dos textos especializados
dos próprios filósofos: seria o mesmo do que tentar ensinar geometria
através dos textos de Euclides, música através das partituras de Bach,
ou física através dos textos de Einstein: um desastre cultural,

pedagógico e científico (ou artístico). Os filósofos, assim como os
músicos ou os cientistas, produzem obras cujo destinatário são os
outros profissionais e não o público leigo.

Significa isto que não devemos "ir ao texto", para usar a infeliz
expressão da gíria universitária? Não. Significa sobretudo que não
podemos limitarmo-nos a ir aos textos, sem que antes tenhamos
preparação para tal a consequência de o fazer é a repetição acrítica
das frases dos filósofos, sem que no entanto se compreenda o seu
significado, para já não falar na capacidade para ter uma opinião
crítica sobre o que dizem os filósofos. Não podemos portanto começar
pelos textos dos filósofos, tal como não começamos com as partituras
de Bach. Mas nenhum filósofo terá uma boa formação se não estudar
directamente os textos dos grandes filósofos, do presente ou do
passado, tal como nenhum músico será bem formado se não tiver estudado
algumas partituras de alguns grandes músicos. O mesmo acontece aliás
com os cientistas, que depois da formação universitária primária terão
de aprender a ler os ensaios dos grandes cientistas; a única diferença
é, neste caso, de carácter histórico: nenhum astrónomo tem de ler uma
só linha de Copérnico, porque a sua teoria está ultrapassada mas Bach
e Descartes têm uma importância maior do que a meramente histórica.

O Mundo de Sofia conseguiu ultrapassar o primeiro obstáculo, e o seu
êxito deve-se com certeza também a este factor, entre outros. Está
claro que não se segue que o livro de Gaarder seja bom na verdade, é
muito mau, mas porque falhou num outro aspecto fundamental, que
corresponde, precisamente, ao segundo obstáculo a que me referi acima:
a confusão da história da filosofia com a própria filosofia. (Na
verdade, Gaarder confundiu a filosofia com outra coisa ainda mais
distante da filosofia: a história das ideias). As relações entre a
filosofia e a sua história são diferentes das relações que têm a
física ou a biologia com as suas histórias respectivas, porque falta à
filosofia o progresso que as outras conhecem, pelo menos no sentido em
que as outras o conhecem: há hoje na física uma teoria consensual
sobre a gravitação, mas não há uma teoria filosófica consensual sobre
a verdade, a beleza, o número, a realidade, o bem, ou o conhecimento;
no entanto, há um certo progresso em filosofia, no sentido em que hoje
percebemos melhor as subtilezas e as dificuldades desses problemas do
que Platão ou Aristóteles; e também sabemos hoje que algumas teorias
são falsas, e que alguns argumentos são inválidos. Por tudo isto,
algumas teorias e argumentos de Platão, ou de qualquer outro filósofo,
têm hoje um interesse mais do que meramente histórico: têm um
interesse, precisamente, filosófico são, plausivelmente, teorias
verdadeiras ou argumentos relevantes. A confusão entre filosofia e
história da filosofia consiste em pensar que tudo o que um filósofo
disse, só porque o disse e era filósofo, e teve repercussão histórica,
tem interesse filosófico. O efeito perverso deste erro é transformar a
filosofia numa espécie de museu filosoficamente passivo em que se
encontram cronologicamente ordenadas todas as ideias que os filósofos
produziram. Mas a filosofia, tal como a entendo (e tal como Sócrates,
Platão, Aristóteles, Descartes, Hume ou Kant a entendiam), não é isto!
A filosofia é a discussão crítica dos seus problemas, teorias e
argumentos. E não podemos confundir a discussão filosófica e crítica,
com a discussão filológica, apesar de esta poder ser igualmente
crítica, mas num sentido completamente diferente.

Está claro que para poder discutir criticamente os problemas, as
teorias e os argumentos da filosofia temos de ter instrumentos; temos

de saber como discuti-los e como avaliá-los. Nenhuma instrução ou
divulgação da filosofia terá sucesso se não atender a esta exigência
formativa básica; não passará de uma caricatura de mau gosto da
verdadeira filosofia, tal como o canto coral era, em tempos idos, uma
caricatura de mau gosto da música, a que os alunos do liceu se
submetiam, impotentes. Que instrumentos são estes? Sobretudo, os que
permitem usar as capacidades críticas, ou as faculdades cognitivas
superiores que podem ser treinadas, como se treina um músculo. Por
exemplo, um estudante de filosofia com o mínimo de treino tem de ser
capaz de detectar o erro crucial e básico patente neste raciocínio
infelizmente tão comum: "todas as coisas têm uma causa, logo tem de
haver uma causa para todas as coisas"; e tem de ser capaz de saber a
diferença entre os argumentos que, por ignorância do auditório, podem
ser convincentes, dos argumentos que são realmente bons. Em suma, os
instrumentos básicos que devem ser colocados à disposição dos
estudantes de filosofia são os instrumentos críticos que lhe
permitirão formar a sua própria opinião: autênticos instrumentos de
libertação cultural. Rigor, cuidado, simplicidade e humildade são os
valores que resultam de uma aprendizagem deste tipo, porque o
estudante aprende que o erro nos espreita em cada esquina, que os
problemas da filosofia são intrincados, que as soluções são difíceis,
e que o disparate bacoco e injustificado nunca produziu senão erro e
ilusão.

As capacidades críticas desenvolvem-se através do seu próprio uso. E
definham quando as substituímos pela citação acrítica, ainda que
erudita, das frases dos filósofos. A correcta formulação dos
problemas, teorias e argumentos tradicionais da filosofia são
excelentes exercícios para o desenvolvimento das capacidades críticas;
mas a relação entre o que um filósofo disse e o seu contexto histórico
não pode senão ser uma informação adicional não pode confundir-se com
o verdadeiro objectivo do ensino da filosofia: ensinar a pensar
sofisticadamente, e não ensinar a citar sofisticadamente.

Que é razoável exigir da divulgação e do ensino da filosofia? Tanto
num caso como noutro, uma introdução aos problemas, argumentos e
teorias da filosofia, que num caso será profissionalmente aprofundada,
e que no outro constituirá parte da formação cultural básica de um
cidadão civilizado. É exactamente o mesmo que se espera da divulgação
da física, ou da música e repare-se que ninguém confunde uma
introdução à música com uma introdução à história da música, tal como
também ninguém procura introduzir a música através das partituras dos
grandes músicos. Do filósofo original, assim como do músico original,
espera-se uma contribuição importante: a formulação de um problema, de
uma teoria, ou de um argumento novos, ou uma nova formulação de um
problema, de uma teoria, ou de um argumento antigos. Esta actividade é
uma das mais nobres, tanto no caso do músico, como no caso do filósofo
ou do físico. Mas esta actividade não pode existir sem a divulgação e
a introdução, desde os níveis mais elementares, até aos níveis mais
avançados: é para isso que existem os professores e os divulgadores. E
é por isso que essa actividade é também tão nobre: é a condição de
possibilidade, e deve ser o primeiro estímulo, para que existam
filósofos, músicos ou cientistas inovadores a verdadeira medida do
valor universal de uma cultura.

Julgo que não é necessário justificar o papel que a filosofia tem na
cultura em geral, porque julgo que não é necessário justificar o papel
que o pensamento crítico tem numa cultura livre e civilizada. Só por

si, isso justificaria o esforço de divulgar e de ensinar a filosofia.
Mas num momento em que o mundo parece cada vez mais pertencer à
toda-poderosa indústria do entretenimento que estimula eficientemente
os jovens a praticar o surf e o body-board, a internet e os jogos de
computador, a vida nocturna e o rock , estimular os jovens a fazer
coisas simples como ler um livro, pensar com rigor e cuidado, ou
conduzir uma conversa inteligente, torna-se um desígnio
civilizacional. Mas para quem não gosta de desígnios civilizacionais,
ou para quem achar, como eu, que, em qualquer caso, esse desígnio já
está perdido, resta ainda o dever de fazer saber a algumas pessoas que
no mundo não há só surfistas, políticos, diletantes culturais pastosos
e futebolistas. Há também pessoas simples que fazem coisas simples:
lêem livros, pensam disciplinada e detalhadamente sobre coisas, e têm
gosto em conhecer o mundo.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal

(Texto publicado, com algumas alterações, na revista Barata, número 39
(1996)).

O Erro de Aristóteles
Desidério Murcho

Todos fomos mais ou menos educados debaixo do preconceito de que a
lógica clássica é uma extensão da lógica aristotélica. Um sistema de
lógica L1 é uma extensão de outro sistema de lógica L0 se e somente se
todos os teoremas de L0 são teoremas de L1, ou se, do ponto de vista
semântico, todas as inferências válidas de L0 são também inferências
válidas de L1.

Sabíamos que existiam inúmeras inferências dedutivas válidas, básicas
e complexas, incapazes de serem reconhecidas como tal na lógica
aristotélica, uma das mais simples das quais é

p & q, logo p

No entanto, a verdade é que na lógica aristotélica há dois tipos de
inferências válidas que não são válidas na lógica clássica:

(1) Todos os A são B; Logo, alguns A são B.

e

(2) Nenhum A é B; Logo, algum A não é B.

Logo, a lógica moderna não é uma extensão da lógica aristotélica,
apesar de ser verdade que muitas inferências válidas nesta última são
também válidas na primeira.

A demonstração de que as inferências (1) e (2) não são válidas na
lógica clássica é a seguinte: seja D o domínio de uma interpretação I
no qual existem dois objectos apenas, o1 e o2. o1 exemplifica o
predicado B e o2 exemplifica o predicado C.

A premissa da inferência (1) é (vaziamente) verdadeira em I: [Ao1 (r)
Bo1] & [Ao2 (r) Bo2] é uma frase verdadeira porque a antecedente de cada
um dos conjuntos, Ao1 e Ao2, é falsa. E sabe-se que, numa condicional
da lógica clássica, basta que a antecedente seja falsa para que toda a
condicional seja verdadeira.

Mas a conclusão de (1) é falsa em I: [Ao1 & Bo1] ou [Ao2 & Bo2] é uma
frase falsa porque ambos os disjuntos são falsos nem o objecto 1 nem o
objecto 2 exemplificam simultaneamente os predicados A e B.

Logo, a inferência (1) não é válida na lógica clássica.

A premissa da inferência (2) é (vaziamente) verdadeira na mesma
interpretação I: [Ao1 (r) ¬Bo1] & [Ao2 (r) ¬Bo2] é uma frase verdadeira
porque a antecedente de cada um dos conjuntos, Ao1 e Ao2, é falsa. E
sabe-se que, numa condicional da lógica clássica, basta que a
antecedente seja falsa para que toda a condicional seja verdadeira.

Mas a conclusão de (2) é falsa em I: [Ao1 & ¬Bo1] ou [Ao2 & ¬Bo2] é
uma frase falsa porque ambos os disjuntos são falsos nem o objecto 1
nem o objecto 2 estão na situação de exemplificar o predicado A e de
não exemplificar o B.

Logo, a inferência (2) não é válida na lógica clássica.


Qual foi então o erro de Aristóteles? Foi ter-se pura e simplesmente
esquecido da existência de predicados com extensão nula, como o
predicado "cavalo alado". A lógica aristotélica só é válida se
excluirmos as interpretações em que os predicados têm extensão nula, o
que não parece filosoficamente razoável: uma lógica comprometida com a
extensão dos predicados é uma má lógica, pois não funciona nos casos
em que não se sabe se um certo predicado tem ou não extensão. Por
exemplo, os astrónomos podem não saber exactamente se o predicado
introduzido pela descrição "o planeta desconhecido que perturba a
órbita de mercúrio" é ou não vazio; mas não querem com certeza
entregar as suas inferências a uma lógica que, caso se venha a
descobrir que tal predicado é de extensão nula, os conduz a conclusões
falsas, mesmo quando as suas premissas são verdadeiras.

Há duas formas de contornar esta deficiência estrutural da lógica
aristotélica. Uma delas é o chamado princípio da implicação
existencial; a outra é o recurso ao conceito de entimema.

Comecemos pela última. A ideia é a de que sempre que estamos perante
uma inferência em que uma das premissas é uma proposição universal, há
uma premissa adicional "escondida" que afirma que o predicado que
ocorre como termo sujeito dessa proposição é exemplificado. Em lógica
clássica isso equivale a introduzir a premissa $xAx.

Esta solução enfrenta dois problemas. Por um lado, faz apelo a um
conceito psicológico ou conversacional que não pode ter lugar numa
lógica formal. Do ponto de vista formal só há dois tipos de
inferências: as correctas e as incorrectas; não há lugar a inferências
que, para serem correctas, obrigam à introdução de premissas
adicionais que originalmente não eram explícitas. Este recurso ao
conceito de entimema parece colocar-nos numa posição escorregadia:
como podemos ter a certeza, perante um qualquer argumento incorrecto,
de que não se trata afinal de um argumento correcto a que falta uma
das premissas?

Por outro lado, a suposta premissa adicional é de facto inexprimível
na lógica original de Aristóteles, que como se sabe é uma lógica de
dois termos, S e P. Todas as proposições bem formadas da lógica de
Aristóteles são da forma "A __ B". A lógica aristotélica não tem meios
formais para exprimir a frase que corresponde à fórmula $xAx, existem
objectos A. Dos objectos A, a lógica de Aristóteles só pode afirmar
que são todos B, ou que nenhum é B, ou que alguns são B, ou que alguns
não são B.

Vejamos agora a solução da implicação existencial. A ideia é defender
que as proposições universais, "todo o A é B" e "todo o A é não B"
implicam a existência de objectos A. Na verdade é uma posição bizarra,
que nos convida a aceitar o que sabemos ser falso. Pode ser que,
empiricamente, os falantes de uma língua como o português ou o grego
não afirmem como verdadeira uma proposição universal quando o termo
sujeito tem extensão nula. Mas isto é tão irrelevante como é
irrelevante para a decisão quanto à correcção ou incorrecção da
inferência "todas as coisas têm uma causa, logo há uma causa para
todas as coisas" o facto de empiricamente todas as pessoas sem treino
lógico estarem dispostas a admitir a sua correcção.

Mas admitamos que a ideia da implicação existencial é uma boa solução.

Então, (i) ou não podemos usar frases universais quando o termo
sujeito tem extensão nula, ou (ii) quando as usamos nessas
circunstâncias tais frases são falsas, ou (iii) quando as usamos
nessas circunstâncias tais frases não têm valor de verdade.

A hipótese (i) é claramente má, uma vez que, dada a nossa ignorância
sobre muitos factos empíricos, usamos muitas vezes proposições
universais cujo termo sujeito descobrimos mais tarde não ter extensão.

A hipótese (ii) é incoerente, uma vez que se uma frase como "Todo o A
é B" é falsa quando A tem extensão nula, a sua negação tem de ser
verdadeira. Mas a negação de "todo o A é B" é "Algum A não é B" e esta
última não pode ser verdadeira, uma vez que afirma que existe um
objecto A que tem uma certa propriedade, quando na verdade não há
qualquer objecto A.

A hipótese (iii) é temerária, mas é a única praticável. Corresponde,
grosso modo, à atitude anti-realista típica do intuicionismo à lá
Dummett, defendendo que há buracos de valores de verdade, frases
aparentemente declarativas e assertivas que no entanto não têm valor
de verdade. A lógica intuicionista é uma alternativa séria à lógica
clássica, mas a sua aceitação permanece restrita, ao contrário do que
acontece com a clássica.

Antes de terminar, é bom que se esclareça que a expressão "implicação
existencial" é por vezes usada num sentido diferente do que foi aqui
usado. Tal como foi aqui usada, a expressão "implicação existencial"
refere-se a uma espécie de implicatura conversacional segundo a qual
quando afirmamos uma proposição universal estamos comprometidos com a
existência de objectos que exemplifiquem o predicado que ocorre na
antecedente da condicional (ou o predicado que ocorre na posição de
sujeito, do ponto de vista aristotélico).

Mas a expressão "implicação existencial" usa-se também, por vezes,
para referir o princípio da lógica clássica de primeira ordem segundo
o qual a inferência seguinte é válida:

(*) "xAx
$xAx

Todavia, esta inferência válida da lógica clássica não deve
confundir-se com a inferência aristotélica:

"x(Ax (r) Bx)
$x(Ax & Bx)

Repare-se que (*) não permite efectuar a inferência aristotélica.
Mesmo que entendamos (*) como um princípio metalinguístico aplicável a
fórmulas complexas, o que se obtém com a sua aplicação é a expressão
$x(Ax (r) Bx). Mas, como é óbvio, nenhuma condicional pode implicar uma
conjunção! Na interpretação I acima referida, a fórmula $x(Ax (r) Bx) é
verdadeira, mas a fórmula $x(Ax & Bx) continua a ser falsa em I: da
primeira não se pode, portanto, derivar a segunda.

Portanto, neste sentido na expressão, a implicação existencial não
permite sancionar a inferência aristotélica.

Em conclusão, a lógica brilhante de Aristóteles não é uma parte

própria da lógica clássica de Frege e Russell porque admite
inferências inválidas, e não dá conta, por outro lado, de algumas
inferências válidas. A evolução lógica que se observa entre a lógica
aristotélica e a lógica clássica é assim em tudo idêntica à evolução
que se observa nas ciências naturais. É por isso defensável que é tão
irrelevante estudar hoje em dia a lógica de Aristóteles como é
irrelevante estudar a teoria de Ptolemeu em astronomia, uma vez que
quer a teoria de Ptolemeu quer a teoria de Aristóteles foram
ultrapassadas no sentido que em ciência se dá geralmente a esta
expressão.

Ainda que não se concorde com esta ideia, há pelo menos uma outra
razão para não ensinar a lógica de aristóteles, pelo menos no liceu. É
que, quer como instrumento de análise filosófica, quer como
instrumento de análise crítica geral do raciocínio, a lógica de
Aristóteles é praticamente irrelevante, uma vez que os raciocínios dos
filósofos e os raciocínios que efectuamos no quotidiano só muito
raramente são formalizáveis na silogística; mas são claramente
formalizáveis na lógica clássica. No entanto, a nível universitário, o
estudo da lógica aristotélica, enquanto curiosidade histórica, é sem
dúvida interessante.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal

Como estudar filosofia
Desidério Murcho

Eis alguns conselhos sobre o estudo da filosofia. Espero que sejam
úteis sobretudo para os estudantes, universitários e liceais.

Em primeiro lugar, é preciso perceber que não se pode começar o estudo
da filosofia lendo os textos dos grandes filósofos, tal como não se
começa a aprender atletismo competindo na maratona, nem se aprende a
pintar olhando para os quadros de Magritte. É preciso ler primeiro
outros livros, que nos introduzem a filosofia. Na secção "Estou em
Portugal e gosto de filosofia" pode encontrar alguns desses livros
introdutórios. Infelizmente, a maioria deles não estão traduzidos para
português.

Na Filosofia Aberta publiquei 3 bons livros de introdução à
filosofia, cuja leitura é compensadora e que constituirão talvez o
melhor começo para quem não lê inglês, juntamente com Os Problemas da
Filosofia, de Bertrand Russell (trad. de António Sérgio, publicado na
Arménio Amado, só existe em livrarias especializadas). Em português há
ainda A Cultura da Subtileza, do M. S. Lourenço (Gradiva, 1995), que
apesar de ser um pouco mais avançado é ainda indicado como leitura
introdutória (o livro teve origem num programa de rádio da Antena 2
cujo objectivo era, precisamente, divulgar a filosofia junto do
público leigo).

Alguns clássicos de filosofia, pela sua clareza, são particularmente
recomendáveis para os iniciados. Depois de ler os livros de introdução
acima, aconselho como primeira leitura as Meditações sobre a Filosofia
Primeira, de Descartes (trad. de Gustavo de Fraga, Livraria Almedina,
várias ed.). A longa introdução e as muitas notas do tradutor devem
ser ignoradas nas primeiras leituras (e são sobretudo de carácter
histórico e não filosófico). O texto de Descartes não exige quaisquer
conhecimentos de filosofia para que possa ser razoavelmente
compreendido, não faz 20 citações em cada página a 30 autores
diferentes, não usa uma terminologia barroca e pasme-se oferece à
nossa compreensão crítica argumentos e teorias claramente expostos e
cuidadosamente formulados.

O mesmo acontece com o Tratado do Conhecimento Humano, de Berkeley
(trad. de Vieira de Almeida, Atlântida, só existe em livrarias
especializadas) e com alguns diálogos de Platão, como o Êutifron
(trad. de José Trindade Santos, INCM, várias ed.). Ler Platão é um
bocadinho confuso porque os diálogos estão cheios de referências
históricas e culturais que não só não se percebem como são muitas
vezes completamente irrelevantes para a discussão filosófica em causa.
Isto faz com que o leitor se possa perder, dispersando a sua atenção
em aspectos histórico-culturais, muito interessantes em muitos
aspectos, mas irrelevantes filosoficamente. No entanto, se seguir as
indicações seguintes, conseguirá talvez concentrar a sua atenção no
que é realmente importante do ponto de vista filosófico.

Como ler filosofia: os problemas

A literatura filosófica é intrincada e subtil, mesmo quando se trata
de textos claros e acessíveis, como os que indiquei acima. É por isso
importante aprender a isolar o que é filosoficamente importante do que
é apenas acessório.


Quando lemos um texto de filosofia devemos concentrar a nossa atenção
sobre os seguintes aspectos:

os problemas

as teorias

os argumentos Os bons filósofos costumam começar por enunciar os
problemas que estão a procurar resolver nas suas obras. É o que faz
Descartes, que declara logo na primeira meditação que está preocupado
com o problema do fundamento do conhecimento. Nos diálogos de Platão
também é costume surgir logo após o preâmbulo dramático o enunciado do
problema, muitas vezes uma pergunta de Sócrates, como "o que é a
piedade?"

Mas os detalhes dos problemas filosóficos são subtis e intrincados. É
fácil de ver que o fundamento do conhecimento é o problema que
Descartes procura resolver nas Meditações. Mas em que consiste
exactamente este problema? É aqui que o conceito de "formulação" tem
de ser introduzido. Quando eu andava no liceu usava-se muitas vezes a
expressão "explicar pelas suas próprias palavras". Esta é uma boa
formulação do que é a formulação. A formulação de um problema
filosófico, por exemplo, do problema filosófico que Descartes procura
resolver nas Meditações, é enunciar esse problema de forma clara,
organizada e detalhada claro que a melhor forma de o fazer é no papel,
mas podemos tentar fazê-lo, de forma mais informal, mesmo quando
estamos a ler, ou oralmente, nas aulas e com os amigos. Quando
formulamos um problema filosófico devemos estar preocupados com os
seguintes aspectos:

Qual é a sua formulação exacta?

Quais são as causas da sua existência?

Quais são as suas consequências? A formulação correcta de um
problema, de uma teoria ou de um argumento é o indício mais seguro de
que o autor da formulação compreendeu o que está a dizer. Numa boa
formulação as relações lógicas têm de se tornar claras. As suas
subtilezas têm de ser cuidadosamente expostas, as suas obscuridades
clarificadas, as suas ambiguidades desambiguadas. O inverso disto é a
paráfrase e as citações superabundantes, óptimas para dar volume e
evitar trabalho (no meu tempo chamava-se "palha" a isto). Se não
percebemos muito bem uma certa passagem, o melhor é citá-la: quem nos
lê ficará com a sensação que é estúpido porque não percebe algo que o
autor deve ter percebido, caso contrário não teria citado. Esta
estratégia, claro, é desonesta. É preferível escrever 5 linhas claras
onde se explica por que razão não se percebeu uma passagem do que
encher 5 páginas obscuras onde se cita a passagem e mais 30
comentadores e outras tantas paráfrases, ocultando o facto crucial de
não ter percebido. Por vezes, a expressão clara de uma incompreensão
tem valor filosófico porque essa incompreensão pode ela própria ter
valor filosófico: a passagem em causa pode ser filosófica ou
logicamente incongruente. Ao fazê-lo, o estudante mostra que leu com
atenção crítica; ao limitar-se à paráfrase e à citação bacoca o
estudante mostra que se limitou a prosseguir uma função mecânica e
acrítica o contrário do espírito crítico da filosofia.


Por causas e consequências não se entende, obviamente, causas e
consequências extra-filosóficas. Por exemplo, é irrelevante que
Descartes estivesse preocupado com os fundamentos do conhecimento por
ter descoberto um dia que não podia ter a certeza se a sua namorada o
amava de facto, ou por causa de mais uma das muitas guerras absurdas
que se viviam no seio da Europa. E é irrelevante que o problema do
conhecimento tenha levado ao suicídio algum estudante mais
desequilibrado do séc. XVI, ou que tenha provocado a queda de algum
rei, ou uma qualquer convulsão social, política, económica ou
cultural. Todos estes aspectos são interessantes, cada um à sua
maneira; mas não são filosoficamente interessantes. Da mesma forma que
a tinta que Mozart usou para escrever o Requiem é irrelevante para a
análise musical do Requiem, também todas as questões políticas,
económicas, culturais e sociais que rodeiam obviamente todos os
filósofos são irrelevantes do ponto de vista filosófico. Estas
questões são interessantes do ponto de vista... bem, político,
económico, cultural e social mas não filosófico.

As causas e as consequências que nos interessam enquanto estudantes de
filosofia são, claro, as causas e consequências filosóficas. Por
exemplo, depois de formularmos de forma correcta o problema do
conhecimento que Descartes enuncia no início da primeira meditação,
podemos perguntar: que razões o levam a pensar que o problema do
fundamento do conhecimento existe realmente? Não será apenas uma
fantasia? Na verdade, uma das reacções negativas mais comuns em
relação à filosofia é o menosprezo pelos seus problemas. Mas uma coisa
é menosprezar sumariamente um problema como irrelevante ou mal
formulado ou como o resultado de uma confusão conceptual; outra coisa
e isto é já um trabalho filosófico é elaborar essa reacção e mostrar
que o problema X que o filósofo Y levanta resulta de um erro
categorial. Na verdade, grande parte do trabalho dos filósofos
consiste em tentar mostrar que os outros filósofos cometeram esse tipo
de erros (é o que acontece, por exemplo, no livro The Concept of Mind,
onde Ryle procura mostrar que o conceito cartesiano de mente resulta
de um erro categorial).

Perceber as causas de um problema filosófico é perceber de que depende
a sua existência. Por exemplo, Wittgenstein procurou mostrar que o
problema filosófico do solipsismo, levantado por Locke e que é ainda
uma consequência da atitude de Descartes perante o conhecimento é uma
consequência de uma concepção errada (no sentido forte de erro:
logicamente incongruente) da linguagem. Claro que não se espera que um
estudante de filosofia, ao tentar descobrir as causas dos problemas
filosóficos que está a ler, tenha a mesma capacidade crítica que os
filósofos altamente especializados e treinados têm. Mas têm de começar
a ter alguma dessa capacidade crítica. E a melhor coisa a fazer para
desenvolver uma capacidade é treiná-la pacientemente a partir de
exercícios simples.

Quando procuramos as causas de um problema filosófico perguntamo-nos
como é que as coisas têm de ser para que aquele problema exista e o
que aconteceria se as coisas fossem ligeiramente diferentes. Não é
importante, inicialmente, se é para nós claro que as coisas são de
facto como têm de ser para que se levante tal problema; mas é
importante perceber claramente que para se levantar tal problema as
coisas têm de ser desta maneira e daquela. Mas de que coisas se trata?
Não se trata, com certeza, de dados acerca da iliteracia dos
portugueses, ou da análise do trabalho dos jornalistas portugueses.

Trata-se, sim, de certos aspectos da natureza da linguagem, do mundo,
e dos nossos conceitos acerca destas duas coisas. Por exemplo: que
conceito de conhecimento e de linguagem tem Descartes para que se
levante o problema do fundamento do conhecimento?

Tudo quanto disse em relação às causas se aplica às consequências.
Neste caso, temos de nos perguntar o que somos obrigados a aceitar se
aceitarmos uma certa formulação de um certo problema. Se aceitarmos,
como Descartes, que existe um problema com o fundamento do
conhecimento, o que se segue daí? Poderemos continuar a conceber a
ciência, por exemplo, como concebíamos antes? Ou não? E a religião? Se
o conhecimento precisa de fundamentos, que temos de fazer para os
encontrar? E qual será o método para o fazer?

Como ler filosofia: as teorias

Como é óbvio, os filósofos não se limitam a enunciar problemas
intrincados e subtis. Querem também resolvê-los. É por isso que
constroem teorias, também elas muitas vezes intrincadas e subtis. No
entanto, se não percebermos que problemas procuram eles resolver é
altamente improvável que compreendamos e possamos apreciar o valor das
suas teorias: o mais natural é ficarmo-nos pela aceitação ou rejeição
epidérmica (e que muitas vezes é falsamente identificada com uma
postura estética, como se gostar realmente de uma sinfonia pudesse ser
uma atitude acrítica e epidérmica). "Penso, logo existo" é a fórmula
mágica da teoria de Descartes. Mas que significa isto realmente?
Porque se deu ele ao trabalho de escrevê-lo? Que procurava ele
resolver com o cogito (o termo com que a sua teoria é conhecida)?
Estas são as perguntas prévias que têm de orientar a nossa compreensão
de uma teoria filosófica.

Posteriormente, temos de tentar compreender os labirintos da teoria
que estamos a estudar. Como é que a teoria funciona? E funciona? Não
terá alguns problemas de concepção? Por exemplo, poderá Descartes, na
situação em que se coloca, saber realmente que pensa e que existe? E
tratar-se-á a expressão que enuncia o princípio da sua teoria ("penso,
logo existo") uma inferência, como o indica a palavra "logo"? Ou
quererá ele apenas dizer que, por mais que duvide de tudo, a condição
de possibilidade para poder duvidar é existir e pensar? E como se
articula o resto da sua teoria com este princípio tão básico? Como
consegue ele inferir a existência de Deus e do mundo a partir deste
princípio tão básico? Estarão essas inferências correctas? Ou terá
cometido erros? Este é o tipo de análise que o estudante terá de
fazer, de forma progressivamente mais detalhada e sistemática, ao
longo do seu estudo.

Como ler filosofia: os argumentos

Muito bem, estive a fazer um bocadinho de batota: não comecei por
falar do mais importante de tudo em filosofia os argumentos. Mas fi-lo
porque espero que, depois de lerem esta secção, percebam subitamente
que todo o trabalho que descrevi nas secções anteriores não é possível
realizar sem argumentos. Precisamos de argumentos para nos convencer
que o problema do conhecimento de Descartes é realmente um problema e
não uma fantasia de um soldado aborrecido fechado num quarto aquecido.
Precisamos de argumentos para nos convencer que as causas filosóficas
de certo problema são estas e não aquelas, e que as suas consequências
não são estas mas aquelas. E precisamos de argumentos para nos

convencer que a teoria consegue realmente resolver o que pretendia
resolver e que é verdadeira e não apenas um agregado de frases talvez
atraentes mas escandalosamente afastadas da verdade.

E o que são argumentos? Os argumentos são razões que apresentamos para
sustentar uma qualquer afirmação. Há vários tipos de argumentos:
dedutivos, por analogia, causais, de autoridade, por exemplo. Para
todos eles há regras que nos ajudam a apreciar o seu valor. É por isso
que estudar um livro como [14]A Arte de Argumentar é importante.

Muitas vezes os filósofos são lidos mais ou menos com a mesma atitude
com que os gregos consultavam o oráculo e os portugueses lêem o
horóscopo: acriticamente. Esta atitude é muito bizarra porque, tal
como as profecias oraculares e as prescrições dos horóscopos, os
filósofos contradizem-se. De maneira que é muito difícil lê-los a
todos como fontes de verdade: não podem ter todos razão. Pode ser que
um deles tenha razão; mas mesmo que queiramos tomar a atitude
arriscada de defender que era Kant, ou Descartes, ou Aristóteles, ou
Russell, ou Frege que tinha razão, se o quisermos fazer de forma
razoavelmente racional teremos de mostrar que têm de facto razão. A
alternativa é aceitar aquele filósofo cujas teorias vão ao encontro
dos nossos preconceitos. Mas isto é, claramente, o contrário de uma
atitude crítica, que é exactamente o que a filosofia é suposta ser.

É muito mais provável que todos os filósofos, como todos os cientistas
e todas as pessoas em geral, tenham a sua conta de verdade e falsidade
misturadas, como sempre. Também aqui, o que se impõe é o estudo
cuidado das suas teorias e argumentos, com o objectivo último de
destrinçar um bocadinho mais a verdade da falsidade, do erro e da
ilusão essas constantes humanas a que alguns, talvez tocados pelos
deuses, dizem ter escapado.

Filosofia e história da filosofia

Uma ideia muito difundida, mas não menos falsa, defende que a
filosofia é a sua história. Este hegelianismo só pode defender-se
defendendo o próprio hegelianismo; mas isso será já uma discussão
filosófica, e não histórica, pelo que a defesa do hegelianismo se
arrisca a ser um exemplo admirável de uma contradição pragmática (uma
contradição que ocorre quando aquilo que estamos a fazer é
inconsistente com o que estamos a dizer: como quando dizemos "não
estou a dizer nada").

Esta ideia tem a desvantagem terrível de dar às pessoas a ideia de que
se pode estudar filosofia através da sua história, o que na verdade é
tão improvável acontecer como conseguir estudar música ou pintura ou
física através das grandes obras históricas de música ou pintura ou
física. Na verdade é precisamente o contrário: tal como para fazer
história da música ou da pintura ou da física é preciso saber música
ou pintura ou física, também para fazer história da filosofia é
preciso saber filosofia. Caso contrário acabamos por não fazer mais do
que paráfrases dos textos dos filósofos, sem perceber muito bem o que
querem realmente dizer: uma sintaxe sem semântica, um formalismo sem
conteúdo.

O estudante de filosofia deve dirigir a sua atenção para a questão de
saber se o que diz Platão ou Descartes ou Kant é verdade. Para isso,
deve observar todas as subtilezas aqui descritas. A questão de saber o

que queria certo filósofo realmente dizer é relativamente irrelevante
(mas não completamente irrelevante) para o estudante de filosofia;
essa é uma área altamente especializada do historiador de filosofia
(que tem de ter, claro, formação filosófica). O que interessa ao
estudante de filosofia é aprender filosofia; se a teoria de Descartes
não era exactamente aquilo que a tradição lhe atribui, aquilo que numa
primeira leitura parece ser, isso só é realmente grave
(filosoficamente) se a teoria que lhe atribuirmos for,
filosoficamente, irrelevante. Caso contrário, está tudo bem, uma vez
que estamos a discutir uma teoria, um problema ou um argumento
interessantes filosoficamente, ainda que, historicamente, ninguém os
tenha defendido.

Isto não faz do estudante de filosofia uma pessoa historicamente
descuidada, que atribui o cogito a Platão e a teoria das formas a
Wittgenstein. Limita apenas o tempo, o esforço e a atenção dedicados a
questões históricas. Há um momento, ditado pelo bom senso, em que o
estudante de filosofia pára de se preocupar com a questão de saber o
que disse realmente Platão ou Descartes e assume que eles disseram X;
e depois entra no que interessa: discutir X. E é claro que esta
discussão pode sempre ser revista. Mas ainda que se venha a descobrir
que o cogito de Descartes era completamente diferente do que pensamos
hoje ser, isso é historicamente interessante, mas filosoficamente
irrelevante: a versão que conhecemos do cogito é filosoficamente
interessante, ainda que ninguém a tenha defendido.

Só quando entramos na discussão filosófica estamos a dialogar com a
tradição filosófica; quando estamos a fazer a sua história estamos
apenas a exercer as funções de conservador de museu e de um
conservador da Tate Gallery não se pode dizer que dialoga com a
tradição da pintura. Quem dialoga com os quadros que o conservador da
Tate Gallery recolhe, preserva e expõe são os pintores e não o
conservador. São os pintores e os filósofos e os físicos que
prosseguem, inovam, invertem ou se rebelam em relação aos seus
predecessores, e não os historiadores da pintura ou da filosofia ou da
física. São os filósofos e os pintores e os físicos, que, em última
análise, exercem a actividade que depois competirá aos historiadores
recolher, conservar, sistematizar e divulgar. Como escreveu Kant:

Há letrados para quem a história da filosofia (tanto antiga como
moderna) é a sua própria filosofia; os presentes prolegómenos não
são escritos para eles. Deverão aguardar que os que se esforçam por
beber nas fontes da própria razão tenham terminado a sua tarefa, e
será então a sua vez de informar o mundo do que se fez. (I. Kant,
Prolegómenos a toda a Metafísica Futura, trad. de Artur Morão, ed.
70, 1982, p. A3)

Espero que estas notas o estimulem a estudar filosofia e a participar
activamente no debate mundial de ideias que começou com Sócrates e tem
conseguido prosseguir, contra a vontade dos que querem cidadãos
passivos e intelectuais acríticos.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal

Filosofia e Exegese
Desidério Murcho

Uma das características que distinguem a forma analítica de fazer
filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa, baseia-se na
diferente posição que tomam em relação à exegese filosófica. Ao passo
que para os continentais a exegese filosófica não se distingue da
simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da formulação,
identificando com esta última o sentido da expressão "exegese
filosófica" mas não com a primeira.

A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente
captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina
ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de
medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua
em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de
um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber
medicina ou música, consoante o caso.

Compreende-se assim por que razão outra das características que
distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira
continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese
filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese
filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais
defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos
analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou
música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.

Para um filósofo analítico a expressão "exegese filosófica" significa
"formulação" e não "paráfrase", pois não podem existir "paráfrases
filosóficas", uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão
crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mentecapta da
mimese. Esta divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao
significado da expressão "exegese filosófica" é a causa última do tipo
de ensino da filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos
analíticos não passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da
filosofia. Nos liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são
lançados, sem preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa
atitude que a um analítico parece autêntico terrorismo intelectual),
sendo-lhes exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de
paráfrases em que os mais disparatados erros, as mais gritantes
ambiguidades e imprecisões e a mais evidente incompreensão dos
problemas, argumentos e teorias que os filósofos discutiram ao longo
dos tempos são sinais infelizes de um tipo de ensino que não tem
capacidade para formar pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes
pessoas que sabem, sobretudo, repetir.

A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite
ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao
passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica
das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos
alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em
Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja
formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa,
mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma
mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno
com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada
percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios

extrafilosóficos como a qualidade do português, a quantidade de
autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a
bibliografia de forma competente.

O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a
avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem
conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal
como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada
de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto
um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como
um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o
conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia
analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da
referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de
Descartes.

Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica
que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de
livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua
abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de
introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos
delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase
analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os
autores abundantemente; nada mais resta para fazer. Não há quaisquer
conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados
didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais
importante para o menos importante. Quando se tem um conceito
continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é
negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria
essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente
empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal


Em Defesa da Filosofia Continental
Desidério Murcho

Se um ser humano discordar de si, deixe-o viver.
Não encontrará outro numa centena de biliões de galáxias.

Carl Sagan

O objectivo destas linhas é defender aquela que penso dever ser a
atitude correcta a adoptar pelos partidários da filosofia analítica em
relação à filosofia continental. O título deixa desde logo adivinhar o
que parece uma provocação: então uma das pessoas que mais tem
defendido a filosofia analítica vem agora defender a filosofia
continental? É precisamente porque é fácil confundir a defesa da
filosofia analítica com o ataque intolerante à filosofia continental e
porque esse ataque se pauta por estratégias de corredor de baixo
perfil moral que decidi tomar uma posição pública sobre o assunto.
Apesar de a causa próxima ser o artigo de Carlos Leone no
EXPRESSO, esta não é de modo algum a única causa da minha tomada de
posição. Acontece que o artigo de Carlos Leone me fez tomar
consciência de algo que muito me desagrada nas relações entre os
partidários da filosofia analítica e os partidários da continental.
Por isso, quero demarcar-me claramente em relação a essas atitudes.

Vou começar por dizer claramente aquilo em que acredito e os
objectivos que pautam a minha intervenção. Seguidamente, procurarei
mostrar por que razão podemos não ser contra a filosofia continental
sem adoptar qualquer tipo de relativismo, fácil e de baixo perfil
intelectual, ou mais "sofisticado" e de perfil académico. Finalmente,
concluirei com uma nota sobre a minha postura na vida intelectual.
Esta última parte é claramente pessoal o que não significa que não
seja discutível. Não tenho o hábito de defender as minhas convicções
afirmando que são minhas, porque tenho a pretensão, que a muitos
parecerá insensata mas que me parece razoável, de ter convicções
objectivamente razoáveis e não meras idiossincrasias pessoais.

1. Os objectivos

A filosofia analítica é uma prática académica respeitável. Penso que
esta é uma proposição pacífica, que mesmo os continentais aceitarão
sem hesitar, ainda que achem que se trata de uma forma errada de fazer
filosofia. Na verdade, em termos mundiais, a filosofia analítica é
dominante, quer em termos de publicações (livros e revistas), quer em
termos de número de filósofos activos hoje em dia. No entanto é
praticamente desconhecida em países como Portugal, França e Espanha. E
o pouco que se conhece nestes países são caricaturas positivistas da
prática actual da filosofia analítica. A título exemplificativo,
veja-se o que afirma o Dicionário Breve de Filosofia, de Alberto
Antunes, António Estanqueiro e Mário Vidal (Editorial Presença,
Lisboa, 1995):
Filosofia analítica Corrente de pensamento filosófico segundo a qual a
lógica e a teoria da significação ocupam um papel central na
filosofia. A tarefa fundamental da filosofia seria a análise
lógica das sentenças, através da qual se obtém a solução dos
problemas filosóficos. Desenvolveu-se sobretudo na Inglaterra e
nos Estados Unidos, a partir dos inícios do século XX. (pág. 74)

Esta era talvez a ideia de filosofia analítica de pessoas como Carnap

ou Quine, no princípio do século. Hoje em dia, não há muitos filósofos
vivos que defendam estas ideias. E a ironia é que, mesmo no princípio
do século, alguns dos maiores nomes da filosofia analítica teriam de
ser excluídos se aceitássemos esta definição.

Vamos então passo a passo. A primeira tese: a filosofia analítica
caracterizar-se-ia por defender que a lógica e a teoria do significado
ocupam um lugar central. É verdade que há pessoas, como Dummett, que
defendem que a filosofia da linguagem é a disciplina central da
filosofia. E é verdade que grande parte dos filósofos analíticos se
ocupam do estudo da linguagem. Mas daí não se segue que a filosofia da
linguagem seja uma disciplina central, pelo simples motivo de que
ninguém consegue demonstrar que a solução dos problemas da filosofia
da linguagem seja também a solução dos problemas da metafísica, da
estética, da ética, da filosofia política ou da filosofia da religião.
Os filósofos, como Dummett, que acham que a filosofia da linguagem é
central na filosofia analítica e que isso caracteriza a filosofia
analítica sofrem de distorção profissional: do mesmo modo que alguns
historiadores da filosofia moderna têm tendência para pensar que o
período histórico que estudam é o período decisivo na história da
filosofia, pessoas como Dummett acham que a filosofia da linguagem, só
porque é tudo o que conhecem e tudo o que fazem, é central na
filosofia.

A importância dada à linguagem, na filosofia analítica, resulta de
contingências históricas; e é claro que é lisonjeador pensar que a
nossa área de especialização é a mais importante. Mas, se isso fosse
assim, seria fácil responder a este desafio: mostre-se a solução ou
uma aproximação a uma solução de um problema substantivo da ética, da
filosofia política, da estética ou da filosofia da religião que
resulte da investigação sobre a filosofia da linguagem. Ninguém será
capaz de mostrar tal coisa porque tal coisa é impossível. A crença de
que é possível é apenas uma distorção profissional, psicologicamente
compreensível, mas filosoficamente sem fundamento.

Quanto à segunda característica apontada no Dicionário Breve: a tarefa
fundamental da filosofia analítica seria a análise lógica das frases,
através da qual se obteria a solução dos problemas filosóficos. Esta
foi uma ideia por vezes ventilada no princípio do século por pessoas
como Carnap e Wittgenstein. Mas este projecto está hoje morto e
enterrado. Não é possível resolver os problemas substantivos da
filosofia através da análise da forma lógica das frases. Seria como
tentar resolver os problemas da física através da análise algébrica.
Nenhum problema substantivo da física pode ser resolvido
matematicamente: é preciso fazer experiências, investigar partículas,
levantar hipóteses. O mesmo acontece com a filosofia. Por mais que eu
analise a forma lógica da expressão "Deus existe" não vou conseguir
saber se a frase é verdadeira ou falsa que é o que interessa à
filosofia da religião.

É verdade que a lógica e a filosofia da linguagem ocupam um papel
importante na filosofia analítica, o que não acontece na filosofia
continental, sobretudo em relação à lógica. Mas isto é porque ambas
constituem instrumentos filosóficos, tal como a matemática é um
instrumento dos engenheiros navais. A lógica e a filosofia da
linguagem ajudam o filósofo analítico a não cometer falácias, a
produzir argumentos e teorias rigorosos, e ajudam-no a tentar escapar
às ilusões que resultam de certas expressões linguísticas. Mas não

constituem a água de alcatrão ou a panaceia filosófica.

Por alguma razão que desconheço, talvez por mero atraso cultural e
pelo facto de as bibliotecas universitárias portuguesas serem, em
geral, risíveis, a generalidade da comunidade filosófica portuguesa
olha para a filosofia analítica como os próprios analíticos pelo
menos, alguns olhavam para ela há 50 anos.

É precisamente porque a imagem que os portugueses têm da filosofia
(tal como os franceses) é falsa, que a tarefa de divulgar a filosofia
analítica é tão importante. Se toda a gente soubesse o que é a
filosofia analítica, como toda a gente sabe o que é a filosofia
continental porque é o que há nas faculdades e liceus, não era preciso
fazer nada no sentido de a divulgar; as pessoas poderiam escolher em
consciência o que queriam. Mas essa não é a situação em que estamos.
Os alunos chegam às faculdades e já trazem preconceitos contra a
filosofia analítica, pois esta surge-lhes como uma actividade que
procura reduzir a verdadeira actividade filosófica a meia dúzia de
cálculos lógicos e de elucubrações misteriosas sobre a linguagem.
Penso que todos concordamos, analíticos e continentais, que as pessoas
têm direito à informação fidedigna, pois só assim poderão tomar
decisões em consciência. Até agora, em Portugal, as pessoas não
escolhiam a filosofia continental; esta era a única coisa que havia. O
meu objectivo não é acabar com a imensa maioria que, em Portugal,
constitui os que estudam a filosofia continental; o meu objectivo é
unicamente o de fazer com que essa maioria seja o resultado de uma
escolha informada e não de uma contingência histórica e geográfica.
Acho que tenho o dever de o fazer porque se não tivesse descoberto a
filosofia analítica no momento certo teria desistido do curso. O que
me move é unicamente este sentido do dever e não uma qualquer
tentativa de "acabar com eles". Do ponto de vista estritamente pessoal
estou-me nas tintas para quem manda na filosofia em Portugal as lutas
simiescas pelo poder não me interessam; e no dia em que eu tiver de
agir imoralmente para ter emprego, mudo de profissão.

2. Tolerância sem relativismo

A filosofia continental, tal como a filosofia analítica, é uma prática
académica respeitável. Eu acho que a filosofia continental, nas suas
diversas vertentes, é uma forma errada de fazer filosofia. Acho que
tem consequências pedagógicas, culturais e científicas verdadeiramente
desastrosas. Mas acho que as pessoas que a praticam têm todo o direito
de a praticar. Na verdade, muitas delas são minhas amigas. Apesar de
ter feito uma licenciatura continental, nunca tive senão relações
cordiais e até de amizade com os meus professores e colegas. Mas não é
por isso que eu não sou contra a filosofia continental. É porque acho
errado ser contra qualquer prática académica, seja ela qual for. Se a
alquimia e a astrologia não tivessem sido banidas das universidades,
hoje teriam dignidade académica e eu não seria contra o seu estudo nas
academias. Isso não significa, claro, que tais práticas teriam
dignidade científica. Mas eu penso que se uma prática está
institucionalizada, ainda que seja cientificamente inválida, o seu
desaparecimento deve ser uma consequência natural do seu vazio
científico e não uma imposição de quem não a pratica.

É fácil de ver que não só não estou disposto a levantar um dedo que
seja contra a filosofia continental e os seus praticantes, como seria
o primeiro a sair para a rua em protesto caso eles fossem impedidos de

ensinar e estudar o seu modo de fazer filosofia sejam eles
existencialistas, heidegerianos, derridanos, historicistas,
escolásticos ou pós-modernistas. Na verdade, seria o primeiro a
manifestar o meu desacordo caso eles sofressem da mesma falta de
condições que nós, os analíticos, sofremos. Por exemplo: a
generalidade das editoras só editam filosofia continental; as pessoas
que escrevem nos jornais são quase todas de formação continental; os
programas do ensino secundário são fruto das ideias continentais;
todos os departamentos universitários são controlados por
continentais; todas as revistas portuguesas de filosofia são
continentais. Só agora os analíticos conseguiram conquistar um pouco:
há a Filosofia Aberta, há a Disputatio e há um curso de mestrado. É
muito pouco e não representa nenhuma ameaça à filosofia continental
portuguesa.

Teremos de ser miseravelmente relativistas para ser tolerantes com
respeito à filosofia continental? Acho que não. Acho que os
continentais têm todo o direito de ensinar, divulgar e praticar o seu
ideal de filosofia, apesar de achar que esta é a forma errada de fazer
filosofia. A grande responsabilidade intelectual por alguns dos
maiores horrores da prática e teoria políticas do século XX é a
incapacidade que as pessoas têm para serem tolerantes ao erro. Os
marxistas, como os fascistas, não toleram que as pessoas possam estar
erradas, não toleram que eles defendam ideais políticos que, do seu
ponto de vista, estão errados. E é isso a tolerância: achar que
aqueles que, segundo o nosso ponto de vista, estão errados, têm o
direito de estar errados. O mundo já viu demasiados crimes demasiado
horríveis praticados em nome da luta contra o erro: os cristãos,
munidos do seu Cristo morto na cruz, torturaram e mataram em nome da
sua verdade achavam intolerante que as outras pessoas não acreditassem
no seu deus e que vivessem no erro. Preferiam matá-las. Eu prefiro
falar com elas e dizer-lhes frontalmente que acho que estão erradas,
mas que têm todo o direito de estar erradas.

Isto não é uma forma de relativismo porque esta tolerância tem
limites. É claro que eu não sou tolerante com respeito a tudo o que
acho que está errado. Não sou tolerante, por exemplo, relativamente
aos assassinos. Não só acho que eles estão errados, como acho que não
têm o direito de estar errados, porque os seus erros têm consequências
claramente horríveis. Mas, por mais desastrosa que seja a filosofia
continental do ponto de vista cultural e intelectual, as suas
consequências não são assim tão más que não possam ser toleradas. Os
analíticos que mostram intolerância relativamente à filosofia
continental fazem-no por questões psicológicas, o que é compreensível,
mas não recomendável.

Alguns continentais de formação e convicções religiosas são contra a
filosofia analítica porque, para eles, "filosofia analítica =
ateísmo". Esta atitude é fruto da ignorância e revela uma postura
pouco séria em termos intelectuais e perigosa em termos sociais. É
perigosa porque está muito perto da atitude da inquisição que não está
assim tão longe: veja-se a vida miserável que Salmon Rushdie tem de
ter por causa da intolerência religiosa. Revela uma postura
intelectualmente pouco séria porque coloca a investigação na
dependência de convicções religiosas e neste aspecto, a figura de
Galileu, finalmente perdoado pela Igreja católica 350 anos depois,
assume proporções a que só o génio poético de António Gedeão conseguiu
fazer justiça. E é fruto da ignorância, pois grande parte dos

filósofos analíticos são pessoas religiosas há imensos livros sobre
filosofia da religião publicados por crentes; e muitas outras pessoas
que fazem coisas que nada têm a ver com religião (como filosofia da
linguagem) são religiosas: é o caso do próprio Dummett, que é
católico. Penso que este dogma se explica pela "síndrome BR", a
síndrome Bertrand Russell. Russell, além de filósofo, foi um dos
primeiros humanistas declaradamente ateus; porque foi também um dos
principais filósofos analíticos, as pessoas assimilaram as duas
coisas. Mas também o existencialismo conheceu o seu apogeu com um dos
primeiros filósofos ateus da história, Sartre no entanto, há hoje
muitos católicos existencialistas e nenhum católico afirmará que
"existencialismo = ateísmo". No entanto, ainda que a equação da
ignorância, "filosofia analítica = ateísmo", fosse verdadeira, não
penso que esse fosse um bom motivo para não se dar condições aos
filósofos analíticos para estudar, divulgar e publicar, tal como não
penso que a Igreja católica tinha razão ao proibir Galileu de
prosseguir os seus estudos.

3. Conclusão

Muitos sectores da vida humana são dominados por jogos de bastidores,
alianças estratégicas, tentativas sub-reptícias de eliminar a
"concorrência". Isto acontece na vida dos partidos políticos (mesmo na
vida interna de cada partido), nos jornais e na vida académica. No
entanto, essa não é a minha postura. Nunca levantei um dedo contra a
filosofia continental, às escondidas ou às claras. Nunca fiz jogos de
bastidores contra esta ou aquela pessoa, como já fizeram contra mim a
mais recente dessas atitudes é a recensão do Carlos Leone que referi
logo no início. Não é essa a minha postura na vida intelectual. Não só
não gosto de jogos de poder, como os acho moralmente execráveis. E não
consigo evitar pensar que esses tipos de atitudes são ainda as
manifestações persistentes das nossas origens simiescas; são
antropologicamente compreensíveis, mas moralmente deploráveis.

Quando andava no 12.o ano, com a arrogância típica dos jovens, o meu
professor de filosofia apanhou-me a "massacrar" uma colega que queria
estudar Direito para ser advogada, ganhar muito dinheiro e ter
estatuto social. O meu professor surpreendeu-me com palavras simples
que nunca esqueci. Disse-me: "tens de respeitar a profissão das outras
pessoas se quiseres que respeitem a tua". Por vezes, os analíticos eu
incluído esquecem esta verdade simples. É tempo de o relembrar.

Eu não entrarei no jogo de pessoas como Carlos Leone, sejam elas
analíticas ou continentais. Respeito o trabalho de Carlos Leone,
apesar de achar que é objectivamente mau, enquanto jornalista. Por
exemplo: há algumas semanas, antes da diatribe contra mim e a
Disputatio, ele escrevia uma coluna em que tecia largos elogios à
editora Colibri. A razão era a importância de publicar ensaios em
Portugal. É verdade que é muito importante publicar ensaios em
Portugal, um país no qual sempre que se fala de livros se tem em mente
romances, muitas vezes de péssima qualidade e que só servem para nos
distrair durante uma semana. Mas, apesar de a Colibri ser uma pequena
gráfica simpática, que faz sem dúvida falta e que tem desempenhado um
papel importante na academia como foi ele esquecer-se de editoras como
a Dom Quixote, as Edições 70, a Editorial Presença, a Europa-América e
tantas outras que publicam por mês mais ensaios do que a Colibri
publica num ano? Ou da recente investida do Instituto Piaget, que num
ano publicou mais ensaios na área da filosofia do que a Colibri em

toda a sua vida? Isto é mau trabalho jornalístico.

Curiosamente, há um aspecto desse artigo do Carlos que chocou muita
gente, e que eu achei justo. Ele afirmou que a Philosophica, a revista
do meu departamento, publicada pela Colibri, era a melhor revista
portuguesa de filosofia. Eu acho justo porque, no panorama nacional
das revistas de filosofia, e tendo em conta que se trata de revistas
de filosofia continental, a Philosophica é a melhor. Que outra revista
poderia ser a melhor? A Revista Portuguesa de Filosofia tem uma idade
venerável, é verdade, e é uma instituição respeitável. A Revista
Filosófica de Coimbra tem marcado um espaço próprio. A Análise está
ausente desde há muito tempo. E que mais há? A Disputatio não pode
medir-se pelos mesmos padrões porque é uma revista de filosofia
analítica, produzida segundo padrões internacionais e, de qualquer
modo, é demasiado jovem para poder avaliar-se. Os Cadernos de
Filosofia são ainda mais jovens. Classificar a Philosophica como a
melhor revista portuguesa de filosofia não me choca: parece-me justo.
Isto não significa que as outras 2 grandes revistas sejam más;
significa apenas que não são tão boas. E isto também não significa que
as outras não sejam boas. No caso da Disputatio, nem se pode comparar
porque se trata de um projecto com um perfil muito diferente das
tradicionais revistas portuguesas de filosofia. Afirmar que a
Philosophica é a melhor quer dizer uma coisa que é verdade: a maior
parte das pessoas que escrevem nela artigos são alguns dos melhores
filósofos e historiadores continentais portugueses. Penso que isso é
indisputável. Isto não significa que os melhores filósofos do país
publiquem na Philosophica; pessoas como o Fernando Gil e o Manuel
Maria Carrilho, ambos com uma vasta obra publicada, cá e em França,
nunca publicaram nela e possivelmente nunca publicarão, dado o clima
"clubista" da academia portuguesa.

Detive-me sobre esta "polémica" porque ela mostra uma certa atitude
que acho que deve ser evitada. Essa atitude tem duas vertentes. Uma
delas é a pura ignorância. Os académicos portugueses ignoram-se uns
aos outros, não lêem os artigos e livros uns dos outros, o que é
disparatado. Para quem mais estão eles a escrever? Não podemos pedir
que os outros leiam as coisas que escrevemos se nós não lermos as
coisas que os outros escrevem. É natural que os analíticos não leiam
os continentais, nem vice-versa. Isso acontece também lá fora, se bem
que eu ache isso idiota num país tão pequeno como o nosso. Mas o que é
surpreendente é que os analíticos (os 3 ou 4 que existem) também não
leiam o trabalho uns dos outros! E o mesmo acontece com os
continentais. É claro que eu não posso saber o que fazem as pessoas no
segredo das suas casas: talvez todos se leiam mutuamente com afinco.
Mas isso é irrelevante. O que conta é que dessas leituras, se é que
existem, não resulta nunca uma crítica, um eco, um reparo; nada.

Quem ler a Philosophica e a comparar com as outras, percebe que os
artigos são em geral mais profundos, revelam um maior conhecimento
histórico e bibliográfico e pautam-se por um maior rigor formal (do
ponto de vista textual e lexical). Isso não significa que constituam
exemplos de boa filosofia; do ponto de vista analítico, são exemplos
de má filosofia. Mas não devemos nunca desprezar o trabalho das outras
pessoas só porque elas não pertencem ao nosso "clube". E desprezá-lo
quando nem sequer o lemos é uma atitude no mínimo pouco séria.

A outra vertente, relacionada com a primeira, é a "crítica de
corredor". Apesar de os académicos portugueses não serem leitores das

obras uns dos outros, sussurram críticas nos corredores ao trabalho
uns dos outros. Eu acho que essas críticas deviam ser substituídas
pelo respeito mútuo e pela crítica aberta, publicada nas revistas e
apresentadas nas conferências. Ninguém consegue fazer um bom trabalho
se não for avaliado pelos seus pares. Afirmar publicamente, de forma
séria e argumentada, que o artigo de alguém tem defeitos, é ajudar
essa pessoa a não voltar a cometê-los; não é uma exibição de
gladiadores embrutecidos. Penso que a filosofia em Portugal teria
muito a ganhar se começasse a haver diálogo e se as pessoas começassem
a ler o trabalho umas das outras.

Termino com uma nota pessoal, como prometi. Gosto de coisas simples.
Ler e discutir filosofia e pensar nos seus problemas, argumentos e
teorias. Ler literatura e ensaio. Ouvir música. Cultivar amizades
sinceras e frontais e ter relações de trabalho honestas e verticais.
Gosto de árvores, de sol e da natureza. Gosto de crianças e do milagre
da bondade e do altruísmo humanos. Admiro a coragem e a abnegação.
Estas declarações pessoais e com o seu quê de ridículo servem para
mostrar que é inútil atirar-me pedras: eu não respondo com outras
pedras. Já o demonstrei mais de uma vez. Faço o trabalho em prol dos
outros que acho que tenho o dever de fazer, prejudicando-me muitas
vezes a mim próprio, trabalho esse que só um punhado de pessoas
reconhece. E é tudo. Tenho amigos e um dia vou morrer
irremediavelmente só, como todos os seres humanos. Enquanto estiver
por aqui procurarei compreender melhor o mundo que me rodeia e tirar
partido da felicidade simples das coisas simples. O resto, não me
interessa.
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal

Etimologia do disparate: filosofia, paradoxos e falácias
Desidério Murcho

A tarefa de ensinar e divulgar a filosofia não é tarefa fácil. Em
particular, não é fácil redigir manuais do ensino secundário que
possam constituir, para alunos e professores, instrumentos valisos de
trabalho. O manual a que faço referência nestas páginas resulta sem
dúvida da vontade de transmitir o melhor possível o gosto pela
filosofia e terá sido redigido com o cuidado que tão nobre tarefa
merece. Infelizmente, há pelo menos um erro científico grave e
incontroverso neste manual. O meu objectivo é mostrar de que erro se
trata e reflectir um pouco sobre o que a existência deste erro
significa.

Na página 71 do manual do 11.o ano do ensino secundário intitulado
Pensar e Ser, de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho
apresenta-se como exemplo de uma falácia o que é conhecido como
paradoxo de Epiménides e que os autores baptizaram como "sofisma de
Epiménides". Este é apenas um exemplo da infelizmente medíocre cultura
filosófica nacional. Outro exemplo encontra-se no famigerado Grande
Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, onde a
definição dada de paradoxo é "opinião contrária à opinião comum". Esta
mesmíssima expressão surge aliás no menos badalado mas muito melhor
Grande Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado (que
merecia, aliás, uma edição electrónica mas, claro, sem as fantasias
gráficas com que inutilizaram o Cândido de Figueiredo). Já o
Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora (que, modestamente,
não se titula de "grande"), resolveu inovar e afirma que um paradoxo é
uma "opinião contrária ao sentir comum", inovação imediatamente
copiada pelo recente Dicionário Universal da Língua Portuguesa, da
Texto Editora.

Os engenheiros informáticos sabem que uma maneira simples de descobrir
se um certo fragmento de código de programação foi copiado é procurar
erros iguais: a probabilidade de se cometer duas vezes certos tipos de
erro é de tal forma pequena que a hipótese de ter sido uma
coincidência é muito menor do que a hipótese de cópia. Acredito
seriamente que este heideggerianismo das etimologias aplicado à
definição de paradoxo, com os resultados infelizes que estão à vista,
tem de ter uma origem comum. Mas não sei, infelizmente, qual é.

Nestas páginas, vou discutir esta definição errada de paradoxo, a
confusão inacreditável entre o conceito de paradoxo e o de falácia e a
importância deste estado de coisas para a situação da cultura
filosófica portuguesa. Para isso, claro, terei de lhe oferecer, caro
leitor, uma caracterização precisa do conceito de paradoxo e do
conceito de falácia. Pelo caminho ficará também uma discussão da
importância destes conceitos para uma cultura filosófica lúcida e
informada.

O que é uma falácia?

Uma falácia é um raciocínio logicamente inválido. Um raciocínio
logicamente inválido é um raciocínio errado: um raciocínio que não
conduz à verdade, ainda que as premissas nas quais se baseia sejam
todas verdadeiras. Por exemplo, se eu afirmar que todos os animais
rugem porque todos os leões rugem e todos os leões são animais,
estarei a evocar premissas verdadeiras para sustentar a minha ideia

tola de que todos os animais rugem (talvez porque acredito que o meu
canário ruge às escondidas). Essas premissas são: "todos os leões
rugem" e "todos os leões são animais". No entanto, claro, a minha
conclusão ("todos os animais rugem") é falsa. O que correu mal? O meu
raciocínio: é um mau raciocínio, como se pode demonstrar facilmente.

Qualquer pessoa percebe intuitivamente o que é um mau raciocínio. Mas
há certas subtilezas que provocam sempre alguma confusão. Que
subtilezas são essas? Trata-se de dois factos: os raciocínios errados
podem ter conclusões verdadeiras (ao contrário do que acontece no
nosso exemplo dos leões); e os raciocínios válidos ou correctos podem
ter conclusões falsas. Quando se diz isto às pessoas elas respondem
sempre: mas então para que serve a lógica? Se os bons raciocínios
podem ter conclusões falsas e se os maus podem ter conclusões
verdadeiras! Mais vale ir ao futebol, onde é tudo afinal a brincar...

A verdade, no entanto, é que as coisas em filosofia e em lógica não
são a brincar, como no futebol, e são razoavelmente mais subtis,
apesar de possivelmente mais fáceis de perceber. Senão, vejamos. Que
raciocínios válidos ou correctos podem ter conclusões falsas?
Resposta: aqueles que partirem de premissas falsas. Não admira: se
partimos de falsidades, por melhor que seja o raciocínio, é natural
que cheguemos a falsidades; estranho seria que assim não fosse. Por
mais que nos esmeremos a fazer o almoço de Domingo, se os ingredientes
forem maus, o almoço será mau.

E o outro caso? Como explicar que os maus raciocínios possam conduzir
a conclusões verdadeiras? Bom, da mesma maneira que explicamos como
podemos acabar por ir parar aonde queríamos apesar de não sabermos o
caminho: por puro acaso. Num argumento inválido com uma conclusão
verdadeira as premissas não sustentam de facto a conclusão: chegámos
àquela conclusão por sorte. Mas quando uma conclusão não é realmente
sustentada pelas suas premissas, não podemos ter a certeza de que é
verdadeira, uma vez que não temos dados relevantes que sustentem a
nossa crença de que é verdadeira: os dados que temos não sustentam
realmente a nossa crença, apenas parecem fazê-lo.

Por isso, apesar de os raciocínios ou argumentos inválidos poderem
conduzir a conclusões verdadeiras e apesar de os argumentos válidos
poderem conduzir a conclusões falsas, a importância da lógica (que nos
permite distinguir os raciocínios correctos dos incorrectos) e da
verdade (que nos permite partir de premissas verdadeiras) é central.
Só com raciocínios correctos que partem de premissas verdadeiras temos
a garantia de chegar a conclusões verdadeiras.

O que é então uma falácia? Já dissemos que uma falácia é um raciocínio
errado (a que também se pode chamar incorrecto e que em termos
técnicos é conhecido como inválido). Mas nem todos os raciocínios
errados são falácias, apesar de todas as falácias serem raciocínios
errados. Para que um argumento errado seja uma falácia é necessário
que pareça um raciocínio válido: e é esta característica que faz das
falácias um conceito, em certa medida, extra-lógico, um conceito quase
psicológico (no entanto, pelo menos parcialmente, é possível explicar
em termos estritamente lógicos esta semelhança que nos faz,
psicologicamente, tomar como válidos certos raciocínios inválidos). O
conceito de falácia é assim um conceito importante não tanto em
lógica, onde os argumentos ou são correctos ou incorrectos e não há
lugar a considerações psicológicas, mas antes em lógica informal ou

retórica, onde tais considerações são extremamente importantes.

O que é um paradoxo?

E o que é afinal um paradoxo? Um paradoxo é um raciocínio que, tanto
quanto conseguimos perceber, é válido e que, tanto quanto conseguimos
perceber, parte de premissas verdadeiras, mas que no entanto nos
conduz a um resultado inaceitável. Já se está a ver o erro monstruoso
que consiste em confundir paradoxos com falácias: a condição de
possibilidade da existência de um paradoxo genuíno é este não ser uma
falácia. Se um raciocínio for falacioso, não pode ser um paradoxo e se
for um paradoxo genuíno não pode ser falacioso.

Os paradoxos são em geral enunciados através da proposição
aparentemente pacífica que conduz a resultados inaceitáveis. Mas que
resultados inaceitáveis são estes? O resultado paradoxal é a
auto-contradição. Para explicar o que é a auto-contradição tenho de
explicar primeiro o que é a contradição, como é óbvio. E o que é isso?
Bom, todos nós temos uma ideia intuitiva do que é uma contradição:
acusamos alguém de se contradizer quando afirma agora uma coisa que é
a negação do que afirmou antes (como é, tipicamente, o caso dos
políticos e dos dirigentes "desportivos"). Uma contradição é uma
relação lógica existente entre duas proposições. Duas proposições são
contraditórias quando a verdade de uma implica a falsidade da outra e
vice-versa. Por exemplo, a frase "a vida não tem sentido" (um
enunciado tipicamente existencialista) é contraditória com a frase "a
vida tem sentido". Mesmo que não saibamos qual das duas frases é
verdadeira, sabemos que se a primeira for verdadeira, a segunda será
falsa; e que se a segunda for verdadeira, a primeira será falsa.

A auto-contradição é a situação paradoxal na qual uma frase é
contraditória consigo mesma. Assim, quando temos uma frase
contraditória e procuramos saber o seu valor de verdade, deparamos
sempre com a seguinte situação: quando partimos do princípio de que
ela é verdadeira, concluímos que é falsa; e quando partimos do
princípio que ela é falsa, concluímos que é verdadeira. Incrível, não
é? Dá até a impressão que tal monstruosidade não pode existir. Mas
existe: são os paradoxos.

Paradoxos e falsos paradoxos

Vamos então ver alguns exemplos de paradoxos e de falsos paradoxos.
Imagine o leitor que encontrava a seguinte frase no jornal da manhã:
"esta frase é falsa". Se o leitor tiver o hábito, aliás saudável, de
desconfiar do valor de verdade de tudo o que lê no jornal,
perguntar-se-ia certamente: será esta frase verdadeira? Imaginemos que
sim. Bom, se a frase for verdadeira, verifica-se aquilo que ela
afirma, certo? Mas a frase afirma dele mesma que é falsa. Logo, se for
verdadeira, é falsa. E se for falsa? Bom, se for falsa não se verifica
aquilo que ela afirma. Mas a frase afirma dela mesma que é falsa.
Logo, se for falsa é verdadeira.

Chegámos então ao resultado paradoxal: a frase é verdadeira se for
falsa e é falsa se for verdadeira. Abreviadamente, costumamos dizer
que a frase é verdadeira se, e só se, for falsa. Este é o resultado
que qualquer paradoxo tem de produzir; se não o produzir não é um
paradoxo, apesar de poder ser confundido com um paradoxo. Por exemplo,
na página 71 do manual de Fátima Alves, José Arêdes e José Carvalho,

no qual se apresenta o paradoxo de Epiménides como um exemplo de uma
falácia, a formulação escolhida pelos autores é a seguinte:

o sofisma de Epiménides, poeta cretense do século VI a.C., que
afirmou: "todos os cretenses são mentirosos". Ora, atendendo a que
ele próprio era cretense, será o enunciado verdadeiro?

É deplorável a capacidade inventiva dos autores, que os fez
transformar o conhecido paradoxo do mentiroso num "sofisma" ou
falácia. O leitor já sabe que a condição de possibilidade para que
algo seja um paradoxo é não ser uma falácia, de forma que esta
confusão entre as duas categorias é um erro científico muito grave.
Mas é também interessante verificar que a formulação clássica do
paradoxo do mentiroso, apresentada pelos autores, não é, na verdade,
um paradoxo!

Repare-se: Epiménides afirma que todos os cretenses são mentirosos.
Mesmo que admitamos que por "mentirosos" se quer dizer "pessoas que
nunca dizem a verdade" (o que constitui, convenhamos uma definição
estranhíssima de mentiroso), não se consegue gerar nenhum paradoxo.
Ora veja lá: admitamos que o que Epiménides disse é verdade; daí
segue-se todos os cretenses são mentirosos; logo, o que ele diz,
porque é cretense, é falso. Logo, se o que ele diz é verdade, é falso.
Admitamos agora que o que Epiménides disse é falso. Se o que ele disse
é falso, a negação do que ele disse é verdade. A negação do que ele
disse é "alguns cretenses não são mentirosos". Mas não há nenhum
problema em admitir que Epiménides é cretense e que alguns cretenses
não são mentirosos. Na verdade, Epiménides, ao afirmar que todos os
cretenses são mentirosos, está a pregar-nos uma grande mentira: a
verdade é que alguns cretenses não o são. E uma vez que ele nos está a
mentir, ele é que é mentiroso!

Conclusão: não se trata de um paradoxo. Se raciocinarmos disciplinada
e sistematicamente descobrimos que afinal a afirmação de Epiménides
tem de ser falsa. Se fosse um paradoxo, a sua afirmação não podia ser
verdadeira nem falsa.

Mas então, perguntará o leitor, por que razão se formulava
tradicionalmente desta forma errada o paradoxo do mentiroso? Porque se
errava ao raciocinar! A negação da afirmação "todos os cretenses são
mentirosos" é, como disse acima, "alguns cretenses não são
mentirosos"; mas é fácil errar e pensar que a sua negação é antes
"nenhum cretense é mentiroso". Por que razão esta última não é a
negação da outra? É simples: a negação de uma frase qualquer tem de
ter o valor de verdade oposto a essa frase, como é óbvio. Se a frase
"todos os portugueses são altos" é verdadeira, a sua negação tem de
ser falsa e vice-versa. Mas agora repare que, apesar de esta frase ser
falsa (como é óbvio, nem todos os portugueses são altos), a frase
"nenhum português é alto" é também falsa. Logo, apesar de esta última
parecer intuitivamente constituir a negação da primeira, não o é de
facto. Este facto simples já era conhecido por Aristóteles, que chamou
"contrárias" a estas frases que não são a negação uma da outra. Às
frases que se negam mutuamente chamou Aristóteles "contraditórias".

A etimologia do disparate

Agora que o leitor tem uma ideia clara do que é um paradoxo e do que é
uma falácia, está apto a compreender o significado cultural da

definição de paradoxo que surge nas obras portuguesas de referência e
no manual escolar referido. A característica geral da definição de
paradoxo que surge nestas obras (nas quais se inclui a enciclopédia de
filosofia da Verbo, a Logos) é o recurso à etimologia. "Paradoxo" quer
dizer literalmente, segundo a etimologia grega, "contra a opinião".
Está tudo muito bem. Que este seja o único conceito que surge num
dicionário da língua portuguesa, ainda que se intitule de "grande",
ainda se desculpa; mas que em obras de referência e em manuais
escolares a mesma má definição seja apresentada ao leitor como
informação fidedigna é um crime cultural.

Um estudante de filosofia que não sabe distinguir um paradoxo de uma
falácia é como um estudante de música que não sabe distinguir as
cordas dos metais, ou um estudante de medicina que não distingue o
fígado da bexiga. Como é óbvio, um estudante que não distingue um
paradoxo de uma falácia tem altas probabilidades de cometer falácias;
e será também muito provavelmente incapaz de examinar de forma
correcta os problemas filosóficos, uma vez que estes têm muitas vezes
um carácter paradoxal. Da filosofia espera-se que ofereça aos que a
estudam lucidez e claridade no pensamento; mas enquanto se confundirem
dois dos seus conceitos mais básicos, não se pode esperar senão
confusão e erro.

A riqueza de uma cultura patenteia-se na riqueza da sua língua; e a
riqueza de uma língua manifesta-se na capacidade para exprimir
conceitos complexos, subtis e importantes. Cercear esta riqueza é
impedir o pensamento e o desenvolvimento cultural, é impedir os
portugueses de dialogar com o mundo cultural, obrigando-os à clausura
de uma provinciana cultura de realejo, fechada ao mundo e à
criatividade. Mas quem sabe? talvez o objectivo seja mesmo esse.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, 4.o
1050 Lisboa

Epistemologia da Modalidade em David Hume
Desidério Murcho

Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 12, 1998, pp.
441-449.

O estudo das modalidades aléticas, introduzido por Aristóteles e
cultivado na Idade Média, foi praticamente esquecido na Idade Moderna.
O conceito de verdade necessária, no entanto, continuou a desempenhar
um papel importante nas filosofias da Idade Moderna. Os filósofos
racionalistas, como Leibniz ou Espinosa, encontram nas verdades
necessárias o modelo do conhecimento fidedigno, ao passo que um
filósofo empirista, como Locke, tem necessidade de explicar que a sua
origem é ainda empírica, contra todas as aparências. Nos princípios do
presente século, a atitude positivista perante as verdades necessárias
era ainda uma sombra distante da atitude empirista típica: ao procurar
explicar as verdades necessárias através da ideia de convenção
linguística era ainda a ideia de que aquelas não representavam
aspectos do mundo, mas antes convenções da linguagem.

Também o pai da lógica contemporânea, Frege, procurou reduzir o
conceito de necessidade ao conceito de universalidade.(1) Esta redução
corresponde a afirmar que a frase "Necessariamente, todos os homens
são mortais" exprime a mesma proposição que a frase "Todos os homens
são mortais". Também Kant (KrV, B3-B4) parece sancionar a ideia de que
a necessidade se pode reduzir à "absoluta universalidade". No entanto,
esta redução carece de uma justificação. Aparentemente, afirmar que
todos os homens são mortais é muito diferente de afirmar que
necessariamente todos os homens são mortais; no primeiro caso
afirmamos algo acerca do que se verifica de facto, enquanto no segundo
caso afirmamos algo acerca do que se verifica em todas as
circunstâncias contrafactuais.

O estudo das modalidades aléticas só foi reactivado em meados do
presente século, tendo sido decisiva a semântica dos mundos possíveis
introduzida por Kripke, que permitiu encontrar uma única estrutura a
relação lógica de acessibilidade nos diferentes sistemas de lógica
modal (T, S4, B e S5). A existência da lógica modal demonstra que nada
há de contraditório na ideia de verdade necessária. Mas é óbvio que do
facto de um conceito ser logicamente bem formado não se segue que seja
filosoficamente adequado. Uma outra forma de avaliarmos a legitimidade
filosófica de um conceito é perguntarmo-nos pela sua origem
epistemológica. Esta é a atitude de David Hume na obra An Enquiry
Concerning Human Understanding (ECHU).(2) Estas páginas são dedicadas
à discussão da sua secção VII, intitulada precisamente "Of the Idea of
Necessary Connexion".

Preliminares

O tratamento técnico actual dos conceitos modais, bastante complexo e
com amplo alcance, nomeadamente no âmbito tecnológico, permite que
possa colocar-se já aquele tipo de questões de segunda ordem que
caracterizam uma parte importante do trabalho do filósofo. É assim já
com base num conjunto de resultados teóricos que o filósofo dos finais
do século XX, ao contrário de Hume, enfrenta os problemas subjacentes
aos conceitos modais. Tal como no caso do cálculo matemático das
probabilidades ou no caso dos teoremas da incompletude de Gödel, a
questão geral que agora se levanta é quanto ao significado filosófico

dos conceitos modais. O filósofo encontra-se já perante resultados
teóricos precisos, mas interroga-se agora sobre algumas questões que
estão para além do domínio técnico.

Uma vez que a própria expressão "significado filosófico" não é de
maneira alguma clara, passo a expor os dois problemas básicos que a
análise do significado filosófico de um qualquer conceito C em geral
tem de enfrentar. Antes, porém, de se poder levantar a primeira
interrogação sobre determinado conceito C, tem de se enfrentar um
problema prévio, que consiste na questão de saber se C é na verdade
consistente, i.e., se é possível dispor de um tratamento de C tal que
não se caia em inconsistências, quer no interior da teoria que propõe
C, quer em relação a outros resultados amplamente aceites. As críticas
de Quine(3) aos conceitos modais foram no sentido de tentar mostrar a
sua inconsistência. Mas a distinção clara entre necessidade,
respectivamente possibilidade, de re/de dicto, mostra que os
argumentos de Quine são inválidos.

A primeira questão propriamente dita quanto ao significado filosófico
de um conceito C consiste na análise do estatuto ontológico de C.
Assim, em relação à modalidade trata-se de saber a que tipo de
realidade se referem as proposições necessárias, uma vez que não se
referem a uma realidade espácio-temporalmente localizada;
respectivamente, em relação à ética, trata-se de saber a que tipo de
realidade se referem as proposições morais. É neste âmbito que surgem
as questões em relação ao realismo, anti-realismo, quase-realismo ou
ficcionalismo. Enquanto que para um realista da modalidade as
proposições necessárias referem uma realidade objectiva e independente
que, no entanto, não tem localização espácio-temporal, já o
ficcionalista modal defende que as proposições necessárias referem
apenas ficções teóricas construídas por determinados agentes
cognitivos, nomeadamente nós, para melhor compreenderem certos
fenómenos, sem que no entanto tenham mais realidade que Pégaso ou
Sherlock Holmes; respectivamente, em relação à ética, um realista
defenderá que as suas proposições referem uma realidade objectiva e
independente, contrapondo o anti-realista a ideia de que a moral é
apenas uma construção social e linguística sem mais realidade do que
um conto de fadas.

A segunda questão quanto ao significado filosófico de um conceito C
consiste na análise da epistemologia estrita de C. Assim, em relação à
modalidade, trata-se de saber 1) qual é a fonte de conhecimento das
verdades necessárias; respectivamente, em relação à ética, trata-se de
saber qual é a fonte de conhecimento das verdades morais; 2) como
podemos distinguir a verdade da ilusão acerca de C; e 3) que processos
cognitivos estão envolvidos no processamento da informação acerca de
C.

É verdade que as questões ontológicas e as questões epistemológicas
podem ser confundidas, mas não devem sê-lo. Ainda que se prove não
existir fonte alguma de conhecimento de um determinado conceito C, não
se segue que a realidade referida por C não possa existir real e
objectivamente. Segue-se apenas que, para determinados agentes
cognitivos, C é incognoscível.

Não é menos verdade que as questões epistémicas estritas podem ser
confundidas com questões gerais da teoria do conhecimento. A teoria do
conhecimento tem duas grandes divisões, consoante se analisa a forma

lógica da linguagem onde ocorre C ou a acessibilidade de C
relativamente a determinados agentes cognitivos, em particular os
seres humanos. Um conceito C pode ser inteligível em princípio, mas
ser inacessível a um determinado agente cognitivo, por este não dispor
de uma estrutura epistémica que lhe permita aceder à sua cognição
real, mas apenas à discussão quanto à sua possibilidade. Por exemplo,
discutir a possibilidade lógica do conceito de Deus (num sentido a
definir) é manifestamente diferente de discutir a possibilidade
epistémica de Deus ser conhecido pelos seres humanos.

Lógica, física e metafísica

Os conceitos lógicos de necessidade e possibilidade, dão origem a
algumas confusões conceptuais que é necessário desde já procurar
evitar. Em primeiro lugar, temos de distinguir a necessidade
epistémica dos outros tipos de necessidade. A necessidade epistémica
não é senão o a priori: uma proposição é epistemicamente necessária se
e só se pode ser conhecida independentemente da experiência. A
confusão entre necessidade epistémica e os outros tipos de
necessidade, denunciada por Kripke,(4) poderá ter sido a origem do
infeliz critério kantiano de a priori: estrita universalidade e
necessidade (KrV, B3-B4).

A necessidade lógica, um dos três conceitos de necessidade não
epistémica, é fácil de definir: uma proposição P é logicamente
necessária se e somente se ou 1) é um teorema ou um axioma da lógica
(clássica ou não), ou 2) é uma verdade analítica. Os teoremas e
axiomas constituem o que por vezes se chama as verdades lógicas em
sentido estrito. As condições 1) e 2) distinguem as verdades da lógica
estrita (cálculo proposicional e predicativo) das verdades analíticas
em geral. A proposição

(A) A Ú ¬A

é um teorema do cálculo proposicional, mas a contraparte simbólica da
frase

(B) Todos os objectos verdes têm cor

não é um teorema do cálculo de predicados, apesar de ser claramente
uma verdade analítica. Tanto (A) como (B) são, pela nossa definição,
verdades logicamente necessárias.

O conceito de necessidade física é também relativamente fácil de
definir. Uma proposição P é fisicamente necessária se e só se 1) é uma
verdade física ou 2) é uma consequência lógica de uma verdade física.
É fácil de ver que a noção de necessidade física não coincide com a
noção de necessidade lógica. Por exemplo, a proposição expressa pela
frase "nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz" não é
logicamente necessária, mas é fisicamente necessária.

É difícil definir a noção de necessidade metafísica de forma precisa.
Uma definição imprecisa é a seguinte: uma proposição P é
metafisicamente necessária se 1) a sua verdade resultar das
propriedades dos objectos a que se refere, ou se 2) for uma
consequência lógica das propriedades dos objectos a que se refere. Na
verdade, esta concepção de necessidade metafísica pode confundir-se
com a necessidade física, uma vez que algumas das propriedades que os

objectos têm consistem em propriedades que são o resultado da
aplicação das leis físicas a esses objectos, como, por exemplo, a
propriedade de não se poder viajar mais depressa do que a luz. A
diferença entre necessidade física e metafísica compreende-se mais
claramente se admitirmos a existência de situações contrafactuais com
leis físicas diferentes das actuais; numa dessas situações a frase
"nenhum objecto viaja mais depressa do que a luz" seria falsa: alguns
objectos viajariam mais depressa do que a luz, uma vez que as leis da
física seriam diferentes. Admitida a possibilidade desta situação
contrafactual, segue-se que a frase "nenhum objecto viaja mais
depressa do que a luz" seria fisicamente necessária, mas
metafisicamente contingente. (A frase citada surgiu erradamente
grafada na versão impressa deste estudo.) A posição naturalista nesta
matéria faz coincidir a noção de necessidade metafísica com a noção de
necessidade física, excluindo a possibilidade de situações
contrafactuais com leis da natureza diferentes das actuais.

Para facilitar a exposição, referi apenas a necessidade física. Mas
existem outros tipos de necessidade análogos, como a necessidade
química e biológica. Doravante referir-me-ei indiferentemente a
qualquer destas categorias através do termo "necessidade natural".

A necessidade e a possibilidade são interdefiníveis: p " ¬à¬p e àp "
¬¬p No entanto, a relação conceptual entre os vários conceitos de
possibilidade é mais fácil de compreender do que a relação conceptual
entre os vários conceitos de necessidade,(5) podendo representar-se
comodamente no seguinte diagrama:

As fronteiras entre a possibilidade física/química e a possibilidade
biológica, por exemplo, representam o facto de existirem situações
fisicamente possíveis que não são, no entanto, biologicamente
possíveis: a existência de girafas com listas é fisicamente possível,
mas talvez não seja biologicamente possível.(6) A interrogação na zona
da possibilidade metafísica representa o facto de um naturalista fazer
coincidir a sua fronteira com a fronteira da possibilidade natural,
excluindo assim a existência de possibilidades metafísicas que não
sejam possibilidades naturais. Um filósofo naturalista exclui, por
exemplo, a possibilidade de viajar mais depressa do que a luz, se for
fisicamente impossível viajar mais depressa do que a luz.

Origens empíricas

A análise que David Hume oferece do conceito de necessidade, na sua
terminologia "conexão necessária", é conduzida por considerações
epistemológicas quanto à sua origem. A questão de saber se Hume tem em
mente o conceito de necessidade natural ou o conceito de necessidade
metafísica é talvez insolúvel. Em qualquer caso, a distinção entre
proposições metafisicamente necessárias e proposições fisicamente
necessárias não é usada claramente por David Hume, nem estava
claramente traçada no seu tempo. No entanto, a diferença entre a
secção VII da ECHU e a IV parece consistir, na verdade, na diferença
de objecto de análise, ainda que permaneça a mesma orientação
epistemológica. Assim, o conceito analisado na secção VII parece ser o
de necessidade metafísica, ao passo que na secção IV Hume parece
analisar o conceito de necessidade natural.

Podemos reservar o termo "necessidade" para os casos de necessidade

metafísica, e tratar os casos de necessidade natural como casos que
são perfeitamente captados pelo quantificador universal da lógica
clássica de Frege ("), o que farei a partir deste momento.(7) Com esta
mudança de terminologia torna-se evidente que os problemas
epistemológicos relativos ao conceito de necessidade natural, agora
reformulado em universalidade, se transformam nos problemas relativos
à indução. Em particular, Hume debruçou-se de facto sobre a
epistemologia da relação causal natural, por achar acertadamente que
esta é central para o nosso conhecimento do mundo.

A diferença entre uma proposição P verdadeira que estabelece uma
relação causal natural e uma proposição P´ verdadeira que estabelece
uma relação causal metafísica é a seguinte. P é verdadeira no mundo
actual, mas pode ser falsa noutros mundos metafisicamente possíveis.
Mas P´ é verdadeira em todos os mundos metafisicamente possíveis. As
secções IV e V da ECHU enfrentam as questões epistemológicas quanto ao
conceito de relação causal natural, analisando, em particular, a
origem do conhecimento causal natural. A secção VII da ECHU analisa a
origem do conhecimento causal metafísico.

É vantajoso dispor de uma pequena sinopse dos resultados de Hume em
relação à análise do conceito de causalidade natural, uma vez que a
primeira perplexidade suscitada pela sua análise do conceito de
necessidade é o facto de adoptar como método a procura daquele dado
dos sentidos (na sua terminologia, "impressão") que estará na origem
do conceito (na sua terminologia, "ideia") a analisar. Esta
perplexidade inicial é removida pelo menos parcialmente quando
compreendemos que o que Hume visa na sua análise da epistemologia
modal não é a origem do conceito lógico de necessidade, que ele
reconhece existir nas operações lógicas em geral (na sua terminologia,
"relações de ideias"). O que Hume visa na secção VII é a origem do
conceito de relação causal metafísica, tal como visa na secção IV a
origem do conceito de relação causal natural.

Uma vez que as relações causais naturais são factos do mundo físico,
na sua terminologia "matéria de facto", e não relações lógicas de
conceitos, é legítimo esperar que a origem epistemológica das
proposições que exprimem relações causais naturais não possa
encontrar-se senão nos dados dos sentidos. É verdade que no século
XVIII Hume tem à sua disposição um tratamento muito rudimentar da
lógica talvez pior do que alguns medievais -, mas aquilo de que dispõe
é suficiente para caracterizar sumariamente a necessidade lógica,
ainda que o faça de maneira ambígua, que pode ser interpretada como
psicologista. Em qualquer caso, Hume faz uma separação cuidadosa entre
relações lógicas e dados dos sentidos.

Os factos do mundo são em última análise os únicos objectos a
constituir-se como dados dos sentidos, uma vez que Hume nem sequer
considera a hipótese, que Kant também não admitirá, de existir uma
intuição conceptual. Os factos do mundo, ao contrário das relações
lógicas, têm a característica de ser logicamente contingentes. Isto é,
dada uma qualquer proposição P, verdadeira, simples e com conteúdo
empírico, ¬P pode ainda ser verdadeira. Mas a negação de uma
proposição verdadeira complexa que exprime uma relação lógica é uma
contradição. Estes factos levantam a Hume a questão de saber como se
poderá justificar epistemologicamente o facto de estarmos dispostos a
aceitar como universal a proposição P. O método que Hume usa é o de
procurar a fonte do conhecimento causal natural, e o que é desde logo

tomado como óbvio é que essa fonte não pode repousar nas relações
lógicas.

Compreende-se assim que também na análise da origem do conhecimento
das proposições necessárias as relações lógicas não sejam desde logo
consideradas como hipóteses. Trata-se de procurar a origem das
proposições que não são relações lógicas, mas que se pretendem apesar
disso necessárias.(8)

Cognição ou ilusão

A análise da origem do conhecimento modal conduz Hume a considerar as
suas duas fontes possíveis: a intuição externa e a intuição interna.
Mas nem num caso nem no outro se encontra qualquer dado dos sentidos
que possa ser a origem do conceito de necessidade. Tanto nos dados dos
sentidos externos como nos internos, só temos acesso a factos
empíricos contingentes e nunca a factos necessários. Os dados dos
sentidos, internos ou externos, dão a conhecer o facto a e o facto b,
mas nenhuma conexão modal entre os factos é percepcionável. A origem
epistemológica do conceito de necessidade revela-se obscura.

A perplexidade que surge no leitor ao deparar com a passagem da parte
I da secção VII para a parte II é a seguinte. Na parte I Hume mostrou,
com argumentos que putativamente nos deixam convencer, que não existe
nenhum dado dos sentidos, internos ou externos, que possa ser a origem
do conceito de necessidade. Assim, quando Hume nos apresenta, na parte
II, a sua teoria sobre a origem dos conceitos modais não podemos
deixar de ficar surpreendidos, pois a parte I parece ter já
considerado todas as fontes possíveis, com resultados negativos. Mas
como se sabe, Hume encontra na experiência repetida a origem do
conceito de causalidade necessária, na secção VII, tal como na secção
V encontrara no costume a origem do conceito de causalidade natural.

Para que se compreenda o alcance da nossa perplexidade é conveniente
ter em conta o seguinte. Ao procurar a origem epistemológica da
causalidade necessária, chamemos-lhe c, Hume dirige-se primariamente
aos objectos dos sentidos, onde não encontra tal. Parece assim que a
questão epistemológica quanto à origem de c é respondida pela
negativa. Mas na parte II Hume defende que a experiência repetida é a
origem de c. Uma vez que a experiência repetida é uma experiência
mental como qualquer outra, parece que a questão epistemológica quanto
à origem de c é agora respondida pela positiva.

Este é o problema crucial que tem de se enfrentar para se poder
compreender a teoria de Hume sobre os conceitos modais. Repare-se que
na secção anterior já respondemos à questão de saber por que razão
Hume não procura nas relações lógicas a origem dos conceitos modais.
Mas esta questão parece agora voltar a impor-se, pois em relação a
qualquer raciocínio lógico realmente efectuado por um agente cognitivo
há dois aspectos a considerar: 1) o aspecto cognitivo e 2) o aspecto
psicológico. A cognição é de facto uma relação lógica e como tal não é
empírica, mas a experiência psicológica do raciocínio lógico não é ela
mesma uma relação lógica, mas uma experiência empírica do sentido
interno. Podemos assim argumentar que ainda que não se possa encontrar
no raciocínio lógico a origem dos conceitos modais, podemos todavia
encontrar tal origem na experiência empírica e psicológica que ocorre
quando efectuamos um raciocínio lógico.


A formulação da nossa perplexidade torna mais claro o problema da
interpretação da tese de Hume sobre a origem epistemológica dos
conceitos modais e a aparentemente concomitante tese sobre o estatuto
ontológico dos mesmos. Se Hume achasse que a experiência repetida,
enquanto experiência empírica, constituía a origem do conceito de
causalidade necessária, então seria na verdade um objectivista quanto
à modalidade. Isto é, para Hume os factos modais existiriam
objectivamente no mundo empírico, se bem que não onde se poderia
pensar que estariam nos objectos -, mas na relação entre dois tipos de
fenómenos: a psicologia dos agentes cognitivos e a repetição de certos
fenómenos empíricos. Mas a psicologia dos agentes cognitivos é ela
própria um fenómeno empírico, tanto quanto a existência de coelhos.
Neste caso, Hume seria um objectivista, se bem que os factos modais
não seriam propriedades de relações entre objectos, mas propriedades
de pares ordenados cujo primeiro membro seria um fenómeno causal e
cujo segundo membro seria um fenómeno psicológico. As proposições
modais seriam assim asserções genuínas sobre esses pares ordenados,
mas não sobre o mundo da experiência de objectos exteriores. Será esta
teoria defensável?

Dificilmente. O problema que se levantava à relação modal entre os
fenómenos causais do mundo levanta-se agora à relação entre esses
fenómenos e a nossa predisposição psicológica para, perante a sua
experiência repetida, reagir de uma certa forma. Por outras palavras,
da mesma forma que a afirmação de uma relação modal entre fenómenos do
mundo empírico carecia de análise, também a relação (modal ou apenas
natural) entre esses fenómenos e a nossa psicologia carece de análise.

A alternativa que resta a Hume é considerar que o facto psicológico de
se gerar uma expectativa na mente dos agentes cognitivos aquando da
experiência repetida não produz conhecimento, mas apenas uma forma de
ilusão que consiste em atribuir ao mundo exterior uma propriedade que
ele não tem de facto, não se podendo afirmar sequer que esta propensão
psicológica mantenha com a experiência repetida uma qualquer relação
cognitivamente adequada. A própria experiência psicológica interna não
pode neste caso constituir-se como origem epistemológica dos conceitos
modais porque é apenas um facto psicológico destituído de significado
cognitivo. A experiência repetida produz um certo efeito psicológico
sobre determinados agentes cognitivos, mas este efeito não é em
qualquer caso um facto do mundo interno que mantenha uma relação
cognitiva com o mundo externo é apenas uma ilusão do nosso sentido
externo.(9)

É conveniente lembrar que do facto de não existir uma origem
epistemológica de um determinado conceito C não se segue estritamente
que, do ponto de vista ontológico, tal conceito não possa referir uma
realidade objectiva, apesar de epistemicamente inacessível. Assim,
apesar de Hume não encontrar a origem epistemológica dos conceitos
modais, mas apenas uma origem psicológica destituída de conteúdo
cognitivo, não se segue que estes não existam; segue-se apenas que são
incognoscíveis para os seres humanos.(10)

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, 4.o
1050 Lisboa



Artigo publicado na Revista Filosófica de Coimbra, n.o 12, 1998, pp.
441-449.


Notas

1. Cf. Begriffsschrift (publicado em 1879), p. 4-5 (trad. inglesa de
Peter Geach, Oxford: Blackwell, 1952, p. 4).
2. Publicada em 1748, está hoje disponível na edição canónica de L.A.
Selby-Bigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford,
1975.
3. Nomeadamente, em "Reference and Modality" in From a Logical Point
of View, Harvard University Press, Cambridge, Mass. e Londres,
1953, pp. 139-159.
4. Cf. Naming and Necessity, Oxford: Blackwell, 1980, pp. 34-35.
5. Isto acontece porque, ao passo que todas as possibilidades
naturais são possibilidades lógicas (apesar de nem todas as
possibilidades lógicas serem possibilidades naturais), nem as
necessidades lógicas são necessidades naturais, nem as
necessidades naturais são necessidades lógicas: a intersecção do
conjunto das necessidades lógicas com o conjunto das necessidades
naturais é vazio.
6. Sobre este tema deve ler-se o capítulo "The Possible and the
Actual" do penúltimo livro de Daniel C. Dennett, Darwin's
Dangerous Idea, London: Penguin, 1995, pp. 104-123.
7. De um ponto de vista técnico preciso o quantificador universal não
pode substituir o operador de necessidade numa verdade
naturalmente necessária, uma vez que uma verdade naturalmente
necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis que tenham
leis da natureza iguais às leis da natureza do mundo actual, ao
passo que o quantificador universal da lógica clássica não
quantifica sobre mundos.
8. Para Kant a questão é a de saber, admitindo que as ciências
produzem proposições necessárias, como é isso possível (KrV,
B20-B21).
9. Em A Treatise of Human Nature (1739-1740), edição de L.A.
Selby-Bigge e P. H. Nidditch, Oxford University Press, Oxford,
1978, p. 166, Hume parece subscrever
10. Beneficiei dos comentários de vários membros do Grupo de Análise
Filosófica (SPF), entre os quais o Pedro Santos e o Luís
Bettencourt, e da discussão detalhada com o Prof. João Paulo
Monteiro, que agradeço calorosamente. Muitos erros foram evitados.

Perplexidades lógicas
Desidério Murcho

Este estudo tem por objectivo fornecer ao leitor já familiarizado com
a lógica elementar alguns resultados menos evidentes cujo
desconhecimento pode gerar alguma perplexidade. Os resultados aqui
apresentados são os seguintes: o conjunto de todos os conectivos
lógicos binários, a distinção entre a relação lógica de dedução e a de
implicação, a relação lógica entre o Modus ponens, o princípio do
terceiro excluído e o princípio da não contradição, a definição de
fórmula satisfazível do cálculo de predicados, e a intransitividade da
dedução num sistema de lógica livre. A minha esperança é estimular os
leitores a ter uma visão ampla e crítica da lógica.

Conectivos lógicos

O cálculo proposicional clássico conhece 4 conectivos binários e um
unário:

Ú, Ù, (r), ", ¬.

Sabemos que podemos prescindir de quaisquer três dos primeiros quatro
e ficar apenas com o restante e a negação. Mas sabemos também que a
economia tem um preço: quanto mais económico for um sistema dedutivo
(quer quanto ao número de conectivos, quer quanto ao número de axiomas
e de regras de inferência), mais prolixas serão as suas demonstrações.
Conversamente, quanto mais prolixo for um sistema dedutivo (quer
quanto ao número de conectivos, quer quanto ao número de axiomas e de
regras de inferência), mais económicas serão as suas demonstrações.

Apesar de tradicionalmente o cálculo proposicional conhecer no máximo
4 conectivos binários, os conectivos binários possíveis são no entanto
16, número que resulta da combinação exaustiva dois a dois (porque são
dois os valores de verdade) das quatro filas existentes numa tabela de
verdade com duas variáveis proposicionais. A tabela que se obtém é a
seguinte:

1



2

¬Ù, |

3

(r)

4

†

5

¬

6


¬Þ

7

"

8

¬Ú, -

9

Ú

10

¬

11

Þ

12

¬¬

13

Ü

14

¬(r)

15

Ù

16



VV

V

F

V

F

V

F

V


F

V

F

V

F

V

F

V

F

VF

V

V

F

F

V

V

F

F

V

V

F

F

V

V

F

F

FV

V

V


V

V

F

F

F

F

V

V

V

V

F

F

F

F

FF

V

V

V

V

V

V

V

V

F

F

F

F

F

F


F

F

A análise da tabela acima revela imediatamente que os conectivos 9-16
são a negação dos conectivos 1-8, e reciprocamente. Para cada
conectivo tradicional existe por isso um outro conectivo que é a sua
negação. Os conectivos 2, 8, 10 e 14 são, respectivamente, a negação
dos conectivos 15 (Ù), 9 (Ú), 7 (") e 3 ((r)). É também instrutivo notar
que o traço de Sheffer (|) - capaz, só por si, de representar todas as
funções de verdade - é de facto a negação da conjunção (conectivo 2) e
que a adaga de Quine (-) - também ela capaz de, só por si, de
representar todas as funções de verdade - é de facto a negação da
disjunção (conectivo 8).

Excluídas as tradicionais e as suas negações, ficamos com oito
conectivos. Destes oito, podemos concentrar a nossa atenção apenas nos
quatro primeiros, pois os restantes são apenas a negação destes.

Destes quatro conectivos, o 5 é obtido por comutação das variáveis
proposicionais a partir do 3 ((r)), podendo por isso ser representado
por "¬".

Restam assim três conectivos, dos quais o 1 é pouco interessante, uma
vez que transforma em tautologia todas as proposições nas quais este
conectivo seja o principal, independentemente do valor de verdade das
variáveis proposicionais.

Os dois conectivos que restam são o 4 e o 6. Mas imediatamente se
percebe que o 4 se obtém na verdade por comutação a partir do 6, de
forma que podemos concentrar a nossa atenção no 6. No entanto, é a
negação do 6 que é realmente interessante, de forma que vamos tomar 11
("Þ") como o conectivo primitivo e 6 como a sua negação. O conectivo
"Þ" garante que se obtém o valor de verdade V se e só se a segunda
variável proposicional tem o valor de verdade V.

Com o nosso novo conectivo "Þ" podemos simplificar algumas proposições
da lógica clássica. A tautologia expressa na proposição

(1) [(Q (r) ¬P) (r) ¬(P (r) Q)] (r) P

pode agora exprimir-se na proposição

(2) (Q Þ P) (r) P.

(2) pode acrescentar-se como axioma a um sistema axiomático do tipo do
de Hilbert, pois representa o comportamento do próprio conectivo "Þ".
Será interessante verificar se as demonstrações num sistema que
contenha este novo conectivo resultam mais económicas, como é legítimo
esperar.

Dedução e implicação

A relação lógica entre a dedução e a implicação é a seguinte: sejam a
e b duas fórmulas moleculares do cálculo de predicados ou do cálculo
proposicional; então


(3) para quaisquer a e b, se a | b então a (r) b

(4) existem fórmulas a e b tal que a (r) b e a [not_der.GIF] b.

A proposição (3) é na verdade o Teorema da Dedução, cuja demonstração
não cabe apresentar aqui. A proposição (4) demonstra-se da seguinte
forma:

1. Seja T uma teoria axiomática independente para o cálculo
proposicional

2. Nenhum axioma de T é derivável a partir de outro qualquer axioma

3. Mas todos os axiomas são tautologias

4. Se duas fórmulas a e b são tautologias, então têm o mesmo valor de
verdade. Logo, a e b são equivalentes.

5. Mas se duas fórmulas a e b são equivalentes, então a (r) b.

6. Logo, qualquer axioma de T implica qualquer outro axioma de T.

7. Existem assim fórmulas a e b tal que a (r) b e a [not_der.GIF] b.

Modus ponens e terceiro excluído

Uma aplicação do resultado anterior é o seguinte: é óbvio que
quaisquer duas tautologias se implicam mutuamente, e assim não é de
estranhar que o princípio do terceiro excluído

(TE) a Ú ¬a

implique a formulação proposicional da regra de inferência modus
ponens

(MP) [a Ù (a (r) b)] (r) b ,

e reciprocamente. Mas é agora pertinente perguntar se TE deriva de MP
e reciprocamente. A resposta positiva demonstra-se assim:

Caso 1: TE MP

1. a Ú ¬a TE

2. (A (r) B) Ú ¬(A (r) B) 1, RI

3. ¬(A (r) B) Ú (A (r) B) 2, Comutatividade de "Ú"

4. ¬(A (r) B) Ú (¬A Ú B) 3, Eliminação da "(r)"

5. [¬(A (r) B) Ú ¬A] Ú B 4, Associatividade de "Ú"

6. ¬[(A (r) B) Ù A] Ú B 5, De Morgan

7. [(A (r) B) Ù A] (r) B 6, Introdução da "(r)"

8. [(a (r) b) Ù a] (r) b 7, RI


9. [a Ù (a (r) b)] (r) b 8, comutatividade de "Ù"

Caso 2: MP TE

1. [a Ù (a (r) b)] (r) b MP

2. [(a (r) b) Ù a] (r) b 1, Comutatividade de "Ù"

3. [(A (r) B) Ù A] (r) B 2, RI

4. ¬[(A (r) B) Ù A] Ú B 3, Eliminação da "(r)"

5. [¬(A (r) B) Ú ¬A] Ú B 4, De Morgan

6. ¬(A (r) B) Ú (¬A Ú B) 5, Associatividade de "Ú"

7. ¬(A (r) B) Ú (A (r) B) 6, Introdução de "(r)"

8. (A (r) B) Ú ¬(A (r) B) 7, Comutatividade de "Ú"

9. a Ú ¬a 8, RI

Uma vez que o princípio do terceiro excluído

(TE) a Ú ¬a

deriva do princípio da não contradição

(NC) ¬(a Ù ¬a)

e reciprocamente (por De Morgan), segue-se que NC, TE e MP são
princípios interderiváveis.

Satisfazibilidade

Todos os estudantes de lógica elementar sabem que existem três tipos
de fórmulas moleculares bem formadas no cálculo proposicional:
fórmulas contingentes, tautologias e contradições. No cálculo de
predicados existe um paralelo óbvio com as tautologias e as
contradições: são as fórmulas universalmente válidas (FUV) e as
fórmulas universalmente inválidas (FUI).

Uma fórmula proposicional molecular bem formada a é uma tautologia se
e só se resulta verdadeira em todas as atribuições de valores de
verdade às suas variáveis proposicionais; uma fórmula predicativa
molecular bem formada a é uma FUV se e só se resulta verdadeira em
todas as interpretações. Uma fórmula proposicional molecular bem
formada a é uma contradição se e só se resulta falsa em todas as
atribuições de valores de verdade às suas variáveis proposicionais;
uma fórmula predicativa molecular bem formada a é uma FUI se e só se
resulta falsa em todas as interpretações.

Este paralelo perde-se no que respeita às fórmulas contingentes. Com
efeito, na lógica proposicional, a é uma fórmula contingente se e só
se existem atribuições de valores de verdade às variáveis
proposicionais de a que a tornam falsa e outras atribuições que a
tornam verdadeira. Mas, na lógica predicativa, para que a seja uma
fórmula satisfazível (FS) basta que existam interpretações que tornem

a verdadeira; não é necessário que existam também interpretações que a
tornem falsa (mas podem existir interpretações que a tornem falsa).

Formalmente, os axiomas que regulam o conceito de FS são os seguintes:

(A1) FUV(f) ¬FS(¬f)

(A2) FS(f) ¬FUV(¬f)

Pelos axiomas é fácil verificar que existem dois tipos diferentes de
fórmulas que são FS: fórmulas como

(5) "x(Px (r) Qx)

e fórmulas como

(6) "x(Px (r) Px).

Ora, uma análise básica de (5) e (6) revela imediatamente que se trata
de dois tipos diferentes de fórmulas: (5) é verdadeira em alguns
domínios e falsa noutros, enquanto (6) é verdadeira em todos os
domínios. O conceito de satisfazibilidade expresso nos axiomas
(A1)-(A2) cobre estes dois casos.

Torna-se assim claro que (i) existem de facto contrapartes
predicativas das fórmulas contingentes da lógica proposicional, e que
(ii) o conceito corrente de FS não satisfaz o paralelismo com a lógica
proposicional por considerar como FS dois tipos diferentes de
fórmulas.

Proponho que se chame a (5) uma fórmula predicativa contingente (FPC).
A sua definição

(7) FPC(f) FPC(¬f)

é perfeitamente paralela em relação ao cálculo proposicional e dá
conta do facto mais relevante: a negação de qualquer fórmula como (5)
é ainda uma FPC.

Um resultado interessante dos axiomas (A1)-(A2) é a sua incompletude:
não podemos a partir de (A1)-(A2), com os meios tradicionais da
lógica, derivar como teoremas pelo menos uma verdade básica acerca das
relações entre as FUV e as FS.

Demonstração: Seja a uma FUV. É fácil verificar que a é uma FS. Logo,
podemos assumir como uma verdade que FUV(f) (r) FS(f). Mas este
resultado não é derivável sintacticamente a partir dos axiomas. Não
ofereço a demonstração deste facto, que pode com economia ser
realizada através do método das árvores semânticas, mas ofereço a
derivação mais próxima a que é possível chegar, porque tem o interesse
de mostrar uma contradição semântica que não é no entanto uma
contradição sintáctica:

(A1), (A2) FUV(f) (r) FS(f)

(Reductio)

1. ¬[FUV(f) (r) FS(f)] Hip. Red.


2. FUV(f) Ù ¬FS(f) 1, Tautologia

3. ¬FUV(¬f) (r) FS(f) (A2), Tautologia

4. FUV(¬f) 2, 3, MT

5. FUV(f) Ù FUV(¬f) 2, 4

6. FUV(f) (r) FS(f) 1-5, Red.

O passo 5, única contradição a que é possível chegar para demonstrar o
teorema desejado, não é de facto uma contradição no sentido sintáctico
do termo. É apenas uma contradição semântica: afirma que a fórmula a e
a sua negação são FUV, o que é diferente de uma contradição
sintáctica, que teria de ser "FUV(f) Ù ¬FUV(f)".

Intransitividade da dedução

Qualquer estudante sabe que as lógicas livres se caracterizam por
admitir domínios de quantificação vazios ou nomes sem denotação. Esta
frase é propositadamente ambígua, e pode ser erradamente interpretada
como significando que admitir domínios de quantificação vazios e nomes
sem denotação é a mesma coisa. Mas a verdade é que são dois conceitos
distintos.

A distinção entre os dois é comodamente compreendida considerando que
podemos ter uma lógica com domínios possivelmente vazios e em que
todos os nomes próprios denotam objectos existentes num domínio.

Admitir domínios de quantificação vazios implica considerar que

(8) "xPx | $xPx

não é válida.

Sustentar que todos os nomes têm denotação implica considerar que

(9) Pa | $xPx

é válida.

Mas Hodges quer admitir como válida também

(10) "xPx | Pa ,

o que parece permitir a existência de nomes sem denotação, única
possibilidade de tornar (10) uma inferência válida, uma vez que a
asserção universal pode estar a quantificar sobre um domínio vazio. Na
verdade a ideia de Hodges é diferente: sempre que se utiliza no
sistema dedutivo um nome próprio, existe um objecto denotado por esse
nome.

Da aceitação de (10) segue-se ainda a consequência desagradável da
dedução ter de ser considerada intransitiva, caso contrário (8) é
derivável a partir de (10) e (9).

No entanto, a implicação é transitiva em Hodges:


(11) ("xPx (r) Pa) , (Pa (r) $xPx) | ("xPx (r) $xPx) .

O resultado é um sistema de lógica cuja relação de derivabilidade é
intransitiva, apesar de a implicação ser transitiva. Esta é aliás a
única hipótese de manter um sistema de lógica com domínios
possivelmente vazios, mas cujos nomes denotam necessariamente.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37-4.o, 1050 Lisboa

HUME E GOODMAN SOBRE A INDUÇÃO
Desidério Murcho

O objectivo geral desta nota é explicar a natureza do problema da
indução, fazendo contrastar as posições de Hume e de Goodman. Mais
especificamente, vou procurar mostrar a diferença crucial entre a
formulação clássica do problema da indução, habitualmente atribuída a
Hume, e a contemporânea, apresentada por Goodman. O aspecto técnico
mais delicado em relação à formulação de Goodman do problema da
indução é o que diz respeito ao exemplo do "verdul" (mistura de verde
e azul). Por isso, tentarei formular o exemplo de Goodman de forma
clara e detalhada, procurando responder às perplexidades e
incompreensões que costumam surgir.

Devo dizer desde já que o estilo de filosofia que eu pratico a
filosofia analítica é um pouco diferente daquilo a que estamos
habituados em Portugal. Essa diferença será evidente nesta nota. Mas
convém dizer duas palavras sobre essa diferença, porque sei que sobre
a filosofia analítica há no nosso país sobretudo informação errada.

Em primeiro lugar, a filosofia analítica não é uma escola filosófica,
no sentido de um movimento que defende um certo conjunto de teses ou
de métodos; a filosofia analítica é sobretudo uma forma de abordar com
clareza e precisão os problemas da filosofia.

Em segundo lugar, a filosofia analítica não reduz a filosofia à
lógica; a lógica é para nós, como o era para Aristóteles, um
instrumento filosófico. Como instrumento que é, a lógica não serve
para resolver os problemas da filosofia; serve apenas para nos ajudar
a distinguir a verdade da ilusão.

Em terceiro lugar, é importante que se diga que a filosofia analítica
não se reduz à filosofia da linguagem e disciplinas adjacentes. Na
verdade, como ficou provado no último número da revista Disputatio, a
maior parte das publicações analíticas são da área da ética e da
filosofia política e não da filosofia da linguagem.

Por fim, convém dizer que não podemos confundir a filosofia analítica
com uma das suas defuntas escolas, o positivismo lógico; este
movimento filosófico foi apenas um dos muitos movimentos filosóficos
analíticos; hoje em dia, duvido que ainda exista algum positivista
lógico. No entanto, abundam os filósofos analíticos.

Posto isto, passemos então ao tema desta nota.

O que a indução não é

Há uma ideia errada que já era ensinada quando eu era estudante de
liceu e que infelizmente continua a ser ensinada. Essa ideia é a
seguinte: a indução caracteriza-se por partir do particular para o
geral; a dedução, do geral para o particular. Isto é falso. Para
mostrar que é falso que a dedução parte do geral para o particular
basta encontrar um raciocínio dedutivo válido onde isso não aconteça.
Tome-se o seguinte exemplo:

(1) Aristóteles era um filósofo grego. Logo, Aristóteles era um
filósofo.


Fn Ù Gn \ Fn

Neste caso, a inferência é dedutiva e procede do particular para o
particular. Mas também há inferências dedutivas que procedem do geral
para o geral:

(2) Todos os filósofos são seres humanos; todos os seres humanos
são mortais. Logo, todos os filósofos são mortais.

"x (Fx (r) Hx), "x (Hx (r) Mx) \ "x (Fx (r) Mx)

E, mais espantoso ainda, há inferências dedutivas que procedem do
particular para o geral:

(3) Aristóteles era um filósofo e era idêntico a si mesmo. Logo,
todos os filósofos são idênticos a si mesmos.

Fn Ù n = n \ "x (Fx (r) x = x)

É verdade que esta última inferência tem uma característica especial
(é vacuamente válida porque a sua conclusão é uma verdade lógica); mas
bastam as outras duas para refutar a ideia de que o que caracteriza a
inferência dedutiva é o facto de partir do geral para o particular.

Penso que não será muito difícil encontrar exemplos de inferências
indutivas do particular para o particular, nem do geral para o geral,
nem do geral para o particular. Não vou dar exemplos, mas poderemos
voltar a isso no fim, se alguém o quiser.

Comecei por denunciar este erro típico porque penso que ele é
responsável, pelo menos em parte, por algumas dificuldades em
compreender o problema clássico da indução.

Na verdade, só podemos compreender claramente o problema clássico da
indução se soubermos lógica elementar; e também só podemos compreender
o "novo enigma da indução" de Goodman se soubermos lógica elementar.
No entanto, espero poder fazer-me compreender sem pressupor quaisquer
conhecimentos de lógica, para além das intuições dedutivas básicas que
todos os seres humanos possuem.

Qual é o problema clássico da indução?

Regressemos à primeira inferência dedutiva apresentada:

(1) Aristóteles era um filósofo grego. Logo, Aristóteles era um
filósofo.

Fn Ù Gn \ Fn

É óbvio que há uma relação especial entre a conclusão e a premissa: a
verdade da premissa garante a verdade da conclusão. Isto é, se a
premissa for verdadeira, a conclusão será também verdadeira. Não há
nenhuma circunstância na qual a premissa seja verdadeira e a conclusão
falsa.
Repare-se agora na seguinte inferência indutiva:

(4) Todos os corvos que observámos até hoje eram pretos. Logo,
todos os corvos são pretos.


"x ((Cx Ù Ox) (r) Px)) \ "x (Cx (r) Px)

Não é muito difícil imaginar situações nas quais a premissa seja
verdadeira e no entanto a conclusão seja falsa. No entanto, a
inferência parece-nos perfeitamente razoável. Repare-se agora no
seguinte raciocínio dedutivo:

(5) Aristóteles era filósofo. Logo, Aristóteles era filósofo e
grego.

Fn \ Fn Ù Gn

A conclusão é de facto verdadeira, tal como a premissa. Mas não é
muito difícil descobrir situações nas quais a premissa seja verdadeira
e a conclusão falsa: basta pensar que Aristóteles poderia ter nascido
no Egipto e ser filósofo.

Há no entanto uma assimetria entre este exemplo e o anterior. Nós
achamos que neste caso a verdade da premissa não garante a verdade da
conclusão porque o raciocínio é errado. Mas no primeiro caso achamos e
com razão que o raciocínio é razoável. Tanto mais razoável quantos
mais corvos pretos tiverem sido observados.

É esta a diferença entre a dedução e a indução:
* Nos bons raciocínios dedutivos a verdade das suas premissas
garante a verdade das suas conclusões; se num raciocínio dedutivo
a verdade das premissas não garantir a verdade da conclusão,
achamos que estamos perante um mau raciocínio dedutivo é o que se
chama uma inferência inválida, ou, em alguns casos, uma falácia.
* Nos bons raciocínios indutivos a verdade das suas premissas não
garante a verdade das suas conclusões; apesar de esta falta de
garantia ser óbvia, não achamos, só por isso, que o raciocínio
indutivo em causa é mau. Pelo contrário, pode parecer-nos bastante
razoável.

Estamos agora em condições de perceber o problema clássico da indução.
Dado que ao contrário do que acontece na dedução a verdade das suas
premissas não garante, nos raciocínios indutivos, a verdade das suas
conclusões, como justificar a indução? Há duas hipóteses: ou
justificamos a indução dedutivamente, ou a justificamos indutivamente.
No primeiro caso, se conseguirmos fazê-lo, ficaremos com uma
justificação demasiado forte a verdade das premissas passará a
garantir afinal a verdade das conclusões. No segundo caso, ficaremos
com uma justificação circular, pois justificaremos a indução pela
indução. A esta alternativa desagradável deu-se o nome de dilema de
Hume. E este é, em traços gerais, o problema clássico da indução: como
justificar a indução, dado que a verdade das suas conclusões não é
garantida pelas suas premissas? Há muitas formas de reagir ao problema
clássico da indução. Já de seguida apresentarei a reacção de Goodman.

O país dos verduis

As tentativas de solução do problema clássico da indução centravam-se
na tentativa de justificar a relação de confirmação existente entre as
premissas de uma indução e a sua conclusão. Que mecanismo justifica a
relação de confirmação? Goodman introduz, no entanto, um novo
problema, bastante mais preciso do que o clássico.


Considere-se a seguinte indução:

(6) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verdes. Logo,
todas as esmeraldas são verdes.

"x ((Ex Ù Ox) (r) Vx) \ "x (Ex (r) Vx)

Esta indução parece-nos perfeitamente razoável. O problema clássico da
indução consiste em determinar qual é o mecanismo de confirmação
existente entre a premissa e a conclusão. Procura-se explicar como é
que os exemplares positivos (ou instâncias positivas) de uma
generalização podem confirmar a generalização em causa.

Considere-se agora a seguinte indução:

(7) Todas as esmeraldas observadas até hoje eram verduis. Logo,
todas as esmeraldas são verduis.

"x ((Ex Ù Ox) (r) Wx) \ "x (Ex (r) Wx)

O predicado verdul é definido da seguinte maneira:

(8) Um objecto é verdul se, e só se, tiver sido descoberto até hoje
e for verde, ou for descoberto no futuro e for azul.

Dada esta definição de verdul é fácil de ver que se todas as
esmeraldas forem verduis, as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão
azuis. E também é fácil de ver que todas as esmeraldas observadas até
hoje são efectivamente verduis, uma vez que todas as esmeraldas
observadas até hoje são verdes.

Mas se todas as esmeraldas forem efectivamente verdes, e não verduis,
as esmeraldas que descobrirmos amanhã serão verdes. Chegámos por isso
ao resultado paradoxal: as premissas de ambas as induções são
verdadeiras; a forma lógica das inferências é a mesma; e, no entanto,
as suas conclusões são inconsistentes não podem ser ambas verdadeiras.

Estamos no cerne do novo enigma da indução. Vou agora tentar desfazer
algumas perplexidades habituais, umas mais sofisticadas, outras menos.
Se subsistirem perplexidades, não hesitem em tomar nota delas para
podermos esclarecê-las no fim.

Em primeiro lugar, é preciso compreender o modo como o predicado
verdul está definido. Um objecto verdul não é um objecto que é hoje
verde e que amanhã se torna azul. Um objecto que seja verdul e que
tenha sido observado pela primeira vez até ao dia de hoje, é verde;
mas se esse objecto for verde e só for observado pela primeira vez
amanhã, não será verdul. Para que um objecto que seja observado pela
primeira vez amanhã seja verdul, terá de ser azul.

Em segundo lugar, levanta-se uma perplexidade mais sofisticada. Não
resulta o nosso resultado paradoxal do facto de termos usado um
predicado tão estranho? A resposta é sim e não. É óbvio que o
resultado paradoxal resulta do predicado verdul. Mas em que medida,
exactamente?

A tentação é dizer que o predicado verdul é logicamente complexo, ao

passo que o predicado verde é logicamente simples e que é por isso que
geramos o paradoxo. Mas isto não pode ser verdade. Este é o aspecto
mais subtil do exemplo de Goodman, pelo que vou recorrer a uma pequena
dramatização.

Imaginemos dois países: o nosso país, o país dos verdes, que falam a
linguagem do verde, e o país dos verduis, que falam a linguagem do
verdul. Quando chegamos ao país dos verduis achamos muito estranho que
afirmem que as esmeraldas são verduis. Quando finalmente percebemos o
que eles querem dizer, apontamos a definição de verdul dada acima no
nosso caderno e achamos que eles não são muito bons da cabeça.

Mas que dirão eles quando nos ouvem dizer que todas as esmeraldas são
verdes? Ao princípio não compreendem nada. Quando finalmente
compreendem apontam a seguinte definição de verde nos cadernos deles:

(9) Um objecto é verde se, e só se, tiver sido descoberto até hoje
e for verdul, ou for descoberto no futuro e for azerde.

No nosso idioma, um objecto é azerde se, e só se, tiver sido
descoberto até hoje e for azul, ou for descoberto no futuro e for
verde.

Que nos mostra a definição que os estranhos habitantes do país dos
verduis escreveram nos seus cadernos? Mostra uma coisa muito
importante: os predicados verde e verdul são interdefiníveis.

A interdefinibilidade é algo completamente transparente para quem sabe
lógica elementar. Por exemplo, os quantificadores universal e
existencial são interdefiníveis, assim como os operadores modais de
necessidade e de possibilidade:

"x jx º ¬$x ¬jx
$x jx º ¬"x ¬jx

¨ A º ¬à ¬A
à A º ¬¨ ¬A

O facto de verdul ser interdefinível relativamente a verde quer dizer
que são logicamente equivalentes. Isto significa que o artificialismo
introduzido pela referência ao momento da descoberta do objecto é
apenas aparente: "verde" também pode ser definido através de uma
referência ao momento da descoberta.

O facto de existir um parâmetro temporal na definição de verdul não
pode, por isso, explicar o insucesso da inferência verdul, pois esse
parâmetro só existe na nossa linguagem, que é a linguagem dos verdes.
Na linguagem dos verduis é o nosso predicado que tem um parâmetro
temporal.

O novo enigma de Goodman

Que mostra então o exemplo da indução verdul? Mostra que o problema da
indução é mais complexo do que Hume pensava. Mesmo que conseguíssemos
explicar a relação de confirmação existente entre as premissas das
induções e as suas conclusões, não conseguiríamos resolver o problema
da indução. O exemplo de Goodman mostra que isso não basta. É preciso
explicar também por que razão alguns predicados servem para fazer

induções e outros não. E a explicação não pode ser lógica, porque os
predicados verdul e verde são logicamente interdefiníveis.

Imagine-se que tínhamos uma teoria (como na realidade temos a
probabilidade) que explicava a relação de confirmação entre as
premissas e as conclusões das induções. Uma vez que as premissas de
ambas as inferências (a verde e a verdul) são verdadeiras e uma vez
que não há diferença lógica entre os predicados, nenhuma explicação em
termos de teoria da confirmação será capaz de excluir uma como má e
incluir a outra como boa.

Como explicar então a diferença entre as duas inferências? Só podemos
fazê-lo, segundo Goodman, recorrendo ao conteúdo dos predicados, à sua
semântica. O que se passa com o predicado verdul é que não é
projectável, não serve para fazer boas inferências. Para que um
predicado seja projectável tem de ter certas características. O
trabalho de Goodman tem consistido em tentar apresentar uma tipologia
convincente dessas características.

Repare-se que Goodman arranjou um exemplo dramático, mas é possível
começar a perceber o novo enigma da indução com exemplos mais banais.
Considerem-se as seguintes inferências:

(10) Todas as vacas observadas até hoje eram mamíferos. Logo, todas
as vacas são mamíferos.

(11) Todas as vacas observadas até hoje nasceram antes do ano 2000.
Logo, todas as vacas nascem antes do ano 2000.

Também neste caso se torna manifesto que, apesar de a forma lógica das
inferências ser a mesma, o predicado usado na segunda não é
projectável. A ideia de Goodman é por vezes difícil de aceitar talvez
porque nós somos em geral muito bons a fazer induções, e escolhemos
inconscientemente os predicados certos. Mas quando começamos a
perceber a ideia de Goodman começamos a dar-nos conta da imensidão de
alternativas a que, sem nos apercebermos, não damos crédito. Para dar
um exemplo do próprio Goodman, todas as palavras que eu proferi até
agora foram proferidas antes deste momento. No entanto, ninguém
concluiu, espero, que todas as palavras por mim proferidas serão
proferidas antes deste momento.

Hume tentou explicar como as regularidades do passado podiam
justificar as nossas previsões relativamente ao futuro. O que ele não
percebeu foi que nem todas as regularidades servem para fazer boas
previsões. E esta é, numa palavra, a diferença entre o novo e o velho
enigma da indução.

[12]Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37-4.o, 1050 Lisboa

Comunicação apresentada no Encontro de Filosofia "Teoria do
Conhecimento" realizado na Escola Secundária da Cidade Universitária
(Lisboa), em 6 de Março de 1998.


Lógica, Filosofia e Cognição
Desidério Murcho

O tema principal destas páginas é o papel da lógica na filosofia. Mas
o organizador da conferência que lhe deu origem manifestou-me a
importância de abordar um outro tópico mais geral, viz., uma
caracterização da própria filosofia. De forma que vou fazer o
seguinte: primeiro, oferecerei uma caracterização sumária da
filosofia; depois, caracterizarei, também sumariamente, a lógica;
finalmente, tentarei mostrar qual é o papel que a lógica tem nesta
concepção de filosofia.

1. O que é a filosofia?

Quando caracterizamos uma actividade, um conceito ou uma propriedade,
o ideal é atingir uma definição precisa, expressa em termos de
condições necessárias e suficientes. Mas a verdade é que muitas vezes
este tipo de definições precisas é inatingível. (Os diálogos
aporéticos de Platão são precisamente sobre as dificuldades de definir
desta forma rigorosa alguns dos nossos conceitos mais básicos, como a
justiça, o bem, a beleza, etc.)

Não é possível compreender o que é uma definição em termos de
condições necessárias e suficientes se não soubermos distinguir uma
condição necessária de uma condição suficiente. Mas isto é de facto
fácil. Basta ver os seguintes exemplos: estar inscrito em Filosofia é
uma condição necessária para passar a Filosofia. Mas estar inscrito em
Filosofia não é uma condição suficiente para passar a Filosofia. (Se o
fosse, a vida dos estudantes de filosofia seria muito mais fácil.)
Outro exemplo: ter asas é uma condição necessária para ser um pássaro
porque não há pássaros sem asas; mas não é uma condição suficiente: os
aviões têm asas e não são pássaros. Uma condição necessária garante
que a nossa definição inclui tudo o que queríamos incluir; mas permite
que a nossa definição inclua coisas que não queríamos incluir.

O inverso acontece com uma condição suficiente: permite que a nossa
definição não inclua tudo o que queríamos incluir, mas garante que não
incluímos o que não queríamos incluir. Por exemplo, ter 10 valores é
uma condição suficiente para passar a Filosofia. Mas ter 10 valores
não é uma condição necessária para passar a Filosofia. (Um aluno pode
passar a filosofia com 18 valores, apesar de ser talvez raro.)
Repare-se no caso dos pássaros: uma condição suficiente para um animal
ser um pássaro é ser um pardal; mas nem todos os pássaros são pardais.

Se juntarmos estes dois tipos de definição temos o melhor dos mundos:
com a condição suficiente garantimos que só incluímos o que desejamos,
e com a condição necessária garantimos que incluímos tudo o que
queríamos. Contudo, não dispomos em geral de definições deste género.
Desde Platão e Aristóteles que a filosofia procura clarificar os
problemas associados aos diferentes tipos de definição; não quero
entrar nessa matéria agora. O meu objectivo é apenas alertar o leitor
para o facto de não ser nada de extraordinário que ninguém disponha de
uma definição de filosofia deste género. Mas é claro que há outras
formas disponíveis de definição, que não em termos de condições
necessárias e suficientes.

Alguém sabe o que é a ciência, por exemplo? Possivelmente ninguém é

capaz de oferecer uma definição em termos de condições necessárias e
suficientes; mas toda a gente sabe, num certo sentido relativamente
impreciso, o que é a ciência. Porquê? Bom, porque podemos reconhecer
que a física é uma ciência, mas que a astrologia não é uma ciência;
pelo menos, a astrologia não é uma ciência no mesmo sentido em que a
física é uma ciência.

Quando perguntamos o que é a ciência e alguém nos responde com
exemplos (como a química, a sociologia, a geologia, etc.), essa pessoa
está a oferecer-nos uma definição implícita. Este tipo de definição
distingue-se da definição através de condições necessárias e
suficientes, que se chama definição explícita. Chama-se "implícita" a
esta definição porque a pessoa que a usa está implicitamente a definir
algo, apesar de não o fazer directamente. Apesar de não dispormos de
definições explícitas de muitos dos nossos conceitos mais simples, não
se segue daí que não saibamos do que estamos a falar. Por isso, também
não é à partida grave que não tenhamos uma definição explícita de
filosofia. Por exemplo, a maioria das pessoas é incapaz de definir
explicitamente uma cor qualquer, como o azul, mas todos somos capazes
de dizer se o céu está azul ou não, ou se o vestido da nossa namorada
é azul ou não. Isto é, apesar de não termos à nossa disposição
definições explícitas de certos conceitos, nem por isso deixamos de
reconhecer quando um certo caso específico pode ou não ser
classificado desta ou daquela maneira.

Macei o leitor com esta história toda das definições explícitas e
implícitas porque me lembro que quando frequentava o 10.o de filosofia
se andava à voltas com a definição de filosofia. O resultado (aliás
nada surpreendente) deste tipo de ensino era o cepticismo do próprio
aluno em relação ao projecto da filosofia. Pois se os próprios
filósofos não eram capazes de definir claramente a sua própria
actividade, como poderiam ser bons filósofos? Bom, acho que já
respondi a essa pergunta: alguém tem dúvidas em reconhecer umas calças
de ganga azuis, apesar de não saber definir explicitamente o azul?
Passa-se o mesmo com a filosofia: desde que se consiga distinguir
claramente o que é filosofia do que não é, não é grave que não
tenhamos uma definição explícita de filosofia.

Mas será que os alunos do secundário têm uma boa definição implícita
de filosofia? Aqui temos um grande problema. Os alunos do secundário
têm de facto uma boa definição implícita de filosofia; mas de uma
certa maneira de fazer filosofia. Uma maneira de tal forma bizarra que
eu, e outras pessoas como eu, acham que isso não é filosofia. E é
claro que há outras pessoas que acham que aquilo que eu faço e a que
chamo filosofia não é filosofia.

Quero fugir da discussão de saber quem tem razão, porque não há nada
para discutir. As pessoas são livres de chamar às suas actividades o
que quiserem. Os praticantes do ocultismo, da astrologia e da alquimia
chamam à sua actividade "ciência"; mas nem por isso aquilo que eles
fazem se confunde com o que faz um geólogo, um biólogo, ou um físico,
pois não? Da mesma maneira, a prática a que nos liceus se chama
filosofia tem muito pouco a ver com o que eu faço e com o que
reconheço como filosofia. E o que eu faço e o que eu reconheço como
filosofia é o que se faz em quase todo o mundo, à excepção de meia
dúzia de sítios, como Portugal, Espanha e Itália, que se deixaram
influenciar pela cultura filosófica francesa.


Um dos maiores mistérios que gostaria de ver resolvido prende-se com a
autoria dos programas de filosofia do ensino secundário. Não sei quem
os fez, quem é responsável, com quem se pode discutir; sei vagamente
que são vagamente parecidos aos programas do ensino secundário
francês. E quanto mais filosofia aprendo, mais incríveis me parecem os
conteúdos (se é que assim se pode chamar) com que os alunos são
massacrados. Deixem-me dizer isto claramente: não percebo nada da
maioria dos manuais do ensino secundário. São confusos, prolixos e têm
erros gritantes. Estão ilustrados como se fossem banda desenhada, sem
que se saiba porquê. E são na maioria dos casos uma manta de retalhos
de pequenos textos igualmente ininteligíveis. Claro que esta é a
perspectiva de alguém que tem uma prática filosófica muito diferente
da que está instituída em Portugal e França.

Sejamos honestos: a filosofia em Portugal não tem prestígio. Os
estudantes acham que a filosofia não tem pés nem cabeça; os melhores
alunos são precisamente os que têm dificuldades com esta disciplina,
apesar de nunca terem tido dificuldades com as outras disciplinas. Os
alunos têm a sensação de que não há conteúdos específicos, que é tudo
subjectivo, que tudo depende do professor. Por outro lado, os colegas
dos professores de filosofia (os professores de física, de matemática,
de informática) desprezam no seu íntimo a filosofia: acham que é uma
aldrabice.

Esta situação é aliás semelhante à situação que conhecia o infame
Canto Coral do meu tempo. Era uma coisa horrível, estupidificante, sem
conteúdos e sem critérios de excelência académica. Toda a gente,
alunos e professores, desprezava o Canto Coral e com razão. Mas da
mesma maneira que não podemos confundir o Canto Coral com a música,
também não podemos confundir a filosofia que se ensina nos liceus (e
até na faculdade) com a verdadeira filosofia. Repare-se, aliás, que
este desprestígio da filosofia não ocorre só nos liceus: também na
universidade a generalidade dos professores de física, química,
informática, matemática, etc., despreza a filosofia.

É preciso que se diga, obviamente, que nem todos os professores
universitários, assim como nem todos os professores do liceu,
contribuem para este estado de coisas. As excepções são honrosas e são
cada vez mais; se isso não fosse assim, nunca teria sido convidado a
proferir esta conferência.

Não vou perder muito tempo a caracterizar a filosofia tal como é
ensinada nos liceus e na faculdade: essa filosofia já o leitor a
conhece e pode tirar as suas conclusões. Nessa filosofia fala-se do
Ser (com letra maiúscula), do Saber (também com letra maiúscula), do
Absoluto (igualmente com letra maiúscula) e de muitas outras coisas,
todas com letra maiúscula. Na verdade, parece que tudo se inclina para
Deus. Aliás parece que falar do Ser é uma maneira disfarçada de falar
acerca de Deus. E sugiro a quem quiser comprovar a orientação
religiosa dos programas do secundário que passe por uma igreja
católica e leia atentamente os folhetos da catequese e dos vários
grupos de acção religiosa; vão encontrar semelhanças gritantes.

O resultado último que aparentemente se procura atingir com a
filosofia no liceu é uma espécie de catequese barata: supõe-se que o
aluno deverá converter-se a Deus no final do 11.o ano que constitui
precisamente o último tópico do programa. Eu sou ateu, mas se fosse
crente também não gostaria de ver os meus filhos convertidos a Deus de

forma mais ou menos subliminar, escondida, envergonhada. Afinal, por
que haveria de ter vergonha de crer em Deus? Contudo, o resultado
último que se consegue atingir quando se disfarça a catequese barata
de má filosofia é o horror criado no jovem estudante às duas coisas: à
catequese e à filosofia.

Eu estou aqui para vos estimular e para vos mostrar que a filosofia,
tal como eu e a maioria das pessoas do mundo inteiro a praticam, não é
nada disto. Aliás, se olharem para o que Platão, Aristóteles,
Descartes, Kant, Leibniz ou Hume fizeram, reparam que também eles não
fizeram nada disto. Muita gente procura usar a filosofia para muitas
coisas; aparentemente, a filosofia oferece-lhes uma cobertura
conveniente para fazerem passar às escondidas o que não querem
defender às claras. Mas isto não é filosofia: é usar a filosofia para
fins obscuros.

Repare-se na concepção de filosofia que se tem. Que diria o leitor se
eu me apresentasse como filósofo? Diria que eu era pretensioso. No
entanto, uma pessoa exactamente com as mesmas qualificações do que eu
que esteja no ramo da matemática é um matemático; e se estiver no ramo
das artes, é um músico, ou um pintor, ou um escultor. Há uma boa razão
para isto e uma má razão. A boa razão é que entendemos por filósofo
apenas aquela pessoa que revolucionou a filosofia, como Einstein
revolucionou a física; mas esta razão não é suficiente; se fosse
suficiente, o número actual de físicos no nosso país seria reduzido a
0, assim como o de matemáticos, para já não falar nos músicos ou nos
pintores.

É a má razão que explica por que não posso dizer que sou filósofo sem
que o leitor ache que sou pretensioso. E a má razão é esta: a
definição implícita de filosofia que lhe transmitiram faz dos
filósofos uma espécie de poetas loucos, tocados pelos deuses, uma
espécie de santos padroeiros do Saber (com letra maiúscula), mais ou
menos como o São Francisco de Assis. É claro que vocês têm razão,
felizmente: nesse sentido não sou, nem gostaria de ser, filósofo.

Mas acontece que a filosofia, tal como eu a vejo (e tal como Platão,
Aristóteles, Descartes, Kant e Hume a viam), não é nada disso. A
filosofia é uma actividade cognitiva cujo objectivo é compreender
melhor um conjunto de problemas. Para compreender esses problemas os
filósofos constroem por vezes teorias. E usam argumentos, claro. Os
argumentos são a única forma de distinguir uma boa teoria de uma má
teoria, uma boa formulação de um problema de uma má formulação de um
problema. Como filósofo, estudo estes três tipos de coisas: problemas,
teorias e argumentos.

Perante isto, o leitor dirá: está tudo muito bem, mas é tudo muito
vago. Que tipo de problemas, que tipo de argumentos, que tipo de
teorias é que interessam à filosofia? A resposta circular é: os
problemas filosóficos, os argumentos filosóficos e as teorias
filosóficas. Mas esta resposta circular não é informativa. No entanto,
não posso dar-lhe uma definição explícita do que é um problema, uma
teoria ou um argumento filosófico. É como no caso da cor azul. Mas,
tal como posso dar-lhe exemplos de objectos azuis, também posso
dar-lhe exemplos de problemas, argumentos e teorias filosóficos.

Eis 4 problemas filosóficos, a título de exemplo:


O problema da mente-corpo. O problema de saber qual é a natureza
da mente e do corpo, se a mente se pode reduzir ao cérebro ou não
e, caso não possa reduzir-se, que relações tem a mente com o
cérebro.

O problema do bem. Que estamos a dizer quando dizemos qualquer coisa
como "o João não devia ter beijado a Maria sem mais nem menos"?
Estamos a descrever um facto, ou estamos unicamente a manifestar a
nossa desaprovação?

O problema do cepticismo. Será que existe algum conhecimento imune à
dúvida? Teremos razões para acreditar nas coisas mais básicas em que
acreditamos, como na existência de outras pessoas e na existência de
mundo exterior?

O problema da linguagem. Como é possível que uma palavrinha que eu
pronuncio descuidadamente tenha o poder de referir coisas com as quais
nunca estive em contacto? Quando digo "ouro" estou a referir todo o
ouro que há, que houve e que haverá. Mas como podemos explicar essa
relação entre a palavra "ouro" e o ouro?

Os filósofos tratam de coisas deste género: problemas acerca de alguns
dos nossos conceitos mais básicos, quer sejam conceitos comuns, quer
sejam conceitos científicos, religiosos ou artísticos. Os conceitos de
realidade, conhecimento, significado, bem, mente, beleza, número,
inferência e muitos outros, são o objecto de análise do filósofo. A
tarefa do filósofo é pensar criticamente sobre esses problemas e esses
conceitos. Pensar criticamente é avaliar cuidadosamente todas as
afirmações, em vez de as aceitar só porque alguém as disse, ou porque
são úteis ou confortáveis.

Por exemplo, parece que para algumas pessoas é espiritualmente
confortável acreditar em Deus, porque é espiritualmente confortável
acreditar que existe um desígnio no universo, desígnio no qual nós
temos um papel importante. Na verdade, acho difícil que esta ideia
seja espiritualmente confortável, a não ser que tenhamos espíritos
particularmente tacanhos e pouco exigentes. Mas admitamos que é de
facto espiritualmente confortável acreditar em Deus por estas razões.
Deve o filósofo proclamar que Deus existe porque é espiritualmente
confortável acreditar que Deus existe? Claro que não! O compromisso do
filósofo, tal como o compromisso do cientista e do artista, é com a
verdade e não com o conforto. O objectivo do filósofo, tal como o
objectivo do cientista ou do artista, é atingir uma cognição mais
perfeita, mais clara, mais lúcida do mundo e não impedir a cognição
por ser perigosa para o conforto espiritual. É por isso que podemos
afirmar que a filosofia é, num certo sentido, um desporto radical: é
arriscado como tudo, exige muito treino, muita dedicação e não há
garantia de se ganhar a medalha, que no caso do filósofo é a
descoberta de uma verdade importante e desconhecida. A diferença entre
o surf e a filosofia é esta: a filosofia não é uma habilidade física,
é uma habilidade cognitiva. O resultado da filosofia, ao contrário do
resultado do surf, é conhecer melhor o mundo.

A actividade crítica da filosofia faz-se através de argumentos. Se
alguém afirma que Deus existe, o filósofo pergunta que razões tem essa
pessoa para afirmar tal. Essas razões são argumentos a favor da
existência de Deus; o papel do filósofo é avaliar, discutir, analisar
esses argumentos.


O mesmo se passa em relação às teorias. Uma teoria filosófica não tem
valor por si mesma; vale exactamente o mesmo que valem os argumentos a
favor da sua aceitação e não apenas porque uma grande autoridade morta
há 500 anos a defendeu. A teoria das ideias de Platão, a doutrina da
substância de Aristóteles, a estética transcendental de Kant ou a
filosofia da linguagem de Wittgenstein têm o valor que os argumentos
favoráveis a essas teorias tiverem; não é a autoridade de Aristóteles
que empresta plausibilidade às suas teorias; é ao contrário: é a
plausibilidade das suas teorias que confere autoridade a Aristóteles.

O trabalho do leitor, e o meu trabalho, como estudantes de filosofia,
é compreender os problemas, os argumentos e as teorias filosóficas.
Isso faz-se através da formulação dos problemas, teorias e argumentos
e não através da sua repetição. Formular um problema, uma teoria ou um
argumento é mostrar que o compreendemos; é dizê-lo pelas suas próprias
palavras. Repetir é apenas um exercício de memória bacoco,
estupidificante e vazio. A filosofia, tal como a ciência ou a arte, é
uma actividade criativa e inteligente.

Penso que já ficaram com uma ideia do que é a filosofia. A filosofia é
uma actividade cognitiva que trata de problemas, argumentos e teorias
acerca de alguns dos conceitos mais básicos e gerais: o significado, o
bem, a beleza, a arte, o conhecimento, o livre arbítrio, a realidade,
o número, a inferência e muitos outros. Vou agora dar-vos uma ideia do
que é a lógica.

2. O que é a lógica?

Tal como a matemática estuda diversas disciplinas, como a aritmética e
a geometria, também a filosofia estuda diversas disciplinas, como a
epistemologia (que estuda o conhecimento), a estética e a filosofia da
arte, a ética e a filosofia política, a filosofia da religião, a
filosofia das ciências e a lógica.

É muito fácil definir a lógica: é a disciplina que estuda as
inferências, os raciocínios ou os argumentos. Mas o que é uma
inferência, um raciocínio ou um argumento? Bom, uma inferência ou um
raciocínio é o processo de concluir uma certa frase a partir de um
certo conjunto de outras frases. Há muitas formas de raciocínios:
raciocínios dedutivos, indutivos, analógicos, por exemplo. O tipo de
raciocínio dedutivo é o melhor conhecido e a palavra "lógica" usa-se
por vezes como sinónima do estudo, ou até do resultado do estudo, do
raciocínio dedutivo. Os silogismos que se estudam no 11.o ano
constituem uma teoria (originalmente construída por Aristóteles, mas
hoje ultrapassada) que pretende dar conta do raciocínio dedutivo.

O que é o raciocínio dedutivo e como se distingue dos outros tipos de
raciocínio? A característica central da dedução é esta: se um
raciocínio dedutivo for válido, isto é, correcto, e se as suas
premissas forem verdadeiras, então a conclusão está também garantida
como verdadeira. Por exemplo: se for verdade que o João e a Maria
foram ao supermercado, então é verdade que o João foi ao supermercado.
Este é um raciocínio dedutivo. Mas mesmo que seja verdade que o João
costuma ir ao supermercado com a Maria às quintas-feiras, pode ser
falso que o João tenha hoje ido ao supermercado, apesar de hoje ser
quinta-feira e apesar de um raciocínio indutivo razoável concluir que
o João foi hoje ao supermercado.


Um raciocínio dedutivo garante a verdade da sua conclusão se for
correcto ou válido e se as suas premissas forem verdadeiras; mas um
raciocínio por analogia, ou através de exemplos, ou um raciocínio
indutivo podem ser correctos e ter premissas verdadeiras e no entanto
a sua conclusão ser falsa. Tudo o que um argumento indutivo correcto
com premissas verdadeiras pode garantir é que é provável que a
conclusão seja verdadeira; mas não pode garantir que é realmente
verdadeira.

O exemplo da Maria e do João é muito simples e há por vezes uma
tendência para achar que a lógica dedutiva não pode ser informativa,
uma vez que só trata de tautologias (como lhe chamou Wittgenstein).
Isto é um disparate (apesar de não ser este o disparate que
Wittgenstein tinha em mente). A lógica dedutiva é extremamente
complexa; mas, tal como a aritmética, temos de começar por aprender as
coisas mais básicas. Ninguém acha que a matemática é uma coisa básica
porque começamos por aprender quanto é 2 + 2, pois não?

Já dei ao leitor uma ideia do que é a lógica. Vamos agora ver que
papel tem a lógica na filosofia.

3. O papel da lógica na filosofia

A parte estritamente formal da lógica permite-nos isolar e estudar as
propriedades dos argumentos válidos. É um estudo complexo e
extremamente estimulante, cujo resultado tecnológico último foram os
actuais computadores. Este estudo é importante para a filosofia porque
permite perceber argumentos filosóficos complexos, o que em última
análise nos permite saber se são bons argumentos ou não.

Tomemos um exemplo. Imagine que está numa aula e um dos textos que tem
de ler é o seguinte:

O próprio facto de o Universo existir, com tudo o que contém, é uma
evidência segura de que os cépticos se colocam numa perspectiva a
que poderíamos chamar errónea. Na verdade, o conhecimento é uma
possibilidade em aberto se o Universo, ou o Todo, existe,
assegurando assim a facticidade do próprio Ser e a eloquente
negação do Nada. Por outro lado, abre-se um abismo dilacerante no
seio mesmo desta questão, pois a própria intangibilidade teorética
do conhecimento se apresenta em alternativa paralela à
intangibilidade da perspectiva céptica, o que, convenhamos, não
corresponde à própria existência do Todo, nem à negação do Nada.

Perante este texto eloquentemente obscuro e ininteligível podemos
fazer duas coisas: ou nos dedicamos antes ao surf, ou procuramos saber
se isto quer de facto dizer alguma coisa, ao contrário do que parece.
Antes de a lógica nos poder dizer se estamos na presença de um
argumento válido, ou correcto, precisamos de saber se estamos sequer
perante um argumento. À primeira vista estamos apenas perante uma
logorreia bacoca e sem sentido.

Se eliminarmos aquilo a que na gíria do liceu do meu tempo se chamava
"palha" ficamos com um argumento muito simples:

Se o universo existe, o conhecimento é possível.
Ou o conhecimento não é possível, ou os cépticos estão enganados.

Mas o universo existe.
Logo, os cépticos estão enganados.

Esta formulação já começa a fazer sentido. Temos uma conclusão clara e
temos três frases como premissas do nosso raciocínio. A lógica
permite-nos perceber que o raciocínio é correcto (na verdade é um
raciocínio elementar que estava escondido por detrás da logorreia
anterior, que por ser logorreia parecia profunda). Mas daí não se
segue que a conclusão seja uma verdade. Porquê? Bom, porque a
correcção lógica só nos garante que a conclusão é verdadeira se todas
as premissas forem verdadeiras. Ora, a primeira premissa afirma que se
o universo existe, o conhecimento é possível, o que é no mínimo
discutível. Por isso temos de discutir agora esta premissa, pois a
verdade da conclusão depende da verdade desta premissa.

Que ganhámos com isto? Ganhámos clareza e afastámos a obscuridade e a
ilusão. Reparem que o próprio autor do parágrafo logorreico que vos li
pode estar iludido, pensando que descobriu uma verdade filosófica
importante, quando na verdade mais não fez do que apresentar um
argumento infantil que, talvez por acaso, até é válido. Mas de pouco
vale ser válido, pois uma das suas premissas é altamente discutível.
Sem esta análise simples ficaríamos todos iludidos e o objectivo de
alcançar uma cognição mais pura seria fracassado.

Ficámos assim a perceber para que serve a lógica: permite-nos dizer se
um certo argumento é válido ou não. Se um argumento é inválido, isso
significa que a conclusão pode ser falsa, ainda que todas as premissas
sejam verdadeiras. Logo, o autor de um argumento inválido, ou
incorrecto, não consegue defender a verdade da sua conclusão, uma vez
que não está a oferecer-nos razões para acreditar na conclusão: nós
podemos acreditar nas razões que ele invoca, isto é, nas premissas do
seu argumento e mesmo assim não aceitar a conclusão.

E que acontece quando a lógica afirma que o argumento é válido?
Ficamos a saber que se todas as premissas forem verdadeiras, a
conclusão também é verdadeira. E agora podemos discutir cuidadosamente
as premissas uma a uma para ver se serão todas verdadeiras.

Quer a análise lógica revele que um argumento é válido, quer revele
que é inválido, pelo caminho fizemos um trabalho de clarificação
imprescindível para o nosso objectivo: compreender melhor o mundo.
Estes são dois dos papéis principais da lógica: clarificar os
argumentos e as teorias filosóficas e dizer-nos se um argumento é ou
não válido.

A estes dois junta-se um terceiro papel: a lógica permite-nos também
saber se determinada teoria, ou se determinada proposição é ou não
consistente com outras verdades, ou até se é auto-consistente. Uma
teoria filosófica inconsistente com verdades mais básicas (quer sejam
verdades comuns, quer sejam verdades científicas) está com certeza
errada. E uma teoria filosófica auto-inconsistente não pode ser
verdadeira.

Quero agora falar-lhe de uma coisa acerca da qual se fala muito hoje
em dia: a retórica. Muitas pessoas insinuam (estas pessoas gostam de
insinuar, porque é menos arriscado do que ser honesto e dizer as
coisas directamente) que a lógica é insuficiente como instrumento
filosófico por ser puramente formal e que cabe à retórica o verdadeiro

papel criativo na argumentação filosófica. Esta posição está certa e
está errada. Está certa se entendermos por retórica aquilo que ela
deve ser: um conjunto de regras que têm por objectivo único tornar
mais clara a expressão dos argumentos. Mas acontece que não é isto que
estas pessoas em geral entendem por retórica: para eles, a retórica é
a arte do engano (tão duramente criticada por Platão e Aristóteles),
que consiste em conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas
razões para sustentar as nossas posições.

Vou dar-vos um exemplo do que é a verdadeira retórica. Imaginem que eu
defendo o seguinte argumento:

(P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos,
temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
(P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o
objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos
alunos.
(C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva,
temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.

Do ponto de vista estritamente lógico tanto faz apresentar o argumento
por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por (P2) em vez de (P1).
No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível se começarmos
por (P2). A retórica, entendida no bom sentido da palavra,
aconselha-nos a começar por (P2).

Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselha-nos a
não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que
enquanto a boa retórica é uma actividade honesta que tem como
objectivo a clareza, a má retórica é uma aldrabice que tem por
objectivo ocultar os argumentos, por forma a que seja difícil
criticá-los e avaliá-los. Assim, enquanto a boa retórica tem por
objectivo oferecer a possibilidade do pensamento crítico, a má
retórica tem por objectivo impedir o pensamento crítico e convencer a
outra pessoa, independentemente de existirem ou não boas razões para
aceitar o que está em causa.

Os grandes mestres nacionais da má retórica são os políticos e as
figuras públicas que aparecem na televisão e nos jornais: quando estas
pessoas discutem, o objectivo delas não é a verdade; é ganhar a
discussão para se auto-promoverem. Esta actividade burlesca é
completamente estranha à forma de fazer filosofia que tenho defendido
nesta conversa.

Já vimos, sumariamente, o que é a lógica e a retórica. Vimos também,
de certa forma, que papel pode a retórica ter na filosofia: a retórica
torna os argumentos mais facilmente compreensíveis. Mas a retórica não
pode fazer isto sem o auxílio da lógica. Nenhuma retórica pode tornar
um argumento logicamente incorrecto num argumento correcto; pode, com
certeza, dar a ilusão ao interlocutor de que se trata de um argumento
correcto. Mas não torna o argumento correcto. O mesmo acontece com
quem é aldrabão e engana com muita habilidade as pessoas no troco do
jornal; por mais habilidade que tenha, isso não faz com que o troco
esteja certo; só faz com que a pessoa desprevenida não se dê conta de
que está a ser enganada.


Não entendo a filosofia como uma arte da aldrabice e do engano. Também
não reduzo a filosofia à história da filosofia; não embarco na
adoração acrítica e para-religiosa dos grandes filósofos mortos. A
filosofia é uma actividade viva, feita por pessoas vivas que estão
perante problemas vivos. Também não reduzo a filosofia à adoração
bacoca do Ser, essa atitude mística acrítica. O meu objectivo o
objectivo da filosofia que pratico é a cognição, o conhecimento, a
libertação cultural, mental e intelectual.

Enfim. O que quero dizer-lhe era só isto: se deseja saber pensar,
estude filosofia. Verá que não se vai arrepender. Saber pensar é uma
das habilidades mais extraordinárias a que o ser humano tem acesso. A
Marguerite Yourcenar afirmou que "Um homem que lê, ou que pensa, ou
que calcula, pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores
momentos escapa mesmo ao humano." Era só isto que eu queria dizer-lhe.
Agora já está dito.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal

Limites do papel da lógica na filosofia
Desidério Murcho

Aristóteles considerava a lógica um instrumento filosófico
imprescindível e a tradição escolástica cultivou a argumentação
estritamente silogística. No entanto, a cultura filosófica está hoje
dividida quanto ao papel da lógica na filosofia. Ao inaugurar a
filosofia da época moderna, Descartes introduziu também um profundo
desprezo pela lógica silogística, a única então conhecida, enquanto
instrumento filosófico. É irónico que os filósofos mais argumentativos
da época moderna, como Descartes e David Hume, tenham desprezado o
papel da lógica na filosofia. Esta atitude ficou sem dúvida a dever-se
às insuficiências da própria lógica silogística e talvez também ao
juízo nem sempre justo daqueles que, ao procurar inovar numa dada área
do conhecimento, sentem o legado deixado pela tradição como um
obstáculo incómodo aos seus novos propósitos e métodos. É neste
contexto que temos de entender a afirmação de Kant de que a lógica
era, já no seu tempo, uma disciplina acabada e perfeita. Um século
mais tarde, Frege iria provar que Kant estava profundamente enganado:
muito havia ainda a fazer no estudo da lógica.

O advento da lógica moderna de Frege cristalizou duas atitudes
antagónicas quanto ao papel da lógica na filosofia. Por um lado, há
filósofos que ignoram a lógica (seja ela moderna ou silogística), à
semelhança dos seus antecessores do Renascimento. Por outro lado,
filósofos houve, como Carnap, que viram na lógica moderna o
instrumento que em última análise permitiria a solução dos problemas
filosóficos. Hoje em dia já ninguém partilha com Carnap esta crença
errada nos poderes da sintaxe da lógica dedutiva. No entanto, continua
a fazer-se sentir uma divisão quanto ao papel da lógica na filosofia.
De um lado, continuam aqueles que negam à lógica qualquer pertinência
para a filosofia e, do outro, aqueles que, apesar de não acreditarem
que a lógica possa resolver os problemas da filosofia, lhe reservam
todavia um papel importante. É a esse papel, e aos seus limites, que
resolvi dedicar estas páginas, sem pressupor por parte do leitor
qualquer conhecimento de lógica.

Uma questão prévia: ao longo destas páginas, por facilidade de
exposição, irei usar o conceito de proposição, uma vez que as frases
são objectos linguísticos inapropriados para as operações lógicas. No
entanto, as proposições são objectos abstractos independentes da
consciência, o que provoca algum mal-estar em filósofos mais
preocupados com as suas ontologias, como Quine. Nestas páginas, sem
qualquer prejuízo para o seu conteúdo, todas as ocorrências da
expressão "proposição" e suas cognatas podem ser substituídas pela
expressão que designa o objecto preferido pelo leitor para desempenhar
o papel lógico das proposições (frase-tipo, afirmação ou enunciado).

A diferença conspícua entre proposições e frases é facilmente
compreendida se considerarmos as frases "Sócrates era um filósofo" e
"Socrates was a philosopher". É claro que se trata de dois objectos
linguísticos, mas não é menos claro que "dizem o mesmo". São de facto
duas frases que exprimem uma única proposição. Tal como duas frases
distintas podem exprimir uma única proposição, também uma única frase
pode exprimir proposições diferentes. Por exemplo, a frase "eu sou
português", dita por Jorge Sampaio, exprime a proposição verdadeira de
que Jorge Sampaio é português; mas dita pelo presidente do Brasil
exprime a proposição falsa de que o presidente do Brasil é português.


As frases-tipo, por sua vez, distinguem-se das proposições por não
acarretarem os compromissos ontológicos daquelas. Quando afirmamos de
duas frases que constituem uma só frase-tipo, afirmamos apenas que
agrupamos ambas na mesma classe de frases, sem que estejamos
comprometidos com a existência independente da classe em causa.

A natureza da lógica

O conhecimento humano tem duas fontes: a experiência e a razão. Na
linguagem filosófica é costume dizer-se que uma proposição é a priori
se a sua verdade pode ser conhecida sem apelar para a experiência; e a
posteriori se pelo contrário só podemos conhecer a sua verdade através
da experiência.

Um raciocínio é o processo pelo qual se chega a uma conclusão,
partindo de uma sequência de proposições, a que se chamam premissas.
As premissas e a conclusão podem ser a priori ou a posteriori. Por
exemplo, apesar de o raciocínio seguinte ser dedutivo, todas as suas
proposições são a posteriori: "Todos os cães ladram; Boby é um cão;
logo, Boby ladra." Por vezes confunde-se a qualidade a priori típica
do raciocínio dedutivo com o carácter das suas proposições. Mas um
raciocínio é um processo de chegar a uma conclusão, usando certas
proposições. A qualidade a priori ou a posteriori dessas proposições é
independente da qualidade do processo que as usa. Um raciocínio é como
uma fábrica que produz sabonetes a partir de certas matérias-primas;
do facto de usarmos perfumes para produzir sabonetes não se segue que
a fábrica é um perfume; do facto de um raciocínio dedutivo usar
proposições a posteriori não se segue que o raciocínio seja a
posteriori. E do facto de o raciocínio dedutivo ser a priori não se
segue que as proposições por si usadas não possam ser a posteriori,
tal como do facto de a fábrica de sabonetes não ser feita de perfumes
não se segue que não possa usar perfumes como matéria-prima.

É necessário distinguir o conceito lógico de raciocínio do conceito
psicológico de raciocínio. O conceito psicológico de raciocínio denota
aquela actividade mental que os seres humanos realizam desta ou
daquela maneira, melhor ou pior, com prazer ou não. O conceito lógico
de raciocínio é uma abstracção independente de factores psicológicos.
A lógica não estuda o fenómeno psicológico do raciocínio; isso é
estudado por parte da psicologia. A lógica não é uma disciplina
empírica acerca da maneira como as pessoas raciocinam de facto. A
lógica é uma disciplina a priori que, entre outras coisas, estabelece
as normas que as pessoas têm de cumprir se desejam realmente alcançar
o raciocínio correcto ou válido. Se a lógica fosse uma disciplina
empírica acerca da maneira como as pessoas pensam de facto, teria de
admitir como correctos ou válidos aqueles raciocínios que a maioria
das pessoas realizam supondo serem correctos ou válidos. Mas a verdade
é que os raciocínios incorrectos ou logicamente inválidos não se
tornam válidos mesmo que todas as pessoas os tomem como válidos.

É necessário agora distinguir claramente a validade, ou a correcção de
um raciocínio, da verdade. A validade é uma propriedade dos
raciocínios e não das proposições que os compõem, ao passo que a
verdade é uma propriedade das proposições que compõem os raciocínios.
Isto é, uma proposição pode ser verdadeira ou falsa; mas não faz
sentido dizer que é válida ou inválida. Pelo contrário, um raciocínio
é válido ou inválido mas não faz sentido dizer que é verdadeiro ou

falso. Esta não é uma mera convenção, nem uma distinção meramente
verbal; ela corresponde à diferença que existe entre a avaliação
positiva (ou negativa) de um raciocínio e a avaliação positiva (ou
negativa) de uma proposição. Avaliar positivamente (ou negativamente)
uma proposição é muito diferente de avaliar positivamente (ou
negativamente) um raciocínio. Quando avaliamos positivamente um
raciocínio, por exemplo, sancionando a sua qualidade, afirmamos que
ele nos "conduz" à verdade, assumindo que as premissas são
verdadeiras. Esta verdade a que ele nos "conduz" é a proposição que se
conclui. Assim, avaliar positivamente um raciocínio é afirmar que,
assumindo a verdade das suas premissas, ele nos garante a verdade da
conclusão. Logo, temos de distinguir essa qualidade que os bons
raciocínios têm, que consiste em garantir a verdade das suas
conclusões, da própria verdade das suas conclusões: é preciso
distinguir o comboio que nos conduz ao Porto, do Porto.

A melhor forma de explicar a diferença entre verdade e validade é
através de um exemplo. Tome-se o raciocínio expresso na frase "Todos
os génios são loucos; logo, alguns loucos são génios". Este raciocínio
é válido, já Aristóteles o sabia (cf., no entanto, [12]"O erro de
Aristóteles"). Mas é a sua premissa verdadeira? Pode ser verdadeira ou
falsa; a lógica nada nos diz sobre isso. E a sua conclusão é
verdadeira ou falsa? A lógica também não diz. O que a lógica afirma é
que se a premissa for verdadeira então a conclusão também é
verdadeira: é por isso que é um raciocínio dedutivo válido. É aliás
isso mesmo que é um raciocínio dedutivo válido. Um raciocínio dedutivo
válido é aquele em que se as premissas forem verdadeiras então a
conclusão também é verdadeira. Claro está que se as premissas forem
falsas a conclusão pode ser falsa, ainda que o raciocínio seja válido.

A lógica estuda as leis a priori da inferência dedutiva. A lógica
estuda as leis que permitem que de premissas verdadeiras se derivem
conclusões verdadeiras. A lógica não pode pronunciar-se sobre a
verdade das premissas de um raciocínio; afirma apenas que a conclusão
de um raciocínio é verdadeira se e só se (1) o raciocínio é válido e
(2) as premissas são verdadeiras.

Está claro que existe outro tipo muito comum de raciocínio: a indução.
Mas neste caso a conclusão não se segue logicamente das premissas. Um
raciocínio indutivo razoável é ainda um raciocínio inválido
dedutivamente. Isto não significa que a indução não seja um tipo de
raciocínio extremamente importante. Significa apenas que a indução não
se pode confundir com a dedução e que não podemos avaliar a correcção
de um raciocínio indutivo com critérios dedutivos. Por isso, a indução
não é um objecto de estudo da lógica dedutiva. Por outro lado, não
existe nenhuma lógica indutiva razoável, apesar de existirem várias
tentativas, algumas talvez promissoras.

Como já vimos, as premissas de um raciocínio dedutivo tanto podem ser
a priori como a posteriori. Porém, as teorias e os argumentos
tipicamente filosóficos são dedutivos, e muitas vezes as premissas
desses argumentos são também a priori, no sentido em que não são
confirmáveis ou refutáveis pela experiência. Teorias e argumentos
indutivos com premissas a posteriori são típicos das disciplinas
empíricas como a história ou a física.

Verdade e ilusão


Se um raciocínio é válido ou correcto e as suas premissas são
verdadeiras, então a sua conclusão também é verdadeira. Está claro que
podemos ter o caso interessante de obter conclusões verdadeiras a
partir de premissas falsas com raciocínios inválidos; por exemplo,
"Nenhum pássaro é preto; logo, algumas coisas pretas são pássaros".
Mas mais interessante ainda é o facto de se poder obter conclusões
verdadeiras a partir de premissas falsas com raciocínios válidos; por
exemplo, "Todos os pássaros são pretos; logo, algumas coisas pretas
são pássaros" (cf., no entanto, [13]"O erro de Aristóteles").

Estes dois exemplos mostram como se pode chegar a conclusões
verdadeiras o principal interesse dos filósofos partindo quer de
premissas falsas, quer de raciocínios inválidos. Chegámos por isso ao
ponto em que os mais saudavelmente cépticos perguntarão que papel
poderá a lógica ter na filosofia, considerando que podemos ter as
seguintes situações:

(1) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões falsas;
(2) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões
verdadeiras;
(3) raciocínios inválidos com premissas verdadeiras e conclusões
falsas;
(4) raciocínios inválidos com premissas falsas e conclusões
verdadeiras;

e ainda:

(5) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões falsas;
(6) raciocínios válidos com premissas falsas e conclusões
verdadeiras;

e que, para além de distinguir claramente os argumentos válidos dos
inválidos, a lógica só nos garante que

(7) em raciocínios válidos com premissas verdadeiras as conclusões
são também verdadeiras.

Para responder a esta pergunta tenho de voltar a lembrar o facto de
que todo o conhecimento humano é fruto ou da experiência ou do
raciocínio. Se optarmos por uma postura intelectual honesta não
podemos deixar de nos perguntar como poderemos nós distinguir o
conhecimento verdadeiro da mera ilusão. Que critério podemos nós usar
que nos permita distinguir a verdade da ilusão? A resposta depende do
domínio de conhecimento a que nos referimos. Se estamos no domínio do
conhecimento empírico temos a experiência como guia: ninguém acredita
numa proposição que afirma que todos os pássaros são pretos quando o
nosso canário é amarelo, ainda que esta seja defendida por uma
qualquer grande autoridade, com um léxico terrorista e uma gramática
barroca.

Mas como poderemos nós distinguir a verdade da ilusão, do erro e da
falsidade quando as proposições que proferimos estão completamente
fora do alcance da experiência? Se alguém nos afirma que os humanos
são essencialmente racionais mas acidentalmente bípedes, como reagir a
esta afirmação? É certamente muito diferente daquela outra que
afirmava que todos os pássaros são pretos. Nesse caso tínhamos a
experiência para confirmar ou refutar tal ideia. Mas agora não temos
tal coisa. E se estamos num domínio cognitivo não podemos considerar

como argumento o facto de essa pessoa afirmar ter tido uma experiência
mística em que essa verdade lhe foi revelada. Talvez ela pense que
teve essa experiência; mas como vamos nós conseguir distinguir a
experiência verdadeira que ela pensa que teve, da ilusão de que a
teve? Num contexto cognitivo é irrelevante apelar para experiências
pessoais que não podem ser repetidas por terceiros e que nem eles
próprios podem distinguir da mais banal das ilusões ainda que isso
seja reconfortante de um ponto de vista afectivo e pessoal, para
aquelas pessoas que são pouco exigentes quanto ao valor de verdade
daquilo em que confortavelmente acreditam. Mas a ciência, a filosofia
e a arte não são pessoais mas sim públicas, discutíveis, passíveis de
controlo por terceiros. Não se aceita uma lei da física que só se
verifica no laboratório de um cientista quando ele está sozinho; não
se aceita uma proposição da filosofia para a qual não há argumentos
discutíveis mas que o filósofo afirma sentir ser verdadeira; não se
aceita o valor de um quadro que ninguém consegue jamais apreciar
excepto aquele mesmo que o pintou.

Lógica, argumentos, filosofia

A tarefa da filosofia, tal como a tarefa das ciências, é descobrir
proposições verdadeiras. Mas ao contrário do que acontece com as
ciências empíricas, a experiência raramente fornece à filosofia um
critério para distinguir a verdade da falsidade. Assim, apesar de a
lógica parecer fornecer tão pouco, é na verdade o único meio seguro
que temos para excluir argumentos que, ainda que conduzam à verdade, o
fazem de forma tal que não o podemos saber. A lógica não pode decidir
se as premissas são ou não verdadeiras; a lógica não pode tão-pouco
decidir se a conclusão de um raciocínio é verdadeira ou não; mas a
lógica diz-nos se tal conclusão deriva ou não de tais premissas.

É a lógica que permite distinguir claramente os argumentos válidos das
falácias. Uma falácia ou um sofisma é um argumento inválido que no
entanto parece ser válido. Quando o nosso campo de investigação excede
claramente a experiência, só a lógica permite evitar as falácias.
Repare-se no seguinte argumento: tem de existir algo que seja a causa
de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa. A
generalidade das pessoas que não sabe lógica aceita este argumento. No
entanto ele é falacioso, como sabem aqueles que conhecem os rudimentos
mínimos de lógica para a investigação filosófica. Repare-se que se
alguém nos afirmar que tem de existir alguém que seja a mãe de todas
as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe, já se vê claramente
que o argumento não é válido. Isto acontece porque a conclusão pode
ser verificada empiricamente: não existe uma pessoa que seja a mãe de
todas as pessoas. Mas este argumento é logicamente idêntico ao
argumento anterior; a forma lógica de ambos os raciocínios é a mesma.
Num caso temos proposições empiricamente verificáveis; no outro não
mas temos a lógica que permite excluir imediatamente também este
argumento como inválido.

Repare-se num argumento típico da filosofia. O filósofo quer defender
a ideia de que o bem é o que dá prazer. Nós perguntamos: por que diz
você tal coisa? E ele responde: porque isto, e porque aquilo, e porque
aqueloutro; logo, o bem é o que dá prazer. A lógica permite-nos dizer:
não senhor, dessas premissas é que não se pode derivar tal conclusão;
esse raciocínio não é válido. Até pode ser que o bem seja o que dá
prazer; mas a verdade da proposição que o bem é o que dá prazer não se
pode derivar das premissas apresentadas. Como não podemos ter dados

empíricos acerca de tal questão, vamos ter de arranjar outras
quaisquer premissas donde se possa derivar que o bem é o que dá
prazer. Há dois mil anos que os filósofos cristãos procuram um
argumento dedutivo para provar a existência do seu deus; mas até hoje
ninguém conseguiu. O que é também típico da filosofia: é que a lógica
diz-nos se um argumento é ou não válido; mas mesmo que um argumento
não seja válido pode ser que a sua conclusão seja verdadeira. Quem a
propõe tem é de convencer a inteligência dos outros filósofos; e o
único recurso é arranjar um outro argumento que seja válido.

Claro está que ainda que um filósofo conceba um argumento válido para
demonstrar que Deus existe, não se segue que Deus existe de facto;
segue-se apenas que se as premissas desse argumento forem verdadeiras
então Deus existe. Todos os filósofos passam agora a discutir a
verdade de uma ou outra premissa em particular; e para argumentar a
favor dessa premissa em particular vamos ter outra vez o dilema: ou
temos o critério da experiência para confirmá-la ou temos de
argumentar. Mas se temos de argumentar (o que é tipicamente o caso da
filosofia) então temos outra vez todo o processo a repetir-se. É isto
que torna a filosofia muito difícil.

O que torna a filosofia sublime é o carácter extraordinário que a faz
perguntar pelo que a experiência não pode alcançar, sem desistir de
exigir que se distinga a verdade da ilusão. Estas perguntas podem ser
incómodas para as pessoas que têm um forte espírito técnico e um fraco
espírito interrogativo. Mas a filosofia é fundamentalmente uma
actividade de fazer perguntas incómodas e tentar encontrar respostas
razoáveis. Perguntas muito simples sobre as questões mais gerais da
realidade. Tão gerais que não podem ter uma resposta empírica. A
questão de saber o que é a consciência pode ser, num certo sentido,
respondida pelas ciências empíricas. Mas quando a neurofisiologia, a
psicologia e as ciências da cognição nos disserem o que é a
consciência, o problema filosófico sobre a natureza da consciência
continuará a existir. O filósofo dirá: "sabemos agora o que é a
consciência e como funciona. Mas as coisas poderiam ou não ter sido de
outra maneira? Qualquer ser que possua consciência tem de ter uma
consciência como a nossa?" A questão filosófica sobre a consciência
fica sem dúvida enriquecida com a investigação científica; mas não se
confunde com ela.

As teorias filosóficas típicas não podem ser confirmadas ou infirmadas
pela experiência; ultrapassam-na. Só a lógica e a discussão séria
podem ajudar-nos a avaliar a verdade das suas teorias, uma vez que
queremos excluir do nosso estudo o apelo irracional a experiências
místicas. Mas como vimos, um argumento válido nunca é conclusivo em
filosofia porque é sempre possível duvidar da verdade das premissas;
por outro lado, um argumento inválido pode ainda assim ter uma
conclusão verdadeira. Assim, a lógica não pode de forma alguma
resolver os problemas da filosofia; não pode pelo menos, seguramente,
resolvê-los todos. Mas é um instrumento básico sem o qual a tarefa do
filósofo é bastante mais confusa, correndo o risco de se tornar ou num
discurso autofágico, ou num veículo de divulgação disfarçada de ideias
pouco inteligentes que querem furtar-se à livre discussão. O
verdadeiro filósofo é aquele que procura satisfazer a sua curiosidade
intelectual pela verdade, nada sacrificando ao valor da verdade; por
mais que uma ideia seja pessoalmente reconfortante para um
intelectual, o seu compromisso é com a verdade, não com o conforto; o
seu compromisso é com a inteligência, não com a crença injustificada.

Quem poderá pretender que a garantia da verdade de uma tese é o facto
de o autor sentir que ela é verdadeira? Não se trata de deitar o
sentimento humano fora, transformando assim as pessoas em máquinas
destituídas de sentimentos. Trata-se muito simplesmente de ser
imperioso distinguir a verdade da ilusão. Por mais que um pintor que
não tem qualquer domínio de qualquer técnica de pintura sinta que o
mau quadro que pintou é bom, temos de poder distinguir esse sentimento
que ele tem acerca do valor do seu quadro da verdade acerca do valor
do seu quadro.

Lógica, consistência, clarificação

Para apresentar o segundo papel da lógica na filosofia tenho agora de
introduzir brevemente a noção de inconsistência. Duas proposições são
inconsistentes se e somente se não podem ser ambas verdadeiras. Por
exemplo, a proposição que a vida tem sentido é inconsistente com a
proposição que a vida não tem sentido.

A dificuldade da filosofia faz com que muitas das teorias que merecem
ser consideradas seriamente não se deixem no entanto apresentar como
conclusões de argumentos dedutivos. Isto é, existem muitas teorias
filosóficas, possivelmente a maioria, que não são suportadas por
argumentos a partir dos quais essas teorias seriam deduzidas. Como
avaliar criticamente teorias filosóficas que não são suportadas por
argumentos dedutivos? É aqui que a lógica encontra o seu segundo papel
fundamental na filosofia. A tese filosófica proposta pode não ser
consequência lógica de nenhumas premissas mas também não poderá ser
inconsistente com verdades mais básicas amplamente aceites, sob pena
de ter de ser afastada logo à partida da discussão.

Uma tese de tipo hegeliano que afirme serem todas as verdades do
universo dedutíveis a partir de um conjunto finito de verdades lógicas
é inconsistente com resultados fundamentais da própria lógica. Não
pode por isso ser verdadeira. Mas a tese que afirma a existência de
Deus ainda não se provou até hoje ser inconsistente com quaisquer
verdades conhecidas; segue-se então que esta tese é verdadeira? Não;
segue-se apenas que pode ser verdadeira, tanto quanto sabemos. Mais
uma vez deparamos com o facto de a lógica carecer de poder para
determinar a verdade das teorias filosóficas. Mas mais uma vez também
percebemos o papel reservado à lógica: permitir que se separe
claramente aquelas teorias que merecem ser consideradas daquelas
outras que por pura análise lógica têm de ser logo à partida afastadas
da discussão séria.

Se entendermos que a filosofia consiste na discussão de teorias e
argumentos com o objectivo último de ganhar conhecimento acerca do
mundo (do qual nós somos uma parte) não podemos deixar de enfrentar o
problema de saber como podemos nós avaliar as diferentes teorias e
argumentos em discussão. É o que se chama a avaliação crítica. A
avaliação crítica filosófica não pode ser confundida com arrumação
histórica filosoficamente acrítica por carecer de instrumentos
adequados. Temos de saber distinguir claramente a discussão histórica
acerca do que disse de facto determinado filósofo e das diversas
circunstâncias culturais, sociais e psicológicas que eventualmente o
levaram a afirmar tal, da discussão filosófica que consiste em avaliar
criticamente a plausibilidade da teoria em causa. É irrelevante para a
verdade ou falsidade de uma teoria filosófica que tenha de facto sido
defendida por determinado filósofo ou não. O que se pretende discutir

em filosofia são teorias e argumentos interessantes conceptualmente,
independentemente de terem sido defendidos historicamente. A lógica
fornece instrumentos para afastar logo à partida aquelas teorias e
argumentos que são insustentáveis conceptualmente, ainda que tenham
sido defendidos historicamente.

Para que qualquer destes dois papéis que a lógica tem na filosofia
(detectar a validade dos argumentos e a consistência das teorias)
possa na verdade ser alcançado é imperioso que se proceda a uma
clarificação conceptual de forma a saber com razoável precisão o que
está a ser afirmado. Este é o papel mais básico que a lógica (agora
numa acepção mais lata) tem na filosofia. Este papel clarificador não
pode ser desprezado.

Um exemplo concreto desta capacidade clarificadora da lógica é o
seguinte. Um argumento péssimo que por vezes se ouve afirma que as
inconsistências não só não podem ser evitadas, como nem devem sê-lo,
pois o mundo é ele mesmo inconsistente. Este argumento é péssimo
porque resulta de uma confusão conceptual básica. Que diria o leitor
se eu lhe afirmasse que o Mário Soares não é divisível por dois de
forma a que o resto seja zero uma vez que é um número ímpar? Diria que
apesar de o Mário Soares ser um, não é o número um e que só os
números, mas não as pessoas, são divisíveis por outros números. Claro!
O mesmo se passa com a questão da inconsistência. Não se pode afirmar
que o mundo é inconsistente porque o mundo não é constituído por
proposições; e só as proposições podem ser inconsistentes. As
inconsistências só podem existir nas nossas teorias (que são compostas
de proposições) acerca do mundo. Mas as inconsistências são
insustentáveis porque de uma contradição segue-se logicamente tudo.
Isto quer dizer que, se aceitamos uma inconsistência qualquer, estamos
logicamente obrigados a aceitar tudo -- incluindo a negação do que
queríamos defender. Logo, se temos uma teoria inconsistente isso
significa que tudo, incluindo a negação da nossa teoria de partida,
tem de ser considerado verdadeiro. Uma teoria inconsistente é uma
fantasia que não permite conhecer melhor o mundo.

É a lógica, no sentido mais lato da palavra, que permite fazer
distinções conceptuais básicas que clarificam os argumentos e as
teorias filosóficas. A noção de predicados de primeira e segunda
ordem, por exemplo, é crucial para que se evitem argumentos e teorias
que não podem conduzir à verdade. Se afirmarmos "as pessoas são
numerosas e Sócrates é uma pessoa, logo Sócrates é numeroso",
percebe-se facilmente que algum erro foi cometido algures no
raciocínio, porque a conclusão é manifestamente desprovida de sentido,
apesar de as premissas serem verdadeiras. O que se passa é que o
predicado "numeroso" é na verdade um predicado de segunda ordem, uma
vez que se aplica à classe das pessoas, mas não aos elementos que
constituem essa classe, isto é, as próprias pessoas. Da mesma maneira
que não podemos dizer que a classe das pessoas é mortal, apesar de
todos os seus elementos as pessoas o serem, também não podemos dizer
que os elementos da classe são numerosos, pois este é um atributo da
classe. Ou, noutro exemplo, não podemos dizer que a classe das coisas
verdes é ela própria verde; os seus elementos é que são verdes. Nestes
casos não precisamos da lógica para nada, uma vez que o seu carácter
empírico e básico nos permite perceber imediatamente que alguma coisa
está errada. Mas o que poderá acontecer quando não temos o critério da
experiência para nos guiar (o que é típico na filosofia)? Só a lógica
permite afastar da nossa discussão aqueles argumentos que não vale a

pena considerar por serem inválidos. Pense-se nas confusões que podem
surgir quando se confunde a classe das coisas que existe, muitas vezes
infelizmente chamada "o ser", com os elementos que a constituem;
pense-se nos predicados que se podem atribuir à classe das coisas que
existem, mas que não se podem atribuir às coisas que pertencem à
classe, e vice-versa.

Lógica, retórica e filosofia

Não posso deixar de abordar um tema de que se fala muito hoje em dia:
a retórica. Uma tese que quero clarificar é a que afirma que a lógica
é insuficiente como instrumento filosófico por ser puramente formal, e
que cabe à retórica o verdadeiro papel criativo na argumentação
filosófica. Para discutir esta ideia é necessário distinguir dois
conceitos opostos de retórica. Por "retórica" podemos entender um
conjunto de regras que têm por objectivo único tornar mais clara a
expressão dos argumentos. Mas acontece que por "retórica" pode
entender-se outra coisa muito diferente, a saber, a arte do engano,
tão duramente criticada por Platão e Aristóteles, que consiste em
conseguir convencer os outros sem que tenhamos boas razões para
sustentar as nossas posições.

O papel da verdadeira retórica pode ser ilustrado com o seguinte
argumento:

(P1) Se desejarmos apurar as capacidades cognitivas dos alunos,
temos de lhes ensinar a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.
(P2) Se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva, o
objectivo do seu ensino será apurar as capacidades cognitivas dos
alunos.
(C) Logo, se concebemos a filosofia como uma actividade cognitiva,
temos de ensinar os alunos a formular com clareza, precisão e
criatividade os problemas, teorias e argumentos filosóficos.

Do ponto de vista estritamente lógico é indiferente apresentar o
argumento por esta ordem, ou inverter a ordem e começar por (P2) em
vez de (P1). No entanto, o argumento é mais facilmente compreensível
se começarmos por (P2). A retórica, entendida no bom sentido da
palavra, aconselha-nos a começar por (P2).

Mas a retórica, entendida no mau sentido da palavra, aconselha-nos a
não mudar a ordem, precisamente pela mesma razão. A diferença é que
enquanto a boa retórica é uma actividade que tem como objectivo a
clareza, a má retórica tem por objectivo convencer o interlocutor a
qualquer preço e é mais fácil convencer o interlocutor quando ele não
consegue avaliar o argumento em causa, uma vez que assim também não
consegue refutá-lo. Enquanto a boa retórica tem por objectivo oferecer
a possibilidade do pensamento crítico, a má retórica tem por objectivo
impedir o pensamento crítico e convencer a outra pessoa,
independentemente de existirem ou não boas razões para aceitar o que
está em causa.

Nenhuma retórica pode transformar um argumento mau num bom argumento;
o que a má retórica pode fazer, no máximo, é disfarçá-lo; mas não nos
ajuda a descobrir a verdade. A verdadeira retórica, entendida como
instrumento de estudo da verdade, depende da lógica. Não pode por isso
afirmar-se que o papel da retórica é mais importante para a filosofia

do que o papel da lógica. A retórica complementa a lógica; não pode
substituí-la.

Conclusão

A lógica tem então apenas estes três papéis: 1) dizer claramente se
determinada conclusão se pode ou não seguir de determinadas premissas
em certo argumento dedutivo; 2) dizer claramente se determinada
conclusão é ou não consistente com verdades mais básicas; e 3)
clarificar os argumentos e teorias filosóficos. Mas acontece que estes
papéis muito modestos da lógica são na verdade muito importantes
porque de pouco mais nos podemos valer para avaliar a discussão
detalhada, por vezes enervante, outras deliciosa, mas sempre
estimulante, com os outros filósofos. Evitar o erro de raciocínio, a
inconsistência e a obscuridade pode parecer pouco. Mas quando a
experiência não pode dizer-nos onde está a verdade, é uma benesse que
a lógica possa detectar a inconsistência porque aí não pode estar a
verdade , detectar o erro de raciocínio porque mesmo que aí esteja a
verdade nós não podemos sabê-lo , e clarificar as teorias e argumentos
para que a avaliação crítica seja realmente possível.

Para terminar, quero chamar a atenção para a diferença entre o estudo
de uma disciplina e o uso dessa disciplina enquanto instrumento. A
diferença é clara: uma coisa é usar a matemática na engenharia naval,
outra coisa muito diferente é investigar a própria matemática. O
engenheiro naval não precisa de mais do que um conhecimento
instrumental da matemática; os problemas da matemática não lhe dizem
respeito. O mesmo se passa com a filosofia em relação à lógica, com a
diferença que se pode alegar que a lógica é uma disciplina filosófica,
ao passo que a matemática não é, claramente, uma disciplina da
engenharia naval. O filósofo moral ou político não precisa de conhecer
a lógica senão como instrumento; para tal bastam alguns rudimentos.
São os lógicos que conhecem a lógica profundamente, investigam e
discutem os seus problemas; pode argumentar-se que os lógicos são uma
subclasse dos filósofos porque as decisões fundamentais a tomar quanto
à natureza da lógica são decisões filosóficas e não lógicas. Mas mesmo
que se defenda que todos os lógicos são filósofos, não se segue daí
que se tenha de defender que todos os filósofos são especialistas em
lógica, tal como ninguém defende que todos os engenheiros navais são
especialistas em matemática. Por outro lado, não podemos fazer hoje
filosofia seriamente sem o auxílio da lógica, como procurei mostrar
nestas páginas, tal como não podemos seriamente fazer engenharia naval
sem o auxílio da matemática.

Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Av. da República, 37, piso 4
1050 Lisboa, Portugal



Ensino da Filosofia e Exegese

Desidério Murcho *

Quero partilhar com os leitores algumas ideias sobre o ensino da
filosofia analítica. Uma vez que o próprio conceito de filosofia
analítica é razoavelmente pouco conhecido, escolhi a exegese como a
actividade em relação à qual a filosofia analítica se distingue
claramente da continental. O meu objectivo é disponibilizar alguma
informação que julgo importante não só para a tomada de decisões de
fundo no que respeita ao ensino da filosofia, mas também para a
prática docente quotidiana. A ênfase é colocada sobretudo no ensino
liceal da filosofia, mas sem perder de vista o ensino universitário.

A pequena cultura filosófica portuguesa pertence a um sector muito
específico e minoritário, em termos mundiais, da prática filosófica
internacional. É comum designar-se esta forma minoritária de fazer
filosofia como 'filosofia continental', porque é sobretudo nos países
do continente europeu (França, Portugal, Espanha, Itália e parte da
Alemanha) que se cultiva esta forma de fazer filosofia. A filosofia
analítica é dominante em países como o Reino Unido, os EUA, a
Austrália, alguns países nórdicos europeus e parte da Alemanha. Nos
países de forte tradição continental, como a França e a Espanha, o
movimento analítico tem vindo a crescer ao longo dos anos, apesar de
continuar, nesses países como em Portugal, claramente minoritário.

Toda a gente conhece a filosofia continental: foi o que nos ensinaram
e continuam a ensinar no liceu, é o que se ensina nas universidades e
a maior parte dos livros e revistas de filosofia são de perfil
continental. Uma das características que distinguem a forma analítica
de fazer filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa,
baseia-se na diferente posição que tomam em relação à exegese
filosófica. Ao passo que para os continentais a exegese filosófica não
se distingue da simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da
formulação, identificando com esta última o sentido da expressão
'exegese filosófica' mas não com a primeira.

A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente
captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina
ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de
medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua
em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de
um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber
medicina ou música, consoante o caso.

Compreende-se assim por que razão outra das características que
distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira
continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese
filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese
filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais
defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos
analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou
música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.

Para um filósofo analítico a expressão 'exegese filosófica' significa
'formulação' e não 'paráfrase', pois não podem existir 'paráfrases

filosóficas', uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão
crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mimética. Esta
divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao significado da
expressão 'exegese filosófica' é a causa última do tipo de ensino da
filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos analíticos não
passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da filosofia. Nos
liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são lançados, sem
preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa atitude que a
um analítico parece autêntico terrorismo intelectual), sendo-lhes
exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de paráfrases em que
os mais disparatados erros, as mais gritantes ambiguidades e
imprecisões e a mais evidente incompreensão dos problemas, argumentos
e teorias que os filósofos discutiram ao longo dos tempos são sinais
infelizes de um tipo de ensino que não tem capacidade para formar
pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes pessoas que sabem,
sobretudo, repetir.

A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite
ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao
passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica
das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos
alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em
Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja
formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa,
mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma
mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno
com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada
percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios
extra-filosóficos como a qualidade do português, a quantidade de
autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a
bibliografia de forma competente.

O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a
avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem
conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal
como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada
de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto
um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como
um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o
conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia
analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da
referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de
Descartes.

Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica
que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de
livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua
abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de
introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos
delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase
analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os
autores abundantemente; nada mais resta fazer. Não há quaisquer
conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados
didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais
importante para o menos importante. Quando se tem um conceito
continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é
negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria
essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente

empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.

Para terminar, gostava de afirmar claramente que da minha posição
favorável à filosofia analítica não se segue que eu ache que a
filosofia continental deva acabar. Defendo e sempre defendi a
tolerância e a liberdade. Acontece que, da mesma maneira que acho que
os partidários da filosofia continental têm o direito de estudar,
ensinar e divulgar a sua prática, também acho que os partidários da
filosofia analítica têm o mesmo direito. Esta posição não deve
confundir-se com um relativismo mais ou menos irresponsável, no qual
tudo é igual a tudo; é apenas o resultado de um princípio que me
parece sensato: nestas matérias pacíficas, as pessoas têm o direito de
estar erradas. Compete ao público fazer a sua escolha.

*Desidério Murcho

Sociedade Portuguesa de Filosofia

Av. da República, 37, piso 4

1050 Lisboa
FILOSOFIA -- ARTIGOS DIVERSOS
SEGUNDO VOLUME

OS IMPREVISÍVEIS ENCONTROS

--- Memórias de um "Museu Imaginário"

"(...) O asfalto estava pejado de carros que buzinavam sem
tréguas. As motos subiam para cima dos passeios e abriam caminho
por entre os peões. eu pensei em Agnès. Havia dois anos, dia por
dia, que a imaginara pela primeira vez;estava então à espera de
Avenarius numa cadeira de repouso do clube. Fora por isso que hoje
tinha pedido uma garrafa de vinho. O meu romance acabara e eu tinha
querido festejá-lo no lugar onde nascera a sua primeira ideia.
Os carros buzinavam, ouviam-se gritos de cólera. Numa mesma
atmosfera, outrora, Agnès desejara comprar um miosótis, uma só flor
de miosótis; desejara trazê-la diante dos olhos como último
vestígio, mal chegando a ser visível, da beleza. ".


Milan Kundera, "A Imortalidade".





I - EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA - os "primitivivos".



Há, na vida, incomensuráveis ironias! O mundo da Criação
abriu-se-me de forma insólita, num antiquíssimo Natal já desfeito na
bruma da infância quando, num amanhecer mágico e gelado, sobre um
fogão de lenha, num sapato sob a chaminé, estava um livro de colorir e
uma caixa de lápis de côr, mesmo à beira dum "arremedo" de tanque de
guerra, com lagartas em borracha, que cuspia umas vagas faíscas pelo
canhão de "folheta", sempre que se fazia pressão no chão da cozinha...
Claro que passei a manhã a gastar a pedra de isqueiro escondida
por trás dessa artilharia, imaginando índios ferozes, como nos filmes

de Gary Cooper ou as bandas desenhadas de Roy Rogers, e eu a debitar
metralha em todas as direcções dentro do monte de lata da imaginação.
Acabados os "fulminantes", com fastio, dediquei-me a aguçar
meticulosamente os lápis de côr, em caixinha de cartão, de aparência
análoga aos maços de cigarros que então se vendiam. O bico era mole e
desfazia-se, a madeira que suportava o "crayon" esfarelava-se e o
lápis só diminuia de tamanho na vertigem do aguçar, até se transformar
num "coto" informe, mesmo para dedos infantis!
Lá pintei como pude umas inconsequentes figuras sem relação entre
si, um urso polar, uma galinha, uma margarida, um lago com nenúfares
que logo me fez trazer gulosamente à memória o desejo dum jogo de
cartão da Majora, em opulenta exposição no "Bazar dos 3 Vinténs" numa
esquina da R. de Cedofeita (ainda hoje, degradado e doente, lá
permanece!), onde num aquário de cartolina se deitavam vários peixes
de papelão colorido, uma sardinha, um goraz, um linguado, uma espécie
de baleia (para mim, nessa altura, classificada como "o maior peixe do
Mundo"), fauna aquática essa que terminava numa argola metálica que
lhes perfurava um local algures entre as guelras e os olhos.
Então, com umas canas de madeira pintada a côr-de-rosa, aí com 15
cm. de comprido, descaía um pedaço de "fio do Norte" onde se suspendia
um íman e os jogadores pescavam, um de cada vez, marcando-se a
pontuação no fim!
Quanto à pintura a lápis de côr, gastou-se nessa manhã de Natal e
o livro perdeu-se nas mudanças de casa que entretanto se deram!
As artes plásticas eram então coisa estranha, depositadas em
museus onde se andava pé-ante-pé, com respeito e silêncio, como nos
velórios, cochichando baixinho e, nunca por nunca, tocando em nada!
Molduras enormes, de "torcidos e dourados", delimitavam esses
incomensuráveis metros de telas, onde se presumia que estava "A Arte"
e eu, indiferente, só pensava quando acabaria o martírio e ia jogar o
pião com o Horácio, vender velhos livros a um alfarrabista, para tocar

os proventos por bilhetes nas sessões de "2 filmes" no "Carlos
Alberto", salão cinéfilo das "classes piolhosas" do Porto, bem próximo
daquela sala mágica do "Cinema Paraíso"!
Arte, arte, eram as belas bandas desenhadas do "Príncipe Valente",
do "Cavaleiro Andante", as aventuras de "Mortimer & Blake" em torno da
"Marca Amarela", os irmãos Dupont de Hergé, a Castafiore e o foguetão
de quadrados vermelhos e brancos na "Viagem à Lua" de Tintin e Milou.
Pegava em papel vegetal e "copiava por cima", pensando na divina
injustiça que dava às minhas mãos um balancear canhestro, língua ao
canto da boca para ajudar à concentração do plágio, mas nem "copiando
por cima" saía Arte!...
Aquilo era mistério profundo,talvez quando crescesse soubesse o
"porquê"!



II. PISO 2 - "Sala das Memórias"


Cresci, como todos, nos dias intermináveis que antecedem os verdes
anos, Liceus onde se "formava" para entrar nas aulas, corredores
gélidos e marmóreos, contínuos com fardas azul e cinza, chefes e
sub-chefes de Turma, que marcavam a giz no quadro os "MC"
(Mal-Comportados) antes do Professor entrar, tudo em pé, no bolso
fisgas e canivetes, caramelos comprados a um pobre homem que aguardava
pacientemente a saída das aulas junto ao "Largo do Priorado", mesmo ao
pé da velha igreja românica de Cedofeita, com um tira de couro luzidia
por trás do pescoço, que agarrava uma caixa de madeira envernizada,
com dois vidros-tampas por cima, sob os quais, embrulhados em papel
celofane multicolor, espreitavam coisas açucaradas de mil-cores, do
amarelo solar ao verde-bílis.
Todas estas iguarias se "propunham", quais donzelas do "Bairro
Vermelho" de Amsterdam, à nossa inescrutável ganância de "doce"!
Aquilo partia-se nos dentes, parecia grude que nos impedia na próxima
meia-hora de abrir os maxilares, um "crac-crac-crac" fazia estalar os

ouvidos e tudo por cinco tostões..
Arte era acertar com uma espingarda de setas nos alvos de papel da
Feira Popular, o "Palácio", como então se chamava, em memória do velho
"Palácio de Cristal", onde em miúdo alugava bicicletas com duas rodas
de apoio atrás, nas manhãs de Domingo, e atravessava como uma bala as
sombras frescas da "Avenida das Tílias", por entre barracas fechadas
dos "Chocolates Regina", das tendas que faziam balões de açúcar, as
"barbas-de-velho", e então já era o Alves Barbosa, o maior ciclista do
mundo, só porque ganhava a "Volta a Portugal em Bicicleta"!
Apareceram então no Porto os primeiros "arremedos" de "Galerias",
onde gente estranha, vestida "à Artista", perorava em gesto largo e
linguagem bizarra, sobre a "violência" dum azul, o onirismo
surrealista duma paisagem onde não havia nem árvores, nem flores, nem
pássaros, mas simplesmente uns objectos "espongiformes", que se
derretiam na diagonal das obras, como aqueles relógios viscosos de
Dali.
Não, ali não entro! Que vou fazer junto daqueles olhares
iluminados de "entendidos", ainda mais hostis aos de "fora do clã",
que os guardiães caninos do "Soares dos Reis".



III. SALA 3 - "Exposição bibliográfica"



Arte era a Literatura, os "livros-só-de-ler", humildemente
confesso que começaram por ser os da colecção "Búfalo" e "Bisonte",
depois os policiais de Mickey Spillane, as aventuras extra-galácticas
da colecção "Argonauta", o Júlio Verne entremeado pelo medonho
facalhão de Sandokan, o Tigre da Malásia. Até que, um dia, numa
promoção de livros, gastei 500$00, uma fortuna de 2 anos de mealheiro,
e recebi em casa, pelo Correio, uma série de Romances, a verdadeira
abertura da minha alma banal à Literatura. Como era normal na "geração
de 60", comecei pelos "estrangeiros", que Portugal era uma "chumbada",

e pronto...
Que espanto ao encontrar "A Pérola" e "A um Deus Desconhecido" de
Steinbeck, "O Velho e o Mar" e "Por quem os Sinos dobram" de
Hemingway, "Um Certo Sorriso" de Françoise Sagan, "A Ponte", de
Manfred Gregor, "A Peste", de Camus, os longos romances de Roger
Martin du Gard.
Corria para casa e, avaramente, quando o livro começava a chegar
ao fim, lia cada vez mais devagar, para "poupar", para evitar que
aquele sonho acabasse, que a vida regressasse à banalidade dos
horários com Geografia, Físico-Químicas, Françês, Matemáticas,
História, Guerra dos Cem Anos, Guerra dos Trinta Anos, coligações e
batalhas, tratados diplomáticos, rios e Continentes onde nunca iria,
modelos em madeira de cristais que eram "arrumados" na estranha
taxonomia de "monoclínico", "triclínico" e "ortorrômbico"!
Então, na TV a preto e branco, o boletim meteorológico era feito a
giz num Portugal de papelão, no Natal as mensagens de Angola,
Moçambique, Guiné:
--- "Daqui, Manuel António, falando para seus Pais, Irmãos Amigos
e noiva Maria do Céu, deseja Boas Festas e Novo Ano cheio de
"propriedades"!
Nos estádios, aos domingos, Eusébio marcava golos de meio-campo
contra tudo que tinha a forma de baliza e, no Palácio de Belém,
Américo Tomás recebia as "famílias numerosas" do Ano, uma galeria de
desgraçados carregados de filhos, hierarquizados por alturas, posando
para o "Diário de Notícias", uma condecoração, uma fita por cima do
fatinho coçado e um "cabaz de Natal" com um bacalhau, uns azeites,
umas latas de atum e uma garrafa de espumante.
Fugia daquilo tudo para o calor do Café "Diu", onde estava a
"troupe" dos amigos, do "Diário de Lisboa", do bilhar "às três
tabelas", das conversas pela noite fora, dos conhecidos que iam
morrendo discretamente na Guiné, dos que desapareciam "a monte" para
as Franças, as Bélgicas, as Alemanhas, assim escapando aos Editais

trimestrais que decarregavam carne para canhão em Mafra, Tomar, Vendas
Novas, Caldas da Rainha, quartéis onde se entrava para os próximos
três anos e íamos parar aos barcos que partiam da "Gare de Alcântara",
rodeados de familiares que nesse pedaço de pedra deixavam lágrimas que
pesavam toneladas de amargura e silêncio.
Mas a Literatura salvou-me desse insólito Portugal, graças à
"Cidade das Flores" do Augusto Abelaira, ao riso dos "Cotovelos de
Vénus" de Santos Fernando, ao "Diário" de Sebastião da Gama, ao
sarcasmo profundo das "Farpas", à melancolia irónica de "Fradique
Mendes".
Afinal, a Arte estava ali, naquelas palavras magistrais, nos
livros em segunda mão, na perfeição inicial dum parágrafo, dum
adjectivo, duma figura que sintetizava uma época que agora vislumbro
com a nostalgia dos 50 anos, mas onde não gostaria de regressar.
Descobri que estava "do lado dos Livros", das bibliotecas, do
prazer de abrir com faca as páginas fechadas que me levariam a
Samarcanda, ao "Deserto dos Tártaros", à Indochina de Malraux, aos
quartos fechados de Sartre, à Alexandria turbilhonar de Lawrence
Durrell.
Andava em "Filosofia", porque "Direito" não era possível, era só
Coimbra, era longe, era caro, não podia ser e acabei por amar o que
tinha. Os pré-Socráticos, a História da Arte, as "Culturas"
não-sei-quê, não-sei-que-mais, acabando com um diploma em Latim,
manuscrito de pergaminho, onde se pendurava um selo de lacre envolto
em caixinha vagamente prateada, presa a uma espécie de fita de
comenda, com o azul-de-Letras.


IV. PISO TÉRREO - "Fechado para obras".



Tanta Filosofia deu em ser colocado como professor de "Língua
Portuguesa" na "Ramalho Ortigão", 22 horas mais 6 extraordinárias,

três contos por mês, 10 meses ao ano até, nem sei como, aceitar ir
para a Faculdade de Letras dar aulas, sempre pagavam doze meses ao ano
o que, por acaso, era exactamente coincidente com o número de vezes
que tínhamos de entregar a renda ao senhorio.
Foi-me entregue, entre outras coisas, a "Estética".Então, a Arte,
falar da Arte, transformou-se num ganha-pão, agora era eu o Professor
e estava do lado de cá daqueles rostos que ainda ontem se sentavam ao
meu lado, nas mesas de tampo verde do velho edifício junto ao
"Hospital de Santo António". Li livros e mais livros, e encontrei
nesse "Museu Imaginário" a pintura,a escultura,a arquitectura, o
urbanismo. Com eles me casei, como naqueles matrimónios contrariados
da época feudal, decisão tomada por outros, viver com uma "estranha"
e, miraculosamente, ano após ano, descobrir que nem sempre o Amor é um
"coup-de-foudre", que se pode construir aprendendo diariamente que um
afecto também nasce com a lentidão que levou a levantar das areias do
deserto o templo de Karnak!
Bisontes de Altamira e Lascaux, frescos cretenses com o
insuportável azul de golfinhos e princesas com tranças, as estatuetas
de Tanagra e Mirina, o entrelaçado vertiginoso do Islão, os granitos
comoventes do Românico, a luz de Giotto por entre névoas de ouro, as
flores de Boticelli, o intimismo de Vermeer, os desenhos agrestes de
Beardsley, as cabeleiras pré-rafaelitas de Rossetti, as noites com
estrelas-lírios de Van Gogh, as ancas doces da Polinésia de Gauguin,
os circos azul e rosa de Picasso, a pureza branca, amarela,de
Mondrian, os sonhos de Chagall, o esbracejar convulsivo de Pollock.
E tudo aquilo me perseguia, o "daimon" que atravessava aqueles
espaços, a indizível alegria, a calma, o sofrimento e a impotência das
Palavras em "dizer" essas mil vozes que por aí andam desde o princípio
do Mundo!
Até que descobri e aceitei que há mistérios insondáveis dentro de
nós, que a Razão não é tudo, que há murmúrios e lugares que ignoramos,

que todo o Sol define o contraste duma Sombra, que essa sombra varia
com as horas, os anos e as gerações. Dessa Sombra irrompe uma espécie
de Rumor, vindo de sítio-nenhum, algo que eternamente nos escapa e nos
deslumbra.
Hoje, perdidas as certezas dos verdes anos, sei que a imortalidade
se perdeu na alvorada de todos os "Mitos da Criação". Para nossa
consolação, em memória desse tempo perfeito, deixaram-nos o canto de
Orfeu e a alegria de Pã. Nas nossas vidas, em hora imprevisível, qual
"Aparição", seremos visitados, talvez, por uma inexplicável Alegria.


Porto, Fevereiro de 1997


A FRONTEIRA DA LUA


--- Uma convicção cosmológica no Mundo Antigo.

"(...)Imaginemos um jardim, com centenas de árvores das mais
variadas, milhares de flores das mais variadas, centenas de frutos,
de ervas das mais variadas.Se se dá o caso de o jardineiro desse
jardim não conhecer outra diferenciação botânica que não seja a de
"comestível" e "erva daninha", então não saberá lidar com nove
décimos do seu jardim, arrancará as flores mais encantadoras,
abaterá as árvores mais nobres ou pelo menos há-de odiá-las e
olhá-las de través.Assim age o Lobo das Estepes para com milhares
de flores da sua alma.(...)"


HERMAN HESSE,"O Lobo das Estepes".




I - PARA ALÉM DAS NUVENS

A aspiração de crescer é uma tentação a que mil vezes os gregos
escaparam. Habituados a espaços duma escala inteligível, que um olhar
enquadrava, neles geriram o singular destino e estilo que foi o seu.
Estados à escala de cidades, rodeados de objectos urbanos,
instituições ou ideias, praças ou teatros, era aí que o caos do mundo
se detinha, o sentido da cidadania e da política se confundiam.
Uma paixão nunca abandonada pela procura duma "ordem humana" que
trouxesse um pouco da perfeição dos céus ao "perpetuum mobile" da
História explica a minúcia, a quase obsessão com que desenharam os
"mundos ideais", as cidades-como-devem-ser para que o pensamento se
liberte e o filosofar, o governar, o criar deixem aberto o caminho
superior da meditação e da contemplação. Esse almejado e prestigiado
ócio, estrada real da liberdade.
Mas o tempo raramente cumpre os desejos daqueles que o prendem

com laços e fitas e nenhuma cultura inventa os seus sonhos sem trilhar
as sombras que o acaso ou o destino algures se comprazem em tecer. De
Tales a Sócrates a filosofia descobre que a paixão da física celeste
pode enredar-se nos assuntos da cidade, nas nuances sobre a "origem
das ideias", a justeza das Leis, a retórica dos discursos.
Em Platão, o vigor da eterna batalha da Filosofia já não esconde
alguma amargura e desencanto, um não-sei-quê se desprende das lutas de
Sócrates com os interlocutores e a frescura das ideias e do filosofar
dos fundadores pouco mais é que a perdida inocência dum tempo que foi
mas já não é. Lentamente se abre uma era de desconfiança, de pálidas
certezas, confrangedoras, mas tão admiravelmente humanas.
A Academia e o Liceu debatem-se com o presente e o passado e
revelam mais dois "estilos" do que dois "mundos" incomunicantes. Nas
suas salas ou jardins, na comunidade dos adeptos e aprendizes, nos
seus livros, nas suas colecções, a Filosofia complicou-se e reconhece
que entre os homens e o mundo há muito mais que o cristal
incorruptível do pensamento.
Perca-se a Terra, solte-se o desencanto do "relativo", do
"possível", do "talvez", do meio-termo, mas continua a persistir o
intocável, o próximo-distante que é o reino dos Céus, essa máquina
cósmica que nos cobre e protege, astros-deuses, desafiando-nos desde
os inícios do tempo. Tudo muda, tudo se transforma, mas para além das
nuvens e dos meteoros, nesse local-fronteira imediatamente acima da
Lua, a regra que perdura vem dos séculos dos séculos e o seu segredo
escapará ainda ao claro-escuro que doravante se entretecerá nos jogos
da razão.
A partir duma certa altura todos são devedores dos Pitagóricos,
no que à estrutura do Cosmos diz respeito. Após as hesitações da
Escola de Mileto quanto à forma, localização e comportamento do
insondável reino celestial, e se excluirmos a curiosíssima perspectiva
de Anaximandro com a sua interpretação de natureza geométrica e com o
seu quê de pré-gravitacional, são as leituras oriundas dessa singular

comunidade para-filosófica que estabelecerão as regras do jogo a que
poucos escaparão.
As regras são precisas, radicais e com reduzido número de
variações na sua configuração. Astros esféricos, órbitas desenhando
círculos perfeitos, a crença na natureza perfeita dos mundos para além
da Terra, a aposta da escrita cósmica remeter para uma combinatória
geométrica e matemática. Tudo o que reduz o alcance das aparências
titubeantes dos movimentos planetários a ilusões que remetam para a
perspectiva do observador ingénuo, vai na direcção da longa ascese que
prepara o conhecimento verdadeiro, aquele que vislumbra as harmonias
numéricas e assim trilha o caminho da contemplação e do pensamento
feliz!
As variações, como já se viu, são reduzidas, mas significativas.
Lembre-se a posição de Filolao e o seu "fogo central", de simbologia
estético-religiosa, mais a sua obscura "Anti-Terra" que harmonizava a
cumplicidade da "tetractis" com a face do mundo, ao forçar o universo
a cumprir a mística do "número 10". Mas sobretudo atente-se que esta
deslocação e as honrosas motivações que a possibilitam, tolera e exige
que a Terra saia do centro e que ocupe, por conseguinte um lugar
equivalente aos restantes planetas, eternamente singrando na esfera e
trajectória circular que lhe compete em torno desse "trono de Zeus"
que compensa e equilibra no centro cósmico esse outro "fogo exterior"
que se estende para além do derradeiro limite inteligível das estrelas
fixas.
Digamos, pois que o essencial foi descoberto cedo. Platonismo e
aristotelismo aceitam a lógica de tais princípios, ainda que
utilizando universos conceptuais distintos, como são os que distinguem
o registo alegórico do Timeu, da leitura mais inteligível e fria dos
céus de Aristóteles. A solução encaminha-se em direcção do poder das
matemáticas e das combinatórias geométricas em torno da pressão do

"dogma do círculo". Daqui resultará uma solução complexa e habilidosa,
um compromisso entre as "aparências" provenientes da observação e as
Leis imutáveis que a condicionam.
Tal caminho conduz a uma desmultiplicação das esferas
planetárias, cujo número é condicionado por determinantes que não
passam por qualquer verificação experimental, tratando-se somente de
encontrar uma construção que enquadre as trajectórias errantes numa
série adequada de sucessivas esferas de dimensões pensadas para servir
cada um dos astros conhecidos. Com Eudoxo e com Aristóteles esse
número pode aproximar-se da escala das dezenas! Daqui para diante o
modelo está estabelecido e o seu expoente superior irá confluir para a
escola de Alexandria, na obra de Claudio Ptolomeu.
Porém, não esqueçamos que até aí chegarmos alguns séculos e
significativos acontecimentos irão modelar o mundo antigo.


II - O SONHO DE ALEXANDRE


Um ponto de viragem será associado à figura de Alexandre, o
príncipe macedónio, cuja vocação de conquista levará os gregos para
além dos seus limites estratégicos. Educado em terrenos aristotélicos,
aspira a uma civilização que rompa os limites da "polis" ou, melhor
ainda, que estenda as suas regras a uma escala territorial que nunca
foi a sua. Digamos que Alexandre é um conquistador cosmopolita no
sentido etimológico da expressão. Mundo à imagem da Cidade. Cidade
como resumo do Mundo. Ao modo grego, claro.
Sabe-se a eficácia momentânea do seu projecto. A rapidez do seu
triunfo, a amplitude que nos mapas do mundo se deixa colorir pelos
sonhos de Alexandre. Da India ao Egipto um império se desenha.
Mas o Império não é o modo grego de estar no mundo, pela lógica
de confusão, mistura, essa escala das coisas para além do limiar do
razoável. Tudo unir na amálgama de mil vozes, mil usos, mil deuses
pode parecer um sonho digno, um desejo de modernidade, uma
fraternidade universal. Mas é também uma paixão que ignora o possível

e cada conquista dos generais de Alexandre é uma fissura irreparável
nos mármores do Partenon, uma porta aberta à incerteza e ao caos nas
ideias e nas almas.
Falta aos gregos a dimensão de gestores dos grandes espaços, das
redes de poder burocratizadas, do cimento de coesão que o Direito
Romano admiravelmente saberá distribuir por entre a "pax" das legiões.
A morte prematura de Alexandre, se parece ir ao encontro da máxima
segundo a qual "aqueles que os deuses amam morrem jovens", deixa como
primeiro legado um problema impensável à escala da "polis", isto é, a
repartição dum imenso território, repetido orgulho e maldição de toda
a conquista.
É sobre os seus mais próximos amigos e chefes militares que recai
o prosseguimento do sonho, agora mais condicionado por uma atitude
defensiva e realista que visa a consolidação no terreno duma lógica do
possível. No território egípcio, abre-se a porta à dinastia dos
Ptolomeus. Para além da Lua, os astros perfeitos continuam por
enquanto imunes aos jogos mutantes e corruptíveis a que se entregam os
homens.


III - ALEXANDRIA.CIDADE ABERTA


É com Ptolomeu Sotero, o general coberto pela sombra protectora
de Horus, que uma ideia grega vai ocupar um poder até então entregue
aos "deuses vivos" que escolherem o Egipto como morada. Verdade seja
dita, sempre os gregos olharam para esse lado do Mediterrâneo, esse
local simultaneamente acolhedor e ambíguo, como um espaço sedutor,
onde um saber vindo dos confins do tempo se acumulava com uma
espessura só possível num reino vocacionado para a eternidade.
Desde a escola de Mileto até Platão muitos foram aqueles que,
pressionados por uma ideia de conhecimento que visava uma abertura aos
outros, introduziram o gosto da viagem como uma virtude da Filosofia.

Entre outros, o Egipto era local de estadia quase obrigatório. Muita
coisa aí foi apreendida e reciclada pela cultura urbana subjacente ao
filosofar, pois o "milagre grego" é mais uma ars combinatoria que um
acto de rotura sem retorno face ao património de informação do mundo
antigo.
Não se tratava de fazer do poderoso império agrário uma Grécia
desproporcionada, missão em si mesma contraditória e impossível. Mas
de criar um estilo híbrido, na intersecção de dois modos de vida que
supõem uma bifurcação de caminhos civilizacionais e mentais. O
compromisso abre portas à dimensão urbana, patamar mutuamente
aceitável pelas duas culturas. Está aberto o projecto de Alexandria,
obra desmesurada a que os novos poderes dedicarão atenção prioritária.
O nome da cidade não engana. É a homenagem viva ao Conquistador que a
possibilitou!Mas é mais do que isso.
Contrariamente ao hábito corrente do desenvolvimento urbano das
sociedades camponesas, mais dependente dum crescimento afectivo e
desordenado do que duma demarcação no território das linhas de razão,
Alexandria visa um desejo de "ordem" cujas raízes mergulham na "polis"
e que só arquitectos e engenheiros são dignos de planear. É uma tarefa
que mobilizará os recursos gregos sob o patrocínio dos primeiros
Ptolomeus.
Deste modo a Cidade cresce com um objectivo de fundo helenístico,
esse grande desejo de mistura de muitas vozes, múltiplos encontros que
o acaso tece. Cidade marítima, entreposto de projectos, de línguas, de
deuses, mal sonha o milénio de grandeza e devastações que a aguarda.
Duas instituições míticas com ela nascem e que se transformarão num
dos grandes símbolos do mundo antigo. Ambos superiormente patrocinados
pelo poder, concretizam o melhor dos sonhos gregos e da sua particular
relação com a Teoria e a experiência. O Museu e a Biblioteca.
Recolhem a experiência de instituições como a Academia platónica

e o Liceu aristotélico e do gosto de convivência, de ensino e de
Escola nelas suposto, mas dotadas de meios materiais manifestamente
superiores, ao que tudo leva a crer. Talvez que o paradigma dominante
seja o aristotélico, designadamente pela intensidade que nelas
manifesta um saber experimental, empírico, prático, sempre olhado com
alguma reserva por toda a tradição platónica.
O Museu deve ser pensado num sentido muito amplo, a meio caminho
entre o sentido mais estrito que hoje damos ao termo e a instituição
multidisciplinar que abarca o essencial das áreas do saber, da
Astronomia à Botânica, da Geografia e Matemática à Zoologia e
Medicina. Verdadeiro centro de investigação e pesquisa, nele são
previstos espaços para uma pleiade de estudiosos que nele operam em
termos quase profissionais. Nem um Zoo faltará para ir de encontro à
vocação englobante que o preside!
Quanto à Biblioteca, que se julga ter recolhido um fundo
bibliográfico pertencente ao próprio Aristóteles, acumula um
património de informação invejável por muitos séculos. Patrocinada
pelo poder real como centro de afirmação cultural, para ela foram
recolhidos, arquivados e duplicados dezenas de milhar de livros, que
atrairam estudiosos de toda a parte, e transformaram os bibliotecários
de Alexandria numa das personalidades mais prestigiadas do mundo
antigo, de tal forma que passam a ser encarregados da educação do
príncipe.
O conjunto destas instituições permitiram que em Alexandria se
atingisse o que hoje se designa como "massa crítica" de investigação,
de tal forma que no seu período de máximo esplendor (séc. III-I a.C. )
aí se encontram personalidades de inequívoco relevo. Entre outros,
Euclides, o matemático, Eratóstenes, o geógrafo que pela 1ª vez
sugeriu uma medida espantosamente precisa do diâmetro da Terra,
Aristarco, o astrónomo, que propõe um sistema heliocêntrico, cuja
precoce modernidade só será recuperada na obra de Copérnico.

As observações astronómicas cada vez mais precisas e detalhadas,
acentuavam uma questão que já tinha sido equacionada desde os
primeiros pitagóricos até Platão e Aristóteles, isto é, a constatação
dos movimentos "errantes" dos planetas, a variação periódica do seu
tamanho aparente ao longo do ano, e a necessidade de compatibilizar
estes dados sensitivos com a racionalidade meta-lunar do dogma dos
movimentos circulares e uniformes. A solução-tipo consistia em
atribuir um papel fundamental à Astronomia Geométrica como via de
interpretação das peculiaridades da Astronomia de "observação".
O resultado é irem-se constituindo modelos
cosmológico-geométricos progressivamente complexos que explicam com
crescente barroquismo a intocável precisão do reino dos Céus. A obra
de Ptolomeu é o corolário final destes esforços, cujo sucesso é
indesmentível, quanto mais não seja pelos quase 1. 400 anos em que se
manteve à tona da história do pensamento astronómico.


IV - PTOLOMEU.A MÁQUINA CÓSMICA


Não se julgue que a teoria de Ptolomeu (séc. II) só deva ser
vista como uma "velharia", o resultado exemplar dum bloqueio
epistemológico, uma incapacidade de ver as coisas como são, por
carência de espírito objectivo-experimental, característico da Ciência
moderna pós-renascentista. Que é um acumular de erros e perversões que
só a cegueira da razão permitiu manter durante séculos e séculos.
O sistema ptolomeico permite prever factos astronómicos com
suficiente precisão, medir distâncias, elaborar cálculos com eficácia
prática e os seus modelos e abordagem geométrica, apesar de
ultrapassados pelo binómio Kepler-Newton, estão ainda bem presentes
nas considerações de Copérnico, cujo sistema é bem menos simples do
que as imagens redutoras que, por vezes, dele nos são dadas.
De Claudio Ptolomeu pouco se sabe da sua vida a das datas exactas

de nascimento e morte, presumindo-se que tenha vivido no séc.II
(100-170), por dedução feita a partir de alguns fenómenos astronómicos
por ele observados e referidos nas suas obras. A Alexandria que
Ptolomeu conheceu estava já distante do período de máximo esplendor
dos séculos passados e vivia agora sob o ascendente dos conquistadores
romanos, no tempo de Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio.
Os grandes investimentos culturais do tempo dos Ptolomeus tinham
passado à história, apesar do continuado prestígio da cidade junto da
elite culta, que continuava a usar o grego como meio de comunicação
preferencial.
Ptolomeu, apesar de ser conhecido como astrónomo, não deixou de
configurar o ideal eclético da cultura helenística ao cultivar a
Geografia, a Óptica, a Música e a Astrologia. A sobrevivência quase
integral das suas obras mais importantes, bem ao contrário do que é
usual em tantos trabalhos desta época que estão reduzidos a
fragmentos, citações indirectas, às vezes pouco mais que títulos,
deve-se a circunstâncias afortunadas, onde se destaca o grande
prestígio que o suas ideias adquiriram junto dos pensadores árabes,
responsáveis em boa parte pela recuperação dos seus textos. Foi,
aliás, a admiração destes intelectuais pelo trabalho intitulado
"Grande Composição Matemática da Astronomia", que originou a
designação de "Almagesto", provavelmente introduzida no vocabulário
actual por astrónomos cristãos da Idade Média. A este tratado, escrito
por volta de 142, segue-se um 2º livro de temática astronómica,
intitulado "Hipóteses dos Planetas", provavelmente datado de 146.
Nestes textos, mais do que absoluta inovação, faz-se uma síntese
bem organizada dos inúmeros predecessores, visando uma unidade teórica
de acordo com princípios bem estabelecidos, resultando numa versão
final da cosmologia antiga, cuja solidez só será posta em causa muitos
séculos mais tarde.

A associação entre Matemática e Astronomia patente no título,
resulta da divisão aristotélica entre "filosofia teórica" e "filosofia
prática", interessando particularmente a Ptolomeu a razão científica,
isto é, teórica, na boa tradição grega. Os patamares desta "filosofia
teórica" iam da Física à Teologia, passando pela Matemática, cumprindo
a via de "purificação" dum conhecimento que vai do sensível ao
imutável. Neste quadro classificativo, a Astronomia é um sub-campo das
Matemáticas, a par da Geometria e Aritmética.
Desta forma, ganha consistência um modelo cosmológico apoiado em
princípios, que compatibiliza a observação e as suas estruturas
mutantes e erráticas com uma cobertura de racionalidade e eternidade
que convém à perfeição dos objectos celestes. Tal é o objectivo visado
pela "Grande Composição Matemática" e "Hipóteses dos Planetas".
As proposições da Física que sustentam a astronomia visam "(. . .
) Antes de mais, admitir que o céu é esférico e que se move da maneira
que convém a uma esfera;que, pela sua forma, a Terra, considerada no
conjunto das suas partes é, ela também, sensivelmente esférica;que
pela sua posição, está situada no meio de todo o Céu, e que ela aí
está como que no centro;que quanto ao assunto do tamanho e da
distância, ela está para a esfera das estrelas fixas na mesma relação
que um ponto;que ela não executa qualquer movimento que a faça mudar
de lugar. (. . . )".
Não iremos aduzir os argumentos de Ptolomeu em favor destes
princípios, mas somente salientar que tais proposições exigem que se
transite duma Astronomia Física a uma Astronomia Matemática, espécie
de modelo computacional cujas exigências de precisão levarão a propor
soluções duma mecânica abstracta, na sequência dos caminhos já abertos
por Eudoxo, Hiparco e Calipo.
Daqui resultam duas ideias fundamentais em que se apoia a
construção de Ptolomeu. Por um lado, distinguir o "centro geométrico"
do Mundo do seu "centro físico", que é ocupado pela Terra;por outro,

imaginar que a revolução dos astros em torno do "centro" se faz em
função dum "epiciclo", deslocação perfeita dum orbe no qual o planeta
ocupa uma zona da circunferência que é arrastada pelo movimento
circular e uniforme.
É naturalmente complexo apercebermo-nos das soluções
geométrico-matemáticas subjacentes a esta engrenagem cósmica, cujo
principal objectivo era "salvar as aparências", isto é, fazer reduzir
a inconstância dos planetas a uma sucessão em cadeia de movimentos
racionalmente aceitáveis que, vistos do centro do Mundo (a Terra)
efectivamente seriam observados pelos "sentidos" como estando de
acordo com princípios imutáveis.
Como a variação do movimento planetário obedece a padrões
individualizados para cada um dos astros conhecidos, a solução
genérica dos epiciclos terá de ser adaptada a cada caso particular.
Haverá uma teoria do Sol, da Lua, de Mercúrio, de Vénus, de Marte, de
Júpiter e de Saturno, obrigando a soluções "ad hoc" que acabam por
desmultiplicar o número de orbes para o conjunto dos planetas, de tal
maneira que o sistema ptolomeico ganha dimensões
cabalístico-estéticas!
Mantém-se a "Teoria dos 2 Mundos" de proveniência aristotélica,
distinguindo bem o reino do movimento, transformação, corrupção, vida
e morte que habita a Terra, onde perpetuamente se transmutam ar, água,
terra e fogo, duma região para lá das nuvens, onde se desenha a régua
e esquadro a fronteira da Lua. É um Universo pequeno, controlável,
inteligível, um Mundo à escala humana donde, bem vistas as coisas, se
desprende uma certa doçura, bem distante do frenesim dos "pulsars",
"quasars", super-novas, super-enxames de galáxias, "big-bangs" e
radiações isotrópicas a 3º Kelvin.
Será pecado, em certas horas cinzentas, ter-se saudades dum erro
?!

PORTO, Setembro de 1993
Levi António Malho


"INCOMENSURÁVEL AFECTO"

--- Sobre livros, livros e mais livros

"(. . . ) Assim fiquei só com Fradique --- que me convidou a subir
aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma "soda e limão".
Pela escada, o poeta das "Lapidárias" aludiu ao tórrido calor
de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no patamar,
revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a
frescura da minha rosa --- deixei estouvadamente escapar esta coisa
hedionda:
--- Sim, está de escachar!
E ainda o torpe som não morrera, já uma aflição me lacerava,
por esta chulice de esquina de tabacaria, assim atabalhoadamente
lançada como um pingo de sebo sobre o supremo artista das
"Lapidárias", o homem que conversara com Hugo à beira-mar! . . .
Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde
rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem
trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes
paralelas, em calão teimoso: --- "é de rachar"! "está de ananases"!
"derrete os untos"! ... atravessei ali uma dessas angústias
atrozes, grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a vida e
a literatura, vincam a alma e jamais esquecem. (. . . )".



Eça de Queiroz, "A Correspondência de Fradique Mendes"



"Gasparzinho, o Às da Sorte, foi parar ao Polo Norte!". Tanto quanto
me lembro foi assim, numa manhã de 25 de Dezembro, em cima dum sapato
deixado sobre um fogão de lenha, que o Pai Natal me entregou o 1º
livro da minha vida, acompanhado duma caixa de lápis de côr Viarco e
dum 'aguça', nesses já distantes anos da década de 50, tempos da
Guerra da Coreia e da gente pequena que, pela magia da infância, era

incapaz de ver que o negócio tinha sido consumado aos balcões do
"Bazar dos Três Vinténs" da Rua de Cedofeita!
Primeiro livro, primeiro amor. Aquilo era uma vaga história para
colorir, que metia ursos das neves árcticas, 'igloos', pinguins e
peixes que saíam de buracos no gelo, esquimós com casacos de peles
fofas e felpudas, que hoje seriam 'politicamente incorrectos' e
desencadeariam a fúria de organizações ecologistas. Mas que sabia eu
disso, então, num Portugal pacato, rural, mesmo numa cidade como o
Porto, onde as luzes municipais eram acesas 'à mão' por um pobre diabo
que, ao cair das tardes, chave em punho, ia ligando interruptores que
vagamente emitiam uma claridade mortiça, sob um 'abat-jour' de
esmalte, não escondendo a ferrugem e incúria da passagem de imemoriais
solstícios e equinócios.
Que pena não ter já esse livro, embora confesse que a maior
animação foi aguçar até à exaustão os lápis Viarco, actividade de
nível metafísico incomensuravelmente superior ao tédio de pintar os
peixes, os pinguins e o mais que para lá existia.
Desde então, a verdade é que os meus dias estão sempre próximos de
livros!
Livro de 'Leituras', da 3ª ou 4ª Classe, com desenhos pálidos e
moralistas, fábulas, "O Corvo e a Raposa", "O Milagre das Rosas", "O
Alfageme de Santarém", "Egas Moniz com corda ao pescoço", mais mulher
e filhos que pareciam saídos dum orfanato dirigido por um descendente
do Scrugges de Dickens, a Pátria do 'Minho a Timor', os Missionários
comidos por antropófagos ateus, livros de 'História' com dinastias
inteiras a decorar, reis e cognomes, D. Sancho, o Gordo, D. Manuel, o
Venturoso, D. João II, o Príncipe Perfeito, a Ínclita Geração! Ou
ainda os malditos 'Livros de Exercícios' de Matemática, o 'Palma
Fernandes', capas cor-de-rosa, soluções no fim, sempre obstinadamente
diferentes da conclusão a que chegávamos após safar, raspar,
multiplicar, prova dos nove, coisas sinistras, tanques com torneiras

que debitavam 50 litros/hora e tinham de se reduzir a hectolitros.
Montões de coisas úteis, tanto elas contribuiram para a minha
felicidade que até me vêm as lágrimas aos olhos! Como, por exemplo,
orientar 'modelos de cristais', espécie de cruzetas de madeira, nomes
terríveis, sistema monoclínico, triclínico, ortorrômbico.
Que me interessa a mim o sistema ortorrômbico? ! E a sexualidade
das plantas, a única sexualidade dos Liceus do tempo modorrento de
Américo Tomás e Salazar, os estames e as corolas, os cotilédones dos
feijões e das favas, as infrutescências e inflorescências, as raízes
aprumadas ou fasciculadas? !
Então, 'livros bons' eram as colecções do "Condor Popular", onde
pontificavam os músculos de Luís Euripo, o pugilista português, o
"Cavaleiro Andante" com o Príncipe Valente e mais o sua espada
purificadora, o Flash Gordon e o Doutor Zarkov, ou as peripécias do
'Marca Amarela' e de Mortimore na Atlântida, nas vésperas da submersão
nas águas onde, quiçá, espreitava no Nautilus o olhar alucinado do
Capitão Nemo das "Vinte Mil Léguas Submarinas". . .
Ah! E os "livros só-de-ler", sem figuras! A gente a sonhar, a
inventar ventos, climas, amantes implacáveis, venenos, feras
esfomeadas, o som e a fúria dos tufões das Caraíbas, o enorme facalhão
de Sandokan, o Tigre da Malásia, os execráveis Governadores corruptos
ao serviço das Espanhas e das Inglaterras, os amores eternos e fatais.
Como quem não quer a coisa, 'ia-os' juntando, primeiro numa pilha,
depois numa estante, sem saber que, como um 'zombie', estava a
construir uma Biblioteca. Quem me dera regressar a essas horas
apontadas ao prazer de começar certos livros, sentir o mundo
apagar-se. Vir a correr da Escola, meter-me no quarto que ficava do
tamanho do Universo inteiro, até à chegada, aos gritos, da Mãe e Tia:
--- Apaga a luz, que é tarde! Amanhã é que vão ser elas!
O destino fez-me professor. De Filosofia. Tenho quase 50 anos

e os livros cercam-me por toda a parte, falam-me, quase os sinto
murmurar:
--- A mim não me vais ler! Cabrão! Traidor! Para que me compraste!
--- Se não me querias, por que não me deixaste em paz?
Tantas memórias, tantos livros me passam pela vida. 'Livros de
Sumários', marcando o ritmo pendular do ano lectivo. 'Livros de
cheques', as malditas contas, o supermercado, as rendas, os médicos,
os picheleiros, electricistas que sempre dizem:
--- Isto está 'p'rá qui' um sarilho!
--- É que é mesmo um bico-de-obra!
Eu, crucificado no purgatório das obras, resmungo:
--- Está visto! Vais-me tirar a pele, e depois, não satisfeito,
talvez esperes rapar o tutano de um ou outro osso mais à mão!
Tantos livros, tantos. Livros de Cavalaria que levaram a loucura
de Quixote a correr a secura de Espanha, livros que acenderam
fogueiras, como os de Giordano Bruno, livros que enlouquecem
multidões, as Bíblias, os Corões, os 'livros-vermelhos' dos Guardas do
Camarada Mao, da 'Grande Revolução Cultural' e do 'Grande Salto em
Frente'! Livros queimados em hecatombes de estupidez, arrogância
iluminada nas noites germânicas dos anos 30, livros que levam a
sentença de morte como os "Versículos Satânicos", livros escritos nas
masmorras da Bastilha, como os de Sade. Livros que escorriam pelas
mãos brancas de tédio de Madame Bovary, livros intermináveis como as
"Memórias de um Átomo", do tão querido João da Ega dos "Maias", livros
com névoa, como no castelo do "Deserto dos Tártaros" de Dino Buzatti,
livros terríveis como aqueles que pretendem explicar como se programa
um video-gravador com 4 semanas de antecedência.
E as colecções de livros? Os livros comprados 'a metro' para
efeitos decorativos? E ter de arrumar os livros? E limpar o pó aos
livros? E saber onde está um dado livro? E emprestar livros? E encapar
livros? E, em segredo e com vergonha, vender livros? !
E saber, como no "Fahreneit 451" do Bradbury que é possível um
mundo horroroso, onde todos os livros desapareceram? E as descobertas

dentro de livros, uma carta perdida, um bilhete de eléctrico de 8
tostões que ficou para ali, a servir de marca? E encontrar uma
dedicatória num livro em 2ª mão, dum amor que foi o maior do mundo,
com nomes que não nos dizem nada, hoje velhos, mortos?
E o que pesam os livros, quando se tem de fazer mudanças? E as
promessas de que se vão oferecer os livros que jamais abriremos outra
vez, para arranjar espaço para meter mais livros?
E encontrar 'algo' que é mais próximo de nós que a vizinha do lado
e que tanto pode ser o Ulisses da 'Odisseia", o 'Zadig' de Voltaire, o
Salviati de Galileu, a perfeição das horas brancas na Évora da
"Aparição", a bondade filantropa de Gog de G. Papini, as flores
argelinas das colinas de Tipasa que vão dar ao Mediterrâneo, nas
"Noces" de Camus, o bulício da Alexandria de Lawrence Durrell, o amor
louco da "Espuma dos Dias" de Boris Vian, os aromas da Arrábida de
Sebastião da Gama, as nortadas, anémonas e lubrinas de Luísa DaCosta,
a indizível inquietação duma adolescente que encontrou "Um certo
Sorriso" da Françoise Sagan, ou a imensa paz do "Sidharta" de Herman
Hesse.
Tantos livros, tantas vidas! Tudo isto uma Biblioteca guarda para
nós, para os vindouros. Biblioteca de Alexandria três vezes queimada,
por acidente no tempo de Cleópatra, por estupidez no tempo de Hipatia,
a bibliotecária-astrónoma, delapidada pela populaça em fúria contra o
saber 'pagão' e finalmente derrubada pelo vendaval rubro dos
estandartes do Islão.
Biblioteca mítica de Jorge Luis Borges, biblioteca que escondia o
texto perdido da "Poética" de Aristóteles, elogio da comédia e do
riso, no "Nome da Rosa" de Umberto Eco, biblioteca onde se desvenda,
finalmente, o criminoso nos romances de Agatha Christie!
Estranha é a nossa vida que, tudo passado, se reduz a duas páginas
num Livro, a 'Folhas Tantas', frente ou verso, perdidas nas
prateleiras duma Conservatória de Registo Civil, até que mais ninguém
se lembre de nós, nem na data do nascimento, nem na data da morte,

como tão perfeitamente, também num livro, o profetizou o grande Álvaro
de Campos.

Outubro/1996

Levi António Malho


"EPPUR SI MUOVE "

--- Sobre uma biografia de Galileu.


Nota: este texto está baseado, no que diz respeito à maioria das
citações de Galileu, na obra de Arthur Koestler, "The
Sleepwalkers. A History of Man's changing view of the Universe"
(Arkana, London, 1989, 1ª edição. Hutchinson, London, 1959). A
tradução é da responsabilidade do autor e encontram-se publicadas
na separata da Revista da F.L.U.P., série de Filosofia, (2ª
série), nº 11, Porto, 1995.

" Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã,
reconstróis o mundo; integral nos braços nús que conténs o
universo; juventude, aurora do homem. Que me importa o que os
outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del
Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de
espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um
copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas
afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora
o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água
lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do
coração. . .
Acordo. Tenho diante, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi
milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir. . . Só tenho
uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas?
Estendo-me ao Sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que
não voltará mais. "




MARGUERITE YOURCENAR, " Febo del Poggio "
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1 - A ALEGRIA DE OLHAR




Quando, em 1642, Galileu morre, com 78 anos, apesar da condenação que
pesava sobre o grande tratado " Diálogo sobre os dois Grandes Sistemas
do Mundo ", os seus trabalhos não entraram num longo interregno de
apagamento e silêncio, como seria usual esperar por comparação com
casos semelhantes, designadamente Giordano Bruno, cuja vida e obra
foram devoradas durante séculos nas cinzas da fogueira acesa no "Campo
das Flores", em Roma, quando se anunciava a Primavera do ano da graça
de 1600.
Após a sentença que o obrigou a abjurar das convicções
copernicianas e lhe ter sido confiscada a obra em que se confrontavam
as teses cosmológicas de " antigos " e " modernos " , Galileu, com
quase 70 anos, ainda tem lucidez para publicar a Ciência da Dinâmica,
mantendo prestígio e amigos, alimentando até ao fim a capacidade de
provocar afectos excessivos, flutuando entre o rancor e a admiração,
numa biografia pessoal e científica que marcou a alvorada da Ciência
Moderna. Não nos devemos espantar, portanto, que após a sua morte, os
amigos pretendam erguer-lhe de imediato um monumento e que o livro
proibido em 1633, circule clandestinamente na Europa culta, dois anos
depois do decreto que o pretendia banir da face da Terra.
Esta trajectória de controvérsia e paixão, que acompanhou toda a
sua vida e se mantém na tona da história há quase quatrocentos anos,
tem dado origem a um dos mais estimulantes debates que atravessaram as
ideias filosóficas e científicas, isto é, a conhecida polémica da
Razão e da Fé! Galileu tem sido esgrimido pelas partes em polémica com
uma paradoxal virulência, oscilando entre uma angélica inocência e um
heterónimo sulfuroso de Belzebú em pessoa. . .
O que acontece é que estes estereótipos radicais não dão uma
justa ponderação aos factos pois, apoiando-se em pormenores
autênticos, esquecem deliberadamente outras dimensões tão reais como
essas, susceptíveis de serem esgrimidas em sentido contrário.
Portanto, nem mártir nem santo, mas homem complexo, temperamental,

habitado por um extraordinário " daimon " que leva à coexistência das
grandezas e misérias que, às vezes, devastam certas vidas!
O seu primeiro livro, "O Mensageiro das Estrelas", vem a público
quando Galileu tem 46 anos, numa altura em que o essencial da sua
personalidade está formada, os projectos se encontram numa fase
avançada, as grandes intuições tomam forma. E se bem que a validade
duma obra não deva ser julgada pelo quotidiano de quem a fez, assim
como a veracidade duma lei científica não impede que o seu autor seja
assaltante de caminhos, nada impede que relacionemos Galileu com o seu
tempo, deixando ao leitor o critério da ponderação destes elementos.
Filho de Vincenzo Galilei, homem culto originário da baixa
nobreza empobrecida, Galileu Galilei nasce em Pisa, em 1564, numa
família com vagos investimentos comerciais, bem diferente da
desvairada e louca constelação de afectos do seu admirador e
contemporâneo, J. Kepler. Sobre o pai de Galileu, afirma Arthur
Koestler: " (...) foi um homem de notável cultura, com consideráveis
sucessos como escritor e compositor de música, um desprezo pela
autoridade e tendências radicais. Escreveu, por exemplo, (num estudo
sobre o contraponto) : "Parece-me que aqueles que tentam provar uma
afirmação confiando simplesmente no peso da autoridade, agem muito
absurdamente" . (...) ".
Frequentou a escola jesuíta do Mosteiro de Vallombrosa, perto de
Florença, mas acabou por voltar a casa, a fim de se dedicar a assuntos
comerciais, como era desejo do pai. Diga-se que a Companhia de Jesus
vai exercer uma forte influência no destino de Galileu, quer no
sentido positivo, quer no negativo, pois guarda inúmeros amigos nesta
ordem religiosa, cujo espírito aberto e disponível para os temas
culturais e científicos manifesta uma das mais curiosas vertentes do
movimento da Contra-Reforma. As dificuldades económicas crescentes da
família levam-no a abandonar a Universidade de Pisa, para onde tinha

entrado aos 17 anos, após lhe ter sido recusada uma bolsa para
prosseguir os estudos.
Este facto deve explicar-se mais pelo temperamento pessoal de
Galileu, pela tendência polemista que tinha como alvo preferencial os
professores de formação aristotélica, a quem devia fazer a vida num
inferno, do que a qualquer falta de capacidades intelectuais pois, com
20 anos, já tinha inventado o "pulsilogium" e intuído as leis do
pêndulo.
Regressado a casa, mantém um espírito autodidacta e potencia as
suas notáveis aptidões experimentais no campo da mecânica aplicada e
na produção de instrumentos especializados, entre os quais uma balança
hidrostática, que dá origem à publicação dum tratado que circula
particularmente entre personalidades amadoras destas áreas. Não tarda
a ser recomendado a Fernando de Médicis, Duque da Toscânia, através
dos bons ofícios do Cardeal del Monte, e a ser nomeado Professor de
Matemática em Pisa, na mesma Universidade que, há quatro anos, através
de manobras mil, tinha julgado lançá-lo para o anonimato eterno!
Com 25 anos, Galileu entra pela porta grande do meio
universitário, sob patrocínio real e em 1592, com 28 anos, é promovido
a "titular" da cadeira de Matemática em Pádua, onde se manterá durante
quase vinte anos. Podemos facilmente imaginar a alegria dos seus
colegas docentes ao verem a fulgurante carreira de Galileu, ainda por
cima sob os auspícios e o alto patrocínio de cardeais e príncipes.
Galileu tem uma particular sensibilidade para ponderar a correlação de
forças e não deixará de utilizar estes factores favoráveis para alguns
ajustes de contas, que pacientemente irão alimentar o caldeirão de
sentimentos em que a sua vida se move.
Este longo período em Pádua é o mais fértil da sua existência, do
ponto de vista da estruturação das descobertas e princípios que, a
partir de 1610 e da publicação do "Mensageiro das Estrelas", irão dar
origem a uma sucessão de obras-chave para a Ciência Moderna. Enquanto

isto não acontece, o seu prestígio aumenta, os negócios correm
razoavelmente, pois mantém uma oficina de produção de equipamentos
sofisticados e começa a ser conhecido além-fronteiras, se atendermos a
que Kepler se dá ao trabalho de lhe oferecer uma cópia do seu
"Mistério Cosmográfico", vindo a público em 1597.
Apesar de sabermos das suas convicções íntimas em defesa de
Copérnico, nesta altura, nas suas aulas, continuava prudentemente a
não sustentar essa posição, preferindo divulgar as ideias astronómicas
e cosmológicas aristotélico-ptolomeicas. É isso que se expressa numa
carta de Agosto de 1597, dirigida a Kepler, em agradecimento ao livro
que este lhe enviou: " (...) Resta-me acrescentar que lerei o seu
livro com tranquilidade, certo de nele encontrar as mais admiráveis
coisas, e farei isso com a maior alegria já que adoptei a mensagem de
Copérnico há muitos anos, e o seu ponto de vista permite-me explicar
muitos fenómenos da natureza que certamente ficariam inexplicáveis, de
acordo com as hipóteses mais correntes. Escrevi muitos argumentos a
favor dele e em refutação da perspectiva oposta --- que, todavia, até
agora não me atrevi a trazer a público, assustado pelo próprio destino
de Copérnico, nosso professor que, apesar de ter adquirido fama
imortal junto de alguns, é ainda para uma multidão infinita de outros
( pois tal é o número dos loucos ), objecto ridículo e desprezível.
Certamente, atrever-me-ia a publicar de imediato as minhas reflexões
se existissem mais pessoas iguais a si; como não há, suster-me-ei de
tal fazer. (...) ".
Este receio de Galileu não tem ainda suficiente justificação
pois, por enquanto, a Igreja católica, designadamente a sua hierarquia
mais esclarecida, apoia e discute Copérnico, mantendo a política que
tinha seguido ao estimular, durante longos anos, a publicação desse
texto que será causa remota de tanta controvérsia. O motivo
fundamental da prudência de Galileu deve procurar-se mais do lado das

reacções oriundas dos meios aristotélicos universitários, que
aguardavam o mínimo deslize para desferirem ataques, do que dos
círculos afectos à Igreja. " (...) Até ao ano fatal de 1616, a
discussão do sistema de Copérnico era não só permitida, mas estimulada
por eles --- sob a única limitação, que consistia em confiná-la à
linguagem da ciência, e não tergivesar para assuntos teológicos. A
situação foi claramente sintetizada numa carta do Cardeal Dini para
Galileu, em 1615: "Pode escrever-se livremente enquanto nos
mantivermos fora da Sacristia. ". (...) ".
Nos próximos dez anos, até à altura da publicação do primeiro
livro, Galileu continua as investigações de física, prossegue a
docência e desenvolve o telescópio que está na origem das
extraordinárias observações relatadas nesse texto.
Após a vinda a público do "Mensageiro das Estrelas" e da
abundante argumentação de natureza experimental sobre os factos
astronómicos, onde se destaca, sem dúvida, a descoberta dos quatro
Satélites de Júpiter, as discussões vão aumentar de intensidade, pois
não faltaram aqueles que negavam a existência dessas "monstruosidades"
celestiais. Galileu está no seu terreno favorito, convencido da razão
que lhe assiste e detendo uma vantagem estratégica face aos seus
adversários, não perde nenhuma oportunidade para fazer vingar as suas
teses e ajustar contas com um mundo académico que jamais o tinha
aceite de boa vontade!
Eram então levadas a efeito demonstrações da Luneta que
abrilhantavam serões de convívio e debate sobre assuntos filosóficos e
astronómicos. Era frequente que nenhum dos convidados conseguisse ver
coisa alguma através de tão estranho "tubo", quer devido à falta de
treino de observação, quer pelo facto da sua construção ser ainda
relativamente rudimentar. Claro que havia sempre duas atitudes
possíveis: a primeira, a daqueles que se consideravam "modernos" e de
espírito aberto às novidades da Ciência, sempre haveriam de murmurar
um comentário laudatório, mesmo que só tivessem visto umas vagas luzes

nos céus; a segunda, situada no campo oposto, vociferava aos sete
ventos o infame logro, atribuindo-o a motivos de ilusão de óptica e
aberrações oriundas de tão ordinário instrumento!
Foi o que aconteceu num convívio-demonstração que teve lugar em
Bolonha, por fins de Abril de 1610, poucas semanas após a publicação
do livro, onde ocorre o famoso episódio atribuido a Cremonini e Libri,
professores de Filosofia em Pádua, que se recusaram a olhar pela
Luneta, pois tal facto seria por si mesmo uma forma de admitir que
"alguma coisa de novo" pudesse ser visto através dela...
Ora, dado que uma das facetas do temperamento de Galileu o leva a
entender que a vingança é um prato que se serve frio, não é de admirar
que, aproveitando-se do facto da morte do Professor Libri, tenha feito
constar a seguinte opinião: " (...) Libri não optou pela observação
das minhas ninharias celestiais enquanto estava na Terra; talvez neste
instante o faça, agora que foi para os Céus. (...) ".
A controvérsia arrasta-se durante meses e o único apoio recebido
vem-lhe de Kepler, com quem mantinha uma vaga correspondência que
remontava a 1597 e que, na altura, era um matemático e astrónomo de
grande prestígio. Publicou uma "carta aberta" em defesa de Galileu,
intitulada "Conversa com o Mensageiro das Estrelas", na qual faz boa
fé nas afirmações por todos contestadas e onde traça espantosos planos
para o futuro, bem típicos da sua alma agitada e genialmente
paradoxal. " (...) Não haverá falta de pioneiros humanos quando
dominarmos a arte de voar. Quem teria pensado que a navegação através
do vasto oceano era menos perigosa e mais calma do que nos apertados e
ameaçadores golfos do Adriático, ou do Báltico, ou dos estreitos
Britânicos ? Vamos criar navios e velas ajustados ao éter celestial, e
haverá muitas pessoas sem medo das vastidões vazias. Entretanto,
preparemos para os bravos viajantes dos céus, mapas dos corpos
celestiais. Eu fá-lo-ei para a Lua e tu, Galileu, para Júpiter. (...)
".

Aproveita também Kepler para, pouco depois, em Agosto de 1610,
pedir a Galileu que lhe ceda uma luneta análoga à que este usou, de
forma a que possa testemunhar de viva alma essas extraordinárias
novidades, pelo que ficamos a saber que o seu depoimento na "carta
aberta" não se apoia na observação, mas na convicção dos afectos,
atitude bem pouco científica, no presente contexto. " (...)
Despertaste em mim um grande desejo de ver o vosso instrumento de
forma a que, finalmente, eu possa usufruir como tu do espectáculo dos
céus. Pois entre os instrumentos aqui à nossa disposição, o melhor
amplia só dez vezes (...) Não quero esconder que cartas de vários
Italianos chegaram a Praga negando que esses planetas possam ser
vistos através do teu telescópio. (...) ".
Galileu aproveita para divulgar este providencial apoio, apesar
de nunca enviar a Kepler a luneta que ele tanto desejava, com a
desculpa de ter oferecido a melhor que possuia ao Grão-Duque da
Toscânia e de, entretanto, estar a fabricar outras novas!
Finalmente, por alturas de Setembro, Kepler recebe, emprestado
por alguns dias, um telescópio pertencente ao Duque da Bavária que se
encontrava de visita a Praga, conseguindo então testemunhar
pessoalmente a veracidade das afirmações de Galileu. Também astrónomos
Jesuítas, entre os quais o prestigiado Padre Clavius de Roma,
confirmam os factos, assim contribuindo para o crescente triunfo de
Galileu nos meios intelectuais italianos, reforçado depois pelas
observações das fases de Vénus e de duas luas em Saturno.



2 - OS OVOS DOS BABILÓNIOS



Galileu sente que os tempos lhe são favoráveis e a hora do
triunfo público se aproxima. A convite dos Médicis, instala-se em
Florença na qualidade de "Filósofo e Matemático Principal", é recebido
em audiência pelo Papa Paulo V, eleito para a "Academia dos Linces" e

publicamente homenageado pelo poderoso Colégio Jesuíta de Roma.
" (...) passou em Roma a Primavera seguinte 1611 . A visita foi
um triunfo. O Cardeal del Monte escreveu numa carta: "Se ainda
estivessemos a viver sob a antiga República Romana, creio firmemente
que teria havido um obelisco erigido na capital em homenagem a
Galileu.". A selecta "Academia dos Linces", presidida pelo Príncipe
Federico Cesi, elegeu-o como seu membro e ofereceu-lhe um banquete;
foi neste banquete que a palavra "telescópio" foi pela primeira vez
aplicada à nova invenção. O Papa Paulo V recebeu-o em audiência
amigável, e o Colégio Jesuíta de Roma honrou-o com várias cerimónias
que duraram um dia inteiro. O astrónomo e matemático principal do
Colégio, o venerável Padre Clavius, principal autor da reforma
gregoriana do calendário, que de início se tinha rido do "Mensageiro
das Estrelas", estava agora inteiramente convencido; assim acontecia
com os outros astrónomos do Colégio, os Padres Grienberger, Van
Maelcote e Lembo. Não só aceitaram as descobertas de Galileu, mas
melhoraram as suas observações, particularmente sobre Saturno e as
fases de Vénus. Quando o director do Colégio, Cardeal Belarmino, os
interrogou sobre as suas opiniões oficiais a propósito das novas
descobertas, eles unanimemente confirmaram-nas.(...)".
Até 1623, altura em que o Cardeal Barberini é eleito Papa, sob o
nome de Urbano VIII, Galileu mantém uma actividade frenética e uma
popularidade crescente, entremeada de polémicas, debates com os
aristotélicos, bem como dos primeiros problemas com a Inquisição que
terminam com o Decreto de 1616, que resultou duma denúncia feita pelos
Dominicanos do Convento de S. Marcos.
Nesse decreto o nome de Galileu nunca é mencionado, certamente
devido à interferência favorável dos seus inúmeros admiradores
situados nos mais altos escalões da hierarquia eclesiástica, sendo a
principal vítima o pobre Copérnico, cuja imediata prisão foi sugerida

pelo Bispo de Fiesole, que bem espantado ficou ao ser informado que o
relapso astrónomo tinha cometido a inconveniência de morrer há quase
setenta anos! !
O episódio que está subjacente a este incidente, conta-se em
poucas palavras. Houve um jantar na Corte dos Médicis onde, para além
de inúmeras personalidades, estava presente a mãe do Grão-Duque,
Cristina de Lorraine, que era conhecida pelo seu temperamento fogoso,
teimosia e gosto pela oratória. Presentes também vários professores,
entre os quais o Padre Castelli, matemático em Pisa e o Doutor
Boscaglia, mestre de Filosofia. Foram estes os interlocutores duma
conversa de salão liderada pela Grã-Duquesa Cristina, desejosa de
investigar a fundo o estranho caso dos "Planetas Mediceus", a fim de
saber se eram algo de real ou uma obscura burla visando fins
inconfessáveis. . .
Acalmada a Duquesa com as considerações dos Professores Castelli
e Boscaglia, favoráveis à realidade desses astros, mesmo assim parece
que o Doutor Boscaglia teria deixado cair alguns comentários venenosos
ao ouvido dessa singular senhora, sugerindo que apesar dos Satélites
lá deverem andar pelos céus, certo seria que grossa asneira era
sustentar que a Terra se movia em torno do Sol, contra o que constava
das Santas Escrituras.
Galileu, que não estava presente no jantar, sabe das novidades
por uma carta de Castelli. " (...) em primeiro lugar deve saber que,
enquanto estávamos à mesa, o Doutor Boscaglia teve a atenção de Madame
por algum tempo; e, concedendo como verdadeiras todas as novas coisas
que descobriu nos céus, disse que só o movimento da Terra tinha em si
algo de inacreditável, e não podia ter lugar, em particular porque a
Santa Escritura era obviamente contrária a esta perspectiva. (...) ".
Ciente do seu prestígio e com contas por ajustar face à
turbamulta que contra ele conspirava na sombra, resolve contra-atacar

na forma duma carta-aberta, primeiro dirigida a Castelli e, mais
tarde, numa versão final intitulada "Carta à Grã-Duquesa Cristina". É
esta carta que motiva a denúncia ao Santo Ofício, feita pelos
Dominicanos de Florença. A 7 de Fevereiro de 1615, o Padre Lorini faz
chegar ao Cardeal Sfondrati a seguinte queixa: " (...) Todos os nossos
Padres deste devoto convento de S. Marcos são de opinião que a carta
contém muitas proposições que parecem ser suspeitas ou presunçosas,
como quando afirma que a linguagem da Santa Escritura não significa o
que parece significar; que em discussões sobre fenómenos naturais, o
último e mais baixo lugar deve ser dado à autoridade do texto sagrado;
que os seus comentadores erraram muito frequentemente na sua
interpretação; que as Santas Escrituras não devem ser associadas com
nada, excepto com assuntos de religião. (...) que falam em termos
desdenhosos dos antigos Padres e de S. Tomás de Aquino; que estavam a
espezinhar toda a filosofia de Aristóteles que tem sido de tão grande
importância para a Teologia escolástica; (...) quando, digo, me tornei
consciente de tudo isto, decidi dar conhecimento a Vossa Senhoria do
estado das coisas, de forma a que o Senhor, no seu Santo zelo pela Fé
possa, em conjunto com os seus muito ilustres colegas, providenciar
soluções, conforme pareça aconselhável. Eu, que entendo que aqueles
que se auto-proclamam Galileicos são todos homens tranquilos e bons
Cristãos, mas um pouco arrogantes e presunçosos nas suas opiniões,
declaro que não sou movido por nada neste assunto, a não ser por zelo
da sagrada causa. (...) ".
A "Carta à Grã-Duquesa Cristina" manifesta o brilhante estilo
literário de Galileu, a sua vertente irónica, argumentativa e
polemista, defendendo os postulados do "saber Moderno", ao mesmo tempo
que entra no terreno perigoso do confronto da Ciência com a Bíblia,
afirmando que esta não deve ser interpretada literalmente e que, antes
de se condenar uma proposição da física, deve-se demonstrar que não

está rigorosamente fundamentada, tarefa que cabe àqueles que entendem
serem essas afirmações falsas. Isto é, numa manobra táctica de grande
sagacidade, transporta o "ónus da prova" não para quem afirma, mas
para quem nega!
" (...) Há alguns anos, como Vossa Serena Alteza sabe, descobri
nos céus muitas coisas que não tinham sido vistas antes da nossa
época. A novidade dessas coisas, assim como algumas consequências que
delas se seguiram, contrariaram noções físicas usualmente aceites
entre filósofos académicos e atiçaram contra mim um não pequeno número
de professores --- como se eu tivesse colocado nos céus essas coisas
com as minhas próprias mãos, a fim de aborrecer a natureza e derrubar
as ciências.
Manifestando um apreço maior pelas suas próprias opiniões que
pela verdade, pensaram negar e desaprovar as novas coisas que, se
cuidassem de observar por eles mesmos, os próprios sentidos lhes
teriam demonstrado. Para tal fim divulgaram várias acusações e
publicaram numerosos escritos cheios de vãos argumentos, e cometeram o
grave erro de os misturarem com passagens tiradas de locais da Bíblia
que não conseguiram compreender apropriadamente. (...) Não só
contradições e proposições distantes da verdade podem aparecer na
Bíblia, mas também graves heresias e loucuras. Porventura seria
necessário atribuir a Deus pés, mãos e olhos, assim como outros
afectos corpóreos e humanos, como a ira, o arrependimento, o ódio, e
até por vezes o esquecimento das coisas passadas e a ignorância das
futuras. Por essa razão, parece que nada de físico que os sentidos e a
experiência apresentem diante dos nossos olhos ou que demonstrações
necessárias nos provem, deve ser posto em questão (muito menos
condenado) a partir do testemunho de passagens bíblicas que podem ter
diferentes sentidos por trás das palavras. (...) Se conclusões físicas
verdadeiramente demonstradas não precisam de ser subordinadas a

passagens bíblicas, (...) então, antes que uma proposição física seja
condenada, deve ser provado que não está rigorosamente demonstrada ---
e isso deve ser feito não por aqueles que sustentam ser verdadeira a
proposição, mas por aqueles que a julgam falsa. Isto parece muito
razoável e natural, pois aqueles que entendem que um argumento é falso
podem muito mais facilmente nele encontrar falácias que os homens que
o consideram como verdadeiro e conclusivo. (...) ".
Apesar de Galileu ter saído incólume e aparentemente triunfante
deste primeiro embate com a Inquisição, a verdade é que tinha entrado
numa área de debate onde os seus adversários o pretendiam colocar,
empurrando-o para uma escorregadia disputa teológica, a prazo
responsável por um processo que manifestamente desagradou a
significativos sectores da hierarquia da Igreja que muito o admiravam.
Entre 1616 e 1623, altura em que chega ao papado Urbano VIII,
Galileu trabalha com um objectivo determinado, no sentido de provar a
veracidade do sistema coperniciano e a sua superioridade teórica e
prática face ao modelo de Ptolomeu. Tal prova apoiar-se-ia numa
"teoria das marés" e seria um argumento objectivo que visava
demonstrar o movimento da Terra, quer em torno do seu eixo, quer em
torno do Sol, assim garantindo a consistência do heliocentrismo de
Copérnico.
Apoiava-se na ideia segundo a qual, durante a noite, a combinação
dos movimentos de rotação e translacção levaria a que a "terra firme"
se movesse mais rapidamente que durante o dia. À noite, as duas
velocidades (rotação e translacção) "somar-se-iam", pois tinham o
mesmo sentido, enquanto que, de dia, "subtrair-se-iam", dado terem
sentidos diferentes.
Resultado: à noite, a água do mar ficava "para trás",
explicando-se a maré-baixa e, de dia, avançava a água face à terra,
resultando na maré-alta. Ideia engenhosa, mas falsa que, para além do
mais, não explicava o motivo que levava à existência de duas marés

cheias diárias e destas variarem na hora em que atingem a sua máxima
plenitude!
Galileu, consciente desta questão, explicava a segunda maré-cheia
por causas secundárias, desvalorizando-a no conjunto da teoria, com a
argúcia que lhe é usual. A incongruência desta linha de pensamento em
alguém que é o grande teorizador das Leis do movimento é um facto que
nos deixa perplexos, e só pode entender-se no contexto duma militância
coperniciana que, por vezes, lhe tolda a lucidez necessária. E talvez
também por uma desvalorização dos seus adversários a quem, com algum
excessivo auto-convencimento, trata como se fossem sócios permanentes
duma confraria de imbecis. . .
Nesta ordem de ideias, é muito certeiro o comentário de Arthur
Koestler: " (...) a falácia do argumento reside no seguinte. O
movimento só pode ser definido relativamente a algum ponto de
referência. Se o movimento é referido ao eixo da Terra, então,
qualquer parte da sua superfície, terra ou água, move-se dia e noite
com velocidade uniforme, e não haveriam marés. Se o movimento é
referido às estrelas fixas, então encontraremos as modificações
periódicas do diagrama, que são as mesmas para a terra e o mar, e não
podem produzir diferença de "momento" entre a terra e o mar. Uma
diferença no "momento" , que provoque um "avanço do mar" só poderia
acontecer se a Terra recebesse um impacto duma força externa ---
digamos, colidindo com outro corpo. Mas quer a rotação da Terra, quer
a sua revolução anual são inerciais, isto é, auto-perpetuam-se e,
desta forma, produzem idêntico "momento" no mar e na terra; e uma
combinação dos dois movimentos continua a resultar no mesmo "momento".
A falácia do raciocínio de Galileu consiste em ele referenciar o
movimento do mar ao eixo da Terra e o movimento da Terra às estrelas
fixas. (...) ".
Nos anos subsequentes, Galileu não abandonou esta demonstração
viciada e continuou a atribuir-lhe uma importância estratégica

decisiva, de tal forma que o seu famoso "Diálogo" esteve para
chamar-se "Diálogo sobre o Fluxo e Refluxo das Marés" !
Mas antes da publicação desta obra, em preparação desde há longo
tempo, vem a público, em 1623, "O Experimentador" ("Il Saggiatore"). É
um ano de percas e ganhos, do ponto de vista da correlação de forças
favoráveis e desfavoráveis. Do lado negativo, a morte de Cosme II e do
Cardeal Belarmino, lider espiritual dos Jesuítas; do lado positivo, a
substituição de Paulo V por Urbano VIII, a quem Galileu dedica o seu
novo e polémico texto.
"O Experimentador" foi, em última estância, resposta a uma
conferência publicada pelo Jesuíta Padre Horatio Grassi, sobre a
natureza dos cometas, onde eram ditas coisas bem acertadas, mas na
qual nunca era citado o nome de Galileu. Este prepara de imediato uma
apropriada retaliação, presente no "Discurso sobre os Cometas",
formalmente da autoria de Mario Guiducci, um antigo aluno, por trás de
quem, na sombra, se sente a mão de Galileu. O Padre Grassi, ciente
da origem do ataque, melifluamente responde ao livro de Guiducci com
"Balanço Filosófico e Astronómico" (1619) onde, ignorando o autor
formal do "Discurso sobre os Cometas", diz de Galileu o que Maomé não
disse do toucinho!
Desta feita, "O Experimentador" não perdoa, desfazendo com
requintes de ironia e malvadez, tudo aquilo que Grassi sustentava
sobre cometas, projécteis ou alternativas às teses de Copérnico,
designadamente o modelo cosmológico de Tycho Brahe. É, aliás, a
propósito da "teoria dos projécteis" que se cita uma magistral
passagem, que referiremos sem mais comentários. O motivo da disputa
radicava numa afirmação do Padre Grassi que sustentava que os
projécteis eram submetidos, quando voavam, à fricção do ar, ficando a
sua temperatura mais elevada. Para argumentar a favor desta tese,
citou um Grego do séc.X, um tal Suidas, que dizia serem os Babilónios

capazes de cozer ovos, fazendo-os rodar no ar muito rapidamente numa
funda!
Naturalmente, Galileu defendia exactamente o contrário. " (...)
Se Sarsi deseja que acredite, de acordo com Suidas, que os Babilónios
cozem os seus ovos fazendo-os girar em fundas, assim o farei; mas devo
declarar que a causa deste efeito é muito diferente daquilo que
sugere. Para descobrir a verdadeira causa, raciocino da forma que se
segue: "Se não atingimos um resultado que outros efectivamente
conseguem, então deve acontecer que nas nossas operações nos falta
alguma coisa que produz tais resultados. E se só houver uma única
coisa que nos falta, então essa coisa pode ser a verdadeira causa.
Neste momento não nos faltam ovos, nem fundas, nem gente robusta para
os fazer rodar no ar; todavia, os nossos ovos não ficam cozidos, mas
simplesmente arrefecem ainda mais depressa se acontece que estejam
quentes. E uma vez que nada nos falta a não ser sermos Babilónios,
então, ser Babilónio, é a causa da cozedura dos ovos e não a fricção
do ar. " (...) ".


3 - FORÇA DAS MARÉS



Naturalmente, com tudo isto, as relações com os Jesuítas estão a
atingir o seu ponto mais baixo e a instituição que o teve como antigo
aluno e onde mantinha inúmeros admiradores, dificilmente esquecerá
este vendaval oriundo duma inteligência agressiva e brilhante. Mais
uma razão para Galileu receber com dupla alegria uma carta em que lhe
é sugerido que o novo Papa gostaria de o receber pessoalmente. " (...)
Juro-lhe que nada agrada mais a Sua Santidade que a menção do seu
nome. Depois de falar a seu respeito durante algum tempo, disse-lhe
que você, Estimado senhor, tinha um ardente desejo de o visitar e de
lhe beijar o pé, se Sua Santidade o permitisse, ao que o Papa

respondeu que isso lhe daria grande prazer, se não fosse inconveniente
para si. . . pois grandes homens como você devem poupar-se, a fim de
que possam viver o maior tempo possível. (...) " .
Em 1624, Galileu é recebido em sucessivas audiências por Urbano
VIII, onde é carregado de elogios, presentes, medalhas, terminando com
uma "carta de recomendação" que o deixa numa situação favorável
perante as crescentes ameaças decorrentes de antigas e velhas
polémicas. Parece ter sido no decurso desta convivência que Galileu
obtém o consentimento para levar a bom termo o projecto do "Diálogo
sobre os dois grandes Sistemas do Mundo", onde se poriam em confronto
as duas teses cosmológicas e se sustentaria a defesa de Copérnico.
Lembre-se que o seu pensamento e obra estavam em posição muito
difícil desde a deliberação da Inquisição expressa no "Decreto de
1616", mas tudo leva a crer que entre o Papa e Galileu se tenha
estabelecido um "acordo de cavalheiros", sendo-lhe permitido sustentar
as teses de Copérnico, desde que estas fossem abordadas como uma
"hipótese matemática" que interpreta certos factos, mas sem lhes dar
um perfil de verdade indiscutível, pois a omnipotência de Deus pode
ter subjacente ao mundo leis e princípios jamais acessíveis à mente
humana!
Diga-se que as relações entre estes dois homens têm muito de
adulação mútua e gerarão equívocos entre personalidades tão
singulares, que atingirão um ponto de conflito dentro de alguns anos.
São, a este propósito, interessantes as observações de Arthur
Koestler: " (...) Maffeo Barberini Urbano VIII era uma espécie de
anacronismo: um Papa Renascentista transplantado para a época da
Guerra dos Trinta Anos; um homem de letras que traduziu passagens da
Bíblia para hexâmetros; cínico, arrogante, desejoso de poder secular.
Conspirou com Gustavus Adolphus, o herético protestante, contra o
Sacro Império Romano; e ao saber da morte de Richelieu, observou: "Se
existir um Deus, o Cardeal Richelieu terá muito por que responder; se

não existir, fez muitíssimo bem. ". Fortificou o Castelo de S. Angeli,
e fundiu canhões a partir dos tectos de bronze do Panteão --- que
deram origem ao epigrama: "O que os bárbaros não fizeram, Barberini
fez. ". Fundou o "Gabinete da Propaganda" (para missionários),
construiu o Palácio Barberini, e foi o primeiro Papa a consentir que
um monumento a si próprio fosse erigido durante a vida. (...) A sua
famosa declaração de que "sabia mais que os Cardeais todos juntos" só
era igualada por Galileu ao dizer que, por si mesmo, tinha descoberto
tudo o que há de novo no céu. (...) Em 1620, tinha escrito uma ode em
honra de Galileu, intitulada "Adulatio Perniciosa" (...) Tinha ido ao
ponto de prestar homenagem à memória de Copérnico --- numa audiência
com o Cardeal Hohenzollern em 1634, após ter-se tornado Papa --- e
acrescentou a observação que "a Igreja nem condenou, nem nunca
condenará a sua doutrina como herética, mas somente como negligente" .
(...) .
Sentindo-se apoiado ao mais alto nível, Galileu dedica-se
afanosamente ao trabalho, que fica concluído em Janeiro de 1630, um
pouco antes de completar 66 anos. São inúmeras as peripécias
subjacentes à autorização de publicação, o indispensável "Imprimatur",
a que todas as obras estavam sujeitas.
Os trabalhos tipográficos deviam ocorrer em Roma e, na Primavera
de 1630, é novamente recebido pelo Papa, que lhe confirma não haver
problemas em abordar Copérnico, desde que a argumentação se mantenha
num plano estritamente hipotético, coisa de Filósofos e Astrónomos,
tratada com a devida elevação!
A obra passa para as mãos do Censor Principal, o Padre Niccolo
Riccardi, a quem o Rei de Espanha chamava "Padre Monstro" devido à sua
enorme barriga. . . Era um homem que guardava afecto por Galileu,
ainda que, no fundo do coração, achasse que essas disputas
cosmológicas eram coisa de loucos que não tinham mais que fazer,
arrumando na mesma prateleira Aristóteles, Ptolomeu e Copérnico,

confraria nebulosa cuja cegueira metafísica os impedia de ver que "
(...) a derradeira verdade era que as estrelas são movidas por anjos.
(...) ".
Leu o livro e achou que lá havia estranhos e bizarros argumentos.
Apesar de consciente dos beneplácitos papais, tudo aquilo lhe parecia
uma tortuosa e obstinada defesa de Copérnico. Para se defender,
resolveu pedir parecer ao seu assistente, Padre Visconti, insistindo
em que passasse a obra a pente fino e se fizessem alterações, de forma
a cumprir-se o disposto no "Decreto de 1616". Por sua vez, o Padre
Visconti deve ter-se apercebido do grande imbróglio em que estava
metido e, fazendo uma ou outra nota de menor importância, devolve,
qual objecto pestífero, o livro à procedência!
O Padre Riccardi decide então meter mãos à tarefa e pede uma
prorrogação do prazo para análise do texto, mas começa a ser
pressionado por Galileu e os amigos, alegando a urgência da
publicação. A partir deste momento e até Fevereiro de 1632 , altura em
que estão prontas as primeiras cópias impressas do "Diálogo", os
factos são uma magistral operação de prestidigitação.
Diz Arthur Koestler: " (...) O resultado desta pressão foi que
Riccardi consentiu num estranho acordo: para poupar tempo, concedeu
provisoriamente o " Imprimatur " ao livro, na condição de que ele
próprio faria a revisão, passando depois cada página revista ao
tipógrafo. Devia ser assistido nesta tarefa pelo universalmente
respeitado Príncipe Cesi, Presidente da Academia dos Linces.
Mal este acordo foi concluído, Galileu regressou a Florença para
escapar ao calor de Roma, na convicção de que regressaria no Outono.
Pouco depois da sua partida, o Príncipe Cesi morreu. Algumas semanas
mais tarde, irrompeu a peste, e uma estreita quarentena tornou
difíceis as comunicações entre Roma e Florença. Isto providenciou uma
óptima oportunidade para Galileu baralhar as condições sob as quais
tinha sido concedido o "Imprimatur": pediu que o livro fosse impresso

em Florença, fora do controlo de Riccardi. (...) A princípio Riccardi
recusou permitir a impressão do livro em Florença sem o rever; pediu
que Galileu lhe enviasse, para tal fim, o manuscrito até Roma. Galileu
respondeu que os regulamentos da quarentena tornavam impossível o
envio em segurança do manuscrito, e insistiu para que a revisão final
fosse feita por um censor Florentino. Referiu o apoio do Grão-Duque (a
quem Riccardi, como Florentino, devia obediência) . O Embaixador da
Toscânia, Niccolini e o Secretário do Papa, Ciampoli, também
insistiram na pressão. O Padre " Monstro " era um convidado permanente
em casa de Niccolini; finalmente, foi a sua bela prima Catarina que o
fez ceder, à mesa de jantar e após uma garrafa de Chianti. Concordou
que o trabalho fosse impresso e revisto em Florença, excepto no
prefácio e parágrafos conclusivos, que lhe deviam ser submetidos.
A revisão era para ser feita pelo Inquisidor Florentino, Padre
Clemente Egidii. Mas isto não era do agrado de Galileu, que propõe o
Padre Stefani em vez de Egidii. Riccardi concordou uma vez mais.
Evidentemente, o Padre Stefani estava inteiramente sob a influência de
Galileu, uma vez que "foi às lágrimas" durante muitas passagens do
livro, devido à sua "humildade e reverente obediência". Stefani fez
poucas correcções, para salvar as aparências, e a impressão começou em
1631. (...) ".
Esta esclarecedora passagem revela que, no fundo, o livro escapou
às malhas da Inquisição, apesar de, formalmente, se terem cumprido os
requesitos legais!
Como se sabe, o texto desenvolve-se em forma dum diálogo que dura
quatro dias, entre três personagens, Salviati, Sagredo e Simplicius,
tendo como tema central, como o próprio título explicita, um debate em
torno dos dois grandes Sistemas do Mundo, o Ptolomeico e o
Coperniciano. Salviati é o "duplo" de Galileu e Sagredo aparece como o
bom interlocutor, aquele que levanta dúvidas sensatas, mas que
responde positivamente aos argumentos de Salviati. Quanto a

Simplicius, está-lhe reservado o papel de defensor das concepções
clássicas e é sucessivamente ultrapassado pela brilhante mente de
Salviati que, uma a uma, desmonta as suas teses, para maior honra e
glória de Copérnico. O primeiro e segundo dias são dedicados à
refutação de Aristóteles, na generalidade e na especialidade,
respectivamente. O terceiro e quarto dias vivem do debate de Copérnico
e, fundamentalmente, duma prova empírica da sua validade, a famosa
"Teoria das Marés", guardada como arma final, para fechar o quarto dia
e derrotar os derradeiros alentos do pobre Simplicius.
Apesar da argumentação brilhante e correcta de Salviati,
particularmente nas concepções da relatividade do movimento, é verdade
que Kepler continua a ser ignorado e a "teoria das Marés" mantém-se
inconsistente como prova do movimento da Terra em torno do Sol.
Aqui reside o ponto central da questão que vai desencadear um
vendaval! Não só Galileu, sub-repticiamente, deixa de tratar o sistema
de Copérnico como uma hipótese, pois dá-lhe uma "prova" (Teoria das
Marés), torneando o acordo com Urbano VIII, como este se julga ver
retratado, em parte, nas posições de Simplicius, cuja figura é uma
espécie de antepassado do "Bei de Túnis", de que nos falava Eça de
Queiroz. . .




4 - " VAE VICTIS "



Em Agosto o livro é confiscado e Galileu convocado para se
apresentar à Inquisição de Roma, sendo nomeada uma Comissão para
elaborar um relatório sobre o assunto, que faz uma listagem das
prevaricações, mas não propõe nenhuma medida concreta. O primeiro
interrogatório formal tem lugar a 12 de Abril de 1633 e, sem lhe ser
revelada a acusação, melifluamente perguntam-lhe se sabe por que

motivo ali se encontra. Galileu admite que tudo se deve relacionar com
os seus "Diálogos" e, perante o decorrer da conversa, vai declarando
que não era sua intenção defender Copérnico em termos absolutos.
Perante esta evasiva, são nomeados três peritos, que fazem um 2º
relatório de tonalidade muito perigosa para Galileu, insistindo
detalhada e fundamentadamente nas linhas de acusação já referidas.
Galileu, com quase setenta anos, sente-se vulnerável e
abandonado! Já não são possíveis evasões retóricas ou habilidades
palacianas. Os seus adversários estão ao mais alto nível do Poder e,
desta feita, não lhe deixarão margem para recuar. Pretendem a
confissão pública e completa. O seu objectivo não é matar, ou o pão e
água duma enxovia sórdida, mas a humilhação pura e simples.
Entre a primeira e segunda audiência, que tem lugar a 30 de
Abril, há uma iniciativa privada dum Comissário da Inquisição, Frei
Vicenzo da Firenzuola, que vai junto de Galileu, aconselhando-o a
mudar de estratégia, para seu próprio bem. . .
" (...) Finalmente, sugeri uma diligência, nomeadamente que a
Santa Congregação me concedesse autorização para lidar com Galileu
extra-judicialmente, de forma a torná-lo sensível do seu erro e a
levá-lo, se ele o reconhecer, a uma confissão do mesmo. (...) Para que
nenhum tempo fosse perdido, ontem à tarde entrei em contacto com
Galileu, e após muitos e muitos argumentos e objecções terem sido
trocados entre nós, pela graça de Deus, atingi o meu objectivo, pois
trouxe-o à plena consciência do seu erro, de tal forma que ele
claramente reconheceu que tinha errado e tinha ido longe de mais no
seu livro. E de tudo isto deu testemunho com palavras muito sentidas,
como alguém que experimenta uma grande consolação com o reconhecimento
do seu erro, e estando também com vontade de o confessar
judicialmente. Solicitou, contudo, um pouco de tempo de forma a
ponderar o processo segundo o qual poderia mais adequadamente fazer a
confissão que, no que diz respeito à sua substância, deve, espero eu,

seguir-se da maneira indicada. (...) ".
Na segunda audiência, Galileu lê a declaração entretanto
redigida, temperando as palavras com a argúcia que lhe resta nestas
difíceis circunstâncias, indo ao encontro das pressões dos
Inquisidores. Aí admite que o seu livro pode ter ambiguidades que
parecem contradizer as interdições à publicitação e defesa de
Copérnico, mas não era a sua intenção, mas sim o contrário. Todo o
clima é de alguém que está francamente assustado com o decurso dos
acontecimentos e tem a sua margem de manobra reduzida ao mínimo.
" (...) No decurso de alguns dias de contínua e atenta reflexão
sobre os interrogatórios que me foram feitos no dia doze do presente
mês, e particularmente se, há dezasseis anos, uma ordem me tinha sido
dirigida por determinação do Santo Ofício, proibindo-me de sustentar,
defender, ou ensinar por qualquer forma a opinião que tinha acabado de
ser condenada --- do movimento da Terra e da estabilidade do Sol ---
ocorreu-me reler o meu " Diálogo " já publicado, que há três anos não
via, de forma a cuidadosamente verificar se, contrariamente à minha
muito sincera intenção, teria, por inadvertência, saído da minha pena,
alguma coisa sobre a qual o leitor, ou as autoridades, pudessem
inferir não só algum vestígio de desobediência da minha parte, mas
também outros pormenores que pudessem induzir a convicção que eu tinha
desobedecido às ordens da Santa Igreja. (...) E devido a não o ter
visto desde há muito tempo, apresentou-se-me, tal como estava, como um
novo texto dum outro autor. Confesso livremente que em vários locais
pareceu-me desenvolver-se de tal forma que um leitor ignorante da
minha autêntica intenção, poderia ter razão para supôr que os
argumentos aduzidos para o lado falso, e que era minha intenção
refutar, eram expressos de forma a serem calculados, mais para
recolher convicção pela força lógica do que pela facilidade de
solução. (...) O meu erro foi --- e confesso-o --- de ambição

desmedida e de pura ignorância e inadvertência. (...)".
No final desse depoimento, Galileu sugere a possibilidade de
acrescentar mais um ou dois dias aos "Diálogos" a fim de que a sua
posição fique bem clara e todos se apercebam da bondade subjacente às
suas explicações. Se este desejo era sincero ou mais um estratagema,
nunca o saberemos. O Santo Ofício resolveu não dar seguimento a esta
piedosa solicitação, pois quando a esmola é grande . . .
" (...) E em confirmação da minha afirmação de que não mantive
nem mantenho como verdadeira a opinião que foi condenada, do movimento
da Terra e estabilidade do Sol --- se me forem concedidos, como
desejo, tempo e meios para fazer uma demonstração mais clara, estou
pronto a fazê-lo; e há uma oportunidade muito favorável para isso,
dado que na obra já publicada os interlocutores concordam em
encontrar-se de novo após algum tempo, para discutirem vários outros
problemas da Natureza, não relacionados com o assunto debatido nos
seus encontros.
Como isto me dá oportunidade de acrescentar um ou dois dias,
prometo retomar os argumentos já expostos em favor da dita opinião,
que é falsa e foi condenada, e refutá-los da maneira mais eficiente
que me seja concedida pela graça de Deus. Por conseguinte, peço a este
anto Tribunal que me ajude nesta boa decisão e que me possibilite
pô-la em prática....) ".
Abatido e humilhado com este doloroso processo, Galileu, com
setenta anos, apresenta a defesa numa audiência intercalar que tem
lugar a 10 de Maio, apelando à magnanimidade do Tribunal, solicitando
atenuantes decorrentes da sua particular situação pessoal. " (...) Por
último, resta-me pedir-vos para levarem em consideração o meu triste
estado de mal estar físico, ao qual, com 70 anos, fui reduzido por dez
meses de constante ansiedade mental. (...) para além da perca de
grande parte dos anos que esperava usufruir, tendo em atenção a minha
anterior condição de saúde. Estou persuadido e encorajado a assim

fazer, pela fé na clemência e bondade dos muito Eminentes Senhores,
meus juízes. (...) ".
Diga-se que a Inquisição não tinha usado com Galileu, para seu
bem, dos aberrantes procedimentos que desencadeava para situações
análogas. Mesmo nesta posição de elevado risco, Galileu é tratado com
relativa consideração, pois " (...) não foi confinado às masmorras da
Inquisição, mas permitem-lhe permanecer como convidado da Embaixada da
Toscânia na Villa Médicis, até depois do seu primeiro interrogatório.
Depois, teve de entregar-se formalmente à Inquisição, mas em vez de
ser colocado numa cela, foi-lhe destinada uma zona com cinco quartos
no próprio Santo Ofício, virada para S. Pedro e os jardins do
Vaticano, com o seu criado pessoal (...) Aqui permaneceu de 12 de
Abril até ao segundo interrogatório, em 10 de Maio. Então, antes que o
seu julgamento terminasse, foi autorizado a regressar à Embaixada da
Toscânia --- um procedimento muito invulgar, não só nos anais da
Inquisição, mas de qualquer outro sistema judiciário. Contrariamente à
lenda, Galileu nunca passou um dia de vida numa cela de prisão. (...)
".
Os dados estão lançados. Após um terceiro interrogatório, poucos
dias depois, em finais de Junho, é-lhe lida a sentença que " (...)
estava assinada somente por sete dos dez juízes. Entre os três que se
abstiveram estava o Cardeal Francesco Barberini, irmão de Urbano. O
"Diálogo" foi proibido; Galileu devia abjurar a opinião Coperniciana e
foi sentenciado a "prisão formal enquanto o Santo Ofício entendesse" ;
e nos três anos seguintes, devia repetir uma vez por semana os sete
salmos penitenciais. (...) ".
Após fazer uma síntese do historial do processo, a sentença
conclui, afirmando:
"(...) Invocando (...) o muito Santo nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo e da Sua Gloriosa Mãe, sempre Virgem Maria (...) com o conselho
e parecer dos Reverendos Mestres da Sagrada Teologia e Doutores de

ambas as Leis, nossos assessores (...) Dizemos, pronunciamos,
sentenciamos e declaramos que tu, o dito Galileu, em função dos
assuntos aduzidos em julgamento e por ti confessados, chegaste ao
julgamento deste Santo Ofício veementemente suspeito de heresia,
nomeadamente, de ter sustentado e acreditado na doutrina --- que é
falsa e contrária às sagradas e divinas Escrituras --- segundo a qual
o Sol é o centro do mundo e não se move de Este para Oeste e a Terra
se move e não é o centro do mundo; e que consequentemente incorreste
em todas as censuras e penalidades impostas e promulgadas nos sagrados
cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra tais
delinquências. Das quais entendemos que sejas absolvido, desde que,
primeiro, com coração sincero e inabalável fé, abjures, maldigas e
detestes diante de nós as ditas heresias e erros e qualquer outro erro
e heresia contrária à Igreja Católica Apostólica Romana, na forma por
nós prescrita.
E, para que este teu grave e pernicioso erro e transgressão não
fiquem impunes e para que sejas mais cauteloso no futuro e um exemplo
para que outros se abstenham de delinquências similares,
determinamos que o livro "Diálogo de Galileu Galilei" seja proibido
por édito público.
Condenamos-te à prisão formal deste Santo Ofício durante o tempo
que entendermos, e para fins de salutar penitência, determinamos que
durante os três anos que se seguem, repitas uma vez por semana os sete
salmos penitenciais.
Reservamo-nos a liberdade de moderar, comutar, ou retirar, no
todo ou em parte, as ditas punições e penitência. (...) ".
Terminada a leitura da sentença, é apresentado a Galileu o
documento de abjuração, que deve ser lido por ele próprio em tribunal,
antes de se encerrar definitivamente o processo: " (...) Eu, Galileu,
filho do falecido Vicenzo Galilei, Florentino, setenta anos de idade,
arrolado pessoalmente diante deste tribunal e ajoelhando-me diante de
vós, Muito Eminentes e Reverentes Senhores Cardeais

Inquisidores-Gerais contra a desordem herética em toda a comunidade
Cristã, tendo diante dos olhos e tocando com as minhas mãos as
Sagradas Escrituras, juro que sempre acreditei em tudo que é
defendido, pregado e ensinado pela Santa Igreja Católica e Apostólica.
Mas, (...) após uma ordem me ter sido judicialmente dada por este
Santo Ofício a fim de que abandonasse simultaneamente a falsa opinião
de que o Sol é o centro do Mundo e inamovível e que a Terra não é o
centro do mundo e se move e que não devo sustentar, defender ou
ensinar por qualquer forma, verbalmente ou por escrito, a dita falsa
opinião, e após ter sido notificado que a dita doutrina era contrária
à Santa Escritura --- escrevi e imprimi um livro no qual discutia a
nova doutrina já condenada e acrescentei argumentos de grande força
lógica em seu favor, sem apresentar nenhuma solução para eles, sendo
pronunciado pelo Santo Ofício por veementemente suspeito de heresia,
isto é, de ter sustentado e acreditado que o Sol é o centro do mundo e
inamovível e que a Terra não é o centro e move-se:
Por isso, desejando remover dos espíritos de Vossas Eminências e
de todos os fiéis cristãos esta veemente suspeita justamente orientada
contra mim, com coração sincero e fé inamovível, eu abjuro, maldigo e
detesto os ditos erros e heresias e em geral todo e qualquer outro
erro, heresia e seita contrária à Santa Igreja, e juro que no futuro
nunca mais direi ou afirmarei, verbalmente ou por escrito, nada que
possa dar ocasião a uma similar suspeita relativamente a mim; mas, se
souber de algum hereje ou pessoa suspeita de heresia, denunciá-la-ei a
este Santo Ofício ou ao Inquisidor ou Ordinário do local em que me
encontrar. Mais ainda, juro e prometo cumprir e observar na sua
integridade todas as penas que forem, ou venham a ser, impostas contra
mim por este Santo Ofício. E, no caso de contravenção ( que Deus o
proiba! ) de qualquer destas minhas promessas e juramentos, submeto-me

a todos os sofrimentos e punições impostas e promulgadas nos sagrados
cânones e outras constituições, gerais e particulares, contra tais
delinquentes. Assim o queira Deus e estas Santas Escrituras, que toco
com as minhas mãos. (...) ".
Concluído o ritual de humilhação, principal objectivo do
Tribunal, fecha-se um dos mais tristes capítulos da história da
intolerância humana, com sérias consequências para o desenvolvimento
do pensamento científico e experimental, quer na península italiana,
quer em toda a Europa onde impera o espírito de vistas curtas da
Contra-Reforma, deslocando-se essas forças culturais para as regiões
de dominância protestante, no norte e noroeste do Continente, como bem
assinalou George Gusdorf.
Quanto a Galileu, recebe ainda uma certa complacência nas
punições que lhe são impostas, se atendermos que a " (...) prisão
formal transformou-se numa estadia na "villa" do Grão-Duque em Trinita
del Monte, seguida por uma outra estadia no Palácio do Arcebispo
Piccolamini em Siena onde, de acordo com um visitante françês, Galileu
trabalhava "num apartamento coberto de seda e muito ricamente
mobilado" . Depois regressou à sua quinta em Arcetri e mais tarde à
sua casa em Florença, onde passou o resto dos anos da sua vida. A
oração dos salmos penitenciais foi delegada, por consentimento
eclesiástico, na sua filha, Irmã Maria Celeste, uma freira Carmelita.
(...)".
Encerrado definitivamente o "dossier" cosmológico, aproveita os
últimos anos para redigir um livro que o deixará famoso, os "Discursos
e Demonstrações Matemáticas sobre as Duas Novas Ciências", concluído
em 1636, no qual regressa à sua vocação magistral que sempre foi a
Ciência da Dinâmica. " (...) Como não podia ter esperança quanto a um
"Imprimatur" em Itália, o manuscrito foi sonegado para Leyden e
publicado pelos Elzevirs; mas também podia ter sido impresso em
Viena, onde foi autorizado, provavelmente com consentimento Imperial,

pelo Jesuíta Padre Paulus. (...) ".
Apesar de ficar cego aos setenta e três anos, prossegue os
estudos e é visitado por amigos e discípulos, transformando a sua casa
num forum de diálogo e infinita curiosidade pelos segredos dum mundo
que, para ele, lentamente se desvanece. É o que diz, numa carta a
Diodati: " (...) o teu amigo e servidor, Galileu, ficou durante o
último mês definitivamente cego; de tal forma que estes céus, esta
terra, este universo que eu, por maravilhosas descobertas e claras
demonstrações, alarguei cem mil vezes para além das convicções dos
homens sábios dos tempos passados, daqui para diante comprime-se num
espaço tão minúsculo como aquele que se enche com as minhas sensações
corpóreas. (...) ".
A larga caminhada termina em 1642, pois as leis do movimento por
si descobertas têm uma singular aplicação na vida humana. " (...) Os
seus ossos, contrariamente aos de Kepler, não foram espalhados pelo
vento; repousam no Panteão dos Florentinos, na Igreja de Santa Croce,
junto aos restos mortais de Miguel Ângelo e Maquiavel. (...) ".
Um homem vai, outro vem. Numa obscura aldeia inglesa, na noite
de Natal deste mesmo ano, nasce Newton. Copérnico, Bruno, Kepler,
Galileu, estão vingados. Nada a fazer. "Eppur si muove".

PORTO, Dezembro de 1993
(c) Levi António Malho


A ANATOMIA DOS CÉUS

---Sobre "O MENSAGEIRO DAS ESTRELAS " de Galileu

Nota: este texto está baseado, no que diz respeito às citações do
"Mensageiro das Estrelas" de Galileu, na edição francesa de 1992,
traduzida do Latim por Fernand Hallyn.[GALILEO GALILEI, "Le
Messager des Étoiles", Seuil, Paris, 1992].Traduzimos para para
português as passagens da obra de Galileu que estão presentes
neste artigo, respeitando tanto quanto possível o estilo, a
pontuação e a construção da frase. Este artigo encontra-se
publicado na "Revista da F.L.U.P.", série de Filosofia, (2ª
série), nº 12, Porto, 1996.

(. . . ) Só de vez em quando os seus pensamentos perdiam-se num
nevoeiro de suave melancolia. Acontecia quando pensava no culto
secreto ligado aos originais dos textos que tinha à sua frente, nos
milagres que haviam emanado deles, emocionando milhares de seres
humanos que, devido à grande distância que os separava dele, lhe
pareciam seus irmãos, ao passo que as pessoas ao seu redor, às
quais via com todos os pormenores, pareciam-lhe desprezíveis. (. .
. ) ".


ROBERT MUSIL, "O Jovem Torless"




1 - O ANO DO MENSAGEIRO



Eis-nos em 1610, o tempo em que Galileu começa a publicar os
textos que ultrapassam o pequeno-grande círculo de amigos e
adversários e que o lançam numa aventura de escrita que praticamente,
só terminará com a morte. A personalidade está formada, o essencial
dos objectivos apresentam-se com suficiente clareza, os defeitos e

virtudes prestam-se a atingir o esplendor.
Posta em dúvida a formação aristotélica dos verdes anos, já
contrariada pela aposta em Arquimedes e na admiração do heliocentrismo
de Copérnico, trata-se de dar um passo decisivo que derrubará, a
prazo, a "Teoria dos 2 Mundos", tão pacientemente elaborada ao longo
de quase dois milénios. Não será um tratado gigantesco que disso se
encarregará, mas uma sucessão de admiráveis obras, quer do ponto de
vista científico, quer literário, que abrirão as portas à ciência
moderna.
É justo deixar aqui, desde já, uma ressalva no que à matéria
astronómica e cosmológica diz respeito. Galileu é mais feliz e
acutilante nos assuntos de "física terrestre" do que em "física
celeste", mantendo por enquanto uma divisão conceptual de sabor
aristotélico que só desaparecerá completamente com o triunfo de
Newton, século e meio mais tarde. É verdade que defende Copérnico e
nisso é anti-aristotélico e anti-ptolomeico. É verdade que aceita e
descobre novidades nos céus, por essência imutáveis e perfeitos. Mas é
verdade também, um pouco surpreendentemente, que não é sensível à
brilhante argumentação de Kepler, cuja obra conhecia, mas sem a
sagacidade de a valorizar como é devido e que, porventura, o levou ao
seu maior erro cosmológico, na incapacidade de ultrapassar o dogma do
movimento circular e uniforme dos astros copernicianos.
De certa maneira, esse último vestígio de "aristotelismo
celestial" foi sustentado por Galileu até ao fim. Neste particular, as
portas da modernidade foram abertas por Kepler, um pouco contra
vontade e na nostalgia das harmonias pitagóricas, sempre presentes por
entre a alucinante perfeição das suas 3 Leis. Digamos, portanto, que
Galileu ficou a um passo da unificação global da Física, mas não
chegou nunca a encarar o movimento planetário como um caso complexo da
"queda dos corpos".
Posto isto, regressemos ao primeiro livro de Galileu. Um pouco em

oposição à lógica dos grandes tratados para eruditos, carregados de
metáforas, redundâncias e circunlóquios, a obra atinge-nos na pressão
fulgurante da escrita, na brevidade e precisão da argumentação, na
ânsia de apresentar novidades, um estilo quase jornalístico, novo,
alegre, dir-se-ia mesmo, profundamente feliz por lhe ser dado narrar
tantas e tão maravilhosas coisas!
Sente-se, sem dúvida, o prazer duma inteligência na sua plenitude,
o gosto de se saber ser o primeiro, um clima de euforia que não deixa
de ser contagiante para o leitor contemporâneo. E também uma certa
"pressa de dizer", de ser breve, de não perder tempo, talvez devido ao
contentamento natural do mensageiro de boas-novas, mas também porque
soubesse que outros lá poderiam chegar, se providos de meios técnicos
análogos.
Esta hipótese deve ser doseada com a anterior, pois Galileu não
gosta de deixar méritos próprios por mãos alheias e mantém sempre no
seu perfil comportamental uma dimensão de auto-satisfação e
auto-elogio que nem sempre lhe consentiriam dar-nos o melhor de si
próprio, e serão, em parte responsáveis pelas inúmeras peripécias que
acompanham a sua biografia pessoal e científica.
"O Mensageiro das Estrelas" é, obra breve, 56 páginas e pronto!
Para se ler dum fôlego, quase dos domínios dum artigo extenso de
revista científica contemporânea, delimitando bem os temas, dizendo o
que tem a dizer, acumulando provas, fazendo desenhos e esquemas,
anunciando futuros desenvolvimentos. Estamos, no pleno sentido do
tema, perante um "relatório científico", apoiado na observação, na
repetição de experiências, revelando a construção e uso dos meios
técnicos utilizados, um texto que "diz" sem ambiguidades e reserva
lugar a novidades que se adivinham ao virar da esquina.
Se ainda hoje este clima é patente para o leitor actual,
imagine-se o que seria o seu impacto na altura da publicação e o
alvoroço que provocou nos espíritos ávidos de inovação na alvorada

deste notável séc.XVII. Resultado: os quinhentos exemplares da edição
foram imediatamente vendidos, bem ao contrário do fracasso editorial
em que caiu o texto de Copérnico, editado 67 anos antes.
É, como já se disse, uma "obra de observação" que depende dum
instrumento novo, ou quase novo, cuja invenção é, por vezes, atribuida
a Galileu. "O Mensageiro das Estrelas" e a luneta astronómica formam
um corpo único, disso não restam dúvidas. Em 1610, em matéria
astronómica, estas coisas são factos novos. Tanto mais se nos
lembrarmos que a famosa "revolução heliocêntrica" de Copérnico é
produzida praticamente sem observações originais e inovadoras, vivendo
cientificamente do património acumulado pela tradição aristotélica,
ampliada e reformulada pelos astrónomos alexandrinos e pela
curiosidade árabe. É conhecida a reserva de Copérnico em passar noites
a tiritar com as brumas e geadas bálticas, espreitando astros que toda
a gente sabe onde estão, no desconforto gélido dum torreão desabrigado
de Frauenburg!
A obra de Copérnico é uma re-equacionação mais elegante dos dados
pré-existentes, de natureza geométrico-matemática, sob a inspiração de
Aristarco e bem menos simples que as imagens poéticas que dela nos são
dadas.
Investigação que comporta observações novas é a de Kepler, mas
esse património deve-se mais a Tycho Brahe que ao autor de
"Astronomia Nova", que estava financeiramente impedido de construir os
espantosos instrumentos de observação precisa que a coroa dinamarquesa
resolveu ceder ao seu singular astrónomo.
Mas mesmo estes instrumentos de Tycho Brahe, a que Kepler teve
acesso, eram um prolongamento da precisão da vista humana, visando a
medição de desvios nos movimentos dos astros, de ângulos e graus
pacientemente anotados, noite após noite, no horizonte dos céus. Mas
nem Copérnico, nem Tycho Brahe, nem Kepler, podiam "ver mais ou mais
longe" que um sacerdote babilónio, um astrólogo egípcio, ateniense,
alexandrino, árabe ou azteca.
É exactamente aqui que Galileu leva vantagem. A luneta

efectivamente amplificava as limitações naturais dos sentidos humanos,
permitindo vislumbrar o "nunca visto", abrindo a possibilidade, por
aumento de potência e resolução óptica, de tornar presente o invisível
até escalas que, devido ao progresso tecnológico, é arriscado
antecipar.
A invenção da luneta não se deve a Galileu! Quando muito, a sua
extraordinária habilidade técnica e os seus conhecimentos de óptica e
geometria, permitem-lhe desenvolver uma ideia-base de origem italiana
(1590) ou holandesa (1604), de tal forma que o instrumento que tem ao
seu dispôr permite capacidades de resolução manifestamente superiores
que, todavia, não tardarão a ser divulgados pelos círculos científicos
da época. Talvez esteja aqui a razão da urgência da publicação, sob
pena de outros, possuindo tecnologia análoga ou superior, virem a
obter o mesmo tipo de resultados!
Diga-se que a tecnologia dos "vidros de aumentar" tem um longo
passado que remonta aos finais do séc. XIII, com utilizações ligadas à
correcção de defeitos visuais, quer utilizando lentes convexas como,
mais tarde, lentes côncavas, para compensações da miopia. A combinação
dos dois tipos de lentes, por sobreposição, e com um correcto
distanciamento, é algo de vagamente conhecido, mas pouco explorado,
antevendo-se maravilhosas potencialidades, mas que ficavam mais no
domínio do sonho e da magia natural do que na sistemática procura
teorética e prática que visasse a observação dos astros.
É verdade também que este instrumento foi, de início, submetido a
uma pressão de mistério e segredo, nomeadamente por razões de tipo
estratégico e militar, para além das conjuras de silêncio explicáveis
por motivos comerciais da responsabilidade dos produtores holandeses,
que pretendiam um monopólio de fabricação.
Contudo, não tardou muito que tal segredo fosse desvendado, quer
por ofertas régias entre casas reais europeias, quer por permuta entre
militares. Segundo os historiadores, em 1609, um ano antes da

publicação de "O Mensageiro das Estrelas", na altura em que Galileu
ensinava em Pádua, a luneta está à venda em Paris, nas oficinas
especializadas. Nesse mesmo ano, Galileu tem conhecimento do facto e
decide lançar-se à empresa de construção de modelos mais
aperfeiçoados, na sequência duma paixão mecânica que já o tinha levado
à invenção dum antepassado do termómetro, o "termoscópio", e do
"pulsilogium", instrumento clínico que servia para medir os batimentos
cardíacos no pulso do paciente.
As tentativas sucedem-se, desde uma primeira versão que aumentava
"três vezes", até ao modelo acabado no Verão de 1609, que já atinge um
poder de aumento de "nove vezes".
Com a habilidade estratégica e diplomática que o caracterizam,
Galileu resolve fazer uma demonstração ao Senado de Veneza, a partir
do campanário de S. Marcos, que originou grande espanto e sucesso,
quer para fins terrestres, como para marítimos. Segundo as palavras de
Fernand Hallyn, "(...) via-se distintamente a cúpula e fachada da
Igreja de S. Justino de Pádua, a trinta e cinco quilómetros, e os
navios que se aproximavam do porto eram visíveis duas horas mais cedo
que à vista desarmada. (...)".
Sabendo do interesse do Grão-Duque Cosme II de Médicis pelo tema e
aproveitando a tecnologia sofisticada dos vidreiros de Florença,
Galileu constrói uma versão ainda mais poderosa, com um poder de
ampliação de "vinte vezes", com a qual, no Inverno de 1609, se dedica
a uma exploração sistemática dos céus que o levará, em breve à
publicação de "O Mensageiro das Estrelas".
Uma carta de 7 de Janeiro de 1610, provavelmente enviada a António
de Médicis, irmão do Grão-Duque, dá conta dos primeiros resultados da
observação da Lua.
"(...) vê-se que a Lua não tem uma superfície igual, lisa e
polida, como muitas pessoas a julgam ser, assim como os outros corpos
celestes, mas pelo contrário que ela é rugosa e desigual e que, em
suma, se mostra tal que, com um raciocínio são, não se pode concluir

doutra forma senão dizendo que está cheia de eminências e cavidades,
parecidas, ainda que muito maiores, com os montes e vales que estão
disseminados sobre a superfície da Terra. (...)".
O espanto das descobertas precipita-se durante os primeiros meses
de 1610, de tal forma que a autorização de publicação é dada a 1 de
Março, uns dias antes da última observação de Júpiter, que data do dia
seguinte, 2 de Março. Por aqui se confirma a urgência de dar a
conhecer as novidades, nesta simultaneidade entre as observações e os
usuais procedimentos burocráticos e inquisitoriais do "Conselho dos
Dez", sob os auspícios do Senado de Veneza. Esta precipitação, bem ao
estilo de Galileu, há-de repetir-se mais tarde, na altura da edição do
"Diálogo sobre os dois Grandes Sistemas do Mundo" mas, desta feita,
envolvida em peripécias que o levarão ao triste processo que o espera!



2 - GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS



A obra tem título longo, descritivo, revelando o entusiasmo e
auto-satisfação de Galileu. Tem também fins estratégicos que visam
directamente a família dos Médicis, junto da qual o prestígio de
Galileu é crescente e que lhe permitirão uma autonomia de
"investigação livre" que o afaste dos compromissos mais duros com a
república veneziana. Senão, vejamos:

O MENSAGEIRO

DAS ESTRELAS

QUE REVELA GRANDES E ADMIRÁVEIS ESPECTÁCULOS

E para os quais propõe se elevem os olhos

a cada um, mas sobretudo, em verdade,

aos FILÓSOFOS e aos ASTRÓNOMOS; por

GALILEU GALILEI

PATRÍCIO FLORENTINO


Matemático titular da Universidade de Pádua

EFECTUADOS GRAÇAS A UMA LUNETA

Por ele recentemente concebida,

estas observações dizem respeito à FACE DA LUA, a INUMERÁVEIS ESTRELAS
FIXAS,

à VIA LÁCTEA, às ESTRELAS NEBULOSAS,

mas antes de mais sobre

QUATRO PLANETAS

voando à volta da Estrela de JUPITER a intervalos e períodos
irregulares,

duma celeridade maravilhosa; estes planetas, até hoje de nenhum homem
conhecidos,

ultimamente o autor descobriu-os em primeiro lugar; por outro lado,

ASTROS MEDICEUS

FOI O NOME QUE DECIDIU DAR-LHES.


Como frontispício de livro, não está mal! E como operação de
"marketing", melhor ainda. . . Tão extensa designação foi vulgarizada
sob duas referências essenciais: "Medicea Sidera" ("Astros Mediceus")
e "Sidereus Nuncius" ("O Mensageiro das Estrelas"). As duas versões de
título salientam dimensões dos aspectos mais importantes da obra. A
primeira, recobre uma operação de "charme" junto do Grão-Duque da
Toscana, Cosme II de Médicis, a quem a obra é dedicada num prefácio de
tom laudatório e grandiloquente; a segunda, dá a Galileu um papel
mediador de "mensageiro de novidades" sobre o mundo dos astros,
acentuando a descoberta mais espantosa que o livro contém, ao relatar
à comunidade científica, pela primeira vez, a existência dos quatro
satélites de Júpiter.
Argumentando em linguagem encomiástica, Galileu refere no

"Prefácio" que os nomes das Estrelas e Planetas se reportam a heróis e
deuses, que assim encontram no reino da Natureza "objectos" dignos da
sua eternidade. Infelizmente, o número de astros tem-se mantido
constante, nada havendo de equiparável para elogiar a bondade e
magnificência dos Médicis. . .
"(. . . ) Emigrando para o céu, nos orbes assim marcados para a
eternidade das mais brilhantes Estrelas, impôs como sinete o nome
daqueles que, pelas seus feitos extraordinários e quase divinos,
pareceram dignos de usufruir, em conjunto com os Astros, duma vida
eterna. Eis a razão pela qual a glória de Júpiter, de Marte, de
Mercúrio, de Hércules e dos outros heróis que dão os seus nomes às
Estrelas, não será jamais obscurecida até que se extinga o próprio
esplendor dos Astros. (. . . ) Nesta assembleia, em vão a piedade de
Augusto tentou fazer admitir Júlio César; com efeito, uma Estrela
nasceu na sua época, daquelas que os gregos designam "cabeleiras" ; o
príncipe teria querido baptizá-la "Astro Juliano", mas ela
desvaneceu-se bem depressa, frustrando a esperança duma tal ambição.
Pois bem, pelo contrário, são de longe mais verdadeiras e mais
felizes, Príncipe Sereníssimo, os sucessos que podemos augurar para a
tua Alteza, pois mal as imortais belezas do teu espírito começam a
fulgurar sobre a Terra, eis que nos Céus se oferecem à vista astros
brilhantes que, tais como vozes, poderão dizer e celebrar para sempre
as tuas virtudes altamente eminentes. Eis pois quatro Astros
reservados para o teu glorioso nome; não sairam do rebanho nem do
número menos insigne daqueles que não "erram", mas da ordem ilustre
dos vagueantes ; estes Astros, vê tu, descrevem entre eles movimentos
desiguais à volta da Estrela Júpiter, a mais nobre de todas, como se
fossem a sua autêntica progenitura, realizando as suas trajectórias e
seus círculos a uma velocidade maravilhosa, (. . . )".
Feito este exórdio, Galileu lembra as lições de Matemática dadas
em Florença, durante o Verão, ao actual Grão-Duque Cosme II e,

reivindicando o(. . .)direito de baptismo" que cabe àquele que
descobre novos objectos celestes, decide utilizá-lo para o
engrandecimento da família real Toscana. "(. . . ) Quis Deus, Muito
Bom e Muito Grande, que eu não fosse julgado indigno pelos teus
Sereníssimos Pais de consagrar o meu zelo a ensinar à tua Alteza a
ciência Matemática, o que certamente fiz nos últimos quatro anos que
acabam de passar, na estação do ano onde é costume repousar dos
estudos mais severos. (. . . ) Pois se assim é, pois se é sob o teu
Auspício, Cosme Sereníssimo, que explorei essas Estrelas desconhecidas
de todos os Astrónomos precedentes, é de pleno direito que decidi
imprimir-lhes a marca do muito Augusto nome da tua Raça. Porque, se
fui o primeiro a descobri-las, quem terá o direito de me criticar se
lhes imponho um nome e as chamo ESTRELAS MEDICEIAS, na esperança que
tanta glória recaia sobre estes Astros, como aquela que as outras
trouxeram aos outros Heróis. (. . . ) Recebe pois, Príncipe Muito
Clemente, esta glória gentílica que te reservaram os Astros, e as
divinas mercês, que te chegam menos das Estrelas que do artesão e
Moderador das Estrelas, Deus, e delas possas usufruir o maior tempo
possível. (. . . )".
O prefácio termina com a delicadeza e formalidade usuais,
utilizando um processo de datação arcaico, ainda vigente nestes
rituais de cerimónia. "(. . . ) Pádua, 4º dia antes dos Idos de Março,
1610/De tua Alteza/o muito dedicado Servidor/Galileu Galilei. (. . .
)".
Uma observação final, que creio ser notada pelo leitor atento
destas passagens. Diz respeito ao tratamento por "tu", dirigido ao
Grão-Duque Cosme II, bem contrário aos nossos hábitos linguísticos na
abordagem da realeza, onde o normal seria a utilização da "2ª pessoa
do plural". Segundo Fernand Hallyn, tal formulação é típica do estilo
humanista partilhado por Galileu, por contraponto ao relacionamento

distante e cerimonioso do período medieval. Claro que é um pormenor
secundário, uma vez que, tirando essa aparência de familariedade e
igualdade que tal escrita sugere, a verdade é que o prefácio contém
explícita e implicitamente uma relação de desigualdade e submissão,
que não escapa à consciência moderna!


3 - A URGÊNCIA DE FALAR



Os primeiros seis parágrafos da obra fazem uma espécie de resumo
das principais descobertas que serão posteriormente desenvolvidas ao
longo do livro, sempre chamando a atenção para a importância do
instrumento de observação que possibilitou tal feito. Os temas são
quatro: observação da Lua, Estrelas Fixas, Galáxia e Nebulosas e os 4
satélites de Júpiter.
Tudo isto é precedido do único título extenso do livro, para além
daquele que consta da capa, que diz:


A MENSAGEM

ASTRONÓMICA

que contém e esclarece

OBSERVAÇÕES RECENTEMENTE EFECTUADAS

graças a uma Nova Luneta e dizendo respeito à face da Lua,

à Via Láctea e às Nebulosas,

inumeráveis Estrelas fixas, assim como sobre

quatro Planetas baptizados

ESTRELAS MEDICEIAS

jamais apercebidos até hoje.


A partir de agora, neste início do livro, a linguagem utilizada
abandona o tom barroco do prefácio e encaminha-se para um clima
manifestamente mais objectivo e consentâneo com um relatório

científico. Mesmo assim, é manifesta a auto-satisfação, perfeitamente
compreensível quanto às novidades que descreve, na certeza de estar a
abrir um novo mundo, no exacto local onde tudo levava a crer que
estaríamos perante um heterónimo do imutável e eterno!
A alegria reflecte-se no uso de vocábulos afectivamente
significativos, como "grande", "magnífico", "agradável", "belo",
"encantador", "maravilha", entre outros. "(. . . )Sim,
verdadeiramente grande é a tarefa de aumentar a numerosa multidão de
Estrelas fixas, que por faculdade natural puderam ser apercebidas até
hoje, e de expôr abertamente aos olhos astros inumeráveis, jamais
antes apercebidos e que ultrapassam mais de dez vezes em número
aqueles que são de há muito conhecidos. (. . . )".
Anote-se a preocupação quantitativa sempre presente em Galileu,
ao tentar dar a escala de grandeza dos acontecimentos, contrapondo à
expressão "inumerável", um número tanto quanto possível exacto, por
comparação com as anteriores observações e conhecimentos. "(. . . ) É
magnífico, e muito agradável à vista, poder observar o corpo lunar,
que está afastado de nós quase sessenta diâmetros terrestres, como se
não fosse distante senão de duas dessas medidas; a tal ponto que o
diâmetro desta mesma Lua aparece quase trinta vezes maior, a
superfície novecentas vezes maior, o volume vinte e sete mil vezes
maior que quando se olha simplesmente a olho nú. Retirando daí a
certeza da experiência sensível, qualquer um poderá compreender que a
Lua não está de todo revestida por uma superfície lisa e perfeitamente
polida, mas antes duma superfície acidentada e desigual, e que ela é,
como a própria face da Terra, coberta por toda a parte com enormes
protuberâncias, crateras profundas, e rugosidades. (. . . )".
Eis, em poucas linhas, pela via da observação, completamente posta
em cheque a concepção aristotélica da diferenciação essencial entre a
imperfeição terrestre e a imutabilidade geométrica das perfeições
planetárias. Lua e Terra são seres convulsivos e irregulares. . .

Segue-se de imediato a referência ao tema das Galáxias e
Nebulosas, bem como ao facto central dos satélites de Júpiter, sempre
dirigindo o discurso aos Astrónomos e Filósofos. "(. . . ) Por outro
lado, ter eliminado as controvérsias que diziam respeito à Galáxia ou
Via Láctea, ter revelado a sua natureza aos sentidos como à
inteligência, eis o que parece não dever ser considerado como um acto
de pouco peso; e mais ainda, será agradável e muito belo apontar com o
dedo a substância das Estrelas que até agora todos os Astrónomos
chamaram Nebulosas, e mostrar que ela é muito diferente daquilo que se
acreditava até ao presente.
Mas em verdade, o que de longe ultrapassa todo o tema de
encantamento, e que, em primeiro lugar, nos compeliu a informar todos
os Astrónomos e Filósofos, é o facto, evidentemente, de ter descoberto
quatro Estrelas errantes, que não foram conhecidas nem observadas por
nenhum dos nossos predecessores; é à volta duma Estrela notável dentre
aquelas que são conhecidas, que da mesma forma que Vénus e Mercúrio em
torno do Sol, elas cumprem as suas revoluções e tanto a precedem, como
a seguem, sem jamais se afastarem dela para lá de certos limites.
Todos estes fenómenos, uma Luneta que concebi sob a iluminação da
graça divina, permitiu-me, há poucos dias, descobri-los e observá-los.
(. . . )".
É conveniente notar que nesta passagem Galileu utiliza o vocábulo
"Estrelas" em duas acepções completamente distintas, cuja tradição
remonta à cosmologia grega. A primeira designação, "Estrela errante",
deve entender-se como sinónimo de "Planeta" e, desta forma, pode falar
nas revoluções de "quatro Estrelas errantes"; a segunda designação,
"Estrela Fixa" ou, simplesmente, "Fixa", deve associar-se ao sentido
contemporâneo de "Estrela", entendida como astro relativamente imóvel!



4 - UM ESTRANHO TUBO DE CHUMBO




Galileu, de acordo com uma boa metodologia, pretende informar o
leitor sobre os instrumentos e técnicas de observação que o levaram à
obtenção dos resultados. Esta atitude manifestamente de acordo com o
espírito científico moderno, visa não a utilização de argumentos de
autoridade, mas a partilha de informações e meios tecnológicos com a
comunidade dos investigadores que podem e devem reconstituir a
observação, de forma a confirmarem os resultados. De certa maneira,
abre-se aqui a ideia de "consenso da comunidade científica", como
critério de aceitabilidade e veracidade das teorias e factos sobre o
mundo natural.
Confirma, como já referimos, ter tido notícia da "luneta" há menos
de um ano, por referências oriundas dos Países Baixos e de Paris, o
que o levou a dedicar-se à investigação necessária para a construção
dum aparelho similar, através dum estudo apoiado na Teoria da
Refracção da luz. "(. . . ) Há volta de dez meses, chegou aos nossos
ouvidos que um habitante das Províncias dos Países Baixos tinha
fabricado uma Luneta graças à qual os objectos visíveis, mesmo
situados longe da vista do observador, podiam ser nitidamente
discernidos, como se estivessem próximos; deste facto certamente
maravilhoso relatavam-se alguns testemunhos, aos quais uns davam fé,
mas que outros negavam. Esta notícia foi-me confirmada poucos dias
depois, por uma carta enviada de Paris pelo fidalgo françês Jacques
Badovere; isto teve como consequência que eu me dedicasse inteiramente
à pesquisa dos princípios assim como à concepção dos meios pelos quais
poderia chegar à invenção dum Instrumento semelhante; esta invenção,
pouco depois, realizei-a, apoiando-me sobre a teoria da refracção. (.
. . )".
Seguidamente, descreve esquematicamente a construção da Luneta ,
as diferentes versões que foram produzidas, o tipo de lentes

utilizadas e o seu poder de aumento, bem como as correcções
necessárias para medir com rigor os tamanhos e intervalos entre as
Estrelas fixas. Ficamos a saber que era constituida por um tubo de
chumbo, na extremidade do qual foram adaptadas duas lentes de vidro,
planas dum lado e, respectivamente, convexas e côncavas do outro. A
vista era encostada à lente côncava, daí resultando uma ampliação de
"três vezes", quanto à distância dos objectos, e "nove vezes", quanto
ao seu volume, por comparação com observações análogas feitas à vista
desarmada.
Verdade seja dita que tal descrição é muitíssimo sumária, pois não
nos são dados quaisquer pormenores sobre polimento, construção e
afinação das lentes, bem como das respectivas distâncias focais e
técnicas de utilização! Galileu levanta exclusivamente uma ponta do
véu, sem dar aos Astrónomos e Filósofos a quem tão benignamente se
dirige a possibilidade de construirem um equipamento igual, por mera
aplicação das instruções patentes no seu livro. . .
"(. . . ) Em primeiro lugar fabriquei um tubo de chumbo nas
extremidades do qual adaptei duas lentes de vidro, ambas planas dum
lado, mas uma esfericamente convexa e a outra côncava do lado oposto;
em seguida, aproximando a minha vista da lente côncava, vi os objectos
suficientemente grandes e próximos; de facto, apareciam três vezes
mais próximos e nove vezes maiores do que se fossem somente observados
a olho nú. Depois, construí um outro Instrumento, mais preciso, que
representava os objectos mais de sessenta vezes aumentados. Por fim,
não olhando nem ao trabalho, nem a despesas, cheguei a construir um
Instrumento duma qualidade tão grande que as coisas vistas através
dele apareciam quase mil vezes maiores, e mais de trinta vezes mais
próximas do que se fossem olhadas pelos únicos meios naturais. (. . .
)".
Informa-nos então sobre o processo de confirmar o poder de
resolução da luneta, isto é, de como saber com certeza qual a

capacidade de ampliação. Para o caso da observação dos astros, é
necessário que seja capaz de ter um poder de "vinte vezes", o que
levanta o problema de encontrar um teste empírico que assegure tal
capacidade. Sugere um método simples que consiste em construir dois
círculos ou dois quadrados de papel, em que um seja quatrocentas vezes
maior que o outro, bastando para isso que o lado do 2º quadrado ou o
diâmetro do 2º círculo seja vinte vezes maior que o lado do 1º
quadrado ou o diâmetro do 1º círculo.
Encostam-se os dois quadrados ou círculos a um muro situado a uma
distância razoável e, enquanto um dos olhos utiliza a luneta para
observar o objecto mais pequeno, o outro observa o objecto maior.
Quando a imagem através da luneta fôr igual à da vista desarmada, isto
é, os objectos parecerem iguais, é porque a luneta efectivamente tem a
resolução de "vinte vezes". É um teste simples, eficiente, e elegante,
como o são quase sempre as boas ideias!
"(. . . ) Em primeiro lugar, com efeito, é necessário que
fabriquem uma Luneta de grande precisão, que possa representar os
objectos brilhantes, distintos, e sem qualquer escurecimento; é
necessário que esta mesma Luneta aumente pelo menos quatrocentas
vezes, porque então mostrará os objectos vinte vezes mais próximos;
com efeito, se o Instrumento assim não fôr, tentar-se-á em vão a
observação sobre todos os fenómenos que apercebemos nos céus e que
serão enumerados mais adiante. Para se assegurar sem grande esforço do
poder de ampliação do Instrumento, traçar-se-ão dois círculos ou dois
quadrados de papel em que um seja quatrocentas vezes maior que o
outro, o que será o caso quando o diâmetro do maior tiver vinte vezes
o comprimento do diâmetro do outro. Em seguida, olhar-se-ão
simultaneamente de longe as duas superfícies fixadas na mesma parede,
observando a mais pequena com uma vista aplicada à Luneta e a maior
com o olho que ficou livre (isto pode fazer-se facilmente, ao mesmo

tempo, com os dois olhos abertos): então, com efeito, as duas figuras
aparecerão com a mesma grandeza, se o Instrumento ampliar os objectos
segundo a proporção desejada. (. . . )".
Finalmente, chama a atenção para o facto da refracção dos raios
luminosos oriundos dos objectos muito distantes originarem distorções
quanto ao seu tamanho real, que deve, por isso, ser compensado através
duma tabela que corrija esse desvio. Galileu tem consciência de não
ter revelado a totalidade dos dados relativamente à cabal construção e
utilização da Luneta, anunciando para uma outra ocasião uma explicação
mais detalhada. Por enquanto, aceitemos que não se revelem todos os
trunfos. "(. . . ) Que seja suficiente, por agora, ter abordado
ligeiramente estas questões, e delas ter saboreado como quem aflora os
lábios; pois publicaremos numa outra ocasião a teoria completa deste
Instrumento. (. . . )".


5 - O ESPANTO DA LUA



A primeira série de observações diz respeito à Lua, uma vez que é
o astro mais próximo da Terra e aquele que permite discernir detalhes
cuja precisão é única com a utilização da Luneta. As novidades que
relata são de excepcional relevância, não só pelas extensas
considerações feitas a tal propósito, que ocupam aproximadamente 30%
de todo o livro, mas sobretudo porque até então a Lua era
considerada como fronteira dum mundo de "nobreza astral", tida como
esfera perfeita, de superfície completamente lisa e totalmente
regular, compartilhando com os restantes planetas e estrelas um
estatuto que impedia quaisquer ligações com as imperfeições,
movimentos e mudanças típicas da Terra.
De tudo isto nos dá conta nas primeiras linhas que tratam da
questão lunar, logo após referir que, para além das conhecidas
"manchas" que a sua superfície apresenta e que eram conhecidas desde
sempre, existem muitas outras, por ninguém antes observadas, que se

encontram disseminadas na parte mais luminosa do astro. "(. . . ) É da
face da Lua que está voltada para o nosso olhar que falaremos em
primeiro lugar. Para facilitar a compreensão, distinguirei aí duas
partes, uma mais clara e outra mais obscura. A mais clara parece
rodear e infiltrar todo o hemisfério, enquanto que a mais obscura,
como uma espécie de nuvem, sombreia a própria face e impregna-a de
manchas. Estas manchas, são visíveis para todos, e todos os tempos as
aperceberam; é por isso que as chamaremos de grandes ou antigas
manchas, por oposição a outras, de menor grandeza, mas de tal forma
numerosas que polvilham toda a superfície lunar, e sobretudo a parte
mais brilhante. Estas, em verdade, não foram observadas por ninguém
antes de nós. Do seu exame abundante vezes reiterado, deduzimos que
podíamos discernir com certeza que a superfície da Lua não é
perfeitamente polida, uniforme e muito exactamente esférica, como foi
sustentado por um exército de filósofos, quer sobre ela quer sobre os
outros corpos celestes, mas pelo contrário desigual, acidentada,
constituida por cavidades e protuberâncias, não diferentemente da
própria face da Terra, que é marcada, dum lado e doutro, pelos picos
das montanhas e as profundezas dos vales. (. . . )".
Num fôlego o essencial está dito em linguagem acessível,
objectiva, sem retórica, argumentos de autoridade, citações de
clássicos. Ver para crer é o lema do "Mensageiro das Estrelas". E como
quem não deve, não teme, Galileu inclui na obra uma série de desenhos
cuidadosamente elaborados que revelam ao leitor os pormenores mais
inovadores das observações feitas. São cinco as representações da Lua
que acompanham esta fase da investigação, explicitando visualmente a
ruptura com as antigas concepções.
Daqui para diante, a argumentação visa demonstrar em detalhe as
teses centrais desde logo inequivocamente expostas, começando Galileu
por tornar claros dois factos. O primeiro diz respeito à

irregularidade da linha que separa a parte luminosa da parte sombria
da Lua; o segundo pretende eliminar a distinção absoluta entre a zona
clara e a zona escura, nelas estabelecendo cambiantes que sugerem uma
interpenetração que carece de ser explicada.
Qual o interesse de insistir sobre a irregularidade da linha que
separa a "parte clara" da "parte obscura"? Obviamente que, se assim
fôr, a superfície lunar não é uma esfera absolutamente regular, como
era suposto, pois nesse caso essa fronteira luz-sombra teria de ser
perfeitamente oval. Se a experiência desmentir essa convicção,
simultaneamente bloqueia a tese da esfericidade perfeita dos astros!
"(. . . ) No quarto ou quinto dia após a conjunção, quando a Lua se
nos oferece com os seus cornos brilhantes, o limite que separa a sua
parte obscura da sua parte luminosa já não se estende uniformemente
segundo uma linha oval, como aconteceria num sólido perfeitamente
esférico; mas corresponde a uma linha desigual, acidentada e sinuosa,
como é visível na figura ao lado. (. . . )".
Quanto ao pôr em questão a distinção absoluta entre as duas zonas,
a obscura e a clara, revelando a existência de micro-regiões luminosas
na parte escura e de análogos locais obscuros na zona luminosa,
Galileu pretende relacioná-los com a posição relativa da Lua face ao
Sol dentro do modelo coperniciano e fazer uma analogia com fenómenos
idênticos na Terra quando, ao nascer do Sol, há uma sucessão de
cambiantes luz-sombra, se observarmos tal fenómeno numa região em que
existam montanhas e vales profundos.
Isto é, Terra e Lua têm natureza semelhante, e os factos nelas
ocorridos implicam "causas" análogas, como convém à consciência
universalizante da física moderna. "(...)Com efeito, várias
excrecências brilhantes, por assim dizer, estendem-se para a parte
obscura, para além da fronteira entre a luz e as trevas e, em
contraposição, partículas tenebrosas infiltram-se por entre a luz.
Mais ainda, uma grande abundância de pequenas manchas sombrias,

inteiramente separadas da parte obscura, espalham-se por quase toda a
extensão já inundada por todos os lados pela luz do Sol, com excepção
daquela parte que tem as grandes e antigas manchas. Notamos, por outro
lado, que as ditas pequenas manchas têm todas e sempre isto
exclusivamente em comum, a sua parte mais escura virada para o Sol,
mas são coroadas, do lado oposto ao Sol, com extremidades mais claras,
como arestas duma espantosa brancura. Ora, temos uma paisagem
inteiramente semelhante sobre a Terra, no momento do nascer do Sol,
quando lançamos o nosso olhar sobre os vales que ainda não estão
banhados pela luz, e sobre as montanhas que os rodeiam do lado oposto
ao Sol e que, daí a um instante, resplandecerão com um fulgurante
brilho; e, assim como as sombras das cavidades terrestres diminuem à
medida que o Sol sobe, da mesma forma estas manchas lunares perdem
também as suas trevas à medida que a parte luminosa aumente. (...)".
Daqui para a frente, Galileu maravilha-se com outros pormenores
que, sem trazerem nada de essencialmente novo a estas espantosas
afirmações iniciais, de qualquer forma confirmam os princípios
estabelecidos. A Lua tem montanhas, vales, golfos, crateras e a sua
imagem varia com as horas do dia e com o ciclo das órbitas
copernicianas.
"(. . . ) Não deixarei em silêncio um facto digno de atenção, que
observei quando a Lua de encaminha para a primeira quadratura e de que
o nosso desenho da página precedente oferece igualmente uma imagem. Um
enorme golfo tenebroso, com efeito, situado próximo do corno inferior,
insinua-se na parte luminosa. Este golfo sombrio, observei-o durante
muito tempo e vi-o inteiramente mergulhado na obscuridade. Finalmente,
após à volta de duas horas, um pouco abaixo do meio da cavidade, uma
espécie de pico luminoso começou a surgir. (. . . ) Há também um facto
que não deixarei no esquecimento e que notei não sem grande
encantamento: quase no meio da Lua, um local é ocupado por uma
cavidade maior que todas as outras e duma forma perfeitamente redonda.

Apercebi-a próximo das duas quadraturas e representei-a tão fielmente
quanto possível no segundo dos desenhos da página seguinte. Oferece,
quanto ao obscurecimento e iluminação, o mesmo aspecto que teria na
Terra uma região parecida com a Boémia, se estivesse fechada por todos
os lados com altas montanhas, dispostas sobre a circunferência dum
círculo perfeito. Sobre a Lua, com efeito, a cavidade está fortificada
com picos tão elevados que o bordo exterior da parte tenebrosa da Lua
aparece banhado com a luz do Sol, antes que a fronteira entre luz e
sombra atinja o meio do diâmetro da própria figura. (. . . )".
Chegado a este ponto, perante a acumulação de factos de
observação, Galileu resolve levantar uma dificuldade teórica
eventualmente presente no espírito dos seus opositores para, ao
resolvê-la, antecipar por seu próprio mérito argumentativo uma vitória
que sabe não lhe escapar.
Consiste no seguinte: se a Lua tem tão grandes vales e montanhas,
se não é rigorosamente esférica e lisa, por que motivo a
circunferência luminosa que a delimita e que atinge o seu esplendor na
altura da Lua-Cheia não é apercebida como irregular e sinuosa? "(. . .
) Se, com efeito, esta parte da superfície lunar que reflecte os raios
solares duma maneira mais esplendorosa está cheia de irregularidades,
quer dizer de protuberâncias e fundos inumeráveis, por que motivo,
quando a Lua cresce, a extremidade da circunferência virada para
Ocidente e, quando ela diminui, a outra semi-circunferência, a
oriental e, quando há lua-cheia, toda a periferia, por que razão não
as apercebemos como desiguais, acidentadas e sinuosas, mas
perfeitamente redondas, traçadas a compasso, e em nada devastadas por
protuberâncias e cavidades? (. . . )".
Galileu propõe de imediato uma dupla explicação. Por um lado,
argumenta em termos analógicos sobre fenómenos semelhantes na Lua e
na Terra; por outro, sugerindo uma curiosa teoria física sobre certas
propriedades da Lua.
No primeiro caso, a justificação fundamental apoia-se na distância

enorme entre o observador e o objecto observado. Se na Terra, um
observador situado numa zona montanhosa, contemplar ao longe uma outra
cordilheira, não avista os vales que entre as montanhas longínquas se
sucedem, dando-lhe a ideia que os picos dessas serras afastadas
parecem dispôr-se de acordo com uma superfície plana. Fenómeno análogo
acontece se observarmos à distância um mar tempestuoso, em que as
cristas das ondas mais violentas, vistas de longe, parecem
organizar-se segundo um plano horizontal, ainda que, entre elas,
existam muitas outras ondas de menores dimensões e os respectivos
desníveis, de tão grandes que são, poderem ocultar da vista navios de
grande porte.
Ora, com a Lua, passa-se um fenómeno análogo e de efeito ainda
mais potenciado, devido à enorme distância que nos separa desse astro.
Como a nossa vista está aproximadamente no mesmo plano das montanhas
mais elevadas da Lua, nada de espantar que a circunferência luminosa
que as delimita nos apareça como uma linha perfeitamente regular!
"(...)Com efeito, os intervalos entre os montes dispostos sobre o
mesmo círculo, ou na mesma cordilheira, são ocultados pela
interposição doutras eminências colocadas noutras zonas, sobretudo se
a vista do observador estiver situada no mesmo plano que os cumes das
ditas eminências. Da mesma forma, sobre a Terra, os picos de montanhas
numerosas e compactas aparecem dispostos numa superfície plana, se o
observador estiver afastado e colocado a uma altitude igual. Da mesma
forma, quando o mar está agitado, as cristas mais elevadas das ondas
parecem estender-se sobre o mesmo plano, ainda que, entre as vagas, se
acumulem em grande número abismos e cavidades tão profundas que os
navios mais altos vêem não somente as suas quilhas, mas também as
popas e velas aí desaparecerem. Portanto, uma vez que existe sobre a
própria Lua, e à volta do seu perímetro, uma combinação complexa de
eminências e cavidades, e uma vez que a vista, olhando duma grande
distância, está colocada aproximadamente sobre o mesmo plano que os

seus cimos, ninguém deve espantar-se que estes se ofereçam, ao raio
visual que os rasa, segundo uma linha igual e nada tortuosa. (. . .
)".
O segundo argumento é particularmente curioso pois supõe que à
volta da Lua existiria um "orbe vaporoso", feito duma substância mais
densa que o éter e que actuaria como uma espécie de filtro cuja
natureza seria simultaneamente "amplificadora" das largas escalas e
"atenuadora" dos pequenos pormenores.
Galileu devaneia sobre um modelo físico de acordo com a Teoria do
Éter de fundo clássico, acentuando uma argumentação mais qualitativa
que quantitativa, bem característica da fase de fronteira em que se
encontra actualmente o seu pensamento.
Tal "orbe vaporoso" seria não só parcialmente transparente, para
absorver e reflectir os raios solares, mas actuaria também de modo
análogo a uma lente que daria à Lua um aspecto maior que aquele que
efectivamente tem, impedindo que se observem as montanhas situadas na
periferia da circunferência lunar. Digamos que é uma ferramenta à
escala dos desejos, que não deixa de lançar aos olhos dos seus
espantados leitores alguns dos "vapores" remanescentes desta singular
engenharia lunar. . .
" (...) existiria à volta do corpo lunar, como à volta da Terra,
uma espécie de orbe duma substância mais densa que o resto do éter,
capaz de receber e reflectir a irradiação solar, ainda que não esteja
provido duma opacidade tal que possa impedir ( sobretudo quando não
está iluminado ) a passagem à vista. Iluminado pelos raios solares,
este orbe restitui e reproduz a imagem do corpo lunar sob o aspecto
duma esfera maior; poderia mesmo limitar a nossa acuidade visual,
impedindo-a de atingir o corpo sólido da Lua, se fosse duma espessura
mais profunda; ora, ele é efectivamente mais profundo à volta da
periferia da Lua, mais profundo, digo eu, não de maneira absoluta, mas
relativamente, por relação aos nossos raios visuais, que o cortam

obliquamente. Pode, por consequência, sobretudo quando está luminoso,
obstruir a nossa percepção e esconder a periferia da Lua exposta ao
Sol. (...)".
Ao aproximar-se do final das páginas que dedica à Lua, Galileu
ainda relata dois factos particularmente interessantes. O primeiro diz
respeito a uma derradeira observação sobre as montanhas da Lua, cuja
existência acabou de revelar, e que entende serem irregularidades
geológicas duma escala bem superior à da Terra, assim se reforçando o
parentesco entre os dois planetas. Tal tarefa é conseguida com uma
argumentação de natureza geométrica, muito do agrado da sua formação
platónica, entrando em linha de conta com o diâmetro da Terra, da Lua,
e o Teorema de Pitágoras. Daí resulta um cálculo que contabiliza em
mais de quatro milhas italianas a altura das montanhas lunares, isto
é, aproximadamente 6.000 metros. Segundo ele, nada existe na Terra que
possa ser comparável a tal magnificência de escala!
" (. . . ) Segue-se que, sobre a Lua, a altura AD, que designa um
cume qualquer erguendo-se até à altura do raio solar G-C-D e afastado
do ponto C pela distância CD, eleva-se a mais de 4 milhas italianas.
Mas sobre a Terra não existem montes que atinjam a altura
perpendicular de sequer uma milha. Resulta, pois, manifestamente, que
as eminências lunares são mais altas que as da Terra. "
O outro facto que espanta Galileu, vem ao encontro do reforço do
parentesco entre Lua e Terra e a respectiva observação tornou-se mais
fácil com o uso da luneta, apesar de anteriormente à sua utilização,
nos confessar o autor já o ter revelado a um círculo restrito de
discípulos.
Que se passa, então? Na altura imediatamente anterior ou seguinte
à Lua-Nova, nos dias em que nos encontramos nos limites do
"quarto-minguante" ou "quarto-crescente", é possivel observar uma
espécie de halo luminoso que circunscreve a parte obscura da Lua, de
tal maneira que se distingue uma zona de transição entre a superfície
do astro e a região mais obscura do éter exterior.

"(. . . ) Desejo aqui fornecer uma explicação para um outro
fenómeno lunar digno de espanto. O qual, é verdade, foi observado por
nós não recentemente, mas há vários anos, e mostramo-lo a alguns
íntimos e discípulos, explicando-o e esclarecendo a causa. ( . . . )
Enquanto que a Lua, tanto antes como depois da conjunção, se encontra
não longe do Sol, não somente o seu globo se oferece à nossa vista do
lado em que está ornamentado por cornos brilhantes, mas, para além do
mais, uma periferia ténue, ligeiramente luminosa, parece desenhar o
limite da parte tenebrosa, isto é, desviada do Sol, e separá-la do
campo mais obscuro do próprio éter. (. . . )".
Se melhor observado, este fenómeno estende-se não só aos limites
da circunferência da parte obscura, mas à própria superfície contida
para aquém dessa fronteira. Isto é, Galileu afirma que mesmo a parte
escura da superfície da Lua, reflecte uma certa quantidade de luz que
não pode ser originária do Sol, bastando para tal escolher um ponto
para a observação, de tal forma que um obstáculo natural oculte a
parte luminosa típica do "quarto-crescente" ou "quarto-minguante".
"(. . . ) Na verdade, se considerarmos a coisa com mais atenção,
veremos não somente o bordo extremo da parte tenebrosa luzir com uma
claridade incerta, mas também a face inteira da Lua --- quero dizer,
aquela que ainda não recebe o brilho do Sol --- clarear-se de forma
não negligenciável. (. . . ) Mas se escolhessemos uma posição tal que
um telhado, ou uma chaminé, ou qualquer outro obstáculo entre a vista
e a Lua (mas colocado longe da vista) oculte os próprios cornos
luminosos, e se a parte restante do globo lunar se mantiver exposta à
nossa vista, então descobrir-se-á que também esta zona da Lua
resplandece com uma luz considerável, ainda que esteja privada da luz
do Sol, e isso sobretudo se já, na falta do Sol, o horror nocturno
aumentou. (. . . )".
Assinalado o facto, Galileu parte para a explicação das suas

causas, não sem antes assinalar brevemente outras teses que visavam
interpretar tais dados, declarando de imediato que as refutará sem
apelo nem agravo e, ainda por cima, sem grande esforço! Tais teses
agrupavam-se segundo duas vertentes: a primeira, entendia que existia
um "esplendor próprio da Lua", e a segunda considerava que tal
luminosidade era secundária e derivava da reflexão pela Lua da luz
proveniente doutros astros, que tanto podiam ser Vénus, como o Sol, ou
como o somatório condensado da luz de todas as Estrelas.
" (...) Este maravilhoso brilho suscitou nos filósofos uma grande
admiração; para atribuir uma causa a este fenómeno, uns e outros
avançaram diferentes explicações. Com efeito, alguns pretenderam que
se tratava dum esplendor próprio e natural da Lua; outros, que lhe era
comunicado por Vénus, ou que lhe vinha de todas as Estrelas; outros
ainda atribuiram-no ao Sol, que penetraria com os seus raios a
profundeza do corpo sólido da Lua.(...)".
Refutadas as posições contrárias, seguindo uma estratégia que
consiste em aceitar as teses opostas e confrontá-las com a observação,
de forma a fazê-las ir ao encontro de paradoxos, espécie de método de
"redução ao absurdo", Galileu está em condições de fazer entrar em
cena a sua Teoria.
Em que consiste ela? Num sistema de permuta analógica e
compensatória de factos aparentados. Assim como a Lua, por reflexão da
luz solar, ilumina a Terra com o luar, assim também a Terra devolve à
Lua um facto equivalente de sentido contrário, emitindo para a Lua uma
luz reflectida na sua superfície, luz essa que é, obviamente,
proveniente do Sol. "(. . . ) Uma vez que, uma luz secundária deste
género não é nem intrínseca e própria da Lua, nem originária das
Estrelas ou do Sol, e dado que, na imensidade do Mundo não resta
nenhum outro corpo a não ser a Terra, pergunto eu, que deveremos
pensar? Que é preciso dizer? Não é verdade que é devido à Terra que o
próprio corpo da Lua ou qualquer outro corpo opaco e tenebroso são

inundados de luz? Porquê espantarmo-nos? Numa permuta justa e
amigável, a Terra dá precisamente à Lua uma iluminação igual à que ela
própria recebe da Lua, durante quase todo o tempo, no mais profundo
das trevas nocturnas. (. . . )".
Galileu tem consciência que estas teses têm subjacente um modelo
cosmológico não geocêntrico e anuncia que melhor as desenvolverá em
obra posterior, claramente orientada contra aqueles que sustentam não
só a imobilidade da Terra, como a sua posição degradante e
inferiorizada relativamente aos astros perfeitos.
Este comportamento é típico do seu génio polemista, ao sugerir aos
adversários a quem acaba de demonstrar argumentos de peso, que já
estão no prelo mais umas dúzias de razões que arrasarão sem dó nem
piedade qualquer arremedo de contra-argumentação oriunda da parte
contrária. . . "(. . . ) Estas breves palavras sobre tal matéria devem
bastar neste local, uma vez que trataremos disso de forma mais ampla
no nosso "Sistema do Mundo", onde, em múltiplos raciocínios e
experiências, a reflexão da luz solar a partir da Terra será muito
eficazmente mostrada, para aqueles que pretendem excluí-la do coro das
Estrelas, principalmente porque seria desprovida de movimento e de
luz. Ora, que a Terra seja errante, e que ultrapasse a Lua em
esplendor, longe de ser a latrina dos lixos e excrementos do mundo,
nós demonstrá-lo-emos e confirmá-lo-emos também por meio de
inumeráveis razões naturais. (. . . )".





6 - ESTRELAS AOS MILHARES



Concluídas as considerações sobre a Lua, é altura de Galileu se
debruçar sobre um outro assunto, duma grandeza e escala manifestamente
maior, perante o qual a Astronomia e Cosmologia clássica tinha tomado
posições bem determinadas, com uma ou outra excepção. Trata-se do tema
das Estrelas e da natureza das Nebulosas e da Via Láctea.

As teses fundamentais sobre estes assuntos estabilizaram-se nos
modelos cosmológicos de raíz aristotélico-ptolomeica e entendiam serem
estes astros desprovidos de movimento real, fixados que estavam ao
último dos orbes cósmicos, usualmente designado como "esfera das
fixas". O seu movimento diário de Oriente para Ocidente era tido como
aparente, pois resultava da rotação da esfera onde se encontravam
imóveis as Estrelas. O seu número seria constante, a sua natureza
perfeita, a substância que os formava era incorruptível, em
contraposição às mutações e cambiantes das substâncias terrestres, Ar,
Água, Terra e Fogo. A esfera das fixas marcava, para todos os efeitos,
o "fim" do espaço físico, o limite para além do qual só o sagrado e o
divino se estendiam incomensuravelmente.
A primeira observação de Galileu revela a consciência da escala de
distâncias com que se confronta ao observar estes astros, pois diz-nos
que a Luneta não permite um poder análogo de ampliação ao da Lua,
quando é apontada para as Estrelas Fixas ou "errantes". É tal o
desfasamento, que nos sugere de imediato uma explicação que atenue
este facto.
A visão que naturalmente temos das Estrelas é distorcida pelo
brilho que emitem, sendo esse halo cintilante o responsável parcial
pela ilusão visual da sua grandeza, halo esse que é francamente
reduzido quando se utiliza a Luneta. "(. . . ) exporemos brevemente o
que até agora examinamos a respeito das Estrelas Fixas. E antes de
mais, é digno de atenção o facto que as Estrelas, tanto as Fixas como
as Errantes, quando são vistas por meio duma Luneta, não parecem de
todo aumentar em grandeza na mesma proporção em que os outros
objectos, e também a própria Lua, são ampliados. Na verdade, no caso
das Estrelas, esta ampliação parece bem menor, a tal ponto, pensamos
nós, que uma Luneta capaz, por exemplo, de aumentar cem vezes os
outros objectos, não ampliaria as Estrelas senão quatro ou cinco

vezes. A razão é que os Astros, quando se observam com a vista
natural, não se nos oferecem segundo a sua grandeza simples e, por
assim dizer, nua, mas irradiados com um clarão brilhante e rodeados
duma cintilação em forma de crina, sobretudo quando a noite é já
profunda. (. . . )".
Galileu acrescenta ainda que tal redução de proporções se pode
explicar também devido ao facto das lentes da luneta actuarem como um
filtro que reduz a reverberação luminosa das Estrelas, assim
compactando a sua dimensão a escalas mais realistas.
Após este apontamento inicial, revela uma importante distinção
entre Planetas ("errantes") e Estrelas Fixas, no que à sua forma se
refere. Enquanto que os Planetas aparecem sempre como esféricos, como
se fossem luas rodeadas de luz, as Estrelas não conseguem nunca ser
vistas como delimitadas por uma linha circular, pois o seu brilho
intrínseco impede que nos possamos aperceber com exactidão sobre qual
será a sua forma. "(. . . ) Digna de atenção também me parece a
diferença de aspecto entre os Planetas e as Estrelas Fixas. Os
Planetas, com efeito, apresentam os seus globos exactamente redondos e
circulares e, semelhantes a pequenas luas inundadas de luz por todos
os lados, aparecem como orbiculares; todavia, jamais se apercebem as
Estrelas Fixas delimitadas por uma periferia circular, mas tomando a
forma de luares que dardejam raios por toda a parte à sua volta e
cintilam intensamente; (. . . )".
É então que, apesar destas limitações, a linguagem cresce em
entusiasmo e espanto ao dar a conhecer uma multidão de Estrelas até
então invisíveis e que desmultiplicam o Universo conhecido para além
de tudo o que se podia imaginar. Não se trata de mais duas ou três
estrelas, mas de centenas, milhares, que parecer nascer por toda a
parte, rompendo para sempre a pequenez e conforto dum Mundo que se
encaminha para dimensões transfinitas.
Diz-nos que, às seis escalas de grandeza acessíveis à vista

desarmada, se podem acrescentar mais outras seis com o uso da Luneta,
de tal forma que a sétima escala, a que Galileu chama a "primeira das
invisíveis", aparece como mais clara e mais brilhante que uma Estrela
de "grandeza dois", observada sem meios de ampliação. Por outro lado,
se utilizarmos a Luneta para as mais pequenas das Estrelas visíveis
(6ª grandeza), o seu aspecto é equivalente a Sirius, a mais brilhante
e espectacular de todas as estrelas do hemisfério Norte.
" (. . . ) são ampliadas ao ponto que uma pequena Estrela de
quinta ou sexta grandeza parece igualar o Cão, quer dizer, a maior de
todas as Fixas. Na verdade, para além das Estrelas de sexta grandeza,
levarás o teu olhar, através da Luneta, junto duma multidão tão
numerosa de outras Estrelas que escapam ao olhar natural, que isso mal
é concebível: poderás ver, com efeito, mais de seis outras escalas de
grandeza. As maiores dentre elas, que podemos chamar de sétima
grandeza, ou as primeiras das invisíveis, aparecem, graças à Luneta,
maiores e mais claras que os Astros de segunda grandeza vistos a olho
nú. (. . .) ".
As revelações são de tal forma espantosas que Galileu decide
acrescentar dois desenhos, onde representa as Estrelas desconhecidas
num enquadramento relativo a outras que faziam parte do património da
Astronomia clássica. Diz-nos que a sua ideia inicial seria representar
toda a constelação de Orion, mas a urgência da publicação e a
complexidade da tarefa levam-no a reservar tal objectivo para uma
outra altura, uma vez que em torno das Estrelas visíveis de Orion e
num "arco de céu" muito reduzido, da ordem dos dois graus de extensão,
foi possível detectar mais de 500 novas Estrelas. "(. . . ) Mas, para
que vejas um ou outro testemunho da sua densidade quase inconcebível,
pretendi juntar duas ilustrações, de forma a que faças uma ideia das
outras, graças a este exemplo. Na primeira, decidi representar toda a
constelação de Orion; mas, ultrapassado pela imensa abundância das

Estrelas e, por outro lado, pela falta de tempo, protelei este
trabalho para uma outra ocasião. Porque, em torno das antigas
Estrelas, existem, disseminadas no espaço de um ou dois graus, mais de
quinhentas outras. (. . . )".
O segundo exemplo diz respeito ao conhecido agrupamento estelar
das Pleiades, junto das quais Galileu descobre mais de 40 novas
Estrelas, nenhuma delas distando mais de meio grau de qualquer das
Pleiades já conhecidas. O desenho é particularmente cuidadoso e tem a
preocupação de distinguir graficamente as antigas e as novas Estrelas,
representando as primeiras com um duplo traço e as segundas com traço
simples, respeitando a respectiva escala de grandeza relativa no
conjunto da ilustração. Segue-se uma reflexão sobre a natureza da Via
Láctea e sobre a composição das Nebulosas. Um e outro assunto tinham
merecido amplas considerações da Astronomia clássica, que tendia a
considerar tais fenómenos como consequência de diferenças de densidade
no éter cósmico, que resultava em serem apercebidos como manchas duma
claridade difusa, quando observados à vista desarmada. A Via Láctea ou
Galáxia, uma vez que tais designações eram nesta altura equivalentes,
pois não se admitia que a constituição cósmica pudesse conter uma
pluralidade de Galáxias, era entendida como uma entidade exterior ao
sistema solar, o que é, sabemo-lo hoje, manifestamente falso.
Galileu não tem,por enquanto, consciência de tais factos, mas a
utilização da Luneta permite-lhe sustentar sem margem para dúvida que
a Via Láctea é um aglomerado imenso de Estrelas de diferentes escalas
de grandeza, qualquer que seja a região do céu para que o telescópio
se aponte. Uma vez mais, com a satisfação que lhe é peculiar,
contrapõe as opiniões retóricas da tradição com as evidências frias e
neutrais da observação. "(...) O que observamos em terceiro lugar, foi
a essência ou a matéria da própria Via Láctea; graças à Luneta,
pode-se contemplá-la tão bem, que todas as disputas que, durante

séculos, torturaram os filósofos, são destruidas pela evidência da
percepção, e eis-nos libertos de discussões orais. A Galáxia não é,
com efeito, nada mais que um conjunto de inumeráveis Estrelas
aglomeradas em pequenos grupos: qualquer que seja, com efeito, a
região para a qual se oriente a Luneta, de imediato uma enorme
multidão de Estrelas se oferece à vista, entre as quais várias parecem
bastante grandes e bem visíveis; mas uma multiplicidade de muito
pequenas Estrelas escapa absolutamente à exploração. (. . . )".
Quanto às Nebulosas, a interpretação é análoga, baseando-se no
mesmo princípio da acumulação de Estrelas, cuja pequenez ou enorme
distância por relação a nós, implica um agrupamento de luminosidades
individuais de tal forma que só são apercebidas como superfícies de
fronteiras difusas, espécie de "nuvens cósmicas", irradiando um ténue
clarão. Destas observações resultam mais duas ilustrações, uma
relativa à Nebulosa da constelação de Orion e outra à Nebulosa da
constelação de Câncer. Vejamos as suas palavras: " (...) várias
auréolas duma côr idêntica brilham com um ténue fulgor, aqui e além no
éter, e se orientares a Luneta para qualquer uma dentre elas,
encontrarás um conjunto de Estrelas que se comprimem em conjunto.Por
outro lado ( o que é mais maravilhoso ainda ), as Estrelas até hoje
chamadas de Nebulosas por todos os Astrónomos, são rebanhos de
pequenas Estrelas semeados de forma admirável.Dado que cada uma delas,
por causa da sua pequenez ou do grande distanciamento de nós, escapa à
acuidade do nosso olhar, da união dos seus raios luminosos surge esta
claridade branca que até hoje foi tomada como uma parte mais densa do
Céu, capaz de reflectir os raios luminosas das Estrelas ou do
Sol.Observamos algumas, e decidimos inserir a representação de duas
dentre elas.(...)".
Quanto a Galáxias, Estrelas e Nebulosas, nada mais é dito! Temos

de compreender que é um tema por enquanto controverso, muito além dos
meios tecnológicos disponíveis e que obriga, a prazo, a considerar o
problema da infinitude do Universo, questão por enquanto impensável no
interior dos quadros de referência em que se move "O Mensageiro das
Estrelas".



7 - A PRODIGIOSA SEMANA



Galileu guarda para o fim aquilo que considera ser a mais
espantosa das descobertas a que teve acesso, isto é, a revelação dos
quatro satélites de Júpiter, os primeiros planetas "novos" a que o
conhecimento humano chegou desde que os astrónomos começaram a olhar
os céus. Esta parte da sua obra é, talvez, a mais significativa no que
diz respeito à objectividade das observações, à metodologia seguida,
aos pormenores quantitativos fornecidos ao leitor, que vão desde as
datas e horas, às representações gráficas, cuidadosamente acompanhadas
das medições de ângulos de desvio dos satélites relativamente a
Júpiter.
É também esta análise a mais extensa de todas, pois ocupa
aproximadamente 40% do "Mensageiro das Estrelas". Se atendermos ao
espírito sucinto que demarca toda a investigação, é significativo o
cuidado nos detalhes e a extensão das observações. Galileu está
efectivamente convencido, e com razão, de ter descoberto fenómenos de
extraordinário impacto, não só pela novidade absoluta que em si mesmos
encerram, mas também pelas virtualidades que contêm numa futura
demonstração da validade dos modelos cosmológicos heliocêntricos de
raíz coperniciana.
"(. . . ) Relatamos brevemente até agora os fenómenos observados a
propósito da Lua, das estrelas Fixas e da Galáxia. Resta-nos tratar o
assunto que parece mais considerável na presente matéria: revelar e

dar a conhecer quatro planetas que, desde os começos do mundo até aos
nossos dias, jamais foram apercebidos, sem esquecer as suas posições e
as observações, mantidas durante quase dois meses, dos seus
comportamentos e das suas mutações. (. . . )".
Imediatamente após ter dado conhecimento da descoberta, Galileu,
um pouco contra o seu costume, faz um apelo a todos os Astrónomos para
se dedicarem ao assunto, tendo em vista a formulação dos períodos
orbitais de cada um dos satélites de Júpiter, já que motivos
imperiosos relacionados com a falta de tempo e a urgência da
publicação o teriam impedido de reservar para si próprio a
apresentação desses números. Claro que adverte a comunidade científica
para nem sequer se atrever a iniciar tais estudos se não tiver uma
Luneta, pelo menos tão precisa como aquela que habilidosamente
descreve nas primeiras páginas do seu livro. "(. . . ) Apelamos a
todos os astrónomos, para que colaborem na pesquisa e a estabelecer a
duração das suas revoluções, o que nos não foi possível realizar até
hoje devido ao pouco tempo de que dispusemos. Advertimo-los, apesar de
tudo, novamente, a fim de que se não lancem em vão num tal exame, que
é necessária uma Luneta muito precisa, tal como aquela que descrevemos
no início deste trabalho. (. . . )".
Feito este aviso prévio, Galileu dá início ao relato detalhado da
sua descoberta, começando por revelar que no dia 7 de Janeiro de 1610
se lhe deparou à observação um fenómeno estranho, na altura em que
analisava o planeta Júpiter. Junto a este planeta pareceu-lhe
descortinar três Estrelas, pequenas e claras, que muito o maravilharam
devido ao alinhamento horizontal que mantinham com Júpiter. Não se
preocupou neste dia em quantificar as distâncias que as separavam do
planeta, pelo que a noite de 7 de Janeiro se pode considerar como o
primeiro momento da observação dum facto que flutua entre o normal e o
bizarro, dado que Galileu admite, por enquanto, que tais astros se
tratam de estrelas Fixas e não de Planetas. Não nos devemos
surpreender que assim seja, pois como já observamos na altura em que

se abordou o problema das Estrelas, era muito frequente a descoberta
de novas Estrelas Fixas ao apontar-se a Luneta para qualquer região
dos céus!
"(. . . ) Então, no dia 7 de Janeiro do presente ano de 1610, na
primeira hora da noite, quando observava as Estrelas celestes através
da Luneta, Júpiter apresentou-se; e como tinha fabricado um
instrumento absolutamente excelente, reconheci (o que antes não tinha
podido conseguir devido à fraqueza da outra Luneta) que havia três
Estrelas, bem pequenas, é verdade, mas todavia muito claras, situadas
próximo dele. Acreditei, em primeiro lugar, serem do número das Fixas.
Seja como fôr, causaram-me um certo encantamento, devido ao facto de
aparecerem dispostas segundo uma linha exactamente recta e paralela à
Eclíptica e, ainda que iguais às outras Fixas em grandeza, mais
brilhantes. (. . . )".
No dia seguinte, 8 de Janeiro, retomando como que por acaso as
mesmas observações da véspera, reparou que a posição dessas três
Estrelas, relativamente a Júpiter, se tinha alterado. No dia anterior,
duas deles encontravam-se a Oriente e outra a Ocidente, enquanto que
neste dia lá se encontravam as três Estrelas, mas desta feita todas
posicionadas a Ocidente do planeta conhecido. Galileu, escrevendo
retrospectivamente, confessa-nos que admitiu estar perante um erro
relativamente à trajectória de Júpiter, pois sendo o seu movimento
perspectivado face ao território de fundo das Estrelas fixas, poderia
ter observado simplesmente novos dados que levariam à correcção dos
conhecimentos sobre a sua órbita.
Qualquer que seja o motivo, está levantada a suspeita! A
observação revela um fenómeno insólito. Agora trata-se de analisar
melhor em que consiste e quais as suas causas. É com impaciência que
espera pelo dia seguinte, 9 de Janeiro, para continuar as observações,
mas tal expectativa foi frustrada, pois nessa noite o céu estava
coberto de nuvens!!

"(. . . ) Não me ocupei das distâncias entre elas e Júpiter,
porque as tinha tomado, como já disse no início, por fixas. Ora, como
no dia oito, guiado por não sei que Fatalidade, regressei à mesma
observação, encontrei uma disposição bem diferente: com efeito, as
três pequenas Estrelas encontravam-se a Oeste de Júpiter, mais
próximas umas das outras que na noite precedente, separadas por
intervalos iguais, como demonstra o seguinte desenho (. . . ) Nesta
altura, ainda que não tivesse consagrado a mínima reflexão aos
movimentos de aproximação mútua das Estrelas, comecei a ficar
embaraçado e a procurar como seria possível descobrir Júpiter a Este
de todas as Fixas mencionadas, dado que na véspera ele tinha estado a
Oeste de duas delas. Temi, por consequência, que a sua trajectória não
fosse directa, contrariamente aos cálculos astronómicos e que, por
essa razão, com o seu próprio movimento, não tivesse ultrapassado
essas Estrelas. Consequentemente, esperei com muita impaciência a
noite seguinte; mas a minha esperança foi frustrada, porque o céu
encontrava-se coberto de nuvens por todos os lados. (. . . )".
Chega finalmente a noite de 10 de Janeiro, que vai ser decisiva
por dois motivos. Por um lado, em vez de três Estrelas próximo de
Júpiter, aparecem somente duas, situadas a Este e não a Oeste, como na
véspera; por outro, conclui que não há qualquer anomalia no movimento
de Júpiter e que todas as mudanças de posição deviam ser da
responsabilidade de tão estranhas Estrelas.
"(. . . ) Mas no dia dez, as Estrelas apareceram, situadas por
relação a Júpiter da seguinte maneira (. . . ) Não havia senão duas,
ambas a este, a terceira estando escondida, como presumia, por trás de
Jupiter. Estavam juntas, como anteriormente, sobre o mesmo plano que
Júpiter e alinhadas na linha ao longo do Zodíaco. Perante esta
observação, como compreendia que alterações análogas não podiam de
nenhuma maneira serem imputadas a Júpiter e que, para além do mais,

sabia que tinha observado sempre as mesmas Estrelas (não havia outras,
com efeito, quer atrás quer adiante de Júpiter, dentro duma grande
distância, ao longo do Zodíaco), modificando a partir de então a minha
perplexidade em encantamento, descobri que a modificação apercebida
era imputável não a Júpiter, mas às estrelas que tinha assinalado. Em
função disto, decidi continuar, daqui para a frente, as minhas
observações com mais exactidão e rigor. (. . . )".
No dia seguinte, 11 de Janeiro, posta de parte a hipótese dos
movimentos anormais da órbita de Júpiter, Galileu estabelece uma
hipótese interpretativa que o leva á sua grande descoberta. Verifica
de início que são somente visíveis duas Estrelas junto a Júpiter, mas
mais distantes deste que na véspera, pelo que, acrescentando-lhe uma
terceira actualmente não visível, considera sem margem para dúvida que
há três Estrelas errantes em torno do Planeta, movimentando-se em sua
volta de forma análoga à de Vénus e Mercúrio em torno do Sol. Quanto
ao quarto satélite, diz-nos que só foi referenciado ao fim de muitas
outras observações subsequentes, pelo que na ordem cronológica dos
factos descritos, os quatro Planetas foram descobertos em duas fases!
"(. . . ) No dia onze, então, vi uma disposição desta ordem. (. .
. ) Não existiam senão duas Estrelas a este; a do meio estava três
vezes mais distante de Júpiter que a mais Oriental, e a mais Oriental
era à volta de duas vezes maior que a outra, enquanto que, na noite
anterior, apareceram mais ou menos iguais. Foi por isso que estabeleci
e decretei sem qualquer dúvida que havia no céu três Estrelas errando
à volta de Júpiter, da mesma forma que Vénus e Mercúrio em torno do
Sol. Isso foi, finalmente, confirmado com mais clareza do que a luz do
dia, ao longo de outras numerosas observações posteriormente feitas.
(. . . )".
Estabelecida uma hipótese consistente decorrente da observação,
Galileu dedica-se a uma sucessão de pormenorizadas e pacientes
investigações, tendo em vista a confirmação dos factos e,

eventualmente, das leis que presidem ao seu funcionamento. Encontramos
aqui um evidente exemplo da prática duma metodologia típica da
alvorada da Ciência Moderna, a um passo das clássicas quatro fases do
método experimental ( observação, hipótese, experimentação e indução
).
Compreender-se-á, por conseguinte, que as observações dos
satélites de Júpiter feitas nas próximas semanas, revelem uma
preocupação de rigor e detalhe que não encontramos nos primeiros cinco
dias, de 7 a 11 de Janeiro de 1610. São-nos dados os tamanhos e
brilhos aparentes, a sua posição relativa face a Júpiter, as
coordenadas de orientação no eixo Oriente-Ocidente e o distanciamento
dos satélites entre si, tudo isto enquadrado, na medida do possível,
com dados quantitativos, onde se destacam as datas e horas em que as
observações são feitas, bem como a medição de distâncias, apontadas
com uma precisão da ordem dos "minutos de grau" e "segundos de grau".
" (...) A descrição que se segue dará a conhecer as suas
permutações, observadas da maneira mais exacta. Medi também os
intervalos que os separavam por meio da Luneta, segundo o método já
exposto. Por outro lado, acrescentei as horas das observações,
sobretudo quando existiram várias durante a mesma noite;as revoluções
destes Planetas são, com efeito, tão rápidas que a maior parte das
vezes podem notar-se diferenças de hora a hora. (. . . )".
Nos dois dias seguintes, 12 e 13 de Janeiro, os comentários de
Galileu passam a obedecer a esta nova estratégia, a linguagem é
objectiva, sem adjectivação afectiva, fria e neutral, como convém a
quem entende que, a partir de agora, a "força dos factos" é tão grande
que bastará deixar que falem por si próprios!
Os dias que completam esta espantosa semana para a astronomia e
Cosmologia Moderna, merecem somente dois comentários finais. O
primeiro é ficarmos a saber que foi nesta altura que pela primeira vez

foi avistado o quarto satélite de Júpiter, e o segundo assinala que
Galileu passa a distinguir sem hesitação os novos planetas
afirmando-nos, inclusivé, que o seu brilho é superior ao das Estrelas
Fixas da mesma grandeza.
Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) No dia doze, na primeira hora
da noite, vi as Estrelas dispostas desta maneira: (. . . ) A Estrela
mais oriental era maior que a mais ocidental, mas ambas eram bem
visíveis e resplandecentes; cada uma estava afastada de Júpiter cerca
de 2 minutos. A terceira Estrela começou a aparecer igualmente na
terceira hora, de início muito pouco visível; quase que tocava Júpiter
do lado oriental e era verdadeiramente muito pequena. Todas se
encontravam sobre o mesmo plano, alinhadas ao longo da Eclíptica.
No dia treze, pela primeira vez, quatro pequenas Estrelas
ofereceram-se à minha vista, segundo a seguinte disposição por relação
a Júpiter: (. . . ) Três eram ocidentais e uma oriental; formavam uma
linha quase recta; a mediana das Ocidentais, todavia, desviava-se
ligeiramente da recta, em direcção ao norte. A Oriental estava a uma
distância de 2 minutos de Júpiter; os intervalos que separavam as
outras de Júpiter eram, cada um, de somente 1 minuto. Todas as
Estrelas se mostravam de igual grandeza e, apesar do seu tamanho ser
pequeno, eram todavia muito brilhantes, mais esplendorosas que as
Fixas da mesma grandeza. (. . . )".
Seguem-se seis semanas de observações persistentes, noite após
noite, só interrompidas por limitações meteorológicas, quando o céu se
encontrava completamente coberto de nuvens. De 13 a 25 de Fevereiro de
1610, a leitura, para um leigo, torna-se monótona. Galileu é duma
extrema economia no discurso. Não mais de 15/20 linhas, 1/2 desenhos,
horas, ângulos, distâncias, grandezas aparentes. A rede está lançada e
a Ciência, de facto, é também uma longa paciência!
A fim de bem demarcar esta vertente, vejamos o que consta do
"Mensageiro das Estrelas", com intervalos de uma semana, no mês e
meio que se segue:

--- "(. . . ) A catorze, o tempo esteve com nuvens. (. . . )".
--- "(. . . ) A vinte e um, às 0 horas, 30 minutos, três pequenas
Estrelas apresentaram-se a Oriente, igualmente distantes entre elas e
por relação a Júpiter: (. . . ) Os intervalos eram, segundo a minha
estimativa, de 50 segundos de minuto. Havia também uma Estrela a
Ocidente, distante de Júpiter 4 minutos. A Oriental mais próxima de
Júpiter era de todas a mais pequena; as outras, pelo contrário, eram
um pouco maiores e mais ou menos iguais entre elas. (. . . )".
--- "(. . . ) A vinte e oito e vinte e nove, nenhuma observação
foi possível, por causa da interposição de nuvens. (. . . )".
--- "(. . . ) A quatro, na segunda hora, quatro Estrelas rodearam
Júpiter, duas a Oriente e uma a Ocidente, dispostas exactamente sobre
a mesma linha recta, como na seguinte figura: (. . . ) A Estrela mais
Oriental estava a uma distância de 3 minutos da seguinte, enquanto que
esta estava distante 0 minutos e 40 segundos de Júpiter; Júpiter
estava a 4 minutos da mais próxima a Ocidente, e esta a 6 minutos da
mais Ocidental. Eram aproximadamente iguais em grandeza; a mais
próxima de Júpiter aparecia ligeiramente mais pequena que as outras.
Posteriormente, na sétima hora, as Estrelas Orientais não estavam
separadas senão por 0 minutos, 30 segundos: (. . . ) Júpiter
encontrava-se a 2 minutos da Estrela oriental mais próxima, enquanto
que estava a 4 minutos daquela que o seguia a Ocidente e esta a 3
minutos da mais Ocidental de todas. (. . . )".
--- "(. . . ) A onze, na primeira hora, duas Estrelas
apresentavam-se do lado de Oriente e uma do lado do poente: (. . . )
A Ocidental estava a 4 minutos de Júpiter; a Oriental mais vizinha
estava, também, a 4 minutos, enquanto que a mais Oriental
encontrava-se a uma distância de 8 minutos desta última. Estavam
bastante nítidas e situadas sobre o mesmo plano. Mas, à quarta hora,
uma quarta Estrela tornou-se visível, a mais próxima, a Oriente de

Júpiter, mais pequena que as outras, distante de Júpiter de 0 minutos,
30 segundos, e desviando-se da linha que atravessava as outras, um
pouco deslocada para o norte. (. . . )".
--- "(. . . ) A dezoito, à uma hora, havia três Estrelas, das
quais duas ocidentais e uma oriental. A Oriental estava distante 3
minutos de Júpiter, a Ocidental mais próxima, 2 minutos (. . . ) e a
outra, a mais Ocidental de todas, estava afastada 8 minutos da que se
encontrava no meio. Todas se encontravam sobre o mesmo plano, e
aproximadamente com a mesma grandeza. (. . . )".
--- "(. . . ) A vinte e cinco, à 1 hora, 30 minutos, (pois nas
três noites anteriores o Céu tinha estado coberto de nuvens) três
Estrelas apareceram: (. . . ) Duas estavam a Oriente, sendo iguais as
distâncias entre elas e relativamente a Júpiter, isto é, de 4 minutos;
a única Estrela situada a Ocidente estava a uma distância de 2 minutos
de Júpiter; encontravam-se exactamente sobre o mesmo plano, que
prolongava a Eclíptica. (. . . )".
Esta extensa citação pretende sugerir o clima que rodeia esta
parte do livro, a dimensão paciente e monótona da série de observações
que permitirão um dia o salto qualitativo que determinará as reais
órbitas dos satélites de Júpiter.
Os derradeiros cinco dias, de 26 de Fevereiro a 2 de Março,
mantendo o tom e o estilo objectivo das anteriores semanas, introduzem
uma novidade que consiste em referenciar o conjunto dos movimentos de
Júpiter e seus quatro satélites a uma Estrela Fixa, que se tinha
tornado visível nesta altura. Tal estratagema permite tornar mais
nítidas as séries orbitais examinadas, uma vez que essa Estrela Fixa
serve de marco imóvel que contribui para a exactidão das medições
feitas.
"(. . . ) A vinte e seis, às 0 horas, 30 minutos, apresentavam-se
somente duas Estrelas: (. . . ) Uma, a Oriente, era distante de
Júpiter 10 minutos; outra, a Ocidente, encontrava-se a 6 minutos; a
Oriental era consideravelmente mais pequena que a Ocidental. Mas à

quinta hora três Estrelas eram visíveis. (. . . ) Para além das duas
já assinaladas, com efeito, via-se uma terceira, do lado do Ocidente,
perto de Júpiter, bem pequena, anteriormente escondida por trás de
Júpiter, a uma distância dele de 1 minuto. (. . . )Essa noite, pela
primeira vez, decidi observar o percurso de Júpiter e dos Planetas que
o acompanhavam seguindo a linha do Zodíaco, em função da sua relação a
uma Fixa; com efeito, uma Estrela Fixa oferecia-se ao olhar, a
Oriente, distante 11 minutos do Planeta oriental e ligeiramente
desviada para o sul, da seguinte maneira: (. . . )".
Concluídas as observações a 2 de Março de 1610, Galileu
expressamente refere que estes últimos dias, em que teve a preocupação
de assinalar a Estrela Fixa nos seus desenhos, visam todos aqueles que
pretendem comparar tais trajectórias com os dados presentes nas Tábuas
Astronómicas então reconhecidas como válidas. Isto é, vai-se ao
encontro da concordância com um património de conhecimentos
astronómicos, de forma a enquadrar o desconhecido e a novidade num
corpo teórico consensualmente aceite. É um exemplo curioso da forma
peculiar em que o pensamento de Galileu articula momentos de "ruptura"
com fases de "continuidade", perante o sistema de conhecimentos que
simultaneamente prolongou e ultrapassou.
"(. . . ) Estas confrontações de Júpiter e dos Planetas que o
rodeiam, com a Estrela Fixa, pretendi acrescentá-las a fim de que,
graças a elas, todos possam compreender que os percursos destes
Planetas, em longitude como em latitude, concordam exactamente com os
movimentos que derivam das tábuas. (. . . )".



8 - O ORBE DE CRISTAL



Terminado o diário destes alucinantes dois meses, Galileu propõe
uma série de considerações finais, que fazem uma espécie de balanço
das suas dúvidas, convicções e prognósticos relativamente ao futuro.

Em primeiro lugar, uma dupla confissão, simultaneamente de sucesso
e impotência. Isto é, sabe que há quatro satélites em torno de
Júpiter, que as suas órbitas são individualizadas, que o acompanham
num movimento conjunto em torno do sol, mas não foi ainda capaz de
calcular o período orbital de cada um destes planetas, cuja existência
acabou de nos revelar! "
"(...) A partir destas observações, ainda que não tenha sido por
enquanto possível calcular os períodos dos Planetas, pode-se no mínimo
enunciar algumas afirmações dignas de atenção. E, antes de mais, uma
vez que segundo intervalos semelhantes, tanto seguem, como precedem
Júpiter, uma vez que não se afastam dele, tanto em direcção ao levante
como ao poente, senão segundo desvios muito estreitos, e uma vez que o
acompanham de forma parecida no seu movimento retrógado e no seu
movimento directo, ninguém pode duvidar que descrevem à sua volta as
suas próprias revoluções, realizando, durante esse tempo, todos em
conjunto, um movimento giratório de doze anos em torno do centro do
mundo. (...)".
Após esta síntese, Galileu entende que tais dados podem ser
mobilizados para um duplo fim, que visa não só uma defesa das teses
copernicianas, mas também um confronto teórico com outros modelos
cosmológicos então em vigor. Não nos referimos exclusivamente ao
modelo geocêntrico, de raíz aristotélico-ptolomeica, que era sem
dúvida o adversário principal, mas a variações mais complexas então em
vigor, como era o caso da concepção de Tycho Brahe.
Este astrónomo dinamarquês (1546-1601), de origem nobre,
contemporâneo de Galileu e Kepler, é uma das mais interessantes
personalidades desta época de transição. Desde muito cedo vocacionado
para a Astronomia, obtém o apoio da coroa dinamarquesa para se dedicar
à investigação, tendo acesso a meios verdadeiramente invulgares,
dentro desta área de estudos. Consegue que lhe seja doada uma ilha

pelo rei Frederico II, situada entre Copenhague e o Castelo de
Elsinor, em cujas muralhas longamente cismou o príncipe Hamlet!
Aí constrói um gigantesco laboratório-cidade, a partir de 1576,
que sintomaticamente nomeou Uraniburg, e para o qual não poupou nem
esforços, nem despesas, a fim de fundar uma comunidade científica
exclusivamente dedicada à observação dos céus. Tudo foi cuidadosamente
desenhado com esse fim, sendo de destacar os gigantescos instrumentos
de observação dos astros, cuja precisão é inexcedível na era anterior
ao desenvolvimento dos telescópios.
Dirigindo tiranicamente Uraniburg, com temperamento
simultaneamente irascível e folgazão, Tycho Brahe vai acumulando ao
longo dos anos séries de anotações numéricas (ângulos, datas, horas,
desvios) relativos a todos os planetas conhecidos, a estrelas e
constelações, bem como a cometas e super-novas.
O seu sonho era construir um sistema cosmológico alternativo a
Ptolomeu e Copérnico, recuperando, em parte, a antiga tradição de
Heráclides. Modelo híbrido, aglutinava em si aspectos geocêntricos e
heliocêntricos. A Terra era o centro do Mundo e em seu torno orbitavam
a Lua e o Sol. Mas, por sua vez, à volta do Sol, giravam os cinco
planetas conhecidos (Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno). Tendo
conhecimento da publicação, em 1596, da obra de Kepler "Mysterium
Cosmographicum", onde se desenvolviam ideias que recuperavam estranhas
combinatórias de Copérnico com convicções pitagóricas e devaneios
geométrico-platónicos, resolve convidar o tímido Kepler para uma
estadia junto a si, de forma a trocarem opiniões e pontos de vista.
O convite é aceite, mas com intenções dúbias de parte a parte,
pois enquanto Tycho Brahe reconhecia a vocação matemático-geométrica
de Kepler, este necessitava desesperadamente de ter acesso aos dados
quantitativos na mão do dinamarquês, resultantes dos anos de trabalho
forçado de Uraniburg. As relações entre estas duas personalidades tão
diferentes estão recheadas de peripécias, que não é oportuno agora

relatar, bastando referir que Kepler fica herdeiro dessa informação,
após 1601, altura em que Tycho Brahe morre. Na posse desses elementos,
designadamente dos dados referentes a Marte, Kepler vem a publicar,
em 1609, a sua "Astronomia Nova", um ano antes de Galileu trazer a
público "O Mensageiro das Estrelas".
Nessa obra ("Astronomia Nova") são correctamente expostas as duas
Leis que rompem com o dogma do movimento circular e uniforme. Galileu
conhece este texto mas, espantosamente, não tira as devidas
consequências, pois continuará a sustentar até ao fim da sua vida
concepções que não entram em linha de conta nem com a forma elíptica
das órbitas planetárias (1ª Lei de Kepler), nem com o movimento não
uniforme das translacções em torno do Sol (2ª Lei de Kepler).
Seja como fôr, em 1610, o sistema de Tycho Brahe era conhecido,
e Galileu deve estar a pensar que as suas descobertas podem ser um
argumento contra tais teses dum Universo bi-cêntrico (Terra e Sol), em
defesa dum modelo coperniciano "puro", que nunca foi capaz de
abandonar!
Ouçamos as suas palavras: "(. . . ) Por outro lado, temos um
argumento excelente e luminoso para retirar qualquer escrúpulo àqueles
que, ainda que aceitando tranquilamente a revolução dos Planetas à
volta do Sol no sistema coperniciano, ficam de tal maneira perturbados
pela órbita que a Lua faz em torno da Terra --- enquanto que estes
Planetas cumprem uma revolução anual em torno do Sol ---, que julgam
que esta organização do mundo deve ser rejeitada como uma
impossibilidade. (. . . )".
Referido o argumento de estranheza que resultava da Lua ser o
único planeta simultaneamente orbitando em torno da Terra e do Sol,
Galileu afirma que esta excepção deixa de ser incomodatícia e
paradoxal, uma vez que se detectaram 4 planetas (satélites) em torno
de Júpiter, de forma análoga à das relações Terra-Lua. Portanto, já
não é um caso (Lua), mas cinco (satélites de Júpiter e Lua), e a

excepção passa a normalidade! Só o sistema de Copérnico é capaz de
integrar, de forma não contraditória, tais irrecusáveis factos.
"(. . . ) Agora, com efeito, já não temos mais um único Planeta
rodando à volta de um outro, enquanto que ambos percorrem um grande
orbe à volta do sol, mas a nossa percepção oferece-nos quatro Estrelas
errantes, rodando em torno de Júpiter, como a Lua o faz à volta da
Terra, enquanto que todos executam em conjunto com Júpiter, no espaço
de doze anos, um grande orbe à volta do Sol. (. . . )".
É interessante salientar que Galileu ao referir o facto dos
Satélites de Júpiter aparecerem por vezes à observação com grandezas
aparentes que chegam a variar em 100%, reconhecer que não basta a
explicação radicada num efeito de aberração óptica da responsabilidade
dos "vapores terrestres". " (. . . ) Todavia, não se deve silenciar a
razão pela qual acontece que os Astros Mediceus, enquanto realizam
pequeníssimas rotações em torno de Júpiter, parecem por vezes mais de
duas vezes maiores. Não podemos de forma alguma procurar a causa nos
vapores terrestres, porque as Estrelas satélites aparecem aumentados
ou diminuidos enquanto que, visivelmente, a massa de Júpiter e das
Fixas mais próximas em nada é modificada. ( . . . )".
Acrescenta também que não basta como explicação referir que, na
sua órbita em torno de Júpiter, na altura do perigeu, os Satélites se
aproximam de tal modo da Terra que o seu tamanho aparece maior,
enquanto que fenómeno oposto se daria no momento do apogeu. "(. . . )
Que, por outro lado, estas Estrelas se aproximem e afastem de tal modo
da Terra no momento do perigeu ou do apogeu da sua revolução, (. . .
)parece absolutamente inconcebível; (. . . )".
É exactamente nesta altura que Galileu nos deixa uma curiosa e
significativa hipótese, para imediatamente a abandonar como algo de
absurdo e incompatível com os factos, ao sugerir que as órbitas dos
Satélites pudessem ser "ovais". Isto é, no momento em que Kepler tinha
demonstrado nas suas duas Leis da "Astronomia Nova", a forma elíptica

das órbitas planetárias, Galileu concebe por momentos um cenário
análogo, através dum "movimento oval". Mas é verdade que lhe não
atribui qualquer importância, a não ser pela negativa, lançando-se
precipitadamente na sua refutação liminar!
"(. . . ) uma estreita rotação circular não pode de nenhuma forma
produzir isso e um movimento oval (. . . ) parece ser simultaneamente
inconcebível e de nenhuma maneira compatível com as aparências. (. . .
)".
Assim deixando escapar um facto absolutamente vital para a Ciência
Moderna, Galileu insiste numa explicação baseada na tese dos "orbes
vaporosos", já utilizada para a Lua e Terra, mas agora extensível a
Júpiter. Tal orbe seria o responsável pelo aumento da grandeza
aparente dos Satélites no momento do perigeu, altura em que seria mais
atenuado. Inversamente, no instante do apogeu, porque mais denso e
extenso, levaria a que os satélites fossem vistos como francamente
mais pequenos.
"(. . . ) É certo, para além do mais, que não somente a Terra, mas
igualmente a Lua possuem o seu próprio orbe vaporoso espalhado à sua
volta, seja devido ao que dissemos mais atrás, seja, sobretudo, por
causa daquilo que será mais longamente desenvolvido no nosso SISTEMA.
(. . . ) não parece nada inconcebível colocar um orbe mais denso que o
resto do éter em torno de Júpiter; à sua volta, como a Lua em torno da
esfera dos elementos, giram os Planetas MEDICEUS, e devido à
interposição deste orbe quando estão no apogeu, aparecem mais
pequenos, enquanto que no perigeu, por causa do desaparecimento ou
atenuação deste mesmo orbe, aparecem maiores. A falta de tempo
impede-me de ir mais longe. Que o Leitor benevolente aguarde mais
factos sobre estes assuntos dentro de pouco tempo. (. . . )".
São estas as últimas palavras escritas no "Mensageiro das
Estrelas", altamente significativas do momento de transição que

percorre toda a obra de Galileu no que à Física Celeste diz respeito.
Vivendo entre dois mundos, a sua extraordinária perspicácia não
impediu que deixasse em torno do seu espírito um derradeiro orbe de
cristal onde, qual bela adormecida, se sonha a doçura imemorial duma
perfeição que eternamente nos foge e nos chama.

Porto, Janeiro 1995

Levi António Malho


AS ORIGENS DO SILÊNCIO

--- Sobre o que não sabemos.

" (...) Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,

Mas, quando chegar a Lisboa, terei pena de não ter estado em Sintra.

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,

Sempre, sempre, sempre,

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da

vida... (...)"



Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos"



I) - UM GRANDE FRIO DO ESPÍRITO



O imprevisto percorre as nossas vidas, uma mão vinda sei lá donde "dá
e tira", sem que saibamos os porquês de certos ventos que nos levam
para longe, como aquele pássaro que atravessou uma gélida noite de
orações de Beda, o Venerável Beda.
Singular coincidência esta em que o "ser individual" se assemelha
à "espécie", em que o sentido que preenche o destino dos homens se
abre face aos imponderáveis da nossa ignorância sobre infinitos seres,
infelizmente os mais importantes.
Como aqueles personagens de Pirandello "à procura de um Autor", o
nosso "Eu", essa coisa óbvia que nos faz reconhecer como Corpo
distinto do Mundo, aquele olhar, sorriso, ruga, que os espelhos nos
devolvem, é uma "entidade múltipla", uma "arte combinatória", onde se
cruzam os genes, as culturas, as paisagens, as vozes amigas que

circundavam a infância, os livros, os sonhos, o caleidoscópio
insondável da Natureza.
O "Eu" é, por conseguinte, uma multidão anónima que se esconde sob
o nosso nome, um gelo fino sobre o grande Oceano subjacente e um
ilimitado Céu.
Sabemos o "instante", o aqui, o agora. Flutuamos no Tempo com uma
displicência de turista, mapa na mão, todas as ruas assinaladas,
afinal de contas nunca nos perdemos, há sempre um Norte, uma estrada
donde se vem, um caminho para onde se vai, o Universo não tem buracos,
"quem tem boca vai a Roma"!
E, todavia, tanta certeza leva-nos a desconfiar.
Sei que o Tempo nem sempre se apropria como nós queremos, nós os
que vivemos ao ritmo dos noticiários de trinta em trinta minutos, da
"síntese do dia", da análise profunda do semanário, dos balanços de
fim-de-ano, ou de década.
Mas que sentido faz "1 semana" ou "1 ano" para o "Sapiens-Sapiens"
(designação que não revela grande modéstia nem falta de auto-estima,
admita-se ...), que por aqui anda há 40.000 anos?
"Conhece-te a ti próprio!", dizia a máxima socrática.
Mas não está lá dito que basta um retrato "tipo-passe",
frente-perfil, o necessário para o Arquivo de Identificação e Bilhete
de Identidade.
O que afirmo é que ignoramos o essencial, de nós sabemos a sombra
duma sombra, o nosso Eu é centrífugo, lança-nos para a rua, põe-nos cá
fora a vêr quem passa, detesta companhia, não por misantropia, mas por
incapacidade de se escutar.
Em fim de século, a consciência humana está saturada de
"interpretações", de "interpretações de interpretações", abafada por
signos, ausente do despojamento duma "nudez" que lhe é insuportável!
Porque há, no mais fundo de nós, um Enigma não resolvido, quer na
vertente social e histórica, quer na dimensão individual, quer na
"espécie" a que pertencemos.
Como figuras de banda desenhada, ou personagens de parábolas
milagrosas, julgamos caminhar sobre as águas e desafiar o Vazio, só
porque nos recusamos a olhar "para baixo" e nos agarramos uns aos

outros, não necessariamente por razões de afecto, mas simplesmente
porque estamos aqui, "apertados" na barca da História, porque não há
outro local a não ser esse...
Mas o Tempo contém uma opacidade para além da nitidez do
presente, do "instante - que - faz - sentido", mas resiste pouco aos
espíritos claustrófobos, aos que afastam as estátuas dos egrégios
avós, arrancam as amarras e se perguntam se o Mundo é um teatro ou o
Teatro é que é o Mundo, o encenador nunca pode atender, o guião não
está disponível, "talvez mais logo", como nas palavras do Senhor Godot
de Brecht.
O nosso "presente" é, fundamentalmente, urbano, citadino,
mediático, aldeia-global, "good news, no news...". Porque estamos à
tona da História, os ritmos das Sociedades Industriais avançadas
confundem-se com a aparência do único modo-de-estar possível, a
fuga-em-frente é o caminho óbvio, parar é morrer, os acontecimentos
precipitam-se e nós, pobres humanos, passamos uma "vista de olhos"
para "estar-a-par", entender, mediatizados por profissionais da
interpretação dos factos económicos, do agregado monetário "M3" do
"BundesBank", das declarações do Presidente da Reserva Federal, das
imagens do telescópio espacial Hubble, das matanças inenarráveis do
"Ramadão" argelino.
Como se pode ver e falar disto tudo sem perplexidade e sem
espanto?!
Drogados pelos "acontecimentos", caminhamos para uma certa
insensibilidade face ao mundo, agarramo-nos aos nossos dias, recusamos
o "non-sens" duma época convulsiva e turbulenta.
Que o processo histórico não obedece às regras da Geometria
Euclidiana, já o deveríamos saber. Que não há "fundamento último", a
não ser por consenso de vontades precárias, isso é que se revela mais
custoso de admitir.
O que afirmo é simples. Avaliem-se as "temporalidades longas",
escavem-se os "sub-solos da Civilização", meta-se a mão e a
consciência bem fundo na História e então, no centro da "Luz",

pressente-se um entardecer, uma ameaça de despojamento, um grande
silêncio, uma espécie de "coisa nenhuma, um grande frio do Espírito.
A consciência do Tempo arrefece em direcção ao "zero absoluto" se,
duma certa maneira, olharmos e pensarmos o "social", o "individual", o
"humano", o "biológico" e o "material".
Tal como um "puzzle", estes conceitos parecem encaixar-se bem uns
nos outros e, no seu conjunto, produzem um "Objecto-com-sentido". Mas
o que pretendo é chamar a atenção para as "arestas" de encaixe entre
as várias "peças" e constatar se essa superfície tridimensional
desejada como "sólido perfeito", não é um cenário de Hollywood, preso
por arames...



II - " AS TIME GOES BY "



Se partirmos das evidências primárias, dos fenómenos banais, ninguém
contesta que a condição humana é uma combinatória entre o individual e
o social, sendo bem difíceis de estabelecer fronteiras nítidas entre
estes dois conceitos.
Aceite este pressuposto, comecemos pelo "objecto" mais próximo,
aceitando que nada há "mais próximo de nós", que o "Eu" de cada um de
nós.
Esse "Eu" tem um nome, um sexo, uma data de nascimento, um
território, uma comunidade com a qual inter-age. A sua "Forma" resulta
desse ajustamento que teve de fazer em função de "formas" que lhe
pré-existiam ou que com ele co-existiam.
Aparentemente, sabemos quem somos, respondemos pelo "Nome" quando
nos chamam, orientamo-nos nas cidades, fazemos compras, cumprimentamos
com delicadeza ausente o vizinho de cima! Isto é, sedimentamos a nossa
Vida numa constelação de referentes com nexo aparente, distinguimos as
ilusões e sonhos das "horas despertas", ajustamos as rotinas do
quotidiano entre limites tidos como razoáveis.

Mas se tentarmos mergulhar na nossa identidade, naquilo que faz
com que sejamos esse "Eu", rapidamente seremos confrontados com
algumas surpresas. O essencial de nós repousa numa espécie de "treva
primordial", bastando para tal um exercício imaginário rudimentar.
Claro que sabemos o "Hoje", talvez o "Ontem,", provavelmente a véspera
da véspera. Mas, à medida que nos afastamos do "Presente", uma bruma
levanta-se sobre os nossos dias passados, sabemos que "estivemos lá" (
senão, não estávamos "aqui" ...), mas algo de desconfortável irrompe,
nos lapsos de Tempo esvaziados, nas horas, semanas, meses, anos, que
não reconstituímos a não ser por uma síntese do "mais-ou-menos", "não
me lembro bem", parece-me que foi "nessa altura", mas não tenho a
certeza!
É verdade. As certezas diminuem, não porque sejamos inseguros,
tímidos, mas porque a consciência é amnésica, deita fora, recalca,
volatiliza os instantes, para erguer um edifício sintético
auto-produzido onde nos protejemos das ondulações in-formes do Oceano
antiquíssimo.
A verdade é que, quando procuramos, individualmente, as primeiras
"imagens" da presença de "nós em nós", esse local do Tempo em que nos
vemos como um "Eu", deparamos com um acontecimento interactivo,
espécie de "flash" dificilmente datável, algo como um rosto de mãe que
nos olha e afaga, uma sensação tépida, um balão colorido na nossa mão,
um dia de chuva, um brinquedo, um rumor, um aroma, uma vaga percepção
táctil.
E antes?!...
Esse "antes", para nós, é inexistente.
No nexo causal, a Razão diz-nos que "teve de lá estar", e nós com
"ele", claro. Mas, por mais que nos esforcemos, "ele" desapareceu para
sempre. Um desmaio hipnótico da nossa Memória é tudo o que resta e
ninguém se lembra de ter nascido, do desconforto da primeira
respiração, do momento em que o nosso corpo se "separou", para sempre,
em direcção aos limites de si próprio.
Descobrimos então que não somos autónomos, que não "nos

pertencemos" senão por um acto de Vontade, que dependemos totalmente
dos outros, daqueles que nos dizem que "aquilo-aquele-aquela" éramos
nós, aí está um retrato amarelecido pelo tempo e a gente acredita, não
há outro remédio!
Tenhamos, por conseguinte, consciência que não estamos a fazer
outra coisa senão "acreditar", "ter fé", "crer", jamais nos sentiremos
como "presentes" a tudo "isso", ninguém nos peça responsabilidades,
declarações, compromissos de honra. Moral da história: na nossa
"auto-psico-génese" somos estruturalmente passivos,[] flutuamos numa
espécie de vento que jamais saberemos donde veio.
Resta-nos admitir que esse "testemunho" é credível, que tudo isto
é normal, sempre foi assim, é nossa condição, um pormenor
insignificante, um detalhe neurótico, nem vale a pena pensar nisso. Só
um espírito desconfiado se lembraria de tão bizarras divagações. Só
nos faltava mais esta. Ora! Ora!
Dir-se-á, todavia, que talvez tenhamos seguido um caminho
excessivamente particularizado. O "Indivíduo" é in-significante, o que
conta é o "Eu" no contexto social, isto é, as Civilizações e a
História "longa", pois essas colmatarão as lacunas das "histórias
individuais".
Mas também esta tese nos revela algumas surpresas, quando nos
movemos em direcção ao "equivalente social" da auto-consciência
individual.

Todas as "Histórias Universais" são uma espécie de triângulo
equilátero invertido, do ponto da vista dos dados informativos. Tanto
faz serem em três volumes, como em vinte volumes, a proporção
mantém-se. Para o mais remoto "Passado", a distância vertiginosa do
"Presente", na "Pré-História" (designação altamente discutível...)[]
os assuntos arrumam-se, com aparente lógica, mas em "espaços
expositivos" curtos. Nos dez volumes hipotéticos da nossa imaginária
"História Universal", Grécia e Roma aparecem lá para os fins do 2º
tomo, na melhor das hipóteses. Depois, um/dois volumes para o "Período

Medieval" --- às vezes o "Renascimento" ainda cabe aqui --- e os
restantes cinco volumes para os últimos cinco séculos e em proporções
inversas de páginas relativamente à distância que nos aproxima dos
séculos XIX e XX.
Esta análise tem excepções, mas creio representar uma realidade de
fundo, que não é culpa de qualquer "avareza" dos editores, mas do
simples facto da pulverização e extinção de "documentos-monumentos", à
medida em que nos encaminhamos das Sociedades Industriais para o
"Mundo Camponês", e deste para a sua origem, no Médio-Oriente, há
aproximadamente 4.000 anos. Para "trás", ficam 36.000 anos de Caça e
Recolecção, as coisas tratam-se já não na escala do "século", mas do
"milénio", a imprecisão cresce de forma logarítmica, não há livros, os
papiros desfazem-se em pó, as pedras partiram-se, as estações
arqueológicas procuram fragmentos de plâncton no oceano do Tempo.
Algumas "inscrições", um maxilar, uma rótula, nos dias bons, um
crâneo, temperados pela ajuda da paleo-botânica mais o "carbono 14",
são o melhor que a nossa Ciência prestigiada consegue arregimentar ao
gigantesco vazio de Informação.
E nem sequer podemos ter esperança no progresso dum "Conhecimento
Futuro", pois estamos perante fenómenos irreversíveis em que, quando
muito, preencheremos mais algumas lacunas, produziremos mais alguns
modelos teórico-interpretativos, mas a verdade que se impõe é a duma
ignorância de fundo face ao nosso "nascimento social", do ponto de
vista da Espécie.
Para trás dos 40.000 anos, a cegueira aumenta e os dados diminuem.
100.000 Anos para o "Sapiens-Neandertal", três a dez milhões de anos
para a Antropogénese, a passagem da floresta à savana, "Erectus",
"Habilis", "Ramapitecus", pequenas luzes na grande noite. Só memória
de palavras talvez ditas, só crescimento do Silêncio!



III - " O FEITICEIRO DE OZ "




Sem sustentar, de forma alguma, a inexistência de efectivo progresso
na consciência que vamos construindo sobre o Mundo, pois é óbvio o
extraordinário desenvolvimento da informação que sobre ele
conquistamos, pretende-se chamar a atenção, no presente texto, não
para "aquilo que se sabe", mas para o que se "continua a não saber".
Nesta matéria há duas posições paradigmáticas a considerar, que se
sustentam num pressuposto de base diferente. A primeira, admite a
total "transparência potencial da Natureza" e a adequação essencial da
consciência humana para a descoberta dos seus limites, tudo dependendo
duma questão de Tempo, em que o Futuro ocupa um papel sistematicamente
positivo, em direcção a uma espécie de "Teoria-do Tudo" ("TOE").
Uma outra atitude, apesar de com esta compartilhar uma dimensão de
racionalidade do "Real", admite a possibilidade de "limites
ontológicos" à total desvelação do Universo, por não estar provado que
a Natureza foi "construída" como um "puzzle" para o "Homo Sapiens"
pacientemente colar e pendurar na parede, no "final" da História...
Repõe-se aqui, num contexto amplo, a questão do "antropocentrismo"
e duma espécie de boa-consciência quanto ao facto do Universo estar
dimensionado para se adaptar preferencialmente às espécies
"cerebralizadas", no conjunto das quais o "Sapiens-Sapiens" se
apresentaria como predestinado à conquista do "segredo final".
Não digo que não desejaria que tal se verificasse, mas tenho de
reconhecer que tal "voluntarismo" pode não se adequar à "estrutura
profunda do Mundo", se é que este conceito é viável!
Nesta ordem de ideias,uma breve reflexão sobre a Biogénese e
Cosmogénese, pode revelar alguns elementos curiosos.
Não discutirei aqui a hipótese da existência duma "unidade de
fundo" no interior daquilo a que se chama a "Vida", conceito bem mais
complexo do que parece, se atendermos ao que se tem passado nos
últimos 30 anos. A separação abissal entre o "vivo" e o "não-vivo"

(matéria/vida), é actualmente um reino de sombras, em que o limiar é
guardado pela insólita estrutura dos "vírus".
Perante estes, é bem difícil de responder se são ou não "seres
vivos" pois, apesar de partilharem com a "vida normal" o facto de
serem possuidores dum código genético, essa longa sequência de "ADN"
desvelado na 2ª metade deste século por Watson e Crick, a verdade é
que, na ausência de outras células que "parasitem", os vírus
comportam-se como entidades inertes, sem autonomia replicativa,
incapazes, portanto, de se "multiplicarem".
Na hierarquia da biogénese, apresentam-se como uma entidade
"minimalista", mas onde o essencial, "menos qualquer-coisa", está
presente.
A verdadeira dificuldade está em compreender como "se passa do
"não-vivo" ao "vivo", pois apesar da experiência de Stanley Miller[]
revelar a possibilidade de complexificação dum meio químico rudimentar
poder originar macro-moléculas duma grande complexidade, através duma
"ars combinatoria" já suficientemente provada, a verdade é que tal
experiência nos leva somente à "ante-véspera" da Vida e à síntese de
alguns "compostos" constituintes do futuro código genético.
Mas não nos iludamos, dado que ainda não foi possível "criar e/ou
sintetizar" laboratorialmente um ser vivo "pleno", por mais simples
que seja...
A biogénese lança-nos para estratos cronométricos de duração
extremamente longa, pois, em vez dos 12 milhões de anos que nos levam
dos "Ramapitecos" ao "Sapiens/Neandertal", necessitamos de
enquadramentos temporais que remetem para as "eras geológicas" e a
formação do planeta Terra.
Admitindo 4.600 milhões de anos, como um tempo consensual para a
idade da Terra, a biogénese pode ser um fenómeno arcaico, que
remontará há 4.000 milhões de anos.
Apesar da inexistência de fósseis que sustentem uma tal
antiguidade, a probabilidade destas datações é verosímil, se
atendermos a que os "vestígios efectivos" já apresentam uma
complexidade que implica a eventual pré-existência de "organismos" que

lhes são anteriores. Nesta ordem de ideias, é bem mais difícil
entender "como se passa" do "não-vivo" ao "vivo" que aceitar, com
alguma lógica, a transição das primeiras entidades dotadas de vida até
à incomensurável diversificação das espécies e colonização biológica
da Terra.
A profunda diversidade orgânica que a evolução nos revela,
assentando sempre na plataforma básica do "código genético" e da
monótona universalidade dos seus componentes básicos, sugere-nos que a
"lógica da Vida" vai na direcção da "diversificação", nunca apostando
tudo num único organismo/espécie, por mais eficaz que ele pareça nas
suas correlações adaptativas com o respectivo biótopo.
Se no "darwinismo" e "neo-darwinismo", o Tempo e o Acaso, são os
verdadeiros obreiros da "evolução-transformação" das espécies, não
deixa de ser curiosa uma reflexão sobre um eventual "Sentido" que
presidiria à biogénese. Há uma tendência usual de sobrevalorizar a
"cerebralização" como a verdadeira chave da evolução, espécie de força
motriz que "empurra" as Espécies em direcção à grande linha dos
Mamíferos e destes à Antropogénese, no topo da qual o "Homo Sapiens"
representaria a "saída" por excelência.
Sem negar que esta análise, aparentemente, é convincente e até
"lisongeira", não podemos esquecer que a consciência e as informações
que actualmente dispomos sobre a evolução das espécies, não justificam
a total transparência desta interpretação.
A lógica da Vida, "se lógica tem", é "manter-se viva"! Nela não
está inscrita a necessidade irreversível duma hierarquia "progressiva"
em direcção aos "grandes cérebros" que, apesar de actualmente
triunfantes, só podem reivindicar alguns milhões de anos de
existência.[] Deveria servir-nos de exemplo qualquer visita a um Museu
de "História Natural", onde jazem às dezenas, fragmentos e painéis
sobre comunidades biológicas bem "sucedidas" e de duração prolongada,
e que actualmente se reduzem à poeira das prateleiras...
Se os sistemas nervosos centrais complexos constituem uma vantagem

adaptativa face a eco-sistemas em rápida mudança, pois não necessitam
de "esperar" pelas mutações dos genes para se adequarem às rápidas
transformações do biótopo, também é possível reconhecer que há uma
espécie de "excesso" nessas "redes neuronais finas",[] sobre o
funcionamento das quais "o que sabemos" é incomensuravelmente inferior
ao que "ignoramos".
Numa outra perspectiva, há algo de "monstruoso" na maravilha que,
de facto, é um cérebro "Sapiens"! É como se algo de "excessivo",
teratológico quase, fosse entregue a seres instáveis, frágeis,
sub-dimensionados para efectivamente "controlarem" esse instrumento
evolutivo verdadeiramente excepcional.
Digo, por conseguinte, que um grande Enigma nos habita.
E um enorme "Silêncio" está dentro de nós, zona obscura, campo
cego, presença indizível. Nada está escrito em sítio nenhum,
garantindo-nos o "cume da Criação". A estrada do "humano" pode
dirigir-se a "sítio-nenhum". Tal será lastimável, mas sei que esta
afirmação é simplesmente um desabafo piedoso dum "cérebro Sapiens".
Tal como os corais que produzem os grandes recifes, no interior
dos quais uma espantosa diversidade biológica inter-age e sobrevive,
esquecendo que tal sobrevivência se deve à "Fronteira" que o próprio
recife é, convém lembrar que o micro-mundo que aí existe é uma pequena
"bolha" preciosa, cercada pelo incomensurável Oceano que, dia e noite,
pressiona essa região excepcional.
Da mesma forma que não se "podem fazer omoletes sem se partir
ovos", não se pode entender um "sistema vivo" sem pensar o "não-vivo"
que o constitui. Apesar de não sabermos o que faz com que um "agregado
molecular" seja um "ser vivo", a verdade é que sem "ele", sem esse
conjunto inerte de componentes "materiais", nunca esse "sistema vivo"
seria possível.
É natural que pensemos as "dependências materiais" da Biogénese,
levando-nos tal meditação à paradoxal "infinita distância" e "infinita

proximidade" de nós próprios. Neste derradeiro cenário, está prestes a
entrar em cena, utilizando uma linguagem mecanicista e desactualizada,
a execrável "Matéria"!
As perguntas sobre a natureza da "Matéria" são talvez as mais
antigas da História cultural daquilo a que se chama o "Pensamento
Ocidental", cujas origens remontam à aparição do pensamento
filosófico, nas cidades gregas da Ásia Menor, por volta do séc. VI
A.C.
Se é um lugar-comum afirmar que a Filosofia instituiu uma passagem
do "Mito" ao "Logos", talvez seja mais importante salientar a névoa
que cobre este "local de passagem", acentuando que todos os grandes
Mitos de Criação, anteriores no Tempo e deslocados no Espaço, por
relação às origens da Filosofia, se posicionaram face à
"matéria-prima" do Mundo, o que é outra forma de dizer a "Substância
básica" que lhe está subjacente. Esta questão é a "nascente" de todos
os Deuses e de todas as Religiões, uma vez que é bem difícil encontrar
um "Mito de Fundação" que não tente responder ao problema da origem do
mundo e das "redes causais" que presidem a uma historicidade que vai
das "Origens" até ao "Quotidiano" da comunidade antropológica que
sustenta, transporta, actualiza e vivifica o Mito.
O que o pensamento filosófico faz, nas suas origens gregas, é
"naturalizar" progressivamente o problema, fazendo um esforço para
separar o domínio do "Logos", do espaço das "Divindades", que se
desloca para o domínio das convicções íntimas de cada um, assim
permitindo a discussão construtiva sobre a natureza dos 1ºs
princípios. Os Gregos debateram exaustivamente o problema da
"substância primordial" ("arquê") e admitiram soluções monistas e
"mono-substanciais" tais como a "Água" de Tales, o "Ar" de Anaximenes,
o "Fogo" de Heraclito, o "Apeiron" de Anaximandro, os "Números" dos
Pitagóricos, a partir dos quais por uma dialéctica descendente de
cariz naturalista se partia da "Unidade Inicial" para a "Pluralidade
Final" que actualmente contemplamos.
Este novo tipo de pensamento instaura uma "fractura" nas

Consciências, pois a pluralidade das respostas sugere aos indivíduos
um "campo de insegurança" e incerteza, dado ser óbvio que não podem
ser todas Verdadeiras, mas podem ser, em última estância, todas
Falsas, ou então, apenas delimitam fragmentos de Verdade que deverão
ser postos à prova da Razão e da Experiência.
O pensamento grego percorreu quase todas as veredas possíveis
deste "universo de dúvidas" e, à medida que a História da Filosofia se
encaminha para o período áureo de Platão e Aristóteles, o problema da
"Substância Primordial" complexifica-se, não se tratando agora de
escolher A e/ou B, isto é, Ar, Água, Terra e Fogo coexistem[] numa
vasta teia de relações que dão origem à "Física Antiga", nas suas
diferentes versões.
O problema da "Matéria" é abordado de duas grandes maneiras, que
divergem entre si, não quanto ao facto da sua "existência" no plano do
Mundo, mas quanto à sua "natureza íntima".
Platão entende o Mundo como um "Ser Vivo" ("Zoon") dotado de
"Alma", cuja "autoria" remete para o projecto de Bondade dum
"Deus-Demiurgo" que deseja criar "algo" ( o Mundo) que se lhe
assemelhe. Se tal Mundo deve ser Visível e Tangível, e por isso será
composto de "Fogo" para o "iluminar" e de "Terra", para ser "tocável",
não deixa de ser verdade que este mesmo platonismo tem sobre a
"Matéria" uma posição de desvalorização e desconfiança quanto ao seu
poder auto-subsistente, uma vez que a considera uma "prisão da Alma",
um "simulacro" a ser ultrapassado, sob pena de habitarmos para sempre
um reino de trevas e de sensações espúrias, que não levam a parte
alguma. É esse o sentido do "Mito da Caverna"!
O verdadeiro Mundo apenas é acessível ao Espírito humano por uma
espécie de "Psicanálise das Memórias arcaicas", em que a "Alma"
recorda um "Tempo Primordial" durante o qual "contemplou" a verdadeira
natureza das coisas, que reside, de facto, num "Mundo de Ideias e
Arquétipos", sinónimos de perfeição absoluta, onde nada muda e nada se

transforma. O Platonismo abre caminho a um "Conhecimento" entendido
como depuração de sensações, consciência aguda das máscaras e
simulacros da experiência empírica, via de despojamento
mítico-religioso, processo ascético da Filosofia em direcção a um
"Mundo Ideal".
Nos bancos da Academia, oriundo da Macedónia, um aluno atento
tomava notas, bebia estas ideias e estaria predestinado a suceder a
Platão na direcção da Escola, como o mais qualificado representante do
núcleo duro do Platonismo. Mas Aristóteles acabou por virar o Mundo (
"platónico" ) do avesso, expurgando para o "Nada" esse "Mundo das
Ideias", substituindo-o por um empirismo dinâmico, de natureza
experimental, considerando que a consciência humana encontrará as
"Leis" ("Universais") através duma análise das "coisas particulares",
dos entes individuais que a percepção nos fornece. Constrói um
pensamento indutivo, antepassado directo da "estrada real" da Ciência
Moderna, nascida no século XVII. A "Matéria" é indestrutível e,
infelizmente, nebulosa e inacessível " em-si-mesma". Existe nas
"Coisas-com-Forma" que têm em si, no presente, na actualidade
("Acto"), um determinado rosto e uma certa configuração, mas que estão
abertas à "Mudança" e às "Transformações", isto é, à Temporalidade e à
possibilidade de serem "Outras-Coisas" ("Potência"), por meio da
incorporação doutras "Formas" na sua materialidade própria.
Com Aristóteles desaparece a eternidade perfeita de um "Mundo de
Arquétipos" pré-existente, substituido pelo poder das Leis Universais
descobertas pela inteligência humana por "abstracção" e
"generalização".
A estas duas atitudes (Platónica e Aristotélica) deve juntar-se a
ideologia "Atomista", esse materialismo antigo que vai de Leucipo e
Demócrito até ao "De Rerum Natura" de Lucrécio, no qual o mundo é um
conjunto de Átomos e de Vazio, infinita inter-penetração de elementos
"simples", a que sabiamente presidem as Leis oriundas dum "Acaso"

probabilístico, um perpétuo fazer-desfazer, que dá à Natureza um
sentido de "realidade" e "precaridade", que abrirá portas ao
Cepticismo Antigo e às Escolas de tipo "Ético", corporizadas nos
Estóicos e Epicuristas.
O debate futuro em torno do problema da "Matéria" vem, em parte,
destas posições e das combinações que entre elas se podem fazer.
A Revolução Científica do século XVII, articula duma forma
singular as perspectivas atomistas, o espírito aristotélico e o
"Realismo Intuitivo" do "Mundo dos Arquétipos" de Platão.
Admitamos que a linha mais "dura" das Ciências Físico-Matemáticas,
está mais do lado duma síntese do "Atomismo" ( quanto à natureza da
Matéria) e do "Empirismo sensitivo" de Aristóteles, do que do lado de
Platão. Mas se pensarmos que esta posição se socorre de formalismos
Geométricos e Matemáticos, que não "decorrem" de qualquer experiência
indutiva, mas duma Intuição de axiomas auto-evidentes, então
redescobrimos uma nova versão do "Mundo das Ideias" de Platão, sob a
epiderme mutante duma Natureza aristotélico-atomista.
É exactamente aqui, neste local de "convergência paradoxal", que
se ergue a obra e o pensamento de Newton, tornado o paradigma por
excelência da Ciência e da Racionalidade dominante nos séculos XVIII e
XIX, onde triunfam epistemologicamente as concepções "Iluministas" e
"Positivistas".
As perspectivas neo-atomistas da "Matéria" encaminham-se para a
ideia duma "simplicidade final" e irredutível do Mundo, tudo parecia
"funcionar" bem e adaptar-se a este modelo, consentindo até algumas
posições extremadas de optimismo arrogante quando, nos finais do
século passado, alguns Físicos se lamentavam da "vida triste" que
aguardaria os seus "futuros" colegas, pois o segredo do Mundo estava
revelado para todo o sempre!
Mas a verdade é que, "sob o atomismo", uma "bomba" se escondia,
abrindo portas ao renascimento das contradições e paradoxos que
atravessam o pensamento científico do século XX.

A aparente "simplicidade" do Atomismo desdobrava-se numa
incomensurável região "intra-atómica", onde "partículas elementares"
emergem de todo o lado, fazendo reaparecer o "Reino do Múltiplo" no
exacto território onde pareceria ter-se estabelecido para sempre o
"Triunfo do Uno"!
A "trindade" electrão-protão-neutrão esvai-se num panteísmo
infindável de novas "entidades", fazendo surgir a ameaça dum "Caos"
fervilhante, onde antes um "Cosmos" parecia garantido para sempre.
Vive-se actualmente, quanto ao conceito de "Matéria", com a
dualidade "corpúsculo-onda", pois a experiência ensina-nos que uma
"partícula elementar" não possui uma "configuração" globalmemte bem
delimitada no "Espaço-Tempo", apresentando-se com dupla face em função
da manipulação experimental que sobre "ela" façamos.
Não se entenda esta "Indeterminação" como um mal, mas simplesmente
como um facto paradoxal, experimentalmente demonstrado durante o
século XX.
O debate aberto sobre o "Indeterminismo Quântico" remonta aos
"anos 20/30", onde se salienta a posição de Albert Einstein, que
jamais aceitou a "efectiva realidade" desse Indeterminismo,
explicando-o como um "facto provisório", uma vez que existiriam
"variáveis escondidas", que acabariam por clarificar esse paradoxo,
uma vez detectadas através de meios teóricos e experimentais.
Einstein é um "filho" de Newton e, como tal, sustenta que há um
"Absoluto" nas Leis da Natureza, não só porque "(...)o bom Deus não
joga aos dados(...)", mas porque há um equívoco na opinião pública
ácerca da expressão "Teoria da Relatividade". Tal Teoria, desenvolvida
por Einstein entre 1905 ( "Relatividade Restrita" ) e 1915/20 (
"Relatividade Geral"), não é "Relativista" no sentido filosófico e
epistemológico do termo, mas sim, pelo contrário, "Absolutista". A sua
designação decorre duma espécie de homenagem a Galileu e ao seu
"Princípio da Relatividade", um dos dois postulados fundamentais da

"Teoria da Relatividade Restrita". É curioso saber que, por vontade de
Einstein, a sua "Teoria" deveria designar-se por "Teoria do
Absoluto"...
Os verdadeiros "relativistas", no sentido filosófico-matemático do
termo, são os defensores da "Física/Mecânica Quântica", que assume uma
Indeterminação de fundo na constituição íntima da "Matéria", que não
resulta de qualquer "atraso" da Ciência, mas duma "propriedade
essencial" do universo em que vivemos.
Apesar do debate continuar em aberto até hoje, é interessante
salientar que, até à data, não puderam ser desmentidas as teses
sustentadas pelo "Indeterminismo Quântico".
Nunca, como durante o século XX, se avançou tanto no conhecimento
da "Matéria" e dos seus "constituintes". Os dados adquiridos levam-nos
a romper o ciclo "presente e local" em direcção a um alargamento
cósmico das questões levantadas sobre a natureza "atomista" da
"Matéria".
Na verdade, nenhuma das moléculas e átomos que a "compõe" é, se
assim se pode dizer, "deste Mundo"! A origem dos átomos leva-nos
necessariamente para fora da Terra, em direcção às Estrelas, único
local de "síntese" atómica actualmente conhecido. É no seu interior
caótico e fervilhante que se preparam, durante séculos de séculos, os
ingredientes que, um dia, fabricarão planetas, oceanos, algas,
répteis, aves, a infinita diversidade da Vida.
Porém, um Enigma se resolve e outro irrompe, lançando-nos para o
verdadeiro "princípio de Tudo". Sendo as Estrelas compostas
fundamentalmente por Hidrogénio e Hélio, os 2 elementos mais simples e
abundantes da cadeia atómica, a verdade é que não os produzem!
Assim sendo, a origem destes dois tipos de átomos transporta-nos
para a antecâmara das origens do universo, em direcção ao instante em
que se sintetizaram as "partículas elementares" (electrões, protões,
neutrões, entre outras), a partir dum incomensurável "local" de
instabilidade térmica, espécie de "barreira luminosa", que pouco mais
nos permite que a construção de modelos físico-matemáticos compatíveis

com uma razoável racionalidade, viabilizada em parte pela "prática"
insólita dos grandes "aceleradores de partículas", onde se tenta
recriar a fronteira para além da qual a nossa ignorância é quase
total.
Os actuais modelos cosmológicos, apoiados na "Teoria do
"Big-Bang"", dizem-nos que há 15 biliões de anos, do "Vazio Quântico",
emergiu o "contínuo Espaço-Tempo", em condições de natureza
explosiva-dispersiva, caos térmico, no interior do qual todos os dados
se jogaram nos primeiros três minutos.
Isto ouvem as nossas pobres almas e, no limiar do espanto,
reencontramos o mistério do Mundo e de nós próprios. A viagem do
Pensamento ainda mal começou. Pode ser que, lá longe, o "Feiticeiro de
Oz", nos consinta percorrer, com alegria, esta "Yellow brick Road"!

Porto, Março de 1988

(Levi António Malho)

filosofia: artigos diversos
(terceiro volume)


O Espiritualismo Ocidental
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
O Resgate de Uma Bela Herança
Esta página visa mostrar que o atual interesse pelas questões
filosófico-espirituais não apenas encontra forte apóio na rica e bela
tradição Oriental, mas também em nossa extraordinária tradição
filosófica e religiosa Ocidental, bem como no atual progresso das Ciências
Físicas e Psicológicas. Tentamos recuperar o pensamento primário que
fundamentava a vida e os trabalhos de alguns dos maiores e mais
significativos pensadores do Ocidente, desde o gregos até os dias de hoje. Esta página é dedicada à minha querida, e mais que amiga, Simone Lage.
Índice
Sócrates e a descoberta de que o homem é a sua psyché
Platão e a descoberta da Metafísica
O Orfismo e sua Importância na Filosofia
Jesus e a Sua Mensagem
Plotino e a Neoplatonismo
Os Druidas e sua Doutrina da Imortalidade da Alma
A Reencarnação em Orígenes de Alexandria
O Poder do Mito
A Igreja Católica e Os Grandes Movimentos Heréticos: Os
Cátaros e os Templários. Os Grandes Místicos Medievais: Hildegard von Bingen e Mestre
Eckhart
Giordano Bruno: A Metafísica do Infinito
Descartes: a Filosofia da Razão
O Movimento Romântico Alemão
Kierkegaard e o Nascimento do Existencialismo
Allan Kardec e o Espiritismo
A Física Moderna: Uma Nova Visão de Mundo
Carl Gustav Jung e a Psicologia Analítica
Visão de Mundo, Paradigmas e Comportamento Humano Apresentação
A grande insatisfação existencial das pessoas nos dias de hoje parece
mostrar claramente que temos de reencontrar novamente um significado mais
humano para nossas vidas. Reencontrar o encanto que tínhamos ao ver o
nascer do sol ou o vôo de um beija-flor, quando então experimentávamos uma
compreensão intuitiva que nos preenchia de um certo encanto estético e
emotivo muito além do que nos é dado pelo quadro reducionista da ciência
atual com o seu processo racionalista e lienar de "entendimento" das
coisas. Através da História, em vários lugares e em várias épocas, homens e
mulheres - gigantes na alma e humildes, muitas vezes, na sua apresentação -
nos deixaram exemplos de vida e nos indicaram caminhos para uma vivência
harmônica entre o eu individual e o meio em que se vive, quer seja natural, quer seja social. Caminhos que, se certamente foram escolhas pessoais deles

para sua maturação espiritual, certamente nos servem como referência, como
faróis a dizer: cuidado com algumas pedras no caminho.... Também nos
mostraram que a vida pode ser uma aventura significativa quando assumimos a
inicativa de nos descobrirmos como indvíduos únicos e, ao mesmo tempo, irmãos de uma grande família universal. Acredito que hoje já não se faz necessário a busca
"gurus" para que nos
iniciemos na busca da auto-descoberta, ou, como diria Jung, para a
individuação. Basta a vontade firme e o desejo do autoconhecimento para
desenvolvermos a sensibilidade para encontrar as informações que nos façam
crescer. No fundo, o nosso desenvolvimento psicológico é uma obra só nossa. Mas isso não quer dizer que tenhamos de fazer o caminho a sós. Precisamos
sim de companheiros e amigos de ideais. É sempre bom termos alguém com quem
copartilhar idéias afins, com o olhar voltado a um mesmo objetivo. Hoje o conhecimento humano está disseminado e está, em parte, mais
acessível, já não se encontrando tão rigidamente submetido nas mãos de
poucos - embora o acesso às informações mais fundamentais para a maturação
da conscientização política, econômica e espiritual do homem ainda sejam
altamente manipulados, fiscalizados e sujeitos a um rígido controle pelas
classes dominantes, zelosas em manter seu poder sobre o pensar do povo - o
que faz do conhecimento, ou sua guarda, uma ferramenta de dominação. Podemos encontrar o pensamento fundamental de todas as principais correntes
filosóficas em livros ou, neste caso, em páginas feitas por pessoas de
todas as culturas e profissões, de modo altruísta, na internet. Devemos, também, ter cuidado ao nos pormos à caminho. Como nos fala
Clotilde Tavares, existem inúmeros falsos mestres que nos fazem olhar as
etrelas e buscar a transcendência mas que, ao mesmo tempo, não têm o mínimo
escrúplo de por as mãos ávidas em nossos bolsos, comercializando toda sorte
de quinquilharias e muletas psicológicas, e/ou se fazendo mestres de um
pseudo-conhecimento sobrenatural que se baseia em uma boa dose de
exploração material. Estes fazem parte do enorme contigente dos hipócritas
de todos os tempos. Na verdade, não há motivos para que se comercializem as
coisas santas, a não ser que se queira exercer algum tipo de poder sobre as
consciências humanas, como sempre o fizeram as instituições religiosas
hierarquizadas de todas as épocas. Nisso também podemos incluir a ciência, estreitamente vinculada ao universo econômico e ideológico do sistema
capitalista em que vivemos, e que, hoje, também pode ser considerada uma
espécie de religião institucionalizada, com seus cientistas-sacerdotes que
nos impõem sua forma de compreender o mundo como sendo a única válida -
forma este bem concorde com a ideologia e a forma de ser de uma sociedade
industrializada, massificada, alienada e mecanizada. Como disse Cristo, o Reino está dentro de nós, e apenas nós mesmos é que
temos a chave para adentramos em seus encantos. E é a partir de nosso reino
psicológico interno que transformaremos a nossa percepção e, assim, a
configuração da realidade externa.


Sócrates
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Sócrates, 470-399 a.C. Sócrates e a descoberta de que o homem
é a sua psyché
Sócrates nasceu em Atenas em 470/469 a. C. e morreu na mesma cidade em 399
a.C., condenado devido a uma acusação de "impiedade": ele foi acusado de
ateísmo e de corromper os jovens com a sua filosofia, mas, na realidade, estas acusações encobriam ressentimentos profundos contra Sócrates por
parte dos poderosos da época. Ele era filho de um escultor, chamado
Sofronisco, e de uma parteira chamada Fenarete. Desde a juventude, Sócrates tinha o hábito de debater e dialogar com as pessoas de sua cidade. Ao contrário de
seus predecessores, Sócrates não fundou uma escola, preferindo também realizar seu trabalho em locais públicos (principalmente nas praças
públicas e ginásios), agindo de forma descontraída e descompromissada (pelo
menos na aparência), dialogando com todas as pessoas, o que fascinava
jovens, mulheres e políticos de sua época. Segundo Reale & Antiseri (1990), depois de algum tempo seguindo os ensinos
dos naturalistas, Sócrates passou a sentir uma crescente insatisfação com o
legado desses filósofos, e passou a se concentrar na questão do que é o
homem - ou seja, do grau de conhecimento que o homem pode ter sobre o
próprio homem. Enquanto os filósofos pré-Socráticos, chamados de naturalistas, procuravam
responder à questões do tipo: "O que é a natureza ou o fundamento último
das coisas?" Sócrates, por sua vez, procurava responder à questão: "O que é
a natureza ou a realidade última do homem?"
A resposta a que Sócrates chegou é a de que o homem é a sua alma - psyché, por quanto é a sua alma que o distingue de qualquer outra coisa, dando-lhe, em virtude
de sua história, uma personalidade única. E por psyché Sócrates
entende nossa sede racional, inteligente e eticamente operante, ou ainda, a
consciência e a personalidade intelectual e moral. Esta colocação de
Sócrates acabou por exercer uma influência profunda em toda a tradição
européia posterior, até hoje. Ensinar o homem a cuidar de sua própria alma seria a principal tarefa a ser
desempenhada por ele, Sócrates, e por todos os filósofos autênticos. Sócrates acreditava vivamente ter recebido essa tarefa por Deus, como
podemos ler na Apologia de Sócrates, de Platão: "(...) é a ordem de Deus. E
estou persuadido de que não há para vós maior bem na cidade que esta minha
obediência a Deus. Na verdade, não é outra coisa o que faço nestas minhas
andanças a não ser persuadir a vós, jovens e velhos, de que não deveis
cuidar só do corpo, nem exclusivamente das riquezas, e nem de qualquer
outra coisa antes e mais fortemente que da alma, de modo que ela se
aperfeiçoe sempre, pois não é do acúmulo de riquezas que nasce a virtude, mas do aperfeiçoamento da alma é que nascem as riquezas e tudo o que mais
importa ao homem e ao Estado."
Segundo Reale & Antiseri (1990), um dos raciocínios fundamentais feitos por

Sócrates para provar essa tese é o seguinte: uma coisa é o instrumento que
se usa e a outra é o sujeito que usa o instrumento. Ora, o homem usa o seu
corpo como instrumento, o que significa que a essência humana utiliza o
instrumento, que é o corpo, não sendo, pois, o próprio corpo. Assim, à
pergunta "o que é o homem?", não seria lógico reponder que é o seu corpo, mas sim que é "aquilo que se serve do corpo", que é a psyché, a alma. Esta
mesma alma seria imortal e fadada a reencarnar tantas vezes fosse
necessárias até a alma se aperfeiçoar de tal forma que não precisasse mais
voltar a este planeta. O "daimonion" socrático
Entre as acusações contra Sócrates estava a de que ele estava introduzindo
novos daimonions, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sócrates diz: "A razão (...) são aquelas acusações que muitas vezes e em diversas
circunstâncias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de
divino ou demoníaco (...) uma voz que se faz ouvir dentro de mim desde que
eu era menino e que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer aquilo
que é perigoso e que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exortou a
fazer nada". Ou seja, o daimonion socrático era "uma voz" que lhe vetava
determinadas coisas, o que o salvou várias vezes de perigos e experiências
negativas (Reale & Antiseri, 1990, p. 95). Ela não lhe revelava nada, apenas vetava algumas coisas que lhe eram perigosas. O daimonion socrático
é algo muito específico que diz respeito muito particularmente à
excepcional personalidade de Sócrates, colocando-se no mesmo plano de um
tipo de mediunismo que se fazia presente em certos momentos de concentração
muito intensa e em momentos de reflexão bastante próximos aos
arrebatamentos de êxtase em que Sócrates (assim como ocorria com Buda, Plotino, Joana D'Arc, etc) mergulhava algumas vezes e que duravam
longamente, coisa da qual tanto Platão quanto Xenofonte falam
expressamente. Jostein Gaarder fala que as pessoas ainda hoje se perguntam por que
Sócrates teve de morrer. Então ele faz um paralelo entre Jesus e Sócrates: ambos eram pessoas carismáticas e eram consideradas pessoas enigmáticas
ainda em vida. Nenhum dos dois deixou qualquer escrito, e precisamos
confiar na imagem e impressões que eles deixaram em seus discípulos e
conteporâneos. Ambos eram mestres da retórica e tinham tanta autoconfiança
no que falavam que podiam tanto arrebatar quanto irritar seus ouvintes. E
ambos acreditavam falar em nome de uma coisa que era maior do que eles
mesmos. Ambos desafiavam agudamente os que detinham o poder na sociedade, apontando sem piedade as hipocrisias e falsos fundamentos em que se
assentavam para cometer toda sorte de abusos e injustiças. Foi isto que, no
fim, lhes custou a vida. Afinal, os que questionam são sempre perigosos
para os poderosos e pseudo-sábios de todas as épocas. A maneira como Sócrates fazia as pessoas conhecerem-se a si mesmas também
estava ligada à sua descoberta de que o homem, em sua essência, é a sua
psyché. Em seu método, chamado de maiêutica, ele tendia a despojar a pessoa
da sua falsa ilusão do saber, fragilizando a sua vaidade e permitindo, assim, que a pessoa estivesse mais livre de falsas crenças e mais

susceptível à extrair a verdade lógica que também estava dentro de si. Sendo filho de uma parteira, Sócrates costumava comparar a sua atividade
com a de trazer ao mundo a verdade que há dentro de cada um. Ele nada
ensinava, apenas ajudava as pessoas a tirarem de si mesmas opiniões
próprias e limpas de falsos valores, pois o verdadeiro conhecimento tem de
vir de dentro, de acordo com a consciência, e que não se pode obter
expremendo-se os outros. Até mesmo na atividade de aprender uma disciplina
qualquer, o professor nada mais pode fazer que orientar e esclarecer
dúvidas, como um lapidador tira o excesso de entulho do diamante, não
fazendo o próprio diamante. O processo de aprender é um processo interno, e
tanto mais eficaz quanto maior for o interesse de aprender. Só o
conhecimento que vem de dentro é capaz de revelar o verdadeiro
discernimento. Em certo sentido, dizemos que quando uma pessoa "toma
juízo", ela simplesmente traz à consciência algo muito claro que já estava
"dentro" de si. Assim, as finalidades do diálogo socrático são a catarse e
a educação para o autoconhecimento. Dialogar com Sócrates era se submeter a
uma "lavagem da alma" e a uma prestação de contas da própria vida. Como
disse Platão: "quem quer que esteja próximo a Sócrates e, em contato com
ele, põe-se a raciocinar, qualquer que seja o assunto tratado, é arrastado
pelas espirais do diálogo e inevitavelmente é forçado a seguir adiante, até
que, surpreendentemente, ver-se a prestar contas de si mesmo e do modo como
vive, pensa e viveu". Em seu método, ao iniciar uma conversa, Sócrates sempre adotava a posição
de uma pessoa ignorante, que apenas "sabe que nada sabe". E justamente por
usar esta afirmativa, ele forçava as pessoas a usarem a razão. Ele entrava
de tal forma na conversa, e de tal forma a dominava, que era capaz de
aparentar uma maior ignorância ou de mostrar-se mais tolo do que realmente
era. Seus discípulos mais fieis já sabiam que quando o opositor caia nesta
jogada, logo logo levaria um tombo tremendo quando o quadro se invertesse. E esta era a principal técnica do método de Sócrates: usar a ironia. Foi
assim que le expos muito das fraquezas do pensamento ateniense. Um encontro
com Sócrates podia signifcar o risco de expor-se ao ridículo. Mas as
pessoas que passaram por isto e conseguiram superar o choque do orgulho
ferido, indo até o fim no processo cartático, acabavam por extrair de si
mesmo a resposta em tudo lógica e compatível com os problemas expostos, dando-lhe a solução. O resultado é que o indivíduo sentia uma verdadeira
sensação de iluminação, de descoberta, de der dado à luz algo de valioso
que havia dentro de si, mas de que não tinha a mínima consciência. Foi
assim que Sócrates conquistou fervorosos discípulos. Mas se a pessoa
entregava-se ao orgulho ferido, tornava-se um inimigo feroz. E esta foi a

razão que lhe custou a vida. Bibliografia sugerida: "Sócrates" - Coleção Os Pensadores, Editora Abril,
São Paulo, 1987. "Platão" - Coleção Os Pensadores, Editora Abril, São Paulo, 1988. Gaarder, Jostein. - "O Mundo de Sofia", Companhia das Letras, São
Paulo, 1995. Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. - "História da Filosofia", Vol. I, Ed. Paulus, São Paulo, 1990.

Platão
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Platão e a descoberta da Metafísica
Platão, cujo verdadeiro nome era Aristócles, nasceu em Atenas, em 428/427
a.C., e lá morreu em 347 a.C. Platão é um nome que, segundo alguns, derivou
de seu vigor físico e da largueza de seus ombros (platos significa
largueza). Ele era filho de uma abastada família, aparentada com famosos
políticos importantes, por isso não espanta que a primeira paixão de Platão
tenha sido a política. Inicialmente, Platão parece ter sido discípulo de
Crátilo, seguidor de Heráclito, um dos grandes filósofos pré-Socráticos. Posteriormente, Platão entra em contato com Sócrates, tornando-se seu
discípulo, com aproximadamente vinte anos de idade e com o objetivo de se
preparar melhor para a vida política. Mas os acontecimentos acabariam por
orientar sua vida para a filosofia como a finalidade de sua vida. Platão tinha cerca de vinte e nove anos quando Sócrates foi condenado à
beber o cálice de cicuta (veneno fortíssimo). Ele havia acompanhado de
perto o processo de seu mestre, e o relata na Apologia de Sócrates. O fato
de Atenas, a mais iluminada das cidades-estados gregas, ter condenado à
morte "o mais sábio e o mais justo dos homens" - como falara mediunicamente
o oráculo de Apolo, em Delfos - lhe deixou marcas profundas que
determinariam as linhas mestras de toda a sua atividade de filósofo. Acredia-se que todas, ou uma boa parte da obra de Platão nos chegou
inteira. Além de cartas e da Apologia de Sócrates, Platão escreveu cerca de
trinta Diálogos que têm sempre invariavelmente Sócrates como protagonista. Nestas obras excepcionais, Platão tenta reproduzir a magia do diálogo
socrático, imitando o jogo de perguntas e respostas, com todos os meandros
da dúvida, com as fugazes e imprevistas revelações que impulsionam para a
verdade, sem, contudo, revela-la de modo direto. O motivo pelo qual sua
obra nos chegou praticamente intácta reside no fato de Platão ter fundado
uma escola que se tornou famosa, e que era dedicada ao herói Academos. Daí
o nome Academia. Platão foi o responsável pela formulação de uma nova ciência, ou, para ser
mais exato, de uma nova maneira de pensar e perceber o mundo. Este ponto
fundamental consiste na descoberta de uma realidade causal supra-sensível, não material, antes apenas esboçada e não muito bem delineada por aluguns
filósofos, embora tenha sido um pouco mais burilada por Sócrates. Antes de
Sócrates, era comum tentar-se explicar os fenômenos naturais a partir de
causas físicas e mecânicas. Platão observa que Anaxágoras, um dos
pré-socráticos, tinha atinado para a necessidade de introduzir uma
Inteligência universal para conseguir explicar o porquê das coisas, mas não
soube levar muito adiante esta sua intuição, continuando a atribuir peso
preponderante às causas físicas. Entretanto, se perguntava Platão, será que

as causas de caráter físico e mecânico representam as "verdadeiras causas"
ou, ao contrário, representam simples "concausas", ou seja, causas a
serviço de causas mais elevadas? Não seria o visível fruto de algo mais
sutil? Para encontrar a resposta às suas dúvidas, Platão empreendeu aquilo que
chamou simbolicamente de "a segunda navegação". A primeira navegação seria
o percurso da filosofia naturalista. A segunda navegação seria a orientação
metafísica de uma filosofia espiritualista, do inteligível. O sentido do
que seja essa segunda navegação fica claro nos exemplos dados pelo próprio
Platão. Se se deseja explicar por que uma coisa é bela, um materialista diria que
os elementos físicos como o volume, a cor e o recorte são bem proporcionais
e causam sensções prazerosas e agradáveis aos sentidos. Já Platão diria que
tudo isso seria apenas qualidades que evocariam uma lembrança de algo ainda
mais belo, vista pela alma no plano espirtiual, mas que não está acessível
ao plano físico. O objeto seria apenas uma cópia imperfeita, por ser
material, de uma "Idéia" ou forma pura do belo em si. Vejamos um outro exemplo: Sócrates está preso, aguardando a sua condenação. Por que está preso? A explicação
mecanicista diria que é porque Sócrates
possui um corpo corpulento, composto de ossos e nervos, etc, que lhes
possibilitam e lhe permitiram locomover-se e se deslocar por toda a vida, até que, por ter cometido algum erro, tenha-se dirigido à prisão, onde lhe
sejam postas as amarras. Ora, qualuer pessoa sabe a simplificação desse
tipo de argumento, mas é justamente assim que falam o
materialistas-mecanicistas até os dias de hoje. Mas este tipo de explicação
não oferece o verdadeiro "porquê", a razão pela qual Sócrates está preso, explicando apenas o meio pelo qual pode uma pessoa ser posta num cárcere
devido ao seu corpo. Explica o ato, descrevendo-o, e não suas causas. A
verdadeira causa pela qual Sócrates foi preso não é de ordem mecânica e
material, mas de ordem superior, da mesma forma que um computador não
executa um complexo cálculo matemático pela ação de seus componentes em si, mas devido a algo de ordem superior e mais abstrato: o seu programa, o
software. Sócrates foi condenado devido a um julgamento de valor moral
usado a pretexto de justiça para encobrir ressentimentos e manobras
políticas das pessoas que o odiavam. Ele, Sócrates, decidiu acatar o
veredicto dos juízes e submerter-se à lei de Atenas, por acreditar que isso
era o correto e o conveniente, pois ele era cidadão de Atenas, mesmo ciente
da injustiça de sua condenação. E, em conseqüência disto, dessa escolha de
ordem moral e espritual, ele, em seguida, moveu os músculos e as pernas e
se dirigiu ao cárcere, onde se deixou ficar prisioneiro. A segunda navegação, portanto, leva ao conhecimento de dois níveis ou
planos do ser: um, fenomênico e visível (a nível do hardware, como diríamos
em linguagem de computação); outro, invisível e metafenomênico, (a nível do

software), inteligível e compreensível pela razão e pela intuição. Podemos afirmar, como falam Reale & Antiseri, que a segunda navegação
platônica constitui uma conquista e assinala, ao mesmo tempo, a fundação e
a etapa mais importante da história da metafísica. Todo o pensamento
ocidental seria condicionado defintiviamente por essa "distinção" entre o
físico (o hardware) e o causal (o software, a ordem implicada que causa a
ordem explicada), tanto na medida da sua aceitação quanto de sua não
aceitação através da história. Se ela não é aceita, a pessoa que não a
aceita terá de justificar a sua não aceitação, gerando uma polêmica que
continuará dialeticamente a ser condicionada ao fato de que existe - ao
menos filosoficamente - algo que se chama metafísica. Só após a "segunda navegação" platônica é que se pode falar de material e
espiritual. E é à luz dessas categorias que os físicos anteriores a
Sócrates, e muitos físicos modernos, podem ser tachados e materialistas, mas agora a natureza não pode mais ser vista como a totalidade das coisas
que existem, mas como a totalidade das coisas que aparecem. Como diria o
Físico David Bohm, a ordem explícita é apenas conseqüência de uma ordem
implícita, superior e invisível. O "verdadeiro" ser é constituído pela
"realidade inteligente" e "inteligível" que lhe é transcendente. O Mito da Caverna
É o próprio Platão quem nos dá uma idéia magnifica sobre a questão da ordem
implícita e explícita no seu célebre "Mito da Caverna" que se encontra no
centro do Diálogo A República. Vejamos o que nos diz Platão, através da
boca de Sócrates: Imaginemos homens que vivam numa caverna cuja entrada se
abre para a luz em toda a sua largura, com um amplo saguão de acesso. Imaginemos que esta caverna seja habitada, e seus habitantes tenham as
pernas e o pescoço amarrados de tal modo que não possam mudar de posição e
tenham de olhar apenas para o fundo da caverna, onde há uma parede. Imaginemos ainda que, bem em frente da entrada da caverna, exista um
pequeno muro da altura de um homem e que, por trás desse muro, se movam
homens carregando sobre os ombros estátuas trabalhadas em pedra e madeira, representando os mais diversos tipos de coisas. Imaginemos também que, por
lá, no alto, brilhe o sol. Finalmente, imaginemos que a caverna produza
ecos e que os homens que passam por trás do muro estejam falando de modo
que suas vozes ecoem no fundo da caverna. Se fosse assim, certamente os habitantes da caverna nada poderiam ver além
das sombras das pequenas estátuas projetadas no fundo da caverna e ouviriam
apenas o eco das vozes. Entretanto, por nunca terem visto outra coisa, eles
acreditariam que aquelas sombras, que eram cópias imperfeitas de objetos
reais, eram a única e verdadeira realidade e que o eco das vozes seriam o
som real das vozes emitidas pelas sombras. Suponhamos, agora, que um
daqueles habitantes consiga se soltar das correntes que o prendem. Com
muita dificuldade e sentindo-se frequentemente tonto, ele se voltaria para
a luz e começaria a subir até a entrada da caverna. Com muita dificuldade e
sentindo-se perdido, ele começaria a se habituar à nova visão com a qual se
deparava. Habituando os olhos e os ouvidos, ele veria as estatuetas
moverem-se por sobre o muro e, após formular inúmera hipóteses, por fim
compreenderia que elas possuem mais detalhes e são muito mais belas que as

sombras que antes via na caverna, e que agora lhes parece algo irreal ou
limitado. Suponhamos que alguém o traga para o outro lado do muro. Primeiramente ele ficaria ofuscado e amedrontado pelo excesso de luz; depois, habituando-se,
veria as várias coisas em si mesmas; e, por último, veria a própria luz do sol refletida em todas as coisas. Compreenderia, então, que estas e somente estas coisas
seriam a realidade e que o sol
seria a causa de todas as outras coisas. Mas ele se entristeceria se seus
companheiros da caverna ficassem ainda em sua obscura ignorância acerca das
causas últimas das coisas. Assim, ele, por amor, voltaria à caverna a fim
de libertar seus irmãos do julgo da ignorância e dos grilhões que os
prendiam. Mas, quando volta, ele é recebido como um louco que não reconhece
ou não mais se adpata à realidade que eles pensam ser a verdadeira: a
realidade das sombras. E, então, eles o desprezariam.... Qualquer
semelhança com a vida dos grandes gênios e reformadores de todas as áreas
da humanidade não é mera coincidência. Bibliografia Sugerida

Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. - "História da Filosofia", vol. I, Ed. Paulus, São Paulo, 1990
Platão, Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, 1988.

O Orfismo e sua Importância na Filosofia
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Orfeu e o orfismo
Ao que tudo indica, Orfeu foi um poeta trácio de grande habilidade musical
e um místico de grande carisma, mas cujos traços históricos estão para nós
completamente perdidos, a não ser pelas lendas e mitos que nos chegaram a
seu respeito, transformando-o num semideus. Já no século VI a. C. o poeta
Ibico falava de "Orfeu de nome famoso", testemunhando a grande notoriedade
que Orfeu usufruia em toda a cultura helênica, e que só se explica pela
existência de um fundador carismático e pela difusão do seu movimento
religioso. Eurípedes, Platão, Heródoto, Aristófanes e Aristóteles nos
deixaram escritos sobre o orfismo, e sabemos o quanto Platão deve aos
mistérios órficos em sua filosofia, especialmente no que concerne à
doutrina da reencarnação. É bem provável que o homem Orfeu tenha tido uma
forte influência mística na cultura grega no início do século VI a.C. A religião pública na Grécia e os Mistérios Órficos
A religião exerceu uma profunda influência na gênese da filosofia grega, e, por conseqüência, na filosofia ocidental. Mas
quando se fala da religião
helênica, se faz necessário distinguir entre a religião pública, que teve
seu modelo na representação dos deuses e do culto que foi legado por
Homero, e adotada pela maioria da população pela sua simplicidade
explicativa dos fenômenos naturais e humanos,antropomorfizando-os, e a
chamada religião dos mistérios. Apesar de serem religiões com pontos em
comum, há importantes diferenças entre estas duas formas de religiosidade
(como, por exemplo, a concepção de homem, do sentido da vida e o destino
último da alma humana). Ambas as formas de religiosidade são fundamentais
para a gênese da filosofia grega, mas a segunda forma se destaca muito mais
nesta gênese que a primeira. Nem todos os gregos consideravam críveis ou aceitáveis os pressupostos da
religião pública, recheada de deuses bastante humanos. Por isso, em
círculos restritos, desenvolveram-se os chamados "mistérios", com elementos
da religiosidade oriental, tendo suas crenças mais logicamente enlaçadas e
seus próprios rituais reconhecidamente simbólicos e com forte conteúdo
arquetípico-psicológico. O orfismo é particularmente importante porque
introduz na civilização grega uma nova interpretação da existência humana
(Reale & Antiseri, 1990). Enquanto a concepção tradicional, desde Homero, considerava o homem com uma alma desconhecida, que se perdia na região do
Hades após a morte, quase como um fim total da existência humana, o orfismo
proclama a imortalidade da alma, sendo esta o que dá a persnonalidade do
homem, herdeira de uma história e de um trajeto evolutivo, sempre se
aperfeiçoando nesta e em inúmeras outras vidas, até que consiga se
assemelhar ao máximo a Deus. Os principais elementos da doutrina órfica são: a) No homem há um princípio divino, uma alma que caiu em um corpo para
corrigir uma imperfeição. b)Essa alma não só preexiste ao corpo como também
sobrevive a ele, estando destinada a reencarnar em corpos sucessivos até

que consiga depurar-se das imperfeições e dos erros que a fazem voltar ao
mundo. c)Com suas práticas e ritos simbólicos, o orfismo buscava despertar
no homem a compreensão destas verdades, ajudando-o a tomar consciência do
que e quem ele é, e motivando-o a tomar ânimo para ter o total controle de
sua vida, aperfeiçoando-se e pondo fim ao ciclo das reencarnações - temos
aqui, de alguma forma, um eco dos ensinos budistas. Conhecemos algumas máximas órficas, que nos chegaram através de fragmentos
encontrados em tabuinhas e em tumbas pertencentes a seguidores da doutrina. Algumas dessas máximas resumem muito bem o núcleo central de sua doutrina: Alegra-te,
tu que sofreste a paixão: antes, desconhecias o que era o
sofrimento. De homem, nasceste Deus!". "Feliz e bem-aventurado, serás Deus
ao invés de um mero mortal! De homem, nascerás Deus, pois és filho do
Divino!" De um modo geral, a mensagem órfica é a de que todos somos deuses, por herança divina, e deveremos voltar a estar junto de Deus. Sem o orfismo não se
explicaria a filosofia e a doutrina de Pitágoras, nem
a de Empédocles e, sobretudo, não se explicaria [1]Sócrates e boa parte do
pensamento de [2]Platão, bem como de toda a tradição que deriva de ambos. Bibliografia Sugerida
Reale, Giovanni.- "História da Filosofia Antiga" Vol. I Edições
Loyola, São Paulo, s/d. Reale, Giovanni & Antiseri, Dario.- "História da Filosofia" Vol.I Ed.
Paulus, São Paulo, 1990

Jesus
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
A Mensagem do Cristo
Em dezembro de 1945, alguns felás (tipo de beduíno egípcio) deslocavam-se
com seus camelos por perto de um rochedo chamado Jabal al-Tarif, que
margeia o rio Nilo, no Alto Egito, não muito longe da moderna cidade de Nag
Hammadi. Eles estavam procurando um tipo de fertilizante natural na área, chamado sabaque. No sopé do Jabal al-Tarif começaram a cavar em torno de uma pedra
que caíra
no talude, e, sem esperarem, encontraram um jarro de armazenagem com um
recepiente selado na parte superior. Um dos felás, chamado Muhammad Ali
Samman, quebrou o jarro com uma picareta na esperança de encontrar algo
valioso, talvéz um pequeno tesouro. Deve ter ficado um tanto decepcionado
ao ver que, ao invés de ouro, no jarro só havia fragmentos de papiros. Ele
havia descoberto treze livros de papiro (códices), a que hoje chamamos de a
biblioteca de Nag Hammadi. Além de outras obras valiosas, entre estes papiros estava algo muito
interessante: o chamado Evangelho de Tomé, que é uma coletânea de sentenças
de Jesus que se julga ter sido compiladas por Judas Tomé, O Gêmeo. Antes desta descoberta excepcional, os estudiosos dos evangelhos já
conheciam algumas referências dos pais da Igreja referentes a um documento
denominado Evangelho de Tomé. Cirilo de Jerusalém, em suas Catequeses 6.31
afirmava que o Tomé que escreveu este Evangelho não era um seguidor de
Jesus, mas um maniqueu - um maniqueísta, portanto, seguidor gnóstico e
místico de Mani, mestre herético do século III. Além desses testemunhos dos
chamados padres da Igreja, temos fragmentos de três papiros gregos -
encontrados num monte de lixo em Oxirronco, atual Behnesa, no Egito -, publicados em 1897, e que contêm sentenças de Jesus quase idênticas aos
encontrados no Evangelho de Tomé de Nag Hammadi, escrito em língua copta. Estes papiros eram representantes de edições gregas do Evangelho de Tomé. Ao contrário
dos outros evangelhos, quer sejam canônicos ou apócrifos, o
Evangelho de Tomé não expõe em nada narrativas sobre a vida de Jesus de
Nazaré, mas atém-se especificamente às sentenças proferidas por Jesus. Entre elas, destaco a que segue: Jesus disse: "Se seus líderes vos dizem: 'Vejam, o Reino
está no céu', então saibam que os pássaros do céu os precederão, pois já vivem no
céu. Se lhes disserem: 'Está no mar, então o peixe os precederá pelo
mesmo motivo. Antes, descubram que o Reino está dentro de vocês, e
também fora de vocês. Apenas quando vocês se conhecerem, poderão ser
conhecidos, e então compreenderão que todos vocês são filhos do Pai
vivo. Mas se vocês não se conhecerem a si mesmos, então vocês vivem na
pobreza e são a pobreza". Evangelho de Tomé, logia 3.
É notável a semelhança entre o conteúdo desta sentença de Jesus com a
máxima adotada por [1]Sócrates, e que emprestada do pórtico do Templo
de Apolo, em Delfos: "Homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás o

universo". De igual forma, outro grande mestre do espírito humano, Buda, dizia que só o conhecimento de si levava à iluminação, do mesmo
modo que Láo-Tsé dizia que apenas o conhecimento da ordem dentro de si
levava à compreensão do Tao. Da mesma forma, os [2]órficos falavam do
processo evolutivo como uma tomada de consciência de que somos deuses
por sermos filhos de Deus. Apenas não temos nem a percepção, nem a
consciência disto. Segundo Stephen Mitchell, quando Jesus falava do Reino de Deus, ele de
fato não estava dizendo ou profetizando uma perfeição fácil e livre de
perigos, como interpretaram ao seu bel-prazer alguns doutores da
teologia, ou como ainda o fazem alguns líderes de religiões
institucionalizadas. Ele estava falando de um estado de espírito, como
fica bem demonstrado em muitas de suas parábolas, como, por exemplo, a
da mulher que perde uma moeda e revira a casa inteira em sua busca e, quando a acha, sai a correr chamando os vizinhos e dizendo: alegrem-se
comigo, pois achei a moeda que havia perdido. Ela encontrou algo
aparentemente muito simples, algo que sempre esteve bem perto dela... Este estado de espírito pode ser tão simples e poético quanto a
revoada de pássaros no céu ou os lírios no campo. Ele não está fora, mas fora e dentro de nós. Tudo está ligado a tudo. Tudo é um:"Na casa
de meu Pai há muitas moradas". Todos nascemos com um pouco da
percepção feliz deste Reino e a mantemos enquanto a cultura - o meio -
não o retira de nós, corrompendo-nos. "Se vos fizerdes como uma
criança, entrarás no Reino dos Céus". Os que se envolvem em demasia
com as preocupações materiais têm certa dificuldade em entrar neste
estado de espírito, pois são possuídos por suas posses que exigem um
esforço considerável para serem mantidas e estão tão encarcerados em
seus poderes e em sua fantasia social, que, para eles, é quase
impossível desapegarem-se delas e terem a liberdade de SEREM longe do
peso de demonstrar TEREM. "Não que seja fácil para qualquer um de nós. " Escreve Stephen Mitchell. "Mas, se precisarmos avivar a memória, sempre poderemos nos
sentar ao pé de nossas criancinhas. Elas, como
ainda não desenvolveram uma noção muito firme do passado e do futuro, sabem aceitar de peito aberto e com plena confiança a infinita
abundância do presente". Para elas, o tempo corre de forma diferente
que para o adulto. Nossa realidade é moldada pelas nossas crenças. Se tememos ao relógio, se nos apegamos ao passado e se nos apavoramos com o futuro, nunca
poderemos viver o presente. De certa forma, entrar no Reino de Deus
significa sentir que existe algo que cuida de nós a cada instante, da
mesma forma como alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo, com infinito amor. Algo que Jesus chamava de Abba - Papai. Um pai bem
diferente do patriarcal e vingativo Deus dos Exércitos do Antigo
Testamento, mas que é muito presente em algumas das igrejas cristãs
atuais. Talvez Abba seja uma maneira carinhosa de Jesus de se referir
a um Deus Pai-Mãe... "Qual de vós, se vosso filho vos pedir pão, lhe
dará uma serpente, ou um escopião se vos pedir peixe? Pois se vós, que
sois imperfeitos sabeis o que dar de bom para vossos filhos, quanto
mas vosso Pai, que está nos céus!"
Todos os Mestres da humanidade, em todas as épocas e lugares, sempre
apontaram para a necessidade de voltarmos a viver o presente como
única realidade concreta da alma no mundo: "Não vos preocupeis com o
dia de amanhã, pois a cada dia basta a sua própria preocupação....", disse Jesus. As passagens do Evangelho em que Jesus fala de um Reino dos Céus no
futuro não podem ser autênticas transcrições do pensamento do Cristo, a não ser, como fala Stephen Mitchell, que Jesus tivesse dupla
personalidade, como se fossem torneiras de água quente e fria. Elas
estão muito impregnadas de um espírito de vingança e de uma
agressividade apocalíptica de mesmo aspecto como encontrado nos textos

dos profetas do Antigo Testamento. Estas passagens de um reino externo
por vir, muito provavelmente, poderiam ter sido inseridas no Evangelho
por discípulos, ou por discípulos de discípulos. Já que Jesus não
deixou nada escrito, tudo o que dele sabemos é de segunda ou terceira
mão. Estes discípulos ainda estavam cheios da tradição judáica. Passagens que falam do Reino de Deus como algo que virá no futuro
existem aos borbotões nos profetase e nos escritos apocalípticos
judáicos escritos sob o jugo romano dos primeiros séculos de nossa
era, bem como na maioria dos textos geralmente muito partiarcais
atribuídos a Paulo pela Igreja primitiva. Elas são repletas de uma
esperança passional, exclusivista, e, como apontou Niestzsche, de um
amargurado ressentimento contra "eles" (os poderosos políticos e
econômicos, os ímpios). Mas tudo isso é fruto de uma interpretação
intelectual e passional das reformas sociais propostas por Jesus, que, em toda a sua vida, aboliu todo tipo de distinção de castas e de
origens, devido à sua consciência de irmandade entre todos. Os
discípulos dos discípulos tiveram uma noção apenas intelectual disto e
não da vivência do estado de espírito ou da [3]consciência cósmica
vivenciada por Jesus. Uma vivência que foi plenamente vivida por um
Francisco de Assis ou por um Mahatman Gandhi, e que é profundamente
revolucionária. Stephen Mitchell fala, com muita propriedade, que o Reino de Deus "não
é algo que irá acontecer, porque não é algo que, temporalmente
falando, possa acontecer. Não pode surgir num mundo" como se fosse uma
invasão externa - "O meu Reino não é deste mundo" - "é uma condição
que não tem plural, mas apenas infinitos singulares. Jesus falava das
pessoas 'entrando' no Reino, e que as crianças já estavam nele (...). Se pararmos de olhar para frente e para trás, foi o que ele nos disse, poderemos nos dedicar
a buscar o Reino que está bem debaixo de nosso
pés, bem diante de nosso nariz; e, quando o encotrarmos, alimentos, roupas e outras coisas necessárias também nos serão dados, tal como o
são às aves e aos lírios. (...) Este reino é como um tesouro enterrado
num campo que é nossa alma; é como uma pérola de grande valor; é como
voltar para casa. Quando o encontramos, encontramos a nós mesmos, tornamo-nos donos de uma riqueza infinita (...)", é por isto que todos
os místicos falam em perderem-se em Deus. "Eu e o Pai somo um", pois
nossa personalidade é apenas uma máscara mutável, mas o self, como
diria [4]Jung, é a parte mais próxima do divino, em nós. Vivenciando o
Deus que há em nós, poderemos reconehcer o Deus que há no outro e, assim, poderemos viver, naturalmente, devido à nosso grau de
consciência, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. O verdairo Jesus é o Jesus do Sermão da Montanha, o Jesus entre as
crianças, o Jesus que admitia mulheres, publicanos e leprosos entre
seus seguidores, um homem que se esvaziou dos desejos mundanos comuns, esvaziou-se de doutrinas e regras - todos os inúteis aparatos
intelectuais - e se deixou preencher pela vida, como o demonstram as
suas parábolas, onde o reino é o campo, é a festa de núpcias, é a rede
lançada ao mar... Porque se desapegou de tudo o que é egóico e passou
a sentir o TODO - o Tao, como diria Lao-Tsé -, ele deixou de ser
meramente alguém, para ser também todos, todo o mundo: "Tudo isso que
fizeres a um destes pequeninos, fareis a mim". Porque admitiu Deus em
sí, sua personalidade é como um ímã que atrai a todos. Quanto mais se
aproximam dele, mais sentem a pureza de seu coração. Um coração que é
como um quarto claro e espaçoso: "Vinde a mim todos vóis que estais
aflitos e sobrecarregados, e eu vos aliviarei". As pessoas ou as
possibilidades abrem a porta e entram. O quarto recebe a todas o tempo
que quiserem, sem impor regras além da do amor. É bem diferente de um
coração cheio de pertences, de crenças e de certezas, cujo dono

senta-se atrás da porta trancada com uma arma em punho, como o fazem
as Igrejas de todas as denominações. Jesus também reconhecia as verdades espirituais que foram ditas pelos
outros Grandes Mestres da humanidade, em todas as épocas. É assim que
se explica as grandes similaridades entre seus ensinamentos e os de
[5]Buda, por exemplo, que nasceu mais de 500 anos antes de Cristo. Jesus enfatizava a importância da evolução e da transformação pessoal: "Não te maravilhes de
eu ter dito: Necessário vos é nascer de novo
(João, 3. 3-7)". Reconhecia a imortalidade da alma: "De fato, Elias há
de vir e restabeler todas as coisas. Eu porém vos digo: Elias já veio
e fizeram dele o que quiseram! E os discípulos compreenderam que era
de João Batista de quem ele falava" (Mateus, 17, 11-13; Marcos, 9, 11-13). Bem, como Elias não voltou numa carruagem celeste ao tempo de
Jesus, e como "os discípulos compreenderam que era de João Batista de
quem ele lhes falava", Elias e João têm de ser a mesma pessoa... Ora, todos conheciam a história do nascimento de João - aliás, o anjo que
aparece a Zacarias diz que o menino "irá adiante do Senhor no espírito
e no poder de Elias (Lucas, 1. 17)". Sendo assim, a única possibilidade real de Elias ter retornado à terra
como João era a de que ele reencarnou como João, conhecido como O
Batista, primo de Jesus... Esta idéia na reencarnação, conhecida ao
tempo e na região de Jesus com o nome confuso de ressurreição (Mateus, 16.13-15), era familiar a inúmeros sistemas filosóficos da era
helenística, e é encontrado em Pitágoras, Sócrates e Platão, sendo
retomado por Amônio Sacas e por seu discípulo Plotino e, já na era
cristã, por [6]Orígenes de Alexandria, um dos pais da Igreja. Esta
crença permaneceu mais ou menos atuante durante os primeiros séculos
do cristianismo até que os interesses temporais e políticos a tornaram
numa crença herética. Cristo também solapou a proibição de Moisés de
não invocar os mortos, pois sabemos de seu encontro visível com dois
mortos (Mateus, 17. 14-21; Lucas 9. 37-43) - o próprio Moisés, e Elias
(João já havia sido degolado a esta época) -, no fenômeno da
transfiguração... É interessante notar o comportamento de algumas
seitas de base fundamentalista que aceitam tudo ao pé da letra que
está escrito na Bíblia mas, quando chegam nestas partes dos
Evangelhos, INTERPRETAM o que está escrito da forma que mais lhes
convenha para negar a realidade destes fatos, isso quando não invocam
o seu maior aliado em questões que os embaraçam, ou seja, o "demônio", para dizer que estão errados os outros, os que aceitam a reencarnação
ou a vida após a morte e que estão possuidos do espírito do mal, e não
eles, detentores de todo o saber sobre o absoluto.... "Ai de vós, doutores da lei..." pois estão plenos de orgulho, e são como "Cegos a
guiar outros cegos". Enfim, ainda citando Mitchell, Jesus foi o maior exemplo de quão longe
pode o homem chegar. Ele soube viver plenamente entre os dois mundos: o material e o espiritual. Soube dar a César o que é de César e a Deus
o que é de Deus. Ele foi uma árvore. Como fala Mitchell, a árvore não
tenta arrancar da terra as suas raízes e plantar-se no céu, nem
tampouco estende suas folhas para baixo, junto à lama. Ela precisa
tanto do solo quanto da luz, e sabe a direção de cada coisa. Exatamente porque enterra as suas raízes na terra escura, é que pode
sutentar suas folhas no alto para receber a luz do sol... É pena que
Jesus de Nazaré seja frequentemente incompreentendido pelos Cristãos. Bibliografia sugerida
Mateus, Marcos, Lucas e João. "O Novo Testamento : Os 4 Evangelhos", diversas editoras
Meyer, Marvin. "O Evangelho de Tomé". Ed. Imago, Coleção Bereshit, Rio

de Janeiro, 1993
Mitchell, Stephen. "O Evangelho Segundo Jesus". Ed. Imago, Coleção
Bereshit, Rio de Janeiro, 1994
Benítez, J.J. "Operação Cavalo de Tróia" Ed. Mercuryo, São Paulo, 1988

Plotino
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Plotino e o Neoplatonismo

"A aspiração do homem não deveria limitar-se a não não ser culpado, mas a
ser Deus."
Plotino
Durante o período helenístico pós-Alexandre e, posteriormente, no período
Imperial Romano, desenvolveram-se várias escolas de filosofia. Entre elas
se destacam a dos cínicos, a dos estóicos e a dos epicuristas. Embora sejam escolas com características bem próprias, todas elas tinham por ponto de partida
os ensinamentos de Sócrates e/ou dos pré-socráticos Demócrito e
Heráclito. Mas, sem dúvida alguma, a mais importante, bela e original das
escolas do final da Antiguidade foi inspirada pelo génio de Platão. Por
isso ela é chamada de neoplatonismo, se bem que ela seja, de fato, um
aperfeiçoamento extraordinário do pensamento filosófico grego, com matizes bem mais originais e estruturadas do que tinha o pensamento platônico. De fato, a
escola neoplatônica nos parece extremamente atual, hoje em dia, devido às grandes similiridade entre a visão e concepção de mundo que
emergem de seus pressupostos filosóficos básicos e a atual visão de mundo
que surge da Física moderna, da Teoria Geral dos Sistemas e da
Psicologia Transpessoal. A figura mais importante do movimento
neoplatônico foi Plotino. Plotino nasceu em 205 da era cristã, em Licópolis, permanecendo quase toda
a juventude em Alexandria até 243 d.C., quando deixou a cidade para seguir
o imperador Jordano em sua expedição oriental. Morto Jordano no meio de sua
expedição, Plotino deicide ir à Roma, onde chegou em 244 d.C., fundando uma
escola, espelhando-se no exemplo de seu mestre e real modelador do
movimento neoplatônico: Amônio Sacas. Pelos escritos de um discípulo famoso de Plotino, Porfírio, sabemos que
Amônio foi um jovem brilhante, educado no seio de uma família cristã. Mas
depois que passou a se dedicar à filosofia, Amônio, por inclinação e
vontade próprias, se voltou novamente ao paganismo (talvez por achar mais
liberdade por buscar um caminho próprio de entendimento). Segundo Porfírio, ele tinha um alto conhecimento da filosofia de sua época, e, tal como mais
tarde faria Plotino, aprofundou-se de tal modo na vivência da filosofia ao
ponto de "ter uma experiência direta seja da filosofia praticada pelos
persas, seja daquela preponderante entre os hindus" (Porfírio, Vida de
Plotino). Outras referências a Amônio são encontradas em obras de
Teodoreto, que era um bispo cristão, Hiérocles de Alexandria e em Nemésio, bispo de Emesa. Amônio preferiu não se dar a público, rejeitando pertencer ao círculo
de
celebridades consagradas de seu tempo, talvez por sentir uma certa
instabilidade emocional no ar entre as escolas cristãs e pagãs, e, por isso
viveu de forma modesta e esquiva, afastando-se do burburinho do mundo e
cultivando a filosofia não apenas como um exercício de inteligência, mas
também de vida e de aperfeiçoamento espiritual, buscando uma percepção
direta, de cunho místico (no sentido transpessoal do termo), da

realidade, ou da essência, da existência, juntamente com alguns discípulos
mais indentificados com a sua mensagem. Tal como Sócrates e [7]Jesus, Amônio nada deixou escrito, mas sua doutrina foi levada adiante e
aperfeiçoada pelo gênio de Plotino, tal como, antes, a mensagem de Sócrates
foi perpetuada pelo testemunhos de Platão e Xenofonte. Amônio é apresentado
como um filósofo que, elevando-se acima das disputas e das plêmicas das
outras escolas filosóficas, soube conciliar Platão e Aristóteles e a
transmitir a seus discípulos, sobretudo a Plotino, uma filosofia livre do
espírituo de polêmica, muitas vezes resultante da mera vaidade pela disputa
intelectual. Conta-se que Plotino, chegando a Alexandria, teria ouvido a
todas as celebridadas da época, cristãs e pagãs, mas continuava
insatisfeito. Levado por um amigo a Amônio, depois de te-lo ouvido falar
apenas uma vez, teria dito: "Este é o homem que eu buscava!", e tornou-se
seu discípulo por onze anos. Não é à-toa que nos vêm à mente que a relação
entre Amônio e Plotino tenha alguma semelhança com a que existiu entre a de
Sócrates e Platão. Outros discípulos famosos de Amônio foram Orígenes, o
Pagão, Longino, Erênio e Orígines, o Cristão. Após fundar sua escola, em Roma, Plotino passou de 244 d. C. a 253 d. C. apenas ministrando lições, sem nada escrever,
por respeito a um pacto que
fizera com Erênio e Orígines, o Pagão, no sentido de não divulgar a
doutrina de Amônio. Mas logo seus colegas romperam o trato, permitindo a
Plotino escrever tratados, nos quais fixava suas lições. Todos os seus
escritos foram ordenados mais tarde por seu discípulo Porfírio, que os
dividiu em seis grupos de nove tratados, de onde veio o título Enéadas
(leia a tradução inglesa na internet: [8]The Six Enneads by Plotinus -
infelizmente, estes textos magníficos não foram traduzidos ainda para o
português), pois, em grego, nove se escreve ennea. Estes escritos chegaram
integralmente até nós, por sorte, e eles são, juntamente com os diálogos
platônicos e os escritos esotéricos de Aristóteles, uma das mais elevadas e
sublimes mensagens filosóficas da Antiguidade. Através deles, podemos
perceber o grau de profundida espiritual do pensamento de Plotino, intensamente carregado de imagens poéticas, onde vemos lindamente
explicadas fenômenos tais como a saída da alma do corpo (projeção), a
análise do Uno (holos), como e porque existem um mundo físico e um outro
espiritual, etc. Plotino possuia um carisma especial, e gozou de enorme prestígio em sua
época. E seu fascínio era tal que chegou a exercer uma profunda influência
sobre a própria teologia cristã, como sabemos pelos testemunhos de Eusébio, do bispo Teodoreto, etc. Suas lições eram assistidas até mesmo pelo
imperador Galiano e sua esposa Solonina, e foi tal o impacto que Plotino
exerceu sobre eles que o imperador chegou a examinar um projeto de fundar
uma cidade de filósofos que deveria se chamar Platonópolis. O projeto não
foi adiante devido às tramas dos cortesãos. Plotino morreu aos sessenta e cinco anos, em 270 d. C. Suas últimas
palavras ao médico Eustóquio foram: "Procurai sempre conjugar o divino que
há em vós com o divino que há no universo". Segundo Reale & Antiseri, a escola de Plotino não se assemelhava a nenhuma

das escolas filosóficas anteriores: Platão havia fundado a Academia para a
formação de homens que pudessem renovar o Estado; Aristóteles havia fundado
o Liceu para organizar e sistematizar a busca do saber; Epicuro havia
fundado seu movimento visando dar aos homens a paz e a tranquilidade da
alma. Já a escola de Plotino visava ensinar aos homens um modo de entrarem
em contato direto com uma realidade mais abrangente, e reunir-se com o
divino, de uma forma que hoje chamaríamos de uma experiência direta de
cunho [9]transpessoal. Ele dizia que o mero conhecimento intelectual pouco
será diante da certeza, da experiência direta das realidades
supra-sensíveis. Estas possuiam uma riqueza e uma força transformadora da
percepção humana que dificilmente poderiam ser posta em palavras. Aliás, isto é também o que dizem todos os grandes e verdadeiros místicos, santos e
pensadores da humanidade, como [10]Mestre Eckhart, São Juan de La Cruz, etc. O fato é que, tal como ocorre em algumas formas de psicoterapia, notadamente a psicologia
junguiana e as abordagens existenciais, há fatores
significativos em nosso desenvolvimento psíquico que se colocam como
indefiníveis, mas altamente significativas a nível intuitivo, já que termos
abstratos não são suficentes para descreve-los. Enquanto para a mioria das
pessoas, em nossos dias, a única abordagem compreensível da realidade
baseia-se na definição de tudo através de conceituações literais, lineares, racionais e impessoais, algumas outras redescobrem que o universo intuitivo
pode ser tão ou mais abrangente quanto este causal universo racional. Entre
estas pessoas podemos citar Albert Einstein e [11]Carl Gustav Jung. Aliás, Jung julgava ser a intuição e o sentimento faculdades indispensáveis para
uma vivência adequada da psique, pois é apenas através de todos os seus
elementos (pensamento, sentimento, sensação e intuição) que podemos tentar
entendê-la. As dificuldades que a pessoa moderna encontra ao tentar
compreender a verdadeira abordagem "mística" (não o fácil e simplório
misticismo que vemos sendo vendido a torto e a direito em cada esquina e
nas bancas de revistas, mas o real misticismo que vem de dentro da alma)
baseia-se no fato de que, como reação à tendência altamente introvertida, supersticiosa e ao obscurantismo da Igreja medieval, o desenvolvimento
científico ocidental recente enfatizou excessivamente o pensamento objetivo
abstrato, linear e racional. Este desenvolvimento preocupou-se
exclusivamente com a utilização prática de objetos externos e necessidades
externas e, em nossos dias, culminou no extremo racionalismo lógico e
impessoal de nossa sociedade. Assim, a capacidade de sentir e a de intuir
não recebem valor ou não são levadas em consideração; os sentimentos são
até mesmo considerados como algo dispensável, e as intuições são vistas com
desconfiança. Esta é uma abordagem que já vem demonstrando ser falha há
muito tempo, já que não é capaz, entre outras coisas, de compreender a
motivação básica do comportamento moral do ser humano, por exemplo, que se
baseia em alicerces emocionais. Estas áreas até podem ser racionlaizadas, mas a razão em si dificilemente as atinge, pois se assim fosse os

cientistas já teriam solucionados problemas como a violência, o suicídio, a apatia, a depressão (que hoje já virou epidemia) e outros males da alma. Os
apelos racionais são pouco eficientes quando comparados aos emocionais. Nossa cultura é voltada para a lógica, mas, ao lidar com problemas mais
profundos, esta mesma lógica é incapaz de nos oferecer respostas adequadas à compreensão da vida e de seus mistérios. Por que, então, negarmos como
fantasias ou irrealidades os fenômenos místicos? Talvez o estado de vigília
- considerado o estado pradão normal - seja apenas um de vários níveis de
consciência possível ao psiquismo humano. Para maiores detalhes, veja a[12]
Psicologia Transpessoal.
A Mensagem de Plotino

Plotino, segundo Jostein Gaarder, via o mundo fenomênico e humano como algo
que está entre dois polos: Numa extremidade está o divino, de onde tudo vem
e para onde tudo vai, ao qual ele chamava de Uno. Plotino abraçava uma
concepção [13]holística do universo (é pena que a palvra holismo esteja, hoje em dia, misturada com uma falácia de lixo pseudo-místico, que lhe
tiram o signficado real). Às vezes Plotino chamava o Uno de Deus. Na outra
extremidade estaria aquilo que Plotino chamava de reino das sombras, onde
apenas uma fração ínfima da luz divina chegava. Mas Plotino usava estas
metáforas apenas como uma figuração didática. Ele dizia, por exemplo, que
estas trevas não tinham uma existência concreta. Elas eram apenas a
ausência momentânea da Luz Divina, como mais tarde [14]Mestre Eckhart diria
que a matéria era a condensação de algo espiritual. Assim, sendo este
extremo apenas ausência de luz, as trevas não são. Elas apenas estão na
escuridão. A única existência real é a existência da odem implícita que
causa o mundo fenomênico mutável. Assim, só Deus é o real. Mas, assim como
uma fonte de luz pouco a pouco se perde na escuridão, também podemos
imaginar um lugar onde os raios divinos chegam muito fracos, o que Plotino
identificava com a matéria. Mas até mesmo a matéria possui um pouco da luz
divina. Sabemos hoje em dia, pela Física, que a matéria nada mais é que uma
condensação de algo mais sutil: a nergia. Eis um belo resumo das analogias poéticas da obra de Plotino (e, por
ligação, de Amônio Sacas) dada por Jostein Gaarder: "Imagine uma enorme
fogueira creptando no meio da noite. Do meio do fogo saltam centelhas em
todas as direções. Numa amplo círculo ao redor do fogo a noite é iluminada, e a alguns quilômetros de distância ainda é possível ver o leve brilho
desta fogueira. À medida que nos afastamos, a fogueira vai se transformando
num minúsculo ponto de luz, como uma lanterna fraca na noite. E se nos
afastarmos mais ainda, chegaremos a um ponto em que a luz do fogo não mais
consegue nos alcançar. Em algum lugar os raios lumiosos se perdem na noite
e se estiver muito escuro não vamos enxergar nada. Nesse momento, contornos
e sombras deixam de existir". "Agora imagine a realidade como sendo esta
enorme fogueira. O que arde é Deus - e as trevas que estão lá fora são a

matéria fria, onde a luz está fraca, da qual são feitos homens e animais. Junto a Deus estão as idéias eternas, as causas de todas as criaturas. Sobretudo, a
alma humana é uma 'centelha do fogo'. Mas por toda a parte na
natureza aparece uma pouco desta luz divina. Podemos vê-la em todos os
seres vivos; sim até mesmo uma rosa ou uma campânula possuem um brilho
divino. No ponto mais distante do Deus vivo está a matéria inanimada". "Digo que tudo o que vemos tem um pouco do mistério divino. Podemos ver o
brilho desta alguma coisa num girassol ou numa papoula. Percebemos um pouco
mais deste insondável mistério numa borboleta que pousou num galho, ou num
peixinho dourado que nada no aquário. Mas o ponto mais próximo em que nos
encontramos de Deus é dentro de nossa própria alma. Só lá é que podemos nos
re-unir com o grande mistério da vida. De fato, em alguns raros momentos" -
como falam [15]Jung e [16]Maslow - "podemos sentir que somos, nós mesmos, este mistério divino". O psicólogo americano Abraham Maslow fez exaustivos
estudos provando a existência destas experiências culminantes, frequentemente impossíveis de serem expressas em palavras sem que se percam
grande parte de sua força extraordinariamente bela e luminosa, e o onde a
sensação de íntimo encontro com algo transcendete é o leitmotiv dominante. As imagens que Plotino usa, e que Jostein Gaarder acabou de resumir, nos
remetem ao mito da caverna de [17]Platão. Mas enquanto Platão é dualista, distinguido de forma estanque a oposição entre o espírito e a matéria, Plotino nos
aponta para a realidade de que o isto está também ligado ao
aquilo (como também falava Buda), que o universo é uma imensa rede de
relações onde tudo tem sua razão de ser no conjunto, no holos. Tudo está
ligado a tudo, e tudo é Um, pois tudo concorre para o andamento da obra de
Deus. Até mesmo as sombras têm uma tênue parte desta "Unidade"
(([18]holismo)). Em alguns momentos de sua vida, Plotino experimentou a vívida sensação de
unir, fundir sua alma com Deus. Em nosso século, Abraham Maslow fez uma
enorme pesquisa para provar que as pessoas mais saudáveis e carismáticas
experimentaram, pelo menos uma vez na vida, uma espécie de experiência de
pico (as Peak Experiences de Maslow) onde parece que as divisões
convencionais do intelecto humano parecem perder todo o sentido, e a pessoa
sente-se plena de uma paz e de um contato mais íntimo com algo
transcendetal. Chamamos a este tipo de experiência de experiência mística. Plotino, porém, como sabemos, não foi único a viver essa experiência. Como
nos fala Jostein Gaarder, pessoas de todas as culturas, em todos os tempos, têm relatado experiências semelhantes. Hoje o estudo dessas experiências é
feito pela [19]Psicologia Transpessoal. E um ponto básico destes relatos é
o de que, embora ocorram variantes na descrição desses fenômenos - devido
ao pano de fundo cultural e às crenças do sujeito -, esses relatos têm
muitos e supreendentes pontos em comum. Misticismo
Em praticamente todos os relatos sobre os chamados êxtases místicos, desde Plotino (e mesmo antes dele) até os dias de hoje
com os
pacientes/clientes da psicoterapia transpessoal, o que vemos é uma
espécie de união íntima com algo que transcende nossos conceitos de

realidade, que é difícil de por em palavras. Na nossa cultura cristã -
embora o próprio Cristo tenha relatado muitas vezes que ele se sentia
um com o Pai, de dizer que "vós sois deuses" e de que "O Reino está em
vós" - o padres, pastores e teólogos vários nos inculcam que Deus fez
o mundo sem que se envolvesse com o mundo, ou seja, que há um abismo
entre Deus e sua criação. Deus teria feito as coisas e estaria apenas
observando o andamento do drama universal, às vezes interferindo
momentâneamente em algo, nos chamados milagres. Mas no oriente, especialmente no budismo e no taoísmo, e no ocidente, nas religiões
originais dos celtas e gauleses (druidas), bem como em alguns de
nossos índios da América do Norte e do Sul, em em todos os místicos de
qualquer religião, o que se vivencia é uma sensação de união, onde
este abismo é desconhecido (veja-se os relatos de Teresa D'Ávila e
Juan de la Cruz). O que ele - ou ela - conhece é uma elevação a Deus
(Gaarder, 1995; Grof, 1988; LeShan, 1994). [20]Carl Gustav Jung e [21]Joseph Campbell, bem como Plotino, nos
dizem que aquilo que chamamos comumente de "eu" não é nosso eu
verdadeiro, é apenas uma máscara, o ego. Em momentos de profundo amor
e/ou emoção ou paz podemos sentir rapidamente uma espécie de contato
com um eu mais profundo, que Jung chamava de self, e que alguns
místicos chamam de Cristo interior. Alguns vão ainda mais além, e se
sentem unidos ao próprio Deus, ou a uma "consciência cósmica" - termo
muito utilizado na Psicologia Transpessoal. O místico cristão Angelus
Silesius (1624-1677) assim se expressou sobre esta experiência: "A
pequena gota (o indivíduo) se transforma em mar quando chega até ele; e assim a alma se transforma em Deus quando é nele acolhida" (Gaarder, 1995, p. 154). Ora,
o ego pode se revoltar contra a possibilidade de
perder o controle e a pessoa se "perder a si mesma" nesta fusão íntima
com a consciência cósmica, mas, como muito bem disse Jostein Gaarder, esta pseudo-perda (na verdade o ego não é eliminado, continua a
existir) é algo muito insignificante diante daquilo que se ganha
(veja-se a parábola de Jesus sobre o semeador que encontra uma pérola
no campo, e vende tudo o que tem para comprar aquele campo). O místico
perebe que seu ego é apenas uma parte ínfima de si mesmo. Compreende
que o "eu" real é algo infinitamente maior. Compreende que faz parte
do universo inteiro, que é Deus. É por isso que os hindus dizem que o
Eu é o maior amigo do ego, mas o ego é o pior inimigo do Eu. Ora, como
nos diz Jostein Gaarder, se tememos nos perder enquanto indivíduos num
mundo que para nós é a realidade (o mundo comum), talvez sirva de
consolo e estímulo saber que um dia de qualquer forma termos de perder
este "eu cotidiano" de uma forma ou de outra. Por que não tentar
experimentar o verdadeiro Eu conseguindo-se se libertar do jugo de um
eu egóico? "Aquele que quiser conservar sua vida, perde-la-á, e aquele
que quiser perder sua vida, por amor à verdade, a ganhará", já dizia o
Cristo. Jostein Gaarder aponta com muita propriedade que encontramos vertentes
místicas em todas as grandes religiões do mundo. "E tudo o que os
místicos escrevem sobre suas experiências apresenta visíveis
semelhanças, a despeito de todas as diferenças culturais. Somente
quando o místico tenta uma interpretação religiosa ou filosófica para
a sua experiência é que se evidencia o pano de fundo cultural". (Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia, 1995, p. 155). Pelos trabalhos em Psicologia, especialmente
na Psicologia Junguiana, na Gestalt Terapia e nas terapias humanistas, e principalmente nas
Psicoterapias de orientação Transpessoal, sabemos que pessoas que não
pertencem a nenhuma religião têm passado e relatados experiências
místicas. Elas experiementam espontâneamente algo que chamam, entre
outras coisas, de "consciência cósmica" ou, como Freud chamava, de

"experiências oceânicas": neste momento, tempo e espaço e outras
limitações físicas não passam de figurações fantasiosas da percepção
humana. A única coisa que existe é a sensação de completude e
consciência de se estar imerso e lúcido de uma realidade maior e mais
bela. Bibliografia Sugerida
Campbell, Joseph, O Poder do Mito, Palas Athenas São Paulo, 1990 Porfírio. Vida de Plotino/Eneadas I-II, Editora Gredos, Madrid,
1996. Grof, Stanislav. Além do Cérebro - Nascimento, Morte e Transcendência em
Psicoterapia, McGraw-Hill, São Paulo, 1988 Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia Vol. I, Ed. Paulus, São Paulo, 1990 Gaarder, Jostein. O Mundo
de Sofia, Companhia das Letras, São Paulo, 1995 LeSham, Lawrence. O Médium, o místico e o físico, Summus Editorial, São Paulo, 1993

Veja também: [22]Os Grandes Místicos: Hildegard von Bingen e Mestre Eckhart

Os Druidas
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães

Os Druidas e sua Doutrina da Imortalidade da Alma

Os Druidas eram sacerdotes e sarcedotisas dedicados ao aspecto
feminino da divindade: a Deusa. Mas eles sabiam que todas as nossas
idéias a respeito da divindade eram apenas parciais e imperfeitas
percepções do divino. Assim, todos os deuses e deusas do mundo nada
mais seriam que aspectos de um só Ser supremo - qualquer que fosse a
sua denominação - vistos sob a ótica humana. Eles não admitiam que a Divindade pudesse ser cultuada dentro de
templos construídos por mãos humanas, assim, faziam dos campos e das
florestas mais suaves - principalmente onde houvessem antigos
carvalhos - os locais de suas cerimônias. Os druidas eram parte da
antiga civilização Celta, povo que se espalhava da Irlanda até vastas
áreas no norte da europa ocidental, incluindo a Bretanha Maior e Menor
(Inglaterra e norte da França) e parte do extremo norte da península
ibérica (Portugal e Espanha). Dominavam muito bem todas as áreas do
conhecimento humano, cultivavam a música, a poesia, tinham notáveis
conhecimentos de medicina natural, de fitoterapia, de agricultura e
astronomia, e possuiam um avançado sistema filosófico muito semelhante
ao dos [1]neoplatônicos. A mulher tinha um papel preponderante na
cultura druídica, pois era vista como a imagem da Deusa, detentora do
poder de unir o céu (o Deus, o eterno aspecto masculino) à terra (a
Deusa, o eterno aspecto feminino). Assim, o mais alto posto na
hierarquia sacerdotal druídica era exclusividade das mulheres. O mais
alto posto masculino seria o de conselheiro e "mensageiro" dos deuses, e, entre outas denominações, recebiam o nome de Merlin. Desde a dominação romana, a cultura
druídica foi alvo de severa
repressão, por isso hoje sabemos muito pouco sobre deles, apesar de o
próprio Júlio César reconhecer a corajem que os druídas tinham em
enfrentar a morte em defesa de sua cultura. Sabemos que eles possuiam
suficente sabedoria para marcar profundamente a literatura da época, criando uma espécie de áura de mistério e misticismo (e eles, de fato, eram místicos), sendo
reverenciados e respeitados como legítimos
representantes dos deuses. O Povo Celta, como um todo, construira-se dentro de uma tradição
eminentemente oral, ou seja, não usavam a escrita para transferir seus
conhecimentos fundamentais - embora conhecessem uma forma de escrita
chamada rúnica. Por isso após o domínio do cristianismo - que no
início foi bem recebidao pelos próprios druídas, quando o poder da
Igreja de Roma ainda não era suficientemente forte e corrompido ao
ponto de distorcer a mensagem básica de [2]Jesus de tolerância e amor
- perdemos muito desta maravilhosa civilização, e, juntamente, perdemos muito da história dos Druidas, e até hoje muita coisa
permanece envolta em mistério: sabemos que realmente eles existiram
entre o povo Celta, porém eles não eram propriamente originários desta
civilização, então de onde vieram os Druidas? Seriam eles os tão
terrívies Bruxos avidamente perseguidos pelo fanatismo cego e
ambiciosa da Igreja Católica Romana? Foram eles quem ajudaram o
bretões a se livrarem dos saxões? Teria realmente José de Arimatéia
(discípulo de Jesus) encontrado abrigo entre eles? A história dos
Druidas se esconde freqüentemente entre diversas lendas, como a do Rei

Arthur, onde Merlin e a meia-irmã de Arthur, Morgana, eram Druidas. Na verdade quando estudamos sobre os Druidas, temos diante de nós
apenas fragmentos de narrações, algumas lendas e muita oposição
eclesiástica, cujo ódio aos Druidas e a todos os outros povos pagãos é
forte demais para que seus textos nos sejam uma fonte confiável de
informação. A sensação que temos é a de embarcar num Mundo totalmente
diferente, mágico, fantástico, como se tomássemos a lendária barca que
nos leva à ilha sgrada de Avalon, cercada de brumas, onde vive um povo
incrível e misterioso. Das poucas coisas que sabemos sobre eles, temos a certeza de que os
Druidas acreditavam na Imortalidade da Alma, que buscaria seu
aperfeiçoamente através das vidas sucessivas (reencarnação). Eles
acreditavam que o homem era o responsável pelo seu destino de acordo
com os atos que livremente praticasse. Toda a ação era livre, mas
traria sempre uma conseqüência, boa ou má, segundo as obras
praticadas. Quanto mais cedo o homem despertasse para a
resposabilidade que tinha nas mãos por seu próprio destino, melhor. Ele teria ainda a ajuda dos espíritos protetores e sua liberação dos
ciclos reencarnatórios seria mais rápida. Ele também teria a magna
responsabilidade de passar seus conhecimentos adiante, para as pessoas
que estivessem igualmente aptas a entender essa lei, conhecida hoje
por lei do carma (que é uma denominação hindu, não druídica). Os Druidas desapareceram paulatinamente da história à medida que
crescia o domínio da Igreja de Roma. Os grandes sacerdotes druidas
eram conhecidos como as serpentes da sabedoria, e, numa paródia sem
graça, São Patrício ficou conhecido por ter expulso "as serpentes da
Bretanha". Mas o fascínio destas pessoas não poderia desaparecer de
repente. Eles se perpetuaram nos romances dos menestreis e trovadores
medievais, e sua influência se fez sentir nos vários movimentos
místicos e contestátórios da Idade Média, especialmente entre os
[3]Cátaros e na [4]Ordem dos Templários. Bibliografia Sugerida: Marion Z. Bradley: As Brumas de Avalon, Imago Editora, São
Paulo,1990. Os Celtas, Coleção Povos do Passado, Círculo do Livro, São Paulo, 1996.

A Reencarnação nos Primeiros Séculos do Cristianismo: Orígenes de Alexandria
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Um pai da Igreja que acreditava na Reencarnação
Um dos maiores lumiares do início do cristianismo, "O maior erudito da
Igreja antiga", segundo J. Quasten - pertencente à Igreja Grega e do
Oriente, dica-se de passagem, enquanto a de [1]Roma ainda não tinha a
supremacia que viria a ter em virtude de manipulações políticas - Orígenes
nos encanta por sua apurada visão espiritual e sua maneira especialmente
lúcida de abordar a mensagem do Cristo. Nascido por volta de 185 de nossa
era, em Alexandria - onde ficava a famosa biblioteca, marco único na
história intelectual humana, e que foi destruída pela ignorância e sede de
poder dos romanos e, depois, por pseudo-cristãos ensandecidos e fanáticos
-, desde cedo teve contato com a doutrina de Cristo, especialmente com seu
pai, Leonídio, que foi martirizado em testemunho de sua fé. Com isso, a
família de Orígines passou a ser estigmatizada, tendo sido seqüestrado todo
o patrimômio que lhe pertencia. Para sobreviver, o jovem e brilhante
Orígines passou a lecionar para ganhar seu sustento. Mente curiosa e
aberta, Orígines dedicava-se ao estudo e a discussão da filosofia, notadamente [2]Platão e os estóicos. Orígenes bebeu da mesma formação
intelectual que viria a ter [3]Plotino, na escola de Amônio Sacas e, com
certeza, as doutrinas ditas orientais não lhe eram estranhas, e muito menos
a ênfase num conhecimento pisíquico direto com o transcendente que era
típica da escola de Amônio, fundador do neoplatonismo e, também, um
simpatizante (pelo menos em parte) do cristianismo. Por isso, com absoluta
certeza, o conhecimento na doutrina Paligenética (da [4]Reencarnação), tão
cara a [5]Platão e a [6]Sócrates, lhe era muito familiar em sua fase de
formação, e posteriormente ele viria a divulgá-la abertamente - este foi um
dos motivos pelos quais foi perseguido pela vertente católico romana, e por
isso, temos hoje poucos de seus escritos, mesmo assim, devidamente
"maquilados" (c.f. Reale & Antiseri, 1990, volume I, página 413; e Fadiman
& Frager em Teorias da Personalidade, 1986, ed. Harbra, páginas 175-176). Pouco antes do nascimento de Orígenes, um estóico chamado Panteno havia se
convertido à mensagem do Cristo, e fundara uma escola catequética em
Alexandria. Em 203 o jovem Orígines assumiu a direção desta escola, atraindo muitos jovens estudantes pelo seu carisma, conhecimento e virtudes
pessoais. Em 231, Orígines foi forçado a abandonar Alenxandria devido à
animosidade que o bispo Demétrio (na verdade, um invejoso) lhe devotava. Orígines, então, passou a morar num lugar onde Jesus havia, muitas vezes, estado: Cesaréia,
na Palestina, onde prosseguiu suas atividades com grande
sucesso. Mas nem mesmo lá ele encontraria a paz, pois logo veio a onda de
perseguição aos cristãos ordenada por Décio. Lá, Orígines foi preso e
torturado barbaramente, o que lhe causou a morte, em 253 . O pensamento de Orígenes e sua forma de interpretar o evangelho foi durante

muito tempo causa de acesa polêmica entre os sofistas da igreja de Roma, ao
ponto de algumas teses de seu pensamento serem oficialmente condenadas pelo
imperador Justiniano que via nelas uma ameaça aos resquícios do pensamento
antigo que considerava o imperador romano quase uma divindade e, posteriormente, que teve sua ratificação religiosa feita por um concílio
católico-romano, em 553. Orígines também sofreu o triste e típico caso dos
seguidores de um líder que pervetem a mensagem original.... Muito do que
escreveu e disse Orígines foi reinterpretado e corrompido pelos
origenistas, o que causou, junto com as condenações de Roma, uma perda em
grande parte da sua enorme produção literária. Resta-nos dela Os
Princípios, Contra Celso e Comentário a João. O centro do pensamento de Orígines é Deus: "Deus não pode ser entendido
como corpo, mas como uma realidade transcendente apenas passível de ser
palidamente entendida como realidade intelectual e espiritual", diz ele. Deus não pode ser conhecido em sua natureza, por meio das limitações dos
seres relativos que somos, pelo simples fato de que nossa percepções e
concepções sobre tudo está sempre em transformação, quer em maturação, quer
em uma espécie de regressão (basta ver o mundo a nossa volta para nos
certificarmos disso). Qualquer idéia que possamos fazer de Deus é apenas
uma projeção antropomórifca de uma dada época e que apenas toca de leve uma
idéia ainda maior: "Deus, em sua realidade, é incompreensível e
inescrutável. Com efeito, podemos pensar e compreender humanamente qualquer
coisa sbre Deus, mas devemos também saber que Ele é amplamente superior a
tudo àquilo que Dele pensamos (...)". Ou seja, temos uma intuição de Deus, não uma compreensão racional definitiva Dele. Aqui ouve-se claramente ecos
do pensamento neoplatônico de Amônio Sacas, e Orígines até mesmo usou a
expressão "acima da inteligência e do ser", muito famosa por ter sido
utilizada por [7]Plotino. A compreensão da criação do universo por Deus, de Orígenes, nos lembra e
muito a das tradições orientais, notadamente as da Índia e a dos mistérios
gregos, e, principalmente, Platão e Plotino. Primeiro, Deus teria criado
seres racionais e livres, todos simples e iguais entre si - e os criou à
própria imagem, por serem seres dotados da capacidade de de desenvolver a
razão. Mas a própria simplicidade original (a ignorância) os levaram, por
meio da liberdade a que tinham direito, a divergirem no seu comportamento
e, em sua busca por instrução, a se diferenciarem entre si (podemos
encontrar um retorno a esta idéia no moderno [8]espiritismo kardecista que
diz que "todos os espíritos foram criados simples e ignorantes", sendo as
diferenças entre eles fruto dos percalços e escolhas no caminho evolutivo
individual de cada um). O mundo material e o corpo são conseqüências direta
disto, pois tornaram-se necessários a fim de corrigir os erros dos
espíritos que se afastaram demasiado de Deus. Mas o corpo não é, em
absoluto, algo negativo, como diriam os platônicos e os gnósticos. É, isso
sim, o instrumento e o meio mais eficaz para o aprendizado ou para a
expiação de erros cometidos anteriormente. A alma, ou espírito, pois, preexistia ao corpo (Reale & Antiseri, História da Filosofia, vol. I, 1990), e a diversidade
dos homens e de suas condições remonta à diversidade

de comportamento na vida anterior. A doutrina da [9]reencarnação é uma constante em Orígines, como o fora
anteriormente para Pitágoras, [10]Sócrates, [11]Platão, e toda a tradição
[12]órifca grega até [13]Plotino. Orígnes tinha consciência de indícios
desta doutrina no próprio evangelho, como em Lucas 1:13-17; Mateus 17:9-13
e em João, 3:1-15. Igualmente, com os mistérios gregos, admitia que nosso
universo é constituido por uma série de "mundos" habitados, onde a alma se
aperfeiçoa (isto séculos antes de [14]Giordano Bruno e de [15]Kardec). Diz-nos Orígines: "Deus não começou a agir pela primeira vez quando criou
este nosso mundo visível. Acreditamos que (...) antes deste houve muitos
outros". Tal concepção nos lembra, e muito, a concepção de Pierre Teilhard
Chardin. Orígines, como Chardin, acredita que tudo no universo tende a
voltar a Deus, o ponto ômega. Todos os espíritos se purificarão em sua
marcha progressiva pela eternidade em direção a Deus, uma marcha longa e
gradual, de correção e expiação, passando, portanto, por inúmeras
reencarnações neste e em outros mundos! (Reale & Antiseri, 1990). Diz
Orígines: "Devemos crer que (...) todas as coisas serão reintegradas em
Deus (...). Isso, porém, não acontecerá num momento, mas lenta e
gradualmente, através de infinitos séculos, já que a correção e a
purificação advirão pouco a pouco e singularmente: enquanto alguns com
ritmo mais veloz se apressarão como primeiros na meta, outros os seguirão
de perto e outros ainda ficarão muito para trás. E assim, através de
inumeráveis ordens (...)"
Orígines exaltou ao máximo a liberdade e o livre arbítrio de todas as
criaturas do mundo, em todos os níveis de sua existência. Em certo sentido, Orígines tinha uma percepção [16]Holística do mundo. No próprio estágio
final ( o estágio próximo ao ponto ômega, como diria Teilhard Chardin ), será o livre arbítrio juntamente com uma compreensão esclarecida do sentido
do universo que o espírito irá aderir ao amor de Deus, sábio e senhor de
milhares de anos de experiência. Assim, terá cumprido o círculo, partindo
do ponto de ignorância absoluta ao de sabedoria absoluta, sempre de e em
direção a Deus. Orígines também teve a suficiente visão e sabedoria para distinguir três
níveis de leitura das escrituras: 1) o literal (muito usado ainda hoje pela
maioria das igrejas evangélicas no Brasil), 2) o Moral e 3) e Espíritual, que é o mais importante e também o mais difícil. Cada um destes níveis
indica um estado de consciência e amadureciamento espiritual e psicológico. Como nos fala Reale & Antiseri, a importância de Orígines é notável em
todos os campos. Ele quis ser, antes de tudo, um cristão, e o foi até as
últimas conseqüências, suportantdo com heroísmo as torturas que o matariam, para permanecer fiel a [17]Cristo. Bibliografia Sugerida: Giovanni Reale & Dario
Antiseri: História da Filosofia, Editora
Paulus, São Paulo,1990. James Fadiman e Robert Frager: Teorias da Personalidade, Editora
Harbra, São Paulo, 1986.

O Poder do Mito
por
Joseph Campbell
Seleção, resumo e adaptação de Carlos Guimarães

Por que mitos? Por que nos importarmos com eles? O que eles têm a ver com
nossas vidas? Um de nossos problemas, hoje em dia, é que não estamos familiarizados com a
literatura do espírito. Estamos interessados nas notícias do dia e nos
problemas práticos do momento. Antigamente, o campus de uma universidade
era uma espécie de área hermeticamente fechada, onde as notícias do dia não
se chocavam com a atenção que você era estimulado a ter em se dedicar à
vida interior, no aprender, e onde não se misturava com a magnífica herança
humana que recebemos de [1]Platão, o [2]Buda, Goethe e outros, que falam de
valores eternos e que dão o real sentido à vida. As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação
de toda gente. Tendo sido surprimidas, em prol de uma educação concorde com
uma sociedade industrial, onde o máximo que se exige é a disciplina para um
mercado de trabalho mecanicista, toda uma tradição de informação mitológica
do ocidente se perdeu. Muitas histórias se conservavam na mente das
pessoas, dando uma certa perspectiva naquilo que aconteciam em suas vidas. Com a perda disso, por causa dos valores pragmáticos de nossa sociedade
industrial, perdemos efetivamente algo, porque não posuímos nada para por
no lugar. Essas informações, proveninetes de tempos antigos, têm a ver com
os temas que sempre deram sustentação à vida humana, construíram
civilizações e formaram religiões através dos séculos, e têm a ver com os
profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os
profundos limiares de nossa travessia pela vida, e se você não souber o que
dizem os sinais deixados por outros ao longo do caminho, terá de
produzi-los por conta própria. Quer dizer que contamos histórias para tentar entrar em contato com o
mundo, para nos adaptarmos à realidade? Sim. Por exemplo, grandes romances podem ser excepcionalmente instrutivos, porque a única maneira de você descrever verdadeiramente
o ser humano é
através de suas imperfeições. O ser humano perfeito é desinteressante. As
imperfeições da vida, por serem nossas, é que são apreciáveis. E, quando
lança o dardo de sua palavra verdadeira, o escritor fere. Mas o faz com
amor. É o que Thomas Mann chamava "ironia erótica", o amor por aquilo que
você está matando com a sua palavra cruel. Aquilo que é humano é que é
adorável. É por essa razão que algumas pessoas têm dificuldade de amar a
Deus; nele não há imperfeição alguma. Você pode sentir reverência, respeito
e temor, mas isso não é amor. É o [3]Cristo na cruz, pedindo ao Pai que
afaste seu cálice de sofrimento, e que chora por Lázaro morto, que desperta
nosso amor. Aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Eles são

histórias de nossa vida, de nossa busca da verdade, da busca do sentido de
estarmos vivos. Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da
vida humana, daquilo que somos capazes de conhecer e experimentar
interiormente. O mito é o relato da experiência de vida. A mente racional, analítica, o lado esquerdo do cérebro se ocupa do sentido, da razão das
coisas. Qual é o sentido de uma flor? Dizem que um dia perguntaram isso ao
[4]Buda, e ele simplesmente colheu uma flor e a deu ao seu interlocutor. Apenas um homem compreendera o que Buda queria demonstrar. Racionalmente, não fazia
sentido esse gesto. Ora, mas podemos fazer a mesma pergunta para
algo maior: qual é o sentido do universo? Ou qual o sentido de uma pulga? A
única resposta realmente válida está exatamente alí, no existir. Qualquer
formulação racional nos dá uma idéia linear da coisa, mas mata a beleza da
coisa em si. Estamos tão empenhados em realizar determinados feitos, com o
propósito de atingir objetivos de um outro valor, linear e longe da
vibração da vida, que nos esquecemos de que o valor genuíno, o prodígio de
estar vivo, é o que de fato conta. É por isso que as grandes questões
filosóficas, embora sejam de fundamental importância para todos, acabam
sendo a preocupação de apenas uma ínfima minoria da população. Eles
esqueceram de que o valor genuíno, o prodígio de estar vivo, é o que de
fato conta, e preferem se acomodar aos papeis de uma vida burguesa e
adaptada ao sistema capitalista, deixando que outros, atualmente os
políticos e os cientístas, tomem as decisões mais complexas por eles. Mas
todos já foram crianças curiosas, não foram? A curiosidade infantil é a
mesma curiosidade do filósofo. Cristo está certo quando fala que só "quem
se faz como um destes pequeninos, entrará no Reino dos céus". Bom, e como
podemos resgatar um pouco de nosso grande potencial humano? Lendo mitos. Eles ensinam que você pode se voltar para dentro. Busque-os e você começa a
entender as suas mensagens. Leia mitos de outros povos, pois lendo mitos
alheios você começara a perceber que alguns enredos são universais. Por
exemplo, a lenda do Graal. A busca dos caveliros do Rei Arthur pelo Graal
representa o caminho espiritual que devemos fazer e que se estende entre
pares de opostos, entre o perigo e a bem-aventurança, entre o bem e o mal, pois não há nada de importante na vida que não exija sacrifícios e algum
perigo. O tema da história do Graal diz que a terra está devastada, e só quando o
Graal for reencontrado poderá haver a cura da terra. E o que caracteriza a
terra devastada? É a terra em que todos vivem uma vida inautêntica, fazendo
o que os outros fazem, fazendo o que são mandados fazer, desprovidos de
coragem para uma vida própria. Esquecem-se que são seres únicos, cada
indivídiuo sendo uma pessoa diferente das demais. A beleza de uma terra
rica está exatamente na convivência dos diferentes, não na mistura deles. Se temos um lugar ou uma era em que todos se alienam e fazem a mesma coisa, temos a
terra devastada: "Em toda a minha vida nunca fiz o que queria, sempre fiz o que me mandaram fazer". O Graal se torna aquilo que é logrado e conscientizado por pessoas
que
viveram suas próprias vidas. O Graal representa (simboliza) o receptáculo
das realizações das mais altas potencialidades da consciência humana. O rei que incialmente cuidava do Graal, por exemplo, era um jovem adorável, mas que, por
ainda ser muito jovem e cheio de anseios de vida, acabou por

tomar atitudes que não se coadunavam com a posição de rei do Graal. Ele
partiu do castelo com o grito de guerra "Amor!", o que é próprio da
juventude, mas que não se coaduna com a condição de ser rei do Graal. Ele
parte do castelo e, quando cavalgava, um muçulmano, um não cristão, surgiu
da floresta (a floresta representando o nível desconhecido do nosso
psiquismo). Ambos erguem as lanças e se atiram um contra o outro. A lança
do rei Graal mata o pagão, mas a lança do pagão castra o rei Graal. O que isto quer dizer é que a separação que os padres da igreja fizeram
entre matéria e espírito (já que [5]Jesus sempre se referia ao Reino como
um campo em que um semeador saiu a semear, ou uma rede atirada ao mar, ou a
uma festa de núpcias, ou sobre as aves do céu e os lírios do campo, está
claro que esta divisão pré-cartesiana foi fruto da mentalidade patriarcal
dos pais da igreja, não do Cristo), entre dinamismo da vida e o reino do
espírito, entre a graça natural e a graça sobrenatural, na verdade castrou
a natureza. E a mente européia, a vida européia, tem sido emasculada por
essa separação. A verdadeira espiritualidade, que resultaria da união entre
matéria e espírito, tal como era praticada pelos [6]Druidas, foi morta. O
que representava, então, o pagão? Era alguém dos subúrbios do Éden. Era um
homem que veio da floresta, ou seja, da natureza mais densa, e na ponta de
sua lança estava escrita a palavra "Graal". Isso quer dizer que a natureza
aspira ao Graal. A vida espiritual é o buquê, o perfume, o florescimento e
a plenitude da vida humana, e não uma virtude sobrenatural imposta a ela. Desse modo, os impulsos da natureza são sagrados e dão autenticidade à
vida. Esse é o sentido do Graal: Natureza e espírito anseiam por se
encontrar uma ou outro, numa atitude [7]holística. E o Graal, procurado
nestas lendas românticas, é a reunião do que tinha sido divido, o seu
encontro simboliza a paz que advém da união. O Graal que é encontrado se tornou o símbolo de uma vida autêntica, vivida
de acordo com sua própria volição, de acordo com o seu próprio sistema de
impulsos, vida que se move entre os pares de opostos, o bem e o mal, a luz
e as trevas. Uma das versões da lenda do Graal começa citando um breve
poema: "Todo ato traz bons e maus resultados". Todo ato na vida desencadeia
pares de opostos em seus resultados. O melhor que temos há fazer é pender
em direção da luz, na direção da harmonia entre estes pares, e que resulta
da compaixão pelo sofrimento, que resulta de compreender o outro. É disso
que trata o Graal. É isso o que Buda quis dizer por tomar o caminho do
meio. É isso o que significa estar cruxificado entre o bom e o mal ladrão e
ainda orar ao Pai... Histórias ou contos de fadas são histórias com motivos mitológicos
desenhadas especialmente para as crianças. Elas frequentemente falam de uma
menininha no limiar da passagem da infância para a descoberta da
sexualidade. É por isso que chapeuzinho vermelho veste uma capa vermelha. Algo nela exige, sem que ela queira, que ela faça o percurso pelo meio da
floresta (nosso lar de origem, onde se esconde nossos instintos), até

chegar à casa da vovó (a cultura tradicional que devemos respeitar). Chapeuzinho está em fase de transição. A capa vermelha lembra o sangue da
menstruação. A jovem é algo muito atraente para o Lobo. Ainda hoje dizemos
que um homem apaixonado e desejoso por uma mulher é um lobo. E ela não pode
evitar de conversar com o Lobo no meio da caminho. O Lobo a atrai também. Na história original, chapeuzinho se transforma numa loba, ela sabe que a
velha cultura repressora deve ser morta para que ela possa sentir o que
deseja. Ela entende o sofrimento do lobo. Uma outra históra semelhante é a
da Bela Adormecida. Ao completar dezesseis anos, a princesa parece hesitar
diante da crise da passagem da infância à idade adulta e se sente atraída a
furar o dedo na roca que a fará adormecer. Enquanto dorme, o príncipe
ultrapassa todas as barreiras que ela, sem querer, levantou contra a sua
maturação e vem oferecer a ela uma boa razão para aceitar crescer. O beijo
mostra que crescer, ao final de contas, tem seu lado agradável. Todas
aquelas histórias coletadas pelos irmãoes Grimm representam a menininha
paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias de limiares têm
a ver com a ultrapassagem da paralização, com a superação dos demônios
internos. Os rituais das "primitivas" cerimônias de iniciação têm sempre uma base
mitológica e se relacionam ou à eliminação do ego infantil quando vem à
tona o adulto, ou visa à por a prova o iniciado aos próprios medos e
demônios internos. No primeiro caso, a coisa é mais dura para o menino, já
que para a menina a passagem se dá naturalmente. Ela se torna mulher quer
queira ou não, mas o menino, primeiro, tem de se separar da própria mãe, encontrar energia em si mesmo, e depois seguir em frente. É disso que trata
o mito do "Jovem, vá em busca de seu pai". Na Odisséia, Telêmaco vive com a
mãe. Quando completa vinte anos, Atena vem a ele e diz: "Vá em busca de seu
pai". Este é o tema em todas as histórias. Às vezes é um pai místico, mas
às vezes, como na Odisséia, é o pai físico. O tema fundamental nos mitos é e sempre será a da busca espiritual. Vemos
que nas vidas dos grandes Mestres espirituais da Humanidade sempre nascem
lendas e mitos ligados a eles, figuras históricas reais. A história real de
[8]Jesus, por exemplo, parece representar uma proeza heróica universal. Primeiro, ele atinge o limite da consciência do seu tempo, quando vai à
João Batista para ser batizado. Depois, ultrapassa o limiar e se isola no
deserto, por quarenta dias. Na tradição judáica, o número 40 é
mitologicamente significativo. Os filhos de Israel passaram quarenta anos
no cativeiro, Jesus passou quarenta dias no deserto. No deserto, [9]Jesus
sofreu três tentações. Primeiro, a tentação econômica, quando o Diabo diz: "Você parece faminto, meu jovem! Por que não transformar estas pedras em
pão?" Depois vem a tentação política. [10]Jesus é levado ao topo da
montanha, de onde avista as nações do mundo, e o Diabo diz: "Tudo isto te
darei, se me adorares", que vem a ser uma lição, ainda não compreendida
hoje, sobre o quanto custa ser um político bem-sucedido. Jesus recusa. Finalmente o Diabo diz: "Pois bem, já que você é tão espiritual, vamos ao
topo do templo de Herodes e atira-te lá embaixo. Deus o acudirá e você não
ficará sequer machucado". Isto é conhecido como enfatuação espiritual. Eu

sou tão espiritual que estou acima das preocupações da carne e acima deste
mundo. Mas Jesus é encarnado, não é? Então ele diz: "Você não tentará o
senhor, teu Deus". Essas são as três tentações de Cristo, tão relevantes
hoje quanto no ano 30 de nossa era. [11]O Buda, também, se dirige à floresta e lá entretem conversações com os
gurus da época. Então ultrapassa-os e, após um período de provações e de
busca, chega à árvore boddhi, a árvore da iluminação, onde igualmente
enfrenta três tentações (isso quinhentos anos antes de Cristo). A primeira
tentação é a da luxúria, a segunda, a do medo e a terceira, a da submissão
à opinião alheia. Na primeira tentação, o Senhor da Luxúria exibe suas três belíssimas filhas
diante de Sidarta. Seus nomes são Desejo, Satisfação e Arrependimento -
passado, presente e futuro. Mas o Buda, que já se havia libertado do apego
a toda a sensualidade, não se comoveu. Então o Senhor da Luxúria se transformou no senhor da Morte e lançou contra
Sidarta, [12]o Buda, todas as armas de um exército de monstros. Se Sidarta
se apavorar, todas as armas se materializariam. Mas o Buda tinha encontrado
em si mesmo aquele ponto imóvel, interior, o self, como diria Jung, que
pertence à eternidade, intocado pelo tempo. Uma vez mais não se comoveu e
as armas atiradas se transformaram em flores de reverência. Finalmente, o Senhor da Luxúria e da Morte se transformou no temível Senhor
dos Deveres Sociais, e perguntou: "Meu jovem, você não leu os jornais da
manhã de hoje? Não sabe o que há para ser feito?" A resposta do [13]Buda
foi simplesmente tocar o chão com as pontas dos dedos da sua mão direita. Então a voz da deusa-mãe/deus-pai do universo se fez ouvir no horizonte, dizendo: "Este
aqui é meu filho amado, e já se doou de tal forma ao mundo
que não há mais ninguém aqui a quem dar ordens. Desista dessa insensatez."
Enquanto isso, o elefante, no qual estava o Senhor dos Deveres Sociais, curva-se em reverência ao [14]Buda e toda a côrte do Antagonista se
dissolveu, como num sonho. Naquela noite, o [15]Buda atigiu a iluminação e
permaneceu no mundo, pelos cinqüenta anos seguintes, ensinando o caminho da
extinção dos grilhões do egoísmo. Pois bem, as duas primeiras tentações - a do desejo e a do medo - são as
mesmas que Adão e Eva parecem ter experimentado, de acordo com o
extraordinário quadro de Ticiano, concebido quando o pintor estava com
noventa e quatro anos de idade. A árvore é o mitológico aix mundi, aquele
ponto em que tempo e eternidade, movimento e repouso, são um só, e ao redor
do qual revolvem todas as coisas. Ela aparece alí, representada apenas em
seu aspecto temporal, como a árvore do conhecimento do bem e do mal, ganho
e perda, desejo e medo. À direita está Eva, que vê o Tentador sob a forma
de uma criança, oferecendo-lhe a maçã, e ela é movida pelo desejo. Adão, do
lado oposto, vê os pés monstruosos do tentador ambicioso, e é movido pelo
medo. Desejo e medo: eis as duas emoções pelas quais é governada toda a
vida na terrra. O desejo é a isca, a morte é o arpão. Adão e Eva se deixaram tocar; o Buda, não. Adão e Eva deram origem à vida e
foram estigmatizados por Deus; o Buda ensionou a libertar-se do medo de

viver. No filme de Geoge Lucas, Guerra nas Estrelas o vilão Darth Vader representa
uma figura arquetípica. Ele é um monstro porque não desenvolveu a própria
humanidade. Quando ele retira a sua máscara, o que vemos é um rosto
informe, de alguém que não se desenvolveu como indivíduo humano. Ele é um
robô. É um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de
um sistema imposto. Este é o pergio que hoje enfrentamos, como ameaça às
nossas vidas. O sistema vai conseguir achatá-lo e negar a sua própria
humanidade, ou você conseguirá utilizar-se dele para atingir seus
propósitos humanos? Como se relacionar com o sistema de modo a não o ficar
servindo compulsivamente? O que é preciso é aprender a viver no tempo que
nos coube viver, como verdadeiros seres humanos. E isso pode ser feito
mantendo-se fiel aos próprios ideais, como Luke Skywalker no filme, rejeitando as exigências impessoais com que o sistema pressiona. Ainda que
você seja bem sucedido na vida, pense um pouco: Que espécie de vida é essa? Que tipo de sucesso é esse que o obrigou a nunca mais fazer nada do que
quis, em toda a sua vida? Vá aonde seu corpo e a sua alma desejam ir. Não
deixem que escolham por você. Quando você sentir que encontrou um caminho, que é por alí, então mantenha-se firme no caminho que você escolheu, e não
deixe ninguém desvia-lo dele. Você poderá dizer: "isso é ótimo para a imaginação de um George Lucas ou
para as teorias de um Joseph Campbell, mas não é o que acontece em minha
vida". Errdo! Você pode apostar que acontece, sim - e se a pessoa não for capaz de
reconhece-lo, isso poderá transforma-lo num Darth Vader. Se o indivíduo
insiste num determinado programa e não dá ouvidos ao próprio coração, corre
o risco de um colapso esquizofrênico. Tal pessoa colocou-se a si mesma fora
do centro, alistou-se num programa de vida que não é, em absoluto, aquilo
em que o corpo está interessado. O mundo está cheio de pessoas que deixaram
de ouvir a si mesmos, ou ouviram apenas os outros, sobre o que deviam
fazer, como deviam se comportar e quais os valores segundo os quais
deveriam viver. Mas qualquer um tem potencialidade para correr e salvar uma
criança. Está no interior de cada um a capacidade de reconhecer os valores
da vida, para além da preservação do corpo e das ocupações do dia-a-dia. Os mitos estimulam a tomada de consciência da sua perfeição possível, a
plenitude da sua força, a introdução da luz solar no mundo. Destruir
monstros é destruir coisas sombrias. Os mitos o apanham, lá no fundo de
você mesmo. Quando menino, você os encara de um modo. Mais tarde, os mitos
lhe dizem mais e mais e muito mais. Quem quer que tenha trabalhado
seriamente com idéias religiosas ou míticas sabe que, quando crianças, nós
as aprendemos num certo nível, mas depois outros níves se revelam. Os mitos
estão muito perto do inconsciente coletivo, e por isso são infinitos na sua
revelação. Joseph Campbell
Bibliografia Sugerida

Recomendo enfáticamente a leitura do livro:
O Poder do Mito, de Joseph Campbell, Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.

A Igreja de Roma e os Movimentos Heréticos
por
Vários autores
Seleção de Carlos Guimarães
Durante a imersão da Europa nas trevas da Idade Média, surgiram vozes que
se levantavam contra o abuso e a arrogância do poder de Roma. Estes
movimentos conheciam boa parte da tradição espiritual do ocidente, e
procuravam recuperar a pureza do cristianismo primitivo, sem as pesadas
roupagens da ritualísitica e dos dogmas romanos. Entre as mais famosas
dessas correntes rebeldes, predecessoras da Reforma Protestante, temos o
movimento da Igreja Cátara, que reprensentou de fato uma séria ameaça à
hegemonia da Igreja Católica, e a Ordem dos Templários, conteporânea dos
Cátaros e, de início, apoiada pela própria Igreja de Roma. Antes de nos voltarmos a estas duas, temos de precisar o que foi e como se
fez o poderio da Igreja Romana na Europa. A Ascenção da Igreja Católica Romana
Ao longo do século V, a Igreja Romana viveu sérias ameaças à sua
sobrevivência e, por volta de 490, a situação tornou-se
desesperadoramente precária. Ela estava ainda muito longe de ter a
hegemonia do poder espiritual na cristandade, e a implosão do Império
tornava a ameaça de invasão bárbara o principal foco das atenções da
população latina. Entre 384 e 399, com o apóio oficial, o bispo de
Roma já era denominado papa, mas isto não significava muito pois sua
condição oficial, em termos de cristandade, era bem diferente do que
passou a ser alguns séculos mais tarde quando passou a desempenhar o
papel de líder e cabeça suprema da cristandade. Na verdade, o papa era
uma figura que representava apenas uma função centralizadora de
interesses velados do colégio eclesiástico romano, que era apenas uma
escola dentre muitas outras linhas diferentes do cristianismo, todas
lutando por manterem-se vivas e adotarem livremente seus pontos de
vista a respeito da mensagem do Cristo. A Igreja de Roma lutava
desesperadamente para sobressair-se dentre as demais, combatendo uma
grande variedade de pontos-de-vista teológicos diferentes dos seus. A
pesar de encravada no coração do Império, a Igreja de Roma não possuia
maior autoridade que outras, como, por exemplo, a Igreja Grega ou a
Igreja Celta. E sua autoridade não era maior que a de outras correntes
cristãs. Se a Igreja de Roma quisesse sobreviver e, ainda, criar uma hegemonia
sobre todo o pensamento cristão, exercendo uma grande autoridade e
poder, ela necessitaria do apóio de um reino forte e de uma poderosa
figura secular que pudesse representá-la resgatando um pouco da
mística do Império dos Césares, impondo grande reverência e respeito. Daí que, para que o mundo cristão evoluísse segundo a doutrina romana, a Igreja Católica
deveria ser disseminada, implementada e imposta por
meio da força secular - uma força suficientemente poderosa para
enfrentar e finalmente exitirpar o desafio das outras escolas cristãs. Por volta de 486, o rei franco-merovíngeo Clóvis tinha expandido
extraordinarimente a extensão de seus domínios, anexando reinos e
principados adjacentes e vencendo várias tribos rivais. Cidades
importantes passaram a fazer parte de seu reino, como Troyes, Rehims e
Amiens. Em pouco mais de 10 anos de conquistas, Clóvis era o chefe
mais poderoso da Europa Ocidental. E foi em Clóvis que a Igreja
Católica tinha achado um campeão para seus interesses. E foi através
de Clóvis que a Igreja Católica finalmente iria conseguir estabelecer

uma supremacia que não foi questionada por mais de mil anos. O pacto estabelecido entre Clóvis e a Igreja assegurou um triunfo
político para ambas as partes. Ao primeiro assegurava legitimidade
numa época em que os ideais cristãos suplantavam os pagãos, e à
segunda era assegurada sua sobrevivência, consolidando-a como igual, em condições, à Igreja Ortodoxa Grega, de Constantinopla (muito
influente por conta do Império Romano do Oriente), o que a faria
estabelecer-se como a suprema autoridade espiritual na Europa
Ocidental. A conversão e o batismo de Clóvis marcariam o nascimento de
um novo Império Romano, pretensamente cristão, baseado na Igreja de
Roma e administrado, ao nível secular, pelo reino franco e pela
linhagem merovíngea - posteriormente traída e derrubada pela própria
Igreja. Com poderosa eficiência, a fé católica foi imposta pela espada, e os
traços das outras igrejas forma irremediavelmente apagados (em parte)
da história; com a sansação da Igreja, o reino franco expandiu-se para
o leste, englobando a maior parte da França, Alemana e outros países
modernos. Dois séculos mais tarde, a Igreja já era suficientemente poderosa para
achar que a linhagem merovíngea de Clóvis começava a ser um empecilho. Dagobert II, descendente de Clóvis, foi um rei forte que conseguiu
domar a anarquia que, antes dele, dominava o reino, restabelecendo a
ordem, e reconhecendo os interesses cada vez mais menos espirituais da
Igreja. Tanto que ele parece ter abortado deliberadamente as
tentativas desta de se expandir ainda mais. E, em virtude de se ter
casado com uma princesa visigoda (cujo povo, apesar de decalar
fidelidade a Roma, tinham um imensa simpatia por idéias consideradas
"heréticas") havia adquirdo um imenso território, onde hoje é o
Languedoc, base dos futuros Cátaros. Dagobert parece ter adquirido
algumas das tendências arianas que questionavam a autoridade da
Igreja. Com tudo isso, não é de se extranhar que ele tenha obtido
inúmeros inimigos políticos, entre eles seu chanceler, Pepino, o
Gordo, que, alinhando-se com outros inimigos e com a Igreja, planejaram o assassinato de Dagobert e o extermínio da linhagem
merovíngea. Cabe salientar que, dois séculos após sua morte, Dagobert II foi
canonizado, como uma forma de encobrir a traição visível da Igreja ao
pacto que fizera com Clóvis. Os Cátaros
Nas palavras da Igreja Romana, no século XII a região do Languedoc
estava infectada pela heresia de um movimento nocivo, chamado de
catarismo, "a lepra louca do sul". Embora fosse sabido por todos que
os adeptos dessa heresia fossem essencialmente pacíficos, eles
constituiam uma grave ameaça à autoridade romana, a mais grave que
Roma encontraria nos três séculos seguintes, até a chegada de Martinho
Lutero. Por volta de 1200 havia realmente a possibilidade real de que
o catolicismo romano fosse substituído, como forma predominante de
cristianismo, no Languedoc, pelo catarismo que estava se irradiando
para outras partes da Europa. E, 1165 a Igreja havia condeando formalmente o catarismo na cidade de
Albi, no Languedoc. Daí por que os conhecemos também por albigenses. Muitas de nossas informações sobre eles provêm de fontes eclesiásticas
católicas, e criar um quadro correto dos cátaros a partir destes
documentos é como compreender a resistência estudantil brasileira, no
tempo da Ditadura, a partir dos relatórios dos militares e do
DOI-CODI, ou compreender a Resistência Francesa, na Segunda Guerra
Mundial, a partir dos relatórios da Gestapo. Em geral, os cátaros acreditavam na doutrina da reencarnação e

reconheciam Deus não como um princípio puramente masculino, mas como
tendo, igualmente, princípios femininos (o que nos remete a doutrina
dos [1]Druidas). Tanto que os pregadores e professores das
congregações cátaras, conhecidos como parfaits, eram de ambos os
sexos. Ao mesmo tempo, rejeitavam veementemente a autoridade da Igreja
Católica e negavam a validade das hierarquias clericais, ou de
intercessores oficiais entre Deus e o homem. No centro desta oposição
residia um pincípio extremamente importante: a fé vivida como como uma
experiência mística direta, sem passar por uma segunda mão. Tal ênfase
era dada na experiência mística direta que vemos claramente a
influência de [2]Plotino no pensamento cátaro. Hoje diríamos que os
cátaros buscavam vivenciar uma experiência de comunhão com Deus, ou
uma experiência de transcdendência, num domínio [3]Transpessoal, que, antes, chamavamos de místicas. Esta experiência chamava-se gnosis, que
em grego significa "conhecimento", e era privilegiada sobre todas as
outras formas de credos e dogmas pelos cátaros. A ênfase na
experiência direta com o transcendente, o transpessoal, tornava
supérfluos padres, bispos e quaisquer outras autoridades
eclesiásticas. Assim, a Igreja, sentindo-se realmente ameaçada, tomou a iniciativa de
formar uma Cruzada (a primeira dentro da Europa e contra irmãoes
cristãos) com o fim de extirpar de vez com a heresia cátara: a Cruzada
Albigense. Em 1209, um exército de mais de 30 mil homens, desceu do norte da
Europa em direção ao Languedoc, no sul da França, para executarem uma
das maiores carnificinas da história humana. Na guerra que se seguiu, a população tomou a espada e denfendeu com ênfase os cátaros contra o
despotismo católico. Todo o território da região foi pilhado e as
cidades e vilarejos arrasados sem dó nem piedade. Só na cidade de
Beziers, por exemplo, 15 mil homens mulheres e crianças foram
exterminadas, muitos até mesmo dentro de igrejas. Quando um oficial
perguntou a um representante do papa como ele iria reconhecer um
herege dos crentes verdadeiros, a resposta foi: "Mate-os todos. Deus
reconhecerá os seus". O próprio representante papal escreveu orgulhoso
a Inocêncio III que "nem idade, nem sexo, nem posição forma poupados". A guerra cruel durou cerca de quarenta anos. Quando terminou, toda a
Europa caiu numa espécie de modorra e barbárie. Um dos movimentos que mais tinha ligações com os cátaros era a Ordem
dos Templários, criado na Terra Santa, e que representavam uma
associação militar cristã aberta ao estudo e discussão de assuntos
místicos. Acoselho o leitor a clicar nos links abaixo para ler mais
sobre ambas as ordens: [4]Os Cátaros
[5]A Ordem dos Templários
Os textos aqui apresentados são, respectivamente, de: Michael Baignet, Richard Leigh e Henry Lincoln, cujo livro O Santo
Graal e a Linhagem Sagrada, Editora Nova Fronteira, 1997, serviu de
inspiração e motivação para esta página
Carles Cerveras, pela página dos Cátaros
Um artigo retirado do Jornal "Harmonia deMolay", sobre Os Templários.

O Misticismo e Os Grandes Místicos
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Misticismo, o que é? Desde sempre, pessoas de todas as culturas,
em todos os povos, em todas as
épocas, têm relatado experiências de expansão da consciência a níves
extraordinários, onde sente-se mais plenos de vida, numa sensação de união
íntima de suas almas com Deus, ou com a "Consciência Cósmica". Todos os
relatos de experiências místicas têm importantes pontos em comum. Não
devemos cair no erro de pensar que estas experiências sejam ocorrências
exclusivas de certas períodos históricos, onde predomina um maior grau de
histerismo religioso, ou sejam características de pessoas com graves
distúrbios mentais. Estes estados alterados de consciência são, hoje em
dia, objeto de estudo da [1]Psicologia Transpessoal, que é mais avançada
corrente dentro da Psicologia, estudiosa de todo o espectro possível de
manifestação da consciência humana. Vejamos o relato de um psiquiatra
contemporâneo relacionado ao declínio de uma psicopatologia e com a
restauração da saúde mental. O relato é do Professor Stanislav Grof: No estado de consciência "normal" ou usual, o indivíduo se experiencia como
existindo dentro dos limites de seu corpo físico (a imagem corporal), e sua
percepção do meio ambiente é restringida pela percepção, fisicamente
determinada, de seus órgãos de recepção externa; tanto a percepção interna
quanto a percepção das coisas externas do meio ambiente estão confinadas
dentro dos limites do espaço e tempo euclidiano-newtoniano. Em experiências
psicodélicas, transpessoais e de psicoterapia profunda, ou mesmo através da
meditação, uma ou várias dessas limitações parecem ser transcendidas. Em
alguns casos, a pessoa experiencia um afrouxamento de seus limites usuais
de ego e sua consciência e autopercepção parecem expandir-se para incluir e
abranger tudo o que diz respeito a outros indivíduos e elementos do mundo
externo. Ele consegue obter informações que, pelos meios sensoriais
convencionais, seriam impossíveis. Em outros casos, o sujeito continua
experienciando sua própria identidade, mas num tempo diferente, num lugar
diferente, ou num diferente contexto, tal como ocorre na chama Terapia de
Vida Passada. Ainda em outros casos, o sujeito experiencia um grande
identificação com uma onipresente consciência universal, conseguindo
abranger elementos que não têm nenhuma continuidade com sua identidade de
ego usual e que não podem ser considerados como simples derivativos de suas
experiências no mundo tridimensional (Grof, S. Journal of Transpersonal
Psychology, vol 4., 45-80, 1972). Em outra parte de meu trabalho sobre [2]Psicologia Transpessoal e na Home
Page sobre [3]Plotino, me aprofundei mais sobre as caracterísitcas que
cercam o fenômeno do extase místico. Vamos agora falar de gandes mulheres e
homens da história ocidental que deixaram um profundo legado
filosófico-religioso, conseqüência direta de suas experiências, e repletas
de passagens místicas. Hildegard von Bingen
Durante as trevas intelectuais da Idade Média, a Igreja Católica Romana era

uma insituição patriarcal sedenta de poder e rigidamente machista. Mas, mesmo assim, alguns luminares femininos conseguiram se destacar, especialmente nos países
germânicos. Entre estas mulheres, uma nos
interessa especialmente: Hildegard von Bingen. Hildegard von Bingen viveu
de 1098 a 1179, na Renânia. Ela foi uma extraordinária pensadora, uma
grande filósofa e teóloga. Ela era uma freira que - coisa raríssima na
época - fazia sermões públicos, que, além de atrair pela riqueza de
conteúdo o povo de sua época, atraia multidões pelo carisma e pela grande
beleza física que possuia, como podemos ver pelas iluminuras que a
representam e pelos relatos sobre ela. Dentre outras qualidades, ela era
compositora (suas músicas foram recentemente gravadas), escritora, médica, botânica. Era muito dada ao estudo. De certa forma, durante o reinado das
trevas, ela possivelmente tenha sido a primeira cientista após a destruição
definitiva da biblioteca de Alexandria. Na totalidade da história
ocidental, o século 12, na Alemanha, nos chama a atenção pelo profundo
mergulho espiritual dos pensadores da época, na maior parte religiosos, que
possibilitaram uma ambiente extremamente místico (no sentido transpessoal
do termo), rico de insights, e que se refletiu na arte e cultura do tempo, e que ainda hoje exercem um fascínio mágico e racionalmente incompreensível
ao homem de hoje, mas que emociona profundamente e enleva a alma: o estilo
Gótico. A Renânia possuia todo um clima espiritual mais sofisticado e evoluído que
o resto da Europa. Lá nasceu Hildegard. Ela era a décima criança de uma
família nobre que morava na cidade de Rhineland, próxima a Mainz, e onde
ainda se podia respirar um pouco do ar celta e sentir um pouco do espírito
da Antiga Roma Imperial. Com oito anos, sua família resolveu da-la aos
cuidados de uma freira para que, posteriomente, segui-se a carreira
religiosa. Pelos registros que temos, Hildegard foi uma criança excepcional, apesar de
ter uma constituuição física frágil e de ter suportado graves doenças. Desde cedo ela passou a ter visões místicas de cunho [4]Transpessoal que
lhe possibilitavam, entre outras coisas, demonstrar um alto grau de
clarividência e de premonições; de início assustada com as possíveis
conseqüências de suas visões, ela não costumava relatar suas experiências
transpessoais. Quando a irmã que a criou no convento, e que era Abadessa, faleceu em 1136, Hildegard foi eleita a nova Abadessa. Anos depois, em meio
a um longo tratamento de saúde, ela escrveu: "Quando tinha 42 anos e sete
meses de idade, uma ardente luz de um intenso brilho veio do céu para se
por por completo em minha mente, como uma chama que não queima mas que
ilumina. Ela me preencehu totalmente, coração e alma, como um sol que
esquenta algo com seus raios. E mais uma vez eu poderia ter o gosto de
entender realmente o diziam e o que significavam os Sagrados Livros - Os
Salmos, os Evangelistas e os demais livros do Antigo e Novo Testamento."
Hildegard escrevia tudo o que lhe acontecia, e suas visões se transformaram
num livro chamado Scivias (Conhecer o Caminho). Ela relatou sobre suas
visões com grandes teólogos da época, como Bernard de Claivaux. Foi ele
quem enviou uma parte dos manuscritos de Hildegard para o Papa Eugênio III, em Trieste. Profundamente impressionado, ele endossou os trabalhos de
Hildegard bem como suas visões. Está claro, hoje, que Hildegard possuia uma
facilidade ímpar para adentrar nos chamados "Estados Alterados de

Consciência". Muitas vezes ele diria que suas visões e as sensações a elas
vinculadas eram difícies de serem postas em palavras. Eram experiências que
transcendiam o nosso modo convencional de perceber as coisas. Mas ela tinha
de descrever suas experiências de alguma forma, sentia uma grande
necessidade de comunicá-las. Por isso não é de se estranhar que toda a
riqueza de suas experiências místicas tenham sido relatadas sob uma forte
capa cultural típica dos escritos da época. Durante mais de 25 anos, ela
escreveu um número extraordinário de documentos e trabalhos sobre a relação
humana com o plano divino da criação. Também produziu fascinates estudos
sobre botânica e medicina. Compôes 77 canções litúrgicas para uso do
convento, e algo como um oratório dramático intitulado Ordo Virtutem. Já
com uma idade avançadíssima para a época, aos 72 anos ela voltou a
Rhineland para pregar aos clérigos e aos leigos da necessidade de reformas
urgentes na Igreja, que estava visivelmente corrompida por assuntos nada
espirituais. Por toda a vida, ela escreveu centenas de cartas para as
pessoas das mais diversas classes e níveis sociais. Sua incansável energia e grande vitalidade argumentativa tornaram-se suas
principais marcas de personalidade, juntamente com suas experiências
místicas: frequentemente ela se erguia de seu leito, muitas vezes em meio a
inúmeras dores, após ter tido uma nova visão que imediatamente lhe
estimulava a ir a uma nova cruzada de conscientização pública sobre os
rumos que a religiosidade estava tomando, e que dibergia da mensagem de
Cristo. Ela foi implacável ao denunciar a corrupção clerical de sua época. Por conta de sua coragem, Hildegard foi muito atacada por toda a sua vida. Mas o pior
ainda viria no último ano de sua vida. Ela havia caridosamente
enterrado um jovem revolucionário que havia sido excomungado, quebrando
assim com uma das mais rígidas leis eclesiásticas da Igreja. Os bispos
exigiram que ela exumasse o corpo, considerado indigno de repousar em terra
santa. Ela recusou-se, dizendo que o jevem morrera em graça e em comunhão
com Deus. Seu convento foi interditado e ela e suas irmãs foram proibidas
de participarem da missa. Apenas alguns meses antes de sua morte, seus direitos foram restaurados. Ela pode, enfim, descansar um pouco. Em 17 de setembro de
1179, Hildegard, ao 81 anos, sofreu um colapso; pouco antes de morrer, duas listas de luz
surgiram no céu e adentraram em seu quarto. Hildegar foi, a partir de
então, cultuada como uma mensageira de Deus entre os homens. Entre o povo mais simples da época, talvez devido aos resquícios da
tradição pagã, como a dos [5]druidas, acreditava-se que Deus não seria
apenas homem, não teria apenas caraceterísticas masculinas, Deus seria
Pater-Mater. O Ser Supremo teria também um lado feminino, ou uma "natureza
feminina" (a Deusa, adorada pelos druidas). Afinal, a mulher teria sido
também criada à Sua imagem e semelhança, ainda que os padres torcessem o
nariz para tal pensamento e culpassem a mulher pela vinda do pecado ao
mundo. Em grego, a palavra para o lado feminino de Deus é Sophia, e
significa sabedoria. A crença sobre a natureza materna de Deus também
estava presente entre os cristãos primitivos, antes de Roma obter a
hegemonia sobre os rumos da Igreja. Mas ela manteve-se na Igreja do
Oriente, a chamada Igreja Ortodoxa, e entre os judeus durante a Idade
Média, mas caiu em completo esquecimento na Europa ocidental (graças ao

machismo romano). Só com Hildegard von Bingen é que é que ela teve um
rápido lampejo de retorno. Em vários de seus êxtases místicos, ela conta
que viu Sophia a andar ricamente vestida, procurando um meio de se dar à
conhecer ao mundo. Quando Hildegard morreu, conta-se que seu espírito, rejuvenescido, foi visto várias vezes andando e cantado pela capela, com
uma expressão de doce júbilo no rosto. Ela cantava a sua mais conhecida
canção: O Virga Ac Diadema. Mestre Eckhart
Embora a Igreja patriarcal de Roma tendesse a impor uma atmosfera
intelectual rígidamente controlada conforme seus objetivos e
interesses temporais, a presença da filosofia espiritualista de
[6]Platão e dos [7]Neoplatônicos nunca foi totalmente suprimida, durante a Idade Média. Mesmo quando o interesse por Aristóteles
tornou-se a primazia, no século XIII, o neoplatonismo ainda era
estudado, sobretudo na Alemanha, país que sempre se destacou por sua
luta pela liberdade intelectual, e, mais tarde, com Lutero, pela
espiritual. Isso explica o fato de que os estudiosos dominicanos da
cidade de Colônia e de outros centros renananos, onde também vivera
Hildegard von Bingen, haverem construído uma ambiente particularmente
favorável a um segundo renascimento do neoplatonismo, caraceterizado
por uma intensa acentuação mística. Até mesmo entre os padres da
escolástica medieval, que mergulhava cada vez mais o mundo num
universo cheio de dogmas superficiais, havia um certa saudade de uma
pureza mística, pois o que é essencial é o retorno da alma a Deus, a
sua união com Deus. Foi neste ambiente propício, talvez não por acaso, que surgiu o mestre
dominicano Eckhart, um dos maiores lumiares da filosofia medieval e do
misticimo do ocidente, e sobre quem falaremos agora. Mestre Eckhart nasceu em Hochheim, na Turíngia, em 1260. Ingressando
no convento dos dominicanos de Erfurt, estudou em Estrasburgo e em
Colônia. Tornou-se mestre em Teologia e ensinou em Paris entre 1302 e
1304. Exerceu vários cargos eclesiásticos na Alemanha. Estabeleceu-se
definitivamente em Colônia em 1320. Escreveu várias obras, entre elas
Pregações e Tratados. Em sua obra está muito presente a unidade entre
Deus e o homem, entre o que consideramos sobrenatural e o que achamos
ser natural. É um pensamento [8]holístico, pois. Como afirmava
[9]Plotino, Eckhart também acreditava que sem um algo, a que chamamos
Deus, o homem e o mundo não teriam nenhum sentido e nada seriam. Alguma "coisa" tem de dar sentido a tudo o que existe. Tudo tem de ter
uma razão de ser. Na verdade, não existe um mal absoluto, existe tão
só o erro na busca da evolução da alma. Tudo está imerso numa Unidade. A Unidade é dinâmica e é diversidade, assim como as sete cores são o
arco-íris. Somos frutos, mas os frutos nascem de uma árvore, e o fruto
carrega a árvore. Assim, somos filhos de Deus, mas também somos Deus. E assim tudo rearfirma a Unidade. E tal é o poder que temos, que o
mundo sempre será para nós aquilo que dele pensarmos. Mas o Deus "que
está em todas as criaturas é o mesmo que está acima delas, pois aquilo
que é Uno deve ser mais que a mera soma das coisas". Isto é um
belíssmo exemplo do que hoje entendemos por pensamento holístico. Bom, se tudo existe por que uma causa os fez existir, qualquer que
seja o nome que dermos a esta causa, ela estará acima do fruto que
dela veio. Bom, se considerarmos que tudo o que existe existe por obra
do Ser Divino, isso significa que temos uma razão de existir, pois o
Supremo não faria nada de inútil. Sendo assim, Ele terá necessaramente
de amar a seus frutos. Por isto existe uma Unidade entre Deus e o
homem. E é por essa razão que o homem sente-se atraído e tenta voltar
a Deus, pois é na União que há sentido, sem que haja anulação. Para
isso, para poder ir de encontro a Deus, o homem deve ser livre: "Livre

espírito é aquele que não se preocupa com nada e a nada se liga" (isso
lembra a mensagem budista do desapego), "já que se aprofunda na
amantíssima vontade de Deus". E quem tem Deus, ou seja, quem o
encontra em si mesmo "o tem em todos os lugares, nas ruas e entre as
pessoas, da mesma forma que na Igreja, na solidão ou na cela". Se ele
O encontrou realmente, encontou a pérola de grande valor, e fará de
tudo para mante-la consigo. Se ele a possui verdadeiramente, ninguém
que não a possua também poderá perturba-lo. E se o tem, exatamente por
também a ter, não irá perturba-lo. Assim, para Eckhart, por que não
nos abandonarmos em Deus? Jesus não disse que "as aves do céu não
amontoam em celeiros, nem cultivam, mas mesmo assim o Pai do Céu não
as alimenta? Não sóis vóis mais que as aves?"
Devemos reconhecer Deus em nós, mas este caminho não é fácil. O homem
deve se "exercitar nas obras, que são seus frutos", mas, ao mesmo
tempo, "deve aprender a ser livre mesmo em meio às nossas obras". Eckhart morreu em 1327. Em 27 março de 1329, mais uma vez a
infalibilidade papal se fez presente onde não compreende o
transcendente. Neste dia foi dado ao público a bula In agro dominico, através do qual o Papa João XXII condenou vinte e oito proposições do
Mestre Eckhart. Das vinte e oito, dezessete foram consideradas
heréticas e onze consideradas escabrosas e temerárias. Entre estas, estava a de que nos transformamos em Deus. Mas esta condenação papal
justifica-se na medida que as idéias de Eckhart tinham uma dimensão
revolucionária. Elas foram acolhidas pelas camadas populares e
burguesas, que interpretavam o apelo eckhartiano à interioridade da fé
e à união divina como uma rebelião implícita à exterioridade
"farisáica" de uma hierarquia e de um clero moralmente decadente
(parece que a coisa nunca mudou muito mesmo). Sua herança influenciou, entre outros, significativamente, a Martinho Lutero. Outros grandes e famosos místicos
da Idade Média e do Renascimento
foram: Francisco de Assis, Juan de La Cruz, Tereza D'Ávila, e, talvez
a mais sofrida, Joana D'Arc. As teorias reducionistas e mecanicistas
da Psiquiatria e da Psicanálise não explicam o trabalho, o carisma e a
ernorme influência que estas figuras exerceram na história da
humanidade. Nelas, algo de muito especial ocorreu, e não será por
querermos que o universo seja da forma como achamos que ele deva ser
que o brilho de suas vidas possam ser manchados com nossas tolas
teorias racionais. Bibliografia Sugerida

Gaarder, Jostein. O Mundo de Sofia. Companhia das Letras, São Paulo, 1995
Reale, G. & Antiseri, D. História da Filosofia, Vol. I. Ed. Paulus, 1990
Para ouvir: Vision, a Música de Hildergard von Bingen, Gravadora EMI
Angel, 1994

Giordano Bruno: a metafísica do Infinito
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
O sacrifício pelo livre pensar
Filipe Bruno nasceu em Nola, Itália, em 1548. O nome com que ficou
conhecido, Giordano, lhe foi dado quando, ainda muito jovem, ingressou no
convento de São Domingos, onde foi ordenado sacerdote, em 1572. Mente
inquieta e muito independente, Bruno teve sérios problemas com seus
superiores ainda quando estudante no convento. Sabemos que já em 1567 um
processo foi instaurado contra ele, por insurbordinação, mas Bruno já
granjeara admiração por seus dotes intelectuais, o que possibilitou a
suspensão do processo. Era tão séria a largueza de visão de Bruno quanto
aos defeitos do pensamento intelectual de sua época, que em 1576 teve de
fugir de Nápoles para Roma devido à peseguições de toda espécie e, depois, para a Suíça, onde freqüentou ambientes calvinistas, que logo abandonaria
julgando o pensamento teológico dos protestantes tão restrito quanto o dos
católicos. A partir de 1579, Bruno passa a viver na França, onde atraiu as simpatias
de Henrique III. Em meados da década seguinte, Bruno vai para a Inglaterra. Mas logo ele entra em atrito com os docentes de Oxford. Vai, então, depois
de um curto período de retorno à França, para a Alemanha luterana. Após um
período de vivência no meio dos seguidores de Lutero (de onde seria expulso
posteriormente), Bruno parte para Frankfurt, onde publica sua trilogia de
poemas latinos. Recebe um conviente (que lhe seria fatal) para ensinar a
arte da memória ao nobre (na verdade, um interesseiro ) veneziano João
Mocenigno. Assim, selando seu destino, Bruno parte para a Itália em 1591. No mesmo ano, Mocenigno (que esperava aprender as artes da magia com Bruno)
denuncia o mestre ao Santo Ofício. No ano seguinte, começa o dramático
processo contra Bruno, que se conclui com sua retratação. Em 1593, é
transferido para Roma, onde é submetido a novo processo. Depois de
extenuantes e desumanas tentativas de convencê-lo a retratar-se de algumas
de suas teses mais básicas e revolucionárias pelo método inquisitorial, Bruno é, por fim, condenado à morte na fogueira, em 16 fevereiro de 1600. Giordano Bruno
morreu sem renegar seus pontos de vista
filosófico-religiosos. Sua morte acabou por causar um forte impacto pela
liberdade de pensamento em toda a Europa culta. Como diz A. Guzzo: "Assim, morto, ele se apresenta pedindo que sua filosofia viva. E, desse modo, seu
pedido foi atendido: o seu julgamento se reabriu, a consciência italiana
recorreu do processo e, antes de mais nada, acabou por incriminar aqueles
qua o haviam matado". A Filosofia de Bruno
A característica básica da filosofia de Giordano Bruno é a sua volta aos
princípios do neoplatonismo de [1]Plotino, e ao hemetismo da Europa
pré-crstã, notadamente nos trabalhos que conhecemos como "O Corpus
Hermeticum". Nos primeiros séculos da era imperal romana durante o
desenvolvimento do movimento cristão, veio à tona uma surpreendente
literatura de caráter filosófico-religioso, cujo traço de união era, segundo seus autores, as revelações trazidas po Thot, o deus escriba dos

egípcios, que os gregos identificaram com Hermes Trismegisto, de onde o
nome de literatura hermética. Parece que o Thot egípcio foi, realmente, uma
figura religiosa histórica real que o tempo se incubiu de envolver nos véus
da lenda. Seja como for, temos conhecimento desses escritos
filosófico-religiosos que remontam à tradição inicada pelo movimento de
Thot-Hermes, e que nos chegaram, em parte. O suporte doutrinário dessa
literatura, segundo Reale e Antiseri (1990), é uma forma de metafísica
inspirada em fontes do medioplatonismo, do neopitagorismo, da tradição de
Apolônio de Tiana, e do nascente neoplatonismo. A iluminação pessoal, com a
conseguinte salvação da alma, segunda esta doutrina, depende do grau de
conhecimento (gnosi) e maturidade a que chega o homem em sua luta por
compreender o porquê da existência terrena, que é a ante-sala do mundo
supra-sensível, além do plano físico. Em virtude da profundidade destes
escritos, alguns pais da Igreja (Tertuliano, Lactâncio e outros), consideraram Hermes Trismegsito um tipo de profeta pagão anterior e
preparador dos ensinos de Cristo, embora esta história tenha sido abafada
pelo fanatismo católico posterior da Idade Média. Resgatando parte desta
tradição, Bruno se coloca na trilha dos magos-filósofos que ressurgiram na
renascença, que, embora procurando manter-se dentro dos limites da
ortodoxia cristã, leva-o às últimas consequências. O pensamento de Bruno é
gnóstico em essência, profundamente mesclado ao pensamento hermético e
neoplatônico que o sustenta. Ele conduz a magia renascentista às suas
fontes pré-cristãs e as demonstra serem tão válidas e ricas quanto a
cristã, tendo, inclusive, o mérito de se enriquecerem mutamente. É
necessário aceitar o diferente, segundo Bruno, com suas riquezes e pontos
de vista complementares ao modo de ver do mundo cristão. Bruno, tal como
antes fizera [2]Plotino, considerava a religiosidade pré-Cristã uma forma
de exercício para uma vivência plena, [3]mística e direta com o Uno. Isso
foi fatal para Bruno, que surgiu uma época de extrema intolerância relgiosa
( e que - sejamos honestos - ainda perdura de forma sutil e ainda mais
cruel na Igreja Católica, como no exemplo da condenação da Teologia da
Libertação e de seus formuladores, como Leonardo Boff, e no falso discurso
ecumênico que esconde interesses políticos, em que é cegamente seguida por
sua filha pródiga: o universo das igrejas e seitas evangélicas), e que
buscava no hermetismo um refúgio à cegueira fanática da inquisição. E Bruno
vem à tona pregando um reconhecimento da herança pagã antiga e da liberdade
de pensamento filosófico-relgioso, o que, por si, era uma ameaça e uma
atitude por demais revolucionárias para serem suportadas pelo poder de
Roma. O pensamento de Bruno era holista, naturalista e espiritualista. Dentre
suas idéias especulativas, destacamos a percepção de uma sabedoria que se
exprime na ordem natural, onde todas as coisas, quer tenhamos idéia ou não, estão interligadas e se interrelacionam de maneira mais ou menos sutil
(holismo); a pluralidade dos mundos habitados, sendo a Terra apenas mais um
de vários planetas que giram em volta de outros sistemas, etc. Por tudo
isso, por essa ousadia em pensar, Bruno - que estava séculos adiante de seu

tempo - pagou um alto preço. Mas sua coragem serviu de estopim e incentivo
ao progresso científico e filosófico posterior. Bibliografia:
Reale, G. & Antiseri, D. - História da Filosofia, Volume II, Ed.Paulis, São
Paulo, 1990. Yates, F. A. - Giordano Bruno e a Tradição Hermética, Ed. Cultrix, São Paulo, 1988.

RenÉ Descartes: A Filosofia da Razão
por Carlos Antonio Fragoso Guimarães, baseado em G. Reale & D. Antiseri
O Mundo Matemático
Renée Descartes (ou Renato Cartesius, como ele assinava, em latim) nasceu
em La Haye, Tourenne, em 1596. Sendo de família nobre, foi enviando para um
colégio jesuíta em La Flèche, uma das mais célebres escolas da época. Recenbendo a melhor formação filosófica possível dentro das bases
escolástica e humanista, com abertura também para o estudo das descobertas
científicas da época e da matemática, nem por isso Descartes deixou de se
sentir insatisfeito, pois achava a orientação tradicionalista da escola em
gritante contraste prático com a visão de mundo que surgia do
desenvolvimento científico (especialmente em Física e Astronomia) que
pipocava em toda parte. O que mais o incomodava era a ausência de uma
metodologia que abraçasse as idéias e as harmonizasse com uma práxis que
conduzissem o estudioso numa forma que lhe possibilitasse guiar-se na
"busca da verdade". O ensino de filosofia, em La Flèche, que era minsitrado tendo por modelo a
escolástica medieval, que levava o espírito dos estudantes para o passado, frequentemente lá deixando-o. O resultado era uma espécie de incompetência
intelectual e moral (envoltas em trajes de sabedoria), uma falta de preparo
e de adaptabilidade eficaz para os problemas do presente. Isto levou
Descartes a um incômodo impasse. Para ele o estudo intensivo de uma visão
de mundo já ultrapassada seria como viajar. "Mas quando dedicamos tempo
demais a viajar, acabamos nos tornando estrangeiros em nosso próprio país, de modo que aquele que é por demais curioso das coisas do passado, só
valorizando o que já foi, na maioria das vezes torna-se muito ignorante das
coisas presentes" (Descartes). E o "presente", na época de Descartes, era o
do desenvolvimento do empirismo, da técnica da fabricação de relógios e
outros instrumentos, do desenvolvimento da mecânica, do questionamento do
poder clerical, do comércio, do florescimento do capitalismo. Mais do que
tudo, era a época de um novo alvorecer: a época da Revolução Científica, cujos principais expoentes até então foram Nicolau Copérnico, Johannes
Kepler e Galileu-Galilei. O papel destes gênios na obra de Dscartes é visível: Copérnico pela coragem
de desafiar (mesmo que postumamente, com a publicação de seus trabalhos no
ano de sua morte) uma concepção geocêntrica muito cara à Igreja. Depois de
Copérnico, a Terra deixou de ser o centro do universo para tornar-se mais
um planeta. A revolução de tal "heresia" parece hoje difícil de ser bem
avaliada, mas representou um profundo golpe na hegemonia do conhecimento
científico, que estava nas mãos dos padres de Roma; Kepler, por formular
suas célebres leis empíricas dos movimentos planetários, que veio a
corroborar o sistema de Copérnico, e a demonstrar que o conhecimento da
natureza poderia ser adquirido por meio de um trabalho laborioso
indepenente do aval religioso; Galileu, por ser o real mentor da mudança de
paradigma e visão de mundo da ciência de sua época. Ao dirigir seu

telescópio para as estrelas, Galileu provou inconteste que a hipótese de
Copérnico era uma teoria válida. Além disso, Galileu foi o primeiro a
combinar sistematicamente a experimentação científica com o uso da
linguagem matemática. Isso não foi feito apenas porque a matemática é a
"linguagem com que Deus fez o universo", como dira ele, mas por que se
prestava à perfeição para que hipóteses fossem divulgadas e compreendidas
apenas por alguns poucos "iniciados", escapando, assim, da fiscalização
inquisitorial. Como disse Fritjof Capra, "Os dois aspectos pioneiros do
trabalho de Galileu - a abordagem empírica e o uso de uma descrição
matemática da natureza - tornaram-se as características dominantes da
ciência no século XVII e subisistiram como importantes critérios das
teorias científicas até hoje". Para que os cientistas pudessem descrever a natureza em forma matemática, e, assim, poderem ter uma espaço para a discussão de
suas idéias sem um
grande risco ante os olhos de Roma, Galileu postulou que eles (os
cientistas) deveriam se restringir ao estudo das propriedades essenciais
dos corpos, ou seja, a todas as propriedadades que pudessem ser mensuradas: forma, quantidade, movimento. Tudo o mais deveria ser posto de lado. Embora
esta abordagem tenha sido muito bem sucedida e tenha permitido o
desenvolvimento da ciência, o seu lado negativo foi, como nos diz R. D. Laing, que "perderam-se a visão, o som, o gosto, o olfato e o tato, e com
eles foram-se a sensibilidade estética e ética, a qualidade, os valores; todos os sentimentos, motivos, intenções, a alma, a consciência, o
espírito. A experiência, como um fato vivido pelo sujeito, foi expulsa do
domínio do discusso científico". Segundo Laing, nada mudou mais o nosso
mundo do que a obsessão dos cientistas pela medição e pela quantificação
(Capra, 1986). Foi nesse clima "Galileano" que Descartes respirou o ar que lhe moldaria o
gênio. Depois de ter obtido o bacharelado em Direito, pela universidade de
Poitiers, Descartes sentiu-se ainda mais confuso e decide se dedicar às
armas e alista-se, em 1618, nas tropas de Maurício de Nassau (um nosso
conhecido, que esteve no Nordeste do Brasil durante a ocupação holandesa na
região), que na ocasião combatia contra os espanhois pela liberdade da
Holanda. Por esta época, conhece um jovem físico e matemático, Isaac
Beeckman, que o estimulou a estudar física. Aos 23 anos de idade, Descartes estava em Ulma, ao lado das tropas de
Maximiliano da Baviera, quando, entre 10 e 11 de novembro de 1619, ele
relata ter tido uma "revelação" ou iluminação intelectual, que iria marcar
toda a sua produção a partir de então. Numa noite, após horas de reflexão
sobre todo o conhecimento que havia adquirido até aquele dia, ele caiu numa
espécie de transe sonambúlico e, então, teve um lampejo súbito onde via, ou
melhor, percebia "os alicerces de uma ciência maravilhosa" que prometia ser
um método para a unificação de todo o saber e que desenvolveria em sua
produção, tendo sido cristalizada, em parte, em seu clássico "O Discurso do
Método". A visão de Descartes despertou nele a crença na certeza do
conhecimento científico por meio da matemática. Nos fala Capra que "A
crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da
filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e foi aí, nessa
premissa fundamental, que Descartes errou. A Física do século XX mostra-nos

convicentemente que não existe verdade absoluta em ciência, que todos os
conceitos e teorias são limitados. A crença cartesiana na verdade infalível
da ciência ainda é, hoje, muito difundida e reflete-se no cientificismo que
se tornou típico de nossa cultura ocidental. O método de pensamento
analítico de Descartes e sua concepção mecanicista da natureza
influenciaram todos os ramos da ciência moderna e podem ainda hoje ser
muito úteis. Mas só serão verdadeiramente úteis se suas limitações forem
reconhecidas (...)." (Capra, 1986, p. 53). A certeza cartesiana é matemática. Descartes acreditava, partindo de
Galileu, que a chave para a compreensão do universo era a sua estrutura
matemática. Seu método, pois, consistia em subdividir qualquer problema a
seus níveis mínimos, separar "as peças que constituem o relógio", reduzindo
tudo até seus componentes fundamentais para, a partir dese nível, se
perceber suas relações. Esse método é analítico e reducionista. Não aceita
que um todo possa ser compreensível como uma totalidade orgânica ou que
esta todo possa ter características que superem a mera soma de suas partes
constituintes. Assim, ele negligencia um quebra-cabeças montado como sendo, em seu todo, um sistema significativo. Só a interrelação lógica das peças -
se houver - é que, para o método cartesiano, nos dará uma compreensão de
todo o quebra-cabeças, o que, convenhamos, é um absurdo quando tomado como
regra geral, e não como regra para alguns fenômenos. Esta ênfase no método
analítico tornou-se uma característica essencial do moderno pensamento
científico. Foi ele que possibilitou levar o homem à lua, mas sua excessiva
dominância nos meios científicos também levou à fragmentação
características das especializações dos nossos meios acadêmicos, plenos de
cientificismo, e no nosso pensamento em geral. Este método, tomando como um
dogma, levou à atitude generalizada de reducionismo em ciência - a crença
de que a compreensão de partes que constituem um todo (sem levar em conta
inter-influências ambientais ou não lineares) podem ser adquiridas
plenamente pela análise. Tendo se estabelecido em definitivo na Holanda, pela liberdade e tolerância
desta terra à novas idéias, Descartes aceitou a sugestão do padre Marino
Mersenne e do Cardeal Pierre de Bérulle para escrever um tratado sobre
metafísica. Mas tal trabalho foi interrompido para escrever o seu Traité de
physique. Entretanto, tomando conhecimento da condenação de Galileu por sua
aceitação da tese copernicana, Descartes, que compartilhava da mesma e a
expunha em seu Tratado, caiu em grande perturbação, e interrompeu o
aperfeiçoamento da obra e/ou não divulgando-a. Superada esta fase, Descartes passou a se dedicar ao problema da objetividade da razão frente a
Deus. Assim, entre 1633 e 1637, Descartes passou a fundir suas idéias
metafísicas com suas pesquisas científicas, escrevendo seu livro mais
famoso: O Discurso do Método, que fazia a introdução de três ensaios
científicos: a Dioptrique, o Méteores e a Geométrie . Diferentemente de
Galileu, Descartes considerou que era fundamental tentar expor o caráter
objetivo da razão e indicar regras para alcançar esta objetividade (este

conceito de objetividade é muito questionável hoje em dia. Qualquer escolha
de qualquer método ou padrão de medição já demonstra, pela escolha em sí, um grau enorme de subjetividade). Nesse mesmo período, Descartes se envolve emocionalmente
com Helène Jans, com o qual teve uma filhinha amada, Francine, que morreu aos cinco anos. A
dor pela perda da filhinha querida acabou por dominar Descartes, deixando
marcas em seu pensamento. Ele retomou a elaboração de seu Tratado de
Metafísica, agora sob a forma de Meditações, obra que reflete uma alma
angustiada. Este lado espiritualista de Descartes é frequentemente
negligenciado pelos estudiosos modernos. Apesar das polêmicas que seus
trabalhos metafísicos e científicos provocam, Descartes se lança à
elaboração de um trabalho arrojado: os Principia philosophiae que é
dedicada à princesa Isabel, filha de Frederico V. Graças a esta amizade
entre Isabel e Descartes, temos uma coleção de cartas que esclarece muitos
pontos obscuros de suas idéias, particulamente sua concepção da relação da
alma (res cogitans) com o corpo e a matéria (res extensa), sobre a moral e
o livre-arbítrio. Em 1649, Descartes aceita um convite da rainha Cristina da Suécia, e
muda-se para o novo país. Mas isto acabou por causar a morte de Descartes, pois a rainha Cristina tinha o hábito de ter suas conversações às cinco
horas da manhã, o que obrigava Descartes a se levantar muito cedo, o que, junto com o tremendo frio da Suécia, abalou a já frágil constituição física
do filósofo. Assim, ao abandonar a corte sueca , Descartes pega uma grave
pneumonia que o levou à morte, em 1650. A Herança Cartesiana
Toda a concepção de mundo e de homem de Descartes se baseia na divisão
da natureza em dois domínio opostos: o da mente ou espírito (res
cogitans), a "coisa pensante", e o da matéria (res extensa), a "coisa
extensa". Mente e matéria seriam criações de Deus, partida e ponto de
referência comum a estas duas realidades. Para Descartes (embora os
guardiões do racionalismo tentem passar por cima deste ponto), a
existência de Deus era essencial à sua filosofia científica, embora
seus seguidores de séculos posteriores fizessem de tudo para omitir
qualquer referência explícita à Deus, mas mantendo a divisão
cartesiana entre as duas realidade: as ciências humanas englobandas na
res cogitans e as naturais na res extensa. Em sua concepção, influenciada pelos avanços na técnica da relojoaria
holandesa, Descartes achava que o universo nada mais era que uma
máquina. A natureza funcionava mecanicamente de acordo com leis
matematizáveis. Esse quadro tornou-se o [1]paradigma dominante na
ciências até nossos dias. Ela passou a orientar a observação e
produção científica até que a física do século XX passou a questionar
seus pressupostos mecanicistas básicos. Em sua tentativa de construir uma ciência natural completa, Descartes
ampliou sua concepção de mundo aos reinos biológicos. Plantas e
animais nada mais eram que simples máquinas. Esta concepção criou
raízes profundas com conseqüêcias não só a nível biológico, como
psicológico (lembremo-nos do Behaviorismo, em Psicologia) e até mesmo
econômico (manipulação comercial de animais sem consideração ética
alguma). O corpo humano também era uma máquina, diferenciada porque
seria habitada por uma alma inteligente, distinguível da máquina-corpo
e ligado a ela pela glândula pituitária (é interessante observar que

os espíritas dizem que esta glândula têm uma importância muito grande
na interrelção espírito-corpo). As conseqüências dessa visão
mecanicista da vida para a medicia foram óbvias, tendo exercido uma
grande motivação no desenvolvimento da Psicologia nos seus primórdios. As conseqüências adversas, porém, são igualmente óbvias: na medicina, por exemplo, a adesão
rígida a este modelo impede os médicos (os
grandes cartesianos) de compreender como muitas das mais terríveis
enfermidades da atualidade possuem um forte vínculo psicossomático e
sócio-ambiental. O objetivo da "ciência" de Descartes era a de usar seu método
analítico para formar uma descrição racional completa de todos os
fenômenos naturais num único sistema preciso de princípios mecânicos
regidos por relações matemáticas. É claro que ele não poderia executar
sozinho este plano grandioso. Mas seu método de raciocínio e as linhas
gerais da teoria dos fenômenos naturais que ofereceu embasaram o
pensamento científico ocidental por três séculos (Capra, 1986). Mesmo
que a sua visão de mundo apresente, hoje, sérias limitações, o método
geral que ele nos deu ainda é muito útil na abordagem de problemas
intelecutais e funciona muito bem. Ele possibilita, ainda, uma notável
clareza de pensamento, o qual nos possibilita, inclusive, questionar
sua própria origem e visão de mundo. Descartes é, realmente, uma
figura fascinante. Bibliografia:
Reale, G. & Antiseri, D. - História da Filosofia, Volume II, Ed.Paulis, São
Paulo, 1990. Descartes, R.. - O Discurso do Método, Coleção Universidade,
Ediouro, 1986. Capra, F. - O Ponto de Mutação, Ed. Cultrix, São Paulo, 19886

O Movimento Romântico Alemão
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
O Romantismo
O Romantismo, que começou em fins do século XVIII, abrangeu toda a
civilização ocidental e foi como uma febre renovadora sobre a cultura em
geral. Depois do romantismo, o mundo nunca mais foi o mesmo. Ele iniciou-se
na Alemanha (sempre a Alemanha, em busca de romper com os grilhões
intelectuais e espirituais impostos pelo sistema), e lá mesmo atingiu os
maiores cumes, em todas as áreas. Na Poesia e na Literatura com Goethe e
Schiller, na Música com Beethoven e Brahms, nas Artes Pláticas com a Escola
de Berlim e Frankfurt, e na Filosofia com Schelling. Ele originou-se como
uma reação juvenil à fragmentação do homem, mais claramente contra à ênfase
ao culto frio da razão, apregoado pelo iluminismo. O homem não era só
razão, não era um ser calculista. Ele era um ser de sentimentos, um ser que
tem o direito de errar. As novas palavras de ordem entre os jovens
estudantes era "sentimento", "misticismo", "anseio", "natureza", "introversão". O que se passa dentro do homem, no EU, é que devia agora ser
levado em consideração no processo de aquisição de conhecimentos. O mundo, afinal, é entendido sob a ótica que adotamos, não porque seja a mais
verdadeira, mas porque nos é a mais conveniente. Do que acreditamos
firmemente, com outros, isto, de fato, "é", num dado momento, e agimos de
acordo com ele. Ora, se é assim, nada pode ser considerado plenamente
exato. Tudo varia de acordo com a nossa percepção. Sendo assim, o
Romantismo quebrava as amarras de uma educação cristalizada, fundamentada
apenas no desenvolvimento da razão, e dizia que o homem tem todo o direito
de fazer a sua interpretação pessoal do mundo, de ter a sua filosofia de
vida. A razão é limitante e limitada na esfera da vivência humana. O Romantismo, assim como ocorrera no Renascimento, descobrira a importância
da arte no processo do conhecimento e do crescimento humano. Quando nos
comovemos ou nos extasiamos diante de um quadro ou ouvindo uma balada de
Chopin, o que podemos dizer é que algo em nós "vivencia" sentimentos que
ultrapassam as fronteiras do que podemos, linear e racionalmente, saber. Assim, a arte nos liberta do primado da razão e nos aproxima do indizível, e, por isso,
nos dá uma idéia de que há coisas no universo que escapam ao
nível da cognição. Por isso a arte pode nos elevar até Deus. No Romantismo, o homem se descobre livre para ser ele mesmo. Seus sonhos podem se tornar
realidade. Nada é impossível. Era a hora de sabermos que o que há de mais
caro na pessoa humana é o fato de que ninguém é idêntico a mais ninguém. Há
riquezas internas que precisam ser exploradas. E esta busca pelo Eu levava
os jovens românticos a buscarem o crepúsculo, a sentirem-se atraídos pelo
sobrenatural, pelo lado oculto da vida: o misterioso, o místico. Uma das características mais belas do Romantismo, e uma das mais
importantes, era o amor pela natureza e pela sua mística. O brado de
Rousseau, "De volta à natureza", dito no Iluminismo, só agora ganha
impulso. Assim, em tudo, o Romantismo foi uma reação à visão de mundo
mecanicista do Iluminismo. Não é sem razão que todo movimento

anti-mecanicista (como ocorre hoje) traz sempre consigo um renascimento do
antigo pensamento [1]holístico. Sempre que a visão de mundo mecanicista, como ocorre atualmente em nossa sociedade deconsumo-pelo-consumo, anula o
ser humano enquanto ser humano, uma onda de reação, inicialmente débil e
depois cada vez mais forte, se levanta para mostrar que a natureza, onde
nos incluímos, é um todo, uma unidade. Não podemos brincar com ela sem que
advenham conseqüências funestas para tudo e para todos. Por isso, os
filósofos do Romantismo se reportavam a Spinoza, a Plotino e a Giordano
Bruno, cujas obras demonstram uma sensível forma de ver o mundo, predominantemente holista. Descartes foi um dos maiores responsáveis pela nítida divisão e aceitação
cultural entre o psicológico e a realidade física, divisão essa que vem
imperando durante os últimos três séculos, com consequências funestas para
a humanidade. Mas, no Romantismo, a natureza é vista como uma grande rede
viva de relações, um grande eu. Novamente a história se repete, e hoje
temos uma extraordinária teoria ecológica do "planeta vivo" - a hipótese
Gaia, de James Lovelock. Para os Românticos, o homem tem de reencontrar o
contato com a "alma do mundo", assim como faziam os [2]Druidas e outros
povos ditos "primitivos". Para o maior dos filósofos românticos, Friedrich Wilhelm von Schelling
(1775-1854), a natureza inteira, tanto no homem quanto na fauna e flora, eram a expressão visível de Deus. Schelling acreditava que a natureza é a expressão
visível do espírito. O
espírito se serve da matéria com algum propósito definido, talvez o de
evoluir. E o espírito seria a natureza em sua forma etérea, invisível. Por
toda a parte podemos ver claramente a ação de um "algo" ordenador. Tal como
em [3]Plotino, tudo expressa evolução por tudo ter algo do Divino em si. A
matéria seria uma espécie de inteligência - ou alma - adormecida. Deus se expressa em sua criação. O espírito deve ser procurado, portanto, tanto na natureza
exterior quanto em nós mesmos. [4]Cristo havia dito que o
Reino "está dentro de vós, mas também fora de vós", segundo o Evangelho de
Tomé (vide a Home Page sobre Jesus). Por isso Novalis pôde dizer que "o
caminho do mistério aponta para dentro". Isso significa que o homem traz o
universo inteiro dentro de si e que a melhor forma de se vivenciar o
mistério do mundo é mergulhar dentro de si mesmo. Afinal, o sábio ja tinha
dito que "é conhecendo-se a si mesmo que se pode conhecer o universo". O brado dos Românticos era algo eminentemente oposto ao pensamento de
Descartes. Enquanto para este só existia uma alma no ser humano, para os
românticos, toda a natureza era a plena de espíritos. Não foi sem razão que Henrik Steffens caracterizou assim o movimento
romântico: "Cansamos de tentar abrir um caminho pela matéria bruta. Escolhemos, agora, um outro caminho e nos lançamos, apressados, aos braços
do infinito. Mergulhamos em nós mesmos e criamos um novo mundo". Compare
esta afirmação com os pensamentos dos nossos gênios científicos atuais, e
que têm, de certa forma, a mesma opinião (veja a Home Page sobre os
[5]Físicos). Schelling, tal como [6]Plotino e, pouco depois, seu contemporâneo [7]Allan
Kardec, via na natureza uma evolução que ia dos minerais até a consciência

humana. Em nosso século, o antropólogo jesuíta francês Pierre Teilhard de
Chardin também adotou esta mesma concepção. Schelling chamou a atenção para
os estágios de evolução que vemos claramente da matéria inanimada até as
formas mais complexas. A visão romântica sobre a natureza é uma visão
[8]holística por excelência, sendo a natureza um organismo capaz de
desenvolver criativamente suas potencialidades inerentes, ao longo do
tempo. Todos os românticos consideravam um organismo vivo tanto uma planta
quanto uma nação. Estamos vendo ressurgir atualmente todo um renascimento dos ideais
românticos, talvez por resumirem toda uma herança filosófica e por
representar uma atitude de protesto contra o atual grau de coisificação de
nossa civilização. Nos últimos anos, especialmente desde a década de
sessenta, muitos cientistas de peso têm afirmado que todo o nosso
pensamento científico está diante de uma [9]mudança de paradigma, ou seja, de uma mudança radical. Em diversas áreas, como na Física, na Biologia e na
Psicologia, esta discussão já tem dado seus resultados positivos. Não nos
faltam exemplos vários dos chamados "movimentos alternativos", que dão
particular importância para um pensamento holístico e defendem um estilo
mais humano e natural de vida, exatamente como o fizeram os românticos a
quase duzentos anos atrás. Bibliografia Sugerida

Gaarder, Jostein. O Mundo de Sofia. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia,
Vol. III. Ed. Paulus, São Paulo, 1990. Schelling, F. W. Schelling. Coleção Os Pensadores. Nova Cultural, São
Paulo, 1989.

Kierkegaard
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Kierkegaard e o nascimento do Existencialismo
Sören Aaybye Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, em Copenhague, Dinamarca. Era filho de um comerciante casado em segundas
núpcias com
uma doméstica. Deste segundo casamento, nasceram sete filhos, do qual
Sören foi o último sendo seus pais já relativamente idosos. Cinco de
seus irmãos morreram antes dele e o próprio Sören viveu apenas 42
anos. O único sobrevivente dos irmãos tornou-se bispo luterano. Em sua família, sobretudo em relação à figura do pai, Kierkegaard
julgava ver a marca de um destino trágico e misterioso. Ele falava que
seu pai possuia uma obscura culpa, e foi a descoberta desta que, segundo Kierkegaard, constituiu-se no "grande terremoto" de sua vida. Não temos certeza do que
tenha sido esta culpa paterna, mas, seja lá o
que fosse, ao determinar um relacionamento mais complexo e doído com
seu pai, acabaria por representar uma espécie de lâmpada no escuro, permitindo-lhe desenvolver uma compreensão "existencialista" de sua
vida. Herdeiro de uma melancolia religiosa quase doentia que impregnava sua
família, este "espinho na carne", essa busca de se entregar ao
verdadeiro sentido divino da existência, levou Kierkegaard a renunciar
a realização de seu ideal ético e humano de se casar com a bela e doce
Regina Olsen. Mesmo apaixonado, Kierkegaard pensava que "um penitente
como eu, com a minha vida ante acta e a minha melancolia... já devia
ser suficiente", ou seja, ele não queria expor sua amada à angustia de
sua busca espiritual, nem queria que o casamento fosse impecilho a
isto, o que não o impediu de sofrer amargamente até o fim da vida a
perda de sua paixão: "eu serei teu ou te será permitido me ferir tão
profundamente, no mais íntimo de minha melancolia e de minha relação
com Deus que, ainda que de ti separado, continuo sento teu". Para ele, um penitente, alguém que se entrega ao ideal cristão da vida, com toda
a radical seriedade que isto implica, não poderia viver a serena
existência de um homem casado. Ele não poderia aceitar a sua inscrição
na ordem constituída. Não poderia ser mais um homem entre tantos
outros homens. Ele queria ser, antes de tudo, cristão. Regina, mais
tarde, casou-se com outra pessoa, mas Kierkegaard nunca a esqueceu, e
nutria a cândida esperança de que a oposição ferrenha do mundo à sua
filosofia pudesse conferir ao olhos de Regina um novo valor à sua
vida, e pudesse, assim, perdoá-lo pelos sofrimentos decorrentes do
rompimento do noivado que, ademais, foi o suficiente para por quase
toda a burguesia de Copenhague contra ele. Desde muito cedo, Kierkegaard foi vítima de chacotas e toda de sorte
de agressividade. Tudo isso por causa de sua ferrenha crítica de toda
a cultura européia e da filosofia hegeliana, bem como da filosofia
romântica, naquilo em que elas demonstraram ser excessivamente
parciais: a ênfase quase que exclusiva no universal e no coletivo em
detrimento do individual. Isto parecia tirar - e, de fato, formava um
pretexto ideal para tirar mesmo - a responsabilidade individual
perante a própria vida, responsabilidade essa que também influi no
social. Kierkegaard costumava dizer que seu tempo se caracterizava por
uma ingênua aceitação das premissas burguesas e de idéias vindas de
cima para baixo, sem questionamento. Tempo em que não se via quase
nenhuma paixão e engajamento em valores espiritualmente
significativos, criticando, por isso, a atitude preguiçosa e acomodada

da Igreja. Ser cristão, para ele, significara seguir, de verdade, na
prática, toda a práxis deixada por [1]Jesus:"O Cristianismo é de uma
seriedade trmenda (...). Ser Cristão é sê-lo no espírito, é a
inquietude mais elevada do espírito (...)". Entretanto, depois de dois
mil anos, "tudo se tornou superficialidade na cristandade atual". O
que há é uma disputa calculada para se manter o poder de consciências, e Kierkegaard se choca diante da realidade última de que, dentre todas
as chamadas heresias, ninguém se dê conta da mais perigosa e sutil de
todas: a de "fingir ou brincar de cristianismo", como o fazem as
igrejas católica e protestante. Filosofia
Kierkegaard doutorou-se aos vinte e oito anos com a tese O conceito de
ironia em Sócrates. Para Kierkegaard, [2]Sócrates era um pensador
existencial, uma pessoa que focalizava toda a sua existência para
dentro de sua reflexão filosófica. Sua crítica aos românticos estava
exatamente neste ponto: eles não refletiam suficientemente sobre o ser
enquanto unidade ou totalidade individual, ente existente e original, indivíduo responsável por sua própria vida. De igual forma, Kierkegaard voltou-se contra
a filosofia de Hegel enquanto "sistema"
que era usado como um espécie de paradigma infalível que tenderia a
explicar tudo. Para Kierkegaard, as "verdades objetivas" e a
"filosofia especulativa", quando voltadas ao externo - como na
filosofia hegeliana - eram muito pouco significativas para a qualidade
existencial do homem enquanto indivíduo. Mais importante que a busca
de uma, ou algumas, verdade(s) geral(is), era a busca por "verdades"
que fossem significativas para a vida de cada indivíduo, para cada um. Normalmente as pessoas que aderem rigidamente a uma teoria, e se
orgulham de serem "objetivos", se esquecem que também são pessoas e
que sua a adesão a um sistema teórico é mais uma questão de escolha e
preferência do que de objetividade. Utilizando-nos de um exemplo
moderno, um psicanalista, por exemplo, frequentemente enche a boca pra
falar da teoria de Freud como "a verdade": senão a verdade total
(admitir isso seria parecer ingênuo), com certeza se apresenta como a
mais racional para explicar o mundo dos comportamentos humanos. Ora, esta premissa aprioristica de que uma teoria é a correta para explicar
coisas já a coloca, implicitamente, pelo sujeito que a elege, junto
com ele mesmo por a eleger, num ilusório e vaidoso patamar de
superioridade intelectual, e instala-se a disputa entre "a minha
teoria - a correta - e as demais". Não se ventila o fato de que a
teoria é aceita por uma questão de preferência pessoal, por uma
idenditificação entre a concepção de homem do psicanalista e a visão
de homem da teoria freudiana. A objetividade acaba sendo uma questão
fantasiosa. Disputa-se a primazia da melhor argumentação
interpretativa. Nisso a pessoa esquece dos próprios anelos, sonhos, desejos, aspirações que não se enquadram perfetiamente bem na teoria, a não ser que se utilize
de artifícios de retórica. Esquece-se de que
é uma pessoa bem mais complexa do que pode ser entendida em algumas
linhas escritas num livro ou em meia dúzia de parágrafos racionalmente
bem elaborados. Além do mais, quando atrelado de modo rígido à teoria, a pessoa fica na expectativa de observar comportamentos "esperados", e
acaba por induzir outrem, de uma forma ou de outra, a agir conforme o
esperado. O "outro" deixa de ser o outro per si, para ser um fantoche
que age sutilmente de acordo com um enredo preestabelecido pela
teoria, no caso, a teoria psicanalítica. O doutor psicanalista se
apresenta ao "paciente" como alguém que fosse mais que uma pessoa como
outra qualquer: é o "DOUTOR" capaz de explicar, ou de entender, melhor
que o próprio paciente, os seus próprio problemas e os mistérios da

psique humana. Como bem frisou Jostein Gaarder, Kierkegaard não está interessado em
construir uma teoria ou uma descrição genérica do ser humano. O que
lhe interessa é o existir, o fato de haver uma pessoa aqui e agora, com tudo o que possa experimentar à sua volta. Ninguém vivencia a vida
plenamente se ficar trancado dentro de uma biblioteca, teorizando ou
discutindo sobre o que dizem que é a vida. Reduzir-se a isto pode dar
a impressão de intelectualidade, mas será uma intelectualidade
superficial e, muitas vezes, amarga. Apenas quando vivenciamos, quando
agirmos, quando fazemos escolhas e ousamos experimentar é que nos
relacionamos com a própria existência, portanto indo além de um mero
projeto mental do que seja a existência. Voltando ao exemplo da
psicanálise, quando alguém está sofrendo uma dor na alma ele não quer
saber se isso é o resultado de um complexo de édipo mal resolvido, ou
se suas pulsões entram em conflito com um supergo que pressiona o ego
a controlar os anseios de um id, do mesmo modo como uma pessoa que é
ferida por uma seta envenenada não tem qualquer interesse de saber de
que tipo é o veneno que o ameaça. Ele quer o alívio e a cura que o
possibilitem existir, quer alguém que lhe extraia a seta envenenada e
o ajude a viver. E é isso que é essencialmente importante: viver, viver tanto quanto possa ser possível no curto período de tempo que
passamos na terra. Não dá pra perder tempo especulando ou construindo
um modelo teórico apenas com o objetivo de ser mais aceitável e melhor
que qualquer outro sobre o mecanismo energético do psiquismo humano
alimentado por uma energia de natureza sexual chamada libido, etc, funcionando como se fosse um aparelho hidráulico. Isso simplesmente é
um modelo, ou um mapa, não o território, e ainda assim voltado apenas
para um aspecto do complexo psíquico humano, portanto não pode ser uma
descrição acurada da realidade. A contribuição de Freud para a
compreensão do psiquismo humano, notadamente quanto ao inconsciente, é
inquestionável, mas ele também deixou em sua obra uma visão pessimista
de homem e de mundo que tem condicionado e reforçado muito do aspecto
negativo de nossa civilização através do que hoje se convêm chamar a
psicanálise como uma ética, conceito muito caro aos lacanianos. Kierkegaard também postulou que a verdade é subjetiva, pois o que é
realmente importante é pessoal. O cristianismo é verdade? Esse é um
grande exemplo de que existem questões que não podem ser encaradas do
frio e mecanicista ponto de vista teórico ou acadêmico, eivado de
preconceitos. "Para alguém que se entender como algo que existe, trata-se aqui de uma questão de vida ou morte. E isso não se discute
simplesmente porque se gosta de discutir." (Gaarder, 1995). Em outras
palavras, e usando outro exemplo, quando você cai na água, não fica
teorizando sobre sua composição, ou se vai ou não se afogar. Você caiu
na água e neste instante você tem de fazer alguma coisa pra se manter
vivo. Tem de encarar o momento e experimentar um modo de usá-lo em
proveito próprio. Quanto à questão do Cristianismo, é preciso
distiguir entre a questão filosófica de saber se Deus existe e a
relação do indivíduo para com essa mesma questão. Cada um vai ter de
enfrentar, ou não enfrentar, tais questões sozinhos. E além disso, temos nossas emoções e nossas crenças. Kierkegaard não considera
essencial aquilo que somos capazes de compreender apenas com a razão. Apesar de ser uma verdade universal de que três vezes quatro sejam
doze, o que mais nos importa é se a vida tem algum sentido, se existe
um Deus, etc. Não são verdades genéricas e racionais o que mais nos
interessa, mas o que é existencilamente significativo. Saber se alguém
que estimamos também gosta da gente é algo significativo e envolvente. Saber que a soma dos ângulos de um triângulo é de cento e oitenta
graus é apenas uma informação que pode ser algo prático, mas não

essencial principalmente frente a um belo por do sol. Muitas pessoas tentaram provar racionalmente a existência de Deus. Mas
com argumentos racionais, perdemos nosso fevor religioso da mesma
forma como um poema perde seu encanto quando analisado sintaticamente. O fundamental não é saber se o Cristianismo é verdadeiro globalmente, o fundamental é saber
se ele é verdadeiro para mim. Se é válido pelo
menos para mim, que me importa se outros dizem que não o seja? Por que
deveria aceitar algo negativo apenas porque um outro disse que é ou
não é assim? O que sabe esse outro sobre mim de fato para dizer o que
seja ou não válido para mim? Ainda que o Cristianismo seja uma questão
de fé, e não de razão, ainda assim posso dizer que ele é importante, pois ele toca um lado que vai além de uma decantada razão que, se
levou o homem à lua, também construiu a bomba atômica e as relações de
dependência econômica entre povos e nações, afastando o homem do homem
e da natureza e levando-o esquecer de sua realidade subjetiva. Para
Kierkegaard a sociedade urbana e burguesa reduziu o homem a um ponto
perdido na multidão, um João igual a outros Joões, um ser amorfo, "conformista" e conformado em ser igual a todos os demais. Todos
parecem estar fazendo e defendendo coisas parecidas, mas sem se
entregarem realmente a nada. Ele apontou o fato de que a maioria
sempre é facilmente influenciada. A maioria quase sempre tenderá a
escolher Barrabás. Assim, hoje temos várias pessoas fumando tal marca
de cigarro que leva "ao sucesso", ou aceitar que o melhor emprego é o
de ser médico ou engenheiro pelo status que advém frente à sociedade, etc. Kierkegaard , com indescutível coragem e franqueza, e em nome da
realidade do Ser Existencial, ataca de frente a filosofia
especulativa: "A existência corresponde à realidade singular do
indivíduo (o que Aristóteles já falara): ela permanece de fora e de
qualquer forma que a tente compartimentalizar dentro de conceitos
(...). Um homem singular não pode ser simplesmente redutível a uma
existência conceitual". Para Kierkegaard, a filosofia parece
interessada apenas nos conceitos: ela não se preocupa com o existente
conrcreto, com o que podemos ser de fato, no ato de agir em nossa
singularidade; ao contrário, embebida do modelo cartesiano-mecanicista
da ciência clássica, ela quer se ocupar com o homem em geral, com o
conceito de homem. Mas nossa existência não é em absoluto um conceito. Antes, o conceio é um subproduto da existência. Trocamos
frequentemente o território pelo mapa. Quando perguntaram ao Buda o
que era uma flor, ele simplesmente entregou uma flor ao seu
interlocutor. Pra que especular sobre algo que existe e está em nossa
frente? Ora, como diz Milan Kundera em "A Insustentável Leveza do Ser"
: Existem cada vez mais universidades e cada vez mais estudantes. Para
obter o diploma, é preciso que eles encontrem temas de dissertação. Existe um número infinto de temas, pois pode-se falar de tudo e sobre
nada. Pilhas de papel amarelado se acumulam nos arquivos, que são mais
tristes do que os cemitérios, porque não vamos a eles nem mesmo no dia
de Finados. A cultura desaparece numa multidão de produções, na
loucura da quantidade (...). E diz Kierkegaard: "Isso acontece com a
maioria dos teóricos em relação aos seus sistemas, como se alguém
construísse um enorme castelo e depois fosse morar num celeiro. Eles
não vivem pessoalmente dentro de seus enormes edifícios sistemáticos". É por isso que quando o sistema fica embaraçoso para quem o cria.... "às vezes um charuto
é apenas um charuto" (Freud) ... O que
Kierkegaard ataca firmente é a pretensão de certos teóricos têm de
explicar tudo e demonstrar a necessidade causal dentro e de acordo com
uma teoria. Isso serve mais que nunca, permitam-me dize-lo, aos
psicanalistas que não se lembram que o próprio Freud reviu toda a sua
teoria até os últimos dias, e concebem a psicanálise como algo acabado
e respresentativo da totalidade psíquica Mas o sistema não consegue

engaiolar a existência, que é muito mais rica que a visão de mundo do
teórico, e o que ela evidencia é tão só uma parte de algo muito mais
complexo, algo que está além do universo bidimensional que se escreve
num pedaço de papel. Para Kierkegaard é cômico que alguém possa
acreditar num sistema teórico como sendo a verdade absoluta, do mesmo
modo como é cômico um geógrafo que acredita apenas no que dizem os
mapas e não ousa ir até às montanhas mais altas. É cômica a situação
do "espírito sistemático, que acredita poder dizer tudo e está
persuadido de que o incompreensível seja algo falso e secundário". Porém este cômico pode se tornar algo dramático ao induzir uma visão
de mundo que acaba por se auto-validar. A visão de mundo sempre
acabará por criar os meios de se auto-financiar. Foi o que ocorreu nos
últimos três séculos com o sucesso do [3]paradigma cartesiano em
ciência. Se o cientista quer compreender Deus através de seu campo, ele tenderá
ao estrondoso fracasso, e não há fracasso maior do que se colocar no
lugar de Deus. Mitos como o de Prometeu ou o de Frankenstein parecem
expor isso. E também se verá numa situação embaraçosa se quiser levar
a cientificidade para a esfera do espírito. Os problemas éticos e da
religiosidade legítima não se deixam tratar com os métodos das
ciências naturais. Quem quer que tente fazer isso é provavelmente um
ser perigosamente seguro de seus experimentos. Como diz Kierkegaard, é
arrogante a classe dos naturalistas "que querem liquidar Deus
completamente, como supérfluo, subsituindo-o pelas leis naturais". No
fundo, isso é só uma substituição tola. É a substituição de uma idéia
initeligível por outra equivalente, com a diferença de que esta última
dá uma certa presunção de controle e de compreensibilidade bem humanas
sobre a natureza. A presunção dos cientistas se expressa na luta
apaixonada contra Deus e tende a criar "toda uma multidão de homens
que fará das ciências naturais sua religião." No fundo o que se quer é
ter a certeza de que a natureza é uma máquina que pode ser dominada
completamente pelo homem, e nada mais. Para Kierkegaard, a verdade é subjetividade: ninguém pode se por no
meu lugar. Sou eu quem devo fazer a escolha de ser o que posso ser ou
de ser uma cópia do que se espera que eu seja, de acordo com os
referencias que nos são dados por outrem ou pela cultura. A existência
é o reino do vir a ser, é o reino da liberdade: o homem é o que ele
escolhe ser quando consegue atingir um certo grau de lucidez, ele é o
que se torna. Isso implica que o modo de ser da existência não é a
realidade ou a necessidade, mas sim a possibilidade e isso traz a
angústia, que é o sinal de que se atingiu uma "situação existencial". A pessoa pode ou não decidir se dará um salto para um estágio mais
elevado de existência. Toda transformação é um renascimento e todo
renascimento é também uma morte. Sai-se de um estágio para outro. A
pessoa decide se quer ou não ir adiante, e o medo do novo traz a
angústia. "A angústia é a possibilidade de liberdade: somente a
angústia, através da fé, tem a capacidade de formar, enquanto destrói
todas as finitudes". Ninguém poderá dar esse salto por você. Afinal, todo conhecimento vem de dentro, como dizia Sócrates. A angústia é o
puro sentimento do possível, é o sentido daquilo que pode acontecer. "Se alguém souber tirar proveito da experiência da angústia, se tiver
CORAGEM de ir mais além, então dará à realidade outra explicação: exaltará a realidade e, até quando ela pesar duramente sobre ele, recordar-se-á de que ela é
muito mais leve do que era a
possibilidade". E o grande salto, o mais difícil, é o de "cair nas
mãos de Deus", de dar o grande salto rumo às "setenta mil braças de
água", de entrar num nível além do convencional, num nível, ouso

dizer, [4]Transpessoal. Soren Kierkegaard morreu em 11 de novembro de 1855, em meio aos
ataques contra suas idéias. Bibliografia Sugerida
Real, Giovanni & Antiseri, Dario - História da Filosofia, Vol. III. Editora
Paulos, São Paulo, 1996. Gaarder, Jostein. - O Mundo de Sofia. Companhia
das Letras, São Paulo, 1995. Kierkegaard, Soren A. - Diário de Um Sedutor e
outras obras. Coleção "Os Pensadores", Ed. Abril, São Paulo, 1989.

Allan Kardec
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Allan Kardec, 1804-1869
Música: Noturno Nº 19, Op. 72, nº 2, de Chopin
Quem foi e o que fez Allan Kardec
Durante todo o século XVIII, a França se ergueu como o farol intelectual da
civilização ocidental. Para lá iam artistas, professores, filósosfos e
cientístas. Apesar do esbanjamento e da corrupção da côrte, Paris foi, desde muito tempo, a capital europeia mais atrativa para os intelectuais do
continente. Juntamente com a Alemanha, sua maior rival, a França era quem
dirigia os rumos do intelecto humano, e foi com o Iluminismo que Paris
passou ser conhecida como "a Cidade Luz", pois, depois de tanto tempo à
mercê dos ditames do clero e da aristocracia, o homem era incentivado a ser
independente, a pensar com a própria cabeça. "Todos os homens são iguais", era o slogan do Iluminismo, que nasceu e teve seus maiores conseqüências em
solo francês. Embora tenha sido, na verdade, um retumbante movimento burguês, com seus
lamentáveis e invitáveis excessos, a Revolução Francesa teve o mérito de
desmitificar a pseudo-superioridade das classes privilegiadas (a corrupta
aristocracia e o hipócrita clero católico), levantando a bandeira
contagiante da "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", e da "Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão". Evidentemente, a efervescência do período
desembocou num paradoxo: surge o império napoleônico. Mas os frutos
intelectuais da Revolução permitiram limpar a Europa do velho ranço
aristocrático, forçando a melhoria dos direitos sociais em todas as nações
do ocidente, fortificando, mais do que nunca, o papel do Direito. Foi em meio a esse clima de mudanças e de reconstrução de um novo mundo, onde vingava, por
toda parte, o perfume primaveril do [1]romantismo, que
nasce, a 03 de outubro de 1804, em plena era napoleônica, na cidade de
Lyon, Hippolite Léon Denizard Rivail, que mais tarde adotaria o pseudônimo
Allan Kardec. Ele era filho de um juiz, Jean Baptiste-Antoine Rivail, e sua
mãe chamava-se Jeanne Duhamel. Conta-se que o pai o iniciou com todo cuidado nas primeiras letras e o
incentivou à leitura dos clássicos, já em tenra idade. Denizard Rivail
sempre se mostrou muito interessado em ciências e em línguas. Após
completar os primeiros estudos em Lyon, Denizard partiu para a Suiça, para
completar seus estudos secundários na escola do célebre professor
Pestalozzi, na cidade de Yverdun. Bem cedo o jovem de Lyon chama a atenção
do mestre, que o coloca como seu auxilar nos trabalhos acadêmicos que
exercia, tendo algumas vezes substituido Pestalozzi na direção da escola, enquanto este empreendia alguma viagem de divulgação de sua metodologia de
ensino ou era convidado para criar, em outras localidades, uma insituição
nos moldes de Yverdun. Denizard também exercia com prazer o papel de

professor, ensinando aos seus colegas as lições que aprendera. Ele, apesar
de tão responsável, era visto como um jovem amável e espirituoso, mas muito
disciplinado. Não há registros de que tenha sido mal-quisto em qualquer
fase de seu período estudantil. Denizard Rivail bacharelara-se em Letras e Ciências. Falava fluentemente
vários idiomas. Após ser dispensado do serviço militar, resolve fundar, em
Paris, uma escola nos moldes da de Yverdun, que foi chamada de Liceu
Polimático. Ele estava empenhado no aperfeiçoamento pedagógico da educação
francesa, e, por isso, escreveu vários livros no assunto, tendo sido
premiado, em 1831, por seu trabalho, pela Academia Real de Arras. Por esta
mesma época casa-se com a professora Amélie Gabrielle Boudet. Quando tudo parecia ir bem, o sócio de Rivail, que era seus tio, leva o
Liceu à ruína, por dissipar, no jogo, vastas somas. Nada restava a Rivail
que pedir a liquidação do Instituto a que se dedicara com tanto amor. Com o
dinheiro resultante da partilha, Rivail sofre um outro revés da sorte. Após
ter aplicado o dinheiro na casa comercial de um de seus amigos, este logo
abre falência, por realizar maus negócios, e Denizard se vê na
constrangedora situação de nada mais ter. Para poder sobreviver, Rivail se lança freneticamente a escrever livros
didáticos e a trabalhar como contador de três firmas comerciais, o que lhe
possibilitou, após o susto e o desespero iniciais, recuperar parte de seu
antigo padrão de vida. Chegou a organizar, também, cursos de Física, Química, Astronomia e Anatomia Comparada que eram muito populares entre os
jovens da época. Depois de algum tempo, Denizard Rivail já tinha o necessário para viver com
certo conforto e se dedicar ao ensino novamente. Quase que paralelamente a estes acontecimentos na vida de Denizard Rivail, ocorre nos E.U.A um conjunto de fenômenos
que deram início ao nascimento do
moderno espiritismo (este termo, espiritismo, foi cunhado em 1857, por
Rivail, para distinguir este movimento do de outras escolas
espiritualistas). Trata-se dos fenômenos ocorridos em Hydesville, estado de
New York, em 1848, na casa da família Fox, que era metodista, e, portanto, longe de ter qualquer queda ou interesse por fatos que poderíamos hoje
chamar de paranormais. As fortes pancadas pancadas que começaram a ser
violentamente ouvidas no quarto das irmãs Katherine e Margaretta e que se
fizeram frequentes por várias semanas levaram a primeira, então com nove
anos, a desafiar "o batedor" a reproduzir as pancadas que ela mesma daria. A prontidão das respostas acabaria por marcar o início desse tipo de
comunicação entre vivos e mortos (Enciclopédia Mirador-Britannica, p. 4171). Por esta época, em Paris, estava em voga uma nova moda (como se dizia na
época). Tratava-se das chamadas "mesas falantes" ou "mesas girantes", que
consistia em se fazer perguntas ao redor de uma mesa ou outro móvel
qualquer que respondia através de pancadas às perguntas formuladas. Isto
era visto apenas como uma sutil e inexplicável diversão de salão, quando
não era encarada como uma brincadeira ou embuste espirituoso. Mas havia
quem levasse a sério tais coisas, pois muitas vezes as mesinhas davam

respostas corretas sem que ninguém conseguisse provar o descobrir quem ou o
que fazia as mesas responderem as questões. Convém notar que esta "moda"
das mesinhas que giravam parecia ocorrer em todos os lugares e em vários
países, num boom que dificilmente pode ser creditado ao acaso. Em 1854, Deinzard ouve falar pela primeira vez sobre tais "fenômenos", mas sua
primeira atitude é a de ceticismo: "eu crerei quando vir, e quando
conseguirem provar-me que uma mesa dispõe de cérebro e nervos, e que pode
se tornar sonâmbula; até que isso se dê, dêem-me a permissão de não
enxeragar nisso mais que um conto para provocar o sono". Por insistência dos amigos, Rivail presencia algumas das manifestações
físicas das mesinhas. Depois da estranheza e da descrença inicial, Rivail
começa a cogitar seriamente na validade de tais fenômenos. Eis o que ele
nos relata: "De repente encontrava-me no meio de um fato esdrúxulo, contrário, à primeira vista, às leis da natureza, ocorrendo em presença de
pessoas honradas e dignas de fé. Mas a idéia de uma mesa falante ainda não
cabia em minha mente". E ainda: "Pela primeira vez pude testemunhar o
fenômeno das mesas que giravam e pulavam em tais condições que dificilmente
poderia se acreditar serem frutos de embuste ou frade (...) Minhas idéias
longe estavam de terem sofrido uma modificação, mas em tudo aquilo que se
sucedia devia haver uma explicação" (segundo Henri Sausse, in Allan Kardec, ed. Opus, 1982). Foi em 1855 que Rivail testemunha pela primeira vez o
fenômeno das mesas girantes. Passa então a observar estes fatos; pesquisa-os cuidadosamente e, graças ao seu espírito de investigação, que
sempre lhe fora peculiar, resiste a elaborar qualquer teoria preconcebida. Ele quer, a todo custo, descobrir as causas. Como disse Henri Sausse: "(...) Sua razão
repele as revelações, somente aceita observações objetivas
e controláveis. (...) Vários amigos que acompanhavam há cinco anos o estudo
dos fenômenos, (...) colocam à sua disposição mais de cinquenta cadernos, contendo as comunicações feitas pelos Espíritos (...). O estudo desses
cadernos constituiu, para Rivail, o trabalho mais profundo e mais decisivo. Foi por esse estudo que ele se (...) convenceu da existência do mundo
invisível e dos Espíritos."
Ele utilizava o material dos cadernos, com as respostas dadas pelos
supostos espíritos, para refazer as mesmas perguntas para outros médiuns, de preferência desconhecido dos primeiros. Com base nas novas respostas, Rivail comparava
o conteúdo de ambas, e ficava perplexo com as
similaridades freqüêntes entre as elas. Ele reformulava as perguntas, e
pedia a ajuda de amigos para faze-las a outros médiuns, em outras
localidades. Ele recebia as respostas e compilava-as organizadamente por
tópicos e assuntos. Como poderia pessoas que nunca se viram dar as mesmas respostas para as
mesmas perguntas, às quais possuiam, frequentemente, um grande peso
filosófico e uma amplidão de conhecimentos que escapavam à formação ou aos
conhecimentos normais dos médiuns? A única resposta lógica seria a de que
agentes inteligentes as dariam por intermédio de certas pessoas com uma
sensibilidade psíquica especial: os médiuns. Além do mais, Rivail notou que
poderia existir uma extraordinária discrepância entre o desenvolvimento
moral e intelectual de um médiun e as comunicações obtidas em estado de
transe, que na época se chamava estado sonambúlico, ou, algumas vezes, de
mesmerização, nome devido ao pioneiro da hipnose, Mesmer. Sendo assim, a

faculdade de comunicar-se com os agentes inteligentes invisíveis
independente do grau de desenvolvimento espiritual do médiun, havendo
médiuns moralmente medíocres, e até mesmo, perversos, e outros médiuns de
grande desenvolvimento moral, que podem, uns e outros, receberem mensagens
de cunho elevado ou banal. Por estarem numa dimensão diferente da nossa, estes agentes inteligentes
invisíveis teriam de vivenciar uma realidade própria ao estado vibratório
de sua dimensão que explicaria algumas características das repostas dadas. Isso abriria um imenso leque de cogitações e de explicações
extraordinárias. Mas Rivail não se deixou levar pelo entusiasmo. Ele percebeu claramente, desde o início, que muitas das respostas obtidas
por meio dos médiuns eram tolas e pueris, e outras tinham muito a ver com
os conhecimentos ou as crenças do próprio médium, embora, durante o transe, ele comumente não tivesse consciência do que dizia ou escrevia. Assim, Rivail chegou
às seguintes conclusões: Primeiro, se são agentes inteligentes não físicos que dão as respostas, nem
por isso eles parecem ser muito diferentes dos homens vivos, pois suas
respostas são parecidas às repostas que qualquer homem daria, inclusive
dentro do nível de instrução a que tenham chegado, pois há respostas muito
bem elaborados junto com muitas outras muito fúteis. E, segundo, algumas
vezes as respostas são dadas de forma não-consciente, pelo próprio médium. Então, seria o agente inteligente do próprio médium que daria certas
respostas, em certas ocasiões. Estas repostas não são destituídas de valor. Elas podem apresentar um extraordinário grau de maturidade, mesmo que sejam
estranhas ao pensamento normal do médium quando em estado de vigília ou de
consciência desperta noraml. Assim, Denizard Rivail reconhecia clara e lucidamente que as entidades, por
serem seres extra-corpóreos, nem por isso eram necessariamente mais sábias
que os homens encarnados. Elas mesmas diziam que nada mais eram do que os
Espíritos dos homens que já morreram, e por isso mesmo, continuavam tão
humanas e cheia de falhas quanto antes. E mais ainda, Rivail antecipou-se
extraordinariamente em mais de quarenta e três anos a Sigmund Freud
(1856-1939) ao reconhecer uma ação incionsciente pessoal agindo sobre a
manifestação mediúnica, algumas vezes. Assim, poderemos nos perguntar, Rivail não teria sido um precursor da cética Psicanálise? Com o estudo meticuloso das
respostas dadas pelos espíritos, por meio de
diversos médiuns e em diversas localidades de diversos países, Rivail teve
suficiente material para compor um livro. Ele faz uma lúcida introdução
sobre seu trabalho no prefácio da obra que fez nascer o moderno
Espiritismo: O Livro dos Espíritos, lançado em Paris, em 18 de abril de
1857 (faça um download deste e de outros livros de Kardec na [2]Home Page
da FEB). Na capa da obra, está o nome do autor, ou melhor, o seu
pseudônimo, Allan Kardec. Rivail preferiu por este nome em sua mais
importante obra, para diferenciar sua temática das de suas obras
anteriores, voltadas à educação e à pedagogia. E por que Allan Kardec? Bem, certa ocasião, depois repetida inúmeras vezes, um espírito, que se
denominava de Z, havia dito a Rivail que eles haviam sido amigos numa vida
anterior! Eles haviam vivido entre os [3]Druidas, nas Gálias, e o nome de
Rivail era, na ocasião, Allan Kardec. É incrível, mas mais uma vez uma
antiga concepção (certeza?) fluente no ocidente desde Pitágoras, [4]Sócrates, [5]Platão, [6]Plotino e entre os povos originários da Bretanha

Maior e Menor, como os dos [7]Celtas, bem como como nos chamados movimentos
heréticos como a dos [8]Cátaros e a dos [9]Templários, vinha à tona
novamente na Europa: a idéia da [10]Reencarnação. De uma profundidade filosófica e psicológica desconcertantes, O Livro dos
Espíritos possui passagens e reflexões que vão muito além do nível de
conhecimento ordinário de sua época de publicação, inclusive no que tange
aos aspectos científicos da obra. Citemos, só de passagem, a noção de
evolução das espécies vivas dado pelos espíritos e comentado por Kardec, publicado nesta obra um ano antes do livro seminal de Charles Darwin, A
Origem das Espécies, ou , ainda, da indentidade entre matéria e energia
(chamado por Kardec de fluido universal), que se diferenciam entre si
apenas por um estado de condensação da energia, muito antes de Albert
Einstein.... De igual modo, as noções de percepção de consciência como
sendo diferentes manifestações de maturação psíquica lembra e muito as
atuais abordagens da Psicologia, principalmente a [11]Psicologia
Transpessoal. Há momentos em que a apresentação da doutrina em O Livro dos
Espíritos não fica a dever em nada às melhores teorias da personalidade da
Psicologia moderna. A descrição de Kardec do Fluido Universal lembra a do
conceito de orgônio, ou orgon, dado pelo psicanalista Wilhelm Reich, pai da
Bioenergética. Da mesma forma, os fundamentos e causas do processo da
reencarnação é idêntico aos fundamentos e causas postulados por alguns
psicoterapêutas (muitos dos quais não conhecem Allan Kardec) e que, por
meios de desenvolvimento e pesquisas diversos, a paritr do atendimento
clínico de pacientes, chegaram à técnica da Terapia de Vida Passada - TVP. E a filosofia de vida que a doutrina estimula a adotar é, em muitos pontos, similar
às condições propícias ao desenvolvimento da auto-atualização que é
o lema dos psicólogos humanistas, tais como Abraham Maslow e Carl Ransom
Rogers. A noção de animismo aponta para o conceito de inconsciente que teve
em Sigmund Freud seu mais sério teórico, e a de evolução espiritual lembra
o processo de individuação postulado pelo gênio de [12]Carl Gustav Jung. E ainda mais assobroso, Kardec logo reconheceria que seu estudo sobre a
comunicação dos chamados espíritos (como elas mesmas se diziam ser, as
forças inteligentes), que ele chamou de espiritismo, não trazia nada de
realmente novo, a não ser o fato destes fenômenos serem vistos e entendidos
sob a ótica moderna, científica: (...) Constituindo uma lei da natureza, os
fenômenos estudados pelo Espiritismo hão de ter existido desde a origem dos
tempos e sempre nos esforçamos por demonstrar que dele se descobrem sinais
na antigüidade mais remota. Pitágoras, como se sabe, não foi o autor da
mentempsicose (ou seja, da transmigração da alma pela reencarnação); ele o
colheu dos filósofos indianos e dos egípcios, que o tinham desde tempos
imemoriais (...) o que não padece dúvidas é que uma idéia não atravessa
séculos e séculos, e nem consegue impor-se à inteligências de escol, se não
contiver algo de sério (...)" (Kardec, p. 143 de O Livro dos Espíritos, ed. FEB). É por isso também que a introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de

1864 (obra de cunho filosófico com o objetivo de escalarecer a posição da
doutrina frente à mensagem do [13]Cristo) traz um estudo histórico que
culmina em um resumo do posicionamento de [14]Sócrates e [15]Platão como
precursores dos mais elevados ideiais cristãos e, em suas filosofias, de
vários tópicos do espiritismo, como bem fica evidenciado no diálogo Fédon, de Platão. Já em O Livro dos Espíritos, Kardec tece comentários sobre a
ancestralidade das idéias básicas do espiritismo (c.f. capítulo V da obra
citada) e como os fenômenos ditos espíritas são universais. Os fenômenos que caracterizam o espiritismo, especialmente o da comunicação
entre vivos e "mortos", são mencionados e reconhecidos como existentes em
todas as épocas da humanidade, qualquer que seja a cultura considerada. Um
dos mais antigos e claros registros a este respeito, dentro de nossa
tradição judáico-cristã, é a referência bíblica que está em 1 Samuel
28,7-19, onde Saul visita a pitonisa (médium) de En-Dor, que lhe
possibilitou a comunicação com o espírito do profeta Samuel. Os fenômenos
referentes ao Novo Testamento, mais apropriadamente aos Evangelhos, podem
ser consultados na Home Page sobre [16]Jesus. A idéia da reencarnação, por exemplo, é tão antiga e universal quanto a
própria humanidade (ver o capítulo V de O Livro dos Espíritos), e é a base
de diversas tradições filosóficas e religiosas do oriente, como o
[17]Budismo e o Hinduismo, por exemplo, e a das religiões pré-cristãs da
Europa, como a dos [18]Druidas, ou, posteriormente, baseados no
cristianismo, o posicionamento de alguns pais da Igreja antes do concílio
de Constantinopla, em 533, quando a doutrina da reencarnação foi abolida
por motivos políticos, mas que é encontrada em figuras excepcionais da
igreja, como em [19]Orígenes de Alexandria, só para citar um exemplo. Ainda
houve a presença de alguns movimentos fortemente contestatórios da ação da
Igreja de Roma, como a dos [20]Cátaros, embora os conhecimentos
antropológicos, históricos e sociológicos de seu tempo não permitissem a
Kardec ir muito além na análise destas tradições, filosofias e ocorrências
históricas. Além do mais, diferentemente de outras escolas espirtualitas, Kardec fez absoluta questão de expor seus estudos de forma racional, sem
cair nas armadilhas do discurso místico ordinário, mais levado pela emoção
e pela fantasia que pela razão, a partir de fatos, fenômenos e percepções
reais, com o máximo zelo à análise e ao cuidado da descrição dos fenômenos
a partir de sólidos referenciais lógicos. Seu trabalho seria, então, de
trazer ao nível intelectual moderno alguns fenômenos que sempre
acompanharam o homem em sua história e que foram negligencados pela ciência
mecanicista moderna, principalmente a partir do legado mecanicista de
Descartes e de Newton, apesar de ambos terem sido pessoas espiritualizadas, principalmente o segundo, que foi o primeiro grande cientista da era
moderna e o último grande mago dos tempos alquímicos. Em 1º de Janeiro de 1858, Allan Kardec publica o primeiro número da Revista
Espírita, que serviu como poderosa auxiliar para os trabalhos ulteriores e
para a divulgação da Doutrina Espírita na Europa e América. Segundo Henri Sausse, "em menos de um ano (...)", a Revista Espírita "(...)
estava espalhada por todos os continentes do Globo. (...) De tal maneira

aumentou o número de assinantes, que Kardec, a pedido destes, reimprimiu
duas vezes as coleções de 1858, 1859 e 1860 (...)". Dentre os mais célebres admiradores, amigos e estudiosos de Kardec ou do
espiritismo, destacamos o famoso astrônomo francês Camille Flammarion, o
filósofo H. Bergson, o psicólogo e filósofo William James, o físico William
Crookes, o biólogo Alfred Russel Wallace, o físico Oliver Lodge, o escritor
Arthur Conan Doyle, dentre inúmeros outros. Podemos expor a importância do trabalho de Kardec por estas palavras do pai
da moderna Parapsicologia, o fisiólogo Charles Richet: "Allan Kardec foi o
homem que no período de 1857 a 1871 exerceu a mais penetrante influência, e
que traçou o sulco mais profundo na ciência metapsíquica" (Charles Richet
in "Traité de Métapsychique", p. 34). Da mesma forma, vários outros
estudiosos confirmam a importância de Allan Kardec no desenvolvimento dos
estudos psíquicos no mundo inteiro. Camille Flammarion, um dos maiores
astrônomos da história, sempre lhe foi grato pelos estudos que eram
correntes na Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, e foi ele quem fez o
discurso fúnebre de Kardec, e a lista poderia se alongar com o nome de
vários outros célebres pesquisadores, como Ernesto Bozzano, César Lombroso, dentre vários outros. Em 1º de abril de 1858, Allan Kardec funda a Sociedade Parisiense
de
Estudos Espíritas, que tinha por objetivo "(...) o estudo de todos os
fenômenos relativos às manifestações espíritas e suas aplicações às
ciências morais, físicas, históricas e psicológicas. (...)" - Não era
intenção de Kardec fundar uma religião, como ocorreu posteriormente a
partir do seu legado. Para ele "A ciência espírita compreende duas partes: uma experimental, relativa às manifestações em geral; a outra, filosófica, relativa
às manifestações inteligentes e suas conseqüências" (Kardec, in O
Livro dos Espíritos, tópico XVII da Introdução). Discutiremos sobre isso
mais adiante, tomando o próprio Kardec e outros autores como referência. Em outubro 1861 ocorreu um patético acontecimento, para não dizer
repulsivo. Trata-se do famoso "Auto-de-Fé", promovido pela Igreja Católica
na cidade de Barcelona, Espanha, onde foram queimadas em praça pública
cerca de trezentas publicações espíritas. Estas obras, encomendadas a Allan
Kardec pelo bibliotecário e livreiro Maurício Lachâtre, foram enviadas de
forma comum, nas condições alfandegárias normais, tendo as taxas de
importação sido pagas pelo destintário às autoridades espanholas; porém a
entrega das encomendas não foi realizada. Elas foram confiscadas pelo Bispo
de Barcelona, com a seguinte justificativa: "A Igreja Católica é universal, e estes livros são contrários à fé católica, não podendo o governo (veja
só, voltamos a ter a mistura do poder temporal com o religioso, sendo este
último mais forte) permitir que eles passem a perverter a moral e religião
de outros países". Talvez com saudades dos áureos tempos de absoluto domínio das consciências
humanas, à base de ferro e fogo, o douto Bispo de Barcelona, em doentia
demonstração de esnobismo típicas de quem se acha no direito pertencer à

seleta instituição dos únicos representantes da vontade de Deus na Terra, fez reacender as fogueiras que tantas vítimas inocentes fizera em séculos
anteriores, onde, pelas mãos de um carrasco, as obras foram queimadas
certamente no lugar das pessoas que deveriam lá estar: os espíritas
franceses em geral, e um homem em particular: Allan Kardec. Em tudo a
pantomima seguiu as regras de uma execução inquisitorial, como podemos ler
pelos autos do processo: "Assitiram ao auto-de-fé: "Um padre, com seus hábitos sacerdotais, tendo, em uma das mãos, a cruz e, na outra, uma tocha; "Um tabelião
encarregado de redigir o processo verbal do auto-de-fé; "O assitente do tabelião; "Um funcionário superior da administração das alfândegas; "Três serventes da alfândega,
com a função de alimentar o fogo; "Um agente da alfândega, representando o proprietário das obras condenadas; "Uma incalculável multidão se fez presente, enchendo
os passeios, cobrindo
a esplanada onde ardia a fogueira; "Depois de o fogo ter consumido os trezentos volumes e brochuras espíritas, o sacerdote e seus auxiliares retiraram-se cobertos
pelas vaias e maldições
dos inúmeros assitentes, que bradavam: Abaixo a Inquisição! "Depois, muitas pessoas, em protesto, aproximaram-se e apanharam as
cinzas". E, graças a esta demonstração de brutalidade da religião de Roma, o
espiritismo acabou tendo uma grande repercussão em toda a Espanha, granjeando inúmeros adeptos. De certa forma, este ato alçou o Espiritismo
ao mesmo patamar de outros mártires da liberdade de espírito, incluindo
Jacques DeMolay, Galileu, Giordano Bruno e aquela que, com toda a
infalibilidade papal, foi condenada como bruxa à fogueira para, quatro
séculos depois, ser elevada à categoria de santa, Joana D'Arc (demorou
bastante para a infalibilidade papal reconhecer o erro). Eis uma observação de Kardec, na Revue Spirite de 1864, p. 199, com
respeito à divulgação do Espiritismo como umra religião pelos doutores da
Lei da era moderna: "Quem primeiro proclamou que o Espiritismo era uma
religião nova, com seu culto e seus sacerdotes, senão o clero? Onde se viu, até o presente, o culto e os sacerdotes do Espiritismo? Se algum dia ele se
tornar uma religião, o clero é quem o terá provocado". Kardec passou o resto da de sua vida no mister de divulgar os resultados de
seus estudos e os de outros colegas. Empreendeu inúmeras viagens pela
França e pela Bélgica entre 1859 a 1868, e escreveu várias brochuras e
pequenos artigos para a divulgação do Espiritismo. Kardec escreveu ainda muitos outros livros, entre eles se destacam O Livro
dos Médiuns, de 1861; em 1864, O Evangelho Segundo o Espiritismo; em 1865, o maravilhoso O Céu e o Inferno, ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo; em 1868,
A Gênese. Sempre lúcido e lógico, soube como enfrentar a oposição
e difamação de inimigos gratuitos com dignidade e nobreza, reconhecendo
quando algum argumento oposto tinha um valor sério e sincero. Manteve-se à
frente da Societé Parisiene D'Études Spirites, além de de escrever outros
livros e artigos para a Revista Espírita, até seu desencarne, ocorrido em
31 de março de 1869, aos 65 anos de idade, causado por um colápso cardíaco. Princípios básicos da Doutrina Espírita
- Deus -
1. Existe uma Inteligência Suprema, Absoluta, não cogniscível, Causa
Primária de todas as coisas, que se chama Deus, Jeová, Iavé, Alá, Brahman, O Uno, Grande-Espírito, etc. Não há efeito sem causa. A causa

de um universo ordenado é, pois, uma causa acima do universo. Deus, portanto. 2. Deus está acima de qualquer definição. Como nos fala [21]Plotino, Deus está,
por ser Absoluto, acima de qualquer definição, pois Ele/Ela
é infinito em seus atributos e perfeições. Além, portanto, das
limitações do pensamento intelectual humano. Qualquer que seja a
palavra usada para se ter uma idéia de Deus, ela sempre estará
expressando algo de limitado, humano. Mas, ainda assim, podemos dizer, numa etapa didática de analogia possível ao homem, que Deus é eterno, imutável, imaterial,
único, soberanamente justo e bom e Infinito em
todas as suas perfeições. Mesmo estas definições são coisas sem muito
sentido para se definir Deus. Expressam pálidas idéias humanas, e seu
sentido pode variar de uma para outra pessoa. E é por isso que assim
falam os espíritos: "Creia, não queiras ir além do fato intuitivo da
existência de Deus. Não vos percais num labirinto que vos confundirá e
do qual não podereis sair. Isso não vos tornará melhores, mas um pouco
mais orgulhosos, porque vocês acreditaram saber sobre algo que, na
verdade, vos escapa e do qual nada, em realidade, sabes. Deixai, pois, de lado todos estes sistemas que apenas vos dividem; tendes bastante
coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai
as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertar delas, o que
vos será mais útil e mais benéfico do que pretenderes penetrar com
vossas limitações no que é impenetrável" (Resposta dada pelos
espíritos à pergunta nº 14 de O Livro dos Espíritos)
- O Espírito -
3. Há no homem, ou melhor, É o homem, em sua essência, um princípio
inteligente, a que normalmente chamamos "Alma" ou "Espírito", independente da matéria, em íntimo contato com o corpo, que é-lhe
instrumento de aperfeiçoamento, e que possui todas as faculdades
morais e psíquicas inerentes ao ser humano. 4. As doutrinas materialistas são, em grande parte, responsáveis pelo
estado de náusea e desesperança que aflige, em grande parte, a
humanidade. Veja-se o tópico sobre [22]Holismo para um maior
aprofundamento sobre esta afirmação. 5. O Espiritismo, enquanto Ciência (aspecto tão enfatizado por Allan
Kardec, mas, atualmente, um tanto negligenciado pelos espíritas
brasileiros, que transformaram a doutrina em quase que unicamente uma
religião), o Espiritismo prova a existência da alma por meio dos atos
inteligentes do homem e pelos atos inteligentes das manifestações
mediúnicas. 6. A alma humana, ou espírito, sobrevive ao corpo, embora traga em si
traços deste corpo, e conserva a sua individualidade após a morte
deste. 7. A alma do homem é ditosa ou infeliz depois da morte em conseqüência
direta de seus atos durante a vida, que se inscrevem em sua
consicência moral. 8. A existência de um Ser Supremo, Deus, a alma e a sobrevivência e
individualidade da alma após a morte do corpo, bem como o estado de
felicidade ou infelicidade futuras, constituem princípios básicos
fundamentais de, praticamente, todas as religiões. Por isso todas as
religiões são válidas. Elas representam modalidades do entidimento do
transcendente de acordo com os diversos estados de consciência do ser
humano. 9. Todas as criaturas vão, sucessivamente, evoluindo no plano moral e
intelectual, pelas diversas etapas por que passam nas várias
reencarnações, num contínuum que vai surgindo em progressão dos reinos
inorgânicos até os mais incorpóreos e espirituais. 10. A Terra não é o único planeta habitado, e nem o mais aperfeiçoado. Existem uma infinidades de mundos habitados,
que oferecem vários

âmbitos de evolução e aprendizado para os espíritos. 11. Há uma lei de causalidade moral, conhecida como Lei do Carma, que
interliga as várias vidas sucessivas do espírito, de modo a lhe dar o
meio condizente com os atos praticados anteriormente, mas onde pode
atuar agora, por meio de seu livre-arbítrio. Comentários
O aspecto moral da doutrina, resutante da filosofia espírita, foi
posteriormente confundido e amalgamado com um aspecto religioso. Por
possibilitar, através de sua filosofia, uma religação efetiva com a
dimensão espiritual do homem, o espiritismo permite usufrir ao seu
estudioso um sentimento de religiosidade, no sentido latino do termo
(religare, ou seja de se religar com algo superior, transcendente) que
vai muito além do sentido atual da palavra religião. A Religiosidade, que é sentimento superior ao estreito rótulo da religião, é que
preenche de fato a doutrina espírita. É o próprio Kardec quem também nos fala que o espiritismo, por ser uma
ciência e uma filosofia, "é, pois, a mais potente auxiliar da
religião" (Kardec, O Livro dos Espíritos, página 111 da edição da
FEB), sendo, pois, algo que, se não é uma religião em si, a não ser
que se queira isso, respeita todas as religiões, pois elas são a
expressão da ânsia humana pelo sublime e pelo transcendente, e são
válidas, assim como cada teoria de personalidade, na Psicologia, é
válida de acordo com o posicionamento e maturação psicológica e
emocional de cada indivíduo. Infelizmente, fizeram do espiritismo o
que bem quiseram, do mesmo modo como fizeram o que bem quiseram dos
ensinos do Cristo, de Sócrates, e outros.... Um estudo realmente aprofundado e sistematizado do obra de Kardec
escalareceria a todos sobre estes pontos, que acredito ser de
fundamental importância para a maturação da tolerância entre as
diferenças religiosas e uma vacina contra qualquer tipo de dogmatismo
que, vez por outra, parece brotar no posicionamento religioso de
alguns espíritas e dirigentes espíritas brasileiros que, por força da
tradição católica em nossa cultura, têm transformado alguns centros -
que deveriam ser casas sérias de estudos psíquico-espirituais- em
verdadeiras igrejas - e sem a competência destas, pois algumas pessoas
passam a dar palestras sem mínimo de aprofundamento na doutrina ou nas
ciências psíquicas, como em psicologia e psiquiatria, além das
leituras básicas da codificação kardequiana, tirando conclusões
apressadas e/ou equivocadas de alguns fenômenos psicológicos que
incidem sobre parte de nossa população, taxando-os de obsessão e
outras coisas mais. Ora, nem todos os problemas são causados por
pertubações espirituais - isso é acusar os espíritos injustamente -, ou, se existe alguma parcela disto, foi por algum desajuste primeiro
do sujeito encarnado, desajuste de cunho íntimo e pessoal que precisa
de tratamento mais dirigido ao aspecto psicológico, mundando seus o
padrão de pensamentos e os hábios mentais imediatos que é a causa de
atração do espírito desencarnado, por sintonia psíquica. Sendo assim
Kardec apontou para o fato de que muitos de nossos desajustes se devem
à causas pisicossomáticas e espirituais interligadas, pondo-se, portanto, bem à frente do desenvolvimento da psicologia de seu tempo, apontando para as teorias
correntes agora, nos meios acadêmicos sobre
o papel da medicina psicossomática na dinâmica das doenças e
distúrbios mentais. Kardec tinha plena consciência do fato de que os conhecimentos
adquiridos em seus estudos eram apenas o primeiro passo de uma longa
jornada, e, como nos fala o grande escritor Léon Denis em sua obra
"Depois da Morte", no capítulo XX, "A doutrina de Allan Kardec, nascida - não será demasiado repetí-lo - da observação metódica, da

experiência rigorosa, não se torna um sistema definido, imutável, fora
e acima das conquistas futuras da ciência. Resultado combinado de
conhecimentos dos dois mundos, de duas humanidades de planos paralelos
penetrando-se uma na outra, ambas, porém, imperfeitas e a caminho do
entendimento de verdades mais profundas, do desconhecido, a Doutrina
dos Espíritos transforma-se sem cessar, pelo trabalho e pelo
progresso, e (...) acha-se aberta às retificações, aos esclarecimentos
do futuro". E é isto que tem de ficar bem claro para o movimento
espírita brasileiro, com alguns setores cristalizados e dogmatizados. A verdade é muito ampla para estar contida apenas nas obras do
primeiro período da codificação, e as ciências evoluem para uma
compreensão mais holística do homem e do universo que deve estar
presente também nas nossas casas de estudo espíritas. E se há ainda
pessoas que se realizam apenas no aspecto religioso do movimento, muitas outras há, especialmente entre os jovens, que anseiam por ver
novos horizontes onde possam se lançar à altos vôos com as duas asas, como nos fala Emmanuel, da razão e a do coração. Neste sentido é bom relembrar mais algumas
palavras do próprio Kardec: "O Espiritismo é uma doutrina filosófica de efeitos religiosos como
qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai
encontrar-se com AS BASES FUNDAMENTAIS DE TODAS AS RELIGIÕES: DEUS, A
ALMA E A VIDA FUTURA. MAS NÃO É UMA RELIGIÃO CONSTITUÍDA, visto que
não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos reais, nenhum tomou o título de sarcedote ou de sumo sarcedote" (...) "O
Espiritismo proclama a liberdade de consciência como direito natural; proclama-a para seus adeptos assim como para todas as pessoas. Respeita todas as convicções
sinceras e faz questão de reciprocidade". (Kardec, in "Obras Póstumas" - Ligeira Resposta aos Detratores do
Espiritismo, páginas 260 e 261 da 21º edição da FEB, com destaques
meus). Ora, é muito lamentável que algumas instituições que se dizem
espíritas tenham em seus meios pessoas com a pseudo-sabedoria de se
arvorarem donas de todo o conhecimento e evitem o contato com outros
sistemas de pensamento ou com as novas descobertas científicas. Esquecem-se, em nome do dogmatismo e da vaidade, os dois mandamentos
essenciais do espiritismo: "Espíritas, amai-vos, eis o primeiro
mandamento; instruí-vos, eis o segundo", e põem um limite quase
instransponível entre a mesa, com seus dirigentes, e a assembléia, num
arremedo de hierarquia, arremate de um nível de poder político comum
às religiões institucionalizadas. Ainda há tempo de retomar a seara da
forma como foi planejada por Kardec, basta humildade e solidariedade, nada mais, junto com um sincero desejo de estudar e de instruir-se. Felizmente nas fileiras
espíritas brasileiras existem lumiares de alto
valor dentro do aspecto científico e filosófico, como Hernani
Guimarães Andrade, Henrique Rodrigues, Hermínio C. Miranda, Clovis
Nunes, Jorge Andrea, Raul Teixeira, Divaldo P. Franco e, por meio de
sua mediunidade maravilhosa, Francisco Cândido Xavier. De forma mais
ou menos indireta, também temos a obra fantástica de Pietro Ubaldi
que, com a sua A Grande Síntese demonstrou algumas das temáticas só
agora mais ou menos popularizadas ou divulgadas como consequencia da
evolução da [23]Física Quântica ou da concepção [24]Holística da
filosofia da ciência que foram divulgadas em grande parte nas obras de
Fritjof Capra. Mas isto é um outro assunto. Acho que o precioso trabalho de Allan Kardec ainda há de ser
reconhecido pelas gerações vindouras. O sucesso que sua obra logrou a
ter na segunda metade do século XIX, foi, de certa forma, ofuscada
pelas crises e guerras sucessivas por que passou a Europa, que acabou
por entrar numa fase de descrença existencial, com a perda de seus
idéias mais espirituais, bem exemplificada pelo niilismo e mecanicismo

do século XX, bem como pelo surgimento de outras correntes espirituais
mais esotéricas, de sabor fortemente ocultista e, por isso mesmo, mais
atrantes para algumas pessoas às quais o mecanicismo de nossa época
desagrada, como a Teosofia de H. P. Blavatisk, e outras. Mas só o
tempo, como agora parece ocorrer, dirá o que de fato é a obra de um
dos homens mais universais do século XIX. Bibliografia Sugerida
Atenção: Alguns dos livros espíritas aqui indicados podem ser
retirados (por download) pela internet
em http://www.bauhaus.com.br/secd/ ou em http://www.febrasil.org.br/lesp_br.htm
Enciclopédia Mirador-Britannica, 1992. Kardec, Allan A Codificação da
Doutrina Espírita - Coletânea das Obras básicas de Kardec, Instituto
de Difusão Espírita, São Paulo, 1997. Kardec, Allan O Livro dos
Espíritos, Federação Espírita Brasileira, São Paulo, 1990. Kardec, Allan O Que é o Espiritismo, Federação Espírita Brasileira, São Paulo, 1990. Kardec, Allan
O Livro dos Médiuns, Lake, São Paulo, 1988. Kardec, Allan O Céu e o Inferno, Lake, São Paulo, 1988. Kardec, Allan
Obras Póstumas, Federação Espírita Brasileira, São Paulo, 1990. Wantuil, Zeus & Thiesen, Francisco Allan Kardec, vol. I, II e III, Fed. Espírita Brasileira, 1984.
Sausse, Henri Biografia de Allan
Kardec em Allan Kardec, Ed. Opus, São Paulo,1982.

A Física Moderna
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Extraído do livro Percepção e Consciência
Uma Nova Visão de Mundo
Com os trabalhos de Michael Faraday e James Clerk Maxwell, no século XIX, sobre o eletromagnetismo, a até então sólida concepção
científica
mecanicista sofre um primeiro grande abalo: era possível que existisse uma
forma de realidade independente da matéria redutível a componentes básicos
- o campo eletromagnético. O conceito de campo é um conceito sutil. O campo
não pode ser decomposto em unidades fundamentias. Mas foi só com a
descoberta dos quanta de energia, por Max Planck, em 1900, que a visão de
mundo, em Física, começou a se transformar radicalmente. E Albert Einstein, em 1905, ao publicar sua Teoria Especial da Relatividade - mais tarde
ampliada na Teoria Geral da Relatividade -, promoveu uma ruptura conceitual
revolucionária entre a nova realidade de um novo universo curvo e inserido
num contínuum espaço-temporal e os conceitos mais básicos da física
newtoniana, como, por exemplo, o do espaço euclidiano rígido, independente
de um tempo universalmente linear, e de uma matéria inerte constituida de
minúsculas bolinhas indestrutíves, os átomos. Hoje sabemos que a medida do
tempo varia conforme a velocidade com que se deslocam diferentes
observadores, em diferentes referenciais, que o espaço é curvado pela
presença de matéria, que matéria e energia são equivalentes, etc. Nasceu
assim, junto com o século XX, a chamada Física Moderna. O trabalho de Einstein possibilitou uma nova mentalidade para o estudo dos
fenômenos atômicos. Assim, os anos 20 estabeleceriam uma nova compreensão
da estrutura da matéria. Com o desenvolvimento da Mecânica Quântica, através dos trabalhos de Niels Bohr, Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli, Erwin Schrödinger
e outros, descobrimos uma estranha propriedade quântica: os elementos atômicos, a luz e outras formas eletromagnéticas têm um
comportamento dual - ora se comportam como se fossem constituídos por
partículas, ou seja, por elementos de massa confinada a um volume bem
definido numa região específica do espaço, ora agem como se fossem ondas
que se expandem em todas as direções. E, ainda mais estranho, a natureza do
comportamento observado era estabelecida pela expectativa expressa no
experimento a que estavam sujeitos: onde se esperava encontrar partículas, lá estavam elas, da mesma forma como ocorria onde se esperava encontrar a
onda. Era como se o esperado se refletisse na experiência. Como se poderia
conciliar o fato de que uma coisa podia ser duas ao mesmo tempo, e como
manter a objetividade se o tipo de experimento, e conseqüentemente a
expectativa do esperado, pareciam determinar um ou outro comportamento
experimental? A solução foi dada por Niels Bohr ao elaborar o princípio da

complementaridade. Ele estabelece que, embora mutuamente excludentes num
dado instante, os dois comportamentos são igualmente necessários para a
compreensão e a descrição dos fenômenos atômicos. O paradoxo é necessário. Ele aceita a discrepância lógica entre os dois aspectos extremos, mas
igualmente complemetares para uma descrição exaustiva de um fenômeno. No
domínio do quantum não se pode ter uma objetividade completa... Ruiu, assim, mais um pilar newtoniano-cartesiano, o mais básico, talvez: não se
pode mais crer num universo determinístico, mecânico, no sentido clássico
do termo. A nível subatômico não podemos afirmar que exista matéria em
lugares definidos do espaço, mas que existem "tendências a existir", e os
eventos têm "tendências a ocorrer". É este o Princípio da Incerteza de
Heisenberg. Tais tendências possuem propriedades estatísticas cuja fórmula
matemática é similar à formula de ondas. É assim que as partículas são, ao
mesmo tempo, ondas. A Física deixa de ser determinística para se tornar
probabilística, e o mundo de sólidos objetos materiais, que se pensava bem
definido, se esfumaça num complexo modelo de ondas de probabilidade. Cai o
determinismo em Física. As "partículas" não têm mais significado como
objetos isolados no espaço; elas só fazem sentido se forem consideradas
como interconexões dinâmicas de uma rede sutil de energia entre um
experimento e outro (Capra, 1982, 1986; Grof, 1988; Heisenberg, 1981). Ficou demonstrada que a certeza num universo determinístico era fruto do
desejo humano de controle e previsibilidade sobre a natureza, e não uma
característica intrínseca da mesma. A concepção newtoniana era apenas uma
formulação lógica sobre a natureza, refletindo uma idéia pessoal de mundo. "O mecanicismo, com todas as suas implicações, retirou-se do esquema da
ciência. O Universo mecânico, no qual os objetos se empurram, como
jogadores numa partida de futebol, revelou-se tão ilusório quanto o antigo
universo animista, no qual deuses e deusas empurravam os objetos à sua
volta para satisfazer seus caprichos e extravagâncias"
Sir James Jeans
A mais revolucionária descoberta, porém, foi a demonstração
experimental do pilar central da Teoria da Relatividade: as partículas
materiais podem ser criadas a partir da pura energia e voltar a ser
pura energia. A equivalência entre matéria e energia é expressa pela
famosa equação E=mc2. As teorias de campo transcenderam
definitivamente a distinção clássica entre as partículas e o vácuo. Segundo Einstein, as partículas representam condensações de um campo
contínuo presente em todo o espaço. Por isso o universo pode ser
encarado como um teia infinita de eventos correlacionados, e todas as
teorias dos fenômenos naturais passam a ser encaradas como meras
criações da mente humana, esquemas conceituais que representam
aproximações da realidade., pois, segundo a interpretação de
Compennhagem, formulada por Bohr e Heisenberg, não há realidade até o
momento em que ela é percebida pelo observador. Dependendo do ajuste
experimental, vários aspectos complementares da realidade se tornaram
visíveis. É o fato de se observar que gera os paradoxos! Por isso a
realidade é fruto do trabalho mental e ela tenderá a ter os contornos
de quem a observa e que escolhe o quê e o como observar. Fritjof Capra assim se expressa em relação a esse fenômeno: "A
característica principal da teoria quântica é que o observador é

imprescindível não só para que as propriedades de um fenômeno atômico
sejam observadas, mas também para ocasionar essas propriedades. Minha
decisão consciente acerca de como observar, digamos, um elétron, determinará, em certa medida, as propriedades do elétron. Se formulo
uma pergunta sobre a partícula, ele me dá uma resposta sobre
partícula; se faço uma pergunta sobre a onda, ele me dá resposta sobre
onda. O elétron não possui propriedades objetivas independentes da
minha mente. Na física atômica não pode ser mais mantida a nítida
divisão entre mente e matéria, entre o observador e o observado. Nunca
podemos falar da natureza sem, ao mesmo tempo, falarmos de nós mesmos"
(Capra, 1986, destaques meus). Eugene Wingner, prêmio Nobel de Física, também concorda que "a consciência, inevitável e inevitavelmente, entra na teoria" (Di
Biase, 1994). "É a mente que vemos refletida na matéria. A ciência da Física é uma
metáfora com a qual o cientista, como o poeta, cria e amplia
significado e valor na busca por entendimento e propósito... O que
torna a ciência útil para nós e que nos faz apreciá-la -
previsibilidade, objetividade, consistência, generalidade - não existe
de fato em alguma realidade externa, independente da consciência. É
parte de nossa experiência e interpretação do mundo. Vejo a obra
monumental de Newton como uma monumental criação mental, um sistema de
mundo concebido humanamente, incorporando consistência e ordem causal, que satisfaz a mente humana e a ajuda a aplacar o medo de um universo
caótico. Seu trabalho é tanto uma obra de arte como uma obra de
ciência. Protestar que a concepção de Newton é validada por inúmeras
observações do universo físico não é argumento, pois minha idéia é que
a concepção ou teoria e as quantidades são criadas paralelamente para
a corroboração mútua (não necessariamente sem conflito e não
necessariamente consciente). Além disso, as próprias quantidades se
baseiam em uma definição e procedimentos de medida, que são
fundamentalmente subjetivos" . Roger Jones
Todos os principais teóricos da [1]Psicologia Transpessoal estão
interessados profundamente nas implicações das descobertas e
contribuições teóricas da Física moderna, pois elas alargam amplamente
nossa concepção de mundo, nela se discutindo fortemente o papel da
percepção e da consciência, incluindo-se até mesmo um ambiente mais
favorável para a aceitação dos chamados fenômenos psíquicos
parapsicológicos (Charon, 1981; Andrade, 1987 LeShan,1993). E, reciprocamente, físicos de ponta estão interessados nas profundas
implicações do movimento Transpessoal e nas similaridades entre a
visão de mundo que emerge da Física moderna e o pensamento oriental. David Bohm e outros físicos chegam a declarar que a consciência deverá
ser incluída numa teoria abrangente que una a realidade Quântica com a
Teoria da Relatividade, numa explicação unificada do universo. O
físico brasileiro Mário Schenberg declarou que "a Física e a
Psicologia são aspectos diferentes de uma mesma realidade, vista sob
ângulos diferentes". "No conceito moderno da física (...) não existe a possibilidade de uma
existência desligada, autônoma". Alfred North Whitehead
"O homem moderno tem utilizado a relação de causa e efeito do mesmo
modo como o homem da antiguidade usava os deuses, isto é, para ordenar
o universo. Isto não ocorria apenas porque se tratava do sistema mais
verdadeiro, mas porque era o mais conveniente". Henri Poincaré
"O homem dispõe a si mesmo e constrói essa disposição com o mundo". Sir Arthur Eddington

"A razão pela qual nosso ego pensante, perceptivo e consciente não se
encontra em nenhum lugar, na imagem que temos do mundo, pode ser
facilmente explicada em sete palavras: ele PRÓPRIO é a imagem do
mundo. Ele é identico ao todo e, portanto, não pode estar contido
nele"
Erwin Schröndiger
"O ser humano vivencia a si mesmo, seus pensamentos, como algo
separado do resto do universo - numa espécie de ilusão de ótica de sua
consciência. E essa ilusão é um tipo de prisão que nos restringe a
nossos desejos pessoais, conceitos e ao afeto apenas pelas pessoas
mais próximas. Nossa principal tarefa é a de nos livrarmos dessa
prisão, ampliando o nosso círculo de compaixão, para que ele abranja
todos os seres vivos e toda a natureza em sua beleza. Ninguém
conseguirá atingir completamente este objetivo, mas lutar pela sua
realização já é por si só parte de nossa liberação e o alicerce de
nossa segurança interior". Albert Einstein
Veja também: [2]Além da Ciência - Física e Filosofia
Bibliografia Sugerida
Capra, Fritjof. O Ponto de Mutação Ed. Cultrix, São Paulo, 1986. Capra, Fritjof. O Tao
da Física Ed. Cultrix, São Paulo, 1985. Di Biase, Francisco. O Homem Holístico Ed Vozes, Petrópolis, 1995.
Guimarães, Carlos. Percepção e Consciência, Ed Persona, João Pessoa, 1996.

Carl Gustav Jung e a Psicologia Analítica
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Jung e sua obra
Carl Gustav Jung nasceu a 26 de julho de 1875, na Suíça, no seio de uma
família voltada para a religião. Seu pai e vários outros parentes eram
pastores luteranos, o que explica, desde a mais tenra idade, o interesse do
jovem Carl por questões espirituais e pelo papel da religião no processo de
maturação psíquica das pessoas, povos e civilizações. Criança bastante
sensível e introspectiva, desde cedo o futuro discípulo de Freud demonstrou
uma inteligência e uma sagacidade intelectuais notáves, o que, mesmo assim, não lhe poupou alguns dissabores, como a inveja dos colegas e a solidão. Ao entrar
para a universidade, Jung havia decidido estudar Medicina, na
tentativa de manter um compromisso entre seus interesses por ciências
naturais e humanas. Ele queria, de alguma forma, vivenciar na prática os
ideais que adotava usando os meios dados pela ciência. Por essa época, também, passou a se interessar mais intensamente pelos fenômenos psíquicos
e investigou várias mensagens hipoteticamente recebidas por uma médium
local, o que acabou sendo o material de sua tese de graduação, "Psicologia
e Patologia dos Assim Chamados Fênomenos Psíquicos". Em 1900, Jung tornou-se interno na Clínica Psiquiátrica Bugholzli, em
Zurique, onde estudou com Pierre Janet, em 1902, e onde, em 1904, montou um
laboratório experimental em que criou seu célebre teste de associação de
palavras para o diagnóstico psiquiátrico. Neste, uma pessoa é convidada a
responder a uma lista padronizada de palavras-estímulo; qualquer demora
irregular ou exitação entre o esímulo e a resposta é muito provavelmente um
indicador de tensão emocional relacionada, de alguma forma, com o sentido
da palavra-estímulo. Mas tarde este teste foi aperfeiçoado e adaptado por
inúmeros psiquiatras e psicólogos, para envolver, além de palavras, imagens, sons, objetos e desenhos. Estes estudos lhe granjearam alguma
reputação, o que o levou, em 1905, aos trinta anos, a assumir a cátedra de
professor de psiquiatria na Universidade de Zurique. Neste ínterim, Jung entra em contato com as obras de Sigmund Freud
(1856-1939), e, mesmo conhecendo as fortes críticas que a então incipiente
Psicanálise sofria por parte dos meio médicos e acadêmicos na ocasião, ele
fez questão de defender as descobertas do mestre vienense, convencido que
estava da importância e do avanço dos trabalhos de Freud. Estava tão
enstusiasmado com as novas perspectivas abertas pela psicanálise, que
decidiu conhecer Freud pessoalmente. O primeiro encontro entre eles
transformou-se numa conversa que durou treze horas ininterruptas. A
comunhão de idéias e objetivos era tamanha, que eles passaram a se
corresponder semanalmente, e Freud chegou a declarar Jung seu mais próximo
colaborador e herdeiro lógico. Porém, tamanha identidade de pensamentos e
amizade não conseguia esconder algumas diferenças fundamentais, e nem os

confrontos entre os fortes gênios de um e de outro. Jung jamais conseguiu
aceitar a insistência de Freud de que as causas dos conflitos psíquicos
sempre envolveriam algum trauma de natureza sexual, e Freud não admitia o
interesse de Jung pelos fenômenos espirituais como fontes válidas de estudo
em si. O rompimento entre eles foi inevitável, ainda que Jung o tenha, de
certa forma, precipitado. Ele iria acontecer mais cedo ou mais tarde. O
rompimento foi doloroso para ambos. Talvez tenha aberto uma profunda mágoa
mútua, nunca inteiramente assimilada pelos dois principais gênios da
Psicologia do século XX. Ainda durante o período em que estavam juntos, Jung começou a
desenvolver uma sistema teórico que chamou, originalmente, de "Psicologia
dos Complexos", mais tarde chamando-a de "Psicologia Analítica". Foi Jung
quem cunhou o termo "complexo", que foi adotado por Freud. Por complexo, Jung entendia os vários "grupos de conteúdos psíquicos que, desvinculando-se da consciência,
passam para o inconsciente, onde
continuam, numa existência relativamente autônoma, a influir osbre a
conduta" (G. Zunini). E, embora possa ser frequentemente negativa, essa
influência também pode assumir caracterísiticas positivas, quando se torna
o estímulo para novas possibilidades criativas. [jung.jpg] Jung já havia usado a noção de complexo desde 1904, na
diagnose das assoicações de palavras. A variância no tempo de reação entre
palavras demonstrou que as atitudes do sujeito diante de certas
palavras-estímulo, quer respondendo de forma exitante, quer de forma
apressada, era diferente do tempo de reação de outras palvras que pareciam
ter estimulação neutra. As reações não convencionais poderiam indicar (e
indicavam de fato) a presença de complexos, dos quais o sujeito não tinha
consciência. Utilizando-se desta técnica e do estudo dos sonhos e de desenhos, Jung passou a se dedicar profundamente aos meios pelos quais se expressa
o
inconsciente. Os sonhos pessoais de seus pacientes o intrigavam na medida
em que os temas de certos sonhos individuais eram muito semelhantes aos
grandes temas mitológicos universais, ainda mais quando o sujeito nada
conhecia de mitos ou mitologias. O mesmo ocorria no caso dos desenhos que
seus pacientes faziam, geralmente muito parecidos com os símbolos adotados
por várias culturas e tradições religiosas do mundo inteiro. Estas
similaridades levaram Jung à sua mais importante descoberta: o
"inconsciente coletivo". Assim, Jung descobrira que além do consciente e
inconsciente pessoais, já estudados por Freud, exitiria uma zona ou faixa
psíquica onde estariam as figuras, símbolos e conteúdos arquetípicos de
caráter universal, frequentemente expressos em temas mitológicos. Por
exemplo, o mito bíbilico de Adão e Eva comendo do fruto da árvore do
Conhecimento do Bem e do Mal e, por isso, sendo expulosos do Paraíso, e o
mito grego de Prometeu roubando o fogo do conhecimento dos deuses e dando-o
aos homens, pagando com a vida pelo sua presunção são bem parecidos com o
moderno mito de Frankenstein, elaborado pela escritora Mary Schelley após
um pesadelo, e que toca fundo na mente e nas emoções das pessoas de forma
quase "instintiva", como se uma parte de nossas mentes "entendesse" o real
significado da história: o homem sempre paga um alto preço pela ousadia de
querer ser Deus

Enquanto o inconsciente pessoal consiste fundamentalmente de material
reprimido e de complexos, o inconsciente coletivo é feito de arquétipos: da
mesma forma que animais e homens parecem possuir atitudes inatas, chamadas
de instintos, também é provável que em nosso psiquismo exista um material
psíquico com alguma analogia com os instintos. Talvez, as imagens
arquetípicas sejam algo como que figurações dos próprios insitintos, num
nível mais sofisticado, psíquico. Assim, não é mais arriscado admitir a
hipótese do inconsciente coletivo, comum a toda a humanidade, do que
admitir a existência instintos comuns a todos os seres vivos. Assim, em resumo, o inconsciente coletivo é uma faixa intrapsíquica e
interpsíquica, repleto de material representativo de motivos comuns a toda
a humanidade, como, por exemplo, a forte sensação intuitiva universal da
existência de Deus, da mãe boa, que pode ter a figura de uma deusa ou de
uma fada, da mãe má, que pode possuir os traços de uma bruxa, do sábio, que
geralmente é representado por um ermitão, etc. As figuras em si, são os
arquétipos, que dão forma aos conteúdos que representam: o arquétipo da mãe
boa, ou da boa fada, representam a mesma coisa: o lado feminino positivo da
natureza humana, acolhedor e carinhoso. Este mundo inconsciente, onde
imperam os arquétipos, que nada mais são que recepientes de conteúdos ainda
mais profundos e universais, é pleno de esquemas de reações psíquicas quase
"instinitvas", de reações psíquicas comuns a toda a humanidade, como, por
exemplo, num sonho de perseguição: todas as pessoas que sonham ou já
sonharam sendo perseguidas geralmente descrevem cenas e ações muito
semelhanes entre si, senão na forma, ao menos no conteúdo. A angústia de
quem é perseguido é sentida concomitantemente ao prazer que sabemos ter o
perseguidor no enredo onírico, ou a sua raiva, ou o seu desejo. Estes
esquemas de reações "instintivas" (uso esta palavra por analogia, não por
equivalência) também se encontram nos mitos de todos os povos e nas
tradições religiosas. Por exemplo, no mito de Osires, na história de
Krishna e na vida de Buda encontramos similiradades fascinates. Sabemos que
mitos encobrem frequentemente a vida de grandes homens, como se pudessem
nos dizer algo mais sobre a mensagem que eles nos trouxeram, e quanto mais
carismáticos são esses homens, mais a imaginação do povo os encobrem em
mitos, e mais esses mitos têm em comum. Estes padrões arquetípicos
expressos quer a nível pessoal que a nível mitológico relacionam-se com
caracterísiticas e profundos anseios da natureza humana, como o nascimento, a morte, as imagens parterna e materna, e a relação entre os dois sexos. Outra
temática famosa com respito a Jung é a sua teoria dos "tipos
psicológicos". Foi com base na análise da controvérsia entre Freud e um
outro seu discípulos famoso e também dicidente, Alfred Adler, que Jung
consegue delinear a tipologia do "introvertido" e do "extrovertido". Freud
seria o "extrovertido", Adler, o "introvertido". Para o extrovertido, os
acontecimentos externos são da máxima importância, ao nível consciente; em
compesação, ao nível insconsciente, a atividade psíquica do extrovertido
concentra-se no seu próprio eu. De modo inverso, para o introvertido o que

conta é a resposta subjetiva aos acontecimentos externos, ao passo que, a
nível insconsciente, o introvertido é compelido para o mundo externo. Embora não exista um tipo puro, Jung reconhece a extrema utilidade
descritiva da distinção entre "introvertido" e "extrovertido". Aliás, ele
reconhecia que todos temos ambas as características, e somente a
predominância relativa de um deles é que determina o tipo na pessoa. Seu
mais famoso livro, Tipos Psicológicos é de 1921. Já nesse período, Jung
dedica maior atenção ao estudo da magia, da alquimia,das diversas religiões
e das culturas ocidentais pré-cristãs e orientais (Psicologia da Religião
Oriental e Ocidental, 1940; Psicologia e Alquimia, 1944; O eu e o
inconsciente, 1945). Analisando o seu trabalho, Jung disse: "Não sou levado por excessivo
otimismo nem sou tão amante dos ideais elevados, mas me interesso
simplesmente pelo destino do ser humano como indivíduo - aquela unidade
infinitesiaml da qual depende o mundo e na qual, se estamos lendo
corretamente o signficado da mensagem cristã, também Deus busca seu fim". Ficou célebre a controvertida resposta que Jung deu, em 1959, a um
entrevistador da BBC que lhe perguntou: "O senhor acredita em Deus?" A
resposta foi: "Não tenho necessidade de crer em Deus. Eu o conheço". Eis o que Freud afirmou do sistema de Jung: "Aquilo de que os suíços
tinham tanto orgulho nada mais era do que uma modificação da teoria
psicanalítica, obtida rejeitando o fator da sexualidade. Confesso que, desde o início, entendi esse 'progresso' como adequação excessiva às
exigências da atualidade". Ou seja, para Freud, a teoria de Jung é uma
corruptela de sua própria teoria, simplificada diante das exigências
moralistas da época. Não há nada mais falso. Sabemos que foi Freud quem, algumas vezes, utilizou-se de alguns conceitos de Jung, embora de forma
mascarada, como podemos ver em sua interpretação do caso do "Homem dos
Lobos", notadamente no conceito de atavismo na lembrança do coito. Já por
seu turno, Jung nunca quis negar a importância da sexualidade na vida
psíquica, "embora Freud sustente obstinadamente que eu a negue". Ele apenas
"procurava estabelecer limites para a desenfreada terminologia sobre o
sexo, que vicia todas as discussões sobre o psiquismo humano, e situar
então a sexualidade em seu lugar mais adequado. O senso comum voltará
sempre ao fato de que a sexualidade humana é apenas uma pulsão ligada aos
instintos biofisiológicos e é apenas uma das funções psicofisiológicas, embora, sem dúvida, muitíssimo importante e de grande alcance". Carl Gustav Jung morreu
a 6 de junho de 1961, aos 86 anos, após uma
longa vida produtiva, que marcou, e ainda marcará mais, a antropologia, a
sociologia e a psicologia. Bibliografia Sugerida
Jung, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões, Editora Nova
Fronteira, Rio de Janeiro, 1991. Jung, Carl Gustav. O Homem e Seus Símbolos, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991. Jung, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia,
Editora Vozes, Petrópolis, 1990. Fadiman, James & Frager, Robert. Teorias da Personalidade Editora
Harbra, São Paulo, 1986. Reale, Giovanni & Antiseri, Dario. História da Filosofia, Vol. III, Ed. Paulus, São Paulo, 1991. Withmont, Edward C. A Busca do Símbolo,
Ed. Cultrix, São Paulo, 1993.

Buda e o Budismo
por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
O Buda e sua obra
O termo "Buda" é um título, não um nome próprio. Significa "aquele que
sabe", ou "aquele que despertou", e se aplica a alguém que atingiu um
superior nível de entendimento e a plenitude da condição humana. Foi
aplicado, e ainda o é, a várias pessoas excepcionais que atingiram um tal
grau de elevação moral e espiritual que se tranformaram em mestres de
sabedoria no oriente, onde se seguem os preceitos budistas. Porém o mais
fulgurante dos budas, e também o real fundador do budismo, foi um ser de
personalidade excepcional, chamado Sidarta Gautama. Siddharta Gautama, o Buddha, nasceu no século VI a. C. (em torno de 556 a. C.), em Kapilavastu, norte da
Índia, no atual Nepal. Ele era de linhagem
nobre, filho do rei Suddhodana e da rainha Maya. Logo depois de nascido, Sidarta foi levado a um templo para se para ser apresentado aos sacerdotes, quando um
velho sábio, chamado Ansita, que havia se retirado à uma vida de
meditação longe da cidade, aparece, toma o menino nas mãos e profetiza: "este menino será grande entre os grandes. Será um poderoso rei ou um um
mestre espiritual que ajudará a humanidade a se libertar de seus
sofriementos". Suddhodana, muito impressionado com a profecia, decide que
seu filho deve seguir a primeira opção e, para evitar qualquer coisa que
lhe pudesse influenciar contrariamente, passa a criar o filho longe de
qualquer coisa que lhe pudesse despertar qualquer interesse filosófico e
espiritual mais aprofundado, principalmente mantendo-o longe das misérias e
sofrimentos da vida que se abatem sobre o comum dos mortais. Para isso, seu
pai faz com que viva cercado do mais sofisticado luxo. Aos dezesseis anos, Sidarta casa-se com sua prima, a bela Yasodhara, que lhe deu seu único
filho, Rahula, e passa a vida na corte, desenvolvendo-se intelectual e
fisicamente, alheio ao convívio e dos problemas da população de seu país. Mas o jovem príncipe era perspicaz, e ouvia os comentários que se faziam
sobre a dura vida fora dos portões do palácio. Chegou a um ponto em que ele
passou a desconfiar do porquê de seu estilo de vida, e sua curiosidade
ansiava por descobrir por que as referências ao mundo de fora pareciam ser, às vezes, carregadas de tristeza. Contrariamente à vontade paterna - que
tenta forjar um meio de Sidarta não perceber diferença alguma entre seu
mundo protegido e o mundo externo -, o jovem príncipe, ao atrevessar a
cidade, se detém diante ante a realidade da velhice, da doença e da morte. Sidarta entra em choque e profunda crise existencial. De repente, toda a
sua vida parecia ser uma pintura tênue e mentirosa sobre um abismo terrível
de dor, sofrimento e perda a que nem mesmo ele estava imune. Sua própria
dor o fez voltar-se para o problema do sofrimento humano, cuja solução
tornou-se o centro de sua busca espiritual. Ele viu que sua forma de vida
atual nunca poderia lhe dar uma resposta ao problema do sofriemento humano, pois era algo artificalmente arranjado. Assim, decidiou, aos vinte e nove
anos, deixar sua família e seu palácio para buscar a solução para o que lhe
afligia: o sofrimento humano. Sidarta, certa vez, em um dos seus passeios onde acabara de conhecer os

sofrimentos inevitáveis do homem, encontrara-se com um monge mendicante. Ele havia obervardo que o monge, mesmo vivendo miseravelmente, possuia um
olhar sereno, como de quem estava tranquilo diante dos revezes da vida. Assim, quando decidiu ir em busca de sua iluminação, Gautama resolveu se
juntar a um grupo de brâmanes dedicados a uma severa vida ascética. Logo, porém, estes exercícios mortificadores do corpo demonstraram ser algo
inútil. A corda de um instrumento musical não pode ser retesada demais, pois assim ela rompe, e nem pode ser frouxa demais, pois assim ela não
toca. Não era mortificando o corpo, retesando ao extremo os limites do
organismo, que o homem chega à compreensão da vida. Nem é entregando-se aos
prazeres excessivamente que chegará a tal. Foi ai que Sidarta chegou ao seu
conceito de O Caminho do Meio : buscar uma forma de vida disciplinada o
suficiente para não chegar à completa indulgência dos sentidos, pois assim
a pessoa passa a ser dominada excessivamente por preocupações menores , e
nem à autotortura, que turva a consciência e afasta a pessoa do convívio
dos seus semelhantes. A vida de provações não valia mais que a vida de
prazeres que havia levado anteriormente. Ele resolve, então, renunciar ao
ascetismo e volta a se alimentar de forma equilibrada. Seus companheiros, então, o abandonam escandalizados. Sozinho novamente, Sidarta procura seguir seu próprio
caminho, confiando
apenas na própria intuição e procurando se conhecer a si mesmo. Ele
procurava sentir as coisas, evitando tecer qualquer conceitualização
intelectual excessiva sobre o mundo que o cercava. Ele passa a atrair, então, pessoas que se lhe acercam devido a pureza de sua alma e
tranquilidade de espírito, que rompiam drasticamente com a vaidosa e
estúpida divisão da sociedade em castas rígidas que separavam
incondicioanalmente as pessoas a partir do nascimento, como hoje as classes
sociais e dividem estupidamente a partir da desigual divisão de renda e, ainda mais, de berço. Diz a lenda - e lendas, assim como [1]mitos e parábolas, resumem
poética e
figuradamente verdades espirituais e existenciais - que Sidarta resolve
meditar sob a proteção de uma figueira, a Árvore Bodhi. Lá o demônio, que
representa simbolicamente o mundo terreno das aparências sempre mutáveis
que Gautama se esforçava por superar, tenta enredá-lo em dúvidas sobre o
sucesso de sua tentativa de se por numa vida diferente da de seus
semelhantes, ou seja, vem a dúvida sobre o sentido disso tudo que ele
fazia. Sidarta logo se sai dessa tentativa de confundí-lo com a
argumentação interna de que sua vida ganhou um novo sentido e novos
referenciais com sua escolha, que o faziam centrar-se no aqui e agora sem
se apegar a desejos que lhe causaria ansiedade. Ele tinha tudo de que
precisava, como as aves do céu tinham da natureza seu sutento, e toda a
beleza do mundo para sua companhia. Mas Mara, o demônio, não se deu por
vencido, e, ciente do perigo que aquele sujeito representava para ele, tenta convencer Sidarta a entrar logo no Nirvana - estado de consciência
além dos opostos do mundo físico - imediatamente para evitar que seus
insights sobre a vida sejam passados adiante. Aí é possível que Buda tenha
realmente pensado duas vezes, pois ele sabia o quanto era difícil as
pessoas abandonarem seus preconceitos e apegos a um mundo resumido, por
elas mesmas, a experiências sensoriais. Tratava-se de uma escolha difícil
para Sidarta: o usufruto de um domínio pessoal de um conhecimento
transcendente, impossível de expor facilmente em palavras, e uma dedicação
ao bem-estar geral, entre a salvação pessoal e uma árdua tentativa de

partilhar o conhecimento de uma consciência mais elevada com todos os
homens e mulheres. Por fim, Sidarta compreendeu que todas as pessoas eram
seus irmãos e irmães, e que estavam enredaddos demais em ilusórias certezas
para que conseguissem, sozinhos, uma orientação para onde deviam ir. Assim, Sidarta, o Buda, resolve passar adiante seus conhecimentos. Quando todo o
seu poder argumentativo e lógico de persuassão falham, Mara, o mundo das
aparências, resolve mandar a Sidarta suas três sedutoras filhas: Desejo, Prazer e Cobiça, que apresentam-se como mulheres cheias de ardor e ávidas
de dar e receber prazer, e se mostram como mulheres em diferentes idades
(passado, presente e futuro). Mas Sidarta sente que atingiu um estágio em
que estas coisas se apresentam como ilusórias e passageiras demais, não
sendo comparáveis ao estado de consciência mais calma e de sublime beleza
que havia alcançado. Buda vence todas as tentativas de Mara, e este se
recolhe, à espreita de um momento mais oportuno para tentar derrotar o
Buda, perseguindo-o durante toda a sua vida como uma sombra, um símbolo do
extremo do mundo dos prazeres. Sidarta transformou-se no Buda em virtude de uma profunda transformação
interna, psicológica e espiritual, que alterou toda a sua perspectiva de
vida. "Seu modo de encarar a questão da doença, velhice e morte mudo porque
ele mudou" (Fadiman & Frager, 1986). Tendo atingido sua iluminação, Buda
passa a ensinar o Dharma, isto é, o caminho que conduz à maturação
cognitiva que conduz à libertação de boa parte do sofrimento terrestre. Eis
que o número de discípulos aumenta cada vez mais, entre eles, seu filho e
sua esposa. Os quarenta anos que se seguiram são marcadas pelas
intermináveis peregrinações, sua e de seus discípulos, através das diversas
regiões da Índia. Quando completa oitenta anos, Buda sente seu fim terreno
se aproximando. Deixa instruções precisas sobre a atitude de seus
discípulos a partir de então: "Por que deveria deixar instruções concernetes à comunidade? Nada mais
resta senão praticar, meditar e propagar a Verdade por piedade do
mundo, e para maior bem dos homens e dos deuses. Os mendicantes não
devem contar com qualquer apóio exterior, devem tomar o Eu - self -
por seguro refúgio, a Lei Eterna como refúgio... e é por isso que vos
deixo, parto, tendo encontrado refúgio no Eu". Buda morreu em Kusinara, no bosque de Mallas, Índia. Sete dias depois
seu
corpo foi cremado e suas cinzas dadas as pessoas cujas terras ele vivera e
morrera. Principais Pontos da Doutrina de Buda

Temporalidade
. A única constante universal é a mudança. Nada do que é físico dura para
sempre; tudo está em fluxo em determinado momento. Isto também se aplica a
pensamentos e idéias que não deixam de ser influenciados pelo mundo físico. Isto implica que não pode haver uma autoridade suprema ou uma verdade
permanente pois nossa percepção muda de acordo com os tempos e grau de
desenvolvimento filosófico e moral. O que existem são níveis de compreensão
mais adequados para cada tempo e lugar. Uma vez que as condições e as
aspirações, bem como os [2]paradigmas, mudam, o que parece ser toda a

verdade numa época é visto como imperfeita tentativa de se aproximar de
algo noutra época. Nada, nem mesmo Buda, pode tornar-se fixo. Buda é
mudança.
Desprendimento
. Já que tudo o que parece exisitir de fato apenas flui, como nuvens, também é verdade que tudo o que é composto também se dissolve. A pessoa
deve viver no mundo, utilizar-se do mundo, mas não deve se apegar ao mundo. Dever ser alguém que saiba utilizar-se do instrumento sem se identificar
com o instrumento. Deve também ter a consciência de que seu próprio ego
também se transforma com o tempo. Somente o self, o Atman imortal
permanece, mesmo assim se desenvolvendo eternamente através das
reencarnações e através dos mundos.
Insatisfação ou sofrimento
. O problema básico da existência é o sofrimento, que não é um atributo de
algo externo, mas sim numa percepção limitada que advém da adoção de uma
visão de mundo defeituosa adotada pelas pessoas. Como disse [3]Jesus: "apenas quem se faz como uma criança pode entrar no reino dos céus", pois
as crinças não se prendem ao passado nem se preocupam com um futuro. Elas
vivem o presente e são autênticas com o que sentem, até o dia em que a
cultura as fazem comer do "fruto da árvore do conhecimento do bem e do
mal", enchendo-as de preconceitos e ansiedades que as expulsam do paraíso. Os ensinamentos budistas - e de todos os grandes Mestres da humanidade -
são caminhos propostos para nos ajudar a transcender nosso senso comum
egoísta para se atingir um senso de relativa satisfação conosco e com o
mundo. Se o sofrimento é fruto da percepção individual, algo pode ser feito
para amadurecer esta percepção, através do autoconecimento: "Pojetistas fazem canais, arqueiros airam flechas, artífices modelam a
madeira e o barro, o homem sábio modela-se a si mesmo". As Quatro Nobres Verdades
I - Dado o estado psicológico do homem comum, voltando seu
desenvolvimento para o mundo externo de modo agressivo, a insatisfação
que gera o sofrimento é quase inevitável. II - A insatisfação é o
resultado de anseios ou desejos que não podem ser plenamente
realizados, e estam atrelados à sede de poder. A maioria das pessoas é
incapaz de aceitar o mundo como é porque é levada pelos vínculos com o
desejo narcísico do sempre agradável e com sentimentos de aversão pelo
negativo e doloroso. O anseio sempre cria uma estrutura mental
instável, no qual o presente, única realidade fenomênica, nunca é
satisfatório. Se os desejos não são satisfeitos, a pessoa tende a
lutar para mudar o presente ou agarra-se a um tempo passado; se são
satisfeitos, a pessoa tem medo da mudança, o que acarreta novas
frustrações e insatisfações. Como tudo se transforma e passa, o
desfrutar de uma realização tem a contrapartida de que sabemos que não
será eterno. Quanto mais intenso for o desejo, mais intensa será a
insatisfação ao saber que tal realização não irá durar. III - O
controle dos desejos leva à extinção do sofrimento. Controlar o desejo
não significa extinguir todos os desejos, mas sim não estar amarrado
ou controlado por eles, nem condicionar ou acreditar que a felicidade
está atrelada a satisfação de determinados desejos. OS DESEJOS SÃO
NORMAIS E NECESSÁRIOS até certo ponto, pois eles têm a função primária
de preservar a vida orgânica. Mas se todos os desejos e necessidades
são imediatamente satisfeitas, é provável que passemos a um estado
passivo e alienado de complacência. A aceitação refere-se a uma
atitude calma de desfrute dos desejos realizados sem nos perturbarmos

seriamente com os inevitáveis períodos de insatisfação. IV - Há uma
forma de se eliminar o sofrimento: O Nobre Caminho Óctuplo, exemplificado pelo Caminho do Meio. A maioria das pessoas busca o mais
alto graude de satisfação dos sentidos, e nunca se dão por
satisfeitas. Outros, ao contrário, percebem as limitações desta
abordagem e tendem ir ao outro prejudicial extremo: a mortificação. O
ideal busdista é o da moderação. O Caminho Óctuplo consiste no
discurso, ação, modo de vida, esforço, cautela, concentração, pensamento e compreensão adequados. Todas as ações, pensamentos, etc, tendem a ser forças que, expressando-se,
podem magoar as pessoas e a
ferir e limitar a nós mesmo. O caminho do meio segue a máxima de ouro
de [4]Jesus Cristo: "Fazei aos outros o que gostariam que fizessem a
vós". A Psicologia Budista
O físico Fritjof Capra, em seu livro O Tao da Física, nos fala que o
budismo - ao contrário do hinduísmo que lhe serviu de preparação e que
possui um forte colorido mitológico e ritualístico - tem um caráter e
um "sabor" eminentemente psicológicos. Segundo Capra, "Buda não estava
interessado em satisfazer a curiosidade humana acerca da origem do
mundo, da natureza do Divino ou questões desse gênero. Ele estava
preocupado exclusivamente com a situação humana, com o sofrimento e
frstrações dos seres humanos. Sua doutrina, portanto, não era
metafísica; era uma psicoterapia. Buda indicava a origem das
frustrações humanas e a forma de superá-las. Para isso, empregou os
conceitos indianos tradicionais de maya, karma, nirvana,etc., atribuindo-lhes uma interpretação psicológica renovada, dinâmica e
diretamente pertinente." (Capra, 1986, p. 77). Ele havia dedicado-se a
um aspecto da evolução humana: a autocompreensão para por fim ao
sofrimento humano, e só a este aspecto se dedicara. A questão da causalidade em Buda, assim como em Freud, na psicologia
ocidental, é um dos elementos principais de seus ensinamentos. Esta é
chamada de karma, que significa ação, e representa a lei universal de
causa e efeito em que o resultado de uma ação mais cedo ou mais tarde
acaba por retornar a quem a praticou. [5]Jesus certamente se refere à
mesma lei universal quando fala: "Colherás aquilo que semeares". De
acordo com o budismo, qualquer situação em que possamos nos encontrar
em dado momento é a resultante de toda a nossa história pregressa, em
cuja corrente histórica nos lançamos até atingir o estado atual; isto
quer dizer que dispomos constantemente da oportunidade de aprender as
lições para enriquecer nosso crescimento e evolução espiritual. Corretamente entendida, a doutrina do karma não é, como supõem alguns, uma forma de evitar uma
ação responsável, nem uma desculpa para a
aceitação das coisas tais como estão, mas um incentivo para aproveitar
o presente da forma mais criativa e positiva possível; toda
experiência vivencial se converte em um empurrão para diante na nossa
jornada para a compreensão de nós mesmos. "O que hoje somos deve-se aos nossos pensamentos de ontem que
condicionaram nosso comportamento, e são os nossos atuais pensamentos
que constroem a nossa vida de amanhã; a nossa vida é a criação de
nossa mente. Se um homem fala ou atua com a mente impura, o sofrimento
lhe seguirá da mesma forma que a roda do carro segue ao animal que o
arrasta". (Buda)
Comparemos este pesamento acima, do Buda, com este de [6]Jesus: "O olho - o modo como vemos, interpretamos, a realidade - é a lâmpada
do corpo. Se teu olho é bom, todo o teu corpo se encherá de luz. Mas
se ele é mau, todo teu corpo se encherá de escuridão. Se a luz que há
em ti está apagada, imensa é a escuridão". Nada existe que não esteja relacionado com a sua própria causa. Carma

é uma lei natural, existente em todo parte. A semente que cai no solo
fértil e germina está obedecendo ao carma. O som que é produzido pela
vibração de ar no interior da flauta é fruto de um carma físico. A
complexa organização e beleza da vida é algo que demonstra uma sutil
interelação entre todos os fenômenos naturais e mentais. Daí os
budistas desenvolverem uma visão de mundo como uma infinita "Teia de
Rubis", em que todos os brilhantes e todas as gemas preciosas, por
menores que sejam, refletem todas as demais: uma analogia
surpreendentemente do pensamento [7]holístico atualmente muito em
voga, e aceitável plenamente à luz das mais recentes descobertas da
[8]física quântica. Buda e Jesus
Desde o século passado que estudiosos apontam as surpreendentes
semelhaças entre os ensinamentos de Buda e Jesus. É como se Deus
tivesse posto duas vertentes de uma mesma fonte adequadamente
apropriadas para o mundo Ocidental e Oriental. Vejas alguns exemplos: Buda: É mais fácil ver os erros dos outros que os próprios; é muito
difícil enxergar os próprios defeitos. Espalham-se os defeitos dos
outros como palha ao vento, mas escondem-se os próprios erros como um
jogador trapaceiro"
Jesus: Por que olhas o cisco no olho de teu irmão e não vês a trave no
teu? Como ousas dizer a teu irmão: 'Deixa-me tirar o cisco de teu
olho, pois sei corrigir teu erro de visão'? Hipócrita, tira primeiro o
engano de tua visão, e só então poderás tirar o cisco de teu
companheiro". Buda: "Não importa o que um homem faça, se seus atos servem à virtude
ou ao vício, tudo é importante. Toda ação acarreta frutos"
Jesus: "Não pode a árvore boa dar maus frutos, nem a árvore má dar
bonsc frutos. Porventura colhem-se figos de espinheiros ou ervas de
urtigas? Toda árvore se conhece pelos frutos". Buda: A pessoa má fala com falsidade, acorrentando os pensamentos às
palavras. Aquele que fala mal e rejeita o que é verdadeiramente justo
não é sábio". Jesus: O homem bom tira coisas boas do tesouro do coração, e o mau
retira coisas más, pois a boca fala do que está cheio o coração". Buda: Assim como a chuva penetra numa casa mal coberta, também a
paixão invade uma mente dispersa. Assim como a chuva não penetra numa
casa bem coberta, igualmente a paixão não invade uma mente bem
formada". Jesus: Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática é
como um homem que construiu uma casa sobre a rocha. Caiu a chuva, uma
torrente se abateu sobre a casa, mas ela não caiu, pois estava fundada
sobre a rocha. Mas aquele que ouve as minhas palavras mas não as
pratica é semelhante a um homem que construiu sua casa na areia. Veio
a chuva, a torrente se abateu sobre ela, e ela desabou. E foi grande a
sua ruína". Muitas outras analogias ainda mais ricas seriam possíveis. Remeto o
leitor ao livro "O Buda Jesus" para um estudo mais aprofundado. João Pessoa, Paraíba, 29/06/1997.
Bibliografia Sugerida
O Pensamento Vivo de Buda, Editora Martin Claret, São Paulo, 1985. Fadiman, James & Frager, Robert. Teorias da Personalidade,
Editora
Harbra, São Paulo, 1986. Hall & Lindzey. Teorias da Personalidade, Vol. II, Ed. E.P.U. São

Paulo, 1993. Shearer, A. Buda, Ed. Del Prado, Madrid/Rio de Janeiro, 1997. Ikeda, Daisaku. O Buda VivoEd. Record, Rio de Janeiro, 1989. Jung, Carl Gustav. O Homem
e Seus Símbolos, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991. Jung, Carl Gustav. Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, Editora Vozes, Petrópolis, 1990. Kersten,
Holger & Gruber, Elmar R. O Buda Jesus, Editora Best
Seller, São Paulo, 1996. Silva, George & Homenko, Rita. Budismo - Psicologia do
autoconhecimento. Ed. Pensamento, s/d. Capra, Fritjof. O Tao da Física, Ed. Cultrix, São Paulo, 1986. Hesse, Hermann Sidarta, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1988.
filosofia (ARTIGOS EXTRAÍDOS DA INTERNET)
(QUARTO FICHEIRO)
Intuição: As mulheres e o funcionamento do cérebro
EdgardoMusso

O que é intuição?

Entendemos como intuição uma percepção cognitiva diferente do racional
que encontra no meio científico seu lugar com o nome "contexto de
descobrimento de idéias". Esta percepção cognitiva comprime anos de
experiência e aprendizado num clarão instantâneo.

Consideramos que intuição e criatividade constitui um instrumento
fundamental para um viver mais rico e produtivo dos seres humanos.

A humanidade apostou no racionalismo como método de estruturação de
padrões de comportamento e de tomada de decisões. Isto postergou a
inclusão das informações geradas nos processos intuitivos para a
escolha do que fazer. Decisões necessárias para o viver que abrangem
múltiplos aspectos do acontecer humano: econômicos, tecnológicos,
científicos, espirituais, sexuais, etc.

[menina.jpg]
Menina Dormindo
Gil Vicente

Na pós-modernidade surge um novo humanismo que pretende se liberar das
antigas formas positivistas que deixaram postergada a capacidade de
intuir dos seres humanos. Isto não quer dizer que incluindo a intuição
como qualidade do humano deixaremos de lado o chamado pensamento
objetivo racional. O subjetivo-intuitivo e o racional não têm porque
ficar separados. E uma prova disto é o ato criativo. No humano
especificamente definiremos como criatividade aquele processo do
psiquismo que possibilita utilizar recursos novos na resolução de
situações do cotidiano num ato concreto.

Esta definição nos diz que a criatividade deve ser entendida como ato

criativo e este para vingar deverá estar acompanhado de raciocínio e
objetividade.

Na vida os seres humanos vivem sua cotidianeidade com todo o seu
potencial: sensorial - extra-sensorial, espiritual - material,
racional lógico - subjetivo intuitivo, etc. Todos eles serão
utilizados para as decisões do viver com respeito a tal ou qual coisa.
* Que investimento econômico fazer;
* Qual profissão seguir;
* Que médico ou psicoterapeuta escolher;
* Qual pessoa consideraremos com companheiro sexual, amoroso,
econômico;
* Onde e como viver, etc.

A problemática não é intuição-subjetiva X racionalidade-objetiva. O
grande desafio para os que trabalhamos com isto é a inclusão do
potencial intuitivo- criativo na vida dos seres humanos. Este foi
postergado, desestimulado e ocultado por uma cultura que previlegiou o
sucesso, geralmente entendido como lucro e governado pelo medo ao
erro.

Na atualidade, depois de vários séculos determinados por esta forma de
pensar, nos encontramos por razões do mundo contemporâneo com a
necessidade de mudar. Ante a impossibilidade de administrar a
quantidade de informações ditas racionais muitas vezes contraditórias,
o homem sentiu a necessidade de recuperar e nutrir-se com seu
potencial intuitivo-criativo como instrumento fundamental para a
tomada de decisões e para um melhor e mais pleno viver.

Neste momento nosso interesse como terapeutas e curadores é como
ajudar os seres humanos a recuperar a sua capacidade de intuir e criar
para produzir uma melhor qualidade de vida.

[pequena.gif] A mulher, a intuição e o funcionamento do cérebro.

Responder à esta questão nos coloca na difícil diferenciação do que é
o inato ( com o que o homem chega à vida; uma estrutura física

particular e um código genético) e o que é adquirido na experiência do
viver ( família, cultura, etc.). Acontece que no homem estas duas
determinações que produzem a vida dos seres humanos, sejam homens ou
mulheres, atuam juntas.

Procurando na minha experiência clínica como psicoterapeuta poderia
afirmar que as mulheres são mais intuitivas que os homens.

Há pouco tempo atrás, em sua sessão de psicoterapia uma paciente me
disse:

"Edgardo, ontem de noite recebemos em casa para jantar um senhor
que Osvaldo (o marido) já conhecia há muitos anos do clube. Este
era bem apessoado, culto e profundo conhecedor das práticas
espirituais indianas. Eu fiquei encantada e Osvaldo também. Quando
foi embora conversamos entre nós sobre o encontro. Osvaldo se
mostrava excitado sobre a possibilidade dele formar parte da
sociedade que com meu cunhado pensa fazer. Eu me sentia confusa mas
tentava escutá-lo. Esta noite sonhei com o rosto deste homem perto
do berço de meu filho. De sua boca saíam dois dentes como os de um
vampiro. Parecia que queria comer o pequeno. Tive medo e acordei
toda confusa. Voltei a dormir e durante o café da manhã conversei
com Osvaldo. Falei que não ficasse perto dele, que por Deus
pesquisasse sua vida antes de incluí-lo na sociedade".

A sessão com a paciente continuou com outros temas da sua vida
íntima.

Ontem minha paciente chegou à sua terapia e me disse:

"Edgardo, lembra da sessão que te falei desse senhor que queria
entrar na sociedade com Osvaldo e eu fiquei com medo e desconfiada?
Não deu outra. O cara era um estelionatário cheio de processos na
justiça contra ele".

Nessas sessões terapêuticas estão presentes as razões pelas quais as

mulheres são mais intuitivas que os homens.

Há pouco tempo atrás li que os pesquisadores do cérebro de vários
centros científicos americanos constataram diferenças morfológicas e
portanto do funcionamento cerebral entre homens e mulheres. Acontece
que nos seres humanos a experiência faz o corpo e este facilita certas
experiências e limita outras. A vida da mulher em nossa organização
social e pela estrutura e funcionamento de seu próprio corpo induz a
prestar mais atenção aos sinais vindos do interior. Sinais, alguns
deles claros e intensos e outros mais sutis, que estão presentes na
ovulação e nas mudanças hormonais e afetivas que a acompanham, na
experiência da fecundidade, da procriação, do parto e da amamentação e
dos cuidados com seus filhos. A mulher, no sentido físico, afetivo,
espiritual e pelas delegações que a sociedade fez durante os séculos (
sem engenharia genética), produz uma fêmea humana que lida mais
facilmente com as mensagens do inconsciente, da intimidade ficando
mais aptas para captar a percepção cognitiva da intuição.

Não é por casualidade a maior participação das mulheres nos trabalhos
sobre a subjetividade como é a psicoterapia. as mulheres não temem o
interior. Estão mais aptas para o encontro com a intimidade, a
subjetividade, a espiritualidade e portanto com a intuição e
criatividade no sentido da criação.

Esta colocação está referida às mulheres especificamente,
independentemente do considerado como função feminina e masculina -
Ying e Yang. Estas funções são independentes do corpo homem e mulher e
interagem com predominância de uma ou outra nas diferentes estruturas
morfológicas.

[pequena.gif] Relação entre intuição e funcionamento do cérebro

Em relação ao potencial intuitivo e o funcionamento do cérebro
diremos: as pesquisas dos neurofisiologistas adiantaram nos últimos

anos em muito o conhecimento do funcionamento do cérebro humano.
Entendemos que o lado esquerdo e direito do cérebro possui funções
especializadas e diferentes um do outro. O esquerdo ligado à
experiência humana do intelectual, do lógico-racional e ao direito o
subjetivo, afetivo, imaginativo e intuitivo. Isto não quer dizer que
tenhamos dois cérebros. O cérebro é um e na experiência do viver e
intuir o funcionamento dos dois hemisférios estão juntos. O homem
necessita da percepção cognitiva da intuição associada à modalidade de
funcionamento do hemisfério direito, mas esta para sua compreensão e
expressão recorre aos diferentes aspectos da linguagem (hemisfério
esquerdo) para ser comunicada socialmente.

Em relação ao funcionamento do cérebro como totalidade aderimos às
teorias de Karl H. Pribram (Universidade de Stanford) associadas ao
pensamento do físico inglês David Bohm ( professor da Universidade de
Londres), principal inspirador da física quântica contemporânea. Estes
propõem a saída da física mecanicista de Isaac Newtom para pensar e
compreender em que consiste a realidade. Dirão que tudo o que existe é
expressão de uma rede energética holográfica em movimento ondulatório
fora das categorias de espaço e tempo. Tal rede energética ondulatória
se expressa na chamada ordem explicada ( o que nos aparece) e numa
ordem implicada ( rede energética fundante).

O cérebro funciona holograficamente e é suporte que manifesta o
funcionamento do todo.

Este entendimento da física quântica e funcionamento holográfico do
cérebro nos permite compreender não só o potencial intuitivo como
assim também a validade das práticas espirituais do oriente e dos
fenômenos estudados pela parapsicologia como clarividência,
premonição, telepatia, etc.

Os aportes da física quântica nos permitem sair da divisão ser

humano-meio ambiente, podendo passar então a pensar em termos de
ecologia profunda onde o humano, o vegetal, o animal, o mineral e
todas as formas de expressão da vida formam parte da mesma rede
espiritual e energética. Rede constitutiva da lei ética da unidade de
todas as coisas.

[2][pequena.gif] Entre em contato com a gente pelo e-mail
[3]cdic@cdic.com.br.

References

1. http://www.cdic.com.br/main.htm
2. mailto:cdic@cdic.com.br
3. mailto:cdic@cdic.com.br



Psicanálise

Porque a psicanálise?

Eu diria porque a psicanálise também. Para falar da psicanálise seria
necessário especificar quais de suas vertentes.

Poderia dizer o que da psicanálise forma parte da minha maneira de
entender a situação clínica e regula meu trabalho psicoterapêutico.
Muito poderíamos falar deste tema que excedem as possibilidades desta
entrevista.

Poderia dizer, a psicanálise que formou e forma parte de minha estória
abrange alguns de seus pensadores, tais como Freud, Lacan, Jung,
Melanie Klein, Ferenczi e Pichon Rivière. Em suma, aqueles que,
independentemente à ortodoxia de seus respectivos discursos, me deram
instrumentos para pensar e operar sobre uma situação terapêutica a ser
resolvida.

A utilização do potencial intuitivo está intimamente ligado ao melhor
conhecimento, aceitação e administração das leis do inconsciente
individual e coletivo.

Carl Jung, psicanalista profundamente interessado pelo estudo das
diferentes formas de expressão da vida, inclui a intuição como uma das
atividades do psiquismo que funda o que é o humano. Considera a
intuição conjuntamente com o pensamento, o sentimento e a sensação
qualidades que permitirão criar uma tipologia dos seres humanos pela
predominância e interação de cada uma destas funções.

[psicoana.jpg]
Salvador Dali
Meditacion en un harpa

A psicanálise nos dá instrumentos que em uma mistura, possibilitada
por um interesse maior que é o de liberar ao homem das prisões de sua
neurose, possa integrar-se com as outras alternativas que nos oferecem

o saber terapêutico contemporâneo e nos permita entender não só a
causalidade, os porquês de um padecimento psíquico, mas também de sua
modificação.

A psicanálise também nos permite entender processos do psiquismo que
se fazem presentes na relação terapeuta, curador-paciente que são
fundamentais para os objetivos terapêuticos.

Eu vejo muitos curadores da chamada linha esotérica genuinamente
interessados pelo bem de seus pacientes que encontrariam na
psicanálise nutrientes fundamentais para o melhor exercício de seus
objetivos clínicos.

A psicanálise também, simplesmente porque me permite compreender e
operar no psiquismo dos chamados pacientes.

Porque (sem a reprodução imperialista dada nos consultórios) o Édipo,
a sexualidade infantil, a vida psico-afetiva, libidinal familiar e as
identificações decorrentes me permitem explicar a construção da
subjetividade humana nas sociedades patriarcais.

Porque entendo que existe a determinação e a condição de sujeito (no
sentido de sujeitado). Que as pessoas não só fazem o que querem e que
sim vivem prisioneiras nas teias do inconsciente em seu caráter
individual (pulsões e passado biográfico) e coletivo (a linguagem e os
arquétipos).

Porque em meu trabalho incluo a análise da transferência, a dissolução
das resistências e a interpretação dos sonhos, atos falhos, enfim das
formações por intermédio das quais o inconsciente se expressa.

Agora o fundamental é porque nasci em Buenos Aires, estudei Psicologia
na Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade Nacional da rua
Viamonte, baixo centro perto do porto. Bairro de poetas, pintores e
bares onde discutíamos política, psicanálise e lingüística; tomávamos
sopa de cebola, pão e vinho nas noites de inverno, enquanto

admirávamos as prostitutas caríssimas que passeavam à procura de
marinheiros estrangeiros, únicos benditos que conseguiam pagar seus
cachês.

Porque no Bar Florida devorávamos as aulas de José Bleger submetendo-o
a críticas infernais com a colaboração entusiasta de Oscar Masotta
(o surdo).

Porque com Roberto Harari escrevi na Revista Argentina de Psicologia
um trabalho militante: "O Psicólogo Clínico na Argentina" em defesa da
liberdade dos psicólogos de praticar a psicanálise até o momento
monopolizada pela classe médica.

Porque Herman Garcia me mostrou a arte de pensar maquínico. Admirava o
galego que se sentava na máquina de escrever dez horas contínuas
produzindo seu primeiro livro "Nanina", só levantando a mão esquerda
do teclado para enfiar na boca as bananas que Helena Roberto tinha
separado para o almoço de nossa filha Gabriela.

Enfim te direi, porque na ecologia cultural na que me formei, nas
minhas primeiras épocas, não ser psicanalista, militante de
preferência Trotskista-Maoísta ou Peronista de esquerda e ser um
idiota, era a mesma coisa.

[pequena.gif] Mas que psicanálise então é a sua?

A resposta tem que ser procurada nos finais da década de 60, começo da
década de 70 em Buenos Aires, República Argentina.

[manifest.gif] Psicanálise onde na mesa de trabalho do psicanalista,
produtor de ciência, terapeuta e mestre encontram-se juntos textos de
Freud, Melanie Klein, Lacan, conjuntamente com jornais que falavam das
coisas de seu tempo, livros do movimento surrealista, os contos de
Maldoror de Isidore-Lucien Ducasse - "O Conde de Lautreamont" e uma
televisão ou rádio ligados. E que para aprender e ensinar o que era o
inconsciente e suas leis víamos até o cansaço pinturas e colagens de
Max Ernst, e para saber o que era a associação livre, uma das regras

fundamentais da terapia psicanalítica, líamos a escrita automática dos
surrealistas e o poema "Repetições" de Paul Eluard. Tínhamos um
mestre. Esse mestre chamavam de Henrique e seu sobrenome era Pichon
Rivière.

O que poderíamos dizer sim, é que a pretensa procura de uma verdade no
discurso do chamado paciente com uma tentativa de neutralidade e
assepsia fez perder muito tempo aos interessados pela psicanálise como
instrumento de cura. Isso colocou os psicoterapeutas psicanalíticos em
uma encruzilhada impossível de resolver.

O diálogo terapêutico é um ato que é científico, espiritual-religioso,
filosófico e político. Não existe a possibilidade de gerar uma
ciência, para nós que trabalhamos com o tema da subjetividade, onde
não se encontre presente de uma forma clara, manifesta, as posições
gerais a respeito do mundo e aos seres humanos que o terapeuta possa
ter.
_________________________________________________________________

[2][pequena.gif] Entre em contato com a gente pelo e-mail
[3]cdic@cdic.com.br.

References

1. http://www.cdic.com.br/main.htm
2. mailto:cdic@cdic.com.br
3. mailto:cdic@cdic.com.br


Criatividade e Intuição

Criatividade e intuição, fale disso:

Pedir-me para falar deste tema é como perguntar a macaco se quer comer
banana. Faz muitos anos, mais de 20, que minhas missões de curador em
suas diferentes formas, políticas, artísticas, científicas,
espirituais, são pregnadas por paixão a estes dois princípios
fundamentais, a meu entender, de tudo o que é viver.

Antes de mais nada é necessário dizer que intuição e criatividade é
muito além de métodos e técnicas específicas para seu desenvolvimento,
é chão, suporte a toda e qualquer experiência clínica que se considere
terapêutica em suas mais diferentes formas teóricas.
[criatividade.jpg]
René Magritte
A condição humana Lembro um parágrafo de D. W. Winnicott, velho amigo
do campo psicanalítico que em seu livro "O Brincar e a Realidade" nos
diz: "é através da percepção criativa, mais que qualquer outra coisa,
que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste,
existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o
mundo, em todos os seus pormenores, é reconhecido como algo a que se
ajustar ou exigir adaptação".

Entendemos que existe um potencial criativo e concordamos com Bárbara
Brenan que este tem suas raízes na energia espiritual que faz a
essência de tudo o que existe, portanto do humano também. Que se
manifesta como movimento e que apresenta ondas que caracterizam
estados de contração e expansão. Mais no humano especificamente
definiremos como criatividade aquele processo do psiquismo que
possibilita utilizar recursos novos na resolução de situações do
cotidiano num ato concreto.

Acredito que criatividade e intuição não se ensina mas pode ser
mostrada e desbloqueada. E esta é missão fundamental do terapeuta para

com seu paciente, estão presentes nas diferentes manifestações do
viver; no trabalho, na alimentação, na utilização do tempo livre, na
sexualidade, nos vínculos familiares, sociais, de amizade e no próprio
interior da atividade psicoterapêutica.

[pequena.gif] É possível desenvolver a intuição e a criatividade? De
que maneira?

Nosso método de trabalho se apóia em critérios-base que o fundamenta.
Isto é mais importante que qualquer recurso técnico específico. Serão
os sistemas pelos quais o terapeuta se guiará em seu trabalho clínico.
Estes critérios são científicos ( conhecimento organizado em teorias e
técnicas validados por seu uso e por sua tradição conceitual
acadêmica) e espirituais ( sistemas de crenças guias que falam do
transpessoal divino).

Critérios científicos: Escolhidos na experiência de mais de vinte anos
de ensino ( a nível de graduação e pós-graduação) em sociedades
científicas e em Universidades de Argentina, Estados Unidos, México e
Brasil.

Destes, consideramos como os fundamentais: a física quântica de David
Bohm; a neurofisiologia contemporânea de Karl Pribram; a
parapsicologia de J. B. Rhine, da Universidade de Duke, Estados
Unidos, de L. L. Vassilieve da Universidade de Leningrado, Rússia e
Ricardo Musso do Instituto Argentino de Parapsicologia e Universidade
Nacional de Buenos Aires, Argentina.

Das teorias da análise na atual mudança de paradigmas de Fritjof
Capra.

Dos estudiosos do funcionamento do nosso planeta como ser vivo,
produzindo aportes na biologia moderna e na metodologia do quê
conhecer e como (epistemologia): James Lovelock, Lynn Margulis,
Gregory Bateson e Humberto Maturana.

Na pespectiva do psiquismo associado tradicionalmente à psicologia

temos: a psicologia holística transpessoal do professor e psiquiatra
Stanislav Grof, da John Hopkins School of Medicine e o professor
Pierre Weil da Universidade Holística Internacional.

Do pensamento de origem comportamental, chamado cognotivismo, aderimos
às propostas de Daniel Goleman, estruturados nos termos de
Inteligência Emocional.

Na perspectiva da psicanálise que toma o inconsciente como objeto de
estudo, Carl Jung, Sigmund Freud e Sandor Ferenczi, introduzindo estes
conceitos originais como fundamentalmente a meu interesse à "técnica
ativa" e ao conjunto de idéias a ela associadas. Da psicanálise
vinculada com o grupal e social o Dr. Henrique Pichón Rivière, da
Escola Argentina de Psicologia Social. Dos pós-psicanalistas, Guilles
Deleuze, Félix Guattari e Gregório Baremblit, teóricos da esfera
histórico-social do desejo na sociedade capitalista.

Critérios espirituais: nossos crit&eaéute;rios espirituais estão
intimamente associados aos modelos da ciência na qual acreditamos e ao
entendimento de um mundo em mudança que Marilyn Fergunson designa como
Conspiração Aquariana.

Partimos de uma primeira afirmação: não existe diferença entre o
espiritual e o material mundano. Nossos princípios espirituais ancoram
suas bases na ecologia profunda e no eco-feminismo.

Temos um Deus, aliás uma Deusa. Esta é Gaia, nossa mãe, nosso planeta,
a Terra a qual cuidamos e protegemos e da qual formamos parte. Gaia é
tudo o que é nas formas primeiras e naturais como florestas,
montanhas, rios, desertos, animais, insetos, aves, vento, mar como
também seres humanos e tudo o que por eles é produzido como estradas,
cidades, moda e tecnologias variadas como a Internet.

Nossas crenças espirituais passam pela idéia de uma divindade que
percorre a essência do humano que encontra ali sua potência e

criatividade. Estas qualidades desenvolvem um usufruir do fato de
estarem vivos, pois é nas condições da vida que o espírito se realiza.
Quando falamos de vida estamos nos referindo mais especificamente à
nossa vida cotidiana. Portanto, o divino está presente em como
comemos, trabalhamos, acordamos, dormimos, em nossa sexualidade e no
destino que damos às nossas vontades de consumo. Nossa Deusa é nosso
planeta, a Terra e o encontro com a ecologia profunda passa pelo
interior do humano também divino. A espiritualidade da qual falamos
encontra a divindade, que chamamos Eu Superior, no interior das
pessoas.

Na pespectiva do eco-feminismo a recuperação da feminilidade
possibilita a saída da mulher eunuco para encontrar o poder e força da
fêmea humana e do feminino em geral na nossa cultura. Previlegiamos
então, no econômico, no sexual, no político e etc. as formas
circulares, o brando, o que contém, a intuição e criatividade, o que
nutre, o que cuida e as formas não violentas de produção e política.

Estes são os critérios científicos e espirituais nos quais se apóia
nosso método de trabalho terapêutico. Este será adaptado às exigências
das atividades específicas seja com indivíduos, famílias, grupos,
organizações ou coletividade.

Nosso objetivo terapêutico fundamental é o de aumentar a satisfação de
estarem vivos dos seres humanos. Respeitando a lei ética fundamental
da unidade de todas as coisas.

[pequena.gif] Como desenvolver a intuição

Este trabalho psicoterapêutico que inclui como um de seus objetivos
fundamentais o desenvolvimento da intuição e criatividade se
apresentará dependendo dos diferentes momentos clínicos, no diálogo
verbal, gestual e corporal entre terapeuta e paciente, no enquadre e
contrato. Também na utilização de recursos variados que poderão

incluir tintas papéis, lixo, fotos, colagens, gravações em vídeo.
Desenvolvimento que será feito também pelo alinhamento das intenções
entre indivíduo, grupo, coletividade e Gaia por intermédio da
respiração e trabalho em hara com seus três centros: ID, Sede da Alma
e Tan tien.

Temos programas de desenvolvimento da intuição e criatividade que
reconhecemos de valor terapêutico.

A criatividade não pode ser ensinada e repetimos. Todo ser humano
possui uma potência intuitivo-criativa, só que permanece oculta para o
ser. Nosso objetivo é possibilitar seu desbloqueio facilitando ao
humano o reconhecimento dos dizeres de sua intuição, tornando-a apta
para a sua utilização na vida cotidiana.

Faz-se necessário destacar em nosso método de trabalho a utilização
dos florais da Califórnia, estudados por Patrícia Kaminski e Richard
Katz e em especial o floral Íris. Este amplifica a força da intuição e
é considerado a "musa feminina da inspiração". Este remédio floral
expressa a função harmonizadora de Gaia atuando nos níveis
vibracionais energéticos, restaurando o equilíbrio de nossas emoções.

A metodologia utilizada em nossos seminários tem por objetivo
desbloquear, reconhecer e possibilitar o desenvolvimento do potencial
intuitivo-criativo. O modelo contempla momentos de inclusão,
diferenciação e individuação dentro de um grupo. Consiste em
atividades que começam com desacoplamento do rotineiro-estereótipo,
continua com momentos de incubação, reconhecimento reflexivo e
alternativas de aplicação da intuição e criatividade nas diferentes
situações da nossa vida cotidiana. As técnicas utilizadas em nossos
seminários são:
* Imagem visual e identidade - gravações em vídeo
* Palestra
* Discussões grupais
* Exercícios grupais
* Florais de Bach, da Califórnia e do deserto de Arizona

* Desenho
* Filmes
* Pintura
* Colagem
* Role-playing
* Pensamento lateral de Edward de Bono
* Grupo operativo de Henrique Pichón Rivière
* Sensibilização ecológica
* Exercícios corporais
* Meditação no ponto zero e guiada
* Alinhamento do Hara

[pequena.gif] O Trabalho nas empresas a intuição e a criatividade

Nos últimos anos foi percebido pelos responsáveis das relações humanas
nas empresas a importância de uma produção que expresse qualidade não
só dos produtos e sim também a modalidade com que chega ao consumidor
final e de como estes foram produzidos. Os teóricos das organizações
deram à esta proposta o nome de "qualidade total". Entendemos esta
como um paradigma que exige para a sua implantação na cultura das
empresas muito tempo e trabalho sobre a intersubjetividade nas
organizações e também no coletivo.

Pela nossa experiência foram dois medos os que profundamente afetaram
a inclusão da intuição e criatividade nas esferas da produção. O medo
ao erro e à desestruturação dos sistemas de poder.

Podemos afirmar que conjuntamente com os seminários sobre a
criatividade deve ser trabalhado o desenvolvimento das
responsabilidades individuais em função dos interesses coletivos. É o
que Pichón Riviére chama de sentimento de pertinência e pertenência a
um grupo ou organização.

É necessário pensar que o homem dedica uma parte importante de sua
vida, medida em tempo objetivo (horas no dia, semana, mês e ano) a
trabalhar recebendo em troca sempre algo a mais que seu salário.

Recomendo a leitura do texto do autor incluído nesta home page
[2]"Intuição e Criatividade" apresentado no IIº E.S.A.R.H. - Encontro
Sul Americano de Recursos Humanos - e VIº ENAP - Encontro Nacional de

Administradores e Psicólogos - em Outubro de 1989.
_________________________________________________________________

[3][pequena.gif] Entre em contato com a gente pelo e-mail
[4]cdic@cdic.com.br.

References

1. http://www.cdic.com.br/main.htm
2. http://www.cdic.com.br/consulto.htm
3. mailto:cdic@cdic.com.br
4. mailto:cdic@cdic.com.br


Desenvolvimento da Inteligência Emocional

O que é a inteligência emocional?

Quando falamos da inteligência emocional, estamos nos referindo a uma
expressão criada pelo psicólogo da Universidade de Harvard, Daniel
Goleman.

Por intermédio do uso desta expressão estaremos dando apoio a seu
criador e sua proposta.

Um eixo guia nosso trabalho: aumentar a satisfação de estarmos vivos.

Este eixo guia nossa produção e a adesão aos diferentes sistemas de
idéia será independente de qualquer ortodoxia desses respectivos
discursos, critérios de cientificidade ou objetivos específicos.

Encontramos na produção de Daniel Goleman uma síntese das pesquisas
feitas pelos estudiosos do funcionamento do cérebro com seus dois
hemisférios, os hormônios e os sistemas de glândulas a eles
associados. Também os resultados das pesquisas dos cientistas e
terapeutas de origem comportamental que recebem o nome de
cognotivistas.

[caras.jpg]
André Masson
Retrato de André Breton

O termo inteligência emocional nos diz que inteligência e emoção estão
unidas e que se deve entender que inteligência deverá estar presente
na emoção e vice-versa.

A sociedade industrial com sua ênfase em uma produção a qualquer custo
da subjetividade humana, nos estimulou ao pensar e atuar racional.

Este excluía toda e qualquer emoção a não ser a satisfação pelos
triunfos obtidos vistos geralmente como lucros. Acontece que quando
tomamos decisões poderão ser feitas de forma inteligente racional mas
inevitavelmente também as emoções estarão presentes.


Não adianta querer caminhar com uma só perna embora os acontecimentos
da história a privilegia, pois para poder chegar até onde vamos
necessitaremos das duas. Tampouco adianta ter um alto coeficiente de
inteligência tradicional - QI para acertar nossos passos na vida, da
qual esperamos satisfação nas áreas intelectuais, simbólicas,
espirituais e materiais-econômicas.

É definitiva a afirmação de que o não treinado na percepção
autoconsciente de suas emoções, na capacidade de postergar impulsos e
de lidar com estes por mais alto coeficiente intelectual que possua
dificilmente conseguirá produzir realizações .

Entendo nestes conceitos mais uma colaboração para a compreensão do
que é o humano.

Tenho uma experiência clínica de muitos anos e infinitas vezes vi
pessoas que chegavam ao meu consultório depois de outras experiências
terapêuticas que acreditavam na verdade da essência do ser. Estas
justificavam em seu conhecimento de si mesmas seus desacertos na vida.
Me diziam:

"Falei com meus funcionários que estavam todos na rua. Eu sei que
foi um ato de raiva impulsiva e isto vai me trazer problemas com
meus clientes. Mas eu sou assim. Não suporto estar muito tempo ao
lado de um grupo de pessoas, me lembram a família com meus pais que
não teve jeito e eles se separaram";

"Edgardo, ontem não aguentei e chorei, mordi e bati no meu
namorado. ele deu um tchau, bateu a porta e foi embora de minha
casa dizendo que eu sou uma louca varrida e que não queria mais ver
a minha cara. Mas eu sou assim. Não aguento os caras que me dizem
que têm tesão por mim, parecem bobos. Me fazem lembrar meu irmão e
sua curiosidade sexual quando éramos crianças";

"Neste final de semana foi um choro só. Me tranquei no meu

apartamento e não saí`. O dia estava bonito, mas eu não quis nem
saber. Nestes últimos anos depois daquele workshop que vi que
guardava uma tristeza antiga para me confrontar, estou fazendo isto
no mínimo uma vez por mês. É foda, mas é bom estar com minhas
verdades interiores e meu karma e há que assumí-los".

Nada disso. A pós-modernidade nos diz que o que somos não corresponde
a uma essência imutável. Existem as determinações, é claro,
psico-afetivo-familiares, sexuais-anatômicas, espirituais, econômicas,
culturais, tecnológicas, astrais, políticas, etc. Mas, no que somos
como seres vivos, mentais, corporais, emocionais, espirituais existe a
possibilidade de modelar nossas emoções, comportamentos e projetos de
vida.

A escolha é sua, e acreditar no livre arbítrio conleva a
responsabilidade pelo ato de viver.

A inteligência emocional sintetiza técnicas muitas delas bem simples e
tomadas da sabedoria popular para saber lidar identificando,
controlando e administrando nossas emoções.

Estes estados afetivos mais que nos dizer quem somos simplesmente, nos
sequestram e afastam de nossas missões fundamentais como a de
desfrutar de estarmos vivos.

Os critérios psicobiológicos usados nesta síntese de recursos
diagnósticos e técnicas que tem o nome de Inteligência Emocional nos
permitem associarmos com os aportes da nova psiquiatria e seus
medicamentos de ação branda. Estes são de grande ajuda em nosso
trabalho psicoterapêutico em uma boa quantidade de situações clínicas.

Também a educação como a psiquiatria passa a ocupar um lugar mais
definido no trabalho psicoterapêutico.

Nosso critério é que o homem é uma matéria-potência em expansão até o
final de seus dias.

Entendemos que o trabalho terapêutico consistirá não só na "revelação

de verdades" que sempre serão parciais, situacionais e históricas.

Existem compromissos - pactos espirituais, materiais e filosóficos
entre os terapeutas e seus pacientes com respeito ao que estão fazendo
juntos.
_________________________________________________________________

[2][pequena.gif] Entre em contato com a gente pelo e-mail
[3]cdic@cdic.com.br.

References

1. http://www.cdic.com.br/main.htm
2. mailto:cdic@cdic.com.br
3. mailto:cdic@cdic.com.br


L'eutanàsia.

El concepte.


La paraula "eutanàsia" és un mot compost que deriva del grec; està
format pel prefix "eu" que significa bo i el sufix "tanàsia", del grec
"thanatos", que vol dir mort; per tant eutanàsia significa bon morir.


Usualment s'ha distingit entre dos tipus d'eutanàsia: la passiva i
l'activa. La primera es tracta de, per omissió, no prolongar la vida
d'un malalt terminal que sofreix. L'eutanàsia activa consisteix a
provocar, per acció, la mort d'una persona que es troba sofrint en
fase terminal o bé que es troba en un coma irreversible.


El cas de Ramón Sampedro.


No tothom admet la diferència entre aquests dos tipus d'eutanàsia -en
ocasions pràctiques no queda gens clar si una pràctica eutanàsica és
activa o passiva: no donar un medicament es considera passiva, però
desconnectar un respirador artificial... és activa o passiva?-. La
majoria de legislacions occidentals permeten l'eutanàsia passiva i
quasi totes les persones que es mouen intentant que no es legalitzi
l'eutanàsia activa es neguen a acceptar que l'eutanàsia passiva sigui
eutanàsia. D'altres, com el metge d'EEUU Jack Kevorkian, també
anomenat Doctor Mort, consideren que és eutanàsia ajudar a morir
persones que sofreixen i que demanen auxili per acabar amb la seva
vida sense que el fet d'estar en fase terminal en sigui un requisit.
Aquí, a l'Estat Espanyol, al mes de febrer del 1994 es va fer famós el
cas del gallec Ramón Sampedro, un senyor tetraplègic que vivia estès
en un llit des de feia vint-i-cinc anys i que, fastiguejat d'aquell
estat demanava que l'ajudessin a morir. La lesió de Sampedro feia que

no es pogués suïcidar, i es va trobar que si el metge de capçalera li
subministrava alguna droga que pogués acabar amb la seva vida el metge
seria acusat d'inducció al suïcidi; a més a més, si decidia deixar de
menjar la seva família seria acusada de negar auxili a un moribund.
Sampedro va presentar una demanda a l'Audiència de Barcelona a través
de l'associació Dret a Morir Dignament on demanava que no es
penalitzés al metge que l'ajudés a morir. Els jutges van fallar dient
que l'eutanàsia ha de regular-se amb noves lleis i no a través dels
tribunals. L'associació Dret a Morir Dignament va anunciar que
recurriria la sentència davant el Tribunal Constitucionsl. Com s'ha
pogut veure, Sampedro no estava en fase terminal.


L'any 98 Sampedro va optar per l'eutanàsia. Almenys dues persones per
ara desconegudes el van auxiliar en això: una el fa filmar en vídeo
mentre una altra li subministrava un got de cianur que l'home va poder
beure amb l'ajut d'una canya. L'agonia va ser llarga i dolorosa car el
cianur actua creant una reacció química en el cos humà semblant al que
genera una cambra de gas. Els metges no entenen com Sampedro va optar
per aquest sistema dolorós quan devia estar ben informat ja que feia
anys que li donava voltes. El vídeo va ser enviat a l'Audiència
Nacional per demostrar que Sampedro havia mort voluntàriament, però
algú el va fer transcendir als mitjans de comunicació causant un
escàndol. Durant la investigació pels fets 2.000 persones de tot
l'estat es van autoinculpar d'haver ajudat a Sampedro. Moltes d'elles
es trobaven a mil quilòmetres de Galicia quan es van produir la mort
del tetraplègjic.


El dret natural i l'eutanàsia activa.


El dret a l'eutanàsia activa és el que planteja la majoria de

problemes; el dret a l'eutanàsia passiva, és a dir, a que no
s'acarnissin amb un, sembla inqüestionable; no parlarem de l'eutanàsia
activa, no voluntària, exercida sobre una persona, és obvi que, en la
nostra societat, es tracta d'un assassinat. Centrem-nos, per tant, en
el dret a l'eutanàsia activa.


Veure-la com un dret o, contràriament, anar en contra de la seva
despenalització depèn de l'escala de valors de cadascú. Si un hom té
com a valor màxim la llibertat, pot decidir lliurement, quan la vida
està plena de sofriment, d'acabar amb la seva vida -cal tenir en
compte que el sofriment desproporcionat d'una persona fa patir
moltíssim a qui l'envolten-; si, en canvi, un hom té com a valor
suprem la vida, aquesta cal conservar-la peti qui peti i, per tant, el
dret a l'eutanàsia és impensable; segons això, però, l'eutanàsia
passiva tampoc hauria de tenir lloc, en canvi, com ja s'ha dit, és
defensada per pràcticament tothom; com s'entén aquesta contradicció?
La resposta és que qui defensa que el valor màxim és la vida en sol
estar emmascarant un que considera superior: la vida és un do lliurat
per la divinitat i com a tal ha de ser considerat, per tant, l'home no
en pot disposar: l'eutanàsia activa és l'atemptat contra el sagrat, no
practicar l'eutanàsia passiva és allargar una vida que la divinitat ja
ha decidit acabar, és, també, una violació del sagrat. Per què la
majoria de les persones que van en contra del dret de l'eutanàsia
activa amaguen el vertader motiu? Bàsicament per la impossibilitat de
discussió que hi ha en l'actualitat sobre el fet sagrat. La
civilització contemporànea-occidental no permet argumentar basant-se
en la divinitat; el discurs diví pot usar-se de manera particular,
però no, tret d'alguns contextos expressos, en l'àmbit públic; així no
es pot procedir a fer una llei apel.lant un cos de creences religioses
-se sol argumentar: i qui no creu en Déu per què ha de fer, o no ha de

fer, això?-. Un estat que pretengui basar-se en una visió d'allò que
és sagrat se sol anomenar integrista -com ara Iran- i l'opinió general
occidental que se'n té és força -o molt- negativa.


Racionalment no és possible argumentar la validesa d'una creença
religiosa. El coneixement religiós ve donat per la fe, que es defineix
com una font de coneixement irracional que qui la rep sap que és
vertadera; es tracta d'una mena de sentiment, d'un "feeling", i no
d'un raonament. Qui té fè té aquest coneixement religiós i qui no, no,
igual que qui està enamorat sap què és l'amor i qui no ha estat mai
enamorat no sap què és l'amor. Fonamentar un coneixement en un
sentiment, en una creença pot semblar un sense-sentit, però observi's
el següent: el coneixement racional, lògic, es basa en principis com
el de no contradicció -no és possible que quelcom sigui i no sigui a
la vegada: no es pot ser una persona i no ser-ho a la vegada, per
exemple- o el d'identitat -A=A: jo sóc igual a mi mateix-; doncs bé,
els principis lògics són autoevidents i no demostrables, sabem que són
veritat perquè creiem que són veritat, perquè sentim que són veritat.
La lògica, la racionalitat, es fonamenta en la creença, en un
determinat tipus de fe.


Si no podem examinar els arguments vertaders dels qui van en contra de
la despenalització de l'eutanàsia activa si que podem revisar els de
qui van a favor. Deiem que per aquests el valor màxim és la llibertat
i això permet, en bona mesura, de disposar de la pròpia vida. Es pot
objectar que si no hi ha vida no hi ha llibertat, per tant el valor
suprem cal que sigui la vida, i no la llibertat. La resposta a
l'objecció pot ser la següent: només la vida digna és lliure, no
qualsevol tipus de vida; aleshores, abans de perdre la vida digna, i
lliure, es prefereix morir, es té dret a morir. Els qui diuen que el

dret a l'eutanàsia activa no és tal pensen que el ningú no vol morir i
en el cas que algú ho demani és perquè es troba ofuscat pel sofriment
físic o psíquic. En el primer cas cal aplicar-li medicina pal.liativa,
i el pacient deixa de demanar que l'ajudin a morir; en el segon cas
cal aplicar-li tractament psiquiàtric per a treure-li l'angoixa o la
depressió en el que es troba immers per intentar que el pacient deixi
de demanar que l'eutanasiïn. Sembla que no es pot objectar res a
l'aplicació de la medicina pal.liativa l'objectiu del qual és evitar
el dolor, però ...i si aquesta resulta insuficient? i si el malalt
continua volent morir? Pel que fa al tractament psiquiatric ...fins a
quin punt el pacient terminal o el lesionat -com en el cas de Ramón
Sampedro- pot considerar-se un malalt mental? Des del segle XVIII
l'home occidental ha inventat una sèrie de mecanismes per a
normalitzar-se (és a dir, convertir en normal segons un seguit de
normes), la psiquiatria ha tingut un paper important en aquesta
normalització. Per què aquesta ciència normalitzadora, o millor dit,
per què la societat occidental demana a aquesta ciència normalitzadora
que sigui considerat com a malalt mental aquell qui vol acabar amb la
seva pròpia vida? Tenim dret a pensar que Ramón Sampedro és un malalt
mental i, per tant, a no deixar-lo decidir sobre la seva pròpia vida?


Conclusió: la sacralització de la vida.


En alguns moments d'aquest article ha pogut semblar que es defensava
un estat confessional. Sobre aquest punt l'home reflexiu i occidental
-o occidentalitzat- topa amb el següent problema: la manca de
consideració de la vida, del cosmos, com a sagrat du a l'explotació
brutal de la natura: l'home és força de producció, un votant, un
contribuent, un aturat (quasi un pària perquè no ajuda a augmentar el
Producte Interior Brut del país) o un conjunt de teixits i vísceres

aptes per al transplant; i el medi és un conjunt de matèries primes
que esperen ser transformades. Considerar a l'home i a la natura com a
fi, i no com a medi, és, ja, sacralitzar-los. La solució de
confessionalitzar l'estat és, per a l'home occidental, una pèrdua de
llibertats -o almenys o sentim així-, és viure pendents d'una tirania
que no entenem, no sembla, per tant, la solució. La solució sembla,
individual (¿i, per tant, impossible?): l'autoconscienciació de
la importància de l'home, de la seva vida i de la natura, l'estimació
d'aquestes tres coses, i a partir d'aquí cal que cadascú de nosaltres
mostri els demés aquest amor i les terribles conseqüències que
comporta no seguir-lo.


Voldria deixar clar que tampoc he pretès atacar sistemàticament la
psiquiatria. Un hom té dret a cercar la seva pròpia normalització a
través d'ella, sobretot si aconsegueix així abaixar la quantitat de
sofriment al que es pot veure sotmès.



[5][fletxa.gif] Ir a la página principal



Lleïr Bañón.ã

Barcelona, estiu de 1994 (actualitzat el 98).

References

1. http://www.ctv.es/USERS/truitasa/EUTANS.html#Elconcepte
2. http://www.ctv.es/USERS/truitasa/EUTANS.html#El cas de Ram%C3%B3n
3. http://www.ctv.es/USERS/truitasa/EUTANS.html#El dret natural i l'eutan%C3%A0sia
4. http://www.ctv.es/USERS/truitasa/EUTANS.html#Conclusi%C3%B3: la sacralitzaci%C3%B3 de la
5. http://www.ctv.es/USERS/truitasa


Filosofia de Vida

Qual é a sua filosofia de vida?

[filosofia.jpg] Quanto à sua pergunta sobre filosofia, te diria, não
pensar mais num saber que não possa estar inserido de forma concreta e
imediata na vida dos seres humanos. Quando falamos de filosofia,
entenderemos esta como Marx falava. Considerá-la como um instrumento
para mudar as condições de vida dos seres humanos. Na nova era
falamos, concordando com Capra e Fergunson, de paradigmas. Estas
seriam estruturas de interpretação da realidade que nos possibilitam
pensar, atuar e sentir os acontecimentos de nossa vida. Acontecimentos
econômicos, científicos, políticos, espirituais, religiosos, sexuais,
tecnológicos, alimentares, da moda, etc.

Quando falamos de nova era, nos encontramos com um pós-modernismo que
previlegia, antes de qualquer outra coisa, o bem estar dos seres
humanos. Na economia, em qualquer preocupação ou interesse de
desenvolver ciência, tecnologia, religiões ou métodos
psicoterapêuticos nos confrontaremos com esse novo humanismo
ecológico: "nosso interesse por um maior bem estar".

Não existe nenhum saber que se justifique por si mesmo, na área que
seja, que não reverta em um melhoramento da qualidade de vida das
pessoas. Isto se faz mais radical ainda na produção daqueles conceitos
que giram em torno da subjetivização do humano. Este critério de
alcançar um maior bem estar passa a ser um paradigma que assume valor
epistemológico de validade ou não de todos os saberes sobre o humano e
do sistema do qual forma parte. Esta filosofia de paradigmas passará
por dentro de nós. Ou seja, em nosso caso como psicoterapeutas, aquilo
que propomos a nossos pacientes de aumentar sua satisfação de estarem
vivos será proposta para nós mesmos. Os chamados psicoterapeutas,
médicos, guias ou curadores, utilizarão e escolherão seus métodos e

técnicas de trabalho também com esse critério fundamental.

Ai, meu Deus, muito podemos falar com respeito a isso, mas dada as
condições da Home Page devemos ser suscintos. Na pós-modernidade se
privilegia, como expressão plástica, a colagem do surrealismo
anarquista. Não pretendemos coerências e exigências de formalização em
nenhum sistema teórico-técnico de qualquer saber. Só nos perguntamos:
para que serve? O que produz? Como funciona? Transforma ou não? É
isso. Numa época os iniciados nos diferentes conceitos sobre o humano
se perguntavam: qual é a teoria, a filosofia, a ideologia que está por
trás de tal ou qual proposta? Agora responderemos. Por trás estão os
trazeiros e embora sejam interessantes e bonitos o que nos interessa é
o que está na frente, o que fertiliza, o que modifica. Nossa filosofia
está no interior e não é outra coisa do que nossa prática como
psicoterapeutas. Na utilização dos florais, nas técnicas de
sensibilização ecológica, na praia, no mato ou na avenida Nossa
Senhora de Copacabana e Santa Clara na hora do rush. Nas técnicas de
meditação, no uso das cores como forma de recarregamento ou
desentupimento energético dos chacras e nadis. Nos nossos seminários
de desenvolvimento da intuição e criatividade com indivíduos, grupos e
organizações: escolas, empresas e hospitais, etc. No uso do diálogo
clínico verbal onde terapeuta e paciente refletem sobre os aconteceres
da vida, identificam os impecílios para controlá-los e administrá-los,
onde aparecem propostas de modificação das diferentes situações
estagnadas.

Existem certos paradigmas que na nova era pós-moderna é necessário
destacar. Por exemplo, no espiritual-religioso. A espiritualidade da
nova era não gira em tormo de um conceito de "Deus administrador" de
nossas vidas com uma linha moral unívoca marcando um caminho a seguir,
castigando com a noção de pecado as ovelhas desencaminhadas. Como uma
ordem superior e diferenciada do humano. A espiritualidade da que

falamos encontrará a divindade, que chamamos Eu Superior, dentro das
pessoas. Divindade que dará luz, sentido de existência,
direcionalidade, energia amorosa e comunhão com o outro humano,
vegetal, animal, fenômenos naturais, propostas econômicas,
tecnológicas e políticas, onde o poder, força e criatividade do divino
estará no interior dos seres. As pessoas formam parte de nosso Deus,
que em nosso caso é fêmea: Gaia, nosso planeta, a Terra. E não há nada
a demonstrar ou justificar, embora Lovelock, interessado nas
explicações com os argumentos da ciência justifica o entendimento da
terra como um ser vivo. O que nos interessa é o efeito que este
sistema de crenças produz: menos solidão, mais alegria pela companhia,
cuidado com a preservação dos sistemas ecológicos, uma economia
voltada a resolver problemas do humano, uma micropolítica que gira em
torno da solução de necessidades concretas como a fome, etc. Ai,
tantas coisas a dizer...

Outro paradigma a destacar é o que nos possibilita sair do
patriarcalismo e do industrialismo. Este conjunto de idéias, que na
modernidade colocavam o feminino no lugar que os analistas junguianos
chamam de sombra, a virgem negra, como o não manifestado, que
determina mais desde o oculto. O pior é que não foi só a feminilidade,
também as mulheres, seres concretos, anatomicamente perfeitos,
mão-de-obra barata explorada na economia e na sexualidade. A
recuperação da feminilidade possibilita sair da mulher eunuco para
encontrar o poder e a força da fêmea humana e do feminino em geral na
nossa cultura. Privilegiaremos, então, por intermédio do ecofeminismo,
no econômico, no sexual, no político, etc., as formas circulares, o
brando, o que contém, a intuição e a criatividade, o que nutre, o que
cuida e as formas não violentas de produção e política.

Outra categoria que rege a nova era pós-moderna é o holismo. Pensar o
nosso planeta como sistema complementário e sincrônico. Na minha

formação existiu alguém que me marcou para sempre, terapeuta, mestre e
guia: Henrique Pichon Rivière. Ele sempre me falava: "Edgardo, quando
queiras compreender um paciente seu não olhe só para ele. Observa de
onde surge a sua queixa. Olha para a sua família, seu trabalho, seus
amigos, como usa seu tempo livre, os acontecimentos de seu país". Sua
proposta era o sistêmico e holístico de seu tempo. Esta olhada nos
permite entender que não foi por casualidade singular que Edward Bach
aparece na Inglaterra com uma proposta de cura profundamente amorosa e
ecológica, enquanto em outras partes da Europa se cozinhava o
nazi-facismo que se consolida com a constituição do terceiro Reich, a
tomada do poder por Hitler, a Noite dos Cristais em Berlim, em 1938, e
a explosão da grande guerra, em 1939. Década de 30 na que Bach produz
seu método de produção de harmonia e equilíbrio com seus instrumentos
florais. Esta olhada holística-sistêmica nos permite compreender o
individual e coletivo trazendo perspectivas úteis para entender o
funcionamento do vivo.

Outro paradigma que interessa é a chamada "Lei da Unidade de Todas as
Coisas". Por intermédio deste princípio que é holístico e ético, que
regula o comportamento de nós humanos, ampliaremos o dito cristão de
"amarás ao outro como a ti mesmo" pela consígnia holística amarás ao
outro que é você mesmo. Existe uma unidade que transcende o singular e
nos coloca numa situação da qual somos constituídos e constituintes.
Como falei anteriormente, este paradigma passará a formar parte de uma
nova ética que deixa para trás a noção de pecado e de um regulador e
administrador moral divino e/ou pessoal, dissociado dos acontecimentos
cotidianos dos seres humanos. Portanto, o tema não é a aceitação de um
mandato de não gerar ato cruel consigo mesmo ou com os outros (moral
repressiva) e sim desenvolver as capacidades de preservação que o
feminino divino tem nos seres humanos. Isto no sentido ecológico

geográfico natural como também príncipio ético para com a economia, a
tecnologia, a sexualidade, enfim no que está presente na vida dos
seres humanos.


[pequena.gif] Porque o desenvolvimento da intuição e criatividade?

Há alguns anos anos atrás, quando nós fizemos o Centro de
Desenvolvimento da Intuição e Criatividade e pouco depois o Centro de
Estudos em Psicoterapia e Prevenção, eu pensava que havia dois
trabalhos a serem feitos. Um, o terapêutico ainda preocupado pelo tema
do porque da neurose, da causalidade, de tudo aquilo que entendíamos
como determinismo. E outro, aquilo que fugia às leis da determinação e
que era o encontro com o novo, com a potência do criativo, sem o qual
as transformações aspiradas no nível psicoterapêutico se faria
impossível. Para o qual de grande ajuda foi para mim a literatura de
dois pensadores franceses pós-psicanalíticos: Deleuze e Guattari, que
com Spinoza e Nietzche, me abriam as portas para a percepção do caos,
do desvio e da vida como simulacro.

Não existe um trabalho de transformação sobre um paciente que nos
apresenta uma queixa a ser resolvida clinicamente que não tome o
desenvolvimento de sua capacidade criativa, que fuja do entendimento
do porque lhe acontecem as coisas. Um conceito muito importante é que
a intervenção terapêutica, mais que produzir o descobrimento de alguma
verdade, produz subjetividade em nossos chamados pacientes.
Trabalhando só sobre o porque, só reproduziremos os condicionamentos
dos quais o paciente quer se libertar. A criatividade sucumbe na
modernidade não só pelas determinações familiares, senão também pelas
condições em que se realiza uma das atividades fundamentais geradoras
de psiquismo e também de estagnação e neurose que é o trabalho e a
modalidade com que as pessoas produzem. A modernidade com sua
característica fundamental que é o industrialismo e seu objetivo de

acumulação de riqueza para formação de capital não só como instrumento
de produção e sim também de poder, arrasou com o potencial criativo
dos seres humanos. Por isso, para acordar a essa possibilidade
criativa abafada foi que fizemos e estamos fazendo seminários de
criatividade não só com indivíduos ou grupos familiares, crianças e
adultos, mas também com empresas com resultados altamente
satisfatórios não só para nós mas para com as pessoas e organizações
que participam de nossos trabalhos.

Empresas? Como assim? É, empresas. Fundamentalmente aquelas que
entendem que seu maior capital está na qualidade dos seres humanos que
nela produzem. Estas são poucas, mas na medida que passa o tempo vão
sendo cada vez mais.
_________________________________________________________________

[2][pequena.gif] Entre em contato com a gente pelo e-mail
[3]cdic@cdic.com.br.

References

1. http://www.cdic.com.br/main.htm
2. mailto:cdic@cdic.com.br
3. mailto:cdic@cdic.com.br


Nanotecnología

Los próximos párrafos intentan ser una introducción al español del
concepto de nanotecnología.
__________

Tal como dice la Web de [1]Xerox de Palo Alto:
"Los productos manufacturados están compuestos de atomos. Las
propiedades de estos productos dependen de cómo están ordenados
dichos átomos. Si reorganizamos átomos de carbono obtendremos
diamante. Y si lo hacemos con átomos de arena (junto con algún
otro elemento) obtendremos chips de silicio. Si reorganizamos
átomos de polvo, agua i are podemos hacer patatas".
Todavía no tenemos la tecnología para la reorganización de los
átomos, pero tanto las universidades americanas como el propio
gobierno se esfuerzan en esta dirección. Los adelantos que
supusieron en la década de los ochenta los microchips y los
microprocesadores hacen concebir grandes esperanzas en el campo de
la microtecnología.
Para que se de la revolución nanotecnológica hacen falta tres
condiciones:

+ Colocar cada átomo en el lugar que le corresponda.
+ Tener en cuenta las leyes de la física y de la química.
+ Que los resultados de la manufactura no excedan los de la
técnica y los de la energía.

Hay otros dos conceptos comunmente relacionados con la
nanotecnología:

+ [2]Control posicional. (colocar moléculas)
+ [3]Auto replicación. (con lo que caerían los costes en
picado)

__________________________________________



Links a otras páginas sobre el tema:
[4]Xerox
Rafael Clementa, [5]"El arte de descifrar lo diminuto". La

Vanguardia.
Miquel Barceló, [6]"Nanotecnología" La Vanguardia.
______________________________________


[7][fletxa.gif]

Ir a la página principal

References

1. http://nano.xerox.com/nanotech
2. http://nano.xerox.com/nanotech/CDAarticle.html
3. http://nano.xerox.com/nanotech/selfRep.html
4. http://nano.xerox.com/nanotech
5. http://www.vanguardia.es/ciencia/portada/p501.html
6. http://www.vanguardia.es/ciencia/espec/es31.html
7. http://www.ctv.es/USERS/truitasa

Espiritualidade: os velhos e as eleições

EdgardoMusso

[arvore.jpg] Dias atrás, na última reunião com os professores do
Centro de Desenvolvimento da Intuição e Criatividade e Centro de
Estudos em Psicoterapia e Prevenção, Glória, um de seus membros,
mestre, paciente e amiga, me diz Edgardo, já que estás escrevendo das
coisas do cotidiano seria bom falar dos velhos. Sua sugestão ficou
enlaçada no meu pensar e não soltou. Imagens confusas, contraditórias,
frases e pensamentos mais elaborados não paravam de rodopiar no filme
da minha mente. Desse redemoinho surgiu uma imagem: um velho de traços
orientais e idade indefinida pelo calendário. O vi na praia quase que
perdido entre as gatinhas e alterofilistas com um garotinho que seria
provavelmente seu neto. Brincavam perto da água sem parar de se olhar
um ao outro. O menino corria, pulava, dava cambalhotas caindo na água.
Em seu corpo podia ver sua aura que brilhando se misturava com a areia
e água expressando alegria e satisfação espiritual de estar vivo. O
velho, que batizaremos de Sr. Arthur, olhava sorrindo em direção ao
menino com a curiosidade de quem também é criança e sabedoria do
adulto. Olhar de cor celeste continha tudo, falando também de sua
satisfação e alegria espiritual de estar vivo e ali. Sua aura era
menos brilhante e esparsa, mas também mais clara e direcionada. Seu
corpo sentado, barriga saliente, pernas entrelaçadas, costas e ombros
inclinados à frente mostravam que carregava, mas sem esforço, o tempo.
Tempo com e além do calendário. Tempo de realização do espírito e de
vida mundana que permite a possibilidade de saber mais como são as
coisas, um cordão verde e rosa de amor os uniam e ali estava o segredo
da alegria e harmonia entre os dois. Eu os olhava me nutrindo com
satisfação que imagino de um obeso lindo no Porcão. Não falei com

eles, não quis interromper. Que esta escrita me sirva para concretizar
o diálogo no feito com o Sr. Arthur e com aqueles de seu tempo, os
velhos.

[pequena.gif]

Desculpe Sr. Arthur, interromper, mas estamos em época de eleições.
Como o Sr. sabe as coisas nesse sentido estão muito, mas muito
difíceis. Eu e outros companheiros meus sobreviventes da época de 68,
que acreditamos que o sonho não acabou, que a imaginação deve estar no
poder; que o amor é e deve ser em liberdade; que a economia, ciência,
tecnologia, religião, política e tudo o mais deve estar a serviço do
humano; que não há nada mais importante que aumentar a satisfação de
estar vivos e que o espírito se realiza nas condições da vida
cotidiana das pessoas; que o mundano e o espiritual são a mesma coisa;
que não importa tanto a causalidade e o determinismo kármico das vidas
passadas porque é na oportunidade da vida que o espiritual se realiza;
que escolhemos a Gaia como nossa Deusa e ela é o nosso planeta Terra,
Nossa Mãe; que a força e a potência do divino está no interior do
humano que também é Gaia junto com os mares, florestas, a tecnologia,
enfim tudo o que produz nossa vida cotidiana.

[pequena.gif]

Novamente peço desculpas, Sr. Arthur, se interrompo a brincadeira com
seu neto, mas todos nós estamos passando por épocas, como falei,
difíceis. Estamos em dias de eleições de governantes e o que eles nos
geram é medo, desconfiança, tristeza, raiva, mágoa, muito pouca
alegria Sr. Arthur. Gostaríamos que o Sr. e outros amigos seus
formassem um conselho para ajudar a administrar nossas vidas em
pequenas comunidades onde se aceitem as diferenças. Talvez o Sr. e
amigos de sua geração com bastante tempo vivido tiveram a oportunidade
de saber quais são as coisas mais importantes. Eu vi o Sr. com seu

neto. Essas cores azul da espiritualidade, verde do equilíbrio e rosa
do amor é o que necessitamos dos nossos governantes e administradores.
Pense em nossa proposta, Sr. Arthur, que enquanto isso ficaremos
falando por aí.

[2][pequena.gif] Entre em contato com a gente pelo e-mail
[3]cdic@cdic.com.br.

References

1. http://www.cdic.com.br/main.htm
2. mailto:cdic@cdic.com.br
3. mailto:cdic@cdic.com.br


Sensibilização Ecológica e Espiritualidade

Poderia explicitar o que é o espiritual para você?

[cachoeira.jpg] Para falar deste tema seria necessário explicitar que
da mesma forma que o mundano, o ecológico e a espiritualidade são a
mesma coisa.

Temos um Deus, aliás uma Deusa, esta é Gaia, nossa mãe, nosso planeta,
a Terra a qual cuidamos e protegemos e da qual formamos parte.

Gaia é tudo o que é nas formas primeiras e naturais como florestas,
montanhas, rios, desertos, animais, insetos, aves, vento, mar, como
também seres humanos e tudo o que por eles é produzido como estradas,
cidades, moda e tecnologias variadas como a Internet.

Nossas crenças religiosas passam pela idéia de uma divindade que
percorre a essência do humano que encontra ali sua potência e
criatividade. Estas qualidades desenvolvem um usufruir do fato de
estarem vivos, pois é nas condições da vida que o espírito se realiza.
Quando falamos de vida estamos nos referindo mais especificamente a
nossa vida cotidiana. Portanto, o divino estará presente em como
comemos, trabalhamos, acordamos, dormimos, em nossa sexualidade e o
destino que damos às nossas vontades de consumo.

Em épocas passadas os humanos acreditavam que nossa experiência do
viver devia necessariamente passar pelo sofrer, condição indispensável
para a recompensa.

Esta crença nos levou a morrer e matar acreditando por nossa fé que
devíamos colocar o humano em ordem para a sua salvação. Isto se
fundamentava na crença de um Deus único e verdadeiro, chame-se a este
e a seus porta-vozes Alá, Maomé, Cristo ou Abraão ou como mais
recentemente na época industrial o comunismo, o capitalismo ou a
democracia.


No contemporâneo vivemos época de acreditar nas escolhas, na
multiplicidade, nas diferenças e vários deuses convivem sem
necessariamente se opor.

Continuará existindo Cristo, Buda, Maomé, mas também estará presente
em nosso olimpo Mitsubishi, Pentium e Madonna.

Nossa Deusa é nosso planeta, a Terra e o encontro com a ecologia
profunda passará pelo interior do humano, também divino. Este é um dos
critérios fundamentais do nosso trabalho psicoterapêutico. Em nossa
grande maioria somos urbanos. É nas condições da cidade que se
desenvolve nossa cotidianeidade, mas em nossas raízes o natural
primário está e estará sempre presente.

[pequena.gif] E a sensibilização ecológica, como se dá?

Em nossos trabalhos de sensibilização ecológica e desenvolvimento
espiritual (metodologia criada por mim) procuraremos o encontro com
aquelas realidades esquecidas pelos que vivem sem olhar, sentir,
escutar, cheirar as situações ecológicas nas que estão imersos.

Sensibilização que se dará, portanto, nos locais de vida como nossa
casa, trabalho, nas florestas, nos rios, no mato, no mar, na avenida
Rio Branco na hora do rush ou no supermercado Paes Mendonça.

Quando seja necessário e possível sairemos dos consultórios e iremos
aos locais onde a vida acontece para identificar e enxergar o que
estes produzem e o que produzimos neles.

É necessário destacar que como seres urbanos resulta fundamental para
nós o encontro com os locais chamados "meio ambiente natural". Falo
fundamental porque as condições de vida na cidade abafam nossa
percepção do natural de nós que poderá ser resgatado em um maior
contato com o vegetal, o mineral, o animal, as águas, o vento, o
barulho do mar e da floresta. Ali respiramos na forma de
hiperventilação, meditaremos nas diferentes formas, cheiraremos,

tocaremos as árvores de casca fina sem musgo e manchas brancas.
Produziremos alinhamento de nosso hara apontando nosso tan tien em
linha reta ao âmago de nosso planeta Terra pulsando com ele.
Sentiremos a energia prana e chi em suas formas masculinas e femininas
entendendo que o fora e dentro de nós forma parte da mesma rede.
ARTIGOS DE FILOSOFIA, QUINTO VOLUME
AUTORES DIVERSOS

A Filosofia da Educação no novo Catecismo Católico

A Filosofia da Educação no
novo Catecismo Católico
(conferência no I Congresso Latino de Filosofia da Educação, Rio de Janeiro,
11-7-2000)
L. Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Fac. de Educação - Univ. de São Paulo


Introdução: uma "filosofia da educação" no Catecismo
A recente publicação do texto definitivo do Catecismo da Igreja
Católica[1] brinda-nos a ocasião de reflexão sobre a "filosofia da educação"
que nele se propõe. Naturalmente, quando falamos em "filosofia da educação"
no CC, estamos pensando principalmente em certos princípios e teses -
sobretudo de antropologia filosófica - e não em um tratamento filosófico
sistemático e detalhado, que não é - e nem pretende ser - a proposta da
Igreja, e menos em seu Catecismo.
Na verdade, a Igreja deixa em aberto também a opção por sistemas
filosóficos (desde que não contradigam sua doutrina): dogmas, só os há para
verdades de fé e não para filosofias. No entanto, as verdades de fé não são
teoremas abstratos e desencarnados, harmonizam-se com as verdades naturais -
quer provenham do conhecimento comum, da ciência ou da filosofia... - e, em
certo sentido, delas dependem. Daí que o próprio CC afirme:
#354. Respeitar as leis inscritas na criação e as relações que derivam da
natureza das coisas é princípio de sabedoria e fundamento da moral.
Assim, para a Igreja, a realidade sobrenatural da graça
pressupõe a natural da criação; a doutrina e a vida cristãs partem da
afirmação cabal da realidade do mundo, afinal, criado por Deus: qualquer
erro em relação à criação é também um erro para a compreensão da mensagem
cristã.
Seja como for, não só para a teologia, mas para a própria
formulação da fé, a Igreja acaba tendo de valer-se de termos, por assim
dizer, "técnicos" de filosofia, como, por exemplo, o aristotélico "forma":
# 365. A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a
alma como a "forma" do corpo; ou seja; é graças à alma espiritual que o
corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo; o espírito e a
matéria no homem não são duas natureza unidas, mas a união deles forma uma
única natureza.
Sem excluir contribuições de outras linhas de pensamento, a
"base filosófica" do CC é tomada - em grande medida - do pensamento de Tomás
de Aquino, como indicaremos a propósito dos fundamentos da moral e do
conceito de participação (essencial para a compreensão da graça)[2].
Os fundamentos da proposta moral do CC
Essa pressuposição da realidade natural é o clássico princípio
de Tomás de Aquino: Cum enim ...gratia non tollat naturam, sed perficiat (a
graça não suprime a natureza, aperfeiçoa-a - I,8,1 ad 2). Se nos voltamos,
para a concepção de moral e para a filosofia da educação moral do CC,
encontraremos que a Igreja não possui propriamente um conteúdo moral
específico; ao afirmar a moral, afirma-a como realidade humana, proposta
para todos os homens (e não somente para os católicos).
# 1954 (...) A lei natural exprime o sentido moral original, que permite ao
homem discernir, pela razão, o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira:
"A lei natural se acha escrita e gravada na alma de todos e da um dos homens
porque ela é a razão humana ordenando fazer o bem e proibindo pecar (...)
# 1955 (...) A lei natural enuncia os preceitos primeiros e essenciais que
regem a vida moral (...). Está exposta, em seus principais preceitos, no
Decálogo. Essa lei é denominada natural, não em referência à natureza dos
seres irracionais, mas porque a razão que a promulga pertence como algo
próprio à natureza humana(...).
# 1956 Presente no coração de cada homem e estabelecida pela razão, a lei
natural é universal em seus preceitos, e sua autoridade se estende a todos
os homens. Ela exprime a dignidade da pessoa e determina a base de seus
direitos e de seus deveres fundamentais.
# 1872 O pecado é um ato contrário à razão. Fere a natureza do homem e
ofende a solidariedade humana.
Nesses pontos, como dizíamos, já se vê a referência ao
pensamento de Tomás de Aquino: naturalmente, aqui, "razão" e "natureza" são
entendidos em seu significado clássico de ratio e natura, tal como aparecem
em S. Tomás.
Ratio, razão, não é no CC (porque não é em Tomás) a razão do
"racionalismo", nem sequer somente a faculdade racional humana. Dentre os
múltiplos significados da palavra latina ratio (que acompanha alguns dos
diversos sentidos do vocábulo grego logos), interessam-nos principalmente
dois: um que aponta para algo intrínseco à realidade das coisas; e, outro,
para um peculiar relacionamento da razão humana com a realidade. Ratio é
derivado do verbo reor, contar, calcular. Ratio originalmente é conta;
rationem reddere é prestar contas. Mas ratio significa também: razão,
faculdade de calcular e de raciocinar; juízo, causa, porquê; título, caráter
etc. Em filosofia, aparece como tradução de logos que, como ensina Pierre
Chantraine[3], entre muitos outros significados: "acabou por designar a
razão imanente", isto é: a estruturação interna de um ente, e este é o
primeiro significado que nos interessa neste estudo; o segundo é a
capacidade intelectual humana de abrir-se à ratio das coisas e captá-la[4].
No âmbito da fé, não é por acaso, portanto, que S. João emprega,
em seu Evangelho, o vocábulo grego Logos (razão, palavra) para designar a
segunda Pessoa da Ssma. Trindade que "se fez carne" em Jesus Cristo: o Logos
não só é imagem do Pai, mas também princípio da Criação (cfr. Ap 3, 14), o
responsável pela articulação intelectual das coisas. Pois a Criação deve ser
entendida também como essa "estruturação por dentro": projeto, design das
formas da realidade, feito por Deus através do Verbo, Logos. E em seu
Comentário ao Evangelho de João, Tomás chega a discutir a questão da
conveniência de traduzir Logos por Ratio em vez de Verbum. Esta última forma
parece-lhe melhor, pois se ambas indicam pensamento, Verbum enfatiza a
"materialização" do pensamento (em criação/palavra).
Assim, para Tomás, a criação é também "fala" de Deus: as coisas
criadas são pensadas e "proferidas" por Deus: daí decorre a possibilidade de
conhecimento do ente pela inteligência humana[5].
É nesse sentido que a Revelação Cristã fala da "Criação pelo
Verbo"; e a Teologia - na feliz formulação do teólogo alemão Romano Guardini
- afirma o "caráter verbal" (Wortcharakter) de todas as coisas criadas. Ou,
em sentença de S. Tomás: "Assim como a palavra audível manifesta a palavra
interior[6], assim também a criatura manifesta a concepção divina (...); as
criaturas são como palavras que manifestam o Verbo de Deus" (I d. 27, 2.2 ad
3).
# 292 Insinuada no Antigo Testamento, revelada na Nova Aliança, a ação
criadora do Filho e do Espírito, inseparavelmente una com o Pai, é
claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: "Só existe um Deus...: ele é
o Pai, é Deus, é o Criador, é o Autor, é o Ordenador. Ele fez todas as
coisas por si mesmo, isto é, pelo seu Verbo e Sabedoria", "pelo Filho e pelo
Espírito", que são como que "suas mãos". A criação é obra comum da
Santíssima Trindade.
# 320 Deus, que criou o universo, o mantém na existência pelo seu Verbo,
"este Filho que sustenta o universo com o poder de sua palavra"(Hb 1,3) e
pelo seu Espírito Criador que dá a vida.
# 299 Já que Deus cria com sabedoria, a criação é ordenada: "Tu dispuseste
tudo com medida, número e peso"(Sab 11,20). Feita no e por meio do Verbo
eterno, "imagem do Deus invisível"(Cl 1, 15), a criação está destinada,
dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma relação pessoal com Deus.
Nossa inteligência, que participa da luz do Intelecto divino, pode entender
o que Deus nos Diz por sua criação, sem dúvida não sem grande esforço e num
espírito de humildade e de respeito diante do Criador e da sua obra.
Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: "E Deus viu
que isto era bom...muito bom"(Gn 1,4.10.12.18.21.31). Pois a criação é
querida por Deus como um dom dirigido ao homem, como uma herança que lhe é
destinada e confiada. Repetidas vezes a Igreja teve que defender a bondade
da criação, inclusive do mundo material.
Essa concepção de Criação como fala de Deus, a Criação como ato
inteligente de Deus, foi muito bem expressa numa aguda sentença de Sartre,
que intenta negá-la: "Não há natureza humana porque não há Deus para
concebê-la". De um modo positivo, poder-se-ia enunciar o mesmo desta forma:
só se pode falar em essência, em natureza, em "verdade das coisas", na
medida em que há um projeto divino incorporado a elas, ou melhor,
constituindo-as.
Assim, diz Tomás: "Qualquer criatura (...) por ter uma certa
forma e espécie representa o Verbo, porque a obra procede da concepção de
quem a projetou" (Quaelibet creatura... secundum quod) habet quamdam formam
et speciem, repraesentat Verbum: secundum quod forma artificiati est ex
conceptione artificis I, 45, 8)).
Próximo do conceito de razão está o de natura, natureza. Se
ratio acentua o caráter de pensamento, estruturação racional do ser;
natureza indica o ser enquanto princípio de operações (falar, pensar, amar,
germinar, digerir, latir, etc.). Não por acaso natureza deriva de natus, do
verbo nascer (nascor). Se agimos como homens é porque nascemos homens e não
ratos. Natureza humana é, assim, o ser que o homem recebe de nascença. A
"natureza", especialmente no caso da natureza humana, não é entendida por
Tomás como algo rígido, como uma camisa de força metafísica, mas como um
projeto vivo, um impulso ontológico inicial (ou melhor, "principial"), um
"lançamento no ser", cujas diretrizes fundamentais são dadas precisamente
pelo ato criador que, no entanto, tem de ser completado pelo agir livre e
responsável do homem. Assim, todo o agir humano (o trabalho, a educação, o
amor, etc.) constitui uma colaboração do homem com o agir divino,
precisamente porque Deus - cuja ordem conta com as causas segundas - quis
contar com essa cooperação.
# 302 A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu
complemente acabada das mãos do Criador. Ela é criada "em estado de
caminhada" ("in statu viae") para uma perfeição última a ser ainda atingida,
para a qual Deus a destinou.
Esse caminho moral é percorrido, exercendo a liberdade de
praticar o bem e, assim realizando sua própria natureza. Mas, o bem remete à
verdade: à ratio da realidade que a razão capta, propondo à vontade sua
realização.
Todo ente tem, portanto, uma essência, uma natureza, um modo de
ser pensado, planejado por Deus; está organizado ou estruturado segundo um
"projeto" divino. O homem (e cada coisa criada) é o que é, possui uma
natureza humana, precisamente por ter sido criativamente criado pelo Verbo.
Daí que haja uma verdade e um bem objetivos para o homem, porque seu ser não
é caótico ou aleatório, mas procede de um design divino.
Para estabelecermos uma comparação[7], poderíamos dizer que
assim como o manual de instruções de um complicado aparelho elétrico não é
outra coisa que uma decorrência do design, do processo de criação e de
fabricação daquela máquina, assim também a moral deve ser entendida não como
um conjunto de imposições arbitrárias ou convencionais, mas pura e
simplesmente como o reconhecimento da verdadeira natureza humana, tal como
projetada por Deus. E da mesma forma que não ficamos revoltados contra o
fabricante que nos indica: "Não ligarás em 220V", ou "Conservarás em lugar
seco", mas lhe agradecemos essas informações, assim também devemos enxergar,
digamos, os Dez Mandamentos não como imposições arbitrárias, mas como
verdades elementares sobre o ser do homem.
É, pois, ao homem que se dirige a ética de Tomás (e a do CC); ao
homem total, espírito em intrínseca união com a matéria; ao homem,
ser-em-potência, que ainda não atingiu a estatura a que está chamado e para
quem a moral se expressa na sentença -tantas vezes repetida por João Paulo
II - do poeta pagão Píndaro: "Torna-te o que és!". Nesta perspectiva, toda
norma moral deve ser entendida como um enunciado a respeito do ser do homem;
e toda transgressão moral, o pecado, traz consigo uma agressão ao que o
homem é. Os imperativos dos mandamentos ("Farás x...", "Não farás y...")
são, no fundo, enunciados sobre a natureza humana: "O homem é um ser tal que
sua felicidade, sua realização, requer x e é incompatível com y".
Algumas sentenças de Tomás, a título de exemplo:
A razão reproduz a natureza.
Ratio imitatur naturam (I,60,5).
A causa e a raiz do bem humano é a razão.
Causa et radix humani boni est ratio (I-II,66,1).
"Natureza" procede de nascer.
Natura a nascendo est dictum et sumptum (III,2,1).
O moral pressupõe o natural.
Naturalia praesupponuntur moralibus (Corr. Frat. I ad 5).
Daí que... haja criaturas espirituais, que retornam a Deus não só segundo a
semelhança de sua natureza, mas também por suas operações. E isto,
certamente, só pode se dar pelo ato do intelecto e da vontade, pois nem no
próprio Deus há outra operação em relação a Si mesmo.
Oportuit... esse aliquas creaturas quae in Deum redirent non solum secundum
naturae similitudinem, sed etiam per operationem. Quae quidem non potest
esse nisi per actum intellectus et voluntatis: quia nec ipse Deus aliter
erga seipsum operationem habet (CG 2,46).
A lei divina ordena os homens entre si, de tal modo que cada um guarde sua
ordem, isto é, que os homens vivam em paz uns com os outros. Pois a paz
entre os homens não é senão a concórdia na ordem, como diz Agostinho.
Lex... divina sic homines ad invicem ordinat, ut unusquisque suum ordinem
teneat, quod est homines pacem habere ad invicem. Pax enim hominum nihil
aliud est quam ordinata concordia, ut Augustinus dicit (CG 3,128).
Os princípios da razão são os mesmos que estruturam a natureza.
Principia... rationis sunt ea quae sunt secundum naturam (II-II,154,12).
O ser do homem propriamente consiste em ser de acordo com a razão. E assim,
manter-se alguém em seu ser, é manter-se naquilo que condiz com a razão.
Homo proprie est id quod est secundum rationem. Et ideo ex hoc dicitur
aliquis in seipso se tenere, quod tenet se in eo, quod convenit rationi
(II-II,155, ad 1).
Aquilo que é segundo a ordem da razão quadra naturalmente ao homem.
Hoc... quod est secundum rationem ordinem est naturaliter conveniens homini
(II-II,145,3).
A razão é a natureza do homem. Daí que tudo o que é contra a razão é contra
a natureza do homem.
Ratio hominis est natura, unde quidquid est contra rationem, est contra
hominis naturam (Mal. 14,2 ad 8).
Tudo que vá contra a razão é pecado.
Omne quod est contra rationem... vitiosum est (II-II,168,4).
Se não há uma "moral católica" (no sentido de normas morais que
obrigariam os católicos, mas não os outros homens[8]), se não há "moral
católica" além da moral natural; sim, há, um modo católico de encarar a
moral, mas sobre isto falaremos após examinarmos o conceito de participação.
O conceito de participação em Tomás
Dentre os inúmeros aspectos relacionados à "filosofia da
educação" presente no CC (ou a ele subjacente), o mais oportuno é destacar
aquele que - assim nos parece - é um conceito central em sua estruturação: o
conceito de participação. Trata-se de um conceito filosófico que será
decisivo para as formulações da teologia e da doutrina da fé.
De fato - como procuraremos mostrar - a proposta do CC depende
da doutrina da participação nas quatro grandes partes em que se divide o CC:
a doutrina da fé (parte I); a liturgia (parte II), a moral (parte III) e até
a vida de oração (parte IV)[9]. Essa dependência é particularmente visível
quando nos voltamos para aquilo que o CC apresenta de novo (sobretudo ao
relacionar a vida de fé à vida quotidiana) e o que apresenta como
especificamente cristão e católico.
Para bem compreender a doutrina da participação é necessário que
nos voltemos para Tomás de Aquino, pois esse é um dos tantos pontos em que o
CC se apóia no pensamento de Tomás, o pensador que formulou essa doutrina
teológico-filosófica[10].
Participação é um conceito central em S. Tomás[11], para o qual
vale a sugestiva observação de Weisheipl: "Tomás, como todo mundo, teve uma
evolução intelectual e espiritual. O fato assombroso, porém, é que, desde
muito jovem, Tomás apreendeu certos princípios filosóficos fundamentais que
nunca abandonou"[12].
Essa doutrina encontra-se no núcleo mais profundo do pensamento
do Aquinate e é a base tanto de sua concepção do ser como - no plano
estritamente teológico - da graça. Indicaremos resumidamente suas linhas
principais.
Como sempre, voltemo-nos para a linguagem. Comecemos reparando
no fato de que na linguagem comum, "participar" significa - e deriva de -
"tomar parte" (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse
"tomar parte"[13]. Um primeiro é o de "participar" de modo quantitativo,
caso em que o todo "participado" é materialmente subdividido e deixa de
existir: se quatro pessoas participam de uma pizza, ela se desfaz no momento
em que cada um toma a sua parte.
Num segundo sentido, "participar" indica "ter em comum" algo
imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada;
é assim que se "participa" a mudança de endereço "a amigos e clientes", ou
ainda que se "dá parte à polícia".
O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que é expresso
pela palavra grega metékhein, que indica um "ter com", um "co-ter", ou
simplesmente um "ter" em oposição a "ser"; um "ter" pela dependência
(participação) com outro que "é". Tomás, ao tratar da Criação, utiliza este
conceito: a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E
a graça nada mais é do que ter - por participação na filiação divina que é
em Cristo - a vida divina que é na Santíssima Trindade.
Há - como indica Weisheipl[14] - três argumentos subjacentes à
doutrina da participação: 1) Sempre que há algo comum a duas ou mais coisas,
deve haver uma causa comum. 2) Sempre que algum atributo é compartilhado por
muitas coisas segundo diferentes graus de participação, ele pertence
propriamente àquela que o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é
compartilhado "procedente de outro" reduz-se causalmente àquele que é "per
se".
No pensamento de Tomás, tanto o ato de ser da criatura como a
graça são casos de participação. Na criação, Deus que é o ato puro de ser,
dá, em participação o ser às criaturas, que têm o ato de ser[15]. Essa
primazia do ser exclui todo "essencialismo" de Tomás, que é, no dizer de
Maritain "o mais existencialista de todos os filósofos"[16].
Nesse sentido, estão as metáforas de que Tomás se vale para
explicar a participação. Ele compara o ato de ser (conferido em participação
às criaturas pelo ato criador de Deus) ou a graça (a filiação divina que nos
é conferida pela participação na Filiação de Cristo) à luz e ao fogo: um
ferro em brasa tem calor porque participa do fogo, que "é calor"[17]; um
objeto iluminado "tem luz" por participar da luz que é na fonte
luminosa[18]. Tendo em conta essa doutrina, já entendemos melhor a sentença
de Guimarães Rosa: "O sol não é os raios dele, é o fogo da bola"[19].
A graça como participação no CC
Analisemos, agora, o tema que é de decisiva importância para a
educação cristã: a diferença essencial do cristianismo: a graça. É
precisamente pela sua peculiar concepção da graça que o catolicismo (junto
com algumas outras igrejas cristãs) não é uma doutrina religiosa a mais, nem
consiste em uma série de preceitos (mais ou menos comuns a outras religiões
como o Islam ou o judaísmo...). Há esta diferença essencial: Trata-se no
catolicismo de uma vida nova, participação na própria vida íntima de Deus: a
vida da graça que principia no sacramento do Batismo. O alcance e o
significado da vocação cristã estão ligados a uma compreensão do alcance e
do significado do Batismo.
Ao começarmos a tratar deste tema é muito conveniente
"desacostumarmo-nos", recordar (ou, talvez, considerar pela primeira vez...)
esta espantosa realidade, que é a própria essência do cristianismo: a graça,
a vida sobrenatural. Tudo começa quando o Filho de Deus ao se fazer homem e
habitar entre nós, misteriosamente comunica-nos sua divindade pelo Batismo
de tal modo que somos - e essa formulação é importante - participantes da
vida divina de Cristo: como diz o texto essencial de Hbr 3,14. Esta doutrina
evangélica é explicada detalhadamente pelo apóstolo Paulo. Aliás, desde o
primeiro momento de sua conversão, quando Cristo lhe aparece já lhe propõe a
inquietante e infinitamente sugestiva questão: "Saulo, Saulo, por que ME
persegues?". E quando Saulo pergunta: "Quem és tu, Senhor?", ouve a
resposta: "Eu sou Jesus, a quem tu persegues". E aí precisamente começa a
revolucionária revelação: para Saulo, Cristo estava morto e ele perseguia
cristãos... e de repente descobre que Cristo é Deus, que Ele ressuscitou e
está vivo, não só à direita de Deus Pai, mas de algum modo, em Pedro, João,
André, Estevão..., nos cristãos, como dirá o próprio Paulo no essencial Gal
2,20: "Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim". Nesse sentido o CC
afirma que, pelo Batismo, estamos conectados, como que "plugados" em Cristo.
Ou para usar a palavra chave (de Hbr 3, 14): participação.
# 1265 O batismo não só purifica de todos os pecados, mas faz também do
batizando "um nova criação" (II Cor. 5, 17), um filho adotivo de Deus
tornando-o "participante da natureza divina" (II Pe. 1, 4), membro de Cristo
(I Cor. 6, 15; 15,27) e co-herdeiro com Ele (Rom 8,17), templo do Espírito
Santo (I Cor. 6, 19).
# 1277- O batismo constitui o nascimento para a vida nova em Cristo.
A graça nos dá uma união íntima com Cristo: pelo Batismo somos
como que enxertados em Cristo (Rom 6,4 e ll, 23) e principia em nós a
in-habitação da Trindade, que se chama vida sobrenatural. Essa nova vida não
é que elimina a vida natural, nem a ela está justaposta; pelo contrário,
empapa-a, informa-a, estrutura-a por dentro. A espiritualidade cristã - esta
é a grande novidade consagrada pelo Vaticano II - dirige-se a que
descubramos e cultivemos essa vida interior, também e principalmente em
nossa vida quotidiana. Pois, pelo Batismo, Cristo habita em nós e a vida
cristã - alimentada pelos demais sacramentos - nada mais é do que a busca da
plenitude desse processo - realizado pelo Espírito Santo - de identificação
com Cristo, que principia no Batismo e tende no limite àquele: "Já não sou
eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gal 2,20) de S. Paulo.
# 2813 Pela água do Batismo ... durante toda nossa vida nosso Pai "nos
chama à santificação"
Cristo vive em seus "terminais": cada cristão não é só nem
principalmente alguém que segue um código, é alguém que recebeu e tem a
própria vida de Cristo. Cada cristão está chamado a ser outro Cristo. Uma
das formas de Cristo perpetuar sua presença no mundo - em todos os lugares
do mundo, em todas as épocas - é estando presente nos cristãos. Esta
presença principia pelo Batismo... E isto é o que se chama graça: a
participação da vida divina em nós. Isto é precisamente o que outras
religiões não aceitam: que nossa vida passa a ser (em participação) a
própria vida íntima divina.
# 108 (...) Todavia a fé cristã não é uma "Religião de Livro". O
cristianismo é a religião da "Palavra", não de um verbo escrito e mudo, mas
do Verbo encarnado e vivo"(S. Bernardo).
O conceito fundamental é, portanto, o de graça: uma palavra
"técnica" que toca as profundidades da teologia. Graça, no sentido
religioso, não por acaso é a mesma palavra que se usa em expressões como "de
graça", "gratuito" etc.: a graça é o dom por excelência. Para entendermos
isto, detenhamo-nos um pouco numa comparação entre a criação (onde Deus nos
dá em participação o ser) e a graça (onde Deus nos dá em participação sua
própria vida íntima). Graça e criação: ambos são dom, favor e amor gratuito
de Deus; mas a criação é, como diz S. Tomás, o amor comunnis (o amor geral)
de Deus às coisas: o amor com que Deus ama as plantas, a formiga, a estrela;
entes que são por um ato de Amor e de Volição divina. Mas, além desse "amor
comum", há ainda (formulação também de Tomás) um amor specialis, pelo qual
Deus eleva o homem a uma vida acima das condições de sua natureza (vida
sobre-natural) e o introduz numa nova dimensão do viver.
A graça, que recebemos no Batismo, é uma realidade nova, uma
vida nova, uma luz nova, uma qualidade nova que capacita nossa alma a
acolher dignamente, para nela habitarem, as três pessoas divinas. Este amor
absoluto (S. Tomás) é uma participação na vida íntima de Deus; a alma passa
assim a ter uma vida nova: nela habita (ou para usar o termo teológico:
inhabita - inhabitatio, habitação imediata, sem intermediários) a Trindade.
Assim, quando se trata de definir a graça, Tomás vale-se das mesmas
comparações de participação no ser. Não se trata de um panteísmo porque é
participação (Hbr 3, 14; 2Pe 1, 4): ter por oposição a ser. Cristo é o
Filho de Deus; nós temos a filiação divina. A Filiação do Verbo (que traz
consigo toda a vida íntima da Trindade) nos é dada em participação por
Cristo, pelo Batismo.
Daí que ser católico não se restrinja a cerimônias, a práticas
ou a cumprir regras de conduta; mas sim a alimentar um processo de
identificação com Cristo, por assim dizer, 24 horas por dia. Assim, quando o
Catecismo da Igreja Católica declara o Batismo o sacramento da iniciação
cristã por excelência está afirmando algo de muito distinto do que um mero
"entrar no clube" ou "tirar a carteirinha" de cristão...
# 1212 Pelos sacramentos da iniciação cristã... são colocados os fundamentos
de toda vida cristã. A participação na natureza divina...
Precisamente esta novidade: a graça conferida pelo Batismo (que
- frisa o Catecismo - alcança a totalidade da vida quotidiana) é a diferença
específica entre o cristianismo e as outras religiões: essa espantosa
realidade, a própria essência do cristianismo: a graça, a vida sobrenatural,
a participação na vida divina. Certamente, a doutrina da graça não é nova,
desde sempre tem sido ensinada pela Igreja. Que há, então, de novo? Novo é a
ampliação, a extensão e o aprofundamento que o novo Catecismo dá a ela:
# 533 A vida oculta de Nazaré permite a todo homem estar unido a Jesus nos
caminhos mais quotidianos da vida...
Nova é a afirmação de que essa identificação com Cristo dá-se -
para a imensa maioria dos cristãos - na e a partir da imitação da vida
oculta de Cristo (a vida oculta de Cristo, que nem sequer era mencionada no
Catecismo anterior - de Trento - e agora ocupa o destaque de todo um
capítulo no novo Catecismo). Porque Cristo, princípio da Criação (Jo 1) e
autor da Redenção, assumiu toda a realidade humana e toda a realidade do
mundo. E assim como misteriosamente no pecado de Adão - Paulo desenvolve
isto no Cap. 15 da I Cor - houve para todos um decaimento; em Cristo, novo
Adão, há um re-erguimento (Ele, pontífice - construtor de pontes - advogado,
primogênito, primícias, "nossa paz" - nosso integrador, etc.). E - tanto em
Adão como em Cristo - é afetada toda a criação: Ele é a cabeça do Corpo que
é a Igreja. Ele é o Primogênito, o princípio em tudo. E por meio dele Deus
reconciliou - e está a reconciliar - consigo todas as criaturas. É o Cristo
de Nazaré, em seus 30 anos de vida oculta, anos em que não fez nenhum
milagre e viveu uma vida (também ela divina e redentora) com toda a
aparência de absolutamente normal: vida de família normal no lar de Nazaré,
de trabalho normal na oficina de José, de relacionamento social normal, vida
religiosa normal etc.
# 531 Durante a maior parte de sua vida, Jesus compartilhou a condição da
imensa maioria dos homens: uma vida quotidiana sem grandeza aparente, vida
de trabalho manual, vida religiosa judaica submetida à Lei de Deus, vida na
comunidade...
# 564 ...Durante longos anos de trabalho em Nazaré, Jesus nos dá o exemplo
de santidade na vida quotidiana da família e do trabalho...
Cristo vivo nos cristãos, nos batizados. Cristo vivo no seo João
da esquina e na D. Maria... Cristo que quer levar sua obra redentora à vida
de família, ao mundo do trabalho, às grandes questões sociais etc... Isto
não estava dito pelo Antigo Catecismo Romano (do concílio de Trento). Nele,
após afirmar nossa conexão em Cristo pelo Batismo, o que se dizia era que,
pelo Batismo, o cristão torna-se apto a todos os ofícios da piedade cristã
(e é certo que o Batismo é a porta para a recepção de outros sacramentos
etc.), mas não se falava em identificação com Cristo na vida quotidiana):
Antigo Cat. Rom II, II, 52 Pelo Batismo também somos como membros
incorporados, conectados a Cristo cabeça ... o que nos torna aptos a todos
os ofícios da piedade cristã. Per Baptismum etiam Christo capiti tamquam
membra copulamur et connectimur ... quae nos ad omnia christianae pietatis
officia habiles reddit.
A Igreja, hoje, convoca cada cristão, o homem da rua, o
profissional, o João da esquina e a D. Maria, cada um de nós a ter uma vida
espiritual plena, não apesar de, mas precisamente por estar no meio do
mundo, no dia de trabalho, na vida de família, de relacionamento social etc.
É pelo Batismo que cada cristão está chamado - é uma vocação - a reproduzir
na sua vida a vida de Cristo (Gal. 2, 20)... A Criação e a Redenção são
projetos que se estendem aos cristos que são os cristãos. A partir do
momento em que ocorre a Encarnação, o mundo - o mundo do trabalho, a vida
quotidiana, a vida de família, a vida política, econômica e social etc. -
torna-se algo do maior interesse religioso (cfr. p. ex. os capítulos 8 de
Romanos e 1 de Colossenses: a criação anseia pela manifestação dos filhos de
Deus, pois Cristo quer re-formá-la em Si). Naturalmente, isto não tem nada
que ver com integrismos ou clericalismos (cfr. Lauand :
http://www.hottopos.com.br/notand5/algeb.htm).
Deus, que tem poder para fazer das pedras filhos de Abrahão (Lc
3,8), quer contar com o amor conjugal de João e Maria para criar uma nova
vida. Deus, que poderia fazer as crianças nascerem sabendo inglês e álgebra,
quer contar com a tarefa educadora dos professores. Deus quer contar com
cristos-cidadãos que construam um mundo de acordo com Seu projeto. Com
cristos-engenheiros que canalizem córregos ("não tem um Cristo para acabar
com as enchentes em São Paulo?"), com cristos-médicos que identifiquem vírus
etc... A redescoberta da Igreja é a da vida quotidiana como chamado a uma
plenitude da existência cristã. Cristo, que passou 30 anos trabalhando na
vida corrente sem fazer nenhum milagre, é modelo para - "já não sou eu que
vivo é Cristo que vive em mim" - o engenheiro, o taxista, o empresário, o
torneiro mecânico, a dona de casa, o professor...; para cada cristão que
assuma o chamado que recebeu no Batismo. Toda a proposta da Igreja é
reformulada a partir do alcance dessa filiação divina que temos porque nos é
dada em participação da Filiação que é em Cristo. Se pensamos nas quatro
grande partes do CC: a doutrina da fé está centrada neste fato fundamental;
a liturgia e os sacramentos, também; e o mesmo a moral e a vida de oração.
# 1692 O Credo professou a grandeza... de Sua criação e da redenção e da
obra da santificação. Isto que a fé confessa, os sacramentos comunicam:
pelos "sacramentos que os fizeram renascer" os cristãos se tornam "filhos de
Deus" (Jo 1,12; 1 Jo 3,1), "participantes da natureza divina" (2 Pe 1,4). E,
reconhecendo essa nova dignidade, são chamados a viver desde então "uma vida
digna do Evangelho de Cristo" (Fil 1, 27). É pelos sacramentos e pela oração
que recebem a graça etc.
Assim, a moral, longe de ser um código ou um manual, é um
convite ao reconhecimento da dignidade desse "Viver em Cristo" (título da
parte moral do CC): Agnosce, christiane, dignitatem tuam! (S. Leão Magno, CC
# 1691). Para além de proibições e castigos, a moral é uma questão de
retribuição de amor a essa presença de Cristo no cristão. Que vou fazer do
Cristo que habita em mim? A que vou associá-lo? Com o que vou misturá-lo?
"Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo. Ides fazer deles
membros de uma prostituta?" (I Cor 6,15) "Não sabeis que sois o templo de
Deus e que o Espírito Santo habita em vós?" (I Cor 3,16). É o homem novo de
quem tantas vezes fala o Apóstolo, para quem tudo é lícito mas nem tudo
convém (I Cor 6,12).
# 1691 "Cristão, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da
natureza divina, não te degeneres retornando à decadência de tua vida
passada. Lembra-te da Cabeça a que pertences..." (S. Leão Magno)
Neste mundo, em que tantos estão desprovidos de qualquer
motivação, a educação cristã - que sabe que Cristo vive no cristão e está
interessado em transformar toda a criação pela ação dos cristãos - torna-se
fascinante. Sua vida fora desta consciência parece-lhe como o verso de
Adélia Prado: "De de vez em quando Deus me tira a poesia e eu olho pedra e
vejo pedra mesmo".
Nesse quadro ressalta a importância da Missa: é por ela que
nosso quotidiano é - por Cristo, com Cristo e em Cristo - enviado ao Pai.
# 1367 - O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Missa são um único
sacrifício: "A mesma e única Vítima, o mesmo e único Sacerdote que, pelo
ministério dos padres, se oferece agora como se ofereceu na Cruz. A única
diferença é o modo de oferecer: então, de maneira sangrenta; sobre o altar,
de maneira incruenta".
# 1368- A missa é também o sacrifício da Igreja. A Igreja, que é o Corpo de
Cristo, participa da oferenda de sua Cabeça. Com Ele, ela se oferece toda
inteira. Ela se une à Sua intercessão junto ao Pai por todos os ho-mens. Na
Missa, o sacrifício de Cristo torna-se também o sacrifício dos membros de
Seu Corpo. A vida de cada fiel, seu louvor, suas dores, sua oração, seu
trabalho é unido aos de Cristo e à Sua oferenda total e adquire assim um
valor novo. O sacrifício de Cristo presente sobre o altar dá a todas as
gerações de cristãos a possibilidade de se unir a Seu sacrifício.
# 1332 (chama-se) Santa Missa porque a liturgia na qual se realiza o
mistério da salvação se conclui pelo envio dos fiéis (missio) a fim de que
eles cumpram a vontade de Deus em sua vida quotidiana.
Na Missa, se exerce de modo absolutamente único aquela união com
Cristo-Cabeça. E "por Cristo, com Cristo e em Cristo" somos levados ao Pai.
Do mesmo modo que o Sol, que é luz, dá a participar luz ao ar e o fogo, que
é calor, dá a participar calor a um metal a ele exposto, assim a Filiação do
Verbo nos é dada em participação por Cristo. Pelo Batismo somos conectados
nEle, e na Missa Cristo nos une a seu Sacrifício ante o Pai.
Cristo, que "me amou e se entregou a Si mesmo por mim" (Gal
2,20), associa-me a Seu sacrifício. São Paulo que afirma que o sacrifício de
Cristo foi superabundante ("onde avultou o pecado, superabundou a graça" Rom
5, 18-20) é o mesmo que diz - de modo aparentemente contraditório: "Eu
completo (?) em minha carne o que falta (?) aos sofrimentos de Cristo" (Col
1, 24). E é que Cristo vive nos cristãos: pelo Batismo, participamos de Sua
vida e de sua obra redentora...
A consciência dessa participação na filiação divina, que alcança
as realidades mais prosaicas do nosso quotidiano, é, parece-me, a essência
da educação cristã para o nosso tempo.




[1]. Para nos referirmos ao novo Catecismo da Igreja Católica, utilizaremos
a abreviatura CC. Citaremos os pontos do CC indicando o número pelo sinal #
de cardinalidade. Assim: # 354 é o ponto 354 do CC. As citações seguem a 9a.
edição brasileira (já atualizada com a edição típica latina). Algumas
passagens de nossa conferência, retomam aspectos tratados por Marli
Pirozelli N. Silva em "Moral no Catecismo da Igreja Católica"
http://www.hottopos.com/videtur7/marli.htm.
[2]. Tomás foi chamado por João Paulo II de "Doctor Humanitatis",
precisamente pela perene atualidade de seu pensamento em relação a esses
temas: "En realidad, santo Tomás merece este título por muchas razones
(...): éstas son, de modo especial, la afirmación de la dignidad de la
naturaleza humana, tan clara en el Doctor Angélico; su concepción de la
curación y elevación del hambre a un nivel superior de grandeza, que tuvo
lugar en virtud de la Encarnación del Verbo; la formulación exacta del
carácter perfectivo de la gracia, como principio-clave de la visión del
mundo y de la ética de los valores humanos, tan desarrollada en la Summa, la
importancia que atribuye el Angélico a la razón humana para el conocimiento
de la verdad y el tratamiento de las cuestiones morales y ético-sociales"
(João Paulo II "Favorecer el estudio constante y profundo de la doctrina
filosófica, teológica, ética y política de santo Tomás de Aquino - Discurso
a los participantes en el IX congreso tomista internacional, 29-9 -90"
http://www.multimedios.org/bec/etexts/ixsta.htm).
[3] Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque, Paris: Klincsieck. Logos
significa ainda: palavra, discurso, argumentação, raciocínio, conta,
proporção (ana-logos), quociente, o Verbo, segunda Pessoa da Trindade etc.
Para a etimologia de ratio ver Érnout & Meillet Dictionnaire Étymologique de
la Langue Latine, Paris, Klincsieck, 1951, 3ème ed.
[4] É o que Tomás chama também de recta ratio, em oposição a uma perversa
ratio que se fecha à ratio das coisas ou as deforma.
[5] Não por acaso Tomás considera que "inteligência" tem que ver com
intus-legere ("ler dentro"): a ratio do conceito na mente é a ratio "lida"
no íntimo da realidade.
[6] O conceito, a idéia, a ratio.
[7] Comparação necessariamente limitada, na medida em que o ato criador
divino transcende infinitamente o âmbito da produção de objetos artificiais.

[8]. Mesmo quando a Igreja impõe obrigações especificamente religiosas -
como, por exemplo, a Missa aos domingos ou o jejum em tais tempos - está
concretizando obrigações que são, em última instância de moral natural (dar
culto a Deus, temperança etc.).
[9]. Até em termos númericos é notável a presença das palavras
"participação", "participar" e suas derivadas que perfazem um total de cerca
de 230 incidências no CC.
[10]. Trato mais detidamente do conceito de "participação" no estudo
introdutório a Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento, São Paulo, Martins
Fontes, 1999.
[11]. Doutrina essencialíssima e que não é aristotélica: daí a
problematicidade de reduzir Tomás a um aristotélico...
[12]. Weisheipl, James A. Tomás de Aquino - Vida, obras y doctrina,
Pamplona, Eunsa, 1994, p. 16.
[13]. Cfr. Ocáriz, F. Hijos de Dios en Cristo, Pamplona, Eunsa, 1972, pp. 42
e ss.
[14]. Op. cit., pp. 240-241.
[15]. Para a "participação" do ser em Tomás, cfr. Lauand, L. J. Razão,
Natureza e Graça: Tomás de Aquino em Sentenças, São Paulo, FFLCHUSP, 1995 e
o já mencionado estudo introdutório a Tomás de Aquino: Verdade e
Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
([16]) J. Maritain, "L'humanisme de Saint Thomas d'Aquin", in Mediaeval
Studies, 3 (1941).
[17]. Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo é
compreensível.
[18]. Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte do
fenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (como diz a antiga
canção de Chico Buarque: "tem mais samba no encontro que na espera...; tem
mais samba o perdão que a despedida"). E pode acontecer que a partir de um
(in)certo ponto, a palavra já não suporte o esticamento semântico: se
chamamos vinho a um excelente Bordeaux, hesitamos em aplicar este nome ao
equívoco "Chateau de Carapicuíba" ou "Baron de Quitaúna". As coisas se
complicam - e é o caso contemplado por Tomás - quando uma das realidades
designadas pela palavra é fonte e raiz da outra: em sua concepção de
participação a rigor, não poderíamos predicar "quente" do sol, se a cada
momento dizemos que o dia ou a casa estão quentes (se o dia ou a casa têm
calor é porque o sol é quente). Assim, deixa de ser incompreensível para o
leitor contemporâneo que, no artigo 6 da Questão disputada sobre o verbo,
Tomás afirme que não se possa dizer que o sol é quente (sol non potest dici
calidus). Ele mesmo o explica, anos depois, na Summa Contra Gentiles (I, 29,
2), que acabamos dizendo quente para o sol e para as coisas que recebem seu
calor, porque a linguagem é assim mesmo: "Como os efeitos não têm a
plenitude de suas causas, não lhes compete (quando se trata da 'verdade da
coisa') o mesmo nome e definição delas. No entanto (quando se trata da
'verdade da predicação'), é necessário encontrar entre uns e outros alguma
semelhança, pois é da própria natureza da ação, que o agente produza algo
semelhante a si (Aristóteles), já que todo agente age segundo o ato que é.
Daí que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a outro título e segundo
outro modo (plenamente) na causa. Daí que não seja unívoca a aplicação do
mesmo nome para designar a mesma ratio na causa e no efeito. Assim, o sol
causa o calor nos corpos inferiores agindo segundo o calor que ele é em ato:
então é necessário que se afirme alguma semelhança entre o calor gerado pelo
sol nas coisas e a virtude ativa do próprio sol, pela qual o calor é causado
nelas: daí que se acabe dizendo que o sol é quente, se bem que não segundo o
mesmo título pelo qual se afirma que as coisas são quentes. Desse modo,
diz-se que o sol - de algum modo - é semelhante a todas as coisas sobre as
quais exerce eficazmente seu influxo; mas, por outro lado é-lhes
dessemelhante porque o modo como as coisas possuem o calor é diferente do
modo como ele se encontra no sol. Assim também, Deus, que distribui todas
suas perfeições entre as coisas é-lhes semelhante e, ao mesmo tempo,
dessemelhante". Todas essas considerações parecem extremamente naturais
quando nos damos conta de que ocorrem em instâncias familiares e quotidianas
de nossa própria língua: um grupo de amigos vai fazer um piquenique em lugar
ermo e compra alguns pacotes de gelo (desses que se vendem em postos de
gasolina nas estradas) para a cerveja e refrigerantes. As bebidas foram
dispostas em diversos graus de contato com o gelo: algumas garrafas são
circundadas por muito gelo; outras, por menos. De tal modo que cada um pode
escolher: desde a cerveja "estupidamente gelada" até o refrigerante só "um
pouquinho gelado"... Ora, é evidente que o grau de "gelado" é uma qualidade
tida, que depende do contato, da participação da fonte: o gelo, que, ele
mesmo, não pode ser qualificado de "gelado"... Estes fatos de participação
são-nos, no fundo, evidentes, pois com toda a naturalidade dizemos que
"gelado", gramaticalmente, é um particípio...
[19]. Noites do Sertão, Rio de Janeiro, José Olympio, 6a. ed., 1979, p. 71.

A Negação dos Transcendentais:A Negação dos Transcendentais:
O Erro e o Mal

Mario Bruno Sproviero
(Prof. Associado DLO-FFLCHUSP)


1. Introdução
O tema dos transcendentais, noções universalíssimas convertíveis com o
ente(1), é central na tradição escolástica que remonta a Platão e
Aristóteles. O tema é complexo e requereria um estudo separado e
especializado. Aqui será apresentado esquematicamente, apenas mostrando
alguns pontos polêmicos, para considerar sua negação: se os
transcendentais convergem entre si, então também suas negações convergem.
Daí surgem conseqüências de grande alcance. Dentre estas trataremos da
convergência entre o erro e o mal, correspondente à entre a verdade e o
bem, e veremos sua problemática, implicações e atualidade.
2. Os Transcendentais
Nada melhor do que um texto de S. Tomás para sintetizar a questão:
"Aquilo que o intelecto primeirissimamente concebe como o mais notório
(notissimum) e em que resolve todos os outros conceitos é o ente (ens),
como diz Avicena no princípio de sua Metafísica [I,6]. Donde é necessário
que todos os outros conceitos do intelecto sejam obtidos por acréscimo ao
ente." (De Veritate I,1)
Como todos os princípios fundamentais da tradição filosófica cristã foram
subvertidos, também o foi a inteligibilidade do ser como princípio e
fundamento do conhecimento humano. Assim Heidegger estabelece a primazia
inteligível do nada sobre o ente para a existência humana:
"O nada é a possibilitação da manifestação do ente enquanto tal para a
existência humana"(2).
Bergson, antecipadamente, tinha-se colocado na posição oposta:
"Os filósofos nunca se ocuparam com a idéia do nada. Contudo esta idéia é
muitas vezes a mola oculta, o invisível motor do pensamento filosófico ...
se conseguíssemos provar que a idéia de nada, na acepção em que a
consideramos quando a opomos à de existência, é uma pseudo-idéia, os
problemas que ela faz surgir na sua esteira passariam a ser
pseudo-problemas.(3)"
Ángel González Álvarez(4) argumenta contra Bergson que a idéia do nada não
é um nada de idéia, e que apesar de não ser primeira permite clarificar a
de ente. Contra Heidegger argumenta que a origem da idéia de nada surge de
uma negação que supõe uma prévia posição ou afirmação. Isto pode ser
constatado em muitas línguas: em italiano niente (= não ente); em inglês
nothing (= não coisa). A palavra latina nihil (neque hilum) expressa a
negação de uma coisa insignificante. Alguns supõe que hilum seja uma
alteração de filum (= fio). Teria razão Bergson em dizer que o nada não é
imaginável. Contra ele, porém, dizemos que é pensável: por via do
conceito, o nada de essência; por via do juízo, o nada de existência;
pelos dois, o nada do ente. Com isso, fica clara a primazia inteligível do
ente:
"Una relación del ente desde la nada no es posible. Pero, al mismo tiempo,
observamos que el ente se nos revela haciendose más patente y claro em su
oposición a la nada."(5)
Continuemos com o texto de S. Tomás [De Veritate I,1]:
"Ora, ao ente não se pode acrescentar algo de estranho, do modo como a
diferença se acrescenta ao gênero ou o acidente ao sujeito, porque
qualquer natureza é essencialmente ente, pelo que também o Filósofo [III
Metafísica, 8] demonstra que o ente não pode ser um gênero; mas diz-se que
se acrescenta algo ao ente enquanto se exprime um modo do próprio ente não
expresso no nome de ente, o que ocorre de dois modos. O primeiro modo,
enquanto modo expresso, é algum modo especial do ente; há pois diversos
graus de entidade segundo os quais consideram-se diversos modos de ser, e
segundo estes modos são considerados os diversos gêneros das coisas: a
substância não acrescenta ao ente qualquer diferença que designe qualquer
natureza sobreaditada ao ente, mas com o nome de substância exprime-se um
certo modo especial de ser, ou seja, o ente por si, e assim para os outros
gêneros.
O outro modo enquanto modo expresso é um modo geral que se segue a todo
ente; e isto pode ser considerado duplamente: ou enquanto segue todo ente
em si ou enquanto segue um ente em ordem a outro ente. No primeiro modo,
algo é expresso do ente ou afirmativamente ou negativamente; mas não se
encontra algo que seja dito afirmativamente em modo absoluto a respeito de
todo ente além de sua essência, segundo a qual se diz que ele é, e assim
lhe é imposto o nome ‘coisa’ (res), o qual difere do ‘ente’, segundo
Avicena pelo fato que ‘ente’ é considerado pelo ato de ser enquanto
‘coisa’ exprime a qüididade ou essência do ente; a negação, pois, que se
segue a todo ente de modo absoluto é a indivisão, a qual é expressa pelo
nome ‘uno’ (unum)(6): de fato, o uno não é outro que o ente indiviso. Se,
ao invés, o modo do ente é considerado em relação a outro, então ou há a
divisão de uma coisa da outra - e isto é expresso pelo nome ‘algo’
(aliquid): diz-se aliquid no sentido de aliud quid, isto é, ‘uma outra
coisa’ pelo que como ente diz-se ‘uno’enquanto é indiviso em si, assim
diz-se ‘algo’ (ou alguma coisa) enquanto é dividido dos outros -; ou há a
conveniência do ente com um outro, e isto não pode ser senão considerado
algo que por sua natureza convém com todo ente: e isto é a alma que ‘em
certo modo é todas as coisas’, como é dito no De Anima [III,8]. Na alma,
pois, há a potência cognoscitiva e a apetitiva: e assim a conveniência do
ente com o apetite é expressa pela palavra ‘bem’ (bonum) pelo que na Ética
[I,1] diz-se que ‘o bem é aquilo que todas as coisas apetecem’, enquanto
que a conveniência do ente com o intelecto é expressa pelo nome
‘verdadeiro’ (verum)".
Além desses transcendentais podemos considerar, segundo o citado González
Álvarez, também o transcendental "real". Seria a afirmação do ente em
relação à pura aparência, ao puro ente de razão, isto é, aquele que não
tem existência nem essência possível, aquele que se dá de modo objetivo só
no entendimento(7). É necessário "construir" tais entes de razão para que
o intelecto humano exerça seu ato, como também para que considere o
pensamento separado de seu objeto, o puro pensamento escindido do ser, o
nada de real, o apenas pensado.
Outro transcendental discutível é a beleza(8). Para que a beleza seja um
transcendental, isto é, convertível com o ente, não pode ser reduzida à
beleza física. Teríamos a beleza sensível, a espiritual e a
sensível-espiritual, a que é propriamente humana, ou seja, o resplendor do
inteligível sensível. Por isso não podemos dizer que ela é feia
(sensivelmente) então é má (moralmente), mas que, se for má moralmente
certamente será feia moralmente (por dentro).
Para afirmar a trancendentalidade da beleza não se deve excluir o aspecto
deleite. Seria um deleite tão somente com o conhecimento. Deleitar-se em
contemplar o ser. Eis um texto fundante de S. Tomás:
"Em um sujeito determinado, o belo e o bem são idênticos, pois estão
fundados em uma mesma realidade, que é a forma(9), e por causa disso, o
bem é realçado como belo. Não obstante, diferem pela razão. Pois o bem
refere-se propriamente ao apetite: pois o bom é o que todas as coisas
apetecem (est enim bonum quod omnia appetunt). E, portanto, tem caráter de
fim: pois o apetite é um modo de movimento para as coisas. O belo, em
troca, refere-se ao poder cognoscitivo: pois o belo é o que agrada a vista
(10)(pulchra enim dicitur quae visa placent). Donde o belo consiste na
proporção devida, já que os sentidos deleitam-se com as coisas devidamente
proporcionadas como em algo semelhante a eles pois também os sentidos,
como toda faculdade cognoscitiva, são de certo modo entendimento (ratio).
E porque o conhecimento se faz por assimilação, e a semelhança se baseia
na forma, o belo pertence propriamente ao âmbito da causa formal." (S.T.
I,q5, a4, ad1)
Ora, S. Tomás dizendo que o belo e o bem (metafísicos) são o mesmo na
realidade, e diferem apenas segundo a noção, situa o belo entre os
transcendentais. Defende Maritain que o belo é o esplendor de todos
transcendentais reunidos(11). O belo está na vida contemplativa, não pode
ser colocado só na vida sensível, reduzida apenas ao deleite sensível.
Assim o diz Maritain:
"Como o uno, o verdadeiro e o bem, o belo é o próprio ser considerado sob
certo aspecto. É uma propriedade do ser; não é um acidente justaposto ao
ser, mas uma relação de razão: é o ser enquanto deleita, com sua única
intuição, uma natureza intelectual. Assim toda coisa é bela como toda
coisa é boa, pelo menos sob um certo ponto de vista. E como o ser está
presente em tudo e em tudo variado, também o belo está em tudo presente e
em tudo variado. Como o ser e os outros transcendentais, o belo é
essencialmente análogo, e portanto diz-se de modos diversos, sub diversa
ratione, de diversos sujeitos. Daí o dito: toda espécie de ser é a seu
modo, é boa a seu modo, é bela a seu modo."(12)
Vamos então considerar os seguintes transcendentais, entidade,
aliqüididade, coisidade, realidade, unidade, verdade, bondade, beleza.
Tudo que é ente, é coisa, algo, real, uno, verdadeiro, bom, belo; tudo que
é algo é ente, coisa, algo, uno, verdadeiro, bom, belo; e todas as outras
correlações. A recíproca também é verdadeira, apesar de apresentar algumas
dificuldades. Assim, o nada é não-ente, irreal, múltiplo, falso, mau, feio
e todas as combinações. As dificuldades estão em ver o múltiplo enquanto
tal, o diviso em si (e não dos outros) como nada; também o mal que é
privação e não mera ausência; o nada, enquanto absoluto e enquanto
relativo etc.
Apresentamos, a seguir, um quadro dos transcendentais.
Ser
1. em si
1.1. marcando a existência = enteENTIDADE
1.2. marcando a essência = coisaCOISIDADE
2. em oposição
2.1. extrínseca
2.1.1. ao nada = algo (ou alguma coisa)ALIQÜIDIDADE
2.1.2. à aparência = realREALIDADE
2.2. intrínseca = indiviso, unoUNIDADE
3. em conveniência
3.1. com o entendimento = verdadeiroVERDADE
3.2. com a vontade = bomBONDADE
3.3. com todos os transcendentais = beloBELEZA

Nota: Nem sempre dispomos, em nossa língua, de uma palavra conveniente
para designar essas propriedades e suas negações. Enquanto, por exemplo,
realidade e irrealidade são de nosso estoque, não dispomos, por exemplo,
de "coisidade" e "incoisidade".
É preciso antes de terminarmos este resumo dos transcendentais apresentar
uma consideração especial sobre os transcendentais feita por Maritain em
uma nota importante:
"É apenas em Deus que todas estas perfeições identificam-se segundo sua
razão formal; nEle a Verdade é a Beleza, é a Bondade, é a Unidade, e estas
são Ele mesmo. Ao contrário, nas coisas abaixo, a verdade, a beleza, a
bondade etc., são aspectos do ser distintos segundo sua razão formal, e
aquilo que é verdadeiro simpliciter (absolutamente falando) pode não ser
bom ou belo a não ser secundum quid (sob uma certa relação); aquilo que é
belo simpliciter pode não ser bom ou verdadeiro a não ser secundum quid...
Portanto a beleza, a verdade, a bondade (sobretudo quando não se trata
mais do bem metafísico ou transcendental, mas do bem moral) governam
esferas distintas da atividade humana, das quais seria vão negar a priori
os possíveis conflitos sob o pretexto de que os transcendentais estão
indissoluvelmente ligados entre si: princípio metafísico perfeitamente
verdadeiro, mas que requer ser bem compreendido."(13)
3. A negação dos transcendentais na linguagem comum
Justamente a equivalência entre o erro e o mal é que será o arremate deste
artigo. Então é preciso atender a esse aspecto.
Se vale a conversão dos transcendentais, mesmo sob certos aspectos, vale
também a conversão de sua negação, ou seja, entre o não ser, o nada, o
irreal, o múltiplo(14), o falso, o mal, o feio. Esta equivalência, mesmo
secundum quid, leva a certas conclusões importantes.
No entanto, a exemplo do original estudo sobre os transcendentais feito
por Jean Lauand(15), mostrando como a língua comum confirma a equivalência
entre os transcendentais, faremos o mesmo com as suas negações. Daremos
alguns exemplos que naturalmente poderiam ser ampliados. Em italiano
diz-se brutto come il peccato, feio como o pecado (feio por mau); brutto
affare, feio negócio (feio por mau); cattivo gusto, mau gosto (mau por
feio); cattivo principio, mau principio (mau por falso); cattiva moneta,
má moeda (má por falsa); gusto falso, gosto falso (falso por estragado);
ha molta apparenza ma non è bella, tem muita aparência mas não é bela (no
sentido de que vale a beleza interior, é bela a primeira impressão, mas
considerando o todo da pessoa com cuidado, não é bela).
Em português tanto dizemos uma boa aparência quanto uma bela aparência;
cálculo mal feito (cálculo errado); pensar mal (pensar erradamente); maus
versos (por versos feios); mau artista (por feio artista); não há nada
mais feio (mau) que o vício; eu pecador muito errado (mau) me confesso a
Deus todo poderoso (Bernardes).
Em francês: c’est un homme de rien, é um homem de nada (de má conduta e
não como em português, que não é válido); nos écrits sont mauvais, nossos
escritos são maus (feios); ces sentiments sont laids, estes sentimentos
são feios (maus).
Em alemão notamos apenas a existência da palavra Unding, não-coisa,
não-entidade, significando quimera, absurdo, impossibilidade, absurdidade,
contra-senso.
4. O falso e o mau convergem
O falso e o erro terão mais direitos do que o mau?(16) Qual o direito do
homem de seguir o falso e o mal? Interpreta-se de modo superficial e por
vezes malicioso a preciosa liberdade de pensamento(17) como o direito
quanto ao falso e assim, por equivalência, o homem teria tanto o direito
de seguir o bem quanto o mal.
Ora, se o homem, apelando-se à sua liberdade, teria o direito de escolher
o Bem ou o mal - que são o aspecto prático do Verdadeiro e do falso -
então teria o direito de cometer qualquer delito, e punir o praticante do
delito seria ir contra um seu direito. No caso do Bem e do mal percebe-se
a falácia de conceder direito ao mal; não no caso do falso.
Ora, a possibilidade de escolher entre o Bem e o mal, entre a Vida e a
morte, longe de cancelar o dever de escolher o Bem e a Vida, é o
pressuposto lógico daquele dever: se o homem não tivesse a possibilidade
de fazer o mal, não teria o dever de evitá-lo e de fazer, ao invés, o Bem.
Assim há apenas a possibilidade de fazer o mal, não o direito; não
houvesse a possibilidade, não haveria nem direito nem o dever de escolher
apenas o Bem. Ora, isto vale, mutatis mutandis para o Verdadeiro e o
falso. A possibilidade, não de escolher, mas de incorrer em erro, não dá
ao erro nenhum direito, principalmente o de divulgá-lo. Se o homem não
pudesse errar tanto no falso quanto no mal, não ocorreriam leis para
regular seu pensar e sua conduta.
Assim temos uma esquizofrenia entre idéias falsas e idéias más. Qualquer
idéia, independente de ser verdadeira ou falsa, pode ser difundida por
direito de propaganda e de expressão(18), enquanto que ações más deveriam
ser punidas(19). Assim, é lícito através do cinema, como já aconteceu, ou
da internet, ensinar como assaltar um banco, mas será proibido roubar.
Este é o fato, esta é a ilogicidade. O corruptor é também pratica e
socialmente mais perigoso do que o corrupto, e se a opinião perversa não
puder ser impedida e golpeada, também não poderá sê-lo sua manifestação,
difusão e ação decorrente(20).
O pensamento pertence à esfera interior do sujeito; a propaganda do mesmo
pertence, pelo contrário, à categoria da ação e não da mera cogitação.
Pode-se pensar qualquer absurdo ou perversidade, como se pode cometer
danos contra si, como drogar-se ou suicidar-se(21), mas ter o direito de
divulgação pura e simples, é o equivalente a ter o direito de drogar e
matar os outros.
Aqui há o mais funesto erro de nossos tempos, o de confundir duas
liberdades: a liberdade de fato e a de direito. Posso matar, roubar,
escandalizar, divulgar as maiores perversidades, mas dizer que é um
direito é negar o direito: o "não havendo Deus, tudo é permitido",
torna-se: "não havendo Direito tudo é de direito". O conceito de direito
postula sempre o de dever: meu direito de vida pressupõe o dever de não
matar. Se valer o "direito" de matar, não tenho direito à vida. A
liberdade de errar e de pecar, dado de fato e não de direito, não é
liberdade positiva: a possibilidade de cair na escravidão do falso e do
pecado, longe de ser o bem supremo da liberdade, é o drama da alienação da
própria liberdade: a liberdade de ser escravo, a liberdade de alienar-se
da própria liberdade...
O tema apenas esboçado requer muitas outras ponderações, porém a
finalidade deste artigo era de mostrar a importância do estudo dos
transcendentais e suas implicações. Seria bem interessante considerar as
implicações entre o belo e o bem, entre o feio e o mal; entre o belo e o
verdadeiro, entre o feio e o falso.



1- As noções meramente sinônimas não são consideradas propriedades
transcen-dentais, isto é, noções que acrescentam à noção de ente. Só estas
são transcen-dentais distintos. A questão é seu número. Uma interessante
questão disputada é saber se a beleza é um transcendental e se é distinta
dos outros.
2- "Das Nichts ist die Ermöglichung der Offenbarkeit des Seienden als
eines sol-chen für das menschliche Dasein". (Was ist Metaphysik?, 1943).
3- L’Évolution Créatice, 1907.
4- Baseamo-nos na questão dos transcendentais no capítulo III da obra de
Ángel González Álvarez: Tratado de Metafísica. Ontologia. Madrid, Gredos,
1961.
5- Op.cit. p.122.
6- "Uno" melhor do que "um", pois assim distingüe-se a unidade
transcendental (coexistente ao ente) da unidade numérica.
7- O ente de razão não deve ser entendido como o ente concebido pela
mente, como a sereia, mas ao ente objeto da Lógica. Esta distinção é
importantíssima já que sua negação é o "infundamento" da dialética
hegeliana. Assim: "Confun-dirlo (o ente lógico) con el ente propriamente
dicho y hacerlo objeto de la metafísica sería el más grave de los errores.
Es natural que la apariencia de ente presuponga el ente. Cuando nuestro
entendimento entra en ejercício tiende hacia algo - in-tendit - que se
ofrece como término intencional. De aquí que el concepto, pueda llamarse
intención. Si el entendimiento concibe algo tal cual es en sí, se obtiene
la primera intención. Volviendo sobre ese concepto y fundado en el forma
la segunda intención. Es precisamente esta la que se llama "ente de
razón". (op.cit. p.115).
8- Mereceria um tratamento especial, a beleza como transcendental.
9- Esta forma pode ser mal interpretada se confundida com a forma
acidental, externa. Seu caráter é interno. A forma substancial é aquele
princípio ontológico interior que determina as coisas em sua essência e
qualidade em virtude da qual elas são e agem. Nesse caso apenas é o fulgor
da beleza considerado como o esplendor da forma (splendor formae).
10- Pode-se estender o sentido de "vista" para a contemplação: belo é o
que deleita pelo simples fato de ser contemplado. Delectatio aplica-se
tanto ao sensível quanto ao inteligível.
11- cf. Jacques Maritain - Arte e Scolastica (ed. italiana). Morcelliana,
1980, p. 129,. nota 66.
12- Op. cit. p. 30
13- Op. cit. p. 131
14- O múltiplo como oposto ao uno e não o múltiplo como oposto ao um,
princípio da enumeração.
15- Vide Luiz Jean Lauand Oriente e Ocidente: Razão, Natureza e Graça.
Tomás de Aquino em sentenças. Centro de Estudos Árabes, DLO-FFLCH, USP,
Edix Edições, num. 8, p.38-42.
16- Aqui nos baseamos em um artigo de Carlo Alberto Agnoli na revista
Chiesa Viva, num.144, Brescia, setembro de 1984, p.13-17.
17- A liberdade de pensamento é a possibilidade do pensamento ater-se
apenas à verdade, desvinculado de qualquer outro interesse. Não se deve
confundir a "liberdade de pensamento" com a "liberdade do pensador". Esta
diz respeito à coação externa; aquela, à coação interna.
18- Aqui a diferença entre o Bem e o mal. Escolher conscientemente, entre
o fal-so e o Verdadeiro, o falso, é um ato irreversível de malícia, um
pecado contra o Espírito Santo. Também poderíamos considerar aqui o que
Kant chama de mal radical, ou seja, não apenas praticar o mal, mas
reconhecê-lo e justificá-lo como tal.
19- Dificulta muito a questão sob o ponto-de-vista prático, pensar que
muitos Estado totalitários exerceram o controle do falso a partir de suas
falsas "verdades". Um erro não exclui outro.
20- No Estado não-ideológico não importa um terrorista teórico que nada
faz na prática, só importa o terrorista prático, não importa o pensamento
mas a ação; no Estado ideológico importa principalmente o pensamento.
Entre estes dois extremos há que escolher o justo meio.
21- Não só não tem direito de suicidar-se, como também há o dever de
tentar impedir o suicida, o que na maior parte dos casos não é possível.


A Vocação Humana: uma Abordagem Antropológica e FilosóficaA Vocação Humana:
uma Abordagem
Antropológica e Filosófica

Sílvia Regina Rocha Brandão
Fac. de Artes S. Marcelina (S. Paulo)

O trabalho de acompanhamento de jovens em suas escolhas
vocacionais revelou que, a despeito do acesso a informações e processos de
autoconhecimento, eles encontravam-se inseguros e insatisfeitos diante de
suas opções profissionais. Tornou-se evidente a necessidade de compreender
esta dificuldade de escolha entre os jovens e de buscar possibilidades de
enfrentá-la através do processo de Orientação Vocacional.
1. Escolha profissional: dificuldades atuais e perspectivas
"...Com Deus existindo, tudo dá esperança:
sempre o milagre é possível, o mundo se resolve.
Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem,
e a vida é burra."
(João Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, p. 48).
O momento da opção profissional tem se revelado como dotado de
uma crescente dificuldade de escolha entre os jovens, constatada por
especialistas em Orientação Vocacional, por pesquisas acadêmicas e pela
grande imprensa.
Nos resultados de uma pesquisa realizada em 1992, sob
coordenação da Profª. Drª. Maria de Lourdes Ramos da Silva, com alunos de
graduação da Universidade de São Paulo apurou-se que "acentua-se a
significativa porcentagem de alunos dos últimos anos que, se lhes fosse
possível voltar novamente ao momento do vestibular, não escolheriam
novamente o mesmo curso". (Silva 1992, p. 99). A evasão de cursos
universitários tem aumentado (quase metade dos alunos que entram na
faculdade a cada ano no Brasil desistem do curso - cf. Revista Veja de
20/08/97) gerando prejuízo não apenas pessoal; mas, também, social afetando
especialmente as instituições públicas, cujos recursos acabam por não ser
adequadamente aproveitados. A causa desta evasão, certamente, não está na
falta de informações ou de opções. O problema reside na incapacidade de
decidir-se, de posicionar-se e, principalmente, na falta de critérios claros
para tomar tais decisões.
A sociedade contemporânea, em grande parte, revela muita
insegurança e incerteza quanto a valores: não há pontos de referência
estáveis. Isto gera crise e confusão, tornando muito difícil para o homem
atual identificar, em última instância, "o que vale a pena" e dedicar-se a
isto; o afastamento das questões mais essenciais como o porquê da
existência, um sentido ou causa à qual entregar a vida, gera esquecimento ou
inexistência de critérios para orientar e sustentar decisões ou ações: "a
modernidade destruiu a metafísica do ser e terminou autodestruindo a
metafísica do sujeito. Resta uma débil ontologia na qual a realidade é
substituída por sua representação. (...) Diante do vácuo do simples rechaço,
a educação precisa 'encontrar o fundamento' tanto para uma compreensão da
realidade quanto para orientar e justificar as nossas próprias ações."
(Garcia Hoz 1988, p. 119).
A dificuldade do homem contemporâneo de tomar consciência de si
mesmo, de posicionar-se diante da realidade e a experiência freqüente de
indecisão, são conseqüências de uma mentalidade que, negligenciando a
necessidade deste fundamento, não favorece a descoberta de valores, nem um
autêntico desenvolvimento humano. Não havendo uma clara hierarquia de
valores, a postura assumida diante de situações que exigem soluções
imediatas é a de relatividade, sem aprofundamento das razões das escolhas ou
atitudes a serem assumidas.
À confusão de valores, soma-se a instabilidade da economia e do
mercado de trabalho. A forma atual de organização do trabalho, sempre mais
competitiva e em rápida transformação, tem exigido definição profissional
cada vez mais precoce e, ao mesmo tempo, oferecido uma crescente
disponibilidade de mão de obra. Para os jovens, cada vez mais novos ao serem
solicitados a uma definição neste universo profissional, é necessário
oferecer algo que transcenda as perspectivas instáveis e dramáticas do
mercado de trabalho. Esta urgência vem sendo captada por educadores que
apontam a necessidade de educar para o mundo do trabalho e não apenas para o
mercado de trabalho. "Deve-se formar para o mundo do trabalho ou para o
mercado de trabalho? Formar para o mundo do trabalho significa capacitar o
educando a viver de forma cooperativa e útil na sociedade em que se insere;
já formar para o mercado de trabalho é buscar fornecer mão-de-obra exigida
pelo processo produtivo." (Silva 1998, p. 115). Ao realizar a escolha
profissional dentro deste contexto dinâmico e instável é necessário
considerar não estritamente a profissão, mas concebê-la dentro de uma
dimensão mais ampla e, ao mesmo tempo essencial, que é a da vocação,
possibilitando transcender o nível ocupacional inclusive para poder
incluí-lo ou transformá-lo.
É necessário que, ao realizar uma opção tão fundamental como a
vocacional que, em princípio envolve toda a vida, o jovem possa ser
convidado a aproximar-se, a perguntar-se sobre o sentido e finalidade de seu
existir. Às questões normalmente colocadas como 'o que gosto de fazer?', 'o
que me dá prazer realizar?', 'o que sei fazer?', 'com qual profissão me
darei bem na vida?', devem ser acrescentadas: 'a que sou chamado?', 'que
sentido pode haver no trabalho que desejo realizar?', 'qual a finalidade do
meu existir?'. Assim, no processo de orientação vocacional, além das
dimensões psico-sociológicas, devem ser igualmente consideradas as dimensões
antropológica e filosófica, que são fundamentais para o entendimento da
vocação humana.
Considerar uma questão do ponto de vista filosófico significa
buscar a verdade sobre ela, exige uma preocupação com o todo e não apenas
com sua aplicação, seu uso imediato. Nessa perspectiva, para apreender o que
há de essencial acerca da vocação do homem deve-se partir da grande
interrogativa sobre o ser do homem, de suas características
idiossincráticas. Desta forma, partindo da concepção de pessoa - segundo os
autores contemporâneos Josef Pieper, Viktor Frankl, Luigi Giussani -, de
algumas categorias que apresentem tanto as potencialidades especificamente
humanas quanto a expressão delas no relacionamento com a realidade, pode-se
chegar a uma compreensão mais ampla da vocação humana - a partir também de
filósofos contemporâneos como Julían Marías e Alfonso Lopez Quintás -, de
forma a oferecer aos jovens subsídios para realizar uma escolha e um caminho
vocacional mais humanos.
2. Características antropológicas do homem
"Humano significa: conhecer além das estrelas
que estão por cima do teto que nos cobre, isto é,
além de toda a adaptação necessária ao concreto de todos os dias,
estar consciente da totalidade das coisas,
superar o 'meio' e adentrar-se pelo mundo."
(Pieper, Que é filosofar? Que é acadêmico?, p.22)
A compreensão do que é o homem está vinculada à idéia de pessoa.
O conceito de pessoa esteve sempre presente em toda tradição do pensamento
ocidental; os pensadores gregos identificaram no ser do homem duas
categorias ou dimensões: o corpo e a alma, o espírito e a matéria. É no
homem que estas duas dimensões da realidade se acham presentes, constituindo
uma unidade indissolúvel.
A pessoa, uma totalidade aberta a outras totalidades, é
considerada em toda a tradição judaico-cristã um valor absoluto: a pessoa
vale por si. O homem é pessoa, com possibilidades muito precisas de
percepção e relacionamento com o real, que podem ser descobertas e
utilizadas a partir de um trabalho de humanização.
A pessoa, olhando seu próprio existir, imediatamente reconhece
que é criatura, não é capaz de se dar a própria existência. É feita por um
Outro, que lhe confere o ser segundo uma certa direção e forma, como explica
Luiz Jean Lauand: "Já vimos que ao criar Deus dá o ser às criaturas. Mas as
criaturas não são de qualquer maneira; o ser atualiza - torna atual, dá ato,
torna real - uma essência, um protótipo ideal pensado, projetado por Deus.
Ora, isto significa que o ser dos entes não é caótico e absurdo, mas
estruturado, organizado, planejado; poderia ser comparado com um prédio, que
é concretização material de uma planta ou projeto arquitetônico. No prédio
diferentemente do canteiro de obras, cada tijolo, cada cano, cada fio, tem o
seu lugar, e o todo está harmonicamente integrado - ordenado - em função de
uma finalidade." (Lauand 1993, p. 38). Há no homem alguns traços que o
impulsionam, uma condição original que o dirige para determinado
desenvolvimento que, porém, só será atingido com sua atuação livre e
responsável.
A característica própria, distintiva do ser humano é a razão.
Luigi Giussani afirma: "Por razão entendo o fator distintivo próprio daquele
nível da natureza chamado homem, isto é, a capacidade de dar-se conta do
real segundo a totalidade dos seus fatores." (Giussani 1988, p. 31). Razão é
a estrutura interna de compreensão do homem, sua capacidade intelectual de
compreensão. Esta forma peculiar de se relacionar e conhecer o real foi
chamada pela tradição do pensamento ocidental de capacidade de conhecimento
espiritual e é definida como "capacidade de pôr-se em relação com a
totalidade das coisas existentes. A essência do espírito não se define tanto
pela nota de incorporalidade, mas antes de tudo, pela capacidade de
relacionar-se com a totalidade do ser. Espírito significa força de
relacionabilidade com a totalidade do ser, tão ampla e compreensiva que o
campo de relações que lhe está ordenado transcende essencialmente os limites
do mundo circundante." (Pieper 1981, p. 17). Assim, a possibilidade de
relação do homem com a realidade é extremamente ampla e elevada, tornando-o
capaz de estar diante da totalidade do real: o 'mundo' do espírito é a
totalidade do ser.
É no nível espiritual que se encontra uma outra característica
distintiva do homem: a busca de sentido. "O homem é um ser que, propriamente
e em última instância, se encontra à procura de sentido. Constituído e
ordenado para algo que não é simplesmente ele próprio, direciona-se para um
sentido a ser realizado (...)". (Frankl 1990, p. 11). Ao definir o homem
como desejo de sentido, Frankl busca superar teorias que concebem o homem
como "um ser que reage a estímulos ou obedece a impulsos" (Frankl 1989, p.
23) : além de buscar a satisfação de suas necessidades e seu equilíbrio
homeostático, ele tem urgência em encontrar e realizar um sentido. É
inerente ao homem o anseio por descobrir um 'para quê', uma finalidade
última para existência, algo pelo qual valha à pena entregar a vida. A
possibilidade de realizar o desejo de sentido, a afirmar um significado
último para a existência, está em responder, de forma singular, própria, às
situações concretas, cada uma delas única e irrepetível. Uma vida plena de
sentido se constrói buscando e encontrando o significado de cada experiência
cotidiana.
O ser humano é caracterizado pela capacidade de ir além de si,
está dirigido a algo ou alguém diferente de si. Viktor Frankl denominou
autotranscendência esta abertura radical do ser humano à realidade. "Ser
homem necessariamente implica uma ultrapassagem. Transcender a si próprio é
a essência mesma do existir humano." (1990, p. 11). O homem não se contenta
em permanecer fechado em si mesmo, reconhece que lhe corresponde
profundamente viver por um ideal, por uma finalidade última.
É na relação com a realidade que o homem descobre suas
potencialidades, necessidades e as possibilidades de nela intervir; é no
encontro com o real que pode reconhecer a singularidade e unicidade de seu
ser. Frankl afirma que a existência humana, a existência pessoal, representa
uma forma especial de ser: "ser-pessoa significa um absoluto
ser-diferentemente Com efeito, o essencial e valioso "caráter de algo único"
de cada homem não significa senão que ele é precisamente diferente de todos
os outros homens". (Frankl 1989, p. 117). Assim, cada homem é único e
irrepetível, tem um modo próprio de existir, um 'ser-assim' que lhe permite
responder a circunstâncias irrepetíveis, afirmando valores que só ele seria
capaz de fazê-lo naquele momento, daquela maneira.
É próprio do homem a capacidade de decidir, de agir e, portanto,
de responsabilizar-se. Uma das manifestações da natureza humana é a
capacidade de agir com autonomia e responsabilidade, de posicionar-se diante
da realidade com autodeterminação. Ser responsável significa assumir
decisões e atitudes dentro das circunstâncias concretas da vida, afirmar
valores e posicionamentos a partir de critérios que são identificados pela
consciência. O ser humano é responsável porque é livre, porque é um ser que
decide, escolhe como proceder em sua existência. A liberdade é a capacidade
do homem de conduzir-se a si mesmo, de estabelecer, orientado pela
consciência, os critérios que nortearão seus atos e escolhas, de decidir-se
pelo bem. Para exercer essas potencialidades especificamente humanas como a
responsabilidade e a liberdade, é preciso um processo educativo "no qual a
pessoa possa desenvolver sua inteligência para descobrir o bem e sua vontade
para realizá-lo" (Garcia Hoz 1988, p. 59).
3. A vocação a partir da concepção de homem como pessoa
"Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita:
'a vocação é um afeto'."
(PRADO, Adélia. Manuscritos de Felipa, p. 104)
O conceito vocação tem sido entendido de forma redutiva, na
maioria das vezes identificado com o sentido profissional ou muito próximo a
ele. Julián Marías denomina de vocações parciais aquelas que se referem a
alguns aspectos ou facetas da personalidade, comuns a várias pessoas,
portanto, genéricas. Seriam formas secundárias de vocação. A vocação no
sentido mais profundo e radical envolve a pessoa em sua totalidade e
singularidade: "a vocação concreta (...) é única, rigorosamente pessoal; é a
vocação em que cada um consiste mais propriamente, e coincide com o eu de
cada um"[1] (Marías 1984, p. 69)
A vocação é um convite, uma proposta à liberdade e
respon-sabilidade do homem, à qual ele pode aderir ou não, mas não lhe
compete fabricá-la ou modificá-la. É um chamado que vem de encontro ao
homem, a ele cabe apenas atender ou não. Marías esclarece que "a vocação
também não é escolhida, porém não seria correto dizer que me encontro com
ela; antes ela me encontra, me chama, e correlativamente a descubro; não me
é imposta, e sim apresentada, e embora não esteja em minhas mãos ter ou não
ter essa vocação, permaneço frente a ela com uma essencial liberdade: posso
segui-la ou não, ser fiel ou infiel a ela." (Marías 1983, p.24).
Tampouco as circunstâncias da vida de uma pessoa podem ser
escolhidas. Não são decisões suas o lugar ou época em que nasceu, sua
família, características físicas, etc... Estas circunstâncias são impostas e
é a partir delas que sua vida será configurada; porém, a escolha ou decisão
humana incide no modo, no 'como' vai construir sua história, na maneira
particular, pessoal de se relacionar com o que lhe foi dado. "O que se
escolhe na vida é algo diferente: não o que se é, e sim quem se vai ser. Há
que se precisar um pouco mais: não escolho quem tenho que ser (isto vem
definido pela vocação, frente a qual, repito, sou livre porém à custa da
inautenticidade, se a uso para afastar-me dela) e sim quem e de que maneira
vou ser; em outras palavras, qual vai ser a trajetória efetiva de minha
vida, na medida em que permite a circunstância."(Marías 1983, p.24).
Assim, a trajetória é expressão da liberdade da pessoa, é a
realização de um caminho pessoal construído a partir da vocação proposta e
da circunstância imposta.
A descoberta da vocação antropológica, do chamado a ser si mesmo
e a sua realização, através das trajetórias biográficas, esclarece e dá
sentido às vocações específicas, como as profissionais, dando-lhes um
caráter único e insubstituível. A vocação profissional - que supõe a escolha
de uma carreira profissional, bem como seu cumprimento - deve estar
subordinada, então, a afirmação de quem a pessoa é e deseja ser: é este
'alguém' que dá consistência e significado para o que vai ser realizado.
4. O trabalho com expressão da ontologia humana
"A vida do homem consiste no afeto
que principalmente o sustenta
e no qual encontra a sua maior satisfação."
São Tomás de Aquino
Este conjunto de características antropológicas da vocação
humana possibilitam aprofundar temas relacionados ao caminho vocacional, que
são comumente entendidos a partir da perspectiva hedonista e redutiva, como
o conceito de auto-realização, felicidade e do sentido do trabalho.
O conceito de auto-realização, modernamente identificado como
conquista de satisfação, sucesso, prazer, tem sido cada vez mais valorizado,
e ao mesmo tempo, mal compreendido. A busca de realização está direcionada a
aspectos parciais do homem, a ponto de muitas vezes se conceber 'realização'
como sinônimo de realização profissional, de status ou sucesso advindo do
exercício profissional. Considera-se realizado quem atingiu seus objetivos
ou está em pleno desenvolvimento dos planos estabelecidos para si; a
realização é concebida como resultado de empenho e domínio sobre o real, de
forma a alcançar metas previamente estabelecidas.
Ao tratar do tema da auto-realização, São Tomás "refere-se a um
processo levado a cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível
mais fundamental, o do ser-homem" (Lauand 1993, p. 40). Este processo está
dirigido ao máximo das possibilidades humanas, ao ultimum potentiae: "o
máximo que se pode ser enquanto homem, a realização ao Máximo (ultimum) do
que somos, do que estamos chamado a ser (potentiae)" (Lauand 1988, p. 27).
Isto significa que a auto-realização do homem é construída durante toda a
vida, é um movimento dinâmico contínuo, onde constantemente o homem
experimenta sua existência como um 'ainda não' ou um constante 'tornar-se',
'vir-a-ser'. Assim, o homem está sempre a caminho de sua plena realização, é
um caminhante, um peregrino que se encontra em um percurso: "outro não é o
sentido do conceito de 'status viatoris'. Existir como homem significa estar
'no caminho'" (Pieper 1969, p. 18)
A busca da realização, a aspiração à felicidade é próprio da
pessoa, dos seres espirituais, é um 'querer' dado pela natureza, como
explica Pieper: "Afirma-se que queremos a felicidade, por natureza. Nós,
isto é, todos os seres espirituais. Somente uma pessoa, um alguém, pode ser
feliz ou infeliz. (...) São Tomás não se cansa de exprimir sempre em novas
formulações este pensamento: 'O homem quer a felicidade por natureza e por
necessidade' (I, 94, 1)"(Pieper 1969, p.11)
O desejo de felicidade é, então, um querer natural, próprio da
natureza humana, que a constituiu segundo esta direção e forma. Esta vontade
natural de felicidade age como uma força de gravidade, sobre a qual o homem
não tem nenhum poder, mas para a qual tende inexoravelmente,
irresistivelmente. O homem está instalado na felicidade, e o fato de uma
experiência feliz não perdurar para sempre é algo que "o afeta
exteriormente, mas não em sua condição interna que pede perduração. (...)
Ser feliz é pretener continuar sendo feliz." (Marías 1989, p.265) Portanto,
a felicidade está vinculada à autenticidade da vida humana, à possibilidade
de relacionar e integrar cada aspecto parcial com um ponto unitário, na
busca da realização total, da plenitude do viver humano.
O trabalho é um aspecto fundamental da vida por atender às
necessidades humanas, tanto do ponto de vista material como espiritual, já
que através das tarefas concretas o homem se sustenta e, ao mesmo tempo,
expressa seu modo original de realizar valores em um determinado tempo e
lugar.
A descoberta do valor de sua contribuição pessoal para a vida em
sociedade é fundamental para o homem contemporâneo que vive em uma sociedade
onde é valorizado o individualismo, o isolamento e a competitividade.
O trabalho pode constituir-se em uma oportunidade privilegiada
para o homem atual redescobrir a possibilidade de autêntica relação eu-mundo
- onde o pessoal não seja negado, esquecido ou dissolvido - na medida em que
o trabalhar se torne ocasião de encontro. O filósofo espanhol contemporâneo,
Alfonso López Quintás afirma que é no âmbito do encontro que a pessoa se
desenvolve e se aperfeiçoa, é no encontro com o outro que o homem
descobre-se, revela-se a si mesmo. Para que haja encontro é necessário ir
além de uma simples proximidade com o outro; é fundamental a abertura, o
diálogo, a comunicação: "o encontro é um enriquecimento mútuo: tu és um
âmbito de vida, repleto de possibilidades, projetos, etc. Tu os ofereces a
mim e eu os ofereço a ti; tu tens vontade de compreender-me e eu tenho
vontade de te compreender; eu tenho vontade ir contigo, tu, comigo; e
criamos um campo de jogo comum, criamos um campo de liberdade comum e isso é
o encontro.î (Quintás 1999, p. 11). Quando há encontro de verdade é possível
superar uma lógica individualista e sectária, para afirmar uma postura capaz
de abertura, generosidade e acolhimento do diferente.
Uma exigência fundamental para se gerar a possibilidade de
encontro é buscar e compartilhar valores: quando as pessoas dirigem-se e
empenham-se para atingir o objetivo último do trabalho que fazem juntas, que
é a realização do bem comum, colocam-se a caminho, cada uma com sua
contribuição, para a construção de uma nova realidade comum.
O trabalho constitui, assim, uma possibilidade de colocar-se a
serviço de outros. É nesta possibilidade de ser uma contribuição e expressão
original que o trabalho ganha relevância e significado para a pessoa,
constituindo-se ocasião de descoberta e integração da própria personalidade.
Torna-se, então, fundamental a maneira como se trabalha, o que se expressa
de especial e único, adquirindo menor importância a tarefa em si: "o que
importa não é, de modo algum, a profissão em que algo se cria, mas antes o
modo como se cria; que não depende da profissão concreta como tal, mas sim
de nós, o fazermos valer no trabalho aquilo que em nós há de pessoal e
específico, conferindo à nossa existência o seu 'caráter de algo único',
fazendo-a adquirir, assim, pleno sentido." (Frankl 1989, p. 160). Portanto,
a realização que pode advir do trabalho está vinculada à expressão da
singularidade do ser, daquilo que há de específico e original em cada homem.
A plena realização humana não pode ser encontrada sem que estas
características antropológicas possam ser descobertas e experimentadas. As
decisões ou escolhas, bem como a realização do caminho vocacional, devem ser
iluminadas e sustentadas por estas características, de outra forma tornam-se
superficiais e frágeis. A dimensão profissional é apenas um aspecto da
vocação humana e, portanto, a ela deve estar submetida.
A possibilidade de um acompanhamento e ajuda eficaz nos
processos de Orientação Vocacional está vinculada à compreensão da vocação
antropológica do homem, que possibilita uma visão essencial e abrangente da
questão. Quem é homem? Para que educar? Existe um ideal, que sociedade
formar? Estas são questões fundamentais para um trabalho eficiente nas áreas
da psicologia, pedagogia, sociologia. A Antropologia Filosófica deve estar
na base de qualquer trabalho junto ao ser humano.
Referências Bibliográficas
FRANKL, Viktor, E. Um Sentido para a vida, Aparecida, Ed. Santuário, 1989.
_______Psicoterapia e Sentido da Vida. São Paulo, Ed. Quadrante, 1989.
_______Psicoterapia para todos: uma psicoterapia coletiva para contrapor-se
à neurose coletiva. Petrópolis, Vozes, 1990.
GARCIA HOZ, Viktor. Pedagogia Visível Educação Invisível, São Paulo, Nerman,
1988.
GIUSSANI, Luigi. O Senso Religioso. São Paulo, Ed. Companhia Ilimitada,
1988.
LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino Hoje. Curitiba - São Paulo, PUC-PR, 1993.
MARÍAS, Julián. Ortega: las trayectorias. Madrid, Alianza Editorial, 1983.
_______ Ortega: Circunstancia y vocación. Madrid, Alianza Editorial, 1984.
_______ Breve Tratado de la Ilusión. Madrid, Alianza Editorial, 1984.
_______ A felicidade humana. trad. Diva Ribeiro de Toledo Piza. São Paulo,
Ed. Duas Cidades, 1989.
PIEPER, Josef. Felicidade e Contemplação, Lazer e Culto. São Paulo, Herder,
1969.
_______ Que é filosofar? Que é acadêmico?. São Paulo, EPU, 1981.
PRADO, Adélia. Manuscritos de Felipa, São Paulo, Siciliano, 1999
QUINTÁS, Alfonso López. La Formación Adecuada a la Configuración de un Nuevo
Humanismo. Ed. Luiz Jean Lauand,. Conferência proferida em São Paulo, na
Faculdade de Educação da USP, em, 1999.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1986.
SILVA, Jair M. e outros. Estrutura e Funcionamento da Educação Básica. São
Paulo, Pioneira, 1998.
SILVA, Maria de Lourdes Ramos. Personalidade e Escolha Profissional:
subsídios de Keirsey e Bates para Orientação Vocacional. São Paulo, EPU,
1992.




[1]. "La vocación concreta (...) es única, rigurosamente personal; es la
vocación en que cada uno consiste más propiamente, y coincide con el yo de
cada qual..."

Agostinho - Julián MaríasAgostinho
(Edição - em que procuramos manter o estilo oral - de conferência de
Julián Marías, que, como se sabe, não se vale de texto escrito.
Conferência do curso "Los estilos de la Filosofía", Madrid, 1999/2000.
Edição: Renato José de Moraes. Tradução: Ho Yeh Chia -
http://www.hottopos.com)

Julián Marías

Santo Agostinho nasceu em 354 e morreu em 431; são três séculos que o
separam daquele outro filósofo de quem já falamos outro dia, Sêneca. Porém
não se trata só de distância temporal, mas também de um novo estilo
completamente diferente. Em Santo Agostinho, encontraremos uma etapa nova da
filosofia. Falamos até agora do pensamento grego, e acrescentamos alguma
coisa que está em latim, mas dentro da área do pensamento helênico: Sêneca.
E com isso termina uma grande etapa, a primeira etapa do pensamento
filosófico, centrada no problema da mudança, do movimento, kinesis em grego,
mutação, que faz com que as coisas sejam ou não sejam, cheguem a ser e
deixem de ser, mudem de quantidade, de qualidade... Enfim, o problema da
instabilidade do real. Como lembram, este era o grande problema, que se
trata de superar mediante a noção de ser, de ente, ón, de Parmênides, em
conflito com a outra grande idéia grega: a natureza, a physis, que é
justamente mudança, variação. As coisas estão ameaçadas pela mudança, pela
variação, e trata-se de buscar aquilo que verdadeiramente é, que é o que é,
se possível, de modo permanente. Este é o grande problema central do
pensamento antigo.
Mas agora vamos nos encontrar com uma situação radicalmente diferente. Santo
Agostinho foi o primeiro grande filósofo cristão. É evidente que tinha
havido preocupação filosófica entre os cristãos nos primeiros séculos, que é
o que se chama Patrística, a obra dos Padres da Igreja, que era, antes de
tudo, teológica, religiosa, mas sem dúvida com uma componente, com uma
vertente filosófica. Mas o primeiro grande filósofo, o primeiro criador
filosófico dentro do cristianismo, foi Santo Agostinho.
E assim sendo, a filosofia mudou totalmente, porque o problema agora já é
outro, o cristianismo introduz algo muito mais radical do que a mudança, a
variação, a kinesis helênica. O cristão pensa que o mundo foi criado, a
idéia de criação é alheia ao pensamento grego. Os gregos, olharão a
natureza, a physis, e vão procurar explicá-la, farão cosmogonias, para
explicar a origem do mundo, mas a idéia de criação é alheia ao pensamento
grego. Existe inclusive um caso particularmente elucidador que é o de
Plotino, o grande pensador neoplatônico, que com certeza recebeu influências
cristãs. Essa influência levou-o a pensar algo que tem certa analogia com a
idéia de criação: é o que ele chamará de emanação. Chamará o princípio
capital de Uno, mais ou menos o equivalente à divindade, produzindo todo o
restante por emanação. Há muitas metáforas, há uma série de imagens, por
exemplo, a de uma luz que vai iluminando, que vai se difundindo até que
acaba na névoa. Há diferentes formas de entender isso, mas o fundamental é
que a emanação é a produção de tudo o que não é o Uno a partir do Uno, que
emana dele.
Este é o conceito de emanação, que não é criação. Já o cristianismo afirma a
criação: no princípio Deus criou o céu e a terra, e criou-os do nada: não de
si próprio, não é a emanação, não é a fabricação do mundo com uma matéria
prima já existente; e sim que Deus põe em existência uma realidade nova,
diferente d'Ele, por amor efusivo, esse é, digamos, o motivo da ação
criadora de Deus, e evidentemente está ameaçado pelo nada, isto é, o
problema está em que poderia não haver nada. Não é a mudança de uma coisa
para outra, não é o problema da kinesis grega, mas algo bem mais radical: o
real está ameaçado pelo nada, poderia não haver nada. E Deus pôs o mundo em
existência.
Isso com certeza é um grau de radicalidade maior que o que se dá no
pensamento grego, ou seja, o pensamento grego parte do pressuposto de que as
coisas já estão aí. Uma pergunta crucial: por que há algo, e não somente o
nada? É a formulação que Leibniz fará, e mais tarde Unamuno, e em terceiro
lugar, Heidegger. Em geral, Unamuno é esquecido, mas ele diz isto e muito
energicamente.
Primeiramente isso corresponde à atitude que se iniciou com o cristianismo,
no qual o problema radical é justamente a realidade da criatura e do
Criador. Não se esqueçam de que é problemático empregarmos - e durante toda
a História se emprega - a palavra "ser" aplicada a Deus e à realidade criada
- às coisas, aos homens, aos astros, a tudo o que encontramos. Porque ser
criador é radicalmente diferente de ser criatura. Pode-se aplicar a palavra
"ser" também a Deus, os senhores lembrem como dizia Aristóteles "o ser se
diz de muitas maneiras" (depois concretiza em quatro maneiras), e há ainda o
problema da analogia do ente: o ente se diz de muitas maneiras, mas todas
têm uma referência comum, ele vai encontrar precisamente o fundamento da
analogia na idéia de substância, da ousia. Ora, falamos do ser criatura, e
do ser criador, do ser de Deus, a analogia - se é que há a analogia - é
enorme, é de um grau de intensidade muito maior que a analogia que existe
entre as diferentes formas do ser, digamos, criado (que para Aristóteles não
é criado).
Como podem ver, estabelecem-se aqui problemas sumamente graves, problemas
muito delicados. Pois bem, Agostinho foi o primeiro filósofo que assume o
embasamento geral do cristianismo, que faz uma filosofia cristã (quando se
fala de filosofia cristã, não quer dizer que a filosofia cristã esteja
determinada, não há nenhuma filosofia que seja cristã nesse sentido, o que
ocorre é que pode haver várias filosofias que sejam cristãs, pelo menos
podendo ser conciliáveis com o cristianismo. Eu, quando se discutia sobre
filosofia cristã, dizia sempre: filosofia cristã é a filosofia dos cristãos
enquanto tais).
O cristão tem uma visão da realidade condicionada por sua condição de
cristão, e assim, vê coisas que os outros não vêem, interessa-se por
questões e problemas que os outros não se interessam. E naturalmente dessa
situação, dessa instalação do cristianismo pode nascer precisamente uma
filosofia, ou uma outra, ou uma terceira ainda. Há muitas filosofias feitas
por cristãos como tais, que nascem da situação em que se encontram, da
maneira de ver o real que o cristão tem. E são filosofias cristãs, e podem
ser várias, e bem diferentes uma da outra, por que não?
O primeiro grande filósofo, o primeiro filósofo criativo que assume esses
pressupostos, que partiu do cristianismo, foi Santo Agostinho. Mas as coisas
não são assim tão simples, porque Santo Agostinho não começou sendo cristão.
Nasceu no Norte da África, perto de Cartago. Seu pai era pagão, sua mãe era
cristã, e depois foi canonizada: Santa Mônica. Santo Agostinho foi pagão
durante muitos anos; teve um momento inclusive em que se aproximou das
Escrituras, mas encontrou algo pouco interessante e superficial, e não se
interessou, não se tornou cristão. O que tinha era uma adesão muito
entusiasmada à doutrina de Manes, ao maniqueísmo. Manes foi uma figura
primariamente religiosa, muito complexa, muito complicada. Viajou por
diferentes lugares, teve uma vida muito agitada, recolheu elementos de
muitas doutrinas, dentre elas o cristianismo. De certo modo poderia ter sido
uma das muitas heresias do cristianismo que floresceram na época, mas teve
sobretudo uma influência da religião de Zoroastro, da religião que se
estabeleceu principalmente na Pérsia, e que era um dualismo, um dualismo
energicamente afirmado entre o bem e o mal, a luz e as trevas, Deus e o
diabo. Esta dualidade, para Manes, é insuperável. Isso dá, digamos, uma
estrutura profundamente dramática à questão do real, o que emocionou
Agostinho, Aurélio Agostinho, como se chamava.
E viveu uma fase bastante longa com essa convicção, digamos, muito dramática
do real, com esta impressão conflitante da luta do bem e do mal; isto deixou
uma marca que se fará notar em sua teologia, mais que em sua filosofia. Na
teologia, a perspectiva desse caráter dramático não é alheia ao
cristianismo; para o cristão, a vida humana tem uma desenlace, isto é, a
possibilidade de salvação ou de condenação é uma verdade. O fato de que
agora estejam tentando esquecer e liquidar isso é um erro absurdo. Mas, em
última análise, o cristianismo naturalmente afirma a infinita superioridade
de Deus; por conseguinte, em última instância, o bem é a realidade suprema,
e será sempre triunfante. De modo que há evidentemente um caráter dramático,
de maneira tal que o desenlace está aberto às duas possibilidades: de
salvação ou de condenação. Como podem ver, a atração exercida por Manes é
justificável, é compreensível.
Agostinho continuava - estava na Itália: em Roma, e depois em Milão - sem
ainda ser cristão, mas seguia as orações e as homilias do bispo Santo
Ambrósio, uma figura muito importante da Igreja naquela época. E Agostinho
teve um momento de crise, foi quando ouviu uma voz, uma voz de criança que
lhe disse: Tolle, lege, toma e lê. Então voltou às Escrituras, abriu o Novo
Testamento, encontrou uma passagem, leu e isto lhe causou uma impressão
muito profunda, e teve uma forte crise, e daí se aproximou do cristianismo.
Mas ainda demorou algum tempo para ser plenamente cristão, quis se batizar,
e mais tarde acabará sendo o bispo de Hipona e uma grande figura da Igreja.
Viveu em um desses territórios romanizados, cristianizados, que depois foram
cobertos pela grande onda islâmica e deixaram de ser cristãos e passaram a
ser países de língua e de cultura árabe, de religião islâmica. Mas nesse mo-
mento era a grande figura da Igreja do Norte da África, mais precisamente de
Hipona.
Portanto, como os senhores podem ver, houve uma evolução, era um homem que
tinha sido pagão, que viu o mundo com olhos pagãos, que viveu no império
romano tardio, num momento de profunda crise: a pressão dos bárbaros já
ameaçava a destruição de Roma. Viu o mundo com olhos pagãos, foi o último
grande homem an- tigo. Mas ao mesmo tempo foi o primeiro grande pensador, o
primeiro grande filósofo cristão, que anunciará uma nova era, uma nova
época. O contexto histórico de Santo Agostinho é único, absolutamente
extraordinária, e, junto com sua personalidade forte e apaixonada,
reflete-se em seu pensamento. Era além do mais um escritor esplêndido, a
obra de Santo Agostinho, muito copiosa, é extremamente importante.
Mas naturalmente o que nos interessa aqui é ver como ele viveu essa
situação. Ele sente aquela atitude típica de convertido. Há um texto de
Santo Agostinho muito expressivo: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et
tam nova - "tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova". Ele tinha
consciência de ter amado tarde a Deus, descobriu-o tarde, converteu-se sendo
já um homem adulto. Ou seja, é uma atitude de um homem que está, repito,
saindo de uma forma de vida, de uma época histórica, e entrando em outra.
Essa atitude visceral de súplica é, em Santo Agostinho, fundamental. É ela
que o faz descobrir, e é afinal a grande descoberta de Santo Agostinho: a
intimidade (o homem grego mal conhecia a intimidade; é claro que houve o
oráculo de Delfos, que disse gnothi s'auton "conhece-te a ti mesmo", isso
estará em Sócrates, e aparecerá também em Platão e em Aristóteles; sim, mas
não era ainda... inclusive, os gregos raramente diziam eu; diziam nós).
A grande descoberta, a maior, de Santo Agostinho é a intimidade. E quando
ele se questiona, diz: Deum et animam scire cupio - quero conhecer a Deus e
à alma. Nihil aliud, nada mais, absolutamente nada mais. É uma sentença que
um grego jamais poderia empregar. A alma é, em última análise, a grande
descoberta de Agostinho, a alma entendida como intimidade. E fala justamente
do espiritual. Espiritual não quer dizer não-material; há uma tendência
muito freqüente de entender o espiritual como aquilo que não é material; e
não é disso que se trata, mas de algo muito importante: espiritual é aquela
realidade que é capaz de entrar em si mesma, o poder entrar em si mesmo é o
que dá a condição de espiritual, não a não-materialidade. A insistência no
imaterial ocultou o que é essencial, que é precisamente a capacidade de
entrar em si mesmo.
Por isso Santo Agostinho dirá: não vá fora, entra em ti mesmo: no homem
interior habita a verdade: Noli foras ire, in teipsum redi: in interiore
homine habitat veritas. Essas palavras são de uma enorme relevância, são até
de um extraordinário valor literário. É disso que se trata: do homem
interior. A descoberta é a interioridade, a intimidade do homem. E é
justamente Santo Agostinho quem vai perceber que quando o homem fica apenas
nas coisas exteriores, esvazia-se de si mesmo. Quando entra em si mesmo,
quando se recolhe a sua intimidade, quando penetra precisamente naquilo que
é o homem interior, o mundo interior - naturalmente existe um mundo exterior
também, mas o decisivo é o mundo interior -, é justamente aí que Deus se
encontra. É aí que se pode encontrá-Lo, e não nas coisas, não imediata-mente
nas coisas. Primariamente, por experiência, em algo que é justamente sua
imagem. Para Santo Agostinho é preciso levar a sério que o homem é imago
Dei, imagem de Deus. É evidente que para encontrar a Deus, o primeiro passo,
e o mais adequado, será buscar sua imagem, que é o homem como intimidade, o
homem interior.
Isso é o principal. E toda sua obra terá esse caráter. Um dos livros
capitais é As confissões, que num certo sentido é o mais importante. Então,
o que são essas Confissões? É um livro que não existe no mundo antigo, não
há nada equivalente. Se os senhores quiserem algo que poderia ter uma remota
semelhança, seriam as Meditações ou Reflexões, de Marco Aurélio. Mas não é
um livro de intimidade, é um livro de recordações, um livro de gratidão, ele
diz o que deve aos antepassados, aos professores... Essa entrada na
intimidade, no mais profundo de si mesmo, em confissão - a palavra é
confissão - é uma autobiografia. Esse é precisamente o pensamento de Santo
Agostinho: consiste primariamente em mostrar, em descobrir sua própria
intimidade. Ele exterioriza em seu livro, em uma manifestação oral, o homem
interior, sua própria intimidade. Essa é a grande descoberta, que começa com
ele, e naturalmente depois será uma aquisição da humanidade.
É interessante ver como a humanidade vai adquirindo coisas. Já vimos que
adquirimos tantas coisas com os gregos. Com o Santo Agostinho a humanidade
adquire o sentido da intimidade, o sentido do que é o homem interior, a
possibilidade de entrar em si mesmo e aí buscar precisamente a Deus. Por
isso ele tem fórmulas brilhantes, fórmulas de pensamento religioso e ao
mesmo tempo filosófico. Como quando diz: credo ut intelligam, creio para
entender. A fé, justamente para entender. Os senhores sabem que o
cristianismo é uma religião teológica - outras religiões não são teológicas
- o cristianismo é um conhecer a Deus: quem é, como é... Portanto, requer a
compreensão. Um seguidor de Santo Agostinho, Santo Anselmo, fala da operosa
fides e da otiosa fides: a fé que não procura entender é uma fé ociosa. A
verdadeira fé é uma fé operante, viva, procura compreender. Credo ut
intelligam, creio para entender; fides quaerens intelectum, a fé que procura
a inteligência. Portanto, em Agostinho, a grande descoberta foi esta, de ver
o mundo e ver a realidade na perspectiva da intimidade. Do ponto de vista
portanto de quem eu sou: nec ego ipse capio totum, quod sum, nem eu mesmo
compreendo tudo aquilo que sou. É uma realidade que não acaba de se
manifestar, que é algo no qual sempre se pode aprofundar, que é preciso ir
mais além, e por isso a forma de se descobrir é precisamente contá-lo, fazer
uma autobiografia, uma confissão, pois é nela que aparecerão precisamente as
visões da realidade, da realidade que se basicamente é dele, de Agostinho, é
também, do homem em geral, e por meio dele dá acesso a Deus. A Deus dedicará
outro livro fundamental, que num certo sentido é mais o importante: o De
Trinitate, sobre a Trindade. E há um terceiro grande livro, o extraordinário
De civitate Dei, que é o livro no qual levanta o problema da cidade de Deus
e da cidade terrena: no momento da crise do Império Romano, ameaçado pelos
bárbaros - por Alarico - que está em plena crise, e que é uma realidade
deficiente do ponto de vista cristão, mas grandiosa, extraordinária...
O pensamento de Santo Agostinho tem uma visão de realidade inteiramente
nova. Por isso falo de outro estilo de fazer filosofia, e de um profundo
dramatismo. O pensamento de Santo Agostinho é profundamente comovente,
porque, além do mais, possui um valor literário extraordinário: Agostinho
foi um dos maiores escritores da língua latina.
Curiosamente, esse entrar em si mesmo, essa relação com a intimidade, o
levará à superação do ceticismo. Lembrem que a Academia platônica perdeu seu
vigor criador, metafísico, depois de Platão, mas continuava existindo e era
uma escola de céticos: os acadêmicos. Ele escreveu um tratado contra os
acadêmicos, contra os platonizantes, que não era o mesmo que platonismo.
Pois bem, é curioso como ele se opõe justamente a esse ceticismo dominante
na Academia, e é extremamente interessante que ele faça um apelo à
evidência, e portanto, ao pensamento: eu penso; eu posso errar; posso me
enganar; mas não posso duvidar de que existo, porque se me engano então
existo, porque só existindo é que posso me enganar. Isto é, eu não posso
duvidar precisamente porque é evidente minha realidade pensante.
Considerem que isso é exatamente - em termos muito parecidos, embora com
outros pressupostos, com um alcance diferente - o que será o núcleo do
pensamento de Descartes. Cogito, ergo sum, penso, logo existo. Sou uma res
cogitans, sou uma coisa que pensa. E é curioso que foi precisamente com
Descartes é que iniciará outra grande época do pensamento. Se dividirmos o
pensamento filosófico em grandes épocas, teremos a grega, com sua
prolongação romana (que não é original, depende do pensamento grego). Depois
vem o pensamento cristão, que começa em forma plena com Santo Agostinho, e
que irá durar até que aparece o pensamento moderno, o idealismo, a doutrina
de Descartes. É curioso que justamente o grande momento inicial do cogito, a
operação da evidência, alcançar o que é absolutamente evidente, um
fundamento que não só não seja duvidoso, mas também indubitável, algo do
qual não se possa duvidar, justamente porque está na própria evidência do
pensamento: palavras muito parecidas às de Agostinho em De civitate Dei.
Outra coincidência curiosa: o livro fundacional da filosofia moderna é o
Discurso do método, de Descartes, que é também uma autobiografia. É, mais ou
menos, um livro autobiográfico, não é um tratado, não é uma exposição de
tese, é um relato da própria vida de Descartes. Muito mais curto que as
Confissões de Santo Agostinho, escrito em francês, e é justamente uma
narração, uma exposição de sua própria vida, apoiando-se em um argumento,
que é o cogito, que apareceu de forma diferente, com propósito diferente,
mas com um apelo à evidência radical, como em Santo Agostinho.
Com isso se diz que a filosofia com a qual se inicia uma nova época, a
grande época da filosofia moderna, está assentada, está condicionada pelo
agostinismo em dois sentidos: na relação com a evidência do pensamento, por
um lado, e o caráter autobiográfico, narrativo, porque expositivo da própria
vida nas duas grandes obras: as Confissões e o Discurso do método. Vejam,
isso é bem surpreendente.
Há ainda uma coisa muito importante: Santo Agostinho iniciou esse estilo de
filosofar, que iniciou uma nova etapa condicionada pelo cristianismo como
tal, e que terá uma vigência absolutamente espantosa. Santo Agostinho morreu
em 430, e foi a grande figura que dominou todo o pensamento cristão,
absolutamente todo, até mil e duzentos e tanto, até bem avançado o século
XIII.
Durante oito séculos, Santo Agostinho foi a maior figura dominadora do
pensamento cristão: todos recorrem a ele, todos o respeitam. Isso tem uma
importância particular, porque, claro, temos esse conceito tão usado por
Ortega, e também por mim, que é de vigência, que é o vigor. Têm vigência as
coisas que devemos ter em conta. Se querem saber se uma determinada
realidade de nossa época tem vigência ou não, é muito fácil fazer o teste:
se é preciso contar com ela, então tem vigência. Se podemos ignorá-la, se
podemos, por exemplo, não opinar sobre ela; então ela não tem vigência. Pois
bem, se consideram o pensamento moderno, a literatura, as formas
estilísticas, verão que têm um certo período de vigência. Se uma forma
intelectual, ou artística, ou literária tem vigência de séculos, parece algo
extraordinário. Santo Agostinho tem oito séculos de vigência; isso é
absolutamente espantoso.
Na próxima conferência, vamos nos encontrar com São Tomás de Aquino, que
questiona a vigência do agostinismo: embora de certo modo o use, e terá
outra longa vigência, e também terá seus problemas e, naturalmente, teremos
que analisá-los. Mas vejam como é realmente extraordinário, ter uma
fecundidade quase inesgotável, o fato de que Santo Agostinho, com suas
proposta nova, com esse novo estilo de pensar que inaugura, que nasceu
precisamente de uma visão dupla: por um lado viu o mundo com olhos antigos,
foi o grande último homem antigo, mas ao mesmo tempo foi o primeiro pensador
que parte da situação criada pelo cristianismo, condicionada por ele, que vê
portanto o mundo dessas duas maneiras. Participou da visão pagã, da tentação
maniquéia, a que cedeu, evidentemente, com grande entusiasmo - em Santo
Agostinho, tudo é especialmente forte - depois é, naturalmente, de um
cristianismo essencial, apaixonado.
Essa idéia da intimidade, da personalidade, o levará a dar, por exemplo, um
papel extraordinário ao amor, inclusive filosoficamente. Ele diz que se a
sabedoria é Deus, ou se Deus é a sabedoria, o verdadeiro filósofo é amante
de Deus: si sapientia Deus est..., verus philosophus est amator Dei. Deus é
sabedoria, a filosofia é amor à sabedoria, como já o dizia Aristóteles.
Então, para o cristão, o verdadeiro filósofo é aquele que ama Deus.
Confunde-se o amor à sabedoria com o amor a Deus. E há um outro texto dele
também extremamente enérgico: non intratur in veritatem, nisi per caritatem
- só se entra na verdade, pela caridade, pelo amor.
Isto naturalmente leva à afirmação da liberdade. Reparem que essa descoberta
do homem interior, do homem íntimo, da capacidade que tem, pela condição
espiritual, de entrar em si mesmo, faz com que o homem seja livre. Sua
liberdade é absolutamente fundamental, e, claro, está na própria entranha do
cristianismo: "a verdade vos fará livres". E ele proseguirá: ama et quod vis
fac, ama e faze o que queiras, sentença extremamente enérgica de Santo
Agostinho. Faze o que queiras. Se repararmos bem, não está tão longe de
Kant.
Ama e faze o que queiras; o que queiras, não o capricho, não o teu
bel-prazer, mas sim o que possas querer, o que possas verdadeiramente
querer. Isso está a dois passos da idéia de Kant, para quem o único bem é a
boa vontade. É a única coisa que é verdadeiramente valioso para Kant: o que
podemos querer. Não os sentimentos, não o capricho, não, não... mas o que
possas realmente querer. Ama e faze o que queiras. Se fazes realmente por
amor, podes fazer o que queiras. O que possas querer realmente, o que possas
querer amorosamente, por amor. Naturalmente, se se suprime o "ama",
destrói-se a frase, como é natural. Não é "faze o que queiras", o capricho,
ou o que te agrade, ou o que te convenha; não, não, pelo contrário.
Se falarmos de estilos na filosofia, este é um estilo totalmente novo. A
palavra filosofia, desde Santo Agostinho, quer dizer outra coisa. Os
senhores diriam: mas isso estava claro? Não, é muito raro que as coisas
estejam claras. Se olharmos as coisas que estão aí, que foram conhecidas,
que foram expressas, que foram formuladas, às vezes de modo genial, com um
talento como o de Santo Agostinho, veremos que muitas vezes passa-se à
margem delas. Dizia Aristóteles que a sabedoria é descoberta e depois
esquecida. Sim, e não somente a sabedoria em geral, mas em cada época. Seria
interessante explorar isso, sei lá, poder-se-ia escrever um livro
extraordinário, só sobre os esquecimentos do homem, sobre as coisas que
foram vistas, compreendidas, entendidas, que uma vez o homem as conquistou,
e depois as abandonou, as esqueceu...
É curioso como a mudança de pensamento, que poderia incluir um acréscimo, um
acréscimo constante, uma aquisição, uma incorporação de novas visões, de
novas realidades, a inclusão de verdades novas... raramente é assim. Quando
aparece algo novo, quase sempre aparece com algumas perdas, com
esquecimentos, com falta de algo que já tinha sido conquistado, mas que em
certo momento se debilitou, perdeu o vigor, perdeu a vigência e assim foi
abandonado.
Convém que neste curso, que precisamente trata dos estilos do pensamento,
olhemos para trás com muita freqüência. Não se esqueçam da brevíssima
vigência do pensamento mais genial, talvez o maior de toda a história da
filosofia, que é o de Platão e de Aristóteles. Como filósofos, provavelmente
sejam os dois cumes da história da filosofia inteira. Nós lhes devemos uma
proporção quase inimaginável do que possuímos, e no entanto, os senhores
lembrem-se de como logo após a morte de Platão, e depois logo após a morte
de Aristóteles, desapareceu do horizonte essa forma de pensamento, esses
dois cumes extraordinários. Partiu-se para um outro nível. Há muito tempo,
Ortega disse: a filosofia é questão de nível. Surpreendi-me quando ouvi essa
frase, mas agora vejo que tem um imenso valor. Efetivamente, a filosofia é
questão de nível. E cada filosofia tem o seu nível, e esse nível não é que
esteja dado, chega-se a ele, e pode-se perdê-lo. E, de fato, perde-se uma e
outra vez. E hoje falamos justamente de um dos cumes do pensamento, um cume
que teve uma longa e verdadeira vigência.
Se a capacidade de visão, se a capacidade de inovação de Santo Agostinho
tivesse sido conservada ao longo dos séculos, aonde teria chegado o
pensamento, esse pensamento agostiniano, fiel a Santo Agostinho? Às vezes
passivamente fiel, talvez sem o impulso criador e inovador que Agostinho
tinha, mas foi conservado com bastante fidelidade, com algumas perdas e com
certo distanciamento, talvez com esquecimento daquilo que é mais criador,
daquilo que era verdadeiramente o fermento de Santo Agostinho.
Agora, temos que passar para outro grande santo, para nos encontrarmos no
século XIII com outra brilhante figura, São Tomás de Aquino.

As Etimologias, De Isidoro de SevilhaAS ETIMOLOGIAS,
DE ISIDORO DE SEVILHA

(trecho do livro "Cultura e Educação na Idade Média",
São Paulo, Martins Fontes, 1998)

Luiz Jean Lauand
(trad. e introdução)
jeanlaua@usp.br


ETIMOLOGIA, SANTO ISIDORO DE SEVILHA
1. Introdução
Santo Isidoro (c.560-636), nascido em Sevilha na época visigoda, foi bispo
nesta cidade de 600 a 636. É um dos grandes elos de transmissão da cultura
clássica para a Idade Média. Sua obra Etimologias é uma espécie de
enciclopédia, muitíssimo utilizada ao longo de toda a Idade Média. Tanto
assim que mesmo em autores muito posteriores, como Tomás de Aquino,
encontram-se referências a esta obra. Ao examinar uma questão qualquer, o
autor medieval costumava analisar a etimologia das principais palavras
envolvidas na discussão. Não o fazia para ostentar erudição, mas por
basear-se na convicção de que a denominação da palavra podia conter em si
informações sobre a própria realidade referida.
Etimologias é mais do que um livro sobre a linguagem: expressa toda uma
visão-do-mundo da época. Compõe-se de vinte livros, cada um elucidando as
etimologias das palavras de um determinado campo do saber: I. Gramática; II.
Retórica e Dialética; III. Matemática (Aritmética, Geometria, Música e
Astronomia); IV. Medicina; V. As leis e os tempos; VI. Os livros e os
ofícios eclesiásticos; VII. Deus, os anjos e os santos; VIII. A Igreja e
outras religiões; IX. Línguas, povos, reinos, milícia, cidades e parentesco;
X. Etimologia de palavras diversas; XI. O homem e os seres prodigiosos; XII.
Os animais; XIII. O mundo e suas partes (elementos, mares, ventos etc.);
XIV. A terra e suas partes (Geografia); XV. As cidades, os edifícios e o
campo; XVI. As pedras e os metais; XVII. A agricultura; XVIII. Guerra,
espetáculos e jogos; XIX. Naves, edifícios e vestimentas; XX. Comida, bebida
e utensílios.
O gosto que os autores medievais tinham pela etimologia derivava de uma
atitude com relação à linguagem bastante diferente da que geralmente temos
nós hoje. Na Idade Média, ansiava-se por saborear a transparência de cada
palavra; para nós, pelo contrário, a linguagem é opaca e costuma ser
considerada como mera convenção (e nem reparamos, por exemplo, em que
"coleira", "colar", "colarinho", "torcicolo" e "tiracolo" se relacionam com
"colo", pescoço).
Na verdade, em muitos casos, por trás do interesse pela etimologia está uma
determinada concepção do filosofar, do homem e da linguagem. Essa concepção
parte do fato (bastante empírico) de que há na vida ocasiões especiais em
que a realidade perde seu rosto rotineiro e apresenta-nos uma face nova: de
repente intuímos o que é ou o que significa para nós algo ou alguém. Mas
essas grandes experiências que o homem tem consigo mesmo e com o mundo,
experiências especialmente densas, não possuem um brilho duradouro na
consciência reflexiva. Logo se desfazem, escapam-nos. O próprio Isidoro
lembra a velha constatação dos gregos: o homem é um ser que esquece!
Essas experiências, contudo, não se aniquilam totalmente; escondem-se,
condensam-se, transformam-se, depositam-se... na linguagem! E o filosofar é
uma tentativa de lembrar, de resgatar os grandes insights de sabedoria que
se encerram na linguagem comum. Comumente, a análise etimológica ajuda nessa
tarefa. Ao tratar filosoficamente da gratidão, para citarmos um caso, é
importante considerar que quando dizemos "obrigado!" estamos reconhecendo
que a gratidão impõe um vínculo, uma obrigação (ob-ligação) de retribuição.
É certo que as etimologias medievais não primavam pelo rigor científico. Se
a interpretação dada às origens das palavras nem sempre era uma verdade (e,
de vez em quando, chegava mesmo ao ridículo), freqüentemente era bene
trovata. Seja como for, a linguagem funcionava para eles de um modo
diferente, parecia-lhes saborosa, portadora de notícias sobre a realidade.
Tomás de Aquino, atento à sabedoria da linguagem comum, citava muito Isidoro
e se valia dos seus procedimentos etimológicos. Por exemplo, na Suma
Teológica, começa o tratado sobre a principal das virtudes cardeais, a
prudência [1] , afirmando: ut Isidorus dicit, "como diz Isidoro, prudente
(prudens) é o que vê adiante (porro videns), e daí que a prudência seja uma
virtude intelectual", etc. E, mais adiante : "prudência deriva de
providência, previsão" (II-II,49,7 e também 55,1).
Certamente, Tomás não absolutizava a etimologia e trabalhava criticamente
sobre as definições de Isidoro: "Uma coisa é a etimologia de uma palavra; e
outra, seu significado. A etimologia nos dá a raiz pela qual a palavra se
liga ao significado; mas o significado diz respeito à própria realidade a
que a palavra se refere. Por vezes, essas duas dimensões não se identificam:
a palavra pedra, lápide (lapis) procede [2] de ferir o pé (laesione pedis),
e no entanto não é isto o que ela significa, porque senão o ferro, que
também fere o pé, poderia ser chamado de pedra" [3] . Com essas
considerações, Tomás refutava a objeção que lhe fora feita e que tentava
desqualificar a superstição como pecado contra a virtude da religião, uma
vez que, segundo Isidoro, superstitiosos deriva de superstites, isto é, os
supersticiosos seriam os que oferecem sacrifícios para que seus filhos lhes
sobrevivam (superstites), o que não se oporia à religião.
Dada a importância do tema na Idade Média, apresento inicialmente a tradução
[4] do capítulo de Isidoro dedicado à discussão do significado da própria
etimologia (que, afinal, é parte da Gramática), e alguns outros exemplos
interessantes. Em seguida, destaco, do imenso trabalho de Isidoro, uma
seleção de verbetes extraídos do livro X de Etimologias, o mais geral e de
maior interesse para a Filosofia. No prólogo desse livro, o autor explica
que, embora os filósofos apresentem certos argumentos de derivação (por
exemplo: "sábio provém de sabedoria porque primeiro existiu a sabedoria e só
depois o sábio") é necessário o trabalho etimológico complementar, que
Isidoro pretendeu desenvolver.
2. Exemplos das Etimologias de Isidoro
Livro I, capítulo 29 - a etimologia
1. Etimologia é a origem dos vocábulos, já que por essa interpretação
captamos o vigor das palavras [5] . Aristóteles denominou-a symbolon;
Cícero, adnotatio, porque a partir de uma instância de interpretação tornam
conhecidas as palavras e os nomes das coisas: como, por exemplo, flumen
(rio) que deriva de fluere, porque fluindo, cresce.
2. O conhecimento da etimologia é freqüentemente necessário para a
interpretação do sentido, pois, sabendo de onde se originou o nome, mais
rapidamente se entende seu potencial significativo. O exame de qualquer
assunto é mais fácil quando se conhece a etimologia.
Contudo, não foi a todas as coisas que os antigos impuseram nomes segundo a
natureza, mas alguns foram impostos arbitrariamente, tal como nós mesmos
também fazemos quando damos a bel-prazer nomes a nossos servos e
propriedades.
3. Por isso nem sempre podemos achar a etimologia dos nomes, pois há alguns
que foram dados pelo arbítrio da vontade humana e não segundo a qualidade
com que foram criadas as coisas.
Há etimologias de causa, como é o caso de reges (reis) que vem de regere
(reger) e de recte agere (conduzir retamente); outras são de origem, como
homo (homem) que provém de humus (terra); outras procedem dos contrários,
como lutum (barro), o que deve ser lavado (lotum, lavando), pois o barro não
é limpo; ou como lucus (bosque), que, opaco pelas sombras, tem pouca luz
(luceat).
4. Algumas são feitas por derivações de nomes como "prudente" de
"prudência", ou "gárrulo" de "garrulice"; outras são originadas no grego e
passaram para o latim como silva (selva) e domus (casa).
5. Outras ainda procedem dos nomes de localidades, cidades ou rios. Muitas
provêm de palavras de diversos povos e é difícil discernir sua origem, pois
há muitas palavras bárbaras e desconhecidas dos latinos e dos gregos.
Livro IX, capítulo 7 - para escolher marido/esposa
28. Na escolha de marido, costuma-se atentar para quatro qualidades:
virtude, linhagem, beleza e sabedoria. Destas, a mais forte para o amor é a
sabedoria.
29. E, também na escolha da esposa, quatro são as qualidades que causam o
amor no homem: a beleza, linhagem, riquezas e costumes. É melhor procurar
mulher de bons costumes do que bela. No entanto, hoje, os homens vão mais
atrás das que são recomendáveis pela riqueza ou pela beleza do que pela
honradez dos bons costumes.
Livro X, capítulo 1 - sobre a etimologia de algumas palavras
LETRA A
3. Aluno (alumnus) deriva de alere (alimentar) e, primariamente, aplica-se a
quem é nutrido (embora se possa aplicar secundariamente também a quem
nutre).
4-5. Amigo (amicus) é como que o guardião da alma (animi custos) (...) e
procede de hamus (gancho), isto é, algema de amor. Daí a referência aos
anzóis (hami) que prendem.
7. Arrogante (adrogans) é quem se faz muito rogar (rogetur) e é aborrecido.
9. Ávido (avidus) vem de avere (desejar, ansiar). Daí também avaro (avarus).
Pois, o que é ser avaro? Ir além do que basta. E o avaro se chama assim
porque é ávido de ouro (aurum) e nunca se sacia com os bens; quanto mais
tem, mais cobiça. Daí a sentença de Flaco que diz: "O avaro sempre é
necessitado". E a de Salústio: "A avareza não diminui com a abundância nem
com a penúria".
15. Alienigena é o nascido em outro povo (alia genitus) no qual não está
vivendo.
18. Atento (adtentus) é o que retém o que ouve (audiens teneat).
19. Atônito (adtonitus), como que afetado por certa perturbação mental e
estupefacto. Procede do estrépito do trovão (tonitruum): da estupefação que
ele produz, ou da proximidade do raio, ou da possibilidade de ser atingido
por ele.
LETRA B
22. Beatus (feliz, bem-aventurado), como se disséssemos bene auctus (o que
se desenvolveu bem, realizado), isto é: quem tem tudo o que quer e não
padece o que não quer. Pois verdadeiramente feliz é quem tem todos os bens
que quer e não quer senão o bem.
23. Bom (bonus). Acredita-se que bom procede originariamente da beleza
(venustate) do corpo, e depois estendeu-se ao espírito.
28. Bruto (brutus) provém de obrutus (enterrado, encoberto) porque carece de
sensibilidade ou senso. É, pois, quem não tem razão ou prudência. Por isso,
aquele Júnio Bruto, filho da irmã de Tarquínio Soberbo, temendo que lhe
acontecesse o mesmo que ao seu irmão (assassinado pelo tio por causa de suas
riquezas e de sua prudência), simulou durante algum tempo uma oportuna
imbecilidade. Em razão disso, chamando-se Júnio, foi cognominado Bruto.
LETRA C
37. Concorde (concors) recebe esse nome pela união do coração (coniugatione
cordis). Pois, assim como consorte (consors) é o que se uniu à sorte de
outra pessoa, o concorde une o coração.
43. Calculador (calculator) vem de cálculo (calculus), isto é, pedrinhas que
os antigos traziam na mão para fazer contas.
48. Cruel (crudelis), isto é, cru. É o sentido por extensão do omón grego,
como se disséssemos: o que não foi cozido e não dá para comer, pois é duro e
intragável.
44. Colega (collega), o que está co-ligado (conligatio) por laços de
companhia e amizade.
58. Corpulento (corpulentus), o pesado de corpo e lento (corpus / lentus)
pelo seu volume.
LETRA D
66. Dócil (docilis), não porque seja douto, mas porque pode ser ensinado
(doceri), pois é engenhoso é capaz de aprender.
69. Direto (directus) é o que vai reto. Dileto (dilectus) vem de diligência,
amor. São ambos sinais do amor.
77. Dúbio (dubius) é o incerto, como de dois caminhos, duas vias.
78. Delator é quem descobre o que estava oculto (latebat).
79. Demente (demens) é o sem mente ou com a capacidade mental diminuída.
LETRA E
82. Expert (expertus) é o muito perito (peritus). Neste caso, o prefixo ex
significa muito.
LETRA F
98. Fácil (facilis) vem de fazer (facere), o que não é tardo em fazer algo.
99. Formoso (formosus) vem de forma. Pois os antigos chamavam o quente e o
fervente formum, uma vez que o calor move o sangue e, assim, proporciona
beleza.
109. Fútil (futilis) é o vão, supérfluo, loquaz. Metáfora dos vasos de barro
(fictilis) que, quando quebrados ou rachados, não retêm o seu conteúdo.
110. Fornicadora (fornicatrix) é a prostituta, cujo corpo é público e de
todos. Costumavam debruçar-se sob as arcadas que se chamam também fornices,
e daí a palavra fornicária.
LETRA G
112. Grave (gravis) é o venerável ( [6] ). Daí que, aos desprezíveis,
chamemos leves, levianos. Grave pela constância e pelo juízo, pois não muda
ao menor movimento, permanecendo firme graças ao peso da firmeza e da
constância.
LETRA H
114. Humilde (humilis), como que inclinado à terra (humus).
115. Honorável (honorabilis), digno da honra (honore habilis)
116. Honesto (honestus), que nada tem de torpe. Pois o que é a honestidade
senão a honra perpétua e a honra estável (honoris status)?
LETRA I
122. Engenhoso (ingeniosus) é quem tem capacidade interior de conceber
(gignere) uma arte qualquer.
122. Inventor (inventor) é quem encontra (invenire) o que estava procurando.
125. Jucundo (iocundus) é aquele que está sempre disposto para as
brincadeiras (jocus) e para o riso; indica ação freqüente como iracundo.
Jocoso (iocosus), dado a brincadeiras.
135. Infame (infamis), que não tem boa fama.
136. Importuno (importunus) é quem não tem porto, isto é, quietude, repouso.
Por isso os importunos vão logo a naufrágio.
148. Impudico (impudicus) vem de podex (ânus).
LETRA K
("letra supérflua, por causa do C latino" - I,4,12)
LETRA L
157. Longânime (longanimus) é o que tem a alma grande, longa (long-anima,
magn-anima), e não se deixa perturbar por paixão alguma, é paciente e
resiste a tudo. O contrário é o pusilânime, estreito, que não resiste a
nenhuma tribulação.
160. Libidinoso (libidinosus) é o que faz o que bem entende (libet).
LETRA M
168. Modesto (modestus) vem de medida (modus) e equilíbrio; é aquele que age
na medida certa, nem mais, nem menos.
170. Mestre (magister) é quem tem um posto mais elevado (maior in statione);
já ministro (minister) é quem tem um posto menos elevado (minor in statione)
ou executa seu ofício com as mãos.
LETRA N
184. Nobre (nobilis) é o não vulgar (non vilis), de nome e linhagem
conhecidas.
187. Neutro (neuter), o que não é nem uma coisa nem outra (ne uterque).
LETRA O
196. Obediente (obaudiens) é o que vem do ouvido, é aquele que ouve
(audiens) a quem ordena.
LETRA P
201. Prudente (prudens), como se disséssemos que alguém vê adiante (porro
videns).
207. Presente (praesens) é o que está diante dos sentidos (prae sensibus),
diante dos olhos que são sentidos do corpo.

Boécio e o De Trinitate

Boécio e o De Trinitate

Tradução e estudo introdutório:
Luiz Jean Lauand
jeanlaua@usp.br

Introdução
Com esta tradução[1] para o português do tratado De Trinitate de
Boécio o leitor entra em contato com um dos mais notáveis textos da história
da cultura. O surgimento desse opúsculo, no início do século VI, assinala o
nascimento da Escolástica, um método que iria marcar por quase mil anos o
pensamento ocidental e, séculos mais tarde, consubstanciar-se em sua mais
importante instituição educacional: as Universidades. Mas o interesse do De
Trinitate não se restringe a aspectos formais ou metodológicos. Ao valer-se
do instrumental aristotélico para a análise do conteúdo da fé, Boécio
lançava conceitos e teses fundamentais, que exerceriam extraordinária
influência sobre o pensamento teológico posterior. É o caso do maior dos
teólogos, S. Tomás de Aquino, que não só se apoiou em teses boecianas para
escrever o seu próprio tratado sobre a Trindade da Suma Teológica, mas
também compôs um importante comentário ao opúsculo trinitário de Boécio.
Boécio, o educador e o fundador da Escolástica[2]
Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (c. 480-525) nasceu em
Roma, descendente das nobres famílias dos Anícios e dos Torquatos. Estudou
por muitos anos as ciências, a literatura e a filosofia gregas, adquirindo
assim um profundo conhe-cimento da cultura clássica, que o capacitaria mais
tarde para desempenhar o papel his-tórico de singular importância que lhe
estava reservado: em meio da barbárie domi-nante, realizar (na medida do
possível...) a salvação e transmissão da cultura antiga para os novos
ocupantes do Ocidente, instalados onde florescera o Império Romano.
As invasões bárbaras representavam o risco de um iminente
desaparecimento da cultura greco-romana que plasmara o Ocidente. Boécio
percebeu perfeitamente a gravidade do momento histórico e, de volta à Itália
(reino ostrogodo), valeu-se dos cargos que lhe foram confiados pelo rei
Teodorico para exercer sua tarefa pedagógica.
De Boécio, por exemplo, procedem dezenas de contribuições para a
língua latina (sobretudo devidas a seu trabalho de tradutor) e diversas
formulações filosóficas que serão repetidas mil vezes pelos pósteros como de
domínio público. É o caso das definições de pessoa (como substância
individual de natureza racional); de felicidade (como o estado de perfeição
que consiste em possuir todos os bens); de eternidade (como a posse total,
perfeita e simultânea, de uma vida sem fim)[3].
Boécio foi o homem certo no lugar certo. Estava habilitado como
nenhum outro para lançar os fundamentos da transmissão do saber clássico aos
bárbaros e tal projeto, como se sabe, contém um dos elementos essenciais
daquilo que se convencionou chamar "Idade Média".

Só com seu trabalho de tradutor e comentarista - com que
estabelece a ponte entre a cultura antiga e a Idade Média -, Boécio já teria
garantido um lugar de relevo na História da Educação e justificado o título
de fundador da Escolástica, "primeiro escolástico" (Grabmann). Pois, não por
acaso, Escolástica se relaciona com escola, escolar, e o ensino da Idade
Média muito deve a esse educador.
Mas, há ainda uma outra contribuição inovadora de Boécio que incide sobre
outro elemento ainda mais decisivamente essencial na constituição da
escolástica como método: um estilo de pensamento teológico.
Os opúsculos teológicos de Boécio - dos quais o principal é precisamente o
De Trinitate - são as "primícias do método escolástico" e, por isso, é
Boécio considerado "um precursor de S. Tomás" (Stewart e Rand).
Já o título de seu livro ("Como a Trindade é um único Deus e não
três deuses") expressa o propósito de esclarecer racionalmente a verdade de
fé. Certamente isto não é algo de novo. Agostinho e outros tinham escrito
textos com o mesmo intuito. Aliás, Agostinho havia afirmado a necessidade de
cooperação entre fé e razão, com a célebre sentença do Sermão 43: intellige
ut credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "crê a fim de
que entendas". Para Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque
cojunge, "conjuga a fé e a razão"![4], conselho com que encerra uma carta ao
Papa João I.
À primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, está em que esse
propósito tenha sido assumido explicitamente, programaticamente: aquilo que
antes podia ser unicamente uma atitude fática tornava-se agora um princípio.

Nova é também a radicalidade do projeto. No seu De Trinitate,
encontram-se várias concepções platônicas e neo-platônicas; as dez
categorias, os gêneros, as espécies e diversos outros conceitos de
Aristóteles; todo tipo de análises filosóficas e de linguagem. Mas não há
nem sequer uma única citação ou referência à Bíblia, e isto num tratado
teológico sobre a Santíssima Trindade!
Não que a Escolástica se caracterize por ser racional,
não-bíblica, mas é preciso frisar aqui a especial importância dada à razão
na tarefa de conjugar razão e fé. Este caráter inovador racional não passou
despercebido a Tomás de Aquino. Na Introdução do seu comentário ao De
Trinitate de Boécio, Tomás[5], a propósito do tema da Trindade, explica que
há dois modos fundamentais de procedimento teológico: per auctoritates e per
rationes. E que se Ambrósio e Hilário enveredaram pelo primeiro, e se
Agostinho mistura os dois procedimentos, Boécio segue decididamente o
segundo: a radicalidade da investigação racional.
O De Trinitate de Boécio
O De Trinitate é dirigido ao seu sogro, Quintus Aurelius Memmius
Symmachus, único interlocutor à altura do filósofo naquela região e
circunstâncias. Em seus desabafos, ao longo da Introdução, nota-se a
angustiosa solidão intelectual e espiritual de Boécio no reino ostrogodo.
Boécio afirma, desde o início, a intenção de levar a
investigação até onde o permitam as forças do intelecto humano; dada a
especial dificuldade do tema, pede também uma especial benevolência do
leitor.
A Introdução termina com uma referência à influência que recebeu
de Agostinho. De Agostinho, com sua base neo-platônica (a que Boécio
acrescentará contribuições de Aristóteles), procede o estímulo para a
investigação filosófica da fé, acentuando mais o intellige ut credas do que
o crede ut intelligas. Também de Agostinho é o conceito de Deus como
essentia, o que não muda, porque é o que é, aquele que é (Ex 3,14).
Tomás[6], porém, aponta a semente agostiniana tematicamente decisiva: a
distinção entre o que diz respeito absolutamente a Deus, sem distinguir as
Pessoas, e o que relativamente as distingue. A categoria relação como chave
do trata-mento da questão da Trindade será o grande mérito do
desenvolvimento boeciano, que culminará no século XIII no De Trinitate do
próprio Tomás. De fato, a questão 28 da prima da Summa, dedicada às relações
divinas[7], é um desenvolvimento das idéias de Boécio. No artigo 3, no sed
contra, cita-se a sentença de Boécio, núcleo central de todo o tratamento
teológico do dogma: "A substância contém a unidade; a relação multiplica a
Trindade" (cap. VI). E em outro sed contra decisivo[8], Tomás vale-se de
Boécio para afirmar que "pessoa"[9], em Deus, significa precisamente
relação.
O capítulo I discute a sentença da unidade da Trindade e aponta
um importante erro da heresia ariana: estabelecer diferenças entre Pai,
Filho e Espírito Santo, atribuindo-lhes graus de dignidade diversos. E
explica como a alteridade só se pode dar pelo gênero, espécie ou número
(diferenças que não ocorrem na Substância divina). Para Boécio, seguindo a
tradição grega, a Filosofia comporta ciências de duas espécies: teóricas (ou
especulativas) e práticas (ou ativas).
No capítulo II, em que afirma que a substância divina é forma,
estabelece uma divisão das ciências teóricas baseada na diversidade das
formas de seus objetos. Às três formas correspondem três métodos de
conhecimento distintos. Deus, sendo forma sem matéria, Forma por excelência,
é Um e Simples e exclui todo número e toda possibilidade de nEle inerirem
acidentes.
No capítulo III, discorre sobre o fato de que na substância
divina não há número e aplica à questão da Trindade uma interessante
discussão de linguagem a partir da distinção entre o "número pelo qual
numeramos;" e a "realidade numerada".
O capítulo IV, dedicado a como se predicam de Deus as
categorias, começa por enumerar as 10 categorias de Aristóteles, que o
leitor encontrará bem explicadas pelo próprio Boécio. Baste aqui sua
apresentação pelo clássico exemplo mnemônico: Arbor sex servos ardore
refrigerat ustos. Cras ruri stabo sed tunicatus ero. A árvore (substância)
refrigera (atividade) seis (quantidade) servos (qualidade) queimados
(pas-sividade) pelo ardor (relação) do sol. Amanhã (quando) no campo (onde)
estarei de pé (situação), mas estarei tunicado (condição). Em seguida,
Boécio mostra como, sendo as criaturas tão diferentes do Ser de Deus, nossa
linguagem não é unívoca quando apli-ca as categorias às criaturas e a Deus.
Deus, aliás, para Boécio, não é sequer substân-cia, mas ultra-substância.
Essa diferença de potencial expressivo da linguagem no caso particular da
categoria relação é analisada nos cap. V e VI, nos quais se discutem
respectivamente a relação em Deus e a Unidade e Trindade em Deus,
estabelecendo a conclusão: "A substância é responsável pela unidade; a
relação faz a Trindade".

Como a Trindade é um Deus e não três deuses
Boécio

Pesquisei por muitíssimo tempo[10] a questão da Trindade, até
onde podem as forças da pequena chama[11] da mente, que a luz de Deus se
dignou conceder-nos.
Tendo chegado a estruturar os argumentos e a redação, submeto-os
a ti (Quintus Aurelius Memmius Symmachus, o sogro), pois anseio pelo teu
abalizado juízo, tanto quanto pelas próprias descobertas de minha diligente
pesquisa.
Bem poderás compreender o que sinto todas as vezes que confio à
pena meus pensamentos: seja pela própria dificuldade do tema, seja pela
escassez de interlocutores: na verdade és o único capaz de entendê-los e o
único com quem os discuto.
Não escrevo por desejo de fama nem pelo vão aplauso do vulgo; se
houver algum fruto externo não pode ser outro que esperar o teu juízo[12]
sobre o assunto tratado. Pois, excetuando a ti, para onde quer que eu olhe
só vejo, por um lado, a pasmaceira ignorante e, por outro, a inveja astuta,
de modo que pareceria um insulto aos tratados de teologia submetê-los a
esses brutos que, mais do que interessar-se por aprendê-los, calcá-los-iam
aos pés.
Assim, serei conciso, e o que extraí do fundo da Filosofia
encobrirei sob palavras novas[13] que falam só a ti e a mim, se te dignares
a olhar para elas; quanto aos demais, eles não nos interessam: não podem
chegar a compreendê-las e não são dignos de lê-las.
Certamente, devemos pesquisar até onde for dado ao olhar da
razão humana ascender às alturas do conhecimento da divindade. Pois também
nas outras disciplinas há limites além dos quais a razão não pode chegar. A
Medicina nem sempre traz a saúde ao doente e a culpa não será do médico, se
tiver feito tudo o que estava ao seu alcance. E o mesmo vale para os outros
conhecimentos.
No caso do presente estudo, tanto mais benevolente deve ser o
julgamento, quanto tão mais difícil é a questão. No entanto, tu examinarás
se as sementes lançadas em mim pelos escritos de S. Agostinho produziram
seus frutos. Mas comecemos a discussão da questão proposta.
I
Há muitos que usurpam a dignidade da religião cristã, mas a fé
que é válida principal e exclusivamente[14] é aquela que, tanto pelo caráter
universal de seus preceitos[15] - que dão a medida da autoridade da religião
-, quanto pelo seu culto, se espalhou por quase todo o mundo e é chamada
católica ou universal. Dessa fé, a sentença da unidade da Trindade é: "O Pai
é Deus, o Filho é Deus, o Espírito Santo é Deus"[16]. E, portanto, Pai,
Filho e Espírito Santo são um deus e não três deuses.
A razão de sua unidade é a ausência de diferença[17]: e na
diferença incorrem aqueles que aumentam ou diminuem a Unidade, como os
arianos[18] que, atribuindo graus de dignidade à Trindade, desfazem a
unidade e caem na pluralidade.
Pois o princípio da pluralidade é a alteridade[19]: fora da
alteridade nem sequer pode ser entendida a pluralidade. Pois a diferença
entre três (ou qualquer número de) coisas[20] reside no gênero, na espécie
ou no número.
O número de modos de igualdade[21] acompanha o de diversidade.
Ora, a igualdade pode se dar de três modos:
1) pelo gênero: como são iguais quanto ao gênero (animal) o homem e o
cavalo;
2) pela espécie: como Catão e Cícero são iguais quanto à espécie (homem);
3) pelo número: como Túlio e Cícero são um e o mesmo [22].
Do mesmo modo, a diversidade também se dá pelo gênero ou pela
espécie ou pelo número. Mas a diferença pelo número se dá pela variedade de
acidentes. Pois três homens não diferem pelo gênero, nem pela espécie, mas
pelos seus acidentes. E se nós mentalmente retiramos deles todos os demais
acidentes, cada um, no entanto, continua ocupando um lugar diferente e de
modo algum podemos supô-los num mesmo e único lugar, pois dois corpos não
podem ocupar um mesmo lugar. Ora, o lugar é um dos acidentes. E assim,
porque são plurais em seus acidentes, são plurais em número.
II
Trata-se, pois, de adentrar, e examinar com atenção cada ponto
para que possamos entender e captar[23]; pois, como muito bem se disse[24]:
"ao erudito compete tratar de captar a sua fé, tal como na realidade ela é".
Ora, são três as ciências especulativas: a Física, que está em
movimento e não é abstrativa ou separável - anypexairetos - não abstrai o
movimento, pois considera as formas dos corpos com matéria, formas que em
ato não se podem separar dos corpos. E os corpos, estando em movimento, a
forma, unida à matéria, tem movimento: com a terra, tendem para baixo; com o
fogo, para cima. A Matemática, está sem movimento e não é abstrativa, pois
ela estuda as formas dos corpos sem a matéria e, por isso, sem movimento.
Porém essas formas, em união com a matéria, não podem separar-se dela. A
Teologia, está sem movimento e é abstrativa, pois a substância de Deus
carece de matéria e de movimento.
Das três ciências, a Física trabalha racionalmente
(rationabiliter); a Matemática, disciplinarmente (disciplinaliter) e a
Teologia, intelectualmente (intellectualiter): : pois não se trata aqui de
lidar com imagens, mas antes de olhar para a forma que é, não imagem, mas
verdadeira forma: ela mesma é e é por ela que o ente é .
Pois tudo é pela forma. Uma estátua se constitui como tal e se
diz efígie de ser vivo, não pelo bronze, que é matéria, mas pela forma nela
esculpida. E, do mesmo modo, o próprio bronze é bronze não pela terra que é
sua matéria, mas pela forma. E mesmo a própria terra não é terra por ser
matéria informe (apoion hylen), mas por causa da secura e do peso que são
formas. Não há nada, pois, que seja o que é pela matéria, mas sempre pela
forma própria.
Ora, a divina substância é forma sem matéria e, portanto, é Um e
é o que é. Qualquer outro ente não é o que é, pois, cada ente tem seu ser
das partes de que está constituído, da conjunção de suas partes: mas não tal
e tal tomadas separadamente. Por exemplo, o homem na condição presente
consiste em corpo e alma, é corpo e alma, não corpo ou alma separadamente e,
portanto, não é o que é. Aquele, porém, que não é composto disto e daquilo,
mas é simplesmente isto, esse verdadeiramente é o que é, e é belíssímo e
poderosíssimo porque em nada se assenta.
Daí que Ele seja verdadeiro Um[25], no qual não há número nem
nada que não seja o que é. Nem pode tornar-se substrato de algo, pois é
forma e as formas não po- dem ser substratos. Pois o que nas outras formas é
substrato para os acidentes, como por exemplo a hominalidade, não recebe os
acidentes pelo fato de ela mesma ser, mas sim pela matéria que lhe está
sujeita. Assim, quando a matéria sujeita à hominalidade recebe um acidente
qualquer, parece que é a própria hominalidade que o assume.
Já a forma que é sem matéria não pode ser substrato, nem nela
inerir matéria, senão não seria forma, mas imagem[26]. Pois da forma que
está à margem da matéria procedem as que estão na matéria e produzem o
corpo. É, pois, um abuso de linguagem que cometemos quando chamamos formas o
que são imagens, somente assemelham-se à forma que não está constituída em
matéria: nEle nada há de diversidade; nem de pluralidade decorrente da
diversidade, nem de multiplicidade decorrente de acidentes; e daí que
tampouco haja número.
III
Assim, Deus não difere de Deus a título algum, pois não há
diversidade de sujeitos por diferenças acidentais ou substanciais[27]. Onde,
pois, não há diferença, não haverá pluralidade alguma, e daí tampouco
número, mas somente unidade. E quando dizemos três vezes Deus e dizemos Pai,
Filho e Espírito Santo, estas três unidades não fazem pluralidade numérica
naquilo que elas mesmas são, se consideramos a própria realidade numerada e
não o modo pelo qual numeramos. Neste caso, a repetição de unidades produz
pluralidade numérica; quando, porém, se trata da consideração da realidade
numerada, a repetição da unidade e o uso plural não produzem de modo algum
diferença numérica nas realidades.
Pois há dois tipos de números: um, pelo qual numeramos; outro,
que consiste nas coisas numeráveis. Assim, dizemos um para a coisa real;
enquanto unidade designa aquilo pelo que dizemos que algo é um. Assim também
dois pode referir-se à realidade - como, por exemplo, homens ou pedras -,
mas dualidade não: dualidade refere-se somente àquilo por que se constituem
dois: homens ou pedras. E assim também para os outros números.
Portanto, no caso do número pelo qual numeramos, a repetição da
unidade faz pluralidade; nas coisas, porém, a repetição de unidades não
produz número, como por exemplo se da mesma e única coisa eu dissesse: "uma
espada, um gládio, uma lâmina". Podemos referir-nos a essa realidade com um
único vocábulo, "espada", e a repetição de unidades (palavras) não é uma
numeração: se dizemos "espada, gládio, lâmina" é uma reiteração e não uma
enumeração de diversos; do mesmo modo, quando repito: "sol, sol, sol" não se
trata de três sóis, mas de um só.
Assim, pois, se se predica do Pai, Filho e Espírito Santo três
vezes Deus, a predicação tríplice não constitui número plural. Este é, pois,
como dissemos, o perigo daqueles que fazem distinção por dignidade entre os
três. Nós, os católicos, porém, não admitimos nenhuma diferença no que
constitui a própria forma e afirmamos não ser Ele outra coisa que aquele que
é. E para esta doutrina, dizer: "Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo,
e esta Trindade é um só Deus", é tal como dizer: "uma espada, um gládio, uma
lâmina" ou "sol, sol, sol: um sol".
Com o que até aqui dissemos, procuramos deixar claro que nem
toda repetição de número produz pluralidade. Quando, porém, dizemos, "Pai e
Filho e Espírito Santo" não estamos usando sinônimos diversos como seria o
caso de "espada" e "gládio", que são iguais e idênticos.
Pois Pai, Filho e Espírito Santo, são iguais, mas não são o
mesmo. Este ponto merece um pouco de atenção. A quem pergunta: "É o Pai o
próprio Filho?", respon-demos: "De modo algum". E: "É um o mesmo que o
outro?", novamente: "Não!".
Não há, pois, entre eles - sob um determinado aspecto - uma
total indiferença em todos os aspectos; e assim pode-se falar em número que,
como explicamos acima, procede da diversidade de sujeitos. Discutiremos
brevemente esse determinado aspecto, depois de termos examinado como é que
se predica de Deus.
IV
Há ao todo dez categorias que podem ser universalmente
predicadas de todas as coisas: substância, qualidade, quantidade,
relação[28], lugar (onde)[29], tempo (quando), condição[30], situação[31],
atividade e passividade.
Elas são determinadas pelo sujeito a que se referem: parte delas
- quando se aplicam a outras coisas que não Deus -, referem-se à substância;
parte, aos acidentes. Quando, porém, estas categorias são aplicadas à
divindade, todas elas se tornam substanciais. Quanto à relação, ela não pode
de modo algum ser predicada de Deus[32], pois a substância nEle não é
propriamente substância, mas ultra-substância. Também não podem ser
predicadas de Deus a qualidade e as demais categorias, das quais vamos dar
exemplos para melhor compreensão.
Ao dizermos "Deus", aparentemente estamos designando uma certa
substância, mas, na verdade, aquela que é ultra-substância; ao dizermos
"justo" (aplicado a Deus), referimo-nos a uma qualidade, mas não à qualidade
acidental, e sim à própria substância ou ultra-substância. Pois em Deus não
é uma coisa ser, e outra ser justo, mas é-Lhe idêntico ser Deus e ser justo.
E quando dizemos "grande ou o maior" parece que nos estamos referindo a uma
determinada quantidade; mas, no caso, é à própria substância ou, como
dissemos, ultra-substância: para Deus é o mesmo ser e ser grande. E quanto à
sua forma, já mostramos acima como Ele é Forma e certamente Um e excluindo
toda pluralidade.
Mas essas categorias são tais que dão à coisa a que se aplicam o
caráter que expressam: nas coisas criadas, a divisão; em Deus, porém,
apresentam-se conjugadas e unidas: quando dizemos "substância" (aplicada por
exemplo a homem ou Deus) é como se aquilo de que predicamos fosse ele mesmo
substância, como substância "homem" ou "Deus". Na verdade, porém, não é a
mesma coisa: o homem não realiza em si a totalidade do ser humano, e por
isso não é substância; o que ele é, deve-o a outras coisas que não são
homem[33]. Deus, porém, é o próprio Deus; não é outra coisa senão "o que é"
e, por isso, é Deus mesmo.
E assim também quando dizemos "justo", que é uma qualidade,
dizemos como predicação do sujeito, isto é, se dizemos: "homem justo" ou
"Deus justo", afirmamos que o próprio homem ou o próprio Deus são justos.
Porém, uma coisa é o homem; e outra, o homem justo; enquanto Deus Ele mesmo
é o que é justo.
"Grande" também se diz do homem ou de Deus como se fosse a mesma
coisa dizer "homem grande" ou "Deus grande"; na verdade, porém, o homem pode
até ser grande; mas Deus é, Ele mesmo, o próprio grande[34].
Quanto às outras categorias, também elas não podem ser
predicadas de Deus nem (substancialmente) dos outros entes. Pois o lugar não
se pode predicar do homem nem de Deus: do homem se diz que está na praça; de
Deus, que está em toda a parte; mas não como se fosse o mesmo a coisa e o
que dela se predica. Pois dizer que o homem está na praça é totalmente
diferente do que afirmar seu modo de ser, por exemplo, branco ou alto ou
qualquer propriedade que, por assim dizer, o circunscreva e determine e pela
qual se possa descrevê-lo em si. A predicação lugar, pelo contrário, somente
afirma onde se situa a substância em relação a outras coisas.
Com Deus, porém, não é assim, pois "estar em toda parte" não
significa que esteja em cada lugar (Ele absolutamente não pode estar num
lugar), mas que cada lugar é-Lhe presente para ocupar, embora Ele não possa
ser recebido espacialmente e, por isso, não se diz que ele esteja situado em
lugar algum porque está em toda parte, mas não alocado.
O mesmo se dá com o "quando", a categoria de tempo: tal homem
veio ontem; Deus é sempre. Quando se predica o "vir ontem", aqui, novamente,
não se diz algo sobre o homem em si, mas o que lhe sucedeu no tempo. Já o
que se diz de Deus, "sempre é", significa um contínuo presente que abarca
todo o passado e todo o futuro. Os filósofos dizem que isso pode ser também
afirmado do céu e de outros corpos imortais, mas, mesmo assim, não do mesmo
modo que de Deus. Pois Ele é sempre porque "sempre" é para Ele presente: e
há uma grande diferença entre o nosso "agora", que é do tempo que corre, e a
sempiternidade: o "agora" divino permanece, não corre, e consistindo, faz a
eternidade. Junta eternidade e sempre, e terás o agora perene e incessante
e, portanto, o transcurso perpétuo que é a sempiternidade.
Também são válidas essas considerações para as categorias
condição e atividade; pois dizemos do homem: "ele, vestido, corre"[35], e de
Deus: "Ele, possuidor de todas as coisas, governa". Aqui também não se diz
nada do ser de ambos e essas são predicações exteriores; e todas as
categorias até agora tratadas referem-se a outras dimensões que não à
substância.
A diferença entre um e outro caso é fácil de perceber: "homem" e
"Deus" referem-se à substância pela qual o sujeito é algo: homem ou Deus;
"justo" refere-se a uma qualidade pela qual o sujeito é algo, a saber:
justo; "grande", à quantidade pela qual ele é algo: grande. Já com as demais
categorias isto não se dá: quando se diz que alguém está na praça ou em toda
a parte, referimo-nos à categoria lugar, que não faz com que o sujeito seja
algo, como pela justiça ele é justo.
O mesmo ocorre quando se diz "ele corre" ou "governa" ou "é
agora" ou "é sempre": nestes casos estamos expressando tempo ou atividade -
se é que o "sempre" divino pode-se encaixar em tempo -, mas não algo pelo
qual é algo, como pela magnitude se é grande. Quanto às categorias situação
e passividade nem precisamos ocupar-nos delas porque, claramente, sequer
ocorrem em Deus.
Já se tornam evidentes as diferenças da predicação? Algumas
categorias apontam para a coisa; outras, para circunstâncias da coisa.
Aquelas dizem que a coisa é algo; estas , não incidem sobre o ser da coisa,
mas sobre aspectos antes extrínsecos que lhe são aderentes. As categorias
que determinam de algum modo o ser de algo chamam-se categorias segundo o
ser; quando pressupõem sujeito, são chamadas acidentes segundo o ser. Quando
se trata de Deus, que de modo algum é sujeito[36], só se pode falar de
predicação segundo a substância.
V
Trata-se agora de examinar a categoria relação, para cuja
discussão valer-nos-emos de tudo o que anteriormente foi tratado; a relação,
mais do que qualquer outra categoria, constitui-se por referência a outro e
parece especialmente não ser predicação relativa à coisa em si.
"Senhor" e "servo", por exemplo, são relativos; examinemos se
são predicados da substância. Suprimindo o servo, suprime-se o senhor. Mas
se suprimimos a brancura não suprimimos alguma coisa branca, embora,
certamente, ao suprimir a brancura particular[37] desta coisa branca
suprimamos também conjuntamente a coisa. No caso do senhor, se suprimimos a
palavra "servo", destrói-se também a palavra "senhor": não porque o senhor
seja substrato do servo como a coisa branca é substrato da brancura, mas sim
porque se desfaz a relação (o poder) que sujeitava o servo ao senhor. Já que
o poder se desfaz ao suprimir-se o servo, vê-se que o poder não é algo que
per se esteja no senhor, mas é algo extrínseco que lhe advém pela relação
com os servos.
Não se pode, portanto, afirmar que uma predicação de relação
acresça, diminua ou altere de algum modo a coisa em si a que se refere. Pois
a categoria relação não diz respeito à coisa em si; ela simplesmente aponta
uma condição de relatividade (e não sempre ou necessariamente para outra
substância mas às vezes para uma mesma)[38].
Assim, suponhamos um homem em pé. Se eu me dirijo a ele pela
direita e me coloco a seu lado, ele estará à esquerda em relação a mim não
porque ele mesmo seja esquerda, mas porque eu me coloquei à direita. Agora,
se eu me aproximo pela esquerda ele se torna direita em relação a mim: e, de
novo, não porque ele seja em si direita (como ele é branco ou alto), mas por
causa do meu posicionamento. Fica tudo na dependência de mim e nada tem que
ver com o seu ser em si.
Essas categorias que não afetam a coisa em si não podem mudar,
alterar ou afetar de nenhum modo sua essência. Daí que se Pai e Filho são
termos de relação e, como dissemos, não têm outra diferença que a de
relação, e se a relação não é predi-cada daquele de quem se predica como se
fosse o próprio sujeito e qualidade sua, en-tão ela não produzirá nenhuma
alteridade de substância em seu sujeito mas - numa frase dificilmente
compreensível e que requer explicação - uma alteridade de pessoas.
Pois é uma regra básica a de que as distinções em realidades
incorpóreas são estabelecidas por diferenças e não por separação espacial.
Não se pode dizer que Deus se tornou Pai pelo acréscimo de algo; pois Ele
nunca começou a ser Pai, já que a produção do Filho pertence à sua própria
substância; embora o predicado Pai, enquanto tal seja relativo. E se nos
lembramos de todas as proposições feitas sobre Deus na discussão prévia,
devemos admitir que Deus Filho procede de Deus Pai e Deus Espírito Santo de
ambos e que eles não podem ser espacialmente diferentes por serem
incorpóreos. Mas já que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é
Deus, e já que em Deus não há pontos de diferença que o distingam de Deus,
Ele não difere dEles. Mas onde não há diferença, não há pluralidade; e onde
não há pluralidade, há unidade. E, novamente, nada senão Deus pode ser
gerado por Deus e, na realidade numerada, a repetição da unidade não produz
pluralidade. E assim a unidade dos três está convenientemente estabelecida.
VI
Mas, como toda relação sempre se refere a outro, pois a
predicação que se refere ao próprio sujeito é sem relação, a numerosidade da
Trindade é garantida pela categoria relação, enquanto a unidade é preservada
pelo fato de que não há diferen-ça de substância ou de operação ou de
qualquer predicado substancial. Assim, a subs-tância é responsável pela
unidade e a relação faz a Trindade. E assim, somente os termos referentes à
relação podem ser aplicados distintamente a cada um. Pois o Pai não é o
mesmo que o Filho, nem cada um dos dois é o mesmo que o Espírito Santo.
Ainda que Pai, Filho e Espírito Santo sejam o mesmo e único Deus, o mesmo em
justiça, em bondade, em grandeza e em tudo que pode ser predicado segundo o
ser.
Não se deve esquecer que a predicação de relatividade nem sempre
envolve diferença (como servo para o senhor). Porque o igual é igual ao
igual, o semelhante é semelhante ao semelhante, e o mesmo é o mesmo que o
mesmo; e a relação do Pai para o Filho, e de ambos para o Espírito Santo, é
relação de igual para igual[39].
Uma tal relação não será encontrada nas coisas criadas, mas isto
é por causa do modo de diferenciação que afeta as transitórias criaturas. Ao
falar de Deus, porém, não devemos deixar-nos guiar pela imaginação; mas pelo
puro intelecto elevar-nos e acometer o entendimento de tudo o que importa
conhecer.
Mas já basta acerca da questão proposta. Agora a acuidade da
discussão aguarda o critério do teu julgamento: o pronunciamento de tua
autoridade sobre se discorri corretamente ou não. Se pela graça de Deus
apresentei argumentos para este ponto que se sustenta por si no firmíssimo
fundamento da fé, volto-me gozosamente em louvor, pela obra feita, para
Aquele de quem procede o efeito. Se, porém, a natureza humana não logrou
transcender seus limites naturais, valha pela intenção o que tiver falhado
pela fraqueza.





[1]. A partir do original latino apresentado por Stewart e Rand em Boethius
- The Theological Tractates, London-Cambridge, Loeb, 1953.
[2]. Em Educação, Teatro e Matemática medievais, 2ª ed., S. Paulo,
Perspectiva, 1990, comento mais amplamente o trabalho pedagógico de Boécio,
sobretudo no que se refere à Geometria. Este tópico recolhe e resume algumas
considerações de J. Pieper em Scholastik, cap. II, München, DTV, 1978.
[3]. Rationalis naturae individua substantia; statum bonorum omnium
congregatione perfectum; interminabilis vitae tota simul et perfecta
possessio.
[4]. O si, no caso, mais do que condicional ou dubitativo indica algo que
muito provavelmente irá ocorrer. Como se disséssemos: "se chover em janeiro
(o que é praticamente certo), o trânsito ficará congestionado".
[5]. Certamente, também Tomás é um escolástico nesse sentido profundamente
racional, mas no Prólogo ao Comentário ao De Trinitate de Boécio cita vinte
vezes a Bíblia e nenhuma vez Aristóteles.
[6]. In Boethium De Trinitate, Proemii textus et explanatio.
[7]. E a relação é, vale insistir, o conceito chave de acesso à Trindade.
[8]. I, 29, 4.
[9]. É oportuno lembrar que também é de Boécio a própria definição de pessoa
utilizada por Tomás: rationalis naturae individua substantia.
[10]. Tomás comenta que, neste parágrafo e nos seguintes, Boécio apresenta
seu trabalho segundo as quatro causas aristotélicas: material (o próprio
assunto: a Trindade), eficiente (as luzes de Deus e da inteligência humana),
formal ("Tendo chegado a estruturar...") e final ("Não escrevo por desejo de
fama...").
[11]. Igniculus, pequena chama. Tomás faz ver (In Boethium De Trinitate,
Proemii textus et explanatio) que a luz por excelência é a do conhecimento
de Deus; os anjos, um termo médio; quanto ao homem, só dispõe de uma
"pequena chama".
[12]. O juízo do sábio. Conforme o comentário de Tomás, o principal é o
fruto interior: o conhecimento da verdade divina. O juízo do sábio (e não o
rumor do vulgo) é o único fructus exterior aceitável.
[13]. Como diz Tomás, a brevidade, a profundidade e a novidade das palavras
são três recursos que se unem à dificuldade da matéria para subtrair a
sublimidade do tema à profanação do vulgo (cfr. Mt. 7,6).
[14]. A rigor, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), os
hereges não são cristãos, embora assim sejam considerados pela opinião dos
homens ao vê-los confessar o nome de Cristo. Daí a distinção entre
"principal e exclusivamente".
[15]. Que, comenta Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I), se dirigem a
todos os homens: ao contrário da Lei de Moisés (que foi dada a um único
povo) e das diversas seitas heréticas da época, que se dirigiam só a um
determinado tipo de homem (umas, só aos solteiros; outras, excluíam os
pecadores, etc.).
[16]. Pater deus, Filius deus, Spiritus Sanctus deus. Dada a inexistência de
artigo em latim, uma tradução mais literal seria: "O Pai é o Deus, o Filho é
o Deus, o Espírito Santo é o Deus".
[17]. Boécio emprega em sentido técnico as palavras: differentia, numerus e
species.
[18]. Para os hereges arianos, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate,
Lectio I), a dignidade do Filho é menor que a do Pai e a do Espírito Santo
menor que a de ambos.
[19]. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio I) propõe aqui, a propósito da
precisão de linguagem de Boécio, uma interessante discussão sobre a
diferença entre alteridade (alteritas) e aliedade (alietas). Tanto alter
como alius significam: outro. Alter, porém comporta as diferenças não só de
substância (como é o caso de alius) mas também as acidentais.
[20]. Boécio, comenta S. Tomás (In Boethium De Trinitate, IV,I,c), refere-se
aqui à pluralitate compositorum, pois gênero, espécie e acidentes só se dão
nos compostos: as criaturas; Deus, porém, é simplicíssimo.
[21]. Igualdade traduz idem. Aqui também cabe uma observação sobre a
precisão boeciana: idem e ipse indicam igualdade, mas enquanto idem pode
indicar igualdade em relação a este ou aquele aspecto, ipse indica
identificação, o mesmo e único sujeito ele próprio.
[22]. Cícero é, na época, conhecido e citado pelo seu nome Túlio.
[23]. Intelligi atque capi. Tomás (In Boethium De Trinitate, Lectio II)
interpreta esta passagem dizendo que a discussão do tema deve adequar-se
tanto à realidade envolvida (e a essa dimensão diz respeito o intelligere)
quanto a nós (capere), que não podemos abarcar a grandeza de Deus do mesmo
modo como compreendemos uma realidade sensível ou uma demonstração
matemática. E lembra que não é a mesma a evidência que temos nas diversas
disciplinas.
[24]. Stewart e Rand anotam: Cícero (Tusc. V. 7. 19).
[25]. "Um", para os antigos, mais do que um número expressa o próprio ser.
[26]. Imagem significa aqui forma unida à matéria.
[27]. Tomás, comentando (I, 30, 1) esta passagem que, aparentemente, faz uma
objeção à pluralidade de pessoas em Deus, responde com o próprio Boécio
(veja-se o cap. VI ou o último parágrafo do cap. III), esclarecendo que a
suma unidade e simplicidade de Deus exclui, em sentido absoluto, toda
pluralidade; mas admite-se a pluralidade do ponto de vista da relação, pois,
sendo a relação "para outro", não implica composição.
[28]. Ad aliquid. A relação não é um algo (aliquid), mas um "a algo" (ad
aliquid).
[29]. Ubi.
[30]. Habitus.
[31]. Situm esse. O acidente situs indica não a presença num lugar (ubi),
mas a estruturação espacial interna da própria coisa.
[32]. Tomás, comentando (I, 28, ad 1) esta passagem à primeira vista
contraditória, diz que o que não é possível é predicar de Deus a relação a
título do caráter próprio dessa categoria: que não se refere ao sujeito no
qual inere, mas "a outro" [pois, como o próprio Boécio explica neste
capítulo, em Deus (ultra-substância), confunde-se cada predicado com sua
própria substância]. Mas isto não significa que não haja em Deus relações, e
sim que, precisamente no caso desta categoria das relações, elas não se dão
em Deus inerindo nEle, mas por uma certa referência a outro.
[33]. Só Deus, que é o que é, é simples; as criaturas, são compostas. O
homem, por exemplo, compõe-se de substância e acidentes; a substância, por
sua vez, é composta de matéria e forma; etc.
[34]. No comentário de Gilberto Porretano, "o próprio Deus é a razão de ser
do que é grande" (PL 64, 1285).
[35]. É preferível "ele, vestido, corre" a "ele corre vestido" para manter a
ordem de apresentação das categorias.
[36]. Isto é, substrato de acidentes.
[37]. Podemos prescindir intelectualmente da cor (acidente que inere na
coisa), embora concretamente a coisa se dê com cor. Já a categoria relação
envolve dois pólos relativos e nem sequer se pode pensar, por exemplo, em
direita sem esquerda ou em senhor sem servo.
[38]. Nec semper ad aliud sed aliquotiens ad idem. Trata-se de uma passagem
muito sutil: a tradução inglesa neste ponto ("a condition of relativity:
(...) not necessarily to something else, but sometimes to the subject
itself", p. 27) contradiz-se na p.29: "no relation can be affirmed of one
subject alone (nulla relatio ad se ipsum referri potest", cap. VI, início).
A solução nos é dada por Tomás num artigo em que, por acaso, não faz nenhuma
referência a Boécio (I, 31, 2,). Tomás começa por expor as incomparáveis
dificuldades de linguagem no tema da Trindade: para falar da Trindade de
pessoas sem ferir a Unidade deve-se evitar as palavras diversitas e
differentia, mas pode-se usar distinctio. Do mesmo modo, como em Deus não há
distinção de substância, mas só de pessoas (relações): o Filho é outro
(alius) que o Pai (outra Pessoa), mas não é outra coisa (aliud) que o Pai (a
mesma substância). Assim se compreende que Boécio empregue, nessa sentença,
o neutro aliud e não o masculino alius.
[39]. Comentando esta passagem, que parece conduzir à conclusão de que as
relações em Deus são meramente de razão e não reais, Tomás (I, 28, ad 2)
afirma a coerência da formulação, desde que se entenda a igualdade tal como
Boécio a quis caracterizar: não indicando uma identidade absoluta, mas
somente que pelas relações não se altera a identidade da mesma e única
substância divina.

Boécio e Ramon Llull: A Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens

Boécio e
Ramon Llull: A Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens

Ricardo da Costa
Universidade Federal do Espírito Santo
Vitória
Adriana Zierer
Universidade Federal Fluminense
Niterói



La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l'Hortus Deliciarum de
Herrade de Landsberg.
Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept. Estampes Ad 144 a)

O simbolismo da Roda da Fortuna na arte medieval pode ser explicado através
da iluminura do Hortus Deliciarum[1], com seus quatro estágios simbolizados
pelos quatro personagens em torno da Roda: regnabo ("eu devo reinar": figura
em cima, do lado esquerdo da Roda, com o braço direito erguido), regno ("eu
reino": figura em cima da roda, freqüentemente coroada, para significar o
reinado), reganvi ("eu reinei": figura que está do lado direito da roda,
caindo da graça), sum sine regno ("eu não tenho reino": figura na base da
roda que perdeu completamente os favores da Fortuna. Esta pessoa é as vezes
completamente jogada da roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de
reinar de novo)[2].
Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade Média
representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o alto antes de
deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não parava nunca de rodar e
indicava a mudança perpétua que caracteriza a natureza humana[3].
Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam em constante
perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se que o destino dos
homens, mesmo o dos reis e imperadores, era determinado pela Fortuna. O
termo parece ser uma evolução de duas diferentes deusas antigas, provindas
da cultura greco-romana, Fors ("a que traz", relacionada ao conceito de
providência) e Fortuna (ligada à fertilidade, à agricultura e às mulheres).
Esta última tinha traços similares à Tyche, deusa grega associada ao acaso e
à sorte. Em algum momento, a distinção entre Fors e Fortuna diminuiu com a
criação de uma única deusa, Fors (Fortuna), herdando as noções de sorte,
destino e acaso de suas predecessoras. Existiam pelo menos três templos
dedicados à deusa Fors em Roma e um festival lhe era dedicado em 24 de
junho[4]. Ela era apresentada freqüentemente segurando uma cornucópia e um
timão, sobre uma esfera ou uma roda, e simbolizava seu poder sobre a vida
das pessoas que consideravam possuir fortuna se tivessem sorte ou
infortúnio[5].
O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra justamente
no período de vida de Ramon Llull (1232-1316)[6], na coleção de canções
germânicas profanas denominada Carmina Burana[7], uma estimulante exaltação
à natureza em forma de fortes tons primários, que possui uma canção a
respeito da Fortuna.
A obra Carmina Burana transmitiu, por tradição, a obra do Arquipoeta
(†c.1165), um latino anônimo, provavelmente da Renânia, que foi patrocinado
pelo arcebispo de Colônia e chanceler de Frederico Barba-Ruiva, Reinaldo de
Dassel. Sua obra mais famosa, Confessio, expressou os paradoxos e o brilho
do renascimento cultural do século XII, com sua confiança na razão e na
natureza. Nela sobressaem-se vigorosos impactos rítmicos. Em duas canções
(CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca estabilidade da Fortuna, que com seu
sobe-e-desce traz alegrias e desgraças para os homens:
"O FORTUNA" (CB 17)
I
O Fortuna, Ó Fortuna
velut luna tal a Lua,
statu variabilis, uma forma variável!
semper crescis Sempre enchendo
aut decrescis; Ou encolhendo:
vita detestabilis Ó que vida execrável!
nunc obdurat Pouco duras,
et tunc curat Quando curas
ludo mentis aciem, De nossa mente as mazelas;
egestatem, A pobreza,
potestatem A riqueza,
dissolvit ut glaciem. Tu derretes ou congelas.
II
Sors immanis Bruta sorte,
et inanis, És de morte:
rota tu volubilis, Tua roda é volúvel,
status malus, Benfazeja,
vana salus Malfazeja,
semper dissolubilis, Toda sorte é dissolúvel.
obumbrata Disfarçada
et velata De boa fada,
michi quoque niteris; Minha ruína sempre queres;
nunc per ludum Simulando
dorsum nudum Estar brincando,
fero tui sceleris. Minhas costas nuas feres.
III
Sors salutis Gozar saúde,
et virtutis Mostrar virtude:
michi nunc contraria, Isto escapa a minha sina;
est affectus Opulento
et defectus Ou pulguento
semper in angaria. O azar me arruína.
Hac in hora Chegou a hora,
sine mora Convém agora,
corde pulsum tangite; O alaúde dedilhar;
quod per sortem A pouca sorte
sternit fortem, Do homem forte
mecum omnes plangite! Devemos todos lamentar.[8]

Símbolo da mutação, das alternâncias da vida cotidiana, esta imagem
percorreu toda a Idade Média, que a recebeu como herança de Boécio[9]. Este
paper trata da imagem da Fortuna em Boécio, na obra Consolatio Philosophiae,
e de como Ramon Llull utiliza esta metáfora para criticar os novos valores
sociais dos burgueses citadinos do século XIII.
*
O tema da Fortuna percorre toda a Consolatio Philosophiae (524) - depois da
Bíblia e da Regra de São Bento, a obra mais lida na Idade Média. As
circunstâncias da redação da obra explicam o destaque dado ao tema, pois
Boécio a escreveu na prisão, após ter caído em desgraça e sido preso por
motivos políticos. Na época, a Itália era governada pelo rei godo Teodorico,
que era ariano[10], que, num primeiro momento, desejou demonstrar tolerância
religiosa com os católicos, nomeando elementos da aristocracia romana, como
Boécio, para cargos no governo. Porém, mais tarde, Boécio defendeu
publicamente Albino, um senador romano acusado de conspirar com Bizâncio
contra o rei godo, e foi tido também por traidor. Desde 522 Mestre de
Ofícios de Teodorico, Boécio foi então preso (524) e levado de Ravena para
Pavia. Para Teodorico, este era um sinal que a aristocracia romana o estava
traindo. Com um sádico requinte de crueldade, Teodorico determinou que os
juízes do processo de Boécio fossem os mesmos senadores romanos que haviam
sido fiadores em sua defesa de Albino[11].
A Consolatio, genial diálogo em forma socrática, mostra-se ainda mais
interessante pelas circunstâncias de sua redação, pois foi escrita entre uma
sessão e outra de tortura, quando uma correia de couro era apertada em torno
do crânio do filósofo, fazendo saltar os globos oculares das órbitas, fato
registrado numa crônica anônima de Ravena - e confirmado pela Historia
Secreta de Procópio[12]. No texto de Boécio, o próprio autor também menciona
os efeitos da tortura, como por exemplo uma perda passageira da
memória[13]. Graças às visitas de seu sogro Símaco[14], conseguiu fazer
chegar o original à posteridade.
Na Consolatio, Boécio conversa com a Filosofia, e lamenta a sua sorte,
mostrando-lhe durante boa parte do diálogo, a malévola e enganosa
Fortuna[15], que trata cruelmente os homens, sem se importar com as
acusações a um inocente[16]. Por causa dela, os homens erram em seus
julgamentos, pois, ao invés de analisar os méritos das ações passadas, só
vêem os caprichos da Fortuna e acreditam que esse é o desejo natural dos
acontecimentos:
Mas gostaria apenas de dizer que o fardo mais pesado com que a Fortuna possa
afligir alguém é este: que as olhos do povo estaja sendo justamente
castigado quem na verdade é inocente[17].
No entanto, a Filosofia repreende Boécio:
Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem os
mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela permanece fiel
em sua inconstância. Ela era a mesma quando te lisonjeava, ou quando fazia
de ti seu joguete prometendo-te miragens [...] seus jogos são funestos [...]
e é precisamente essa faculdade de passar de um extremo ao outro que
caracteriza a Fortuna que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou
desejá-la[18].
A Filosofia então se coloca no papel da Fortuna para que Boécio compreenda
melhor sua sorte. Neste momento, o autor se vale da metáfora da Roda para
explicar o sentido do movimento da Fortuna:
E quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos homens que pretende me
obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com minha própria
natureza! Minha natureza, o jogo interminável que jogo é este: virar a Roda
[da Fortuna] incessantemente, ter prazer em fazer descer o que está no alto
e erguer o que está embaixo: Sobe se tiveres vontade, mas com uma condição:
que não consideres injusto descer, quando assim ditares as regras do jogo.
Ignoravas mesmo a minha maneira de agir?[19]
Por esse motivo, a Fortuna propicia aos homens um jogo, um grande
espetáculo[20]. Pois esse é o sentido da vida, um teatro, o teatro da
vida[21]. Vive-se uma grande peça, onde se desenvolvem tumultuadas e
violentas relações pessoais que perpassavam a prática social.
Esta visão de mundo foi igualmente recuperada na Idade Média. Por exemplo, a
arte de Brueghel (1525?-1569) retratou a cultura rural medieval e,
especialmente, o sentido da teatralidade da existência humana: a vida se
desenvolve em diferentes cenários, onde diversos personagens atuam seus
múltiplos papéis existenciais[22]. Trata-se de um testemunho que une o real,
o fantástico, o cotidiano vivido e o imaginário temido. Um depoimento
angustiado, mórbido, dilacerante, pessimista. Um famoso cartaz da época
anunciava o teatro do mundo: "Theatrvm orbis terracvm". Pois todos atuam num
cenário e giram como os rádios de uma roda. Sempre foi assim e a roda
seguirá girando eternamente[23].
Esse prisma via a vida como um ritual, cheio de significação teológica,
mística e carismática. Essa espécie de encenação comandava o real através do
imaginário: é o que Georges Balandier chamou de teatrocracia, o conjunto de
todas as manifestações da existência social, o tribunal teatral[24]. A Roda
da Fortuna apenas ressaltava este tipo específico de farsa que organizava os
poderes constitutivos e as ações sociais.
Por esses motivos, a Filosofia de Boécio afirma que os homens não devem
procurar nada na Fortuna, pois não há nada nela que mereça ser procurado.
Não há nada nela que seja intrinsecamente bom, já que ela beneficia pessoas
más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se associa[25].
Em contrapartida, a Filosofia mostra a Boécio que a Fortuna é benéfica aos
seres humanos, pois esclarece a eles quando se desmascara e mostra seus
métodos de ação. Ela possui, assim, duas faces: uma, sedutora e atraente,
caprichosa e flutuante, quando mente com sua aparência de felicidade; outra,
comedida e sincera, pois mostra os verdadeiros amigos, distinguindo a
franqueza da hipocrisia. Assim, a Fortuna comporta uma parte de bem e uma
parte de mal[26]. Uma engana, a outra instrui[27]. Pois a amizade é o
tesouro mais sagrado que existe, pois os amigos são dados pela virtude e não
pela Fortuna[28].
Apesar do momento adverso pelo qual estava passando, o autor, ao longo da
obra, mostrou possuir uma visão positiva acerca do universo: o mundo caminha
para o bem e aqueles que estão desprovidos da Fortuna fugaz deste mundo
(luxo, riquezas, poder) estão livres se mantiverem-se bons e virtuosos.
Desta forma, toda a injustiça sofrida por Boécio é atenuada pelo sentimento
de que atingirá o verdadeiro bem (Deus) na eternidade[29]. Boécio também
explica porque motivo a Fortuna é inconstante. Como o desejo pela boa
fortuna avilta os homens, a Providência Divina envia males, misturados com
bens, para que os bons não se corrompam ou para reforçar as virtudes[30].
Aos maus é deixado o livre-arbítrio para escolherem o bem, graças ao poder
que muitas vezes possuem em suas mãos (como por exemplo, o rei Teodorico),
mas se persistirem no mal serão mais tarde punidos pelo Juiz Supremo, Deus,
por toda a eternidade.
Veremos agora como a Fortuna se apresenta na obra do filósofo Ramon Llull e
de como se aproxima do pensamento de Boécio.
*
Na sua Ars, na hora de fazer aplicações, Ramon Llull define cem formas
abstratas, que ele chama generalíssimas. Na forma 61, Ramon trata da fortuna
e do afortunado:
A fortuna é acidente, e por isso encontra-se fora da segunda espécie da
regra C. E é um hábito, com o qual a pessoa afortunada se dispõe
acidentalmente para aquela boa fortuna; como o caminhante que, indo em
peregrinação, encontra ouro ao acaso. A própria fortuna é, sem dúvida, pela
segunda espécie da regra D; e tem ser no sujeito no qual se encontra, pela
quarta espécie da regra C. E é o que é pela terceira espécie da regra D; e
encontra-se fora do princípio, do meio e do fim, da concordância e da
contrariedade. Não se encontra, contudo, fora da menoridade e maioridade. E
neste passo, o entendimento conhece que a fortuna tem pouco de "ser"
enquanto a consideramos em si mesma, mas tem muito "ser" enquanto a
consideramos em relação ao afortunado[31].
Para Ramon, a fortuna é um acidente, portanto não é substância. Em seu
sistema de pensamento, Llull faz dez perguntas para saber de modo completo o
que são as coisas. Ele chama estas perguntas de regras. Na segunda regra,
chamada de C, pergunta sobre a essência das coisas. Por sua vez, esta
questão desdobra-se em quatro espécies. Na segunda espécie, Ramon se
pergunta o que a coisa tem em si mesma essencialmente e naturalmente, coisa
sem a qual não poderia ser. Aí então encontra-se a fortuna. Como ela é
acidental no sujeito, encontra-se então fora da segunda espécie da regra C.
A fortuna para Ramon é um hábito, hábito esse com o qual a pessoa afortunada
se dispõe acidentalmente para aquela boa fortuna.
O exemplo que Ramon dá é o do peregrino, que em sua caminhada encontra ouro.
Então afirma que a fortuna é pela segunda espécie da regra D. Enquanto a
regra C pergunta sobre a essência das coisas, a regra D pergunta pela
materialidade da coisa. Desdobra-se em três espécies; a segunda espécie
pergunta "de que é algo feito ou constituído?". Por exemplo, o prego é
constituído de ferro e o homem de corpo e alma.
De que então é constituída a materialidade da fortuna? Ramon passa por essa
questão, relacionando o sujeito à quarta espécie da regra C - que pergunta
pelo "que tem uma coisa na outra" (por exemplo, o entendimento, no objeto
que contempla, se pode ter pecado).
Por esta quarta espécie da regra C vê-se que a fortuna está no sujeito que
tem a sorte de tê-la. Ela está no sujeito sem que ele queira, por isso ele é
pessoa afortunada. A terceira espécie da regra D pergunta "de quem é?" a
coisa, como por exemplo, "o reino é do rei?", ou "o acidente é da
substância?". No caso da fortuna, esta não existiria sem a pessoa
afortunada, pois, para Ramon, ela não existe em si mesma.
Neste aspecto, Ramon não se vale da fortuna em si; pelo contrário, transfere
o centro da atenção para a pessoa afortunada: é nela que o filósofo encontra
o principio, meio, fim, a concordância e a contrariedade. Na fortuna, Ramon
vê os princípios relativos da maioridade e menoridade. Existiriam então
fortunas maiores e menores[32].
Esta explicação de Llull nos parece ligada à noção corrente acerca da
Fortuna que provinha da Antigüidade e que Boécio mostra na Consolatio como
algo inconstante, fugaz e incontrolável aos humanos.
Num outro exemplo, o filósofo catalão compara a Roda da Fortuna aos grupos
sociais da época, especialmente aos usurários, a quem critica. Tal como
Boécio, mostra que as glórias deste mundo são fugazes e que o burguês que
peca pela avareza e pela cobiça do lucro será mais tarde punido por Deus. Na
Doctrina Pueril (1274-1276)[33] - uma das primeiras obras pedagógicas na
Idade Média em língua vulgar e um dos primeiros livros escritos para as
crianças[34] - Ramon usa a metáfora da Roda da Fortuna para mostrar que os
homens se movem em seus diversos ofícios:
Assim como a roda que se move dando voltas, filho, os homens que estão em
seus mesteres acima ditos se movem [lavradores, ferreiros, mercadores,
sapateiros, etc.]. Logo, aqueles que estão no mais baixo ofício em
honramento, desejam subir a cada dia, tanto que estejam no lugar da roda
soberana, na qual estão os burgueses. E porque a roda se vai a girar e a
inclinar até abaixo, convém que ofício de burguês caia abaixo[35].
Os homens que estão abaixo na Roda aspiram subir até o topo e por isso a
Roda se move[36]. Além de mostrar a intensa mobilidade social da sociedade
medieval de meados do século XIII, esta é, sem dúvida, uma crítica do autor
aos novos valores sociais dos burgueses. Na Idade Média, burguês era o
habitante da cidade não-clérigo, não-nobre e não-estrangeiro, que exercia
determinadas atividades que lhe garantiam uma relativa independência,
estando ligado a duas categorias de citadinos, os maiores e mediocres, de
acordo com os textos da época[37].
É importante lembrar que a atividade mercantil era em princípio condenada
pela Igreja, que era contrária a toda atividade relacionada ao empréstimo de
dinheiro a juros (usura). Exemplos da Bíblia convergiam para esta
condenação, como no Levítico: "se o teu irmão achar-se em dificuldade [...]
não lhe emprestarás dinheiro a juros, nem lhe darás alimento para receber
usura [...]"[38], e o Decreto de Graciano, obra eclesiástica do século XII,
afirmava que "O mercador nunca pode agradar a Deus - ou dificilmente".[39]
Para Ramon os burgueses são avaros. Citadinos, eles valorizam a riqueza e a
ambição pessoal em detrimento do senso de justiça e da comunidade medieval.
Jeffrey Richards já avaliou a crescente mobilidade social que ocorria no
ocidente medieval a partir do século XII:
A avareza, subproduto do retorno a uma economia de dinheiro, se manifestou
através de um grande aumento do roubo e da simonia, de uma hostilidade
crescente contra os judeus e de uma preocupação tanto dos pregadores quanto
dos satiristas com o amor excessivo pelo dinheiro. A ambição foi estimulada
pela mobilidade social crescente, mais notadamente pela ascensão de
profissionais alfabetizados e especializados em cálculo (advogados,
administradores, escreventes). No século XII, ela tornou-se, pela primeira
vez, um tema nos sermões dos pregadores[40].
Por esse motivo, o direito só deve existir para Llull porque falta ao homem
o amor a Deus, já que todo aquele que ama a Deus ama a justiça[41]. Assim, a
justiça luliana visava a proporção, a cada um o que é seu de direito, e
através dela o príncipe cumpriria uma das finalidades de seu ofício. Na
mundo terrestre, o príncipe seria o responsável pela harmonia da sociedade,
devendo cada indivíduo voltar-se para as virtudes para aproximar a alma do
bom caminho a ser trilhado na outra vida.
*
Como vimos, para Ramon Llull e Boécio, o que importa é o mérito pessoal do
cristão no caminho para a sua salvação e não o apego aos bens materiais,
passageiros, inconstantes e pouco duráveis. Daí a importância do exemplo da
Roda da Fortuna, que mostra aos homens a fugacidade do tempo terrestre em
oposição ao tempo divino. A figura do burguês na Doutrina Pueril está em
consonância com o tirano de Boécio: ambos preocupam-se com as falsas glórias
da Fortuna (luxo, bens, poder) ao invés de preocuparem-se com as verdadeiras
virtudes, os valores espirituais, como, por exemplo a bondade, que aproximam
os humanos de Deus, o verdadeiro bem. Embora não saibamos com clareza se
Ramon leu a obra de Boécio, a tradição desta perpassou todo o período
medieval, e parece-nos que para ambos os autores, todas as falsas glórias do
mundo terrestre serão um dia julgadas pelo Juiz Supremo, e os que estavam no
alto da Roda, poderão cair ao inferno, ao passo que as almas dos bons
viverão na eterna bem-aventurança, ao lado de Deus.





[1] Obra redigida pela abadessa do mosteiro de Odile (ou Hohenbourg),
Herrade de Landsberg (1130-1195), voltada à instrução das monjas de seu
mosteiro. Contém várias iluminuras, dentre as quais esta representação da
Roda da Fortuna. Herrad of Hohenbourg. Hortus Deliciarum (ed. Rosalie
Green), Studies of the Warburg Institute, vol. XXXVI, London and Leiden, The
Warburg Institute, University of London; Brill, 1979.
[2] Richard Leighton Greene, "Fortune", In: Joseph R. Strayer (org.),
Dictionary of the Middle Ages, New York, Scribner's, 1983, vol. III, p.
145-147.
[3] Hans Biedermann, Encyclopédie des Symboles (ed. française de Michel
Cazenave), Paris, Le Livre de Poche, 1996, p. 591.
[4] "Fortuna", In: http://www.millcomm.com/~markland/engl568/fortunebio.html
[5] Hans Biedermann, Encyclopédie des Symboles, op. cit., p. 275-276.
[6] Filósofo catalão nascido em Maiorca, a partir dos trinta anos teve três
visões com Jesus crucificado e passou ao serviço de Deus, dedicando-se à
conversão dos infiéis ao cristianismo. Com este intento, aprendeu árabe e
escreveu um grande número de obras defendendo a sua doutrina, sendo que
duzentos e oitenta delas nos chegaram em latim e em catalão. Ricardo da
Costa, A Árvore Imperial - Um Espelho de Príncipes na Obra de Ramon Llull
(1232?-1316). Niterói, Universidade Federal Fluminense, Tese de Doutorado,
2000.
[7] Coletânea de obras anônimas datada de 1300 e provenientes da abadia
bávara de Benediktbeuern.
[8] Carmina Burana [Canções de Beuern], Maurice van Woensel (trad., introd.
e notas), São Paulo, Ars Poetica, 1994, p. 32-35.
[9] Jacques Le Goff, A civilização do Ocidente Medieval, Lisboa, Editorial
Estampa, vol. I, p. 206.
[10] O arianismo foi uma corrente cristã considerada herética, que se
dividida em três seitas acerca do pensamento sobre a natureza de Cristo: os
eunomeanos (que negavam que o Filho tivesse qualquer coisa em comum com o
Pai, os homeanos (atribuindo-lhes uma simples semelhança) e os homoeouseanos
(subordinando o Filho ao Pai). Ver Alain de Libera, A Filosofia Medieval,
São Paulo, Edições Loyola, 1998, p. 248-249.
[11] Marc Fumaroli, "Prefácio", In: Boécio, A Consolação da Filosofia, São
Paulo, Martins Fontes, 1998, p. XVIII.
[12] Marc Fumaroli, "Prefácio", op. cit., p. XIX.
[13] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro III, 23, p. 87.
[14] Mais tarde, por demonstrar publicamente sua revolta com o assassinato
do genro Boécio, Símaco também foi morto por ordem de Teodorico.
[15] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro I, 1, p. 3-4.
[16] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro I, 8, p. 12.
[17] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro I, 1, p. 15.
[18] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 1, p. 26.
[19] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 3, p. 29 (os
grifos são nossos).
[20] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 2, p. 27.
[21] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 5, p. 32.
[22] Ricardo da Costa, A Guerra na Idade Média, Rio de Janeiro, Edições
Paratodos, 1998.
[23] "Brueghel via o mundo assim, como um teatro. Todos interpretam um
papel: o soldado, o agricultor, o comerciante e rico, exausto de tanto comer
no paraíso dos glutões." - Pierre Jansen, História Geral da Arte - Grandes
Gênios da Pintura, Madrid, Ediciones del Prado, 1995.
[24] Georges Balandier, O Poder em Cena, Brasília, Editora UnB, 1982, p. 5.
[25] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 11, p. 45.
[26] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro IV, 9, p. 114.
[27] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 15, p. 50.
[28] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro III, 3, p. 56.
[29] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro IV, 5, p. 104.
[30] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro IV, 11, p. 122.
[31] "De fortuna et fortunato. Fortuna est accidens extra secundam speciem
regulae C tantum. Et est habitus, cum quo fortunatus se disponit ad illam
bonam fortunam per accidens; sicut viator, iens in peregrinationem, qui a
casu invenit aurum. Ipsa quidem fortuna est per secundam speciem regualae D;
et habet esse in subjecto, in quo est, per quartam speciem regulae C. Et est
hoc, quod est, per tertiam speciem regulae D; et est extra principium,
medium et finem, concordantiam et contrarietatem. Extra autem minoritatem et
maioritatem non est. Et in isto passu cognoscit intellectus, quod fortuna
habet parum de esse quo ad se ipsam, sed quo a fortunatum magnum esse
habet." - Ramon Llull, Ars generalis ultima, ROL 128, Parte 10, cap. 61, p.
349-350.
[32] Devemos toda esta explanação filosófica sobre a fortuna na Arte luliana
ao querido mestre Esteve Jaulent, do Instituto Brasileiro de Filosofia e
Ciência Raimundo Lúlio (http://www.tande.com/InstBrasFiloRLulio).
[33] Publicado em ORL, vol. I, 1906, p. 3-199 e Ramon Llull, Doctrina Pueril
(a cura de Gret Schib), Barcelona, Editorial Barcino, 1972.
[34] "[...] la Doctrina Pueril, que és fruit de l'experiència personal del
nostre escriptor com a educador del seu fill i, potser, com a preceptor del
fill de Jaume I, el futur rei Jaume II de Mallorca, si hem de donar crèdit a
una vella tradició, que atribueix a Llull aquest ofici." - Gret Schib,
"Introducció", In: Ramon Llull, Doctrina Pueril, op. cit., p. 8.
[35] "Enaxí com a roda qui.s mou engir, se mouen, fill, los hòmens qui són
en los mesters demunt dits. On, aquels qui són en lo pus bax offici en
honrament, desigen a puyar cade dia, tant que sien en lo cap de la roda
subirana, en la qual estan los burguesos. E cor la roda se à a girar e a
enclinar a aval, cové que offici de burguès ya caya a aval." - Ramon Llull,
Doctrina Pueril (a cura de Gret Schib), op. cit., p. 187-188 (os grifos são
meus).
[36] O tema da Roda da Fortuna é recorrente nos Espelhos de Príncipes, até
se chegar a Maquiavel. Para essas questões, ver Quentin Skinner, As
fundações do pensamento político moderno, São Paulo, Companhia das Letras,
1996, p. 140-141, onde discute as qualidades necessárias ao governante para
reduzir e controlar o poder da Fortuna.
[37] Jacques Le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, São Paulo, Martins
Fontes, 1992, p. 164.
[38] A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 1995, p. 207 (Lv. 25, 35-37).
[39] "Homo mercator nunquam aut vix potest Deo placere", citado por Jacques
Le Goff, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, São Paulo, Martins Fontes,
1991, p. 71.
[40] Jeffrey Richards, Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p. 19.
[41] "[...] porque todo homem que seja Vosso amante convém de necessidade
que ame o direito. Logo, como o direito é formado em Seu relembrar e em Seu
entendimento e em Sua vontade, então a alma lembrará e entenderá e desjará
amar direitamente." ("[...] car tot home qui vos sia amant cové de
necessitat que am dretura. On, com la dretura se será formada en son
remembrament e en son enteniment e en son voler, adoncs la ánima membrarà e
entendrà e volrà l'amat dreturament.") - Ramon Llull, "Libre de Contemplació
en Deu", In: ORL, vol. VII, tomo VI, 1913, p. 392.

Em Torno da Filosofia da História

Em Torno da Filosofia da História

Waldir Cauvilla
Universidade de São Paulo
"Estudar história requer o conhecimento prévio de que com esse estudo se almeja
algo impossível e importantíssimo. Estudar história significa entregar-se ao
caos., conservando a crença na ordem e no sentido. É uma tarefa muito séria...,
talvez mesmo trágica".
Herman Hesse, O Jogo das Contas de Vidro.

Quem deve responder à pergunta "tem sentido a História?": o historiador, o
filósofo ou o teólogo? Ou a própria pergunta não tem sentido?
Se é ponto pacífico que ao historiador, enquanto tal, cabe apenas a função de
explicar(1) os acontecimentos históricos em seu desenrolar, no entanto, não é
cabível tentar captar algum sentido nesse mesmo desenrolar?
Dizer que não há condições para se atribuir um sentido à história já não seria
estabelecer "um sentido", ainda que no caso devêssemos chamá-lo de "falta de
sentido"? Mas o que isto quer dizer? Em que isso implica? Que os seres humanos
"caminham" aleatoriamente? Teremos de adotar algo do tipo "acaso e necessidade",
como Jacques Monod adota com relação à evolução biológica?(2) Ou temos de buscar
um sentido na própria "caminhada em si" da humanidade, como diz o poeta espanhol
"caminante no hay camino; se hace el camino al andar"? Mas, então, quem nos
guiará? O historiador? Mas seu próprio método, ou, pelo menos, as teorias
predominantes não o permitem. O filósofo? Mas corre o risco de ser considerado
"especulativo , "metafísico", ou coisas "piores" como já fizeram com Arnold J.
Toynbee, por exemplo. O teólogo? Mas, aqui, dir-se-á que não se trata de uma
visão científica (será que precisa sê-la? e se os outros ramos do conhecimentos
se declaram impossibilitados de responder, fica-se sem resposta?) ou até mesmo
de uma visão racional; que dada a variações das concepções sobre a fé - base da
convicção religiosa mas sobre a qual, talvez, nem as religiões se entendam - não
chegaríamos a uma posição de aceitação universal.
De qualquer modo, a pergunta é possível, ela existe, há quem se interesse por
ela. E notemos que - baseando-nos apenas na literatura conhecida (poderíamos,
até, dizer "clássica") ela é feita há muito tempo. No mínimo a partir de Sto.
Agostinho, com sua Cidade de Deus. E, se é ela que inaugura a "filosofia da
história", poderíamos lembrar o que diz W. H. Walsh: "O problema de quem terá
inventado a filosofia da história é controverso: há argumentos que justificam a
atribuição ao filósofo italiano Vico (1668-1744), embora sua obra tenha passado
em grande parte despercebida em sua época, o que justifica remontar a um passado
ainda mais distante aos textos de Sto. Agostinho, ou mesmo a certos trechos do
Velho Testamento". (Walsh, W. H., 1978, p. 13)(3)
Pensando em quais poderiam ser esses trechos do Velho Testamento, ocorreu-nos
pelo menos um do "Livro do Eclesiastes", no Antigo Testamento: "Uma geração
passa, e outra geração lhe sucede; mas a terra permanece sempre estável! (...).
Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras. O olho
não se farta de ver nem o ouvido se cansa de ouvir (sempre as mesmas coisas)".
"Que é que foi? É o mesmo que há de ser. Que é que se fez? O mesmo que se há de
fazer. Não há nada novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer.- Eis aqui está uma
coisa nova, porque ela já existe nos séculos que passaram antes de nós. Não há
memória das coisas antigas, mas também não haverá memória das coisas que hão de
suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde". (Livro do
Eclesiastes, 1, 4,8-11)
Pode-se dizer que está colocado aí um sentido, para a história da humanidade,
caracterizado pela permanência, pela estabilidade.
Mas gostaríamos de apontar um outro autor, também anterior a Sto. Agostinho, no
qual vislumbramos uma filosofia da história, ainda que sutilmente referida: é
Heródoto de Halicarnasso, o que não deixa de ser interessante, já que ele
costuma ser indicado como o "pai da história". Em suas investigações(4) sobre as
Guerras entre Gregos e Persas (também chamadas de Guerras Médicas), diz ele:
"... O que farei (...) será levar adiante minha história, e discorrer do mesmo
modo sobre os sucessos dos Estados grandes e pequenos, visto que muitos, que
antigamente foram grandes, vieram depois a ser bem pequenos e que, ao contrário,
foram antes pequenos os que se elevaram em nossos dias à maior grandeza.
Persuadido, pois, da instabilidade do poder humano, e de que as coisas dos
homens nunca permanecem constantes no mesmo ser, próspero nem adverso, farei
como digo, menção igualmente de uns Estados e de outros, grandes e pequenos".
(Heródoto, 1947, p. 13; Livro 1,5).
Leio esse texto como sendo uma captação de um "sentido" da história: a
relatividade das coisas, a instabilidade da vida das sociedades, a alternância
do poderio de um povo. Há aqui um aspecto interessante: já o "pai" dos
historiadores revelava uma marca que, a nosso ver, acompanhará os historiadores
de todos os tempos: mesmo não sendo esse o objetivo de sua investigação, mesmo
tendo como objeto um "momento" apenas da história humana (no caso, as Guerras
Médicas), ele não pode evitar emitir um juizo que abrange a história dos homens
como um todo; o trecho acima, parece-nos, "transcende" os limites de um evento
singular da história dos homens; desse evento particular , "induz" uma
"tendência" mais geral (sentir-nos-íamos temerários se usássemos a palavra
"lei", mesmo entre aspas) dessa história. E não foi o que sucedeu com Sto.
Agostinho, também? Para dar significado à desintegração do Império Romano, e a
responsabilidade dos cristãos nisso, ele apela para uma interpretação da
história em sua totalidade. E, num nível mais modesto, citaríamos nossa própria
descoberta, enquanto professor de história, ao nos darmos conta, após uma dezena
de anos de aula, de que não podíamos fazê-lo "impunemente", ou seja, mesmo
preocupados "apenas" em explicar a história a nossos alunos, ia-se constituindo
em nós, talvez até inconscientemente, uma concepção da caminhada da humanidade,
em que se buscaria algum significado mais geral, isto é, tendíamos a "filosofar"
sobre a história, mesmo sem percebê-lo.
Mas, voltemos a Walsh:"... Para efeitos práticos, temos razão em afirmar que a
filosofia da história começou a ser considerada matéria independente no período
que se inicia com a publicação, em 1784, da primeira parte das Idéias para uma
História Filosófica da Humanidade, de Herder, e terminou pouco depois do
aparecimento da obra póstuma de Hegel, Conferências sobre a Filosofia da
História em 1837. Mas esse estudo, tal como foi concebido durante o período, era
em grande parte uma questão de especulação metafísica. Seu objetivo era chegar a
um entendimento do curso de história como um todo; mostrar que, apesar de muitas
anomalias e inconseqüências que apresentava, a história podia ser considerada
como uma unidade que compreendia um plano geral, um plano que, uma vez
percebido, esclareceria o curso detalhado dos acontecimentos ao mesmo tempo em
que nos permitiria ver o processo histórico como satisfatório à razão, num
sentido especial (...) Pretendiam oferecer uma compreensão da história mais
profunda e valiosa do que qualquer coisa que os historiadores pudessem
apresentar, uma compreensão que, no caso do Hegel, o maior desses autores, tinha
uma base não num estudo direto da evidência histórica (embora Hegel não fosse
indiferente em relação aos fatos, como pretende ser, por vezes), mas em
considerações puramente filosóficas. A filosofia da história, como praticada por
esses autores, passou a significar um tratamento especulativo de todo o curso de
história, com o qual se esperava revelar seu segredo, de uma vez por
todas".(Walsh, 1978, pp. 13-14)
Apesar da afirmação feita no primeiro texto de Walsh, acima citado, ele próprio
indica que, mesmo depois de Hegel, ainda encontramos algumas obras que se
desenvolvem na perspectiva, dita "especulativa" da filosofia da história, e
lembra, de início, Marx, Spengler e Toynbee, e mais ao final de seu livro,
Comte. Um outro autor, W.H. Dray, ao estudar o que denomina três "tratamentos"
da filosofia especulativa da história, cita Hegel (um "tratamento metafísico"),
Toynbee (um "tratamento empírico") e Reinhold Niebuhr (um "tratamento
religioso")(5).
Seria bom destacar, nesta altura, que, com o desenvolvimento da pesquisa
histórica a partir do século XIX, seja influenciada por uma visão positivista
(Taine, Henri Berr, Langlois, Seignobos), seja pela proposta da École des
Annales (Lucien Febvre, Marc Bloch, Braudel), seja pela historiografia idealista
neokantiana alemã (Dilthey, Rickert, Max Weber) ou neohegeliana italiana
(Croce), a vertente "especulativa" da filosofia da história é duramente
criticada(6), e só será bem vista, a vertente "crítica". Pelo menos na França
esta será representada, inicialmente, por Raymond Aron e suas teses,
lntroduction a La Philosophie de L'Histoire e La Philosophie Critique de
L'Histoire: essai sur une théorie allemande de L'Histoire, ambas de 1938. Em
outras plagas, poderiam ser citados os ingleses Oakeshott, Collingwood e Patrick
Gardiner, o italiano Benedetto Croce. Como escreve H.I. Marrou: "Seja qual for a
originalidade de cada um desses pensadores, a variedade de suas tomadas de
posição e - longe de mim esquecê-lo - o caráter sempre aberto do debate, a
contribuição destes três quartos de século revela bem ao exame, uma certa
convergência tanto na maneira de por os problemas como nas soluções que são
propostas para eles: a partir de uma análise das servidões lógicas que pesam
sobre a elaboração do conhecimento histórico, chegou-se até a constituição de
uma filosofia crítica da História ou pelo menos a um certo conjunto de
princípios fundamentais que doravante se podem considerar como adquiridos ao
mesmo título por exemplo que se adquiriu a teoria da experimentação nas ciências
da natureza, a partir, digamos de J. S. Mill e Claude Bemard". (Marrou, s/d, pp.
20-21)
A própria obra de Marrou - Do Conhecimento Histórico -, da qual extraímos o
trecho acima, é outro bom exemplo dessa filosofia crítica da história.
Antes de avançarmos em outras considerações sobre a filosofia expeculativa da
história anotemos o que W. H. Walsh considera os quatro grupos principais em que
se enquadram os problemas da filosofia crítica da história:
"a) A história e outras formas de conhecimento. [um] grupo constituído de
questões sobre a natureza mesma do pensamento histórico. O que é a história e
como ela se relaciona com outros estudos? Temos em questão um ponto crucial: o
conhecimento histórico é sui generis ou terá ele o mesmo caráter de outras
formas de conhecimento - como o visado pelas ciências naturais, por exemplo, ou
o conhecimento perceptual".
"b) Verdade e fato na história".
"c) Objetividade histórica".
"d) A explicação na história. O problema central neste grupo é o da natureza da
explicação histórica. Haverá peculiaridades sobre a maneira pela qual o
historiador explica (ou tenta explicar) os acontecimentos que estuda? Já vimos
que há uma argumentação justificativa para a afirmação de que a história é,
tipicamente, a narração das ações do passado, disposta de tal modo que vemos não
só o que aconteceu, mas também por quê. Devemos perguntar que tipo, ou tipos, de
"porquê" estão envolvidos na história". (Walsh, 1978, pp. 17,18, 20 e 22)
Voltemos ao tema da filosofia especulativa da história. Dos nomes de "filósofos
especulativos da história", acima citados, gostaríamos de nos concentrar em Karl
Marx. Por quê? Em primeiro lugar, porque Marx foi um dos maiores, senão o maior
crítico de Hegel, visto como o ponto alto da filosofia da história idealista. Em
segundo lugar porque Marx também criticava o trabalho dos filósofos como uma
atividade que fugira das coisas concretas da vida; é só recordarmos a famosa XI
tese sobre Feuerbach: "os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de
forma diferente; trata-se porém de modificá-lo". Em terceiro lugar, ao
posicionar-se como materialista dialético, Marx deveria trabalhar apenas no
nível da realidade humana concreta, escapando, assim, das visões
transcendentalistas dos filósofos da história; e não só isso: parece-nos que o
método materialista histórico é avesso a qualquer visão da história que
extrapola a questão típica do historiador, que é saber "como" as coisas
aconteceram e não "para que" ou "em direção a que" aconteceram.
Vejamos o que diz Walsh: "A filosofia marxista da história tem mais de um
aspecto: na medida em que procura mostrar que o curso da história tende para a
criação de uma sociedade comunista sem classes, por exemplo, aproxima-se de uma
filosofia da história do tipo tradicional. Mas seu principal objetivo é
apresentar uma teoria da interpretação e causação históricas. Se Marx estiver
certo, os principais fatores da história são todos econômicos, e nenhuma
interpretação do curso detalhado dos acontecimentos que não admita isso terá
qualquer valor. Devemos dizer, porém, que a questão dos principais fatores da
história não parece filosófica. É uma questão que só pode ser resolvida por um
estudo das conexões causais concretas na história, e não vemos porque o filósofo
deva ser considerado especialmente equipado para esse estudo. Ele poderia ser
feito com muito maior proveito, por um historiador prático e inteligente. Além
disso, não deve resultar na formação de uma verdade auto-evidente, mas de uma
hipótese empírica, a ser testada pela sua eficiência em lançar luzes sobre
situações históricas individuais. Na medida em que isso for verdade, o
desenvolvimento de uma teoria da interpretação histórica parece pertencer mais à
história em si do que à filosofia, tal como a determinação dos fatores causais
importantes no mundo material cabe às ciências e não à filosofia das ciências".
"... A contribuição de Marx para o entendimento da história, na verdade,, não
foi feita à filosofia da história propriamente dita. Mas a teoria marxista é de
interesse para o filósofo devido à importância que Marx parece atribuir ao seu
princípio fundamental A validade irrestrita, atribuída pelos marxistas a esse
principio é incoerente com a sua classificação como simples hipótese empírica
(embora não como fato de ter sido sugerida pela experiência); e a questão da
justificativa para considerar dessa forma o princípio certamente merece
cuidadosa atenção". (Walsh, 1978, pp. 26-27)
Sobre esse aspecto poderíamos lembrar uma consideração de Max Weber:
"Intencionalmente, deixou de ser demonstrada a nossa concepção no exemplo de
longe o mais importante de construções de tipo ideal: o de Marx [..]
Limitamo-nos a constatar aqui que todas as 'leis' e construções do
desenvolvimento histórico especificamente marxistas naturalmente possuem um
caráter de tipo ideal, na medida em que sejam teoricamente corretas. Quem quer
que tenha trabalhado com os conceitos marxistas, conhece a eminente e
inigualável importância heurística destes tipos ideais, quando utilizados para
os comparar com a realidade, mas conhece igualmente o seu perigo, logo que são
apresentados com validade empíríca ou até mesmo como tendências ou forças
ativas' reais (o que, na realidade, significa metafísicas). (Weber, Max, 1979,
pp. 118-119)
Será que Marx realmente tinha uma visão "essencialista" (para usar a
terminologia de Popper(7)) da História? Talvez o que nos leve a pensar assim são
as implicações políticas do pensamento de Marx. Ou melhor, sabemos que Marx
colocava sua reflexão teórica a serviço de uma "praxis" (veja-se a já citada XI
Tese sobre Feuerbach); Marx não elaborou sua obra preocupado em definir-se
enquanto filósofo, sociólogo, historiador, economista, antropólogo, ou qualquer
outra divisão profissional-acadêmica do trabalho intelectual. Aliás, vale a pena
lembrar sua famosa afirmação "Só conhecemos uma única ciência, a ciência da
história(8). Parece-nos que o que ele pretende significar com essa frase é a
unicidade do ser humano que deveria ser acompanhada por uma semelhante unicidade
do trabalho intelectual (a menos que se queira ver em Marx um defensor do
corporativismo dos historiadores...). Dado esse caráter do trabalho de Marx,
interessado - dentro da mentalidade típica do século XIX, de que a ciência era o
referencial objetivo para isso - em orientar cientificamente o proletariado em
sua luta político-social, parece que ele não estava muito preocupado em discutir
esses aspectos que hoje chamaríamos de metodológicos e epistemológicos.
Despreocupação reforçada pela vivência não acadêmica de Marx. Nisto poderíamos
confrontá-lo com Durkheim e Max Weber - os outros dois grandes pilares das
Ciências Sociais, em particular da Sociologia - que escreveram obras
metodológicas, quiçá pela razão de serem homens da Universidade.
Talvez possamos reforçar um pouco as afirmações acima lembrando pelo menos dois
autores marxistas (até mesmo para mostrar que essa condição de "marxista" não
leva necessariamente a uma leitura "bíblica", e mesmo "essencialista" de Marx)
em que esse caráter heurístico, ou não essencialista das interpretações de Marx
fica evidenciado. Lucien Goldman, em seu Ciências Humanas e Filosofia propõe:
"... a necessidade, ..., de um estudo sociológico das próprias ciências sociais
e, em termos mais precisos, de um estudo materialista e dialético do
materialismo dialético". (Goldmann, L., 1963, p. 36, grifos nossos)
E Georg Lukács, em seu História e Consciência de Classe, lembra: "... o marxismo
ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem crítica aos resultados da pesquisa
de Marx, não significa uma 'fé' numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro
'sagrado'. A ortodoxia em matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e
exclusivamente, ao método".(Lukács, G., 1974, p. 15; exceto a palavra "método"
grifada pelo autor, os outros grifos são nossos).
Então, essa é a questão: há uma filosofia da História em Marx? Na verdade há
também uma outra questão (ou uma maneira diferente de colocar a primeira): o
materialismo dialético comporta uma filosofia da História? Correndo o risco de
colocar uma questão pretenciosa, pensamos que teríamos de partir do seguinte: ao
escrever suas obras (Manuscritos Econômico-Filosóficos, Manifesto do Partido
Comunista, A Ideologia Alemã, A Miséria da Filosofia, O Capital, etc.) o que
pretendia Marx? Ou, de outro modo, qual a finalidade dessas obras? Se em algumas
delas - e aqui destacaria o Manifesto do Partido Comunista - o texto das mesmas
sugere o que se pode chamar uma "filosofia da história" na medida que configura
uma interpretação "total" da mesma, a captação de um "sentido" imanente à mesma,
a partir do qual não só se entende o passado e se orienta a ação presente
(particularmente do proletariado) mas se define (?) o próprio futuro - como que
uma escatologia - então, repetimos, se em algumas obras isso fica textualmente
sugerido, no entanto, ao se ler Marx, distinguindo-se o que tem uma finalidade
mais imediata - O Manifesto, de certa forma era um "panfleto" (talvez o
"panfleto dos panfletos" já aparecidos na história), encomendado pela Liga dos
Comunistas em função da situação política que vivia a Europa no final de 1847
(gerada pela grande crise econômica desse ano)(9) do método que permeava as
reflexões de Marx. Assim podemos perceber que nesse texto não era sua intenção
estabelecer uma "autêntica" filosofia da História - a la Hegel -. É provável
que, justamente aquela preocupação voltada para a ação prática desse ao(s)
texto(s) de Marx uma aparência de texto "bíblico", enquanto que, o que ele
realmente pretendia era dar ao proletariado uma convicção de que eles realizavam
uma luta que pertencia à história da humanidade há muito tempo.
Talvez pudéssemos aplicar a esse assunto a mesma observação que Engels fez, em
carta a Bloch, procurando mostrar que ele e Marx não eram defensores de um
determinismo econômico, no qual o fato econômico seria o único determinante da
história humana: "Se os mais jovens insistem, às vezes, mais do que devem, sobre
o aspecto econômico, a culpa em parte temos Marx, e eu mesmo. Face aos
adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles
negavam e nem sempre dispunhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar
a importância devida aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e das
reações. (...)". (Marx, K. - Engels, F., 1963, p. 286)
Não sabemos se aplicamos mal a analogia, mas se Marx (aqui, pela voz de Engels)
se recusa, a um determinismo econômico na história (em suma a um determinismo) o
que nos parece coerente com um raciocínio que se pretende dialético - ele também
não admitiria uma "chave" definitiva para a história toda. Essa determinação,
aliás, para Marx era uma característica do que ele denominava "pré-história da
sociedade humana"(10). Quando os homens ingressassem no "reino da liberdade"
quem sabe que fatores pesariam mais no processo histórico?
Vale lembrar uma observação feita por Marx, também em uma carta, endereçada a
Kugelman, em 1871: "... A história passaria a ter um caráter muito místico se os
'acasos' não desempenhassem nenhum papel. Como é natural, os acasos tomam parte
do curso geral do desenvolvimento e são compensados por outros acasos. Mas a
aceleração ou o retardamento do desenvolvimento dependem em grau considerável,
desses acasos, entre os quais figura o 'acaso' relativo ao caráter dos homens
que dirigem o movimento em sua fase inicial". (Marx, K. - Engels, F., 1963, p.
264)
Aproveitamos para anotar a análise de Karl Mannheim a respeito do "irracional" -
podemos considerar esta palavra com o mesmo sentido em que aparece a palavra
"acaso" no texto acima - no pensamento marxista. "A teoria socialista-comunista
constitui, assim, uma síntese do intuicionismo e de um desejo determinado de
compreender os fenômenos de uma maneira extremamente racional. O intuicionismo
aparece nesta teoria porque ela nega a possibilidade da avaliação exata de
acontecimentos antes de sua ocorrência. A tendência racionalista dela participa
porque vísa a ajustar a um esquema racional qualquer novidade que, a qualquer
momento, venha a aparecer. Em momento algum se permite agir sem teoria, mas a
teoria que surge no decorrer da ação será de nível diferente da teoría que a
precedeu. (..) O pensamento marxista se assemelha ao pensamento conservador no
fato de não negar a existência de uma esfera irracional e de não tentar
dissimulá-la como o faz a mentalidade burocrática, ou de tratá-la na forma
puramente intelectual, como se fosse racional, como fazem os pensadores
liberaldemocráticos. Distingue-se, contudo, do pensamento conservador, pelo fato
de conceber esta irracionalidade relativa como potencialmente compreensível
através de novos métodos de raciocínio". (Mannheim, K., 1968, pp. 153-154)
E ainda podemos acrescentar mais um posicionamento de Engels, relativo à
filosofia, que aparece em seu "Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica
alemã": "As considerações anteriores apenas pretendem ser um esboço geral da
interpretação marxista da história; (...) Sua comprovação deve ser feita à luz
da própria história, e cremos poder afirmar que essa prova já foi
suficientemente subministrada em outras obras. Esta interpretação põe fim à
filosofia no campo da história, exatamente da mesma forma que a concepção
dialética da natureza toma a filosofia da natureza tão desnecessária quanto
impossível. Agora, já não se trata de tirar do cérebro as conexões entre as
coisas, mas de descobrí-las nos próprios fatos. Expulsa da natureza e da
história, só resta à filosofia um único refúgio: o reino do pensamento puro, no
que ele ainda está de pé: a doutrina das leis do próprio processo do pensamento,
a lógica e a díalética". (Marx, K. Engels, F., 1963, p. 206)
Arriscamos dizer, depois deste último texto, que Engels se aproxima de algumas
correntes atuais (mesmo não marxistas) para as quais uma filosofia da história
só é válida enquanto trata das questões lógicas, metodológicas e epistemológicas
da análise histórica (11)
Bem, a argumentação acima talvez ajude a livrar Marx de ter elaborado uma
filosofia da história tradicional (especulativa, metafísica). Não esqueçamos a
observação de Weber, supracitada, apontando Marx como o "exemplo de longe o mais
importante de construções de tipo ideal". Nossa argumentação sugere que a
possível "essencialidade" presente nos textos de Marx seria fruto da finalidade
prática e política que visava quando de sua publicação; tratava-se de dar ao
proletariado um argumento de base histórica naquele momento. Agora, se Marx
concordaria com o "nominalismo" de Weber, já é outra questão. Penso que não, na
medida em que o fundamento (ontológico, epistemológico) de cada um é
radicalmente diferente: materialismo para um, idealismo para outro. É aqui,
aliás, que qualquer pretensão de conciliação entre Marx e Weber se inviabiliza.
Mas, ainda caberia a questão: Marx à parte, o materialismo dialético comporta
uma filosofia da história?
Na vertente "tradicional" ou "especulativa" parece-nos que não. O materialismo
dialético seria avesso a tentativas de especulação teleológica. Ou será que a
dialética admitiria uma perscrutação da matéria (como ser ontológico) que
captaria seu "sentido para a frente"? No que depende das ciências da natureza,
particularmente da física, enquanto instrumento que poderia realizar essa
perscrutação parece que o mais longe que se chegou foi ao "Princípio da
Indeterminação ou da Incerteza", de Werner Heisenberg. Assim, como poderíamos
perscrutar algo adiante?
A aplicação do materialismo dialético à história humana, ou seja, o materialismo
histórico, para que sua dialeticidade fique garantida, não poderia ir além da
captação de um sentido imanente ao próprio desenvolvimento da história da
humanidade como tem ocorrido até hoje. Aí, podemos nos perguntar: nesses termos,
(de nos apoiarmos no que a história nos mostrou até hoje), que "imanência" ela
nos revelou?
Se ficarmos apenas com os dois grandes pensadores já citados - Marx e Weber -
percebemos que suas respostas, no fundo, dependem menos do que a história nos
apresenta no seu fluxo humano concreto e muito mais de suas posições
filosóficas, que de certo modo (ou em grande parte? ou na sua totalidade?) não
dependem da própria história.
Parece que chegamos a um poço sem fundo. Ou a um círculo vicioso, difícil de ser
quebrado. Talvez em última instância tenhamos, mesmo, que fazer uma aposta...
PS.: Ao final este trabalho, cabe aventar uma resposta pessoal ao problema.
Penso que para interpretar a história, como ocorrida até aqui, Marx, realmente,
tem uma muito boa interpretação, principalmente se não nos deixarmos levar por
tendências economicistas (para isso o que apontamos no texto, através das
observações de Goldmann e Lukács, é fundamental).
Penso também que podemos ver a caminhada da história em termos análogos àqueles
da teoria evolucionista, na biologia: divergente, sem final preestabelecido,
caminhando sobre seus próprios passos, por assim dizer.
Mas confesso que as duas idéias que me fascinam - mais intuitivamente do que
racionalmente - são aquelas, já citadas - representadas pela epígrafe deste
trabalho (o texto de Herman Hesse) e a frase do poeta espanhol: "Caminante no
hay camino; se hace camino al andar".
Mas... "não posso esquecer um outro caminho: aquele dos teólogos da história.
Porém para aderir a ele, é necessária uma coisa que a racionalidade científica e
filosófica não podem dar e que no plano pessoal talvez não dependa de nós... a
fé.
BIBLIOGRAFIA
GOLDMANN, Lucien. Ciências Humanas e Filosofia. Que é a Sociologia? Trad. de
Lupe C. Garaude e J.A.Giannotti. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967.
HERÓDOTO. Los Nueve Libros de Ia Historia. Trad. del griego al castellano por
el P. Bartolomé Pou, s.j. Barcelona, Joaquín Gil, Editores, tomo I (a tradução
para o português que aparece no corpo deste trabalho, corre por minha conta),
1947.
LUKÁCS, Georg. 1974, História e Consciência de Classe. Estudos de Dialética
Marxista. Trad. de Teima Costa Porto, Publicações Escorpião, 1974.
MANNHEIN, Karl. Ideologia e Utopia. Trad. de Sérgio M. Santeiro. Rio de
Janeiro, Zahar Editores, 1968.
MARROU, H. I. Do Conhecimento Histórico. Trad. De Ruy Bello. Lisboa, Editorial
Aster, s/d.
MARX, K. Engels, F. Obras Escolhidas, vol. 3. Trad. de Leandro Konder e
Apolônio de Carvalho. Rio de Janeiro, Editorial Vitória, 1963.
WALSH, W. H. Introdução à Filosofia da História. Trad. por Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978.
WEBER, Max Weber: sociologia. Org. da coletânea: Gabriel Cohn. Trad. por
Amélia Cohn e Gabriel Cohn. São Paulo, Ática, Col. Grandes Cientistas Sociais,
13, 1979.




1. Não entraremos, aqui, na questão do diferenciamento entre "explicar" e
"compreender".
2. Ver Jacques Monod, O Acaso e a Necessidade, trad. de Bruno Palma e Pedro
Paulo de Sena Madureira, Petrópolis, RJ, Vozes, 1971. Para uma visão crítica a
Monod, ver Madeleine Barthelemy - Madaule, La Ideologia del Azar y de Ia
Necesidad, Barcelona, Barral Editores, 1974. E para uma análise mais
"equilibrada" dos mecanismos da evolução, ver George F. Simpson, O Significado
da Evolucão, trad. de Gioconda Mussolini, São Paulo, Pioneira, 1962, em que
destacaria a terceira parte do livro, "Evolução, Humanidade e Ética".
3. Usaremos o critério de remeter as referências bibliográficas das citações à
bibliogra-fia no final do texto, limitando-nos a citar o autor, o ano da obra
utilizada e o nº da(s) página(s) citada(s).
4. Sentido original da palavra grega "", de que originou-se "história".
5. Cf. W. H. Dray, Filosofia da História, trad. de Octannys S. da Mota e
Leônidas He-genberg, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969.
6. Como ilustração podemos ler o artigo, de 1936, de Lucien Febvre sobre o A
Studv of Historv, de Toynbee, que tem, já no título, o tom duro da avaliação
que virá a seguir: "Contra duas filosofias oportunistas da história: de
Spengler a Toynbee", e no qual o historiador inglês será chamado de "um novo
profeta" pelo historiador francês. Ver Lucien Febvre: História, organizador
(da coletânea) Carlos G. Mota, São Paulo, Atica, 1978, pp. 130-155.
7. V. Karl Popper, Autobiografia Intelectual, trad. de Leônidas Hegenberg e
Octanny S. da Motta. São Paulo, Cultrix, Ed. da USP, 1977.
8. Cf. na antologia organizada por Florestan Femandes, Karl Marx - F. Engels:
história, São Paulo, Ática, 1984, 2ª. ed., p. 184. É um texto de A Ideologia
Alemã, em trecho riscado do manuscrito de Marx.
9. É conhecido o fato de que Marx quase não o escreve, já que cansada com a
sua demora em entregar o texto, a Liga Comunista ameaçou encomendá-lo a outra
pessoa. Não foi àtoa que o texto acabou saindo "em cima" da hora, ou seja, no
eclodir da revolução de fevereiro de 1848, na França, que se alastrou, depois
por outros países europeus.
10. Esta expressão é usada por Marx no Prefácio de sua Para a Critica da
Economia Política.
11. É bom chamarmos a atenção para o seguinte: talvez levados pela dinâmica de
uma argumentação em que tentamos compreender o autor a partir de seus próprios
textos - no caso Marx (e Engels) - tenhamos 'exagerado' e isso dê a impressão
de total concordância com o pensamento desses autores, ou pelo menos, de não
percebermos possíveis inconsistências no mesmo; que isto seja ressalvado na
leitura deste trabalho.

Et Pilo sua Umbra Et Pilo sua Umbra... -
Inscrições em Relógios de Sol

Luiz Jean Lauand
(Prof. Assoc. FEUSP
"Ostendit similitudinem et dicit quod sol est
mensura et numerus horarum et dierum totius nostri
temporis, quod maxime mensuratur et numeratur
per motum solis".
(Tomás de Aquino In de Div. Nom. cp. 4, lc. 3)

Quem entenda a história como um saber essencialmente ligado à
compreensão, não menosprezará por princípio fontes "menores", que na
verdade podem ser decisivas para a captação do "outro", que se
manifesta - por vezes de modo único e especial - em formas
aparentemente irrelevantes como as inscrições em pára-choques de
caminhão no Brasil ou - em seu equivalente medieval e antigo - as
inscrições em relógios de sol. Aliás, é este precisamente o lembrete
de uma das mais legítimas representantes dessas inscrições: Et pilo
sua umbra, mesmo um fio de cabelo produz sua sombra.


Para a compreensão de outra cultura, distante da nossa no tempo
ou no espaço, não são importantes somente as grandes fontes, os
"grandes documentos", os autores de peso, mas também (e, por vezes,
principalmente) as grandes pistas que nos são dadas por fontes à
primeira vista sem maior importância, mas que freqüentemente são as
mais reveladoras da alma do povo.
Esta é a razão pela qual o Dictionnaire Robert de Proverbes et
Dictons, Nouv. ed., Paris, 1989, no capítulo dedicado ao Brasil,
contempla exclusivamente nosso "fait unique" das inscrições em
pára-choques de caminhões(1). Guardadas as devidas proporções (o
espírito lúdico e o senso religioso são características do Brasil e
da Idade Média, mas os relógios medievais tendem mais para este,
enquanto nossos caminhoneiros trabalham mais com aquele), talvez o
mesmo papel, a mesma "filosofia" popular, a mesma ingenuidade
brasileira sejam exercidas pelas inscrições nos relógios de sol.
Seja como for, a sentença curta, por vezes rimada ou ritmada,
incisiva, que faz pensar e transmite uma mensagem - freqüentemente
sobre o sentido do tempo e da eternidade, da contingência e da
efêmera condição humana - acompanham os relógios de sol em sua
silenciosa missão: o viandante que quer a hora deve meditar sobre a
sentença proposta. Algumas, como as de número 22 e 38, por exemplo,
evocam irresistivelmente o senso lúdico brasileiro.
Apresentamos, a seguir, uma seleção de cem dessas sentenças a
partir da coletânea - com mais de 1000 inscrições - de Jesus de la
Calle(2): http://www.sundials.co.uk/mottoesp.htm.



INSCRIÇÕES

1. Muito antes de se falar em fontes alternativas de energia(3), já
o relógio de sol apregoava:
A LUMINE MOTUS Movido a luz G05

2. A objetividade do tempo:
ABSQUE SOLE, ABSQUE USU Sem sol, sem hora G20

3. A vida eterna depende do bem agir neste momento (no dizer de
Macbeth: "In this shoal of time, we jump the life to come"):
AB HOC MOMENTO PENDET AETERNITAS Deste momento depende a eternidade
G14

4-5. O convite ao bom comportamento diante de Deus é reforçado pelo
fato de não sabermos qual será nossa última hora:
AB ULTIMA CAVE Cuidado na última hora G16
AB UNA PENDET AETERNITAS A eternidade depende de uma hora G18
6. A vida humana, como o ciclo do dia, tende à morte:
AD OCCASUM TENDIMUS OMNES Tendemos todos ao ocaso G22

7. O sol é a alegoria clássica para Cristo:
ADORA SOLEM QUI NON FACIT OCCASUM Adora o sol que não tem ocaso G514

8-10. Freqüentemente aponta-se para a dimensão subjetiva do tempo:
AFFLICTIS LENTAE CELERES GAUDENTIBUS HORAE Lentas as horas tristes,
rápidas as alegres G30
AMICIS AEQUA IBIT HORA Entre amigos não se sente o passar das horas
B472
AMICIS QUALIBET HORA Para os amigos, qualquer hora G43

11. O relógio louva a si mesmo, como distribuidor harmônico
(temperare) do tempo:
ARTE MIRA MORTALIUM TEMPERAT HORAS Um admirável aparelho organiza as
horas dos mortais G58
12. A prudente atenção ao presente requer a experiência do passado e
a previsão do futuro:
ASPICE, RESPICE, PROSPICE Veja, reveja, preveja G72

13. Celebração ao surgimento:
AURORA HORA AUREA Aurora (é a) hora áurea G80

14. O valor salvífico do tempo:
BREVES SUNT, SINT UTILES As horas são breves: que sejam úteis B672

15-17. Mensagens bíblicas e religiosas (referentes ao tempo, ao sol,
à sombra etc.) também são constantes:
CADENS SOL NON OCCIDAT SUPER IRACUNDIAM VESTRAM Não se ponha o sol
sobre a vossa ira (Ef. 4, 26) B371
CHRISTUS SOLUS MIHI SALUS Cristo é minha única salvação G124
COELI LUX NOSTRA DUX Do céu a luz nos conduz G132
18-19. Nos vazios da existência, Deus, silenciosamente, está
presente:
DEUS HABET HORAS ET MORAS Deus tem suas horas e suas pausas G187
DEUS MOVET, UMBRA DOCET Deus move a sombra que ensina G189, B245

20. A voz existencialista se faz presente, beirando o desespero:
DIES NOSTRI QUASI UMBRA SUPER TERRAM (I Cro 29, 15) Nossos dias na
terra são como uma sombra G209

21. O sutil indicador:
DIGITUS DEI DUCET ME O dedo de Deus me conduz G216

22. O lúdico:
DO, SI SOL Dou (a hora) se há sol G226

23. O salmo:
DOMINUS ILLUMINATIO MEA (Sl, 26.1) O Senhor é a minha luz G232
24. O pequeno:
ET PILO SUA UMBRA Mesmo um fio de cabelo tem sua sombra G283

25. Ainda o nihilismo humano:
EXPLEBO NUMERUM REDDARQUE TENEBRIS Completarei meu tempo e
retornarei às trevas G293

26. Ao contrário dos homens:
FALLERE NESCIO Não sei enganar

27. Murphy:
FELICIBUS BREVIS, MISERIS HORA LONGA A hora é curta para os felizes
e longa para os aflitos G301

28. O tempo em perspectiva humana, devorador:
FERT OMNIA AETAS O tempo tudo leva G305

29. O dístico beneditino:
FESTINA LENTE Apressa-te devagar G306,B711
30. O trocadilho:
FESTINA MOX NOX Apressa-te, logo será noite G307

31-32. Ainda o efêmero humano:
FORSITAN ULTIMA Talvez a (tua) última (hora)? G317
FORTE TUA Talvez a tua (hora)? G318,B774

33. O eterno no temporal:
FUGIT HORA, CARITAS MANET As horas vão, permanece o amor G332
34-35. Nada é permanente:
FUGIT HORA, VENIT HORA Hora vai, hora vem G340, B544
FUGIT, DUM ASPICIS Ela escapa enquanto a fitas G330

36. O conhecido provérbio:
HOMO PROPONIT DEUS DISPONIT O homem propõe e Deus dispõe G404

37. Ainda o subjetivo:
HORA BREVIS AMICI, LENTA ONEROSI Rápida é a hora com os amigos;
lenta, com os chatos G416,B473

38. O lúdico no trocadilho alusivo à resposta das ladaínhas "ora pro
nobis", "rogai por nós":
HORA PRO NOBIS Que a hora nos seja favorável

39. Em meio ao pessimismo da consideração da contingência humana, um
poema luminoso:
HORAS NON NOTO NISI LUCIDAS Não registro senão as horas luminosas
40. Vã é a busca do tempo perdido:
IRREPARABILE TEMPUS O tempo não volta G523

41. Conformismo:
ITA VITA Assim é a vida G529,B569

42. A plenitude da vida:
JUBILATE DEO Alegrai-vos em Deus G555

43-45. O trabalho na condição humana:
LABORA DUM LUCET Trabalha enquanto há luz G602
LABORARE EST ORARE Trabalhar é orar G603
LEX DEI LUX DIEI A lei de Deus é a luz do dia G647

46. Outro poema sintético:
LUCE LUCENTE RENASCOR Quando a luz brilhar, renascerei G671

47. Outra alusão religiosa:
LUCET OMNIBUS Ele brilha para todos G674
48-49. Como diz Pro 8, 30-31, a Sabedoria divina cria brincando:
LUDIMUS, INTEREA CELERI NOS LUDIMUR HORA Brincamos enquanto a hora
veloz brinca conosco
LUDUS LABORQUE COMPOSITA REPETANTUR HORA O brincar e o trabalho têm
sua hora adequada G675,B657

50. Inteligência - etimológica e realmente - é ler dentro (intus
legere):
LUMEN IN UMBRA, LUMEN AB INTUS O sentido desta sombra está na luz
interior (da inteligência)

51. Ainda a dialética luz/sombra:
LUMEN ME REGIT VOS UMBRA Eu sou governado pela luz; vocês, pela
sombra G680.

52. A luz do conhecimento faz-se acompanhar, para o homem, de
sombras e mistério:
LUX UMBRAM PRAEBET, MISTERIA AUTEM VERITAS A luz oferece a sombra; a
verdade, os mistérios
53. O valor do pequeno:
MAGNI MOMENTI MINUTIAE As coisas pequenas são de grande importância
G698

54. Emaús:
MANE NOBISCUM, DOMINE, QUONIAM ADVESPERASCIT Fica conosco, Senhor,
porque está anoitecendo (Lc 24,29) G708

55. O silêncio eloqüente:
MUTUS LOQUOR Falo, calado

56. O valor dos momentos:
NE ABUTERE Não a desaproveites G774,B708

57. Interdependência:
NE REGO NISI REGAR Não regulo, se não sou regulado G816
58. Outra versão do anseio de felicidade:
NON HORAS NUMERO NISI SERENAS Só conto as horas serenas G811.
59. Ainda o tesouro do tempo:
NOS EXIGUUM TEMPUS HABEMUS, SED MULTUM PERDIMUS Nosso tempo já é
pouco e ainda desperdiçamos tanto G824

60. Bem ou mal, a vida sempre ensina:
NULLA FLUAT CUIUS NON MEMINISSE VELIS Nenhuma (hora) passe que não
desejes recordar G846,B362

61-63. A fugacidade:
NUNC EST HERI CRASTINAE DIEI Agora é o ontem de amanhã
OMNIA FERT TEMPUS, OMNIA RAPIT TEMPUS O tempo tudo traz; o tempo
tudo leva
OMNIA SOMNIA Tudo é sonho G902

64. Sempre alerta:
OPTIMA FORTE TIBI Talvez a tua melhor (hora) G919

65. Uma rima com o lema beneditino:
ORA ET LABORA, SED HORA Reza e trabalha, mas na (devida) hora
66. Tal como o sol...:
ORIENTE ORIENS, CADENTE CADENS Nascendo no Oriente, acabando no
Ocidente G933

67. O repouso só é repouso em função do trabalho:
POST LABOREM REQUIES Depois do trabalho, o repouso B666

68-69. Evocando o Eclesiastes:
PRAETERITUM NIHIL, PRAESENS INSTABILE, FUTURUM INCERTUM O passado é
nada, o presente é instável, o futuro é incerto G990
PUNCTUM TEMPORIS OMNIS VITA A vida inteira é um ponto do tempo

70. A morte como consumação:
QUALIS VITA FINIS VITAE Tal é a vida, tal seu final

71-72. Outras sentenças bíblicas:
QUANDO CONSURGES E SOMNO TUO? (Pro. 6,9) Quando despertarás de teu
sono?
QUI MALE AGIT ODIT LUCEM (Jo, 3, 20) Quem faz o mal odeia a luz B207

73. Uma pitada de simpatia:
SALVE VIATOR, VIDE HORAM Salve, ó viandante, olha a hora

74. Religiosamente:
SEQUERE DEUM UT EGO SOLEM Segue a Deus como eu sigo o sol

75. Atrasou, dançou:
SERIO VENIENTIBUS OSSA Para os atrasados, os ossos

76. Sempre de novo a caducidade:
SIC LABERIS, NON IPSE SENTIS Assim declinas (como as horas) e não
reparas B595

77. O relógio, como o homem, anseia pela luz:
SINE NUBE TIBI QUAELIBET HORA FLUAT Que cada hora seja para ti sem
nuvens G605
78. Alguns registram enigmas:
SINE PEDE CURRO, SINE LINGUA DICO Não tenho pé e corro; não tenho
língua e falo

79. A fé como luz:
SINE SOLE EGO, TU SINE FIDE NIHIL POSSUMUS FACERE Eu sem sol e tu
sem fé, nada podemos fazer

80. Cristo, o sol:
SOL LUCET OMNIBUS O sol brilha para todos
81. A sombra como luz:
SOL ME VOS UMBRA REGIT Eu sou guiado pelo sol; tu, pela sombra B241

82-84. Jogos com "sol":
SOL SOLUS NON SOLI O sol é único, mas não para um só
SOL SOLUS SOLES SOLARI Só o sol sói consolar
SOLI SOLI Só ao sol

85. Para a mentalidade alegórica dos antigos o relógio é um modelo
da vida humana:
SPECULUM VITAE Sou o espelho da vida

86. As horas de cada um:
SUA CUIQUE HORA Cada um tem sua hora B942
87. Ainda os jogos com "sol":
SUM SI SOL SIT Sou se o sol está
88. Tarda mas não falta:
TARDA SAEPE SED CERTA VERITAS AC JUSTITIA VENIT A justiça e a
verdade freqüentemente tardam, mas não faltam B186

89. A luz sobrenatural:
TE REGAT ALIA LUX Que outra luz te guie B336

90. Jogo:
TEMPORA TEMPORE TEMPERA Oportunamente aproveita as épocas

91. Deus falando...:
TEMPORIS MEMOR MEI, TIBI POSUI MONITOREM Cuida de meu tempo, para
isto te dei este medidor

92. O reverso do tempo que passa:
TEMPUS AETERNITATEM EMIT Com o tempo se compra a eternidade B366

93. O tempo imagem da eternidade:
TEMPUS FUIT EST ET ERIT O tempo foi, é e será
94. O império do tempo:
TEMPUS RERUM IMPERATOR O tempo rege todas as coisas

95. O que passa e o que fica:
TRANSIT HORA, MANENT OPERA As horas passam, as obras ficam

96-99. O jogo luz/sombra como imagem da criatura que procede do Ser
a partir do nada:
UMBRA MONET UMBRAM A sombra avisa a sombra (que és tu)
UMBRA SUMUS Sombra somos B302
UMBRAE MULTAE, LUX EST UNICA As sombras são muitas; a luz, única
VIVENTIBUS LUMEN SOLIS. DORMIENTIBUS LUMEN DEI Para os que vivem, a
luz do sol; para os que dormem, a luz de Deus

100. Despertar para o sentido do que se faz:
VIVERE MEMENTO Lembra-te de viver B446




1- De fato, muito antes de entrar em vigor a moda - hoje em dia,
mundial - dos adesivos em camisetas ou veículos (desde propaganda
política aos "eu 'coração' tal cidade, passando por sentenças
humorísticas, piegas ou publicitárias), já os "irmãos da estrada"
apregoavam suas tiradas em mensagens bem-humoradas, "filosóficas",
eróticas ou religiosas, freqüentemente ligadas à própria condição
profissional (que, num país de dimensões continentais como o Brasil,
significa, em muitos casos, uma autêntica epopéia). A insegurança e
a solidão da viagem, o status de possuir um caminhão, a dureza do
trabalho e a ingenuidade da alma brasileira, que não teme se expor,
consubstanciaram-se em milhares de máximas como: "Em cada coração
uma saudade", "Dirigido por mim, guiado por Deus", "Ao invejoso dói
mais o sucesso alheio do que o próprio fracasso", "Pão de pobre
sempre cai com a manteiga para baixo", "Marido de mulher feia
detesta feriado", "Feliz foi Adão que não teve sogra nem caminhão",
"Se grito (buzina) resolvesse, porco não morria", "Em casa, alguém
reza por mim", "Carona, só de saia", "Sem caminhão, o Brasil pára",
"Se me vir abraçado com mulher feia, pode apartar que é briga", "Se
casamento fosse bom, não precisava de testemunha" etc.
2- Suas fontes principais são os clássicos: Boursier, C. 800 devises
de cadrans solaires, Paris, Berger-Levrault. (abreviado por B) e
Gatty, Arthur, Mrs: 1872: The Book of Sundials, London, Bell and
Daldy, 1872 (abreviado por G) e outras. Ilustrações extraídas de
CLOCKS and TIME Sundials by F. J. Britten
http://www.ubr.com/clocks/sundial/sunfg.html
3- Que, no Brasil, deu origem ao ambíguo dístico: "movido a álcool".





Guerra e Paz em Rousseau - Sobre o Projeto da Paz PerpétuaGuerra e Paz em
Rousseau -
Sobre o Projeto da Paz Perpétua

Maria Victoria de M. Benevides
(Faculdade de Educação da USP)

Democrata ou totalitário, revolucionário ou conservador, utópico ou realista
- tais antinomias marcam, com incômoda freqüência, a discussão sobre
Rousseau e sua obra. Na verdade, o filósofo (pedagogo, romancista, músico,
etnólogo, conselheiro político) franco-suíço tem sido mais julgado pelo uso
que é feito de seu pensamento do que propriamente pelo conteúdo de suas
idéias. A Rousseau se atribui, entre outras inconveniências, a paternidade
inglória de alguns dos "piores erros" dos séculos XVIII e XIX, do romantismo
em Literatura ao autoritarismo em Política.

Mais do que destemperos intelectuais ou justificativas ideológicas, essas
"provocações" revelam a dificuldade em se analisar, numa visão global, a
obra de Rousseau e sua herança. Inútil insistir, portanto, não ser este
nosso objetivo. O que se pretende é situar, em rápidas notas apenas
indicativas, algumas concepções de Rousseau ao constatar - e profetizar - a
banalidade trágica da constante oscilação dos Estados entre a guerra e a
paz.

Poucos são os escritos de Rousseau dedicados exclusivamente às condições de
paz na sociedade internacional, quer una ou fragmentada. O que desperta a
atenção é o entusiasmo quase ingênuo das proposições, paradoxalmente vizinho
à veemência das críticas e ao pessimismo inabalável de seus prognósticos.
Destaque-se, pela especificidade, a exposição e o julgamento dos projetos de
Abbé de Saint-Pierre.

De maneira difusa, tais idéias também se encontram nos Discours sur
l'Inegalité, nos textos sobre L'État de Guerre e certamente no Contrato
Social, sobretudo através das críticas às teses bélicas de Grotius,
Pufendorf e Hobbes.

Em que pesem as visíveis contradições (já se tornou comum apontar a
"inconseqüência" no discurso rousseauniano, da teoria à ação), o pensamento
de Rousseau, no campo específico das questões sobre o conflito mundial,
revela momentos inequívocos de uma certa ideologia e de uma prática
possível, ou pelo menos desejável.

É bem verdade que o dizer e o fazer equilibram-se mal em termos de propostas
concretas e factíveis; estas se expressam, teoricamente, na linguagem que
oscila da admiração moral - embora cética e crítica - aos projetos de paz
perpétua de Saint-Pierre e Kant e a contestação, radical, da tese da "guerra
de todos contra todos" de Hobbes. Mas a crítica freqüente que aponta, de
saída, as contradições e o idealismo das propostas políticas de Rousseau,
embora pertinente, peca pelo imediatismo estéril; destrói a raiz das idéias,
empobrece a análise.

Se o clássico desacordo entre moral e política é assumido por Rousseau como
mito ou verdade pouco importa. Dê-se curso à discussão, à leitura. Há que
surgir, incompletamente que seja, a passagem da teoria à prática, do ideal à
tática. Com razão ou emoção, utopia romântica ou realismo pessimista,
impõe-se um certo fascínio nas propostas de Rousseau: simultaneamente
sedutoras, pela defesa do homem pacífico na natureza, e inquietantes, pela
acusação do homem bélico na sociedade. Há que perceber, numa análise que
foge aos limites destas notas, de que maneira - e se - coexistem no Rousseau
daqueles textos o Direito das Gentes e um possível embrião do Direito
Internacional. Ou em que medida se dá a passagem da vontade geral à vontade
universal, da circunstância à norma, da barbárie ao Direito.

Rousseau e os projetos do Abbé de Saint-Pierre

A Paix Perpétuelle do Abbé de Saint-Pierre (1658-1743) foi originalmente
publicada em 1712, ano da Paz de Utrecht, e seu Discours sur la Polysynodie
em 1719, durante a Regência após a morte de Luís XIV. Re-escritos por
Rousseau em 1756, sob a forma de Extraits, dele mereceram minuciosas
críticas (os Jugements, publicados somente em 1782) sendo respeitados, no
entanto, pela denúncia, partilhada, do absurdo imoral das guerras e dos
males de um Estado forte e centralizado. Os projetos de Saint-Pierre
iluminariam, sem dúvida, a teoria de Rousseau sobre a Federação assim como a
tese de Kant sobre a Liga Mundial para a paz.

O projeto de paz perpétua de Saint-Pierre parte de uma visão histórica
bastante cética quanto às possibilidade de "fraternidade" entre os povos
europeus, apesar de reconhecer os laços profundos que os unem contra o
exterior, a "barbárie".

Essas ligações seriam, na realidade, fonte de funestas divisões; a política
dos tratados (tréguas passageiras!) é sábia no papel, porém dura e cruel na
prática. Mas essa união imperfeita é ainda melhor do que a desunião tout
court; as imperfeições do meio social trazem em si, dialeticamente, os
gérmens da perfeição.

Trata-se, portanto, de transformar em paz perpétua um estado de guerra
latente. Inexistindo um Direito Público comum à Europa, valerá sempre o
direito do mais forte. Para uma união sólida e duradoura Saint-Pierre propõe
a confederação dos príncipes europeus baseada na interdependência de seus
membros. Deslumbra-se Saint-Pierre com a imagem de uma fortaleza européia
contra toda e qualquer cobiça bárbara; substitui, como uma projeção da
tentação capitalista, a arte da guerra pela arte do comércio. E, na sua
visão ao mesmo tempo idealista e utilitária, a paz seria função da
"sabedoria decorrente da lógica dos interesses de todos".

A proposta concreta de Saint-Pierre prevê a criação de Conselhos
Deliberativos Permanentes - o Polisínodo - como a formação mais natural,
justa e útil para um governo pluralista com vistas à paz perpétua. O Rei
precisa de ministros? Componha-se, então, um governo misto, monárquico na
decisão, republicano na deliberação. A virtude democrática dos Conselhos
estaria assegurada pela composição através do voto, do sistema de mérito, da
rotatividade no comando. Revolucionário para a época, ou apenas ridículo
para o cinismo dos poderosos, Saint-Pierre não considerava quimérico o seu
projeto, mas essencialmente lógico, pois dependeria de uma feliz combinação
entre a vontade do soberano e a consciência de seus reais interesses. Assim,
sua não-adoção revelaria a insensatez dos homens, e não a inviabilidade do
projeto. Quase resignado, Saint-Pierre se compraz no aforismo de que é uma
espécie de loucura ser sensato entre os loucos.

Implacável será a crítica de Rousseau, embora generosa às virtudes do sábio.
Prevalece seu pessimismo radical ao insistir na tendência natural das
monarquias para as aristocracias e destas para os governos despóticos e
corruptos. A ambição - não necessariamente fértil, como supunha Saint-Pierre
- dos soberanos será sempre dupla: expandir sua força externa ao mesmo tempo
em que torna mais absoluta sua dominação interna.

Quanto à possível vigência de um Polisínodo, indaga Rousseau como
subordinar, na prática, o Executivo ao Legislativo, como supor, em todas as
cabeças, a sabedoria que consolidaria o consenso? Ressalta, igualmente, a
precariedade dos benefícios advindos da "arte do comércio", pois quando as
vantagens tornam-se comuns a todos, a ninguém se apresentam como reais.
Conclui Rousseau que o Polisínodo seria o pior dos Ministérios, pois
propiciaria abusos em nome do bem público: a força de ser bom senador,
torna-se mau cidadão!(1) Parece evidente a denúncia à perspectiva do
pré-burguês, aristocrático, oligárquico.

A leitura isolada de um e de outro pode oferece a imagem de projeções
igualmente idílicas (ou maniqueístas) sobre o bem e o mal. Mas ao se aceitar
a crítica de Rousseau a Saint-Pierre há que assinalar, tam-bém, uma
diferença essencial entre ambos: Saint-Pierre situa a possibilidade de paz
no plano das relações internacionais, considerando os Estados como entidades
abstratas, no sentido de independentes de sua estrutura interna; para
Rousseau, ao contrário, as relações entre os Estados vão depender, sempre,
da forma como o poder é exercido dentro de cada Estado.

Assim resgata Rousseau o conceito de soberania interna como condição sine
qua non para a paz externa. Estaria aí, talvez, a nota mais pessimista que
prevê a correspondência de uma política de guerras e conquistas, no plano
externo, ao progresso do despotismo, no plano interno. Comprove-se: ..."d'un
coté la guerre et les conquêtes, et de l'autre le progrès du despotisme,
s'entraident mutuellement... les princes conquérants font autant la guerre à
leurs sujets qu'à leurs ennemis..."(2). Expansão e tirania, eis aí os dois
processos em alimentação recíproca, em intensidades paralelas. Estaria aí,
também, a raiz da corrente jacobina da política externa, cujo maior
representante será Lenin: o imperialismo que denunciará apresenta-se como
conseqüência da armadura interna do país e, principalmente, da atuação de
suas classes.

Rousseau, Hobbes e Kant

De maneira inequívoca situa-se Rousseau como antítese de Hobbes e do Estado
absolutista. Observador de guerras civis, Hobbes percebe na criação de um
Estado forte e centralizado o recurso extremo de proteção e defesa da
sociedade contra a inexorável catástrofe da guerra de todos contra todos.

No modelo hobbesiano a luta competitiva é a norma, num quadro de referência
que se queria de lei e de ordem, mas onde tudo deriva da concentração de
poderes. A igualdade de todos decorre, num paradoxo apenas aparente, da
insegurança comum. O equilíbrio dos poderes, defendido por Hume, é
substituído pelo poder hegemônico que garante a estabilidade necessária à
paz. O perigo do despotismo, para Hobbes, é ainda um mal infinitamente menor
do que "o reino da força e da fraude, do lobo e da serpente, que tornara
insuportável a vida do homem no estado da natureza"(3).

Para Rousseau, ao contrário de Hobbes, a guerra não é inerente à natureza do
homem, mas conseqüência da vida em sociedade, que aguça a competição e
conduz ao conflito. A criação de um Estado, portanto, não reduzirá as
tensões ou a violência beligerante; um Estado forte ameaçará a paz pela
compulsão da conquista, um fraco tornar-se-á tentação para a cobiça
alheia...(4).

Assim, o equilíbrio não será automático, mas difícil, laborioso. A
interdependência econômica, supostamente garantia de paz, terminará por
gerar mais tensões do que entendimentos. E das alianças, do excesso de
proteção, não nascerá a paz, mas a guerra.

Na oposição Hobbes-Rousseau dois pontos merecem especial atenção:

O primeiro diz respeito à impotência de uma "vontade geral" frente às
desigualdades inevitáveis entre sociedades diversas e a expansão ilimitada
do Estado. Lembre-se que a vontade geral de Rousseau só é geral, na
realidade, para uma determinada sociedade, mas é particular para as demais.
A passagem da vontade geral - que não é a soma das vontades individuais, não
se confunde com a vontade coletiva - para uma vontade universal não pode
deixar de levar em conta as desigualdades inerentes à própria desigualdade
nos poderes, entre os Estados. As alianças e os tratados, se não as
aprofundam, pelo menos as perpetuam.

Quanto ao segundo ponto, trata-se do problema da ausência de auto-controle
no interior dos Estados, e de seus princípios expansionistas. O Estado não é
um ser natural, com limites próprios e definidos, mas um ente
artificialmente "construído", que tende a aumentar e multiplicar seus
controles e poderes (raiz da tentação totalitária?), tornando-se,
efetivamente, o temível Leviatã. Essa tendência gera, inevitavelmente, a
rivalidade entre os Estados que, em nome da segurança e da conservação,
crescerão sem cessar, às custas, inclusive, dos Estados vizinhos. Rousseau
contesta, portanto, "l'odieux tableau" pintado por Hobbes da guerra de todos
contra todos; pois não existiria guerra entre indivíduos, mas entre Estados,
a guerra de potência a potência(5).

Contra um certo "amoralismo político" de Hobbes erguem-se Rousseau e Kant,
pois para ambos a guerra é, acima de tudo, absurdamente imoral.

Mas para Kant, ao contrário de Rousseau, a luta entre o egoísmo e a moral é
uma constante na própria natureza do homem, e não uma conseqüência da vida
em sociedade. Esta seria a salvação do homem, a condição de seu progresso
moral, e não causa de sua queda. Assim, para Kant, de nada adiantaria
construir uma sociedade "perfeita", um Estado "ideal", se o homem permanece
intrinsecamente egoísta e então, propenso ao conflito pela competição.

No nível intersocietal essa patologia poderia ser sanada pelas virtudes da
interdependência, que consolidaria a união em torno de interesses comuns de
proteção, defesa e, principalmente, comércio.

Kant recupera a "arte do comércio", sugerida por Saint-Pierre em
substituição à arte guerreira e propõe a criação de uma Liga Mundial,
alicerçada na interdependência natural, necessária, benéfica. Um governo
mundial seria, portanto, um imperativo moral para os objetivos da paz
perpétua, de certo modo o "destino manifesto" da sociedade internacional.

Rousseau renega esse "traço burguês" da perspectiva do comércio como
linguagem de paz(6), surpreendentemente presente nas propostas de
Saint-Pierre a Kant. Considera a interdependência econômica nefasta e sequer
admite-a como um "mal necessário", como uma contingência histórica, mas
sempre como uma fatalidade. Isso porque interdependência engendra
dependência e esta só agravará as tensões entre as sociedades ao destacar,
inevitavelmente, as desigualdades de ordem natural e física (recursos) e de
ordem moral e política (comandos, normas e valores). Rousseau duvida da
inocência de um governo mundial como a expressão de um ideal democrático
voltado para a paz.

Caso existisse, tal governo se tornaria, rapidamente, a manifestação
insofismável de uma vontade imposta - obviamente a do mais forte. Numa
projeção futurística, como sugere Hoffmann, esta vontade seria, também, a
vontade dos tecnocratas, os verdadeiros executivos numa situação de vazio
político(7).

À interdependência de Kant opõe-se o isolamento de Rousseau. Ambas utópicas,
a sociedade ideal para Rousseau seria fechada e para Kant tão aberta quanto
possível. Uma supõe a coexistência no isolamento, outra a cooperação no
engajamento. Em outros termos, seria a passagem da norma negativa de
abstenção à norma positiva de participação. Mas Rousseau percebe, também,
que a própria constituição de uma sociedade através do contrato social
engendrará, necessariamente, novas sociedades. Impossível, pois, a abstenção
total, o isolamento romântico.

É a partir dessa constatação que se coloca a exigência do consenso para
consolidar um possível Direito Internacional como garantia de paz. Esse
consenso só seria válido e útil se decorrer da consciência que cada Estado
tiver da necessidade e conveniência em acatar normas comuns, referentes a
interesses comuns. Este ponto remete diretamente às propostas concretas de
Rousseau.

Rousseau e o ideal grego redivivo: a federação de pequenos Estados

O polisínodo é inviável, o Estado absolutista um monstro, a Liga Mundial uma
utopia. O retorno ao estado perfeito da natureza, impossível. E então, diria
Rousseau, já que o homem é fadado a viver em sociedade, que o seja em
sociedades pequenas e democráticas. Ou, pelo menos, tão pequenas e
democráticas quanto possível. Essa medida do possível seria dada, para cada
sociedade, pela feliz combinação entre soberania - frente às demais
sociedades - e legitimidade de comando, frente a seus próprios cidadãos.

A proposta de Rousseau consiste na formação de uma federação de pequenos
Estados com fins lucrativos, isto é, uma união de Estados cada qual soberano
internamente, mas armado, em conjunto, contra a agressão externa.

Trata-se, na realidade, de uma confederação, cujos laços são mais fracos que
os de um Estado hobbesiano e mais fortes que um Tratado ou uma Aliança.
Inspira-se Rousseau nos exemplos da Liga Aquéia, na União de Cantões Suíços
da sua época e na América de Tocqueville. Insiste na soberania e no ideal
grego da primazia política interna e propõe a extensão, às diversas
sociedades, dos direitos que o Contrato Social já legara ao indivíduo,
contra a tirania dos grandes Estados com tendências hegemônicas. O conflito
não seria definitivamente aniquilado, mas as tensões sensivelmente
reduzidas.

O Estado ideal de Rousseau será, portanto, pequeno (um território muito
grande diminuiria as possibilidades de autonomia real) e governado por uma
vontade geral, indivisível(8). Este Estado é definido, na linha de
Montesquieu, como uma união de forças e de vontade, que consolidaria a
vontade geral, consensual. A submissão recíproca entre os Estados se
expressaria num pacto de associação, e não de sujeição. Vale lembrar, aqui,
que tão violento quanto o ataque a Hobbes é a recusa de Rousseau em aceitar
os postulados de Grotius sobre os direitos de paz e guerra. Além da crítica
feroz aos métodos de trabalho de Grotius - "un sophiste payé" - Rousseau
acusa a imoralidade na justificação do despotismo através dos pretensos
direitos de conquista e de dominação. À alegada legitimidade de um pacto de
sujeição, análogo à alienação dos direitos individuais pela relação
senhor-escravo, Rousseau opõe o pacto social, este desejado e legítimo, do
Contrato Social. Esta análise sugere, então, o surgimento da noção de
reciprocidade, pela qual as partes descobrem o interesse em acatar uma
determinada norma, comum a todos. Não mais a obrigação, pela força, mas a
persuasão, pela convicção e partilha dos mesmos valores. Daí a passagem
(possível ou apenas utópica?) do Direito das Gentes para um Direito
Internacional - e aqui não seria mais um Direito Internacional de
Coexistência, mas o Direito Internacional de Cooperação, essencialmente
baseado no consenso(9)

Diante desta modelar confederação impõe-se a questão de saber como trancher
entre dois direitos, ou seja, até onde se estendem os direitos da federação,
em conjunto, sem infringir os direitos da soberania interna. Em caso de
guerra civil, por exemplo, até que ponto a mediação exercida por outro
Estado não engendraria funesta submissão, marcando uma inferioridade e um
golpe fatal na soberania? Por outro lado, recusar a intervenção, correndo o
risco de submeter-se a um jogo interno ilegítimo, não seria a escolha
absurda entre a tirania, porem doméstica, e a justiça, imposta de fora? Como
sugere Vaughan, o ideal, na visão de Rousseau, seria a conjugação da
potência externa de uma grande nação com a política disciplinada e saudável
de um pequeno Estado: "tranquille au dedans, redoutable au déhors"!(10)

O ideal dos pequenos Estados revelou-se uma causa perdida. Simplesmente não
vingaram. No curso da História não sobreviveram, de qualquer modo, ao
impacto da Revolução Industrial, que levou à expansão das fronteiras e à
interdependência econômica, e ao fortalecimento dos nacionalismos que
acirrou os conflitos externos. As antigas confederações (germânica e suíça)
que, de certa forma, teriam realizado o ideal de Rousseau, transformaram-se
em fortes Estados, assim como as nações expandiram-se em poderosos impérios.
Os Estados ideais de Rousseau são ideais mesmo; se existissem não poderiam,
manter a virtú a não ser isolados. E o isolamento contraria a tendência
irreversível do desenvolvimento econômico, do "vigor burguês".

De duas, uma: a proposta de Rousseau é utópica porque percebe a
possibilidade de paz apenas num mundo ideal, logo inexistente, no qual a
norma geral não seria desejável nem mesmo necessária, ou porque, ao situá-la
num mundo real, constata a inexistência de uma ordem justa que garanta as
condições de paz duradoura. A experiência histórica mostra que as
desigualdades entre as nações tendem a aumentar, e não a se dissolverem: a
desigualdade estimula o conflito e o apetite hegemônico que se revigora,
hipocritamente, nos preparativos para a paz. Daí o aparente paradoxo de que
a guerra nasce da paz.

Uma consideração final: em relação a Grotius, Rousseau teria inovado ao
situar o estado de guerra sempre entre Estados, e não entre indivíduos. No
entanto, como lembra Hoffmann, se o Estado é a expressão da vontade geral -
e não o braço armado do príncipe, do tirano - a guerra entre os Estados
seria, também, uma guerra entre populações, entre homens. Nesta mesma linha
Rousseau opõe-se aos "cosmopolitismos" admitindo a associação de governos,
mas não de povos. Mantinha-se, porém, eqüidistante no revide às teses
cosmopolitas e nacionalistas, embora no seu papel de conselheiro político
tenha enfatizado, para os Corsos e para os Poloneses, o "orgulho nacional"
como o verdadeiro motor da vontade geral. Aí defendia, ao invés da potência
nacional agressiva, o culto às virtudes cívicas, a paidéia patriótica.

Rousseau não chega, parece claro, a apontar soluções concretas para a
ordenação do "caos internacional". Suas proposições, na realidade, revelam a
inviabilidade de um meio internacional pacífico, pois predominará, sempre, a
lei do mais forte, a lógica da força. Permanece Rousseau dividido em sua
dicotomia básica: a fé inabalável na bondade natural do homem e o pessimismo
radical quanto à vigência de uma sociedade justa.

Mas o pessimismo diante da teia sufocante e insofismavelmente presente dos
poderosos não esconde uma vocação totalitária. A leitura de Rousseau para
fundamentar a impossibilidade de um regime democrático, para ressaltar a
força contra o Direito, é uma provocação recusada na fonte. Em nome do
Rousseau do Contrato Social, do consenso, da legitimidade, da democracia.




1. "Jugement sur la Polysynodie", in C. E. Vaughan (ed.): Jean Jacques
Rousseau - The Political Writings, vol. I, p. 422.
2. Rosseau - "Jugement sur la Paix Perpétuelle", The Political Writings,
vol. I, p. 390.
3. Rousseau - "L'État de Guerre", The Political Writings, vol. I, pp. 287-8.
É interessante lembrar que o título original deste texto, escrito
provavelmente entre 1753 e 1755, era "Que l'état de guerre nait de l'état
social".
4. Stanley Hoffmann - "Rousseau, la guerre et la paix", in Rousseau et la
Philosophie Politique, vários autores, Paris: PUF, pp. 206-08.
5. Rousseau - "L'État de Guerre", ed. cit. pp. 293-299.
6. Lembre-se, no discurso do "Kennedy round" que deixou herdeiros, as
propostas de consolidação da paz mundial através dos laços de dependência
comercial.
7. Hoffmann, citada, pp. 235-8.
8. Rousseau - "L'État de Guerre", ed. citada, p. 299.
9. Sobre Rousseau e Grotius ver, de Robert Derathé: J.J. Rousseau et la
Science Politique de son Temps. Paris: PUF, 1950, pp. 71-78.
10. C. E. Vaughan - citada, p. 100, n.p.p. nº 2.

Luz Inabarcável - o Elemento Negativo na Filosofia de Tomás de AquinoLuz
Inabarcável
- o Elemento Negativo na
Filosofia de Tomás de Aquino

Josef Pieper*
Trad.: Gabriele Greggersen
"Nome que pode ser proferido, não é nome eterno"

1. Apreender o não-dito.
Sobre o que é evidente, não se fala; o que de per si se entende,
goes without saying: não requer que se gaste uma só palavra. Resta a questão
de saber em que, precisamente, consista isto "que de per si se entende" e
que pode, assim, permanecer não-expresso.
Nesse, por assim dizer, inofensivo fenômeno (que não deixa de
ser, também ele, de per si evidente) reside uma peculiar dificuldade (aliás,
a máxima dificuldade) inerente a toda interpretação de textos. E ela ocorre
na medida em que, na mensagem a ser interpretada, permaneça não-expresso -
precisamente por causa de sua evidência - aquilo que, para o intérprete, não
é, de forma alguma, evidente. Daí que não lhe seja possível compartilhar de
modo tão natural e imediato a apreensão de tais "evidências". E isto
significa que, além do mais, para o intérprete, mesmo aquilo que, de fato,
ele captou, teve seu timbre alterado.
Na interpretação de um texto, especialmente quando provém de
cultura e época estranhas para nós, o que é essencialmente decisivo - e, ao
mesmo tempo, também o mais difícil - é precisamente isto: apreender as
evidências fundamentais que, de modo não-expresso, permeiam o texto;
descobrir a clave oculta, subjacente àquilo que está expressamente dito.
Poder-se-ia até afirmar que a doutrina de um pensador seja
precisamente o "não-dito no dito"; é Heidegger quem introduz com estas
palavras, a sua interpretação pessoal de um texto platônico[1]. Ainda que
esta possa parecer uma afirmação bastante exagerada, está claro que uma
interpretação que não alcance o "não-dito no dito" de um texto,
necessariamente permanecerá, no fundo, simplesmente inapropriada, mesmo que,
de resto, o literalmente dito esteja formulado do modo mais erudito (o que
quase piora a situação ainda mais!).
Como então, em vista disto, ser-nos-ia possível seguir a pista
de tais convicções não-expressas e, portanto, sequer formuladas no texto?
Existem aí, creio eu, algumas possibilidades de decifração. Uma
delas, cuja eficácia tenho constatado freqüentemente, é certamente a
seguinte: o não-dito manifesta-se, não raro, como por entre uma "brecha",
como que através de uma "fenda" na estrutura - revelando-se por "saltos
bruscos" no fluxo de encadeamento das idéias, uma espécie de inconseqüência
argumentativa (ou que, pelo menos, assim o pareça a nós, intérpretes,
habituados a outras evidências: as nossas, também elas não somente
não-expressas, mas, nem sequer formalmente pensadas como evidências, tão
habituados estamos a elas...). Daí que o decisivamente importante seja isto:
cuidar ao máximo para manter uma dose suficiente de vigilante admiração, à
espreita de tais aparentes "incoerências".
Sobre um caso concreto desse tipo é que nos ocuparemos a seguir.
2. A clave oculta da "Criação".
Tomemos o caso da filosofia de Tomás de Aquino. Nela, há um
pensamento fundamental, a partir do qual se determinam praticamente todos os
elementos estruturadores de sua visão-de-mundo: o conceito de Criação. Ou,
mais precisamente, o conceito de que não há nada que não seja creatura, a
não ser o próprio Creator. E: que a "criaturalidade" (kreaturlichkeit)
determina toda a estrutura interna da creatura.
É impossível compreender, por exemplo, o "aristotelismo" de
Tomás de Aquino (aristotelismo: este é um termo extremamente questionável,
que só pode ser empregado com restrições!); não se compreende, dizia,
simplesmente nada do verdadeiro e mais profundo sentido deste voltar-se de
Tomás para Aristóteles, se não o entendermos a partir desse conceito
fundamental, levado às suas últimas conseqüências, segundo o qual todas as
coisas são creatura - não somente a alma e o espírito, mas todas as coisas
pertencentes à realidade do mundo visível.
Por outro lado, parece bastante plausível (e sequer digno de
menção especial), ou, pelo menos, nada surpreendente, que no pensamento de
um teólogo medieval, o conceito de Criação represente também o centro de sua
visão-de-mundo filosófica. O que, provavelmente, poderia causar espanto,
seria podermos estar, no caso, diante de um pressuposto não-expresso, de uma
opinião não-explicitamente formulada, que só pudesse ser lida, por assim
dizer, "nas entrelinhas". Pois, não se supõe, antes, ter Tomás desenvolvido
uma detalhada e expressa doutrina da Criação?
Certamente, isto é verdadeiro e amplamente sabido. Entretanto,
não deixa de ser verdade também o fato (muito pouco conhecido), de que o
conceito de Criação determina e perpassa a estrutura interna de praticamente
todos os conceitos fundamentais da doutrina filosófica do ser em Tomás de
Aquino. E tal fato não é evidente; mal o encontramos expressamente
formulado; pertence ao não-dito da doutrina do ser de Tomás de Aquino.
Este elemento basilar pôde permanecer tão despercebido, que
mesmo a explicitação - se assim o podemos dizer - "escolar" do tomismo
sequer chega a tocar no assunto . Certamente esses epígonos escolares de
Tomás são em grande parte condicionados pela filosofia iluminista[2]: o que
se revela antes de tudo, precisamente por essa omissão, que fatalmente
acabaria por levar (e levou de fato) a sucessivos equívocos de
interpretação.
Há equívocos, por exemplo, na interpretação do sentido de
sentenças como: "todo ser é bom", ou "todo ser é verdadeiro" - haverá
equívocos, portanto, creio eu, precisamente nos assim chamados conceitos
"transcendentais" (no sentido antigo), se não reconhecermos que tais
afirmações e conceitos não se referem em absoluto ao ser neutro, no sentido,
digamos, de uma mera "presença", um ens ut sic; não se referem a um mundo de
"objetos" sem rosto, mas remetem formalmente ao ser enquanto creatura.
Que as coisas são boas pelo simples fato de serem, e que esta
bondade é idêntica ao ser das coisas, e não, por assim dizer, alguma
propriedade a ser-lhes meramente acrescentada significa ainda que a palavra
"verdadeiro" é também um autêntico sinônimo para "ente". Portanto, o ente
enquanto ente é que é verdadeiro.
Não se trata, pois, de, por assim dizer, "primeiro" dar-se o
ser, para, "depois", "além disso", o ser verdadeiro.
Tais reflexões - que, sem dúvida, fazem parte do patrimônio
fundamental da doutrina clássica ocidental do ser, e que encontraram,
precisamente em Tomás, uma formulação genial - tais reflexões, se não
partirem do ser das coisas, formalmente entendidas como creatura,
simplesmente perdem todo o seu sal. Tornam-se insossas, estéreis,
tautológicas: precisamente por essa razão é que, de fato, o esvaziamento foi
o destino de todas aquelas fórmulas - a ponto de Kant, tê-las legítima e
definitivamente afastado do vocabulário filosófico em um famoso parágrafo de
sua Crítica à razão pura[3].
Com isto atingimos nosso tema: a doutrina da verdade de Tomás de
Aquino só pode ser determinada em sua significação própria e mais profunda,
se, formalmente, colocarmos em jogo o conceito de Criação. E é precisamente
ao enlace do conceito de verdade com o "elemento negativo" de
incognoscibilidade e de mistério, que pretendemos dedicar-nos aqui. Tal
relação torna-se visível, precisamente se tomarmos por base a idéia de que
tudo o que pode ser objeto de conhecimento humano, ou é creatura, ou é
Creator.
Observemos, porém, o seguinte: isto talvez signifique que a
doutrina da verdade de Tomás de Aquino não seja, essencialmente, uma
doutrina "puramente filosófica" (mas sim, filosófico-teológica); esta
questão poderá permanecer em aberto por ora; a resposta dependerá disto: se
se considera o conceito de creatio um conceito filosófico ou teológico.
3. Verdade como ser-pensado.
Naturalmente, seria aqui impossível uma exposição da doutrina da
verdade de Tomás de Aquino em toda a sua extensão. E, além do mais, ela não
é requerida para que fique claro o tema que estamos enfocando.
Nossa exposição limita-se, basicamente, ao conceito de verdade
quanto às coisas-do-mundo, à veritas rerum, à verdade "ontológica" - em
contraposição ao que se costuma definir como verdade "lógica" ou
epistemológica. Todavia, uma total dissociação desses dois conceitos de
verdade, como contrapostos, também não seria inteiramente acertada; em
Tomás, tais conceitos estão imediata e profundamente relacionados.
Por exemplo, Tomás concordaria em termos, quanto àquela objeção
comum aos tempos modernos, continuamente reafirmada de Bacon a Kant: não se
pode chamar de verdadeira a realidade, mas, no sentido rigoroso e estrito,
apenas o pensado.
Retrucaria ele que, sim, é plenamente oportuno considerar que
somente o pensado pode chamar-se, em sentido estrito, "verdadeiro"; mas: as
coisas reais são, de fato, algo pensado!
O serem pensadas é muito essencial às coisas, prosseguiria
Tomás; elas são reais por serem pensadas. É preciso, naturalmente, ser mais
exato: elas são reais pelo fato de serem criadoramente pensadas, isto é, por
"serem-pensadas".
As coisas têm a sua essência por "serem-pensadas": isto deve ser
entendido de modo extremamente literal, e não, em algum sentido meramente
"figurado". E, assim, porque as próprias coisas são pensamentos e possuem,
portanto, um "caráter verbal" (como diz Guardini)[4], por esta mesma razão é
que elas podem, no mais preciso sentido do uso corrente, serem chamadas
"verdadeiras" - do mesmo modo que o pensamento e o pensado.
Ao que parece, Tomás nem ao menos conseguiu dissociar estas duas
idéias: a de que as coisas possuem um "quê", uma qüididade, um determinado
conteúdo essencial e a de que esta qüididade das coisas é fruto de um
pensamento projetador, pensante e criador.
Tal associação é inteiramente estranha ao racionalismo moderno.
E por que não se poderia falar de "essência" das plantas ou de "essência" do
homem, sem a obrigação de considerar, juntamente com isso, que essas
essências são pensadas? A partir do modo de pensar moderno não é possível
compreender por que somente considerando-as como "pensadas" tais essências
poderiam existir.
Incrivelmente, porém, nos últimos tempos, a tese de Tomás tem
encontrado uma defesa - tão inesperada quanto veemente - por parte de nada
menos do que os princípios básicos do moderno, ou até do pós-moderno[5]
existencialismo. A partir de Sartre, a partir de sua radical negação do
conceito de Criação (é ele quem afirma: "o existencialismo não é senão um
esforço para extrair todas as conseqüências de uma posição atéia
coerente"[6]) - a partir daí, torna-se, de repente, novamente compreensível
que e como a doutrina da Criação representa de fato a razão oculta, porém,
fundamental, da clássica metafísica ocidental do ser.
Se quiséssemos dar aos pensamentos de Sartre e de Tomás uma
forma silogística, tornar-se-ia patente o fato de ambos partirem exatamente
da mesma "premissa", a saber: "Há uma essência das coisas, na medida em que
esta é pensada. É porque existe o homem e sua inteligência capaz de
projetar, planejar (design), capaz, por exemplo, de `conceber' um abridor de
cartas, como de fato concebeu - é por esta razão, e só por ela, que existe
uma `essência' de abridor de cartas. E assim, continua Sartre, já que não há
uma inteligência criadora, que pudesse - aos seres humanos e a todas as
coisas naturais - assim conceber, projetar, planejar, dando-lhes previamente
um conteúdo de significado, então não há essência alguma nas coisas
não-fabricadas, nas coisas não-artificiais. Citarei literalmente: "Não há
essência do homem, porque não há Deus para concebê-la.`il n'y a pas de
nature humaine, puisqu'il n'y a pas de Dieu pour la concevoir'"[7].
Tomás, por sua vez, afirma: porque (e na medida em que) Deus
concebeu as coisas, por isto (e nessa medida) é que elas possuem uma
essência: "Precisamente este fato, o de que a criatura possua uma substância
determinada e definida, mostra que ela provém de alguma origem. Sua forma
essencial... aponta para a Palavra (Verbum) d'Aquele que a fez, tal como a
estrutura de uma casa remete à concepção de seu arquiteto"[8].
O que há de comum entre Sartre e Tomás é, como se vê, o
pressuposto de que não se possa falar em essência das coisas, a não ser que
esta seja expressamente entendida enquanto creatura.
Mas, precisamente ao caráter "ser-pensado" das coisas - que se
deve ao Creator - é que Tomás se refere, quando fala da verdade, como
inerente a toda realidade.
4. As coisas são inteligíveis, porque são creatura.
A sentença fundamental da doutrina de Tomás a respeito da
verdade das coisas encontra-se nas Quaestiones disputatae de veritate[9] e
diz o seguinte: res naturalis inter duos intellectus constituta (est) - a
realidade natural está situada, entre dois cognoscentes, a saber, o
intellectus divinus e o intellectus humanus.
A partir desta "determinação espacial" da realidade (situada
entre a intelecção absolutamente criadora do conhecimento de Deus, que
pensa-o-ser e a intelecção imitativa do homem, que se dirige, se orienta
para o ser), estabelece-se a estrutura da realidade total: como estrutura
articulada entre "Projetador" e "realização do projeto".
Tomás aplica aqui o conceito de mensura, "medida", no seu
sentido mais originário - não-quantitativo e presumivelmente pitagórico - de
"dar medida" e "receber medida", "ser medido": o pensamento criador de Deus
dá medida e não é medido (mensurans non mensuratum); a realidade natural
recebe medida e dá medida (mensuratum et mensurans); o conhecimento humano é
apreensor de padrões de medida e não-atribuidor (mensuratum non mensurans).
Não-atribuidor, ao menos no que se refere às coisas naturais, se bem que,
sim, é atribuidor de medida, no que se refere às res artificiales (este é o
ponto em que, para Tomás, a diferenciação entre coisas criadas e coisas
feitas torna-se basilar).
De acordo com esta dupla referência das coisas é que Tomás
desenvolve sua doutrina. Há, assim, um dúplice conceito de "verdade das
coisas": o primeiro afirma o ser-pensado por Deus; o segundo, a
inteligibilidade para o espírito humano.
A sentença que diz que "as coisas são verdadeiras" significa, em
primeiro lugar, portanto: as coisas são criadoramente pensadas por Deus; e,
por outro lado: as coisas são, por si mesmas, acessíveis e apreensíveis para
o conhecimento humano.
Haveria, contudo, entre o primeiro e o segundo conceito de
verdade uma relação de prioritas naturae, de hierarquia do ser.
Esta prioridade tem dois sentidos. Primeiro: não é possível
apreender o núcleo da expressão "verdade das coisas" - ele simplesmente nos
escapa - se nos recusarmos pensar as coisas, expressamente, como creatura,
emanadas da intelecção de Deus, que pensa-o-ser, emergidas do "olho de Deus"
(como este assunto foi denominado segundo a doutrina do ser do Egito
antigo). Tal relação de prioridade, porém, significa, em segundo lugar,
ainda: o ser-pensado das coisas por Deus fundamenta a sua inteligibilidade
para o homem.
A relação entre estas duas referências não é como (por assim
dizer) a que se dá entre irmão mais velho e irmão mais novo, mas sim como a
de pai para filho; o primeiro é quem traz à existência o segundo. Que
significa isto? Significa que as coisas são inteligíveis para nós: porque
foram pensadas por Deus. As coisas enquanto pensadas por Deus, são dotadas
não apenas de sua essência (por assim dizer, "exclusivamente para si
mesmas"), mas, enquanto pensadas por Deus, detêm ainda um ser "para nós".
As coisas têm a sua inteligibilidade, a sua luz interna, a sua
luminosidade, o seu caráter manifestativo, devido ao fato de que Deus as
pensou; por esta razão são essencialmente pensamento. A claridade e a
luminosidade, que jorram do pensar criador de Deus para o interior das
coisas, junto com seu ser (junto com seu ser, não!: como o seu próprio ser!)
- esta luz interna - e só ela - é o que torna as coisas existentes
apreensíveis ao intelecto humano.
Em um comentário à Escritura[10], Tomás afirma: "Uma coisa tem
de realidade tanto quanto tem de luz"; e em uma obra tardia, no comentário
ao Liber de causis[11], há uma sentença insólita, que formula o mesmo
pensamento como que num ditado místico: Ipsa actualitas rei est quoddam
lumen ipsius, "o próprio ser-real das coisas é sua luz" - ser-real das
coisas, entendido enquanto ser criado! É esta luz, precisamente, o que torna
as coisas visíveis ao nosso olho. Em uma palavra: as coisas são inteligíveis
pelo fato de serem criadas!
Neste ponto pode-se afirmar, em relação à fundamentação do
conhecimento, algo parecido ao que disse Sartre contra a filosofia do século
XVIII, com relação ao conceito "essência das coisas"[12]: não é possível
prescindir do ser-pensado das coisas por Deus e, no entanto, querer
continuar admitindo a possibilidade de inteligibilidade das coisas pelo
homem!
5. As coisas são insondáveis, porque são creatura.
Segundo a opinião de Tomás, pode-se, portanto, no âmbito da
realidade natural criada, falar de "verdade" em dois sentidos.
Em primeiro lugar, pode-se estar falando da verdade das coisas,
significando primariamente, que as coisas, enquanto creaturae correspondem,
ao conhecimento criador projetante de Deus; é nesta própria correspondência
que consiste formalmente a verdade das coisas.
Em segundo lugar, pode-se falar de verdade com vistas ao
conhecimento (do homem), que é verdadeiro por meio da correspondência que
"recebe medida" da realidade - "pré"-conferida e objetiva - das coisas.
É, por sua vez, nesta mesma correspondência que consiste
formalmente a verdade do conhecimento humano. Na Summa Theologica, os dois
conceitos de verdade encontram-se formulados e confrontados em um mesmo
articulus: "Quando as coisas são a medida e o padrão de orientação do
intelecto, então a verdade consiste em que o intelecto se conforme às
coisas... Quando, porém, é o intelecto o padrão de orientação e medida das
coisas, então a verdade consiste em que as coisas se conformem ao
intelecto"[13].
Essas sentenças, por sua vez, expressam, a partir de um novo
ponto de vista, a estrutura de todo ser-criatura, situado essencialmente
entre a intelecção do ser-pensado pelo conhecimento de Deus e a intelecção
imitativa do homem - um pensamento inexaurível!
Entre estas duas correspondências (pensamento para com a
realidade, de um lado, e realidade para com o Pensamento, de outro), que
significam ambas, ainda que em sentido diverso, "verdade" enquanto adequação
- entre estas duas correspondências existe, porém, uma diferença
fundamental: que a primeira pode tornar-se objeto de conhecimento humano,
enquanto a segunda não pode; que a primeira correspondência é inteligível ao
homem, enquanto a segunda não é.
O homem pode perfeitamente conhecer não apenas as coisas, mas
também a relação de correspondência existente entre as coisas e o seu
próprio conceito das coisas. Isto é, o homem tem o poder de, para além de
uma ingênua constatação das coisas, reconhecê-las com juízo e reflexão. Em
outras palavras, o conhecimento humano não tem apenas o poder de ser
verdadeiro, mas ainda o de reconhecimento da verdade[14].
Todavia, a correspondência das coisas para com o conhecimento
criador de Deus, na qual primária e propriamente reside a verdade das
coisas, é, por sua vez, a condição que torna possível o conhecimento do
homem (cognitio est quidam veritatis effectus - esta é mais uma daquelas
formulações nas quais Tomás coloca tudo de cabeça para baixo: o conhecimento
como fruto, precisamente, da verdade das coisas)[15]. Esta correspondência,
que perfaz, de modo primário, a essência da verdade das coisas - esta
correspondência, dizia, entre a realidade natural e o conhecimento
arquetípico de Deus - esta correspondência não nos é possível conhecer
formalmente!
Temos certamente a potência de conhecimento das coisas, contudo
não nos é possível conhecer formalmente a sua verdade; conhecemos a imagem
imitativa (Nachbild), mas não a sua correspondência para com o arquétipo
(Urbild): a relação existente entre o ser-pensado e o seu projeto. Tal
correspondência - em que, repetimos, consiste de modo primário a verdade
formal- não nos é dado conhecer. É este, portanto, o ponto no qual se mostra
a vinculação existente entre a verdade e a incognoscibilidade das coisas.
Contudo, este pensamento carece de maior precisão.
Quanto ao uso corrente, "incognoscibilidade" admite múltiplos
sentidos, no mínimo dois. Este conceito pode significar: há algo que é "por
si mesmo" acessível ao conhecimento, mas determinado intelecto não consegue
apreendê-lo, porque seu poder cognoscitivo não é suficientemente penetrante.
É neste sentido que se fala de objetos que não sejam apreensíveis "a olho
nu". Refere-se isto antes a uma falibilidade do olho, do que a uma
peculiaridade concreta do objeto: as estrelas, de que não nos apercebemos,
são, "por si mesmas", perfeitamente visíveis! Incognoscibilidade, assim
entendida, quer dizer: a potência de conhecimento não é suficiente para
realizar, para ativar o potencial de cognoscibilidade, que certamente existe
objetivamente.
Mas, incognoscibilidade pode também significar algo diferente, a
saber: que uma tal cognoscibilidade não se dá em si; que, por assim dizer,
nem sequer há algo a ser conhecido; que não apenas o poder de apreensão e
penetração da parte de um determinado sujeito cognoscente seja insuficiente,
mas sim, que não exista, por parte do objeto, qualquer cognoscibilidade.
Incognoscibilidade, neste sentido, incognoscibilidade de uma
realidade em si mesma - isto é para Tomás inteiramente inconcebível. Dado
que todo ente é criatura, ou seja, pensado-por-Deus, por isto mesmo todo
ente é, em si mesmo, luz, claridade, abertura - e isto devido precisamente
ao fato de ser! Incognoscibilidade, portanto, jamais significará para Tomás:
que exista algo que fosse inacessível ou escuro em si mesmo, mas apenas: que
haja aí tanta luz, que uma dada potência de conhecimento finita não possa
exauri-la; isto ultrapassaria o seu poder de captação e escaparia ao seu
alcance apreensivo.
É neste último sentido, portanto, que se está falando aqui em
"incognoscibilidade"; e afirma-se que esta faça parte imediata do conceito
de verdade das coisas. Está-se aqui afirmando, em outras palavras: segundo a
opinião de Tomás, faz parte da essência das coisas, o fato de que sua
cognoscibilidade não possa ser exaurida por uma potência cognoscitiva finita
- porque as coisas são criatura; isto é, porque a causa de sua
cognoscibilidade tem o efeito necessário da in-cognoscibilidade.
Contemplemos isto mais de perto.
"As coisas são verdadeiras"- isto, como vimos, significa
primariamente o seguinte: as coisas são pensadas por Deus. Esta frase,
diga-se de antemão, seria fundamentalmente desvirtuada, se a quiséssemos
tomar como informação unicamente a respeito de Deus, como mera constatação
de um agir divino que se dirige às coisas. Não! Está-se afirmando algo sobre
a estrutura das coisas. Está-se expressando, de modo diferente, o pensamento
de Agostinho[16], de que as coisas são, porque Deus as vê (enquanto nós
vemos as coisas, porque elas são). Afirma-se que o ser e a essência das
coisas consistam no seu caráter de ser-pensado pelo Creator. "Verdade", como
já se disse, é um nome do ser, é um sinônimo de "real"; ens et verum
convertuntur; dizer "algo real" é o mesmo que dizer "ser-pensado por Deus".
É da essência de todos os entes (enquanto creatura), o serem
"formados-segundo" (nachgeformt), de acordo com um arquétipo, que reside no,
absolutamente criacional, conhecimento de Deus. Creatura in Deo est creatrix
essentia, a criatura é, em Deus, essência criadora; assim está escrito no
Comentário a João[17] de Tomás; e na Summa Theologica: "Todo o real possui a
verdade de sua essência, na medida em que re-produz o saber de Deus"[18].
Como já dissemos, é evidente que Tomás - ao tratar da verdade
das coisas (ou mesmo da essência das coisas) - não podia, de modo algum,
ignorar ou "deixar de lado" esta relação de correspondência entre as coisas
e suas imagens arquetípicas divinas. Isto se manifesta, por exemplo, pelo
fato de ele a ter conhecido a partir da leitura de textos estranhos, nos
quais nós seríamos incapazes de descobrir qualquer vestígio disto (trata-se
aqui de um daqueles "saltos" argumentativos ou "desníveis" no fluxo do
pensamento, nos quais se revela, como que por entre uma "fenda" na
estrutura, o não-dito de sua doutrina).
No segundo artigo da primeira Quaestio disputata de veritate,
São Tomás formula o conceito primário de verdade das coisas: "O real é
chamado verdadeiro, na medida em que realiza aquilo para o que foi ordenado
pelo espírito cognoscente de Deus". Em outras palavras: o verdadeiro é o
real, na medida em que imita a imagem arquetípica do conhecimento divino. E
prossegue Tomás: Isto se torna evidente - sicut patet -, por uma famosa
definição de Avicena - definição, entretanto, na qual para o nosso entender,
não se diz nada sobre o assunto!
Mas, o que diz então, essa definição de verdade de Avicena?
Trata-se de uma citação quase clássica na Idade Média: "A verdade de uma
coisa é a característica própria de seu ser, que lhe foi dada como
propriedade constante"[19].
E com esta sentença, assim diz Tomás, evidencia-se a tese de que
a verdade das coisas reside no fato de serem pensadas por Deus! Nunca nos
ocorreria, a nós, perceber aqui qualquer relação. Esta manifesta "brecha" na
argumentação, como dizíamos, certamente só poderá ser entendida no sentido
de que Tomás simplesmente não pode deixar de associar a idéia de que as
coisas possuem um "quê" - uma qüididade de conteúdo determinado - à idéia de
que esta essência das coisas seja o fruto de uma intelecção planejante
criadora.
Retomemos agora o caminho para a nossa própria questão. A
relação de correspondência existente entre a imagem arquetípica em Deus e a
imagem criada que a segue - e nisto consiste formal e primariamente a
verdade das coisas - não poderá jamais, como dizíamos, ser diretamente
apreendida pelo nosso olho; não podemos alcançar um ponto de vista, a partir
do qual nos seja possível comparar a imagem arquetípica com a sua imagem
imitativa; somos simplesmente incapazes de assistir, por assim dizer, como
espectadores à emanação das coisas "do olho de Deus".
Há, porém, uma conseqüência que decorre desse fato: o nosso
intelecto, quando inquire a respeito da essência das coisas, mesmo as mais
ínfimas e "mais simples", ingressa num caminho, por princípio, interminável.
A razão disto, portanto, é o fato de as coisas serem creatura; a razão é que
a luminosidade interna do ser, tem sua origem arquetípica na infinita
abundância de luz da intelecção divina. Esta, portanto, é a realidade
subjacente ao conceito de verdade do ser, como o formulou Tomás. Mas sua
profundidade torna-se visível somente quando esta conexão - evidente para
Tomás - com o conceito de criação é reconhecida.
É neste conceito de verdade, assim entendido, que reside o
legítimo contexto e origem do elemento de incognoscibilidade, do elemento
"negativo".
Limitamo-nos a falar apenas da philosophia negativa - embora
Tomás tenha formulado também os princípios de uma theologia negativa.
Certamente este traço também não aparece com clareza nas interpretações
usuais; freqüentemente é até ocultado. Será raro encontrar menção do fato de
a discussão sobre Deus da Summa Theologica[20] começar com a sentença: "Não
podemos saber o que Deus é, mas sim, o que Ele não é". Não pude encontrar um
só compêndio de filosofia tomista, no qual se tenha dado espaço àquele
pensamento, expresso por Tomás em seu comentário ao De Trinitate de
Boécio[21]: o de que há três graus do conhecimento humano de Deus. Deles, o
mais fraco é o que reconhece Deus na obra da criação; o segundo é o que O
reconhece refletido nos seres espirituais e o estágio superior reconhece-O
como o Desconhecido: tamquam ignotum! E tampouco encontra-se aquela sentença
das Quaestiones disputatae: "Este é o máximo grau de conhecimento humano de
Deus: saber que não O conhecemos", quod (homo) sciat se Deum nescire.[22].
E, quanto ao elemento negativo da philosophia de Tomás,
encontramos aquela sentença sobre o filósofo, cuja aplicação ao conhecimento
não é capaz sequer de esgotar a essência de uma única mosca. Sentença que,
embora esteja escrita em tom quase coloquial, num comentário ao Symbolum
Apostolicum[23], guarda uma relação muito íntima com diversas outras
afirmações semelhantes. Algumas delas são espantosamente "negativas" como,
por exemplo a seguinte: Rerum essentiae sunt nobis ignotae; "as essências
das coisas nos são desconhecidas"[24]. E esta formulação não é, de modo
algum, tão incomum e extraordinária, quanto poderia parecer à primeira
vista. Seria facilmente possível equipará-la (a partir da Summa Theologica,
da Summa contra Gentes, dos Comentários a Aristóteles, das Quaestiones
disputatae) a uma dúzia de frases semelhantes: Principia essentialia rerum
sunt nobis ignota[25]; formae substantiales per se ipsas sunt ignotae[26];
differentiae essentiales sunt nobis ignotae[27]. Todas elas afirmam que os
"princípios da essência", as "formas substanciais", as "diferenças
essenciais" das coisas, não são conhecidas.
Segundo Tomás, esta seria também a razão, pela qual não temos a
capacidade de atribuir um nome essencial às coisas; precisamos antes
extraí-los a partir do que é externo e derivado (fenômeno para o qual Tomás,
muitas vezes, cita o exemplo daquelas disparatadas etimologias medievais -
pelas quais o termo "lapis", por exemplo, derivaria de "laedere pedem")[28].
Não somente o próprio Deus, mas também as coisas em si possuem
um "nome eterno" que, ao homem, não é dado pronunciar. Isto tem um sentido
bem preciso e não, de modo algum, um sentido, por assim dizer, "poético". E
a tradição da sabedoria oriental, concorda plenamente com a sentença
chinesa, epígrafe deste texto.
Por que será, pergunta-se Tomás, certa vez, que nos é impossível
conhecer plenamente a Deus, a partir da criação? Sua resposta tem duas
partes, sendo que a segunda é a que mais nos interessa. Primeira parte da
resposta: a criação necessariamente reflete a Deus de maneira apenas
imperfeita. Segunda parte: dada nossa "ignorância" e o embotamento de nosso
intelecto (imbecillitas intellectus nostri), não somos capazes de ler nem
mesmo aquelas informações que as coisas realmente contêm a respeito de
Deus[29].
Para se entender o peso desta afirmação, é preciso considerar
que, de acordo com Tomás, o modo peculiar da imitação da perfeição divina em
cada coisa é precisamente o que perfaz a essência peculiar de seu ser: "Cada
criatura possui a sua espécie própria enquanto, de algum modo, participa da
imagem da essência divina. E, portanto, Deus ao conhecer o seu próprio Ser
como sendo assim imitável por esta determinada criatura (ut sic imitabilem a
tali creatura) Ele conhece a Sua essência como a razão de ser e a idéia
contida nesta criatura"[30]. Este pensamento, que aponta para uma
problemática, por sua vez, inteiramente nova e complexa, está muito
precisamente relacionado ao nosso assunto; não se está afirmando nada menos
que isto: a essência das coisas em sua profundidade nos é permanentemente
inacessível, devido a (e na medida em) que não somos capazes de apreender
inteiramente a imitação da imagem arquetípica divina, enquanto imagem e
semelhança de Deus.
Uma resposta assim, dupliforme, tem, certamente, uma estrutura
dialética - que reproduz a estrutura da própria creatura, a qual tem a sua
origem, per definitionem, simultaneamente, em Deus e no nada. Tomás não se
limita a afirmar somente que a realidade da existência de algo é a sua
própria luz. Vai mais além: creatura est tenebra inquantum est ex nihilo, "a
criatura é treva, na medida em que provém do nada" - esta sentença não está
expressa em Heidegger, mas nas Quaestiones disputatae de veritate[31] de
Tomás. Aliás, a resposta àquela questão: "por que não é dado ao homem,
conhecer Deus inteiramente, a partir das coisas criadas?", possui esta mesma
estrutura de "resistência passiva".
O que, exatamente, está dito aqui? Diz-se que, por meio de sua
essência, as coisas revelam a Deus de modo apenas imperfeito. Por quê?
Porque as coisas são criatura e à criatura é impossível exprimir ou proferir
o Creator perfeitamente. Contudo, assim prossegue a sua resposta, a
abundância de luz - até mesmo desta imperfeita manifestação - já excede todo
entendimento humano. Por quê? Porque também o homem é criatura, mas,
principalmente, porque as coisas remetem, em sua essência, ao projeto
divino, o que, por sua vez, significa: porque as coisas são criaturas.
6. A Estrutura de esperança do conhecimento criatural.
Falamos já do "elemento negativo" da filosofia de Tomás. E
mostramos que (e porque) esta formulação é realmente susceptível de
mal-entendidos e que requer uma compreensão mais precisa e quase que uma
correção.
Em todo caso, o fator "negativo" seguramente não consiste na
suposição de que o conhecimento humano não atinja o ser das coisas.
Intellectus... penetrat usque ad rei essentiam, "a inteligência penetra até
a essência das coisas": esta sentença[32] permanece válida em São Tomás -
apesar da outra afirmação de que o esforço cognoscente dos filósofos não é
capaz de apreender a essência sequer de uma mosca. Estes dois fatores são
correlatos. O fato de que o intelecto atinge as coisas, manifesta-se em que
ele se precipita em insondáveis profundezas de luz! Porque o espírito atinge
o ser das coisas, experimenta a inesgotabilidade delas! Nicolau de Cusa[33]
exprimiu essa realidade em sua interpretação do "sei que nada sei"
socrático: somente àquele que, vendo, tocou a luz com os olhos, está
reservado experimentar que a claridade do sol vai além do poder de apreensão
da visão.
Não se pode, de modo algum, falar de agnosticismo em Tomás; e os
neo-escolásticos têm toda razão em enfatizar este aspecto. Acredito,
contudo, não ser possível tornar explícita a verdadeira razão para esta
realidade, se não colocamos em jogo, formalmente, o conceito de criação,
isto é, se não se falar de estrutura intrínseca da coisa, enquanto creatura.
Esta estrutura significa - dado seu caráter de ser-pensado pelo
Creator - que as coisas possuem tanto a luminosidade e caráter manifestativo
na medida de seu ser como, também, ao mesmo tempo, sua inesgotabilidade e
seu caráter "inexaurível": sua cognoscibilidade, bem como sua
não-cognoscibilidade.
Sem remontar a este fundamento, será impossível, ao que me
parece, mostrar por que o "elemento negativo" da filosofia de Tomás de
Aquino nada tem de agnosticismo. E todo aquele que tenta dar conta disto,
sem recorrer a tal conceito, como mostra o exemplo das sistemáticas
experiências neo-escolásticas, incorrerá necessariamente no perigo de
interpretar Tomás como racionalista, isto é, de incompreendê-lo ainda mais.
Talvez pudéssemos afirmar que, na doutrina de Tomás, a estrutura
de esperança da existência humana se exprime como a de um ser cognoscente,
de estrutura essencialmente não-fixável: em seu conhecer não se dá uma cabal
apreensão ou um cabal "ter" conhecimento de algo; mas também não um completo
"não-ter". O que, sim, se dá é um não-ter-ainda!
O cognoscente é visto como "viator", um ser que está a caminho.
Isto significa, por um lado: os seus passos têm sentido, não são, por
princípio, vãos, mas aproximam-se de um objetivo. Isto, porém, não pode ser
pensado, sem o outro elemento: enquanto durar para o homem, na condição de
ser existente, o "estar a caminho", permanecerá igualmente infindável o seu
caminho de conhecimento. E esta estrutura de esperança do que indaga pelo
ser das coisas, do conhecimento filosófico, funda-se, afirmemo-lo uma vez
mais, no fato de o mundo ser creatura; o mundo, tanto quanto o próprio ser
humano cognoscente!
Mas, dado que a esperança está mais próxima do sim do que do
não, deve-se, portanto, desse mesmo modo, encarar também o elemento negativo
da filosofia de Tomás, que nos propusemos explicitar. Ou seja, devemos
encarar a negação em relação ao pano de fundo de uma afirmação mais
abrangente. É certo que o elemento de inescrutabilidade do ser das coisas
está compreendido no conceito de verdade do ser; o sentido disto,
entretanto, é tão estranho a qualquer idéia de objetiva inacessibilidade,
impenetrabilidade ou escuridão das coisas, que, pelo contrário, até autoriza
a dar voz a este aparente paradoxo: as coisas são incognoscíveis ao homem,
em suas últimas profundezas, devido ao fato de serem excessivamente
cognoscíveis.
Assim, o próprio Tomás também recorre àquela célebre sentença
aristotélica[34] a respeito dos olhos da ave noturna, incapazes de perceber
precisamente aquilo que é luminoso (da mesma forma comportar-se-ia o
intelecto humano em relação àquelas coisas que se manifestam com máxima
evidência). Tomás exprimiu a asserção contida nesta frase, com a qual,
aliás, concorda inteiramente, pelas seguintes admiráveis palavras[35]: Solem
etsi non videat oculus nycticoracis, videt tamen eum oculus aquilae, "ainda
que o olho da ave noturna não veja o sol, o olho da águia, sim, o vê".





(*) Josef Pieper, filósofo de renome mundial, faleceu em 6-11-97. A
tradutora é mestre e doutora em Filosofia da Educação - FEUSP. Revisão
técnica de Luiz Jean Lauand.
[1]. Heidegger, M. Platons Lehre von der Wahrheit, Bern, 1947, p. 5.
[2]. Isto foi claramente mostrado por Karl Eschweiler em seu livro: Die zwei
Wege der neueren Theologie, Augsburg, 1926, p. 81 e ss., 283 e 296. Ainda
que, de resto, algumas teses desse livro sejam discutíveis.
[3]. Trata-se do parágrafo 12, que se refere àquela sentença "assim
conhecida entre os escolásticos", omne ens est unum-verum-bonum.
[4]. Romano Guardini, Welt und Person, Würzburg, 1940, p. 110
[5]. Naturalmente, Pieper não emprega "pós-moderno" (nachneuzeitlich) no
sentido restrito e especializado dos últimos anos. (Nota da trad.)
[6]. Jean-Paul Sartre, L'existentialisme est un humanisme, Paris, 1946, p.
94
[7]. Ibidem, p. 22
[8]. Summa Theologica I, 93, 7. Encontramos noção semelhante na mesma obra
(I, 45, 7): "Na medida em que ela (criatura) possua uma forma e uma
qüididade, ela reproduz (repraesentat) a Palavra, na mesma medida em que a
forma da obra de arte provém do projeto do artista".
[9]. Quaest. disp. de veritate I, 2
[10]. Comentário a I Tim 6,4
[11]. Comentário ao Liber de causis I, 6
[12]. L'Existentialisme, p. 20 e ss.; cfr. também p. 73 e ss.
[13]. Summa Theologica I, 21, 2.
[14]. Ibidem I, 16, 2
[15]. Quaest. Disp. de Veritate, I, 1
[16]. Confissões 13, 38; cfr. também De Trinitate 6, 10.
[17]. Comentário a João I, 2
[18]. Summa Theologica I, 14, 12 ad 3.
[19]. O próprio Tomás cita a sentença, por exemplo na Summa Theologica I,
16, I, na Summa contra gentes I, 60, nas Quaestiones disputatae de Veritate
I, 2.
[20]. Quia de Deo scire non possumus quid sit sed quid non sit, non possumus
considerare de Deo quomodo sit, sed potius quomodo non sit - Summa
Theologica I, 3 prologus.
[21]. I, 2 ad 1.
[22]. Quaest. Disp. de potentia Dei, 7, 5 ad 14.
[23]. Cap. I.
[24]. Quaest. Disp. de veritate 10, 1.
[25]. In De Anima 1, 1, 15.
[26]. Quaest. disp. de spiritualibus criaturis, 11 ad 3.
[27]. Quaest. Disp. de veritate 4, I ad 8.
[28]. Ibidem. No exemplo, lapis, pedra, decorreria de laedere pedem, ferir o
pé (Nota da trad.).
[29]. Ibidem, 5, 2 ad 2.
[30]. Summa Theologica I, 15, 2.
[31]. Quaest. disp. de veritate,18, 2 ad 5.
[32]. Summa Theologica I-II, 31, 5.
[33]. Apologia Doctae Ignorantiae, 2, 20 e ss.
[34]. Metafísica 2, 1; 993 b
[35]. In Metaph. 2, 1, 286.



O TEATRO E A EDUCAÇÃO MEDIEVAL - O COURTOIS D'ARRASO TEATRO E A EDUCAÇÃO
MEDIEVAL
- O COURTOIS D'ARRAS
(trad. e introdução L.J. Lauand)
O teatro e a cultura medieval
O teatro medieval - como a literatura e outras produções artísticas da época
- comporta, tipicamente, um outro objetivo: o de instruir. Indissociável da
Idade Média é, também, o elemento religioso: o teatro medieval surge - como
que naturalmente - da liturgia, principalmente da Liturgia da Páscoa.
Assim, em algumas abadias beneditinas, a liturgia passa também a representar
episódios da vida de Cristo, sobretudo os da ressurreição (as antífonas são
já uma plataforma de lançamento para o teatro). Um texto inglês do séc. IX
[1] descreve o acompanhamento da leitura litúrgica do Evangelho:
ORDO
(Enquanto se faz a terceira leitura, quatro irmãos mudam de veste. O
primeiro, com trajes brancos, entra com ar de quem está preocupado com uma
tarefa, penetra no sepulcro e senta-se em silêncio, segurando uma palma na
mão. Depois, enquanto se recita o terceiro responsório, entram os outros
três irmãos, revestidos com capas, trazendo nas mãos turíbulos com incenso
e, lentamente, como quem procura algo, dirigem-se ao sepulcro. Com esta
cena, representa-se o anjo sentado sobre o sepulcro e as mulheres que chegam
com aromas para ungir o corpo de Jesus. Mal o irmão sentado vê
aproximarem-se os outros três - com ar titubeante, de quem está procurando
alguma coisa -, começa a cantar suavemente, a meia-voz:)
- Que buscais no sepulcro, ó cristãos?
(Ao que os três respondem, cantando em uníssono:)
- A Jesus Nazareno crucificado, ó habitante do Céu.
- Não está aqui, ressuscitou como tinha predito! Ide e anunciai que Ele
superou a morte!
(Os três dirigem-se ao coro, cantando:)
- Aleluia, o Senhor ressuscitou, hoje o leão forte ressuscitou, o Cristo,
Filho de Deus.
(Depois destas palavras, o irmão torna a se sentar e, como que chamando-os,
entoa a antífona:)
- Ressuscitou do sepulcro o Senhor que, por nós, esteve na Cruz. Aleluia.
(Estendem o sudário sobre o altar. Terminada a antífona, o prior, para
expressar a alegria pelo triunfo de nosso rei, ressuscitado depois de ter
vencido a morte, incoa o Te Deum laudamus e todos os sinos tocam juntos.)
À "cena" do sepulcro, vão se juntando outras representações litúrgicas de
teatro incipiente: os discípulos de Emaús, cenas de Natal etc. Pouco a
pouco, o texto vai se emancipando e a literalidade da Escritura dá lugar a
paráfrases, comentários líricos etc.
Um filho pródigo medieval - Courtois d'Arras
O Courtois d'Arras, peça de autor anônimo do século XIII, apóia-se na
parábola do filho pródigo: seus personagens, sua seqüência narrativa e todos
os elementos essenciais procedem da cena evangélica. A originalidade da peça
está - como aponta Pauphillet [2] - num realismo avant la lettre, em
projetar a narrativa evangélica para a época. O filho pródigo Courtois é um
jovem da vila de Artois que, após abandonar o lar paterno, vai ser
"depenado" numa taberna de Arras. O mesmo realismo faz o autor deter-se na
cena da taberna, que ocupa metade da peça, explorando com agudeza a
capacidade sedutora e a astúcia das mulheres. A peça, escrita em dialeto
picardo do começo do século XIII, assemelha-se, em diversos aspectos, ao Jeu
de Saint Nicolas de Jean Bodel, o que leva à hipótese de que sua autoria
seja desse mesmo escritor. Embora de origem evangélica e de intenção
certamente piedosa, a peça enquadra-se melhor como teatro profano.
COURTOIS D'ARRAS - Anônimo do século XIII
CENA I
O PAI
Vamos! Vamos! Que já é hora!
Já há tempo deviam estar fora
Nossas ovelhas, cabras e bois.
Não deixemos para depois:
O pasto está fresco de orvalho,
Acorda, vamos ao trabalho,
Meu filho, que já é dia
E está a cantar a cotovia.
O IRMÃO
Pai, mas que carga pesada!
Todo dia acordar de madrugada...
Um filho arcar com toda a canseira?
Nem um servo é tratado desta maneira!
Bem diferente desse meu irmão,
Que é bem aceito como folgazão.
Ele é mais novo, não acorda cedo.
Na verdade, não mexe um dedo.
Meu pai, com toda a veneração,
É hora de endireitar esse mandrião.
O que ganhamos, ele, na boa vida,
Gasta tudo em jogo e bebida...
O PAI
Querido filho, que quer que eu faça?
Ser duro com ele pode ser desgraça.
Ele não aprendeu nenhum ofício,
Despedi-lo é expô-lo ao vício.
Sempre espero que se arrependa
Antes de dar-lhe dura reprimenda.
Na verdade, não sei o que fazer.
Mas, mandá-lo embora, isso não pode ser.
COURTOIS
Se vocês querem saber
Uma coisa, eu vou dizer:
Eu é que não agüento mais,
Esta vidinha de dias iguais.
Nossos bens devemos repartir
Porque desta casa eu vou sair.
Bem sei que a riqueza aqui é o rebanho,
Mas para mim está de bom tamanho:
Que a minha parte me seja concedida
Em moedas, mesmo que diminuída.
Os bois, eu deixo para quem tem paciência,
Quero em dinheiro e trocado, de preferência.
O PAI
Você aqui está tão bem e tem sustento.
Abandona, querido filho, teu louco intento.
COURTOIS
O senhor não tem com que se preocupar,
Melhor estarei em outro lugar.
O PAI
Filho, você fala como um louco,
Mas, tenho dinheiro e não pouco:
Sessenta soldos que pude ajuntar
São todos seus, pode levar.
Mas, também, fica combinado:
O teu quinhão já está quitado!
COURTOIS
Minha parte para sempre está acertada,
Nunca hei de requerer mais nada.
Dê-me a linda bolsa sem demora
Para que eu possa, enfim, ir-me embora.
O PAI
Toma, filho, está bem conferido.
Que você seja por Deus protegido.
Pois, certamente, você não poderá contar
com ninguém para lhe ajudar,
Neste mundo esperto e traiçoeiro,
Se vier a perder este dinheiro.
COURTOIS
Perder o dinheiro, pois sim?
Eu sei bem cuidar de mim.
Conheço os jogos de azar
E sei como os dados rolar.
Fome ou sede nunca passarei
Porque desta bolsa bem usarei.
Este dinheiro há de se multiplicar
Como cem marcos no tesouro de Lenoir [3]
Ele não passa de um administrador
Que nem do dinheiro pode dispor.
Eu, porém, posso aplicar a bel-prazer
E da fortuna fazer o que bem entender.
Nesta bolsa estão os caminhos meus.
Adeus, meu bom pai, adeus!
O PAI
Vá, querido filhinho,
Que Deus esteja em teu caminho!
CENA II
O LEITOR
(Sem deixar que o acompanhem, sozinho,
Courtois, então, se põe a caminho.
Pensando, com a bolsa recheada,
Que nunca lhe há de faltar nada...)
COURTOIS
Quantos soldos! E são todos meus!
Nem dá para gastar tanto, meu Deus!
Para já, não seria nada mau
Um bom presunto defumado com sal
E, além do mais, um belo de um vinho.
Mas, que bom!, há uma taberna no caminho!
CENA III
O GARÇOM
Olha o vinho de Soissons!
Pode provar que é bom!
No jardim ou na mesa
É o melhor com certeza!
Bebida, aqui, é prá todo lado.
Bebe o doutor, bebe o soldado,
Bebe o médico, bebe o padeiro,
Mesmo quem não tiver dinheiro...
Aqui não se gasta nem um tostão
E disso minhas testemunhas são
Pourette e Manchevaire:
Cada qual toma o que quer
E como tudo é fiado
Basta deixar o valor assinado...
COURTOIS
Ó Deus, para sempre sejas louvado,
Por me terdes para aqui guiado,
Muito vê quem pelo mundo vai.
Como é tolo e ingênuo meu pai
Que se assusta em sua mente simplória
E não conhece este bem, esta glória:
Do bom e do melhor comer e beber,
Sem de um tostão se desfazer.
Basta marcar, nem precisa dinheiro,
Para ter os regalos de um mosteiro.
Ó senhor, os vinhos, que tal estão?
E quanto cobra pelo galão?
O ESTALAJADEIRO
Seis dinheiros, não é nada, não?
Pelo melhor vinho da região.
E temos, a vosso inteiro dispor,
Muitos outros serviços, meu senhor:
Um leito macio que é uma delícia,
Quente, alto, doce como carícia.
Sentir-vos-eis como em sólida espuma
De palha branca e suave pluma
Num quarto de belas cores pintado
No melhor estilo francês decorado.
Lençóis novos, uma manta gostosa,
E o travesseiro de pétalas de rosa.
Perfume para a boca e para o rosto
Tudo, enfim, que é de luxo e bom gosto.
COURTOIS
Meu Deus! Que luxo de hospedaria!
Para mim, isto nem em sonho existia!
Estalajadeiro, quero o da melhor safra!
O ESTALAJADEIRO
Lequet! Traz aí uma garrafa!
CENA IV
O LEITOR
(Enquanto é providenciado
o vinho que ele quer,
postam-se a seu lado
Pourette e Manchevaire.)
POURETTE
Bebe, garoto, cai na festança,
Que Deus abençoe seu olhar de criança
Que já não será mais tão inocente.
Vai, garoto, vai em frente...
Esvaziem a taça seus lábios de mel
Que ainda tem muito vinho no tonel...
Vai, vai bebendo meu jovem rapaz
Ao final, de nossa turma serás.
COURTOIS
Disto, sim, eu gostaria:
Desfrutar de vossa companhia.
POURETTE
Se é assim, senta, meu bem,
E diz para mim de onde você vem?
COURTOIS
Eu venho de Artois.
POURETTE
E qual seu nome, filho?
COURTOIS
É, querida amiga, Courtois,
Quase que dá trocadilho! [4]
POURETTE
Que você é fino, isso é evidente,
Bonito, gentil, inteligente...
E eu, que vivo pedindo a São Marcelo,
Que me dê um amigo assim tão belo...
Por nenhum conde, duque ou rei
Fiz o que por você farei:
Tudo o que você quiser.
Não é assim, Madame Manchevaire?
MANCHEVAIRE
Claro que sim, ama e senhora,
Podeis lhe pagar nossa conta de agora
E dar-lhe montarias e veste fina
Mas que ele não caia na jogatina.
Eis aí algo que não suportais:
O jogo, isto não perdoais.
Mas, o que agora direi, não levareis a mal:
Madame Pourette e Courtois: um belo casal.
COURTOIS
Ó minha cara Manchevaire,
Que bobagem você diz, mulher?
Imagina supor, que coisa mais tonta,
Que eu não possa pagar a conta.
Vê esta bolsa presa por um cordão?
Ela não está vazia, não!
Vê se não se intromete!
MANCHEVAIRE
Ó Courtois, a Madame Pourette,
Eu a conheço e não estou enganada,
Ela está loucamente apaixonada
Por você, seu felizardo:
Que foi pelo amor contemplado,
De uma dama rica e formosa
Muito astuta e graciosa
E que é todinha para você...
COURTOIS
Serve mais vinho, Lequet!
Bebamos nós três nesta ocasião,
Que bem merece comemoração,
Eu, a Manchevaire e a Pouretana
Que, depois, eu vou morrer com a grana.
POURETTE
Vai bebendo, querido Courtois,
Que nós tomamos mais devagar.
E se há um conselho que eu lhe dê
Não confie no ladrão do Lequet
Vai, Courtois, vai tomando.
COURTOIS
E vocês, só ficam olhando?
POURETTE
Que você tome todo este vinho
Como prova do imenso carinho
Desta sua amiga e criada
Que só procura, encantada,
Amar e servir de coração.
COURTOIS
Eu bebo com amor e gratidão!
POURETTE
Dá-me uma prova desse amor
Que mal nasceu e já está em flor.
MANCHEVAIRE
Madame, que escutam os ouvidos meus?
Que é o que pedis, por Deus?
POURETTE
Cala-te, boba, eu sei o que faço.
Por que ele não me dá um abraço?
Manchevaire, não tenho eu razão?
Por que ele não me beija com paixão?
COURTOIS
Senhora, por quem sois!
Já estão a olhar para nós dois.
MANCHEVAIRE
É, está certo o rapaz.
É melhor beber um pouco mais.
COURTOIS
Que o vinho seja bem aproveitado!
POURETTE
Courtois, não seja tão acanhado.
À vontade você deve ficar:
Esta estalagem é teu lar.
Se você quiser passear agora
Há um belo pátio lá fora.
Nós aqui vamos te esperar.
COURTOIS
É, vou tomar um pouco de ar...
CENA V
POURETTE
Caipira idiota, tapado,
Quero vê-lo bem embriagado.
E aí vou fazer esse bicho do mato
Pagar boa lebre e comer mau gato.
Vou abocanhar a bolsa de dinheiro
Que o trouxa amarrou ao traseiro.
A Pourette, aqui, vai é metê a mão...
Mas, está aqui nosso anfitrião.
É isso aí, meu chefe, vamos chegando!
O ESTALAJADEIRO
E então, mulherada, que andam tramando?
Alguém vai perder, alguém vai ganhar?
POURETTE
Temos aqui, pronto para depenar,
(E não será difícil de fato...)
Um tolo apaixonado, um pato
Com uma bolsa muito recheada...
O ESTALAJADEIRO
...Da qual não vai sobrar nada.
Ah, essas damas... Bravo! Bravo!
POURETTE
É isso aí, até o último centavo.
É fácil, tá no papo, tá na goela
Prá quem tem meus anos de janela.
Logo que na bolsa eu passe a mão
Pagarei o que lhe devo com prontidão.
E enquanto eu dou um sumiço.
Você completa o serviço
E morde do bobo outro tanto.
Tira-lhe, sem piedade, a roupa e o manto.
A cota, você a troca por uma em farrapos
E quando estiver vestido com trapos,
Você o põe para fora a toque de caixa.
O ESTALAJADEIRO
Pshh... Ele tá voltando, voz baixa!
CENA VI
COURTOIS
Que belo pátio, que lindo jardim!
Nunca tinha visto um assim.
Todo tipo de plantas, nenhuma falha.
O ESTALAJADEIRO
Lequet, traz a toalha,
As bacias e água quente.
LEQUET
Sim senhor, imediatamente!
Bacias limpas, aroma sem igual
E a água na temperatura ideal.
COURTOIS
Será que devo aceitar,
Deste modo me banhar?
Água quente e perfume...
Bem..., se do lugar é o costume,
Não serei eu a negar.
Esse banho irá me deleitar
Como eu já adivinho.
POURETTE
Manchevaire, traz mais vinho.
Depois de um banho, Courtois amado,
É preciso beber, me faz esse agrado.
Toma, toma com decisão!
COURTOIS
Eu gosto de molhar no vinho o pão.
É gostoso, é bom!
POURETTE
Não é lá de bom tom!
Mas, se você gosta, meu bem,
Nós faremos assim também.
COURTOIS
Eu é que devo seus conselhos seguir!
POURETTE
Sim, há um que você deve ouvir.
Porque eu, se você licença nos der,
Vou sair um pouco com Manchevaire
Cuidar de umas coisinhas primeiro,
Para depois trazer mais dinheiro.
E uma preocupação em mim aflora:
O medo de que enquanto eu estiver fora
- E isto eu não poderia suportar -
Você, meu amor, comece a jogar.
Ai! Este temor me aniquila.
COURTOIS
Quanto a isto, pode ficar tranqüila.
Eu garanto que não vou jogar.
POURETTE
Não é que eu não queira acreditar,
Mas você sabe como é a paixão
E que o melhor é evitar a ocasião.
Pois estes teus dedos, tão delicados,
Parecem hábeis para os dados.
E você com tanto dinheiro... Ai que temor!
COURTOIS
Bom, então me faz um favor:
Leva esta bolsa, guarda-a para mim
E eu fico protegido, assim,
Não entro no jogo nem que eu queira.
POURETTE
Lequet, uma coisa vamos combinar
Um ao outro deve afiançar.
Nós temos que sair um pouquinho
E deixar nosso amigo sozinho.
Mas nós voltamos, já, já.
E nosso querido Courtois,
Que está em nossa companhia,
Fica aqui como garantia
De toda a nossa despesa.
Ele não sairá desta mesa
Fica aqui como refém.
LEQUET
Deste modo, está muito bem.
Aceito a garantia, pode ir sossegada...
COURTOIS
Eu, enquanto espero minha amada,
Mandarei dois belos frangos assar.
Estarão prontinhos quando ela voltar.
Ah, como isto é bom!
Garçom, garçom!
CENA VII
LEQUET
Senhor, senhor, tenho uma notícia!
Pourette, com esperteza e malícia,
Conseguiu muito dinheiro, finalmente,
Do caipira tolo que, impaciente,
Continua lá, sentado, a esperar
Pela pombinha que não vai voltar...
Porque não é nada tonta.
O ESTALAJADEIRO
Então ele que pague a conta.
E como aqui a ninguém se poupa,
Pagará em espécie, com sua roupa.
Como é que é, tá sozinho, Courtois?
Poure e Manche onde foram parar?
Passaram sebo nas canelas?
COURTOIS
Foram cuidar de negócios delas,
E para não haver nenhuma porfia
Fiquei eu aqui como garantia.
Pourette volta logo, disse ela.
O ESTALAJADEIRO
E você caiu na esparrela?
Você é louco de ficar como penhor
E aceitar daquela ladra ser fiador.
Ela é tão astuta, que é capaz de enganar
Os mais espertos do Roman de Renart [5] .
Mas isso não me diz respeito
Só me interessa o meu direito.
Vamos acertar a continha nossa?
COURTOIS
Receio que eu não possa.
Mas elas vão voltar, eu garanto.
Em todo caso, aceite o meu manto.
É muito valioso como você nota.
ESTALAJADEIRO
Courtois, vou tomar também sua cota!
Só o manto é insuficiente, meu irmão.
COURTOIS
E eu, como é que fico? Na mão?
Precisa ser assim, precisa?
ESTALAJADEIRO
Sim. E passa a calça e a camisa
Que ainda há muito que acertar.
COURTOIS
Ai, meu Deus! Ele vai me deixar
Sem nada de verdade.
ESTALAJADEIRO
E com isso não me paga nem metade,
Dê-se por muito feliz!
COURTOIS
É o que ele ainda me diz!
Não sei não, mas acho que fui enganado.
Eu tinha um saco de dinheiro recheado
Que me foi dado ainda hoje cedo
E Pourette, que do jogo tem medo,
Ia guardar para mim e... some de repente.
ESTALAJADEIRO
E, no dia em que a galinha criar dente,
Ela vai voltar... Não se amofine,
Talvez você a encontre em Bietune...
Se você correr de verdade.
COURTOIS
Correr no vento e na tempestade
Atrás de ilusão? Triste consolo.
Não, já fui bastante tolo...
Resta-me aceitar o castigo
Por não ouvir o conselho amigo
De meu pai que não deixou de avisar...
ESTALAJADEIRO
Courtois, tudo que eu posso te dar
É uma sobrecota velha e surrada
Que eu tenho para ser emprestada
A quem, no jogo, tendo tudo perdido
Possa, pelo menos, não ficar despido.
Lequet, traz aí o farrapo!
Embora não passe de um trapo,
É melhor do que o que você vai encontrar
Quando o mundo tiver que enfrentar.
COURTOIS
Como muda a sorte num momento,
Da ventura se passa ao sofrimento...
Que farei agora, sem dinheiro?
Adeus, meu bom estalajadeiro.
Adeus, a miséria está a me esperar!
ESTALAJADEIRO
Que Deus te ajude, Courtois...
Nas curtas cenas VIII a XII, Courtois lamenta, em monólogo, a miséria em que
se encontra (VIII); conversa com um proprietário que o contrata para cuidar
de porcos (IX); lamenta, em novo monólogo, que, nesse emprego, não lhe dão
de comer e - desesperado após experimentar a comida dos porcos e descobrir
que é intragável - resolve retornar ao lar paterno (X); é recebido com
festas pelo pai (XI), que procura aplacar o ressentimento do irmão: a última
fala do pai - uma referência explícita ao Evangelho - lembra que a alegria
pela conversão de um pecador é maior do que a que se dá por noventa e nove
justos que não necessitam de penitência (XII). E, após dizer essas palavras,
o pai entoa o Te Deum e a peça se encerra.





[1] . Cit. por GUGLIELMI, N. El teatro medieval, Editorial Universitaria de
Buenos Aires, 1980, pp. 12-13.
[2] . Jeux et sapience..., p. 110. Para a tradução, valemo-nos do original
do Courtois d'Arras, nessa obra apresentado.
[3] . Gerard Lenoir, de Arras (morreu em 1228), é tomado como tipo do
administrador financeiro.
[4] . Courtois, cortois, significa cortês, gentil.
[5] . Como se disséssmos: "Ela é tão astuta e cheia de arte / que é capaz de
enganar o próprio Pedro Malazarte".

Os Transcendentais e sua Negação - Mario Bruno Sproviero Os
Transcendentais e sua Negação -
O Belo e o Bom / O Mal e o Feio

Mario Bruno Sproviero


1. Introdução
Em artigo anterior 1 de caráter introdutório tratamos dos
transcendentais e de suas negações, chamando a atenção para a
necessidade de um tratamento específico das inter-relações. Neste
estudo retomamos a questão e enfocamos o tema do belo e do feio e
estabelecemos comparações entre o belo e bom; o feio e o mal (tal
como no artigo anterior contemplávamos a verdade em relação ao bem e
principalmente o erro em relação ao mal).

2. A Beleza
Há um diferença entre o belo e os outros transcendentais (a
saber: o ser, a coisa, o alguma coisa, o real, o uno, o verdadeiro e
o bem), ou seja, o belo, na própria tradição escolástica e
neo-escolástica é questionável quanto à sua transcendentalidade.
Havíamos considerado que a beleza, para ser transcendental, não
pode ser reduzida à beleza física mas teríamos: beleza sensível,
espiritual e sensível-espiritual (esta seria a propriamente humana a
que é o resplendor do inteligível no sensível). Assim, não
poderíamos dizer que se uma mulher é feia (sensivelmente) então é má
(moralmente), mas que, se for má moralmente certamente será feia
moralmente (por dentro).
Ora, o belo distingue-se do bem e do verdadeiro por referir-se
fundamentalmente ao sentimento, enquanto o bem aponta para a vontade
e o verdadeiro para o intelecto. Na tradição filosófica ocidental
confere-se espiritualidade (isto é, abertura para a totalidade do
real) às potências da inteligência e da vontade. E o sentimento?
Terá ele também um valor tão universal? Acaso será a beleza tão
somente subjetiva?
Negam a transcendentalidade do belo aqueles, como Caspar Nink
2, que consideram a beleza como a perfeição do ser: destarte só o
ser perfeito seria belo. Eis como argumenta: "Nem todo objeto porém
é belo, mas apenas aquele objeto acabado em sua espécie. A beleza -
ao contrário da unidade, da verdade (Sinnerfülltheit) e da bondade -
não é, então, um transcendental ou um atributo que pertença
essencial e necessariamente a todo o ser, mas uma perfeição do ser
que denota mais do que a unidade, a verdade e a bondade
(Vollkommenheit) pertencentes a todo ser. Em que consiste este plus
em perfeição? Cada ente não tem apenas a interna ordenação essencial
para a existência, mas cada ente contingente simultaneamente
propende para um possível desenvolvimento em direção à arquetípica
plenitude de si mesmo (já Deus é por sua essência absolutamente
perfeito). Quando um ser é perfeito em correspondência com seu
ideal, é belo". 3
Ante a objeção de que a beleza - tal como outros
transcendentais - pode comportar graus de participação; Nink
responderia que, em sua concepção, beleza é somente a perfeição do
ideal.
Esta problemática também se encontra em Kant (1724-1804), que
procura distinguir completamente a perfeição da beleza 4, mas não
deixa de propor um conceito de beleza que inclui o de perfeição.
Assim considera dois tipos de beleza: "Há duas espécies de beleza: a
beleza livre (pulchritudo vaga) e a beleza simplesmente aderente
(pulchritudo adhaerens). A primeira não pressupõe nenhum conceito e
o que deva ser o objeto; a segunda pressupõe um conceito e a
perfeição do objeto" 5.
Temos assim duas posições contrárias, apesar de que em nenhuma
delas é excluído totalmente o conceito de perfeição.
Na posição de Kant a contemplação estética é não-teorética e
não-prática, mas de certo modo coloca-se no meio: o juízo estético
não é conhecimento, mesmo sendo exercido pelas faculdades cognitivas
é um conhecer sem conhecimento e não é moral, embora finalístico e é
não-prático no sentido de ser desinteressado. O intelecto, no
entanto, participa do juízo estético, enquanto joga livremente com a
imaginação; o interesse também está ligado ao juízo estético por um
nexo necessário ainda que indireto entre o belo e o interesse moral.

Além disso, o objeto do juízo estético é o belo sem conceito e
independente da vontade, mesmo assim, há um tipo de beleza que
inclui o conceito, precisamente a citada beleza aderente, bem como
há um objeto dos juízos estéticos que inclui a moralidade,
constituído pelo sentimento moral, ou seja, o sublime. 6
Kant trouxe uma grande contribuição à estética; no entanto,
certas posições deveriam ser separadas, como ponderou Goethe, de sua
teoria do conhecimento: assim esta separação total, pelo menos no
caso da beleza livre, entre o belo e o conhecimento, não é
aceitável, pois está comprometida com sua radical distinção entre
intuição (apenas sensível em Kant) e conceito: a intuição é cega sem
o conceito, o conceito é vazio sem a intuição.
Essa distinção baseava-se em Baumgarten (1714 - 1762) que havia
feito da estética uma disciplina filosófica independente. Esta seria
a scientia cognitionis sensitivae, paralelamente à Lógica, ciência
do conhecimento intelectual, ambas totalmente separadas.
Em S. Tomás, (I,5,4 ad 1), reequilibra-se o equacionamento do
tema: o belo refere-se à faculdade cognoscitiva; o bem, ao apetite.
Em certo sentido, o belo é um tipo especial de bem ao mesmo tempo
que é um tipo especial de conhecimento. É resplendor da verdade que
convoca também o amor da vontade; é resplendor do bem que se impõe
como verdade ao intelecto...

3. O Belo e o Bem 7
No bem, conhecimento é condição do apetite, e portanto,
indiretamente, é condição do prazer que se segue à posse do objeto;
no belo, o conhecimento é a causa subjetiva direta do prazer.
Não há desejo sem conhecimento, mas este não agrada por si, só
agrada quando, uma vez conhecido e desejado, é alcançado e possuído.
No belo é o próprio conhecimento que causa o prazer. O conhecimento
é causa subjetiva do prazer por supor uma perfeição intrínseca cujo
conhecimento agrada; mas é causa direta do prazer, porque a
satisfação resulta da própria intuição e conhecimento, no dizer do
poeta a beleza é perene alegria : "A thing of beauty is a joy
forever" (Keats).
Assim, o conhecimento agrada enquanto conhecimento e não como
condição de consumo de posse (Shakespeare descreve o embrutecimento
como um dos efeitos deletérios da luxúria que, aliás, embota para a
beleza sensível um segundo depois a ânsia torna-se nojo e ódio 8:
"Past reason hunted / and no sooner had / past reason hated).
Claro que o belo e o bom encontram-se no mesmo objeto,
naturalmente sub rationes diversas. Temos uma interessante
ilustração no próprio Shakespeare. Julieta, quando foi vista pela
primeira vez por Romeu, despertou nele um sentimento estético e, só
depois, o de posse (o amor entre ambos não foi platônico). Julieta
era tão bela que sua beleza ofuscava o sentimento de posse: "Beauty
too rich for use, for earth too dear!" (Ato I cena V) 9.
Sendo o prazer do belo mais desinteressado do que o do bem,
isto levou muitos autores como o poeta e filósofo Schiller (1759 -
1805) a fazer da estética a mola educadora do gênero humano. Veremos
que isto deve ser entendido cum grano salis.

4. O Belo ontológico e o Belo artístico
Considerando que uma coisa é bela não porque seu conhecimento
agrade, mas que agrada porque é bela, a pergunta é pelo quid
mediante o qual ela agrada, que é o que a faz bela e me atrai. O
belo ontológico funda-se na perfeição intrínseca do ser. Para
Aristóteles, "as formas principais do belo são a ordem, a simetria,
a limitação (como oposto do indefinido, do apeiron)" (Met. XIII, 3);
os neoplatônicos acrescentaram o esplendor. São Tomás (I, 39, 8),
aponta três características: "Para haver beleza são requeridas três
condições: primeiro, a integridade ou perfeição: o inacabado é, por
este próprio fato, feio; segundo, a devida proporção ou harmonia; e
por último a claridade (claritas): daí que o que tem cor nítida
chama-se belo."
A beleza das coisas sensíveis provém de que estas não são
apenas superfícies opacas mas também símbolos e revelações naturais
de seu último fundamento e finalidade: a verdade e a beleza de Deus
resplandece nas suas criaturas; Deus é seu exemplar, seu fundamento
e finalidade últimos. Deus como perfeição absoluta é a beleza por
excelência, mas imprime esta beleza a todas as criaturas que dela
participam, ainda que sua beleza deva sempre medir-se em relação a
seu fim: quanto mais se apartam deste fim... Assim, diz S. Tomás, em
De veritate, 92, 1, ad 6: "As coisas imprimem na nossa alma as suas
semelhanças; no conhecimento de Deus porém ocorre o contrário,
porque é de seu intelecto que promana aquilo que se encontra em
todas as criaturas. Portanto, como em nós a ciência é o sinete
impresso nas coisas da nossa alma, assim de modo inverso as formas
só são um certo sinete da ciência divina impressa nas coisas".
O belo é portanto o atraente resplendor do ente uno e
verdadeiro, que encanta por seu conhecimento - conhecimento
principalmente imediato, podendo contudo também ser discursivo, mas
claro e expresso, contemplável sem esforço. Este conhecimento é
então esplendor, clara inteligibilidade, do ente íntegro,
proporcionado e que tende à perfeição; conhecimento fluente,
agradável, luminoso...
O belo artístico pressupõe o belo ontológico; mas
acrescenta-lhe um aspecto fundamental: a expressividade, ou seja, a
capacidade de expressão. Não deixa de ser uma realização do homem o
expressar-se. Podemos aqui, de passagem, mencionar o grande pensador
da tradição extremo-oriental, Confúcio (551 - 479 a.C.), que deu à
expressividade um valor educativo básico. Para ele, era muito
importante cuidar das ações externas para que o interno fosse
convenientemente expresso. Daí o valor que atribuía à Literatura,
entendida em sentido muito mais amplo do que o nosso, como arte da
expressão total e adequada. Muitos poetas, entre os maiores qual
Píndaro (ca. 550 - ca. 446 a.C.) e Goethe (1749 - 1832 d. C)
revelaram que o homem deverá ser aquilo que sempre foi, isto é, ser
na expressão o que é no interno, ser no final aquele permanente
pensamento de Deus: cumprir seu projeto eterno.
No artista (que deveria ser cada homem...) deve haver "um
sentimento iluminado por uma idéia tão depurada quanto possível de
emoções com reflexos psico-físicos e uma capacidade expressiva e
comunicativa apta a poder transfundir o sentimento na obra. Há obra
de arte, artisticamente bela, exatamente na medida em que é capaz de
suscitar em outrem, através do puro conhecimento, aquele mesmo
sentimento lírico" 10 Este não é o sentimento enquanto puramente
subjetivo mas enquanto objetivado, como claramente o colocou o
filósofo e esteta Benedetto Croce (1866 - 1952). O sentimento, tão
desvalorizado em certa tradição filosófica intelectualista, é
justamente a vida propulsora de toda a arte. 11 Os sentimentos são a
inspiração: artista sem sentimento é sepulcro caiado. Claro que o
sentimento estético, o sentimento artístico não é qualquer sentir
psicológico - aliás, a gama dos sentimentos é um contínuo de uma
complexidade e sutileza insuspeita aos que querem separar o
intelecto da paixão e do amor, atitude patentemente não-cristã.
Carosi nos dá um exemplo clarificador do sentimento lírico. Refere
que em 1843, Victor Hugo (1802 - 1865), quando soube da morte
trágica da filha de dezenove anos, Léopoldine, experimentou o mais
vivo sentimento de dor, com tal perturbação que certamente o impedia
de compor poesias. Decorridos muitos anos, aplacada a perturbação
psicológica das emoções, surgiu um sentimento "lírico" e
inspirou-lhe as partes mais belas, ou antes, as únicas partes
verdadeiramente sentidas e comoventes de "Les contemplations"
(1856).

5. A transcendentalidade do belo

Em parte retomamos o que já estabelecemos no artigo precedente
(p. 27).
No já citado texto (I, 95, a 4, ad 1), S. Tomás diz
essencialmente que o belo e o bem são o mesmo na realidade e diferem
segundo a noção, o que situa o belo entre os transcendentais.
Jacques Maritain (1882 - 1973) defende que o belo é o esplendor de
todos os transcendentais reunidos; e com razão, pois o belo mais do
que uma determinada qualidade é a harmonia de todas as qualidades:
uma bela voz num corpo feio destaca a diferença mais do que uma voz
feia num corpo feio.
Que "ens et pulchrum convertuntur" resulta de que todo ente
deve ter, enquanto ente, um mínimo de beleza, já que tem a sua
integridade essencial, pois possui todos os componentes necessários
para ser o que é, do contrário não seria - não se dá nunca
suficientemente ao ser seu transcendental valor. Tais componentes
estão em ordem, formando uma unidade, pois todo ente é uno. Assim
cada ente participa de um mínimo de ordem e inteligibilidade que se
manifestam, ainda que minimamente, com clareza. Estas condições
independem do conhecimento humano que poderá captá-las, de acordo
com seu estado e movimento, mais ou menos.

6. A negação do belo e do bom e sua convergência.
O mal sendo privação num ente de uma perfeição devida, sendo
destruição de algo que é, não é algo positivo, já que o positivo é
uma perfeição ontológica do ser, um valor 12 e portanto um bem. O
mal não é pura negação, o puro nada não é nenhum bem nem mal, nada
é: o mal é falta daquilo que poderia e deveria ser. O mal existe num
bem, se destruir completamente o bem, deixa de ser. O mal não é
desejado enquanto mal, é desejado enquanto um falso bem; é desejado
indiretamente enquanto se segue ao falso bem desejado.
Paralelamente, está o feio para o belo. O feio é privação de
perfeição, pela qual o próprio conhecimento é desagradável. O feio
apóia-se no belo, como o mal no bem, não pode assim haver o feio
absoluto a exemplo do mal: o não ser não é belo nem feio, não é.
Assim, quando se diz que o ente finito é bom e belo, não se diz que
o é totalmente, mas que tem beleza e bondade.
Com isso, são o feio e o mal convertíveis.
Ora, há uma confusão cultural e assentada entre o belo
ontológico e o belo artístico. 13 Antes da idade moderna, a
preocupação do artista era a representação de homems, mulheres e
objetos belos e muitas vezes tais representações careciam de vida e
perfeição o chamado "academismo". A modernidade freqüentemente
acentua a representação bela do patológico, do vício, da fealdade e
paroxisticamente as representações transvestem-se de vida e
perfeição.
Nesta confusão, temos uma inversão do ideal da arte como
educadora da humanidade. O belo e a virtude mal representados quanto
estrago aos valores religiosos fazem as representações kitsch! a
virtude ridicularizada, os vícios apresentados como belos e bons
etc, são fontes de grande corrupção cultural e moral. Note-se que os
sete vícios capitais têm na literatura, no teatro, no cinema e na
televisão um tratamento ligeiro e benévolo. A gula, por exemplo, a
vontade impotente de querer devorar o mundo é representada em
quadros que a incentivam e valorizam sobremodo. Bem diferente de sua
imagem real: a de quem abdica culposamente de sua humanidade,
brutalizando-se, vivendo como animal depravado. Tal como encontramos
no famoso verso de Dante (1265 - 1321), (Inf. XXI, 139), que deve
ser recitado não tragicomicamente mas cômico-tragicamente: "ed elli
avea del cul fatto trombeta".
O falso, o mal, o feio convergem, mas como estão inviscerados
no verdadeiro, no bem e no belo, necessitam e alimentam-se destes e
procuram fazer-se passar por estes: é o cerne da sedução: o vício e
o feio artístico belamente representados. Assim a morte mostra-se
bela e o homem ama a morte.
Vivemos numa cultura da morte e toda a representação está a
favor e a serviço dela.

7. Conclusão
A finalidade destes dois artigos foi mostrar, ainda que
esquematicamente, a importância do estudo dos transcendentais, de
sua negação, de seu paralelismo e de suas implicações existenciais.




1- Cf. M. B. Sproviero - "A Negação dos Transcendentais; o Erro e o
Mal". In Mirandum, Ano II nº 4 (Suplemento), Jan- Abr 98, pp. 21-34.
2- Caspar Nink S.J. Ontologie. Verlag Herder, Freiburg, 1952.
3- Op. cit. p. 347
4- Immanuel Kant, Kritik der Urteilskraft. Erstes Buch 15. Das
Geschmacksurteil ist von dem Begriff der Vollkommenheit gänzlich
unabhängig.
5- Op. cit. 16. Das Geschmacksurteil, wodurch ein Gegenstand unter
der Bedingung eines bestimmten Begriffs für schön erklärt wird, ist
nicht rein. Utilizo a edição: Kant Werke. Fünfter Band. Im Insel -
Verlag, Wiesbaden, 1957.
6- Cf. Luigi Pareyson - L'Estetica di Kant, U. Mursia, Milão, 1968.
P. 59
7- Cf. Paolo Carosi - Curso de filosofia: vol II. Edições Paulinas,
S. Paulo, 1963. ps 63 - 69.
8- Em II Sam 13, 15a, lê-se: "Então Amnon irou-se sobremaneira - a
aversão que lhe teve foi maior do que o amor com que a tinha amado".
9- Em sentido contrário, o da banalização e coisificação do sexo,
são sintomáticas as expressões populares: "boa" (no sentido de
"boazuda") e "comer".
10- op. cit. ps 65 - 66.
11- Naturalmente, o tema do sentimento, infinitamente complexo,
mereceria um tratamento extenso e detalhado.
12- Com "valor" quer-se indicar tanto a realidade enquanto
participável ao intelecto e à vontade os valores reais -; ou também
enquanto idéias realizáveis. Valores enquanto puramente idéias, o
que se constitui num paradoxo para a mentalidade moderna, não têm em
si qualquer valor. Na corrente idealista de Heinrich Rickert (1863 -
1936), os valores são universalmente o irreal. Nesta direção, o
idealista Bruno Bauch (1877 - 1936) escreveu: "ein Wert, welcher er
auch immer sei, kann als Wert nie wirklich sein" (Wahrheit, Wert und
Wirklichkeit, 1923, p. 468), ou seja "um valor qualquer que seja,
não pode enquanto valor ser real".
13- Passamos aqui por alto da interessante questão sobre a relação
entre o belo ontológico e o artístico, em que Hegel (1770 - 1831)
defende, em sua Ästhetik, a superioridade do belo artístico, tese
brilhante, infelizmente ligada a seu racionalismo panteísta e
antropólatra.




Prudência e Educação Moral

Prudência e Educação Moral

Flávia Medeiros Sarti
(mestranda da FEUSP*)
"Disse Deus: Faça-se a luz. E viu Deus que a luz era
boa; e dividiu a luz das trevas ..." (Gênesis I,1)
Ao longo de cinco dias, criou Deus muitas coisas e viu que tudo o que
tinha feito era bom, já que tudo participava do seu Ser, que é o próprio
Bem. No sexto dia, porém, conferiu existência a um ente que não somente
estaria imerso no mundo, como os demais seres, mas que poderia
compartilhar com Ele de toda a criação, através de uma alma espiritual,
que quer pela vontade e que conhece por meio do intelecto. Tal é o homem,
que recebeu o Ser em tamanha intensidade que, por meio de suas faculdades
espirituais, está aberto para a totalidade do real, para o que lhe é
exterior e para o que lhe é interior.
Sua particular abertura para o real, manifesta o homem como uma criatura
cuja natureza é inacabada e ele se apresenta enquanto um
ser-em-construção, um "projeto" para o qual a responsabilidade que lhe
cabe é a de dar prosseguimento e, em última instância, já em um plano
ideal, termo. Na verdade, o caráter dinâmico da antropologia e da ética
clássicas expressam-se muito bem em Guimarães Rosa:
"Cada criatura é um rascunho a ser retocado sem cessar, até a hora da
libertação pelo arcano, além do Lethes, o rio sem memória" (Estas
Estórias, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 177).
"...para cada pessoa, sua continuação já foi projetada, como o que se põe,
em teatro, para cada representador - sua parte, que antes já foi
inventada, num papel..." (Grande Sertão, 5a. ed., Rio de Janeiro, José
Olympio, 1967, p. 366).
Assim como, até no plano físico, o filhote de homem difere dos dos outros
animais por "nascer inacabado" e dependente por tanto tempo de seus pais,
também o homem não está de antemão "definido" pela criação. É justamente
neste ponto que reside a razão última de sua existência já que ele está no
mundo para completar ("passar a limpo em realidade-ato") a criação divina,
realizando-se a si próprio em meio a um processo para o qual o poeta
Píndaro já há muito chamou a atenção: "Torna-te o que és!". Paradoxo?
Obviedade? Não, simplicidade inalcançável à compreensão humana, tão
acostumada e confiante nas complicações do mundo no qual se refugiou, o
mundo das contas do seguro que devem ser pagas até o dia 22, do tio que
não vem à festa de Natal por estar descontente com a partilha feita da
herança recebida, da meia-calça que desfiou em meio à festa etc, etc...
Descobrir o que ele próprio é (o seu quid) nesse emaranhado no qual se
encontra e agir em conformidade com isto são, ao mesmo tempo, os grandes
problemas e as grandes soluções da existência do homem. Ele se constrói no
próprio ato de ser e está chamado a ser o que é, nem mais, nem menos. Sua
virtude está exatamente nesse meio termo e essa é a parte que lhe cabe na
continuação do projeto divino, a partir do qual foi criado.
Embora incompleto, o ato criador de Deus não deixou o homem desamparado
para sua misão auto-realizadora, ao contrário, "equipou"-o com os
instrumentos necessários. Assim, à semelhança do Criador que fez o mundo e
"viu que ele é bom", o homem tem, por natureza, uma atitude de amor, ou
seja, de afirmação do que é. Amar alguém, alguma coisa ou lugar é, antes
de tudo, reiterar o ato que o criou, aprovando-o. É, em última instância,
compartilhar com o Criador do sentimento que o moveu à criação, algo que
alguém traduziu em um pára-choque de caminhão: "Se você não existisse, eu
te inventaria".
Deste modo, como "matéria-prima" para a realização de si (o seu quid) o
homem conta com essa aspiração do bem que, em nosso exemplo, se manisfesta
no motorista de caminhão apaixonado. É a partir dela, dessa virtude moral,
que o homem age no mundo, escrevendo em pára-choques entre tantas outras
coisas. Entretanto, tais propensões instintivas para o bem precisam
existir, ser efetivadas e desenvolvidas para que a realização do homem se
dê, para que ele "seja". É então no agir que o homem se faz, na medida em
que as ações que pratica sejam condizentes com a sua condição de abertura
para a totalidade do real, traduzindo, neste sentido, a razão reta ao
agir. Tal é o meio para se atingir o bem humano, qual seja, a sua
auto-realização, o que é assunto da prudência (naturalmente, "prudência",
aqui, no sentido clássico de prudentia - a recta ratio agibilium - e não
na medíocre acepção contemporânea...).
A prudência aparece, deste modo, enquanto razão prática e sabedoria
concernente às coisas humanas. É a partir dessa virtude que o homem pode
aplicar o conhecimento da realidade à realização do bem, como "proa
inteligente", nas palavras de Paul Claudel. Ela orienta o homem para o
ser, para a perfeição do "fazer a verdade" (Jo 3, 21) através da ilimitada
variedade que constitui o mundo. Todas as demais virtudes têm na prudência
a matriz, já que a realização do bem, em qualquer aspecto ou situação só
se dá em conformidade com a a realidade e verdade das coisas, precisamente
discernida pela prudência. Não adianta, por exemplo oferecer um casaco bem
felpudo a quem tem fome em um dia de verão, mesmo que as intenções do
doador sejam as melhores possíveis, sua ação não condiz com a realidade
das coisas e, portanto, não atinge o objetivo proposto de fazer o bem.
Assim, embora o sujeito tenha tido a vontade de fazer o bem, não foi
orientado em sua ação pelo conhecimento da realidade.
Neste sentido, é por meio da prudência que o homem atinge a liberdade mais
verdadeira que é ser capaz de agir como realmente quer, ou seja, uma ação
que concretize suas aspirações naturais para o bem. A conquista desta
liberdade é exatamente o que cabe ao homem na busca e realização de si
próprio. Para tanto, ele conta com sua capacidade natural de abertura para
a o mundo, que se dá por meio tanto da vontade (apetite espiritual) quanto
da inteligência (conhecimento espiritual). É por meio, então destas duas
vias que a ação prudente pode tomar forma, sendo ela constituída por duas
etapas complementares.
A primeira delas é de caráter cognoscitivo e diz respeito ao exame da
realidade por meio da razão (entendida aqui como todas as formas de posse
da realidade) que aconselha e julga o que é de acordo com o real, ou seja,
com o bem humano. A segunda delas, mais importante até (já que se trata da
razão prática, ligada ao agir), tem caráter diretivo e é aquela pela qual
o sujeito age conforme aquilo que aconselha e julga como bom (oferecendo,
por exemplo, comida e não qualquer outra coisa a quem tem fome).
Estes dois requisitos indispensáveis à prudência fazem com que ela seja
acessível apenas aos homens, graças às faculdades espirituais de sua alma,
que lhe proporcionam abertura para a realidade, como também por meio dos
sentidos externos, próprio de todos os seres viventes, e dos sentidos
internos. As capacidades proporcionadas por tais sentidos atuam de modo a
constituir a prudência, como partes que lhe integram:
Memória: a prudência é gerada e desenvolvida pela experiência e pelo
tempo. A experiência resulta da memória dos casos repetidos. Considera-se,
assim, que os velhos estejam "mais aparelhados" do que os jovens para agir
prudentemente, embora a prudência não lhes seja exclusiva e - tal como o
"velho do Restelo" - tenham uma propensão para o pessimismo.
Intelecto: todo o processo da razão procede do intelecto e a prudência é,
justamente, a aplicação da razão reta aos atos.
Docilidade: como os caso particulares são infinitamente diversos e não
podem ser considerados por um único homem, é necessário que o homem esteja
pronto para receber o ensino: da realidade e de outrem. Precisa estar
aberto a aprender (e apreender) a realidade com suas próprias
experiências.
Solércia: para a reta apreciação do que deve fazer, o indivíduo precisa
estar pronto a descobrir o que convém a cada situação.
Razão: uma das partes do agir prudente, o conselho (inquirição, o passar
de uma coisa para outra, aconselhar-se consigo mesmo), que é necessário ao
raciocínio acertado, é função da razão. É pelo conselho que a prudência é
aperfeiçoada, já que seu objeto são os meios a serem postos em prática em
vista do bem humano. O conselho e a prudência são, então, correlatos.
Providência (ver de longe): determina com antecedência, prevendo se
determinado ato será ou não verdadeiro caminho para a realização do bem. É
a principal parte da prudência.
Circunspecção: ao contrário do significado de "introspecção carrancuda"
que a este termo atualmente atribuímos na linguagem comum, trata-se aqui
do exame e da comparação dos meios, levando em consideração as
circunstâncias que se apresentam na realidade. Para o agir prudente, tanto
os meios quanto os fins devem ser bons, o que é contingente devido à
infinidade de circunstâncias possíveis.
Cautela: versa sobre os atos contingentes no sentido de que o mal seja
evitado, mesmo estando mesclado com o bem, devido à multiformidade dos
atos.
Para a realização da ação prudente, o homem conta, também, com algumas
virtudes que, como partes potenciais, são anexas à prudência. São elas:
Eubulia: indagação racional sobre as ações que se deve praticar, o que
proporciona a retidão em deliberar. Tal virtude, diferentemente da
prudência, não é preceptiva, a ela cabe apenas, ordenar para a prudência.
Sínese: virtude que faz o homem julgar acertadamente.
Gnome: perspicácia de juízo que se aplica ao julgamento de casos que fogem
às regras comuns.
De acordo com o tipo e o domínio das ações que se realizam, a prudência
pode ser classificada em espécies distintas entre si, cada uma das quais
corresponde uma parte subjetiva da prudência:
A arte de legislar ou de reinar: a prudência é a virtude própria do
governante, a quem convém uma prudência de natureza especial e
perfeitíssima, já que a sua administração, para ser perfeita, deve estar
ligada à razão.
Política: é a prudência pela qual dispomos convenientemente o que pertence
ao bem comum. Corresponde à retidão de direção que os indivíduos devem ter
para que dirijam a si próprios na obediência das regras e leis
estabelecidas para a vida em sociedade.
Econômica: corresponde à boa direção da vida no que se refere à sociedade
doméstica.
Militar: prudência especial, que dirige particularmente as atividades
militares.
Entretanto, assim como a vontade e o intelecto humano constituem as causas
e as condições para que o homem dê continuidade ao projeto divino, para
que ele seja, é exatamente a estas faculdades espirituais da alma humana
que podem se impor os maiores empecilhos para aquela realização.
Neste sentido, portanto, a prudência pode ser impedida tanto por meio de
vícios que incidam sobre suas partes referentes ao conhecimento (conselho
e julgamento), quanto naquela que se refere ao desejar e agir. Tais vícios
correspondem, então, a duas categorias distintas e dão origem a dois tipos
de imprudência, quais sejam, por irreflexão (ligadas ao conhecimento) e
por indecisão (referentes ao desejar e agir). No exemplo do sujeito com
fome, o outro pode deixar de lhe oferecer um prato de comida por não
considerar a situação e, portanto, por "não se tocar" com ela (ou por
achar que não é o caso...) como também pela indecisão de pôr em prática o
ato (digamos, de socorrer o faminto) recomendado por sua razão.
Podemos classificar as imprudências, também, por outros dois critérios e
temos então um tipo que se traduz em vícios manifestamente contrários à
prudência e outro tipo que, embora também se oponha à prudência, guardam
certa semelhança com ela. No primeiro dos casos, encontramos os vícios que
se afastam das regras que tornam o agir de acordo com a razão reta. São
vícios que têm como matriz principal a luxúria, ou seja, o fato de que a
ponderação que caberia à tomada de decisão e à ação é corrompido pela
sôfrega e descabida busca de prazer.
Assim, o agir é imprudente devido a:
Precipitação: que corresponde à ação movida pelo ímpeto da vontade ou da
paixão, o que tem como resultado a desordenação do conselho. Em casos como
este o sujeito age sem se ater aos passos ou etapas necesários à razão
reta, quais sejam: memória das coisas passadas, inteligência das recentes,
solércia no considerar os acontecimentos futuros, raciocínio e docilidade.

Inconsideração: falta de retidão do juízo. É, portanto, uma falha no ato
de ajuizar o que já foi observado a partir da realidade. A este vício se
opõem as seguintes partes integrantes da prudência: circunspecção e
cautela; e as potenciais: sínese e gnome.
Inconstância: abandono de um bem maior a que antes se propunha em vista de
paixões que deordenam a vontade. Falha-se, portanto, no ato de ordenar o
que fora aconselhado e julgado pela razão.
Ainda neste domínio das imprudências, encontra-se a negligência que
constitui um pecado especial oposto à prudência devido à falta de
solicitude do sujeito que empreende a ação. Trata-se de de uma falta de
eleição reta dos meios conducentes ao fim, o que é peça fundamental e
decisiva do agir prudente.
O segundo tipo de imprudência diz respeito aos vícios que, embora sejam
opostos à prudência, guardam semelhaça com ela por implicarem um certo uso
da razão. Esse tipo de vício nasce da avareza, ou seja, da desmedida
aspiração por toda a espécie de posse. O primeiro deles é chamado de
"prudência da carne" e se traduz na aplicação de esforços com vistas a um
fim que não está ligado ao bem humano, ao contrário, é o bem da carne que
é eleito como fim último da vida. Chamaríamos, então, de imprudentes as
ações pautadas exclusivamente por objetivos relacionados ao sucesso
profissional, amoroso, financeiro, etc. e desvinculadas do bem do homem.
Outro vício que guarda certa semelhança com a prudência é a astúcia, que
corresponde ao uso de meios não verdadeiros com vistas a atingir um
determinado fim. A astúcia é, então, aplicada ao enganar e compreende, em
sua execução, ao dolo, ou seja, o induzir outrem ao erro por meio de atos
ou palavras, e a fraude, que se aplica à execução da astúcia por meio de
atos. Ainda no que se refere a este tipo de vício que apresenta certa
semelhança com a prudência, temos uma outra espécie ainda mais sútil que é
a soclicitude por coisas temporais e não por bens espirituais. De três
formas este vício pode se apresentar: se tomarmos as coisas temporais como
o fim último de nossas ações, se nossos esforços forem demasiado
exagerados (o que pode nos afastar dos bens espirituais) ou se tivermos
temor exagerado em não alcançar nossos objetivos.
A imprudência parece, assim, caracterizar a vida do homem moderno tão
cheio de cobranças para que ele realize coisas (ganhe dinheiro, pague as
contas em dia, case, compre coisas, estude, seja saudável, seja
politicamente correto...). E mais, a solicitude também pode se converter
em vício se for aplicada ao futuro, assim, não são prudentes as
preocupações, o que torna ainda mais difícil a verificação de uma postura
prudente em nossos dias. Entre nós, ao contrário, tem-se que prudente é
aquele que tem uma gorda poupança no banco para lhe garantir a velhice.
Estas breves análises realizadas no âmbito de um estudo a propósito do
conceitos de prudência e de imprudência, tais como propostos por Santo
Tomás de Aquino, ressaltam a acentuada relação que as mesmas guardam com o
mundo "concreto". Assim, a prudência do agir tem como fator condicionante
a própria realidade e mesmo uma ação aparentemente prudente pode, em
certas circuntâncias, se traduzir em imprudência. A prudência se constrói,
neste sentido, em cada ato humano, não residindo em um mundo da abstrações
ideais. Como vimos, uma situação na qual exista um indivíduo com fome e
outro que pode lhe dar o que comer não pode ser considerada da mesma forma
nos diferentes e infinitos contextos possíveis.
Esta vinculação com a realidade caracteriza fortemente as idéias de Santo
Tomás a respeito do homem podendo ser verificada, decorrentemente, nas
formulações educacionais que delas podem ser derivadas. A educação
volta-se, nesta perspectiva, para realização humana, para o ser do homem.
Seu objetivo central é de levá-lo a alcançar a ultimum potentiae, a sua
virtude. Trata-se da educação para a liberdade, para o conseguir fazer o
que realmente se quer (o que está em consonância com o que o homem é).
Entretanto, esta liberdade não é dada e sim conseguida através do próprio
exercício das virtudes, que se traduzem em hábitos bons. É exatamente o
educar para hábitos bons, para as virtudes, a que corresponde uma educação
para a liberdade. É uma educação invísivel, que ocorre não através de
disciplinas específicas mas sim em meio ao próprio processo educacional,
tendo como alicerce a formação para a prudência, já que ela é a matriz de
todas as demais virtudes.
A educação volta-se, assim, para a formação de homens que se relacionem
com a criação divina da forma como a sua própria condição humana os chama
a fazer, ou seja, compartilhando com o Criador uma postura de
receptividade sincera e verdadeira da realidade, em sua totalidade. Como
já foi visto, uma atitude como esta implica tanto o uso da razão, para
apreender e julgar o que se apresenta na realidade das coisas, quanto da
vontade para o aplicar-se àquilo que mais convém. Deste modo, a formação
para a prudência aparece enquanto objetivo fundamental de uma educação que
se proponha voltada aos aspectos éticos nela implicados.
Entretanto, as dificuldades que se impõem a este tipo de educação são
bastante fortes e persistentes, sendo as mesmas presentes no processo de
realização humana e tendo como fonte a própria condição humana. O primeiro
dos empecilhos ao ser humano (ou ao ser do humano, melhor dizendo) lhe é
bastante fundamental e remete ao fato de que o homem é, por natureza, um
ser que esquece, é um "esquecente" (e este é, precisamente, um dos fatores
que o distancia do seu Criador, no "compartilhar" com Ele do mundo).
Assim, o homem embora não se esqueça de pagar a conta do seguro no dia 22,
não se lembra do que lhe é mais fundamental, ou seja, do fim último de sua
existência, do seu bem. Entretanto, o lembrar-se está vinculado de forma
bastante estreita à auto-realização, já que o homem é caso alcance
justamente aquilo que esqueceu. Mas como pode chegar a este bem se nem ao
menos se lembra qual seja ele?
A educação se apresenta, neste sentido, enquanto cúmplice do homem em seu
processo de auto-realização, na medida em que se volta para o resgate
daquilo que foi por ele esquecido. Cabe a ela, portanto, chamar a atenção
do homem para tudo o que contenha indícios que apontem para o fim a que
ele deve chegar e também para os meios necessários. Tudo isto, fim e
meios, está na presente na própria cultura dos homens, guardiã do que foi
esquecido. As instituições, as tradições, os costumes, as festas, os
cultos, os rituais, as formas de linguagem, etc, são traduções do que o
homem é. Assim é porque as poesias, os ditados, os provérbios, as fábulas,
as canções, os ritmos, são frutos de insights (momentos de lembrança) que
trazem ao homem o que ele é ou está chamado a ser.
Cabe à educação, enquanto instituição que apresenta o mundo àqueles que
chegam nele por meio do nascimento, este trabalho de resgate, de mostrar
ao homem os passos que ele (a humanidade) já deu em direção de si mesmo.
Tal é significado da educação neste processo pois a sua própria criação,
enquanto instituição, fundamenta-se na idéia de que o homem precisa ser
lembrado, que ele esquece, que não se recorda até, e principalmente, que
esquece.
É o que nos lembra a obra de Santo Tomás!



* Este estudo - originalmente seminário do curso de Pós-Graduação da
FEUSP: "A educação para as virtudes na tradição ocidental" - pretende
simplesmente trazer, para uma primeira consideração do educador
contemporâneo, alguns dos conceitos clássicos em torno da virtude da
prudência, no pensamento de Santo Tomás de Aquino. Um tratamento
contemporâneo detalhado do tema encontra-se, por exemplo, em Pieper, J.
Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960. Alguns aspectos da prudência e
da educação para a prudência são tratados também em Lauand, Luiz Jean
Provérbios e Educação Moral: a filosofia de Tomás de Aquino e a Pedagogia
do Mathal, São Paulo, Hottopos, 1997.



Prudência, Memória e Docilitas na Recuperação do AlcoolismoPrudência,
Memória e Docilitas
na Recuperação do Alcoolismo

Luiz Ferri de Barros (1)

1. Apresentação

Neste artigo apresentarei, de forma breve e despretensiosa, algumas
reflexões a respeito da filosofia de recuperação adotada pelos grupos
anônimos de auto-ajuda, particularmente a adotada pela Irmandade dos
Alcoólicos Anônimos (AA), à luz da doutrina das virtudes cardeais de Santo
Tomás de Aquino.
Creio que este tipo de abordagem cumpre dois importantes objetivos. O
primeiro refere-se à possibilidade de um melhor entendimento sobre as
origens remotas e o significado profundo da filosofia de desenvolvimento
espiritual contida nos Doze Passos dos AA (2), programa de recuperação que
também é adotado pela maioria dos outros grupos anônimos de auto-ajuda. O
segundo aspecto de interesse nessa análise é a demonstração de que há
lugares em que a atualidade da filosofia de Tomás de Aquino não se trata
apenas de anseio por uma educação moral ao meio de uma sociedade "sem
valores".
De fato, nos grupos de auto-ajuda, mesmo que não se conheça a origem de
diversas proposições, as pessoas praticam filosofias de crescimento
espiritual que as levam a tentar cultivar virtudes. Sob certo aspecto,
talvez seja possível dizer que muitos grupos de auto-ajuda constituem-se
em raras instâncias sociais onde a educação moral é, muitas vezes, direta
e explícita e não se dá por intermédio de uma "educação invisível"- para
usar a consagrada expressão do educador espanhol Garcia Hoz.
Para efeitos desta análise, assumirei a interpretação da doutrina de Santo
Tomás conforme exposta por intérpretes contemporâneos, apresentados por
Lauand (3), em especial enfatizando a existência de quatro virtudes
cardeais e o fato de que a prudência é considerada a primeira delas.
Discutirei então o papel da memória e também da docilitas como partes
quase-integrais da prudência.

2. O Vício, as Quatro Virtudes Cardeais e os 12 Passos de Alcoólicos
Anônimos

Em AA, o alcoolismo em si, em geral, não é designado como vício. Pelo
contrário, a entidade foi a primeira grande defensora da tese de que o
alcoolismo constitui-se numa doença, já em 1935, quando de sua fundação.
Pesquisas científicas posteriores comprovaram este fato e na década de 60
a OMS (Organização Mundial de Saúde) reconheceu o caráter de doença no
beber compulsivo do alcoólatra.
Assim, no sentido de combater preconceitos, educar o público e
principalmente aliviar a dor moral do alcoólatra em recuperação, como
mencionado, a palavra vício, em geral, não é utilizada, embora haja, na
literatura de AA, algumas ocasiões em que ela aparece.
Descontadas as conotações pejorativas da palavra e sua freqüente
inadequação em ambientes de recuperação, e mesmo considerando o caráter de
doença do beber compulsivo, não se pode condenar a sabedoria popular
simplesmente dizendo que seja errado designar-se o alcoolismo como um
vício. De fato, pode-se perceber na linguagem corrente, segundo o Aurélio
(4), acepções da palavra perfeitamente condizentes com o proceder do
alcoólatra na ativa, tais como:
- "costume de proceder mal; desregramento habitual".
- "conduta ou costume censurável ou condenável (...)"
e, ainda, em sentido mais profundo, que os AA muito discutem:
- "inclinação para o mal (nesta acepção opõe-se a virtude)."
Vale, portanto, recuperar-se a idéia popular de vício, até para que se
entenda com clareza que é por meio de um programa de crescimento
espiritual (os 12 Passos e demais elementos da filosofia de AA),
incentivando a prática de virtudes, que se consegue dar continuidade à
recuperação das dependências. Em AA não basta parar de beber. Até porque
não se acredita, a partir de mais de 60 anos de experiência acumulada, que
seja possível apenas parar de beber. Para que não se volte a beber, diz a
experiência, é preciso dispor-se a passar por profundas mudanças pessoais,
na verdade a reformulação completa da cosmovisão e do estilo de vida (um
processo de metanóia, pode-se dizer), o que se obtém pela prática do
programa de desenvolvimento espiritual.
Enquanto a medicina classifica o alcoolismo como uma doença
biopsicossocial, a AA não abdicou de sua classificação original,
considerando-a como uma doença física, mental e espiritual não apenas
porque o etilismo afeta o espírito como porque para recuperar-se é
necessário recuperar igualmente o espírito. Como disse Jung, em carta
dirigida a um dos co-fundadores de AA, "álcool em latim é spiritus e
usa-se a mesma palavra para a mais alta experiência religiosa assim como
para o mais perverso veneno. A fórmula auxiliadora é pois: spiritus contra
spiritum. (5)"
O alcoolismo é uma doença progressiva; a partir de um determinado ponto, o
sofrimento moral constitui ao mesmo tempo uma das maiores dores do
alcoólatra e um dos maiores obstáculos à sua recuperação.
Não é por outro motivo que a realização de um "minucioso e destemido
inventário moral", por escrito, constitui-se num dos primeiros passos do
programa de recuperação (quarto passo). Ao enfrentar o quarto passo, o
alcoólatra em recuperação vai deparar-se novamente com o vício, em todas
as suas frentes. No quarto passo, para quem o pratique conforme sugestão
dos primeiros AA, serão examinadas, principalmente, as deturpações dos
instintos, o que se dá quando, desenfreados, os instintos deixam de
cumprir seus papéis naturais de auto-preservação e crescimento e passam a
ser forças destrutivas. A pessoa é convidada a examinar seu comportamento
e suas convicções no que se refere a alguns assuntos especialmente
sensíveis, tais como sexo, dinheiro, poder e, à falta de melhor roteiro de
aceitação universal, para empreender o inventário é sugerida reflexão a
respeito de cada um dos sete pecados capitais.
Todo esse esforço justifica-se para combater o que os AA denominam de
"defeitos de caráter", ao mesmo tempo motivos e conseqüências do
alcoolismo. Podem também ser chamados de "defeitos de personalidade".
"Alguns chamariam de ‘índice de desajustes’. Outros se incomodariam
bastante se se falasse em imoralidade, e mais ainda se se falasse em
pecado. Contudo, todos os que sejam razoáveis concordarão em um ponto: que
há bastante de errado em nós alcoólicos, havendo muito que fazer se
esperamos conseguir a sobriedade, o progresso e a verdadeira capacidade de
enfrentar a vida" (6).
Diversos comportamentos constelados do alcoólatra na ativa, frutos dos
"defeitos de caráter" e dos "instintos desenfreados", poderiam, com
liberdade de expressão, ser igualmente designados como vícios, em qualquer
dos três sentidos citados acima e em especial enquanto opostos à virtude.
Daí a necessidade de entregar-se à mudança, dispondo-se a tentar uma
prática mais virtuosa, para poder-se liberar das amarras da dependência.
Analisando-se detidamente a filosofia de recuperação dos AA, pode-se
identificar que ela propicia condições excepcionalmente favoráveis para o
cultivo das quatro virtudes cardeais definidas por Santo Tomás: Prudência,
Justiça, Fortaleza e Temperança.

PRUDÊNCIA

Sendo a Prudência a virtude primeira e, para os clássicos, uma virtude
intelectual, que consiste na "arte de decidir-se com base no conhecimento
objetivo da realidade (...) pelo límpido conhecimento do ser" (7), é
naturalmente inacessível a quem se mantenha continuamente alcoolizado. A
conquista da abstinência é, portanto, a primeira contribuição objetiva que
o grupo oferece ao novo membro. A manutenção da abstinência e a prática da
filosofia de recuperação permitirão o cultivo e o fortalecimento da
prudência em outras formas, algumas das quais comentarei no tópico
seguinte.

JUSTIÇA

A Justiça, entendida classicamente como "dar a cada um o que lhe é de
direito", é cultivada, de forma inequívoca, no oitavo e nono passos, que
sugerem fazer "uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado" e
fazer "reparações diretas dos danos causados a tais pessoas". E também no
décimo passo encontra-se um preceito relacionado à justiça: "Continuamos
fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos
prontamente".
Vale comentar que os antigos em AA esclarecem com nitidez que as
reparações do nono passo não significam necessariamente pedir perdão e nem
podem se resumir ao pedido de perdão quando existe a possibilidade da
reparação plena. Por exemplo, não é o caso de se desculpar por uma dívida,
é o caso de pagá-la. A pronta admissão de um erro pessoal, junto a outras
pessoas, é também um ato de dar ao outro o que lhe é de direito, no caso,
a razão: o outro estava certo, não eu - admitir isto é um ato de justiça.

FORTALEZA

A Fortaleza, em alguns de seus aspectos principais, tais como o considerar
a "vulnerabilidade do homem como seu ponto de partida" e considerar a
"aceitação do sofrimento para alcançar um bem maior" (8), é uma virtude
explicitamente cultivada pela filosofia de recuperação de AA.
Para o alcoólatra (etimologicamente: aquele que adora o álcool, idolatra o
álcool), deixar de beber consiste de fato em ato heróico. Até porque,
mesmo considerando que as pessoas só buscam recuperar-se quando já estão
no "fundo do poço", o período inicial de abstinência é caracterizado por
uma intensificação significativa do sofrimento. Enfrentar a síndrome de
abstinência aguda e, em seguida, a síndrome de abstinência prolongada,
representa justamente um grande esforço que o alcoólatra em recuperação
está realizando, aceitando o sofrimento imediato em função de um bem maior
que busca para si mesmo e para os que ama: atingir a sobriedade e a
serenidade.
A valorização da consciência a respeito da própria vulnerabilidade
encontra-se expressa com absoluta limpidez no seguinte Princípio de Ouro:
"A fraqueza é a força" . Os Princípios de Ouro, em AA, são uma coleção de
cerca de 30 aforismos que de forma sintética ilustram e complementam a
filosofia de recuperação apresentada ao longo da extensa literatura do
grupo. Na realidade, o primeiro passo de recuperação ("Admitimos que
éramos impotentes perante o álcool (...)"), entremeia-se, ele também, com
esse mesmo componente da fortaleza que está implicado na admissão da
vulnerabilidade.

TEMPERANÇA

Com relação ao álcool, AA não é um movimento de Temperança, e isto é
explicitamente declarado em sua literatura (9). O portador da doença do
alcoolismo caracteriza-se precisamente por sua incapacidade de controlar a
ingestão de álcool. A doença é considerada incurável e a possibilidade de
recuperação consiste em se alcançar uma disciplina que permita o controle
da doença a partir da abstinência total. É possível para o alcoólatra
controlar seu alcoolismo e permanecer sem beber, entretanto não é possível
que ele volte a beber moderadamente, sem perder o controle.
Esta negação da possibilidade de comedimento com relação ao álcool é
extremamente importante e encontra-se já no primeiro passo: "Admitimos que
éramos impotentes perante o álcool (...)". Antes da realização do primeiro
passo, a maioria dos ingressantes em AA almeja alcançar a temperança, a
possibilidade de beber socialmente, sem perder o controle. Ressalte-se,
inclusive, que embora o alcoolismo seja uma doença que atinge grandes
faixas da população mundial (cerca de 10% dos indivíduos), poucos são os
médicos que a conhecem adequadamente. É comum que os médicos, movidos pela
idéia da temperança, aconselhem seus pacientes alcoólatras a "maneirarem"
com a bebida, atitude que está fora do alcance e que apenas retarda a
recuperação.
Em outros aspectos da vida, entretanto, pode-se com segurança afirmar que
a temperança é uma virtude que tentam praticar muitos dos que seguem a
filosofia de AA. Para a própria manutenção da abstinência recomendam-se
cuidados com a alimentação e o descanso, por exemplo. Indica-se que a
compulsão do alcoólatra não se restringe à sua maneira de beber,
estendendo-se para várias de suas atividades, podendo ser igualmente
nociva em outras áreas, inclusive no trabalho (o que hoje se denomina
workaholics).
Outra questão extremamente discutida em AA, e muito valorizada, é a
necessidade de se adquirir controle emocional, sendo necessária uma
permanente vigilância de si mesmo para evitar a vivência de estados
excessivamente alegres (euforia) ou excessivamente tristes (depressão),
visto que estes extremos são perigosos para a manutenção da abstinência.
Esta tentativa de conservação de equilíbrio, de comedimento em relação às
próprias emoções, relaciona-se também à prática da virtude da temperança
(10).

3. Prudência, Memória e Docilitas na Recuperação

A Prudência, como já mencionado, é a primeira das quatro virtudes cardeais
e, por essa razão, vale determo-nos a examinar alguns de seus aspectos com
mais atenção.
Embora sua definição no sentido em que a considerava Santo Tomás
(Prudentia), de acordo com Lauand, já tenha sido apresentado no início
deste artigo ("arte de decidir-se com base no conhecimento objetivo da
realidade (...) pelo límpido conhecimento do ser") cabe alguns comentários
a respeito do sentido atual da palavra.
Lauand (11), na linha de Garrigou-Lagrange, aponta para o sentido de
indecisão, de excessiva cautela que o termo prudência adquiriu na
atualidade, distanciando-se de seu significado original que indicava
exatamente a disposição de agir de forma pronta e corajosa, tomando o
partido do que é justo a partir da capacidade de enxergar a realidade de
forma límpida. Estes autores chamam a atenção para o fato de que,
atualmente, a prudência adquire uma conotação negativa. Nas palavras
registradas por Garrigou-Lagrange, em 1926: "De fato, em muitos
dicionários, a definição dada a prudência faz pensar num tipo de virtude
totalmente negativa, que nada tem de virtude a não ser o nome. Seria a
prudência uma qualidade negativa?" (12)
Não há dúvida quanto ao empobrecimento do conceito e, a rigor, pode-se
dizer que a expressão latina prudentia não encontra na nossa prudência - e
em nenhuma outra palavra - tradução adequada. Entretanto, cautela em si
mesma, desde que não represente covardia, pode ser fruto da prudência (no
sentido original), quando instruída por uma avaliação correta e justa da
realidade. Neste sentido não parece necessário a condenação do significado
atual da palavra tout court, bastando que se alerte para sua anterior
amplitude extraordinariamente mais rica.
Este ponto é importante porque em AA, com relação ao álcool
principalmente, os dois significados de prudência são decisivos. A cautela
que se aprende a exercitar, caracterizada pelo cultivo de uma série de
atitudes e comportamentos, é indispensável para a manutenção da
abstinência. Trata-se de uma cautela (sentido atual de prudência)
inspirada na consciência a respeito da própria condição de alcoólatra,
porque a pessoa adquiriu a perspectiva de enxergar-se a si mesma, ao
álcool e ao mundo com limpidez (sentido anterior de prudência).
Creio, assim, que cautela, precaução e cuidados não se excluem da
prudência enquanto virtude primeira que atua sobre o agir, desde que não
estejam a serviço da omissão, da covardia e outros comportamentos imorais.
Esclarecidas essas questões quanto ao significado de prudência enquanto
virtude, é indispensável considerar que para Santo Tomás existem diversas
outras virtudes que a compõem de forma indissolúvel, sendo suas partes
quase integrais, como ele diz. Memória e docilitas são as duas virtudes
quase integrais da prudência que analisarei aqui, dado sua relevância na
recuperação do alcoolismo, especialmente se essa recuperação é enxergada
como um processo de re-educação - o que consiste na minha tese central
para entendimento dos grupos de auto-ajuda.
O termo memória não carece de esclarecimentos nesse momento. "Docilidade",
a tradução corrente de docilitas, encontra-se dicionarizado de forma
adequada para uma boa correspondência com o significado latino original
("Qualidade ou caráter de quem se submete ao ensino, de quem aprende
facilmente; de quem é fácil de conduzir, de guiar") (13). Entretanto,
prefiro manter o uso da expressão latina, como o faz Lauand, porque na
linguagem corrente o termo em português permite também uma interpretação,
se não pejorativa, destituída da força de significado de sua acepção
original - uma verdadeira "dimensão moral: a atitude interior de humildade
receptiva" (14).
A memória faz parte da prudência, segundo Santo Tomás, porque, como já
dizia Aristóteles, "a virtude intelectual é gerada e desenvolvida pela
experiência e pelo tempo. Ora, prossegue Tomás, a experiência resulta da
memória de casos repetidos (...). Por onde e conseqüentemente a prudência
exige a memória de casos multiplicados. (15)"
A linguagem, o grande fruto e a grande alavanca da cultura humana, permite
o acúmulo das experiências individuais passadas e presentes, ampliando a
possibilidade de conhecimento de cada pessoa para muito além do universo
de suas próprias vivências. A possibilidade de aproveitar-se desse cabedal
de sabedoria dos outros, sejam os contemporâneos ou os antigos,
multiplicando a memória de cada um, exige docilitas e é por isso que a
docilitas faz parte da prudência.
Reconhecer-se como alcoólatra e realizar o primeiro passo ("Admitimos que
éramos impotentes perante o álcool (...)") é, nitidamente, um ato de
prudência, pois consiste na percepção límpida de uma realidade
inquestionável que, até então, o alcoólatra na ativa vinha negando.
Manter-se abstinente é igualmente um ato de prudência pois significa a
única ação justa que o alcoólatra pode desempenhar frente à bebida a
partir do reconhecimento de seu alcoolismo.
Parar de beber, entretanto, como se diz em AA, não é o maior problema. O
problema é não voltar a beber. Para não voltar a beber - isto é: para
manter a prudência -, memória e docilitas são, então, fundamentais. A
memória individual é fundamental, para que não se perca de vista o
sofrimento anterior à abstinência. A experiência do grupo, representando a
memória da experiência dos antigos e dos outros companheiros
contemporâneos, é imprescindível para iluminar o caminho de como se vencer
a obsessão pela bebida e de como realizar o processo de mudanças pessoais
que representa o crescimento espiritual, única senda reconhecida como
capaz de manutenção permanente da abstinência. Para o desfrute desta
"memória dos outros", a experiência dos antigos e dos contemporâneos, é
necessário que se pratique a docilitas.
Em AA se diz que "força de vontade" não é suficiente para se parar de
beber. O necessário é que se tenha "boa vontade" (16) para entregar-se ao
programa de recuperação. Esta boa vontade solicitada do novato nada mais é
do que a docilitas, por excelência a virtude do aprendiz. A força de
vontade isoladamente não resolve porque é praticada por conta própria, a
partir de referências exclusivamente pessoais e como tentativa de fazer
valer a supremacia egóica. A boa vontade geralmente resulta em sucesso
porque permite à pessoa abrir-se para compartilhar as "experiências,
forças e esperanças" de todo o grupo, assim passando a efetivamente
desfrutar do apoio indispensável para a recuperação.
O sexto e sétimo passos, por alguns chamados de "passos da transformação",
permitem, por sua própria leitura, identificar a docilitas como uma
virtude central da programação de AA: "Prontificamo-nos inteiramente a
deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter" e "Humildemente
rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições". Estes passos vêm
logo após a realização do inventário moral, onde se identificam os
"defeitos de caráter" e é importante que se diga que, em AA, é corrente a
noção de que o Poder Superior só faz a parte d’Ele se cada um fizer a sua.
Memória é uma virtude de difícil prática, pois que o homem, por natureza,
é um ser que esquece, não sendo por outro motivo que em árabe Homem é
designado por "Insan", termo cujo significado etimológico é "esquecedor"
(17).
Por isto a continuidade de freqüência às reuniões é importante, mesmo para
os que já se encontram em estados avançados de recuperação. É comum
ouvir-se depoimentos de pessoas que dizem que estão na reunião para não
esquecer que são alcoólatras. Não é outro o motivo porque todos o membros
de AA, ao prestarem depoimentos nas reuniões, apresentam-se seguindo um
mesmo padrão: "Meu nome é Fulano, eu sou um alcoólatra..." A infinita
repetição, antes de ser uma técnica behaviorista de ensino já era uma
fórmula presente no Oriente, onde na palavra dhikr mesclam-se os
significados de memória e repetição (18). Mais que isto, creio que a
apresentação em que se declina a condição de alcoólatra, seguida de um
depoimento pessoal em que normalmente se expõem fatos e sentimentos de
natureza íntima, corresponde à prática de um tipo de meditação profunda
que Santo Tomás considerava como a quarta lei da memória (19). Esta
repetição praticada por todos beneficia não apenas os oradores mas também
os ouvintes, em especial os novatos, às vezes ainda em processo de negação
da doença pois, como diz o provérbio oriental: "A repetição deixa sua
marca até nas pedras. (20)"
A repetição em AA por vezes é tão marcante que há membros do grupo que
chegam a se incomodar com companheiros que, anos a fio, falam praticamente
a mesma coisa em seus depoimentos, sem alterar suas falas. Os antigos em
AA dizem que isto não tem a menor importância se está servindo para manter
a abstinência do companheiro. Na verdade, há um aforismo em AA que enuncia
o seguinte: "Eu falo para mim mesmo. Porque o meu ouvido é o que está mais
próximo de minha boca e eu sou o primeiro a ouvir". Considerando esta
obviedade, talvez se possa interpretar que a fala só se alterará quando a
necessidade de memória daquele depoimento específico for superada.
Em AA respeitam-se igualmente os antigos e os ingressantes. Os antigos,
denominados desta maneira, representam a experiência acumulada e o ideal a
ser atingido. Os especialmente dedicados à Irmandade e mais solícitos no
apoio aos outros são considerados "velhos mentores": são representantes
supremos da memória coletiva.
O ingressante, quando pela primeira vez chega a uma reunião, é tratado por
todos como sendo "a pessoa mais importante". O novato é importante porque
ele representa o futuro e a renovação da Irmandade mas, principalmente,
porque ele é um elemento de memória para todos os presentes. Quem chega
pela primeira vez numa sala de recuperação, normalmente apresenta-se em
estado lastimável, desorientado, cheio de problemas, muitas vezes
embriagado. A pessoa que vai procurar o grupo está no auge de seu
alcoolismo. O contraste entre seu estado e o estado dos que estão em
abstinência, em recuperação, reforça, pelo efeito demonstração, a
determinação de continuar sem beber entre os membros do grupo. O
alcoólatra em recuperação rememora os tempos de seu próprio sofrimento
quando se depara com outro na ativa.
É necessário que se diga, também, que a importância do ingressante não se
restringe a este efeito quase que cruel. Pelo contrário, todo o grupo de
AA está animado pela inspiração da quinta Tradição (21) e os AA sabem que
ajudar outro alcoólico a atingir a sobriedade é uma das melhores maneiras
de conservar a própria, o que se encontra enunciado no décimo segundo
passo ("Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes
passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar
estes princípios em todas as nossas atividades"). Este décimo segundo
passo não pode ser confundido como sendo uma sugestão meramente altruísta,
ao feitio filantrópico. Ele se constitui numa necessidade porque baseiase
na constatação de que "É dando que se recebe" (22), enunciada nos
Princípios de Ouro de AA da seguinte forma: "Só conservamos o que temos
dando-o a outros".
Esta reciprocidade que se dá no décimo segundo passo corresponde a um tipo
de ato de mão dupla, onde o sujeito é ao mesmo tempo doador e beneficiário
de determinada ação, à moda do que se encontrava presente nas línguas
antigas, pela conjugação de uma forma verbal não existente entre nós (23).
Talvez não seja exagero dizer que, neste caso citado, para a manutenção da
prudência do alcoólatra em recuperação e o despertar da prudência no
ingressante, o que está em curso é um intercâmbio de memórias. Em troca da
experiência de recuperação (a memória coletiva) que lhe oferecem os
membros do grupo, o novato oferece a todos a sua situação pessoal como
memória viva do alcoolismo ativo.
Lembrar-se do período de alcoolismo ativo é quase uma necessidade para que
o alcoólatra seja capaz de manter-se em abstinência. Passado o período
crítico inicial dos primeiros meses, não é raro que a pessoa, à medida que
vai reconstruindo sua vida, resolvendo melhor os seus problemas, volte a
pensar que é capaz de controlar a bebida, podendo beber socialmente. O
alcoolismo é a Doença da Negação, como se costuma dizer, e o Homem é
"Insan" (esquecedor), como dizem os árabes... Por isto a necessidade de
manter a freqüência às reuniões. Entretanto, mesmo freqüentando reuniões,
há de se ter cuidado com as distorções de que a memória é capaz e para
tanto existem também sugestões na literatura do grupo, uma das quais, pelo
menos, é perfeitamente condizente com as concepções de memória enquanto
virtude, conforme entendida por Santo Tomás.
A recomendação expressa para "recordar-se do último porre" é uma
orientação de ordem moral, no sentido de manter-se a memória a serviço da
prudência, fiel à realidade dos fatos. Isto porque com o alívio do intenso
sofrimento a que estava submetido na ativa, o alcoólatra aos poucos vai se
esquecendo das agruras e recordando-se apenas das coisas boas que o álcool
lhe proporcionara no passado. No limite, desenvolve o que se denomina
"memória eufórica", que se caracteriza pela exaltação plena dos prazeres
vividos e esquecimento total ou negação das vivências de sofrimento. Esta
deformação da memória leva infalivelmente à recaída. Para ela não se
manifestar e não frutificar é que se deve exercitar a lembrança dos
últimos porres, das dores, dos vexames e humilhações.
Este é um exercício de memória adequado para que, no caso do alcoólatra em
recuperação, seja possível manter a memória como uma virtude fiel à
prudência. Nas palavras de Pieper: "A ‘boa’ memória, entendida como
requisito de perfeição da prudência, não significa senão uma memória ‘fiel
ao ser’(...) O falseamento da recordação, em oposição à realidade,
mediante o sim ou o não da vontade, constitui a mais típica forma de
perversão da prudência".(24)

APÊNDICE

OS 12 PASSOS DE ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (25)
"1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos
perdido o domínio sobre nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia
devolver-nos à sanidade.
3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na
forma em que O concebíamos.
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.
5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano,
a natureza exata de nossas falhas.
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses
defeitos de caráter.
7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos
dispusemos a reparar os danos a elas causados.
9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre
que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a
outrem.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados,
nós o admitíamos prontamente.
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato
consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o
conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa
vontade.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a esses passos,
procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes
princípios em todas as nossas atividades."




1- O autor é mestre em Educação pela USP, escritor, consultor em
Dependência Química, atualmente desenvolvendo pesquisa de Doutorado sob o
título "Re-educação - A Alquimia dos Grupos Anônimos de Auto-Ajuda". O
presente estudo originou-se a partir das reflexões suscitadas pelo curso
de Pós-Graduação da FEUSP: "A educação para as virtudes na tradição
ocidental".
2- Vide Apêndice, ao final do texto.
3- Lauand, Luiz Jean. Provérbios e Educação Moral - A filosofia de Tomás
de Aquino e a Pedagogia do Mathal. HotTopos. São Paulo, 1997.
4- Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua
Portuguesa. Editora Nova Fronteira. 1 edição, 11 re-impressão. Rio de
Janeiro s/d.
5- Jung, Carl Gustav. C. G. Jung Letters. Routledge & Keagan. London,
1976. pág. 625. Carta a Bill Wilson, em 30 de janeiro de 1961.
6- Alcoólicos Anônimos. Os Doze Passos e as Doze Tradições. JUNAAB - Junta
de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil. São Paulo, 1995.
pág.42.
7- Lauand, op. cit,.págs. 30 e 31.
8- São, respectivamente, o princípio e a conclusão do tratado de Pieper
sobre a fortaleza. Cfr. Josef Pieper Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster,
1960, p. 173 e ss. e p. 194 e ss.
9- Alcoólicos Anônimos. Folheto 44 Perguntas.
10- Para o tema da temperança, veja-se o livro de Pieper, recolhido no já
citado volume Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960.
11- Op. Cit. págs. 30 e 31.
12- Garrigou-Lagrange, Reginald. La prudence - sa place dans l’organisme
des virtus. Revue Thomiste, École de Théologie Saint-Maximin (Var), Année
31, Nouv. Série IX, 1926, p. 411. Apud Lauand op. cit. Tradução minha.
13- Ferreira. op. cit.
14- Lauand. op. cit. pág. 117.
15- Tomás de Aquino. Suma Teológica II-II, 49, 1. 2ª. ed., Ed. bilíngüe em
10 vols. Tradução de Alexandre Corrêa. EST-Sulina-UCS, Rio Grande do Sul,
1980.
16- Alcoólicos Anônimos. Os Doze Passos e as Doze Tradições. op. cit. pág.
29.
17- Lauand. op. cit. pág. 97.
18- Ibidem. pág. 97.
19- Ibidem. pág. 112.
20- Ibidem. pág. 112.
21- "Cada grupo é animado de um único propósito primordial -- o de
transmitir sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre".
22- Oração de S. Francisco, citada na literatura de AA.
23- Trata-se da voz média do grego, que encontra um correspondente no
verbo depoente latino. Em ambos os casos, trata-se de indicar uma ação que
é ao mesmo tempo ativa e passiva, como nascor, nascer (eu nasço ou sou
nascido?), morior (morrer será um verbo ativo?). Exemplo sugestivo, no
presente estudo, é o do verbo loquor, falar: ao externar, comunicando-me
com outros, é que me dou conta de meus próprios pensamentos (devo esta
nota ao Prof. Luiz Jean Lauand).
24- Pieper, J. Das Viegespann, München, Kösel, 1964, pág. 29. Apud Lauand.
op. cit. pág. 113.
25- Publicados pela primeira vez em 1939, no livro Alcoólicos Anônimos. O
título do livro foi adotado como nome oficial da Irmandade que havia sido
fundada em 1935.



Rosvita e o Restabelecimento do Teatro no OcidenteRosvita e o
Restabelecimento
do Teatro no Ocidente
(trad. e introdução L.J. Lauand)

O teatro medieval - como também a Idade Média em geral - continua pouco
conhecido. Conhece-se, sim, o teatro grego, o latino e o moderno; o
medieval, não. Quem, por exemplo - apesar de sua extrema importância
histórica - já ouviu falar da peça Sabedoria e de sua autora, a monja
Rosvita de Gandersheim [1] , do século X?
No entanto, quem superar a ignorância do preconceito e, com um pouco de
abertura, fizer o esforço de compreensão para vencer a barreira de mil anos
de distância, deparará um mundo diferente e inesperado, em que reina o
popular, com seus nítidos contrastes; assistirá a uma aula de matemática do
século X, encontrará mulheres cultas e esclarecidas, um delicioso senso de
humor e uma encantadora simplicidade...
Rosvita é figura de extraordinária importância para a história do teatro:
trata-se de nada menos do que a autora do restabelecimento da composição
teatral no Ocidente! Pois, desde os primeiros séculos, os espetáculos em
geral e o teatro em particular (dado o modo como se realizava o teatro
romano...), eram vistos por muitos cristãos com desconfiança [2] .
Sendo o referencial de teatro, a "escabrosa" comédia latina de Plauto e
Terêncio, compreende-se que seja surpreendente que, em pleno século X, o
teatro seja reassumido pelos cristãos, por uma mulher, e mais, por uma monja
que se propõe imitar Terêncio!
Imitar para inverter! Começa Rosvita o prefácio a suas peças, registrando o
fato de que há muitos cristãos que, pela beleza formal, lêem Terêncio e
assim se mancham com o conteúdo vão e imoral dessas peças. E que, por isso,
ela ("eu, a voz forte da abadia de Gandersheim") não se furtará ao trabalho
de compor um teatro novo: calcado em Terêncio, mas apresentando valores
cristãos.
Trata-se - diz o grande medievalista Étienne Gilson - do começo do teatro
cristão [3] . Schneiderhan afirma que devemos a Rosvita, os primeiros dramas
compostos na Alemanha [4] , no que é complementado pelo crítico Jacques de
Ricaumont: as peças de Rosvita "são o mais antigo monumento de todo o teatro
europeu" [5] .
A "voz forte de Gandersheim" soube perceber que o teatro em si não é mau,
soube reconhecer o talento genial de Terêncio; simplesmente propõe correções
quanto ao rumo do teatro latino: "non recusavi illum imitari dictando";
soube imitá-lo, substituindo o triunfo do lúbrico por uma visão cristã [6] .
Como diz Jacques de Ricaumont, não possuímos, sobre essa ilustre mulher,
outros dados senão os que ela mesma nos legou em seus prefácios e cartas:
que entrou para o mosteiro de Gandersheim com 23 anos e, muito cedo, começou
a escrever. Nasceu por volta do ano 935 e morreu pouco depois do ano 1000.
Foi aluna de sábias monjas, como Ricarda e Gerbirga.
Escreveu oito poemas e seis peças de teatro, todos de cunho religioso, além
das Gestas de Otão I e de Crônicas de Gandersheim. Sua obra obteve os mais
altos elogios dos homens mais eminentes de seu tempo.
Sobre o enredo de "Sabedoria"
É a história de Santa Sabedoria (Santa Sofia) e de suas três filhas chamadas
Fé (Pístis, em grego), Esperança (Elpís) e Caridade (Ágape), que são
denunciadas por Antíoco ao Imperador Adriano, acusadas de praticar a
religião cristã. As meninas (de doze, dez e oito anos, respectivamente) são
interrogadas e, pela persistência na fé, são sucessivamente martirizadas [7]
. Por fim, Cristo atende às preces da mãe e leva-a também para o Céu.
Essa história não foi inventada por Rosvita; ela simplesmente adaptou para o
teatro, algo que já existia de há muito. Aliás, no séc. X, celebrava-se
liturgicamente a festa das Santas Sabedoria, Fé, Esperança e Caridade. O
mais famoso relato do martírio dessas santas - festa do dia 1º de agosto -
procede do célebre contemporâneo de Rosvita, Simeão Metafraste, que é "une
sorte d'abbé Migne de l'époque (séc. X)" [8] .
Quanto ao problema da existência histórica das quatro santas, Mario Girardi
faz notar a sua ausência nos calendários e martirológios mais antigos, o
que, junto com outras razões, "dificilmente deixa de levar à conclusão de
estarmos diante de uma personificação da Sabedoria divina e das três
virtudes teologais" [9] .
Em relação às outras versões da história de Santa Sofia, a de Rosvita
apresenta alguns pontos originais, como o estabelecimento das idades das
meninas em doze, dez e oito anos (doze, dez e nove nos demais relatos).
Pois, com os números 12, 10 e 8, pode Rosvita desenvolver a "aula" de
matemática em III, 30-50, que é também algo especificamente rosvitiano.
Ao contrário da versão metafrástica [10] , Rosvita dá às suas heroínas
certos traços de monjas (embora a ação se passe no século II e, portanto,
anterior às instituições monásticas!) [11] .
Como indicávamos, a história de Santa Sabedoria e suas filhas é alegórica,
"una leggenda" [12] : uma alegoria da Divina Sabedoria e das virtudes
teologais. O caráter alegórico é, aliás, típico de toda estética medieval.
Assim, a Sabedoria não premedita o que vai dizer ante os inimigos de Cristo
(III, 2). É o que se lê em Lc 21, 14-15: "... não premediteis ... eu vos
darei boca e sabedoria a que nenhum dos vossos adversários poderá resistir
etc.".
E a Fé precede a Esperança e a Caridade, tanto na ordem das virtudes,
quanto, como personagens, no desenrolar da peça. Esperança - tanto a
personagem como a virtude alegorizada - tem seus olhos fixos no futuro e no
prêmio (IV, 4; IV, 10; V, 104; etc.). Sabedoria é bela, brilhante (III, 7;
III, 22 - Sab 6, 12) e destemida (II,4 - Prov 3, 25-26). A Fé sabe que a
idolatria é ridícula insensatez (V, 23 - e, p. ex. , Sab. 15, 14 e ss.)
O leitor familiarizado com a Bíblia, encontrará no texto da peça muitas
outras passagens da Sagrada Escritura, alegorizadas ou não.
Outros aspectos da peça
Genuinamente medieval é o caráter popular [13] , que transparece em Rosvita!
Atente-se, por exemplo, para as provocações com que as meninas, fazendo
careta, desafiam o Imperador (por exemplo, V, 15-25, etc.). E, como sempre
se dá no popular, oscila-se do cômico ao trágico e do trágico ao cômico; com
enredo simples e emoções vivas. Pode-se supor - tal como se dá, ainda hoje,
entre a gente simples do povo - que o público participaria animando e
aplaudindo as heroínas e manifestando ruidosamente seu desagrado ante a
conduta dos vilões. Nessa mesma linha, afirma Geisenheymer que o teatro
medieval não se importava muito com o que chamaríamos hoje de "efeitos
especiais" (como, por exemplo, a "explosão" em VI, 6) e sim, com o realismo
dos objetos e cenas do quotidiano: pão, peixe, leite [14] .
O teatro de Rosvita volta-se para a educação. Como se sabe, o ensino, numa
primeira fase da Idade Média, era ministrado quase que exclusivamente nos
mosteiros. O currículo era basicamente constituído pelas sete artes liberais
(III, 49), entre elas a Aritmética que, como tudo na época, é diretamente
referida ao Criador (III, 49). Um momento da peça, especialmente importante
para a História da Educação, ocorre quando, com claros propósitos didáticos,
Rosvita brinda-nos com uma aula de Matemática em III, 31 e ss. Quando o
Imperador pergunta a idade das meninas, Sabedoria aproveita para desenvolver
conceitos - fundamentais para a época -, extraídos do De Arithmetica de
Boécio (PL 63, 1085-1089):
número parmente par - são as nossas potências de 2.
parmente ímpar - o dobro de um número ímpar.
imparmente par - produto de um ímpar por um parmente par.
denominação e quantidade - são os fatores de um produto.
número perfeito - é um número n, tal que a soma de seus divisores (a menos
do próprio n) dá n. Se essa soma for maior do que n, o número diz-se
excedente; se menor, deficiente.
Rosvita sabe - o que pode surpreender os que ignoram a história da
matemática medieval - que 6, 28, 496 e 8128 são perfeitos. E conhece o
critério para a geração de números perfeitos:
p = (2n - 1). 2n-1 será perfeito, se (2n - 1) for primo.
Quanto à encenação da peça, a autora tem a preocupação de que as crianças (e
havia meninas de oito, dez e doze anos nos mosteiros...) tenham poucas
falas, curtas e fáceis de decorar. Assim, enquanto Sabedoria (e demais
personagens adultas) fala muito e muitas vezes, as falas infantis são
literalmente proporcionais à idade: Fé: doze anos, 24 falas; Esperança: dez
anos, 20 falas; Caridade: oito anos, 16 falas.
Note-se, também, que Rosvita é uma espécie de feminista avant la lettre. Não
é por acaso, que ela apresenta suas personagens femininas como belas, fortes
e cultas, enquanto os homens são rudes e ignorantes. Na peça, as referências
masculinas à fraqueza das mulheres ("E acaso a chegada de umas pequeninas
mulherzinhas pode causar algum detrimento ao Estado?" I, 10; ou "a
fragilidade do sexo feminino..." III, 10; etc.) só fazem ressaltar o fato de
que, para a autora, a mulher em nada fica atrás do homem [15] .
Rosvita conhece toda a cultura secular de seu tempo e também a Teologia: a
prece final da Cena IX é todo um compêndio teológico (incluindo a célebre
fórmula do Símbolo de Atanásio, "perfectus Deus, perfectus homo" e o famoso
qüiproquó (no caso, quiproquod, "qui em vez de quod") cristológico: "a Ti
que não sendo o mesmo que o Pai - assim reza Sabedoria - és igual ao Pai"
(non ipse qui Pater, sed idem es quod Pater). Já em Sedúlio aparece essa
controvérsia: "Non quia qui summus Pater est, et Filius hic est sed quia
quod summus Pater est et Filius hoc est" [16] ).
Observe-se, finalmente, a contribuição cristã (em III, 19), quando Santa
Sabedoria afirma que a nobreza do sangue é de pouca importância para os
cristãos (cfr. Col 3, 11).
SABEDORIA
Rosvita de Gandersheim
Enredo da peça: Paixão das santas virgens Fé, Esperança e Caridade. Foram
levadas à morte pelos diversos suplícios, a que as submeteu o Imperador
Adriano em presença da sua santa mãe, Sabedoria, que, com seus maternos
conselhos, as exortou a suportar os sofrimentos. Consumado o martírio, sua
santa mãe, Sabedoria, tomou de seus corpos e, ungindo-os com bálsamo,
deu-lhes sepultura de honra a três milhas de Roma. Ela, por sua vez, no
quarto dia, após a oração sacra, enviou também seu espírito ao céu [17] .
PERSONAGENS: Antíoco, Adriano, Sabedoria, Fé, Esperança, Caridade e
Matronas.
CENA I
ANT.: Desejando vivamente que tenhais, ó Imperador Adriano, grande poder,
florescendo em próspero sucesso e que possais imperar sem perturbações e
triunfante, anseio por que seja erradicado e, o quanto antes, completamente
despedaçado, tudo quanto julgo que possa abalar o Estado ou ferir a
tranqüilidade do espírito.
ADR.: E com razão o fazes, pois nossa prosperidade é também a tua
felicidade, já que continuamente temos te honrado com os mais altos graus de
dignidade.
ANT.: Regozijo-me com vossa benignidade. E se sei que se levanta algo que
possa se opor a vosso poder, não o oculto, mas, sem demora, o declaro.
ADR.: E com razão o fazes. Não se dê o caso de seres acusado de crime de
lesa-majestade, por ocultar o que não deve ser ocultado.
05 ANT.: Nunca fui culpado desse tipo de falta.
ADR.: Bem sei! Mas, apresenta o que tens de novo.
ANT.: Trata-se de certa mulher estrangeira que chegou recentemente a esta
cidade, acompanhada de suas três criancinhas.
ADR.: De que sexo são as crianças?
ANT.: Todas são do sexo feminino.
10 ADR.: E acaso a chegada de umas pequeninas mulherzinhas pode causar
algum detrimento ao Estado?
ANT.: E dos grandes, majestade.
ADR.: Qual?
ANT.: O fim da ordem.
ADR.: Como assim?
15 ANT.: O que é que pode perturbar mais a concórdia do povo que a
divergência de culto?
ADR.: Nada pior, nada mais grave - como o atesta o orbe Romano - que, quase
em toda parte, é infestado pela imundície da peste cristã.
ANT.: Pois esta mulher de que falo, anda exortando a abandonar os ritos de
nossos maiores e induz à prática da religião cristã.
ADR.: Não bastará admoestá-la?
ANT.: E veementemente. Pois nossas esposas, desdenhando-nos, nos desprezam a
tal ponto, que não se dignam a comer conosco e, menos ainda, a dormir
conosco.
20 ADR.: De fato, é caso perigoso!
ANT.: Convém que vos previnais.
ADR.: De acordo. Que ela seja chamada à nossa presença e verificaremos se
ela não quer ceder e voltar atrás em suas posições.
ANT.: Devo chamá-la?
ADR.: Claro que sim!
CENA II
ANT.: Como te chamas, ó estrangeira?
SAB.: Sabedoria.
ANT.: O Imperador Adriano ordena que compareças ao palácio em sua presença.
SAB.: Não tenho receio de, na nobre companhia de minhas filhas, ir o palácio
e não tremo ante a ameaça de defrontar-me, cara a cara, com o Imperador.
05 ANT.: A odiosa raça dos cristãos sempre está pronta a resistir às
autoridades.
SAB.: Aquele que governa todas as coisas, Aquele que não conhece derrota,
não permite que os seus sejam vencidos pelo inimigo.
ANT.: Modera teu palavreado e dirige-te ao palácio.
SAB.: Vai na frente, mostrando o caminho: nós te seguiremos a passo rápido.
CENA III
ANT.: Este que vês no trono, é o Imperador. Pensa bem no que vais falar.
SAB.: Isto nos é proibido pela palavra do Senhor que nos prometeu os
insuperáveis dons da Sabedoria.
ADR.: Então, estás aqui Antíoco!
ANT.: Às vossas ordens, senhor!
05 ADR.: Acaso são estas, as mulherzinhas que denunciavas por causa da
religião cristã?
ANT.: Exatamente, são elas!
ADR.: Estou estupefato diante da beleza de cada uma delas, e não sou capaz
de deixar de admirar seu porte pleno de dignidade.
ANT.: Deixai de admirar, meu senhor, e obrigai-as a adorar os deuses.
ADR.: Que tal se antes nos dirigirmos a elas com palavras brandas? Talvez
elas queiram ceder.
10 ANT.: É melhor. Pois a fragilidade do sexo feminino mais facilmente
amolece com palavras suaves.
ADR.: Ilustre matrona, com bons modos convido-te a dar culto aos deuses,
para que possas gozar de nosso favor.
SAB.: Não pretendo de modo algum prestar culto a teus deuses, nem morro de
vontade de ganhar o teu favor.
ADR.: Até aqui, refreei minha ira, e não me movi de indignação contra ti.
Antes, pelo teu bem e o de tuas filhas, adoto uma conduta de amor paterno.
SAB.: (sussurrando) Não vos deixeis, minhas filhas, enganar pelas seduções
ardilosas desse Satanás; antes, fazei como eu: rejeitai-as.
15 FÉ: Rejeitamos e, valorosamente, desprezamos essas coisas frívolas.
ADR.: Que é que tu estás cochichando?
SAB.: Falava um pouco a minhas filhas.
ADR.: Pareces ser de alta estirpe, mas quero saber com mais exatidão sobre
tua pátria, tua família e teu nome.
SAB.: Embora a nobreza do sangue seja, entre nós, de pouca importância, no
entanto, não nego ter uma origem ilustre.
20 ADR.: O que não me surpreende.
SAB.: Pois, de fato, foram meus pais os mais eminentes gregos e meu nome é
Sabedoria.
ADR.: A nobreza refulge em teu rosto e a sabedoria do nome brilha na face.
SAB.: Em vão bajulas, não nos dobramos a tuas falas persuasivas.
ADR.: Dize, que vieste fazer entre nós?
25 SAB.: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da verdade, para
o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar minhas filhas
a Cristo.
ADR.: Dize os nomes delas.
SAB.: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira, Caridade.
ADR.: Quantos anos têm?
SAB.: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas que perturbe com um problema
aritmético a este tolo?
30 FÉ: Claro, mamãe. porque nós também ouviremos de bom grado.
SAB.: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade tem por
idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também um número
deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas imparmente
par.
ADR.: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
SAB.: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos números e não
há uma única resposta.
ADR.: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
35 SAB.: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança; 2 lustros; Fé, 3
olimpíadas.
ADR.: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2 lustros são
números deficientes? E por que o 12, que perfaz 3 olimpíadas, se diz número
excedente?
SAB.: Porque todo número, cuja soma de suas partes (isto é, seus divisores)
dá menor do que esse número, chama-se deficiente, como é o caso de 8. Pois
os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta parte - 2 e sua oitava
parte - 1, que, somados, dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5, sua
quinta parte é 2 e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é portanto,
8, que é menor do que 10. Já, no caso contrário, o número diz-se excedente,
como é o caso do 12. Pois sua metade é 6, sua terça parte, 4, sua quarta
parte, 3, sua sexta parte, 2 e sua duodécima parte, 1. Somadas as partes,
temos 16. Quando, porém, o número não é excedido nem inferado pela soma de
suas diversas partes, então esse número é chamado número perfeito. É o caso
do 6, cujas partes - 3, 2, e 1 - somadas, dão o próprio 6. Do mesmo modo, o
28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.
ADR.: E quanto aos outros números?
SAB.: São todos excedentes ou deficientes.
40 ADR.: E o que é um número parmente par?
SAB.: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes em duas
iguais, e assim por diante, até que não se possa mais dividir por 2, porque
se atingiu o 1 indivisível. Por exemplo, 8 e 16 e todos que se obtenham a
partir da multiplicação por 2, são parmente pares.
ADR.: E o que é parmente ímpar?
SAB.: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já não
admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm,
multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número
anterior, porque naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível;
neste, só o termo maior é apto para a divisão.
No caso anterior, tanto a denominação, como a quantidade, são parmente
pares; já aqui, se a denominação for par, a quantidade será ímpar; se a
quantidade for par, a denominação será ímpar.
ADR.: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
45 SAB.: Quando os números estão em "boa ordem", o primeiro se diz menor e
o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, a denominação é quantas
vezes o número se der. Já o que constitui cada parte é o que chamamos
quantidade.
ADR.: E o que é imparmente par?
SAB.: É o que - tal como o parmente par - pode ser dividido não só uma vez,
mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a indivisibilidade (por
2) sem chegar ao 1.
ADR.: Oh! que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da idade destas
menininhas!
SAB.: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e a Ciência
admirável do Artífice do mundo: pois, não só no princípio criou o mundo do
nada, dispondo tudo com número, peso e medida, como também nos deu a
capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes liberais, até
mesmo sobre o suceder do tempo e das idades dos homens.
50 ADR.: Muito agüentei a tua "calculeira" para fazer com que me obedeças.
SAB.: Em que?
ADR.: No culto aos deuses.
SAB.: Nisto, certamente não consinto.
ADR.: Se teimares, sofrerás torturas.
55 SAB.: O corpo sim, podes fustigar com suplícios; mas a alma, não
conseguirás forçar a ceder.
ANT.: O dia já se finda e vem a noite; não é tempo de querelas pois já é
hora de cear.
ADR.: Ponham-nas sob guarda ao lado do palácio e sejam-lhes dados três dias
de trégua para pensar no assunto.
ANT.: Vigiai-as, ó soldados, com toda solicitude: não lhes deis nenhuma
ocasião de escapar.
CENA IV
SAB.: Ó doces crianças, filhinhas queridas, não vos entristeçais com as
angústias do cárcere, nem vos aterrorizeis com a iminência de sofrimentos
ameaçadores.
FÉ: Ainda que nossos pequenos corpos tremam de medo, a alma anseia pelo
prêmio.
SAB.: Vencei com a fortaleza do senso de maturidade, o que os vossos tenros
anos não vos dão.
ESP.: É teu papel ajudar-nos com tuas preces, para que possamos triunfar.
05 SAB.: Isto é o que continuamente rogo a Deus: que persevereis na fé que,
já desde o tempo em que brincáveis com chocalhos, vos tenho instilado na
inteligência.
CAR.: Não esqueceremos o que aprendemos desde o tempo em que mamávamos nos
nossos bercinhos.
SAB.: Para isto, dei-vos o leite materno, com tanto carinho vos nutri: para
vos dar ao Esposo celestial, não terreno; para que, por vós, seja eu digna
de ser sogra do eterno Rei.
FÉ: Por Seu amor, estamos prontas a enfrentar a morte.
SAB.: Quanto me delicia, mais que o doce sabor do néctar, ouvir-vos.
10 ESP.: Leva-nos diante do juiz e verás quanto o amor dEle nos dá
coragem.
SAB.: Isto eu desejo: que pela vossa virgindade seja eu coroada; pelo vosso
martírio, seja eu glorificada.
CAR.: Unindo nossas palmas, vamos desconcertar o tirano.
SAB.: Esperai até que se cumpra nossa hora.
FÉ: Aborrece-nos a demora: mas se temos de esperar, esperemos.
CENA V
ADR.: Antíoco, traz aquelas greguinhas prisioneiras.
ANT.: Anda, Sabedoria, apresenta-te com tuas filhas ao Imperador.
SAB.: Vinde comigo, filhas, sede fortes e perseverai unânimes na fé, para
que possais, com êxito, receber a palma.
ESP.: Vamos, Aquele, por cujo amor somos conduzidas à morte, vai conosco.
05 ADR.: Três dias de trégua, por minha benevolência, vos foram concedidos.
Se pensastes, pois, com senso, submetei-vos a nossas ordens.
SAB.: Estivemos considerando sobre o que nos é de suma importância: não
vamos ceder.
ANT.: Como Vossa Majestade se digna conversar com essa mulher contumaz, que
vos aborrece?
ADR.: Devo deixá-la impune?
ANT.: De modo algum.
10 ADR.: E então?
ANT.: Exortai as menininhas e, se teimarem, não as poupeis por serem
crianças, mas leve-as à morte. E assim, matando as filhas, mais amargamente
torturareis a mãe rebelde.
ADR.: Farei o que aconselhas.
ANT.: Assim estará por certo a salvo a autoridade.
ADR.: Fé, olha para aquela venerável imagem de Diana e oferece libações à
deusa, para que possas valer-te da graça que ela dispensa.
15 FÉ: Ó tola ordem do Imperador, é digna de todo o desprezo!
ADR.: Que é isto que murmuras zombando? De quem troças com essas caretas,
menina?
FÉ: Zombo de tua estupidez. Faço troça da tua burrice.
ADR.: Zombas de mim?!?!
FÉ: É! De ti!
20 ADR.: De mim, o Imperador?
FÉ: O próprio.
ANT.: Ó sacrilégio!!
FÉ: Que, então, seria mais tolo; que mais insensato pode haver do que nos
exortar a desprezar o Criador do Universo e a adorar metal?
ANT.: Olha que é suma loucura dizer que o que o Imperador falou é estúpido e
tolo.
25 FÉ: Disse e digo e direi, enquanto viver.
ANT.: Olha que vais viver pouco tempo, hein?! Logo receberás a morte.
FÉ: Morrer em Cristo é a minha determinação.
ADR.: Que doze centuriões se revezem, rasgando-lhe as carnes com chicote.
ANT.: Assim é justo!
30 ADR.: Ó valentes centuriões, vinde fazer justiça a essa injúria.
ANT.: É justo!
ADR.: Interroga-a, Antíoco, vê se ela quer ceder.
ANT.: Queres ainda, Fé, como é próprio de petulantes, ultrajar a proposta do
Imperador?
FÉ: E por que não?
35 ANT.: Para evitar os açoites.
FÉ: Os açoites não me obrigam a calar porque não me impressiona a dor.
ANT.: Ó desgraçada teimosia, ó audácia contumaz!
ADR.: O corpo fende-se com suplícios e a alma dela incha-se de arrogância.
FÉ: Erras, Adriano, se julgas dobrar-me com suplícios. Não serei eu, mas os
pobres torturadores que desfalecerão e jorrará o seu suor de tanto cansaço.
40 ADR.: Antíoco, que se lhe sejam cortados os bicos dos seios; que, ao
menos, seja ela coibida pelo rubor.
ANT.: Talvez assim consigamos coagi-la a ceder.
ADR.: É, talvez assim a forcemos a ceder.
FÉ: Feriste meu inviolado peito, mas não me atingiste: eis que em vez de
fonte de sangue, brota o leite.
ADR.: Que seja posta na grelha, sobre o fogo. Que morra pela força das
chamas!
45 FÉ: Tudo o que preparas para atormentar, torna-se, para mim, sereno
repouso; por isso, tranqüilamente, vou para a caldeira como se fosse uma
plácida barquinha.
ADR.: Que se ponha sobre o fogo, um tacho cheio de pixe e cera ardentes e
nesse líqüido fervente lançai a rebelde!
FÉ: Pode deixar que eu pulo sozinha.
ADR.: Muito bem, de acordo.
50 FÉ: Onde estão tuas ameaças? Eis que, ilesa, brinco, nadando no meio
deste líqüido fervente e, em lugar de calor escaldante, sinto como que um
refrescante orvalho da manhã.
ADR.: Antíoco, o que faremos com ela?
ANT.: Não podeis tolerar que escape assim sem mais.
ADR.: Seja-lhe cortada a cabeça.
ANT.: É o único jeito.
55 FÉ: Agora sim, alegro-me; agora, em Deus, exulto!
SAB.: Cristo, que triunfaste sobre o demônio, dá forças à minha filha Fé.
FÉ: Ó mãe venerável! Saúda pela última vez tua filha, oferece teu beijo à
tua primogênita. Que não haja sombra de tristeza em teu coração, pois vou
para o prêmio da eternidade.
SAB.: Ó filha, filha, não me desfaço, nem me entristeço, mas, exultante,
digo-te adeus e beijo-te a boca e os olhos e, de júbilo, oro chorando. Que
no golpe com que te ferirão, guardes intacto o mistério de teu nome.
FÉ: Ó irmãs, oferecei-me o ósculo da paz e preparai-vos para suportar,
também vós, estas batalhas.
60 ESP.: Ajuda-nos com tuas preces, para que sejamos dignas de seguir teus
passos.
FÉ: Guardai os conselhos de nossa santa mãe, quando nos exortava a desprezar
as coisas presentes para merecer as eternas.
CAR.: De bom grado, seguiremos os conselhos de mamãe para gozarmos da
felicidade eterna.
FÉ: Carrasco, vem e cumpre teu ofício, matando-me.
SAB.: Abraçada à cabeça de minha filha morta e, repetidas vezes beijando-lhe
os lábios, agradeço-te, Cristo, por concederes o triunfo a uma criança tão
pequena.
65 ADR.: Esperança, cede às exortações que, com afeto de pai te proponho.
ESP.: O que é que me aconselhas, o que é que me propões?
ADR.: Que evites a teimosia de imitar a tua irmã, não vás querer as mesmas
penas que ela sofreu.
ESP.: Oxalá fosse eu digna de imitá-la sofrendo, para assim imitá-la também
no prêmio.
ADR.: Renuncia à cabeça dura e curva-te, incensando a grande Diana e eu te
tomarei como minha própria filha, educando-te com todo o amor.
70 ESP.: Que eu ceda?! Falsa esperança! Não tenho o menor interesse nos
benefícios que me possas dar e, menos ainda, em ter-te por pai.
ADR.: Fala menos! Olha que eu me irrito!
ESP.: Podes irritar-te, não me incomodo.
ANT.: Eu me admiro, ó Augusto, como podeis suportar que esta vil menininha,
durante tanto tempo, vos insulte. Eu, de minha parte, arrebento-me de furor
ao vê-la latir contra Vossa Majestade assim, tão temerariamente.
ADR.: Até aqui, poupava-a por ser criança; mas, agora, não a pouparei;
dar-lhe-ei o castigo merecido.
75 ANT.: Assim é que se fala, Majestade!
ADR.: Vinde, ó litores, e surrai esta rebelde com duros chicotes até à
morte.
ANT.: É bom que sinta a severidade de vosso furor, porque despreza a
brandura de vossa piedade, senhor!
ESP.: Quero esta brandura; é esta piedade que espero.
ADR.: Ó Sabedoria! Que é que estás aí sussurrando de olhos elevados ao céu,
junto ao cadáver de tua filha morta?
80 SAB.: Peço ao Criador que não deixe de dar a Esperança as mesmas forças
que deu a Fé.
ESP.: Ó mamãe, mamãe, quão eficazes, quão ouvidas sinto que foram tuas
preces. Eis que, orando tu, os demônios torturadores me desferem golpes, mas
eu já não sinto as dores.
ADR.: Se fazes pouco dos flagelos, serás submetida a penas mais duras.
ESP.: Dá-me tudo que de cruel maquinas, pois quanto mais crueldade, tanto
mais ficarás desconcertado em tua derrota.
ADR.: Que seja dilacerada com ganchos e suspendei-a no ar até que lhe jorrem
as vísceras e, com os ossos expostos, desfaleça e seus membros se rachem.
85 ANT.: Assim deve ser feito: é a ordem do Imperador e deve ser plenamente
cumprida.
ESP.: Falas com a manha de uma raposa e adulas, ó Antíoco, com dissimulada
astúcia.
ANT.: Cala a boca, desgraçada! Teu falatório vai acabar já, já.
ESP.: Não ocorrerá como esperas, mas haverá desconcerto para ti e para teu
Imperador.
ADR.: Que é este doce aroma? Que magnífica suavidade é esta que sinto?
90 ESP.: Os golpes que embalde caíram no meu dilacerado corpo, produzem
este aroma de fragrância paradisíaca, com o que, embora sem querer, és
obrigado a confessar que não posso ser atingida pelos tormentos.
ADR.: Antíoco, que devo fazer?
ANT.: Aplicai-lhe mais torturas, Majestade.
ADR.: Lançai-a, amarrada, num vaso de cobre cheio de óleo, gordura, cera e
breu e ponde-o sobre o fogo.
ANT.: Entregue ao direito de Vulcano, não achará jeito de escapar.
95 ESP.: Este poder em Cristo não é incomum: que o fogo transforme sua
natureza e se torne suave.
ADR.: Que é isto, Antíoco? Ouço um som como de inundação.
ANT.: Ai, ai, ai, senhor!
ADR.: Que é que aconteceu?
ANT.: O calor da ebulição quebrou o vaso e queimou os nossos servidores,
enquanto aquela maléfica menina ficou ilesa.
100 ADR.: Reconheço que estamos vencidos.
ANT.: Completamente.
ADR.: Seja-lhe cortada a cabeça.
ANT.: Não há outro modo de destruí-la.
ESP.: Ó, querida Caridade, minha incomparável irmã! Não temas as ameaças do
tirano, nem tremas diante dos sofrimentos. Empenha-te, forte na fé, por
chegar ao palácio celestial, a exemplo de tuas irmãs.
105 CAR.: Aborrece-me esta vida presente; aborrece-me a habitação terrena;
pelo menos, é por pouco tempo que estarei separada de vós.
ESP.: Não olhes para o aborrecimento, mas para o prêmio. Dentro em pouco,
estaremos juntas no Céu.
CAR.: Assim seja! Assim seja!
ESP.: Muito bem, mamãe! Alegra-te: não te deixes afligir de dor maternal
pela minha paixão, mas antepõe a esperança à dor, ao ver que é por Cristo
que morro.
SAB.: Agora, certamente, já me alegro. Mas, quando tiver enviado ao céu tua
irmãzinha, morta de igual maneira, e seguir, eu também, por último, aí,
então, exultarei de alegria transbordante.
110 ESP.: A Santíssima Trindade te dará a eternidade em companhia de todas
as tuas filhas.
SAB.: Sê forte, filha: o agressor vem a nós com a espada desembainhada.
ESP.: De bom grado, recebo a espada. Tu, Cristo, recebe esta alma que, por
confessar o teu nome, é arrancada à sua habitação corporal.
SAB.: Ó Caridade, excelsa esperança de meu ventre, ilustre filha minha, não
defraudes a esperança de tua mãe de que combatas bem. Desdenha as ofertas do
Imperador e assim, atingirás a alegria sem fim: a refulgente coroa da
virgindade sem mancha que tuas irmãs conquistaram.
CAR.: Sustenta-me, mamãe, com tuas orações, até que eu mereça juntar-me à
glória delas.
115 SAB.: Rezo muito para que sejas consolidada na fé até o fim; estou
certa de que, também a ti, será outorgada a eterna alegria.
ADR.: Caridade, já estou farto dos insultos que me lançaram tuas irmãs e
extremamente exasperado pelo falatório delas. Por isso, contigo não vou
discutir: ou obedeces a meus desejos e serás cumulada de bens, ou resistes e
sofrerás os males.
CAR.: Eu, de coração, amo o bem e detesto o mal com todas as minhas forças.
ADR.: A minha benevolente piedade leva-me a propor-te algo muito simples,
uma coisinha de nada; para mim, tolerável e, para ti, essencial para que te
salves.
CAR.: Que é?
120 ADR.: Basta que digas: "Grande é Diana!", nem te obrigarei a
sacrifícios.
CAR.: Ah não! Não digo.
ADR.: E por quê?
CAR.: Porque não quero mentir. Eu e minhas irmãs temos os mesmos pais, os
mesmos sacramentos, a mesma força na fé. Por isso, decididamente, única é
nossa vontade, nosso sentir, nosso saber, nosso ser. E eu, em nada me afasto
delas.
ADR.: Ó injúria! Que eu seja desprezado por uma pirralhinha tão
pequenininha!
125 CAR.: Ainda que de tenra idade, vê-se, no entanto, que te desconcertei
com meus argumentos.
ADR.: Toma-a, ó Antíoco, e faz com que, pendurada no cavalete, seja
atrozmente chicoteada.
ANT.: Temo que não adiantará...
ADR.: Se não adiantar, manda que, continuamente, por três dias e três
noites, se aqueça o forno e lança-a entre as chamas furiosas.
CAR.: Ó juiz impotente, que temes enfrentar uma criança de oito anos sem a
arma do fogo.
130 ADR.: Vai, Antíoco, e faz como foi mandado.
CAR.: Tuas torturas certamente estão bem preparadas, mas não me causarão
mal, pois nem os chicotes podem rasgar meu corpo, nem as chamas queimar meus
membros ou vestes.
ADR.: É o que veremos.
CAR.: Veremos!
CENA VI
ADR.: Antíoco, o que te aflige? Por que razão voltas mais triste que de
costume?
ANT.: Quando souber Vossa Majestade a causa da tristeza, não vos afligireis
menos.
ADR.: Fala, não escondas.
ANT.: Aquela zombeteira daquela menina que me entregastes para que fosse
atormentada, foi chicoteada na minha presença, mas sua fina pele nem sequer
de leve se cortou. Depois, lancei-a na fornalha, que estava já da cor do
fogo, por causa do extremo calor.
05 ADR.: Por que não contas logo como tudo acabou?
ANT.: A chama transbordou violentamente e queimou cinco mil homens.
ADR.: E o que aconteceu a ela?
ANT.: À Caridade?
ADR.: É, a ela.
10 ANT.: Andava brincando entre os vapores que vomitavam chamas e cantava
louvores a seu Deus. E mais: quem olhasse atentamente, veria três jovens
radiosos de claridade que a acompanhavam [18] .
ADR.: Tenho vergonha de encará-la, pois não consigo feri-la.
ANT.: Só nos resta matá-la à espada.
ADR.: Que se faça isto sem demora.
CENA VII
ANT.: Descobre tua cabecinha dura, ó Caridade, para receber o golpe da
espada.
CAR.: A esta tua ordem, sim, de bom grado, obedeço.
SAB.: Agora, agora, filha, dá graças; agora rejubila em Cristo. Já não me
inquieto, porque tua vitória é certa.
CAR.: Dá-me um beijo forte, mamãe, e encomenda meu espírito que vai para
Cristo.
05 SAB.: Que Aquele que no meu ventre te deu vida, receba a alma que do Céu
foi insuflada.
CAR.: Glória a Ti, ó Cristo, que me chamas a Ti com a palma do martírio.
SAB.: Adeus, ó dulcíssima filhinha, e quando estiveres com Cristo no Céu,
lembra-te da mamãe, já exaurida por te gerar para a Vida.
CENA VIII
SAB.: Vinde, ilustres senhoras, e, aos corpos de minhas filhas, demos
sepultura.
MATR.: Embalsamamos seus pequenos corpos com aromas e celebramos funerais
solenes.
SAB.: Sois de grande bondade e de admirável piedade comigo e com meus
mortos.
MATR.: Em que pudermos ajudar-te, fá-lo-emos devotamente.
05 SAB.: Bem o sei.
MATR.: Onde queres sepultá-las?
SAB.: A três milhas de Roma, se não vos desagrada lugar tão longínquo.
MATR.: Não nos desagrada, pelo contrário, agrada-nos seguir tão nobre
funeral.
CENA IX
SAB.: Eis o lugar!
MATR.: Certamente é lugar apto para guardar os restos mortais.
SAB.: A teus cuidados, ó terra, confio as florzinhas de meu ventre, para que
as acaricies em teu seio até que refloresçam na glória maior da
ressurreição. E tu, Cristo, até então, dá-lhes, com a plenitude de esplendor
às almas, sereno repouso aos ossos.
MATR.: Amém.
05 SAB.: Agradeço à vossa piedade pelo conforto que trouxestes à dor da
separação de minhas filhas.
MATR.: Não queres que fiquemos aqui contigo?
SAB.: Não.
MATR.: Por que não?
SAB.: Não seja o meu consolo, o vosso incômodo. Já basta que três noites
tenhais permanecido comigo. Ide em paz e passai bem.
10 MATR.: Não vais conosco?
SAB.: Não.
MATR.: E que pensas fazer?
SAB.: Ficar aqui, para o caso de que ocorra o que peço e se cumpra o que
desejo.
MATR.: Que pedes? Que desejas?
15 SAB.: Unicamente isto: que, completando minhas orações, seja eu levada
por Cristo.
MATR.: Então, convém que esperemos para dar-te sepultura.
SAB.: Como queirais. Senhor Jesus, que, antes de todos os séculos, foste
gerado pelo Pai e, no tempo, gerado pela Virgem Mãe; que, de duas naturezas
admiravelmente consistes num único Cristo, sem que a diversidade de
naturezas divida a unidade da pessoa, nem a unidade de pessoa confunda a
diversidade de naturezas; a Ti, dêem glória toda a corte de anjos e a doce
harmonia das estrelas. A Ti, também louve a ciência de tudo o que é
cognoscível e tudo que é formado da matéria dos elementos, porque Tu, que
com o Pai e o Espírito Santo sois espírito e não matéria, pela vontade do
Pai e cooperação do Espírito Santo, não desdenhaste fazer-te homem, com
humanidade passível, sem quebra da divina impassibilidade. E, para que
nenhum dos que crêem em Ti se perdesse e todos os fiéis vivessem
eternamente, não dedignaste experimentar a nossa morte e destruí-la com Tua
ressurreição.
Recordo-me, ó perfeito Deus e perfeito homem, da promessa que fizeste (a
todos que pela veneração de Teu nome, abandonassem o uso e a posse das
coisas terrenas, ou pospusessem o afeto carnal dos parentes), de que
receberiam, em troca, o cêntuplo de recompensa e seriam agraciados com o
troféu de vitória de vida eterna. Animada, pois, pela esperança dessa
promessa, fiz o que ordenaste: de livre vontade, entreguei-te as filhas que
gerei.
Por isso, ó Piedoso, não te demores em cumprir as promessas, mas faze com
que eu, livre, o mais depressa possível, dos vínculos do corpo, me alegre
com o encontro das filhas, que não tardei em entregar para serem mortas por
Tua causa, a fim de que, seguindo elas a Ti, o Cordeiro da Virgem, e
entoando elas um cântico novo, possa eu regozijar-me, ouvindo-as, e
alegrar-me com sua glória. E, ainda que não possa entoar o canto da
virgindade, mereça eu, todavia, louvar com elas, pela eternidade, a Ti que,
não sendo o mesmo que o Pai, és igual ao Pai, com o qual e com o Espírito
Santo, como único Senhor do universo, único dominador absoluto das causas
últimas, médias e próximas, reinas e imperas pelos séculos intermináveis da
eternidade.
MATR.: Recebe-a, Senhor. Amém.





( [1] ) O original, Sapientia, encontra-se em PL 137, 1045-1062. Autores
diversos grafam de modos variados o nome Rosvita: Rosvita, Hrotsvitha,
Hrotsvita, Roswitha etc. Ao longo deste estudo, citaremos a peça, indicando
em romano a cena e em arábico a fala. Assim, p. ex., III, 17 é a 17ª fala da
Cena III.
( [2] ) Isso reflete-se, por exemplo, no De spectaculis de Tertuliano,
escrito pelos começos do século III: "O teatro é, sem tirar nem pôr, o
santuário de Vênus. Daí golfou a impureza por esse mundo além... O que é
mais próprio e peculiar da cena, a malícia do gesto e dos requebros
corporais - disso fazem oferenda a Baco e Vênus: à deusa, pelo desbragamento
sexual e a Baco, pelas copiosas libações. Cumpre-te ter em asco, ó cristão,
as coisas cujos autores não podes deixar de odiar etc." (TERTULIANO Os
Espetáculos, Lisboa-São Paulo, Verbo, 1974, pp. 99-100). Não se trata
somente de rigorismos de um Tertuliano, mas de opinião bastante
generalizada: S. Isidoro de Sevilha, por exemplo, refere-se ao teatro como
prostíbulo e lupanar (Etym., XVIII, 42, 2; PL 82, 657C)..
( [3] ) GILSON, Étienne. La filosofia en la Edad Media. 2ª ed., Madrid,
Gredos, 1972, p. 215.
(4) SCHNEIDERHAN, Joh. Roswita von Gandersheim - die erste deutsche
Dichterin. Paderborn, Bonifatius-Druckerei, 1912, p. 87.
(5): RICAUMONT, J. de. "Le théatre de Hrotsvitha". La Table Ronde nº. 166,
1961, p. 64.
(6): PL 137, 972-973.
( [7] ) Note-se que as meninas da peça - como é freqüente nos mártires - só
morrem pela espada, e não por outros meios. Vieira, em sermão sobre Xavier,
destaca uma razão para esse fato: Deus não quer violar os foros do arbítrio
(próprio do homem, e não de bestas ou elementos como o fogo e a água: a
espada aparece, assim, como uma extensão do homem).
( [8] ) DANIEL-ROPS. L'Église des Temps Barbares. Paris, Ed. Arthéme Fayard,
ed. 1956, p. 626.
( [9] ) GIRARDI, M. "Le fonti scritturistiche delle prime recensiones
greche della passio di S. Sofia e loro influsso sulla redazione
metafrastica". Vetera Christianorum 20, 1983, p. 47-48.
( [10] ) PG 115, 498-514.
( [11] ) Assim, à pergunta do Imperador: "Dize, que vieste fazer entre nós?"
(III, 24), Sabedoria responde que veio consagrar as filhas a Cristo; já
segundo Simeão Metafraste (e os relatos pré-metafrásticos), era o martírio
que ela buscava (Ibidem, 499 D. Cfr. também p. 47 do, já citado artigo de
Girardi. Sobre a monastização do enredo, veja-se também V, 113 e a prece
final, na cena IX). Digno de nota, ainda, é o apelo proselitista que Rosvita
faz às mães para que encaminhem suas filhas ao mosteiro, pondo na boca da
heroína-mãe, as seguintes palavras: "Para isto, dei-vos o leite materno, com
tanto carinho vos nutri: para vos dar ao Esposo celestial, não terreno; para
que, por vós, seja eu digna de ser sogra do eterno Rei" (IV, 7). Utilizando
a curiosa expressão "sogra de Deus", Rosvita dá curso à formulação de São
Jerônimo, que também visava, e expressamente, animar as mães a fomentar a
vocação monástica das filhas: a tradicional idéia de matrimônio espiritual
com Cristo, pela virgindade consagrada, é estendida - o gosto é muito
discutível - para o parentesco indireto. Referindo-se à vocação das filhas,
diz Jerônimo às mães: "Ó mãe, achas ruim que tua filha queira desposar um
rei, em vez de um soldado? Ela assim (consagrando-se em virgindade a Cristo)
presta-te um grande serviço: tu te tornas sogra de Deus!" (S. JÉROME,
Lettres Choisies, vol. I, ed. bil., Paris, Garnier, s.d., carta XI, p. 79.
Ou PL 22, ep. 22.). Contra tal abuso de linguagem, levantou-se Rufino:
pode-se dizer da virgem consagrada que é esposa de Cristo. Mas, a partir
daí, chamar a mãe carnal de sogra de Deus, é ímpio: "Só te falta agora, ó
Jerônimo, chamar de sogro de Deus, o pai da moça; de cunhadas de Deus, suas
irmãs; e de nora de Deus Pai, a própria moça" (RUFINO Apologiae Liber
Secundus, PL 21, 593. A controvérsia patrística sobre este tema foi-me
indicada pelo saudoso D. João Mehlmann.
( [12] ) Girardi, art. cit. p. 47.
( [13] ) Só quem ignora as fontes, pode ainda imaginar essa época como
carrancuda; é, pelo contrário, popular com tudo o que o caracteriza: é a
época das charadas e adivinhas, das trovas, do teatro bem a gosto do povo.
Cfr. nosso artigo "Aspectos do lúdico na Pedagogia Medieval" Revista da
Faculdade de Educação da USP, vol.17, No. 1/2, pp. 35-64.
( [14] ) GEISENHEYMER, Max. História da Cultura Teatral. Lisboa, Aster,
1961, p. 78.
(15) Concepção, aliás, explícita em Rosvita: "Há um passo da epístola que
encima suas Comédias e que foi dirigida `aos sábios críticos de sua obra'
que não pode ser esquecido. Diz aí Rosvita que reconhece os talentos que
Deus lhe deu e não os esconde por falsa modéstia, esperando que através de
sua obra, sejam reconhecidos, e que tanto mais ela merece louvor `quanto
mulieribus sensus tardior esse creditur', ou seja: quanto se acredita que as
mulheres sejam intelectualmente inferiores aos homens" (NUNES, Ruy "A
Dramaturga Rosvita" O Estado de S. Paulo, 24-10-70). Não nos devemos deixar
enganar, quando, em seu "Prefácio" ela aparentemente endossa expressões como
"feminea fragilitas", "virile robur", ou "mei opusculum vilis mulierculae"
(PL 137, 973), pois só os mais ingênuos dentre os homens, caem nesse conto.
(16): SEDÚLIO. Paschalis Carminis. Livro I, v. 319-320; PL 19, 586. Também
esta nota devo a D. João Mehlmann.
( [17] ) Três milhas de Roma... quarto dia; preferimos esta tradução ainda
que a apresentação original diga: cinco milhas de Roma e quadragésimo dia (o
que contradiz VIII, 7 e IX, 9; por onde se vê que houve erro nesta
apresentação).
( [18] ) Cf. Dan. 3, 46 e ss.


FIM DO QUINTO VOLUME

As Idéias Absolutistas no Socialismo
Rudolf Rocker

Tradução
Nicolau Bruno

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Digitalização de edições em papel

(c)2002 - Rudolf Rocker

ÍNDICE

Dedicatória do Editor
Nota à 2a. Edição
Prefácio - Maurício Tragenberg
Rudolf Rocker
Do absolutismo da idéia ao da ação
O ideário de Proudhon
Os ideais condicionados ao meio
As concepções autoritárias
Absolutismo, ponto de partida do socialismo autoritário
O modelo do Estado totalitário
Saint-Simon e as teorias da época
Fernando Lassalle e seu socialismo
As teorias de Marx e Bakunine
O caminho das ditaduras
Vida de Bakunine
Luisa Michel
O imperativo da hora
Sociedade e classe
A volta a Deus
Considerações sobre o imperialismo inglês
Marx e o anarquismo
Social-democracia e anarquismo
Don Quixote
O homem sem cabeça
Germinal
Orelha da 1a. edição em português

As Idéias
Absolutistas
no Socialismo

Rudolf Rocker

Dedicatória do Editor

Esta edição é dedicada a Maurício Tragtenberg, que manteve viva a tradição libertária, em tempos em que "homens sem cabeça" veneravam velhos deuses
nos altares acadêmicos.
Foi o Maurício quem me apresentou R. Rocker e recomendou sua edição, cuidando pessoalmente da seleção dos capítulos a serem reeditados pela Editora
Semente, em 1981, que, infelizmente, não podia arcar com os custos editorais de cola e papel para uma edição integral.
Tempos depois, me comentava que a segunda edição, além de não conter a obra integral, como a primeira, da Sagitário, ficara "mais clandestina" que
aquela.
"Problemas de distribuição" - justifiquei. E era verdade.
Agora, em tempos de eBooks, posso resgatar esta dívida. Cá está a edição integral do As Idéias Absolutistas no Socialismo, distribuída para todo o
mundo!
O Maurício teria adorado esta modernidade;)

Maurício Tragenberg
- (1929-1998) -
Para conhecê-lo melhor, sua trajetória e seu pensamento, visite o
Centro de Documentação Maurício Tragtenberg:
www.nobel.com.br/~cdmt/
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Estadual de Maringá.

Vale a pena.

Nota do Editor
da 2a. edição
Semente, 1981

A presente edição de As Idéias. Absolutistas no Socialismo, de Rudolf Rocker, não reproduz integralmente a primeira edição brasileira, publicada em
1946 pelas Edições Sagitário.
Trata-se muito mais de uma seleção, de ensaios daquela primeira edição, feita a partir de um critério de atualidade.
Assim, são aqui reproduzidos os ensaios mais pertinentes às discussões que atualmente são travadas entre as diversas correntes socialistas, contrapondo
socialismo e liberdade.
Os ensaios mais de cunho literário, que se referissem às questões da época ou mesmo biográficos não foram reproduzidos.
Só para consignar a discrepância entre a presente edição e aquela, deixamos aqui mencionados os títulos dos ensaios que constam daquela, mas não desta:
"Saint-Simon e as teorias da época", "Vida de Bakunine", "Luísa Michel", "O Imperativo da hora", "A volta de Deus", "Considerações sobre o imperialismo
inglês", "Don Quixote" e "Germinal".

SOCIALISMO OU ESTATISMO?

Maurício Tragtenberg

A reedição da obra de Rudolf Rocker, velho militante libertário alemão na Europa e nos Estados Unidos, no Brasil, se constitui em tema de primeira
importância. R. Rocker coloca em discussão os grandes temas do socialismo mundial: a relação Partido e classe operária, as relações do socialismo com o
Estado seja ele "burguês" ou "proletário" e a viabilidade de um projeto socialista não burocrático e autoritário.
Mostra ele, se não quisermos o facismo nem a social democracia nem a burocracia autoritária stalinista ou não, temos que nos bater contra a "direita"
e ao mesmo tempo contra a exploração do trabalho pelo capital, procurando alterar as forças no interior da "esquerda" introduzindo ali a luta contra a
divisão de trabalho, contra a hierarquia e as relações autoritárias. Eis que os clássicos "partidos de esquerda" reduzem a revolução social a formas consagradas,
a cerimônias onde o Partido torna-se seu próprio fim possibilitando a pessoas que gostariam de transformar sua vida, e não podem fazê-lo, interiorizar
essa transformação no simples fato de "pertencerem" ao Partido.
O conceito de "partido histórico" surge dessa prática, o partido perdeu sua marca revolucionária, transformou-se numa "instituição" onde sua história
foi reabsorvida. Ele é uma instituição que se dirige a indivíduos abstratos e atomizados, enquanto uma verdadeira praxis só pode surgir a partir de movimentos
coletivos concretos. Daí a necessidade de desenvolver nas pessoas o espírito de crítica a qualquer "ordem" e não o respeito de uma "ordem" pretensamente
revolucionária. Para Rocker a liberdade para todos implica na sua própria liberdade, daí a história da classe operária revelar certa consciência da liberdade,
pois, se os homens fossem semelhantes a coisas as lutas revolucionárias perderiam qualquer sentido. Rocker entende a revolução como o acesso dos homens
à liberdade, porém além dos limites do liberalismo clássico, define que se é livre entre iguais, a liberdade tem a igualdade como fundamento.
R. Rocker faz a crítica do "planismo de Estado" travestido de "socialista" onde partidos hierárquicos burocráticos e centralizados produzem estruturas
burocráticas, hierárquicas e centralizadas também. Perpetuam a separação entre "pensar" e "fazer" muitos fazem e poucos pensam, reproduzem a separação
entre "dirigentes" e dirigidos. No vasto movimento da classe operária internacional todos são militantes, isso é que é fundamental reter.
Especialmente significativo é o seu capítulo "Socialismo e Estado" onde discute os temas cruciais do "socialismo burocrático" colocado teoricamente
em xeque pelos socialistas libertários do século passado como Proudhon e Bakunin, por marxistas como Gramsci no seu primeiro período, por Penekoek, teórico
dos "conselhos operários", e praticamente contestado pelo gigantesco movimento de trabalhadores na Polônia em torno do sindicato "Solidariedade".
No capítulo anteriormente citado, Rocker discute a espinhosa questão do "Estado de transição", iniciando por uma crítica ao "socialismo de Estado"
de Louis Blanc e Lassalle que pretendiam utilizar o Estado burguês para acelerar a mudança social, pretensão essa retomada pelos partidos social democráticos
da IIa. Internacional e pelo "euro comunismo", uma social democracia "recuperada".
Não deixa também Rocker de criticar a tese do "Estado transitório" ou o conceito de "Ditadura do Proletariado" como fase transitória do capitalismo
ao socialismo. Pois, em Marx não se observa uma linearidade a respeito do tema do "desaparecimento do Estado", pois há diferenças de posição a respeito
em textos como "O Manifesto do Partido Comunista" e "A Guerra Civil em França". Embora não desapareçam todas as ambigüidades, a constante da análise de
Marx reside na noção do "debilitamento paulatino" do Estado Operário a partir de sua constituição. É mister esclarecer que o conceito de "ditadura do proletariado"
é de Blanqui e foi desenvolvido por Lenin num sentido mais blanquista que marxista, como notou Rosa Luxembourg em "A Revolução Russa". Embora Marx tenha
utilizado o conceito "ditadura do proletariado" na Crítica ao Programa de Gotha, o fez raramente depois. Entre a definição marxista e a leninista do conceito
há uma diferença básica: Marx caracteriza como "ditadura do proletariado" uma forma de sociedade, enquanto Lenin caracteriza-a como uma forma de governo.
A 30 de maio de 1871, Marx em "A Guerra Civil em França" adota a tese de "ditadura do proletariado" igual a governo comunal autogestionário que Engels,
na sua Introdução à edição alemã de 1891, aponta a Comuna de Paris "como exemplo típico de ditadura do proletariado". Isso significa uma revisão total
das idéias a respeito expostas no "Manifesto do Partido Comunista" em 1848: Na realidade Marx oscila entre o estatismo e o anti-estatismo. Isso se deveu
ao fato de ter sofrido influência jacobina no sentido do estatismo e de Proudhon no sentido anti-estatista, daí suas posturas libertárias rechaçando o
"socialismo de Estado" de Louis Blanc e Lassalle.
Outro ponto a enfatizar na atitude do socialismo libertário enquanto prática e teoria política é sua defesa do operário não especializado, vendo no
"especializado" o germe de uma futura "aristocracia operária", já criticada por Marx no século XIX e Lenin no século XX que se constitui em suporte da
política social-democrática e sindical burocrática na Europa.
Por outro lado, é saudável a atitude crítica do socialismo libertário ante a hegemonia dos intelectuais nos chamados partidos "proletários", eis que,
os mesmos, na sua maioria de origem burguesa ou pequeno burguesa tendem a levar ao movimento operário seus vícios de formação classista, dominando os Comitês
Centrais desses partidos e ao tomar o poder de Estado planejam "para" o proletariado "sem" o proletariado. A hegemonia da intelectualidade pequeno burguesa
na sua maioria autoritária, carreirista e ávida de poder se realiza através dos partidos autoritários de "esquerda" com a legitimidade conferida pela teoria
da "vanguarda" elaborada por Kautsky e retomada por Lenin segundo a qual eles como portadores da "ciência" levam ao proletariado por mediação do partido
"a consciência política", pois o operário deixado a si mesmo só chegaria a um nível de consciência econômica, argumentam Kautsky e Lenin. Na prática o
que se deu é que a camada intelectual enraizada no Partido Único no leste europeu e na URSS tendem a se transformar numa burocracia autoritária com privilégios
e imunidades ante a classe operária, cuja contestação é dada pelos trabalhadores hoje na Polônia. Sua ação em torno do sindicato "Solidariedade" se constitui
num saudável exercício de política operária oposta ao chamado "socialismo burocrático" estatista.
Em suma, a obra de R. Rocker é fundamental na medida em que mostra a possibilidade de uma prática socialista que deriva das bases - por exemplo, os
conselhos de fábrica - que atuam não só como contestação ao modo de produção capitalista, mas também como agentes de um novo modo de produção qualitativamente
distinto do capitalista. A negação dessa prática de "Comissões de Fábrica" como elemento fundante de uma nova estrutura produtiva somente levou às formas
de "socialismo de Estado" onde relações capitalistas de produção regidas pela lei do valor continuam sob roupagem nova. É isso que cabe desmistificar,
daí a atualidade do presente livro em boa hora reeditado.

Rudolf Rocker

Uma das figuras mais salientes do movimento socialista é, sem, dúvida, a desse grande lutador alemão: Rudolf Rocker. Cidadão do mundo como Goethe,
como Nietzsche, como Heine, através de seus setenta e tantos anos, viveu os momentos mais cruciais do movimento revolucionário da Europa e da América,
nunca desmentindo os seus ideais, nunca transigindo com os adversários, incansável sempre, sempre na primeira linha de combate.
Perseguido pelo terror pardo hitleriano, fugiu para os Estados Unidos onde se entregou à revisão final de sua grande obra NACIONALISMO E CULTURA, que
conseguiu salvar das mãos da Gestapo. Ali escreveu inúmeros artigos para jornais e revistas socialistas e ainda hoje vive na grande nação americana do
norte, onde continua, apesar de sua avançada idade, a lutar por seus ideais de liberdade e de dignidade humanas.
Nesta edição que fazemos da obra de Rudolf Rocker incluímos, além de seu famoso ensaio "idéias absolutistas no socialismo", que empresta o nome ao
livro, alguns outros trabalhos literários e doutrinários, escritos durante sua longa carreira de propagandista de uma das tendências mais ponderáveis do
movimento socialista.
Além dessa obra é NACIONALISMO E CULTURA um dos livros programados pela "Editora e Distribuidora Sagitário Ltda." Desse próximo livro de Rocker temos
a salientar, por ora, apenas duas opiniões. A de Bertrand Russell e a do prof. Lewis Mumford. Diz Russell:
"O livro de Rudolf Rocker, NACIONALISMO E CULTURA, é uma importante contribuição à filosofia política por sua penetrante e atrativa análise de muitos
escritores famosos e por sua brilhante crítica à divinização do Estado, a mais nociva superstição de nosso tempo. Espero que encontre ampla difusão em
todos os países nos quais o pensamento desinteressado não é ainda ilegal".
Agora a vez de Mumford:
"NACIONALISMO E CULTURA é uma importante contribuição à nossa representação da sociedade humana. Não é somente a obra de um espírito audaz, bem equilibrado,
mas também de uma profunda personalidade humana... O sólido fundamento histórico de Rocker, a riqueza das fontes, seu humanismo profundamente orgânico
vão além das qualificações acadêmicas.
Numa palavra, NACIONALISMO E CULTURA é uma obra que merece figurar na mesma linha que o Candide, de Voltaire, Os direitos do homem, de Paine e o Apoio
Mútuo, de Kropotkin".
Cremos ter assim devidamente apresentado ao público brasileiro uma das figuras mais extraordinárias do movimento socialista na atualidade.

O EDITOR

Do absolutismo da idéia ao da ação

NOSSA opinião sobre as causas profundas que originaram a atual catástrofe mundial, não seria exata se se deixasse de lado o papel que o socialismo
contemporâneo e o moderno movimento operário desempenharam na preparação da tragédia da cultura que hoje em dia se processa. Neste aspecto, têm especial
importância as tendências intelectuais do movimento socialista na Alemanha, já que, durante séculos, exerceram uma influência considerável sobre os partidos
socialistas da Europa e da América.
O socialismo moderno é, no fundo, apenas a continuação natural das grandes correntes liberais dos séculos XVII e XVIII. Foi o liberalismo que desfechou
o primeiro golpe mortal no sistema absolutista dos príncipes, abrindo, ao mesmo tempo, novos caminhos para a vida social. Seus representantes intelectuais,
que viram na máxima liberdade pessoal a alavanca de toda reforma cultural, reduzindo a atividade do Estado aos mais estreitos limites, abriram perspectivas
completamente novas quanto ao desenvolvimento futuro da humanidade: desenvolvimento que, forçosamente, teria levado à superação de toda tendência absolutista,
assim como a uma organização racional na administração dos bens sociais, se suas concepções sobre a economia tivessem avançado ao mesmo passo que o seu
conhecimento do campo político e do social. Mas, desgraçadamente, isso não se deu.
Sob a influência, cada vez mais acentuada, da monopolização de todas as riquezas, tanto das naturais como das criadas pelo trabalho social, desenvolveu-se
um novo sistema de servidão econômica. Este sistema exerceu um influxo cada vez mais funesto sobre todas as aspirações primitivas do liberalismo e sobre
os princípios autênticos da democracia política e social, conduzindo, por lógica interna, para esse novo absolutismo que encontrou, hoje, uma expressão
tão perfeita como vergonhosa na estrutura do Estado totalitário.
O movimento socialista poderia ter oposto um dique a esse desenvolvimento, mas a realidade é que a maioria de seus representantes deixou-se arrastar
pelo turbilhão desse processo, cujas conseqüências destrutivas se manifestaram na catástrofe geral da cultura que hoje contemplamos. O movimento socialista
poderia ter-se convertido no executor testamentário do pensamento liberal ao oferecer a este uma base positiva na luta contra o monopólio econômico, no
afã de que a produção social chegasse a satisfazer às necessidades de todos os homens. Constituindo assim o complemento econômico das correntes de idéias,
políticas e sociais do liberalismo, ter-se-ia convertido num elemento poderoso na consciência dos homens, e em veículo da nova cultura social na vida dos
povos. Realmente, homens como Godwin, Owen, Thompson, Proudhon, Pi y Margall, Pisacane, Bakunine, Guillaume, De Pape, Reclus e, mais tarde, Kropotkin,
Malatesta e outros, conceberam o socialismo neste sentido. Contudo, a grande maioria dos socialistas, com incrível cegueira, combateram essas idéias de
liberdade baseadas na concepção liberal da sociedade, considerando-as apenas como derivado político da chamada Escola de Manchester.
Deste modo sistematicamente se reviveu e se fortaleceu a crença na onipotência do Estado, crença que já tinha recebido um golpe sensível com a aparição
das idéias liberais dos séculos XVIII e XIX. É um fato significativo terem os representantes do socialismo, na luta contra o liberalismo, tomado emprestado
suas armas, amiúde, do arsenal do absolutismo, sem que a maioria sequer percebesse o mal deste fenômeno. Muitos, e especialmente os representantes da escola
alemã, a qual, mais tarde, veio a obter uma influência predominante sobre todo o movimento socialista, eram discípulos de Hegel, Fichte e outros representantes
da idéia absolutista do Estado. Outros sofreram uma influência tão poderosa do jacobinismo francês, que só podiam conceber a transição ao socialismo sob
a forma de ditadura. Outros, ainda, acreditaram numa teocracia social, ou numa espécie de "Napoleão socialista", que traria a salvação do mundo.
Contudo, a pior superstição foi a concepção da "missão histórica do proletariado" que, segundo Marx, tinha de se converter, fatalmente, no "coveiro
da burguesia". A palavra classe não constitui, no melhor dos casos, senão um conceito de classificação social; conceito que pode não ser válido em determinadas
circunstâncias, mas nem Marx nem ninguém, foi capaz, até hoje, de traçar um limite fixo a esse conceito, dando-lhe uma definição exata. Sucede com as classes
o mesmo que sucede com as raças; nunca se sabe onde termina uma e começa outra. Existem no chamado proletariado tantas gradações sociais como as que existem
dentro da burguesia ou dentro de outra qualquer camada do povo. Mas o maior erro consiste em atribuir a determinada classe certas tarefas históricas e
convertê-la em representante de certas correntes ideológicas. Se se pudesse demonstrar que os homens nascidos e educados, sob certas condições econômicas
se distinguiam essencialmente, quanto a seus pensamentos e atos, dos outros grupos sociais, então nem sequer seria necessário ocupar-nos disto, já que,
ante fatos evidentes, cabe-nos apenas a resignação. Mas aí, precisamente, nos encontramos com o ponto crucial. O pertencer a uma camada determinada da
sociedade não oferece nem a menor garantia quanto ao pensamento e à atuação dos homens. O mero fato de que quase todos os grandes vanguardistas da idéia
socialista tenham saído não do proletariado mas das chamadas classes dominantes, deveria dar-nos que pensar. Entre eles se encontram aristocratas, como
Saint-Simon, Bakunine, Kropotkin; oficiais do exército, como Considérant, Pisacane e Lavroff; comerciantes, como Fourier; fabricantes, como Owen e Engels;
sacerdotes, como Moslier e Lamenais; homens de ciência, como Wallace e Dühring, assim como intelectuais de todos os matizes, tais como Blanc, Cabet, Godwin,
Marx, Lassalle, Garrido, Pi y Margall, Hess e centenas de outros.
Que se consolem os adeptos da teoria da "missão histórica do proletariado" com a idéia de que o fascismo é apenas um movimento da classe média! Mas
essa concepção não altera o fato de terem saído do proletariado os quase catorze milhões de votantes que, na Alemanha, deram seu voto a favor de Hitler.
Precisamente num país como a Alemanha em que o ensino marxista tinha encontrado tanta difusão, aquele fato tem dupla importância. Se é certo que os representantes
intelectuais do antigo absolutismo, isto é, os Hobbes, Maquiavéis, os Bossuet, etc., pertenceram às camadas superiores, enquanto os representantes do absolutismo
moderno, ou sejam os Mussolini, Stalin e Hitler, provêm das camadas mais baixas, essa circunstância nos demonstra precisamente que nem as idéias revolucionárias
nem as reacionárias se acham ligadas a um determinado grupo social.
Os partidários do determinismo econômico e da teoria da "missão histórica do proletariado" afirmam, não há dúvida, que, em seu caso, não se trata de
uma concepção ordinária, mas da necessidade interna de um processo natural, que se desenvolve independentemente da volição humana; mas é precisamente este
ponto que se deve provar previamente. A própria concepção marxista é apenas uma especulação, uma crença, como qualquer outra, em que o desejo é o pai da
idéia. A crença num desenvolvimento mecânico de todo suceder histórico sobre a base de um processo inevitável, que tem seu fundamento na natureza das coisas,
é o que mais prejuízo tem causado ao socialismo, pois destrói todas as premissas éticas, imprescindíveis para a idéia socialista. O absolutismo da idéia
conduz, em certas circunstâncias históricas, a um absolutismo da ação. A história atual ilustra este fato com os mais impressionantes exemplos.

O ideário de Proudhon

ENTRE os grandes precursores da idéia socialista, Proudhon foi um dos homens que melhor compreenderam a importância histórica do socialismo. Até hoje
não se pôde destruir sua influência intelectual sobre o movimento socialista dos países latinos e é uma fonte viva para lograr novos estímulos e novas
possibilidades de desenvolvimento. Proudhon reconheceu, com grande clarividência, que a obra da Revolução Francesa havia sido realizada somente pela metade;
que a tarefa da "Revolução do século XIX" devia ser a continuação dessa obra, levando-a à perfeição, a fim de conduzir a novos caminhos o desenvolvimento
social da Europa, já que a trajetória da Grande Revolução se esgotara no momento em que pusera fim à tutela monárquica aplainando o caminho para que os
povos pudessem tomar nas mãos o seu destino social, depois de terem estado durante séculos a serviço do absolutismo dos príncipes como um rebanho sem vontade,
assegurando a existência destes por meio de seu trabalho.
Aí residia a grande tarefa da época, tarefa que Proudhon reconheceu mais claramente que a maioria de seus contemporâneos. É verdade que a Grande Revolução
tinha eliminado a monarquia como instituição social e política, mas não logrou eliminar, junto com a monarquia, a "idéia monárquica", como dizia Proudhon,
a qual foi despertada para uma nova vida devido à centralização política do jacobinismo e da ideologia do Estado unitário. Essa herança nefasta que nos
ficou de tempos passados, expressa-se hoje novamente no chamado "princípio do caudilho" do Estado totalitário, o qual não passa de uma nova forma da antiga
"idéia monárquica".
Proudhon advertiu claramente que o absolutismo, esse eterno princípio de tutela para um fim querido por Deus, fechado a toda objeção humana, era o
que maiores empecilhos punha aos homens em suas aspirações para alcançar formas mais elevadas de existência social. Para ele, o socialismo não significava
tão-somente um problema de economia, mas também uma questão cultural, que abarcava todos os domínios da atividade humana. Proudhon sabia que não era possível
eliminar as tradições autoritárias da monarquia apenas num terreno, conservando-as em todos os outros, a não ser que se quisesse entregar a causa da liberdade
social a um novo despotismo. Para ele, a exploração econômica, a opressão política e a servidão intelectual não significam senão diferentes fenômenos produzidos
por uma mesma causa. Proudhon via na monarquia o símbolo da escravidão humana. Para ele, não era apenas uma organização política mas um estado social,
o que produzia determinadas conseqüências inevitáveis, tanto espirituais como psicológicas, que se advertiam igualmente em todos os terrenos da vida social.
Neste sentido, chamava o capitalismo a "monarquia da economia", pois converte o trabalho em tributário do capital, do mesmo modo que a sociedade presta
tributo ao Estado e o espírito à Igreja.
"O conceito econômico do capital - diz Proudhon - a idéia política do Estado ou da autoridade, assim como a concepção teológica da Igreja, são apenas
representações idênticas, que se completam reciprocamente, fundindo-se umas nas outras. Portanto, torna-se impossível combater uma e manter intacta a outra.
É este um fato sobre o qual hoje em dia estão de acordo todos os filósofos. O que o capital realiza a respeito do trabalho, o mesmo o faz o Estado em relação
à liberdade, e a Igreja no que se refere ao espírito. Esta trindade do absolutismo torna-se, na prática, tão nefasta como na filosofia. Para oprimir o
povo eficazmente é preciso encadear tanto o corpo como a vontade e o coração. Se o socialismo tem a intenção de se revelar numa forma exaustiva, universal
e livre de todo misticismo, cabe-lhe apenas mostrar à consciência do povo a importância desta trindade".
Partindo destes conceitos, Proudhon via no desenvolvimento dos grandes Estados modernos e na influência, cada vez incrementada, do monopólio econômico,
o maior perigo para o porvir da Europa. Esse perigo queria conjurá-lo por meio de uma preparação consciente, baseada na experiência, criando uma federação
de comunidades livres, sobre a base da igualdade econômica e tratados recíprocos. Sabia claramente que esse estado de coisas não podia desenvolver-se de
um dia para outro, senão que se tratava, em primeiro lugar, de fazer homens aptos para um melhor conhecimento, por meio do pensamento e das atividades
construtivas. Só assim seria possível dirigir as suas aspirações em certa direção, a fim de que, por próprio impulso,, pudessem fazer frente ao perigo
que os ameaçava.
Qualquer tentativa de eliminar as tendências absolutistas dentro do organismo social e pôr limites mais estreitos ao monopólio econômico, significava
para Proudhon, um verdadeiro passo à frente no caminho da libertação social. Tudo quanto se opusesse a essa grande finalidade, contribuindo, conscientemente,
a fortalecer a monarquia espiritual, econômica ou política mediante novas pretensões de poderio, não faria senão eternizar o círculo vicioso da cegueira
e preparar o caminho para a reação social, inclusive se tais esforços se faziam com o nome pretensioso da revolução.
A maior parte dos socialistas contemporâneos nem sequer se dão ao trabalho de penetrar nas idéias de Proudhon, cujas obras são tão ignoradas pela maioria
deles como é ignorado pelos zulus o teorema de Pitágoras ou a teoria da unidade do universo. A única coisa que conhecem de suas obras, e de maneira superficial,
é o seu ensino sobre o "livre crédito" e seu intento de instituir um "banco popular", intento que nunca chegou a realizar-se devido à intervenção do governo
francês. E ainda o conhecimento dessa mínima parte da obra de Proudhon, têm-no através da imagem deformada que dela fizeram alguns escritores marxistas,
a qual dá a impressão de que Proudhon não foi nada mais que um charlatão ordinário, que não teria feito outra coisa em toda a sua vida senão apregoar,
ante a pobre humanidade, os seus remédios contra toda classe de enfermidades sociais.
Na realidade, Proudhon foi entre todos os antigos socialistas o que mais decidida e insistentemente se opôs à crença numa panacéia universal que curasse
todos os vícios sociais. Sabia que a tarefa reservada ao socialismo não era de modo algum um nó górdio que podia ser desatado mediante um golpe de espada.
Precisamente por isso não tinha confiança nenhuma nos remédios universais, mediante os quais, segundo muitos pensavam, podia obter-se, de um só golpe,
a transformação geral de todas as instituições da sociedade. Sua crítica penetrante e convincente das tendências socialistas de sua época nos proporciona
uma impressionante prova dessa alegação.
Proudhon era um homem que não tinha metas fixas, pois compreendia perfeitamente que a verdadeira natureza da sociedade devia buscar-se na eterna mutação
de suas formas, e que a serviríamos tanto melhor quanto reduzidas fossem as barreiras artificialmente levantadas e quanto mais firme e consciente fosse
a participação que os homens tomassem nessas mudanças. Neste sentido, disse Proudhon em certa ocasião, que a sociedade se parece a um aparelho de relógio,
que leva dentro de si o próprio impulso pendular, sem necessidade de nenhuma ajuda alheia para permanecer em movimento. A libertação social significava,
para ele, um caminho e não uma meta, já que compartilhava da opinião de Ibsen que disse: "Quem possui a liberdade de modo diferente da que aspira, possui-a
morta e sem espírito, porque o conceito de liberdade tem precisamente a propriedade de ir amplificando-se constantemente enquanto nos vamos apoderando
dela. Portanto, se alguém se detém em meio da luta, dizendo 'agora é minha', demonstra por isso mesmo que já a perdeu".
Partindo desse ponto de vista, é preciso valorizar também as tentativas práticas de Proudhon. Estes intentos derivavam-se das circunstâncias da época,
e só podem ser explicados e compreendidos em relação com a mesma. Como sucede com qualquer pensador cuja atividade pertence ao passado, também existem
na obra de Proudhon aspectos que foram superados pelo tempo, ficando, no entanto, intacta a importância criadora de sua obra. Até nos parece surpreendente
quanto permanece ainda vivo, alcançando novo significado precisamente em relação à atual situação mundial.
Proudhon, que compreendeu a essência do Estado melhor que a maioria de seus contemporâneos socialistas, não tinha ilusões quanto às conseqüências inevitáveis
de todas as tendências absolutistas, quaisquer que fossem as formas que estas pudessem apresentar e qualquer que fosse o grupo que as estimulasse. Portanto,
também compreendia claramente o caráter verdadeiro de todos os partidos políticos, e estava convencido firmemente de que deles não poderia sair nenhum
trabalho criador para uma autêntica transformação social. Para isso advertia aos socialistas, extraviados no caminho das tendências absolutistas, tratando
de explicar-lhes que, assim que o socialismo chegasse a governar, terminaria seu papel e ficaria entregue irremediavelmente à reação.
"Todos os partidos políticos, sem exceção alguma - dizia Proudhon - enquanto aspiram ao poder público, não passam de formas particulares do absolutismo.
Não haverá liberdade para os cidadãos; não haverá ordem na sociedade, nem unidade entre os trabalhadores, enquanto em nosso catecismo político não figure
a renúncia absoluta à autoridade, arcabouço de toda tutela".
Proudhon foi entre os socialistas mais velhos, talvez o único que declarou guerra a todo sistema fechado, já que tinha advertido que as condições da
vida social são demasiado múltiplas e heterogêneas para serem tomadas dentro de um determinado molde, sem que se cometa violência contra a sociedade ao
substituir uma velha forma de tirania por outra nova. Portanto, seus ataques não se dirigiam tão-somente contra os representantes da ordem social atual,
mas também contra muitos dos chamados "libertadores", que unicamente queriam comutar seus postos com os possuidores de então, prometendo às massas tesouros
na lua para poder mais facilmente abusar delas em benefício de sua ambição pessoal. De uma significativa passagem, tomada de uma carta de Proudhon a Karl
Marx, que transcrevemos a seguir, podemos deduzir quão livremente pensava Proudhon:
"Tratemos em comum, se você quer, de conhecer as leis da sociedade; fixar seu modo de ser e seguir o caminho que preparamos ao submeter-nos a esse
trabalho. Mas, por Deus! não pensemos, por nossa parte, em exercer uma tutela sobre o povo, depois de ter destruído, a priori, todo dogmatismo. Não caiamos
na contradição de seu compatriota Martin Lutero, o qual, depois de ter refutado os dogmas da teologia católica, procedeu, com zelo incrementado e grande
luxo de interditos e juízos condenatórios, a dar vida a uma teologia protestante. Há três séculos, está a Alemanha ocupada em eliminar esse novo revestimento
aplicado por Lutero ao velho edifício. Não devemos colocar os homens, mediante novas confusões e o disfarce de velhos fundamentos, ante uma nova tarefa.
Do fundo do coração aplaudo a sua idéia de dar expressão a todas as opiniões atuais. Tratemos de fazê-lo na forma de uma explicação amistosa; demos ao
mundo o exemplo de uma tolerância sábia e clarividente; e não tratemos, pelo fato de achar-nos à frente de um movimento, de converter-nos em caudilhos
de uma nova intolerância. Não devemos fazer-nos passar por apóstolos de uma nova religião, nem sequer da religião da lógica e da razão. Recebamos e estimulemos
todo o protesto; estigmatizemos todo exclusivismo, todo misticismo. Não consideremos jamais esgotada uma questão: e, depois de ter gasto nosso último argumento,
comecemos de novo, se for necessário, com eloqüência e ironia. Nestas condições aderiria com prazer à sua associação. Do contrário, não."
Estas palavras, datadas de 17 de maio de 1846, são duplamente importantes. Em primeiro lugar, é característico para mostrar a maneira franca e sincera
de Proudhon, revelando sua profunda aversão contra todo dogmatismo e todo sectarismo: e é importante, ademais, porque foi a causa imediata da ruptura que
houve entre Marx e Proudhon.
Proudhon foi um pensador solitário, mal compreendido, não só por seus adversários democratas e socialistas, mas também, muitas vezes, até por seus
próprios partidários posteriores, os quais confundiram certas proposições práticas de Proudhon, nascidas no calor das condições da época, com a verdadeira
obra de sua vida. Sua correspondência volumosa (que consta de catorze alentados tomos) contém inúmeras explicações de suas idéias, que demonstram o que
foi dito anteriormente, e que são indispensáveis para um estudo consciencioso de suas obras. O olhar de Proudhon dirigia-se profundamente para as relações
internas dos fenômenos sociais para que pudesse encontrar um eco naqueles cegos imitadores da tradição jacobina, que esperavam a salvação somente por meio
de uma ditadura. Foi, entre os antigos socialistas, um dos poucos que pretendeu levar a um fim o pensamento político do liberalismo, dando-lhe um conteúdo
econômico.
É característico que precisamente os representantes da escola marxista tratarão, sempre, de refutar o pretendido "utopismo" de Proudhon, fazendo fincapé,
com grande alegria maliciosa, em que o imenso fortalecimento do poder central do Estado e a influência constantemente incrementada dos modernos monopólios
econômicos, provavam claramente o atraso intelectual das idéias e aspirações de Proudhon, como se o fato de tal desenvolvimento alterasse, por menor que
fosse, a própria realidade. Com o mesmo direito se poderia sustentar hoje que a doutrina da chamada "missão histórica do proletariado" nos conduziu totalmente
para o fascismo e para o advento do Terceiro Reich.
Proudhon previu claramente as conseqüências ineludíveis de um desenvolvimento nessa direção, e não poupou esforços para tornar os seus contemporâneos
conscientes da magnitude do perigo. Mais que ninguém uniu todas as suas forças a fim de guiar os homens para novos caminhos que prevenissem a catástrofe
iminente. E não foi culpa sua que se tenham desprezado as suas advertências, e que sua palavra se tenha perdido no meio do estrondo das paixões dos partidos
políticos. Todo o desenvolvimento econômico, político e social, sobretudo depois da guerra franco-alemã de 1870-71, mostra-nos, com clareza aterradora,
quanta razão teve Proudhon em seu julgamento da situação geral. Precisamente hoje, quando com velas soltas nos dirigimos para um novo período do absolutismo
político e social; num momento em que o moderno capitalismo centralizado espezinha, até matar, com brutal desprezo de toda consideração humana, os últimos
restos de independência econômica, e quando as pretensões ditatoriais são mais intensas, revela-se claramente toda a inépcia intelectual de nossa época;
precisamente hoje se manifesta em toda a sua extensão, a importância histórica da obra de Proudhon.
Sobretudo revela que a libertação social não constitui apenas um problema econômico. A Gleichschaltung
(1),
o ajuste mais perfeito das forças econômicas, não oferece garantia alguma para a libertação autêntica e total da humanidade. Até, sob certas circunstâncias,
produz o efeito de uma escravização muito maior que a que temos conhecido até hoje. A fé cega de tantos socialistas em que a estatização da economia possa
resolver a questão social, baseia-se numa concepção totalmente errônea da tarefa que incumbe ao socialismo. Os acontecimentos econômicos nos chamados Estados
totalitários, e especialmente no exemplo instrutivo que nos dá a "ditadura do proletariado" na Rússia, mostram-nos com grande clareza que a estatização
da vida econômica caminha paralelamente a uma total denegação de todos os direitos e liberdades pessoais; e assim há de ser fatalmente, já que a estatização
da economia ajuda a subir ao poder uma hierarquia burocrática, cuja influência, enquanto classe dominante, não se torna menos nefasta para o povo trabalhador
que o papel desempenhado pelas classes possuidoras nos Estados capitalistas, e até o supera quanto às suas conseqüências espirituais, físicas e morais.
A igualdade econômica que reina nas prisões ou nos quartéis não constitui certamente modelo adequado para a cultura social mais elevada do futuro. Também
neste aspecto Proudhon se apresenta como profeta, pois predisse que uma união do socialismo com o absolutismo teria de conduzir à maior tirania de todos
os tempos.

Os ideais condicionados ao meio

O traço antiliberal que se adverte no campo do socialismo, contribuiu com uma parte não pequena, embora inconsciente e não deliberadamente, a aplainar
o caminho para a concepção do Estado totalitário. Na verdade, a chamada "ditadura do proletariado" na Rússia levou à prática as primeiras idéias de um
Estado totalitário, que mais tarde havia de servir como modelo, em muitos aspectos, a Mussolini e a Hitler. A oposição dentro do campo comunista, isto
é, os partidários de Trotzky e outros grupos dissidentes, admitiram mais tarde abertamente que o stalinismo foi o precursor da reação fascista na Europa;
mas com isso esqueceram algo essencial, isto é, que Lenine e Trotzky foram os precursores de Stalin. Não é a pessoa do ditador que decide a questão, mas
a instituição da ditadura como tal, da qual procede todo o mal e que, conforme a sua natureza, nunca pode ser outra coisa que a precursora de uma nova
reação social, inclusive se o socialismo e a libertação do proletariado lhe servem como folha de parreira para ocultar-lhe o verdadeiro caráter.
Foi sem dúvida fatal para o desenvolvimento socialista que, já em sua primeira fase, tenha sofrido forte influência das correntes de idéias autoritárias
da época, idéias que se derivavam das tradições jacobinas da Grande Revolução assim como do largo período das guerras napoleônicas. Talvez esse processo
tenha sido inevitável, já que toda época histórica gera um determinado modo de pensar, a cuja influência só alguns são capazes de subtrair-se, pois os
homens se acham demasiadamente vinculados às condições sociais de sua época.
Quando William Godwin, em 1793, lançou ao mundo seu Política! Justice, os povos se achavam então completamente sob a impressão produzida pelos grandes
acontecimentos na França, e eram avessos a qualquer concepção nova no terreno da vida política e social. Foi esta a razão por que as idéias liberais de
Ricardo Price, José Priestley e, sobretudo de Tomas Paine, exercessem então uma influência tão penetrante sobre as camadas intelectualmente vivas do povo
inglês; influência cujos efeitos se observaram então durante algum tempo, quando a reação, devido à guerra contra a República Francesa, se estendeu poderosamente,
tratando de matar violentamente todas as tendências liberais. O desenvolvimento ideológico achava-se então ainda em linha ascendente, e não tinha perdido
seu vôo interior, como iria suceder, em anos posteriores, devido às grandes decepções sofridas pela multidão.
As circunstâncias já haviam mudado consideravelmente quando apareceram Saint-Simon, Fourier e Owen com seus planos para uma transformação da vida social.
Em Saint-Simon, esses planos só depois de 1817 recebem seu verdadeiro caráter social, enquanto Fourier desenvolveu durante o primeiro Império suas idéias
socialistas em sua obra intitulada Théorie des quatre mouvements (1808). Mas ambos encontraram um número considerável de adeptos somente depois da queda
de Napoleão, quando já se tinha estendido sobre a Europa a sombra da Santa Aliança. Na mesma época, também Robert Owen deu à luz pública seus planos de
reforma social. Nas três décadas seguintes apareceram num e noutro lado do Canal, grandes ondas de novos pensamentos, sobre as tarefas sociais da época,
que acreditavam poder resolvê-las por meio de uma transformação radical das condições econômicas.
Mas todas essas tendências se manifestaram tão-só no momento em a Europa apenas havia terminado uma das épocas mais duras e agitadas de sua história,
época cujas repercussões espirituais e materiais perdurariam ainda por muito tempo. As tempestades da Grande Revolução, que tinham sacudido profundamente
os alicerces da sociedade européia, já tinham passado. Delas somente permaneceu a guerra, que fora desencadeada em 1792, convertendo os países mais importantes
do Continente, durante vinte e três anos, com poucos intervalos, em verdadeiros campos de batalha. Também já se desvanecera o prestígio e a onipotência
militar do Império, que devorara seis milhões de vidas humanas, deixando após si povos completamente esgotados. Em todos os países reinava uma miséria
terrível, falta de trabalho e ruína completa da economia. Os homens eram presa fácil do desalento que os tornava incapazes para qualquer resistência. O
ardente entusiasmo que a tomada da Bastilha despertara antigamente em todos os países, de há muito se desvanecera. Tinham sido derrubadas até as últimas
esperanças fundadas na queda de Napoleão, devido ao descarado perjúrio dos príncipes, dando lugar a uma nova resignação ante o inevitável. Achavam-se os
homens tão esgotados que já não eram capazes de tomar novo impulso.
Aquela foi uma época de esgotamento físico e desmoralização intelectual que tem muito de comum com a nossa, e, baseando-nos em nossas próprias experiências,
podemos julgá-la hoje em dia muito melhor do que tomando por base os livros da história. Da mesma forma que em nossa época a Revolução russa, aclamada
pelos trabalhadores socialistas do mundo inteiro com tanto entusiasmo, degenerou sob a ditadura dos bolchevistas, convertendo-se num despotismo sem espírito
que teria de aplainar o caminho para a reação fascista, assim afogou o terror exercido pelos jacobinos, com suas absurdas matanças em massa, o eco poderoso
que a Revolução, a princípio, tinha encontrado em toda a Europa, e abriu assim o caminho à ditadura de Napoleão, cuja herança política passou mais tarde
para as mãos da Santa Aliança. E assim como a guerra de 1914-18 e seus inevitáveis fenômenos secundários esgotaram completamente a Europa, condensando-se
numa crise econômica permanente de imensa envergadura, as desgraçadas guerras, que se realizaram sob a República e mais tarde sob Napoleão, destruíram
o equilíbrio econômico de Europa; e destruíram-no tão conscienciosamente que durante muito tempo nada pôde prosperar, exceto a pobreza das massas e uma
miséria infinita. Em ambos os casos, a decepção das massas e a insegurança econômica conduziram a uma reação internacional, que não se limitava apenas
às atividades dos governos, mas que se manifestava também em todos os ramos da vida social. O caráter dessa reação foi diferente, desde logo, em ambos
os períodos, conforme às diferentes condições da época, mas suas conseqüências espirituais produziram resultados idênticos.
Se não sobreviesse a guerra, a nova estrutura social da França ter-se-ia, provavelmente, desenvolvido tomando um caminho distinto, e não teria permitido
a ditadura de um só partido. Na verdade, a princípio, todos os partidos, com exceção de uma pequena minoria, adotaram uma atitude hostil ante a ditadura,
pois cada grupo temia converter-se em vítima do outro, no caso de que o azar desse a este o poder. Mas a guerra conduziu fatalmente a uma série de medidas
que ajudaram a facilitar o caminho à ditadura. O sentimento de insegurança e a desconfiança geral, que em todas as partes farejavam inimigos escondidos,
desejosos de suprimir as grandes conquistas da Revolução para restabelecer o antigo estado de coisas, também tiveram o seu papel, despertando no povo a
crença na necessidade provisória da ditadura, a fim de acabar com a crise. Mas uma vez chegados a esse extremo, a superioridade intelectual deixa então,
de decidir; a brutalidade dos meios é que então decide, assim como a astúcia pessoal e as opiniões libertas de todo escrúpulo moral. Mas essas qualidades
costumam seguir juntas com a limitação ideológica e a mediocridade das concepções. Já que para os representantes da ditadura a força brutal significa a
primeira e a última palavra de autoconservação, nunca se vêem obrigados a defender suas ações baseando-se em considerações de outra espécie. A famosa frase
de Cavour de que "por meio do estado de sítio qualquer asno pode governar", pode aplicar-se melhor ainda à ditadura, pois toda ditadura não é outra coisa
que uma nação em permanente estado de sítio.
Em condições normais existem certas possibilidades de criar novos caminhos de desenvolvimento, que surgem sempre enquanto não se estrangulou completamente,
com medidas tirânicas, a liberdade de discussão sobre as condições sociais. Até os representantes mais decididos do conservadorismo político não podem
subtrair-se por completo, em tais circunstâncias, às repercussões morais de uma manifestação democrática. Da mesma forma que a Igreja romana teve de se
resignar, pouco a pouco, com a existência das diferentes tendências protestantes, assim o conservadorismo político e social se vê obrigado à resignação
ante certos resultados da consciência democrática do povo, os quais são conseqüências das revoluções contra o absolutismo dos príncipes. Uma tal resignação
ante os fatos históricos se torna inevitável em circunstâncias normais, já que nem a revolução nem a reação são capazes de aniquilar completamente o adversário.
Para restabelecer depois dos grandes abalos, o equilíbrio social, e tornar possível a cooperação social, se desenvolveram paulatinamente certos princípios
nos quais se fundam, imperceptivelmente, o velho e o novo, e que se condensam, no curso do tempo, até se converterem em determinado estado legal, que não
se pode violar arbitrariamente em qualquer momento, se não se quer que a sociedade mergulhe permanentemente em aberto estado de guerra.
Este estado legal, assim criado, varia de grau, segundo ganhe ou perca força na vida pública uma ou outra tendência, mas seu fundamento moral permanece
intacto enquanto as condições sociais gerais não se convertam em insustentáveis por sua própria força, impelindo para uma mudança revolucionária do estado
de coisas estabelecido. Também se a parte mais forte intenta torcer o direito vigente e interpretá-lo a seu favor, isso sucede, em tempos tranqüilos, sempre
sobre a base dos conceitos legais em vigor, a fim de evitar conflitos maiores que possam pôr em perigo o equilíbrio social. Até o mais emperdenido Tory
não chegaria a defender, em circunstâncias normais, a restauração do absolutismo monárquico, mas adaptaria suas tendências ao estado de legalidade geral,
a fim de poder fazê-las valer. Intentará, em caso de lhe parecer propícia a ocasião, limitar os feitos de certos direitos e liberdades, mas nunca porá
em dúvida esses mesmos direitos e liberdades, com os quais tem de conviver, já que constituem uma parte essencial da ordem social existente. É esta a razão
também por que as revoluções não se podem criar artificialmente todos os dias, mas que dependem, da mesma forma que os períodos de reação social, de determinadas
condições. Só debaixo deste ponto de vista podemos apreciar, com exatidão, a influência que as correntes políticas do tempo exercem sobre o desenvolvimento
histórico do socialismo.

As concepções autoritárias

A influência das diferentes correntes políticas sobre o desenvolvimento do pensamento socialista, pode ser determinada claramente , em qualquer país,
e imprime uma marca especial que se manifesta, sobretudo, na atitude que assumem seus partidários ante o Estado. Não existe, com efeito, concepção política
alguma, desde a teocracia até a anarquia que não tenha encontrado certa expressão no movimento socialista. Os grandes precursores do socialismo moderno
tinham em comum uma coisa: viam na desigualdade das condições econômicas a verdadeira causa de todos os males sociais, e se esforçavam em levar essa convicção
à consciência de seus contemporâneos. Saint-Simon e Fourier tinham presenciado as tempestades da Grande Revolução, e também Owen fora testemunha das repercussões
imediatas que teve aquele grande drama histórico em relação à nova estrutura da Europa. A maioria de seus discípulos procediam da época do primeiro Império;
portanto tinham visto diretamente os efeitos imediatos da Revolução, assim como o bonapartismo e as tendências contra-revolucionárias do período da Restauração,
julgando-o, muitas vezes, de modo muito diferente de como o fizeram as gerações posteriores, que conheciam tudo aquilo apenas através das descrições dos
historiadores, pois as impressões vivas que recebemos dum acontecimento imediato costumam ser muito diferentes das representações que formamos através
da perspectiva do tempo.
Ao considerar as idéias e as atividades daqueles primeiros porta-vozes do socialismo em relação à sua época, compreendemos sua posição, com todos os
aspectos fortes ou débeis, sem ter que recorrer a essa classificação, arbitrária e insignificante, de socialismo "utópico" e socialismo "científico". O
fato é que homens como Saint-Simon, Considérant, Blanc, Vidal, e sobretudo, Proudhon, de modo algum consideravam o socialismo como uma revelação do céu,
mas como resultado natural do desenvolvimento econômico, chegando assim a conclusões que não conseguiram superar nem mesmo os pretensiosos representantes
do chamado "socialismo científico".
Com exceção daquelas tendências cujas aspirações procediam, de modo imediato, das tradições políticas do jacobinismo, da doutrina comunista de Babeuf
e de sua "Conjuração dos Iguais", quase todas as escolas do socialismo em França e Inglaterra tinham de comum considerar que a realização de seus fins
podia lograr-se mediante uma transformação pacífica das instituições sociais e pela educação das massas. Alguns quiseram explicar esse traço característico
pela carência pessoal de temperamento revolucionário; outros destacam nele uma estranha, ignorância das "leis de desenvolvimento social". Mas ambas as
tentativas de explicação carecem de validez, pelo mero fato de que não tomam em consideração o fundamento do problema.
Muitos daqueles chamados "utópicos" desempenharam um papel importante nas conspirações das sociedades secretas contra os Bourbons. Entre eles acham-se
precisamente os que, mais tarde, como representantes da nova doutrina, nada esperavam das insurreições revolucionárias. Bazard, Leroux, Buchez, Cabet e
muitos outros foram os membros mais ativos da Carbonaria francesa. Alguns deles tinham estado filiados à sociedade secreta dos "Amigos da Verdade". Buchez,
que, depois da fracassada tentativa da sublevação de 1821, fora detido e julgado, escapou à morte graças a um só voto. Foi sua amizade com Saint-Simon
que o levou a outros caminhos. O próprio Saint-Simon, em sua juventude, tinha participado da sublevação nas colônias norte-americanas contra a Inglaterra,
e tinha combatido sob as ordens de Washington. Portanto, dificilmente podia afirmar-se que as inclinações revolucionárias foram completamente alheias àqueles
homens. O fato de que, depois de experimentar um esclarecimento interior por meio do socialismo, deixaram de confiar no êxito doe movimentos insurrecionais
explica-se tendo-se em conta a nova direção de seu pensamento, assim como pelas condições que prevaleciam em seu tempo. Tinham reconhecido que as raízes
do mal social eram demasiadamente profundas para que fosse possível elminá-las tão-só mediante medidas violentas; ademais não se podia esperar, então,
apoio algum das massas esgotadas pelas longas guerras e suas conseqüências.
Assim sucedeu que a educação das massas se converteu, para a maioria dos antigos socialistas, em campo essencial de sua atividade. As experiências
dolorosas da época tinham-lhes ensinado que uma transformação mais radical da vida se tornava impossível enquanto a fração pensante do povo não estivesse
ainda conquistada pelas novas idéias e não se encontrasse ainda convencida da magnitude da tarefa que lhe competia. As últimas palavras de Saint-Simon,
e dirigidas ao seu discípulo predileto Rodriguez, "não esqueças nunca, meu filho, que é preciso ter o coração cheio de entusiasmo por uma idéia para poder
levar a efeito grandes coisas", são a expressão mais profunda desse conhecimento. Pois as condições externas de vida não são senão o solo alimentício de
onde brotam as idéias dos homens; mas são as próprias idéias que tornam os homens aptos para qualquer nova forma de existência social e criam novas condições
de vida.
Porque também a fé na onipotência da revolução não é, em última análise, senão uma ilusão que tem provocado muitos prejuízos. As revoluções não fazem
senão desenvolver os germes que já existiam anteriormente e que penetraram profundamente na consciência dos homens. Mas elas mesmas não podem criar esses
germes, fazendo surgir um mundo novo do nada. Uma revolução é o desencadeamento de novas forças que já atuavam dentro do seio da velha sociedade; forças
que quando chega o momento, fazem saltar as velhas ligaduras, assim como a criança que tendo cumprido seu tempo de embrião, arrebenta a velha envoltura
para iniciar sua própria existência. É característica da natureza da revolução, a circunstância de que a renovação das condições sociais de vida não proceda
desde cima, mas que dependa da atividade imediata das amplas massas do povo, sem as quais seria impossível uma transformação autêntica. Neste aspecto,
a revolução supõe sempre a conclusão de um determinado processo de desenvolvimento, e ao mesmo tempo, representa o caminho de uma nova estrutura da sociedade.
Mas esse rejuvenescimento da vida social por meio da revolução só é concebível, contudo, quando houver uma expansão cada vez maior de novas idéias
e representações dentro do velho corpo social; e também depende do modo mais ou menos decisivo de atuação de seus representantes. Quando se destacam cada
vez mais, até ficarem despidas, as velhas formas de vida; quando se desenvolvem novas normas de valor, morais e sociais, realiza-se, paulatinamente, uma
nova atmosfera espiritual, cuja expansão contínua socava o prestígio das velhas instituições sociais e de seus representantes, até que estas se desmoronam
completamente, incapazes de toda resistência. O primeiro impulso para uma transformação verdadeira procede sempre das minorias intelectuais vivas; mas
a revolução só chega ao desabrochar total de suas forças, quando amplas massas do povo se acham imbuídas da necessidade de uma mudança radical das condições
sociais, desenvolvendo as atividades nessa direção. A princípio, a multidão luta indistintamente, até que os impulsos indefinidos se condensam, em grandes
partes do povo, convertendo-se em conceitos firmes e em convicções íntimas.
Sem que haja tal desenvolvimento intelectual, não é concebível uma revolução, É a primeira condição prévia para qualquer mudança social, que estimula
o povo à resistência e lhe dá maior consciência de sua dignidade humana. Quanto mais profundamente penetrem as novas idéias nas massas, exercendo seu influxo
sobre o pensamento dos homens, tanto mais inapagáveis são as pegadas que deixam na vida da sociedade. Mas seria completamente errôneo considerar a revolução
apenas como uma transformação violenta das velhas formas sociais dando máxima importância à parte destruidora de sua obra. O aspecto destruidor da revolução
não constitui senão um fenômeno secundário, que depende quase exclusivamente do grau de resistência que oferece o adversário. Não no que destrói, mas no
novo que cria, e que ela ajuda a dar vida, revela-se a sua essência. São as tendências criadoras, que ela libera das tenazes das velhas formas sociais,
as que dão à revolução sua importância social e histórica.
Uma revolução, portanto, significa muito mais que um mero motim de rua, cujos motivos estão determinados por vários acidentes, coisa que nunca ocorre
tratando-se de uma revolução autêntica, pois esta constitui sempre o último elo da cadeia de um grande processo de desenvolvimento, que só chega ao término
final por meios violentos. Ali onde não existam essas condições prévias, uma sublevação, no melhor dos casos, poderia produzir uma mudança superficial
das condições políticas, fazendo ascender ao poder novos partidos; pois o povo ainda não se acharia maduro para um conhecimento mais profundo, esperando
portanto sua salvação unicamente de um novo governo, como o crente na providência divina.
A violência por si mesma nada cria de novo. No melhor dos casos, pode eliminar formas velhas e gastas e abrir os caminhos para um novo desenvolvimento,
se as possibilidades forem favoráveis. Mas não pode gerar idéias que primeiro hão de prosperar e madurar no cérebro dos homens, antes de se manifestarem
em forma prática. Neste aspecto, a violência tem sido, em maior envergadura, na história, uma característica típica da reação, que se servia dela para
estrangular qualquer impulso criador e fixar o pensamento dos homens dentro de determinadas formas, enquanto a revolução tendia precisamente para o contrário,
preparando, só por este meio, o caminho para todas as mutações sociais mais profundas.
A ruptura mediante a violência, com todas as velhas formas, mortas já internamente, constitui quase sempre o único meio de abrir caminho a novas formas,
mas nada tem de ver com o "culto da violência", que se preconiza, sistematicamente, pela reação. Esta é a causa também de toda revolução, no mesmo instante
que desemboca num novo sistema de violência, exercido por determinado partido, perder o seu verdadeiro caráter e dar lugar à contra-revolução.
O que desconhece este fato por muito que se presuma de convicção revolucionária, segue sendo, no fundo de seu ser, tão-somente um pratidário revolucionário
do golpe de Estado, o qual consciente ou inconscientemente, se acha no campo da contra-revolução. Mas Nettlau deu uma expressão muito profunda a esta concepção:
"A idéia babeufista e blanquista, que preconiza a chegada violenta ao poder estatal e à ditadura, é aceita, sem prévio exame consciencioso, também
fora daqueles círculos conscientemente autoritários: e dela surgiu a crença na onipotência da revolução. Por muito que eu a deseje, e por muito que respeite
essa crença, sua origem, contudo, é autoritária: é um pensamento napoleônico que desconhece, o que não tem importância para os autoritários, a autêntica
penetração de cada indivíduo pelo espírito, o sentimento e a compreensão sociais. O fato de que estes automaticamente se coloquem numa situação melhorada,
é outra suposição algo sumária, e não constitui uma prova convincente de que a nivelação alcançada pelo terror, seja um argumento em favor das revoluções
autoritárias".

Absolutismo, ponto de partida do socialismo autoritário

A maioria dos precursores do socialismo não esperavam nada, em favor de sua causa, das conjurações e intentos de sublevação, porque muitos deles, por
experiência própria, tinham visto a esterilidade de tais intentos. Outros extraíam as conclusões dos resultados imediatos da história contemporânea. Compreendiam
que era impossível querer, por meio da violência, levar as coisas à sua maturidade, visto acharem-se na primeira fase de seu desenvolvimento natural e
que, no momento, só tinham encontrado um eco espiritual numa pequena minoria. Sua concepção é tanto mais compreensível visto que, em seu caso, não se tratava
da mudança comum de governo, mas da transformação de todas as condições sociais de vida, objetivo impossível de lograr sem contar com a disposição espiritual
de amplas massas populares. Não era, pois, nem ingenuidade pessoal nem inconsistência nas convicções o que deu lugar a semelhantes reflexões, mas tão-somente
a total importância de uns indivíduos situados numa época que tinha perdido todos os vínculos sociais, e que conhecia unicamente as ordens de mando e uma
submissão sem resistência.
Mas tampouco os grandes precursores do socialismo puderam subtrair-se às influências autoritárias do tempo, por muito que suas idéias se tivessem adiantado
à época. As concepções liberais, que noutra época teriam encontrado expressão na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tinham passado para segundo
plano, dando lugar ao novo absolutismo de Napoleão, herdeiro da Revolução. Os povos tinham-se novamente transformado em rebanhos, cujo destino descansava
nas mãos de novos homens superiores, que lhe davam forma. O jacobinismo tinha refrescado a crença na onipotência do Estado, crença que, devido à Revolução,
tinha perdido seu brilho durante algum tempo. Mas Napoleão, por sua própria autoridade, se convertera em "mecânico que inventa a máquina", como Rousseau
costumava chamar ao legislador. Os imensos êxitos militares e políticos do conquistador corso, em todo o Continente, desencadearam uma verdadeira onda
de admiração, que sobreviveu à sua queda. A crença milagrosa nos "grandes heróis" da história, amoldando, à sua vontade, o destino dos povos, como o padeiro
que amassa o pão, celebrava seus maiores triunfos e fazia que se turvasse o olhar dos homens ante qualquer sucesso orgânico. A fé na onipotência da autoridade
converteu-se, de novo, no conteúdo da história e encontrou expressão nos escritos de Haller, Hegel, De Maistre, Bonald e outros. O lema de De Maistre:
"Sem Papa, não há soberania; sem soberania, não há unidade; sem unidade, não há autoridade; sem autoridade não há ordem", converteu-se no leit-motiv dessa
nova reação que se ia estendendo sobre toda a Europa.
Só ao ter em conta a época em que o espírito de autoridade celebrava seus maiores triunfos, quando não existia nenhuma contracorrente política capaz
de debilitar o sentimento de dependência total, podemos compreender que Saint-Simon, em 1813, escrevesse sua famosa carta a Napoleão a fim de o estimular
a levar a cabo uma reorganização da sociedade européia; ou que Robert Owen se dirigisse a Frederico Gentz, escritor tão espiritual como falto de caráter,
a soldo da Santa Aliança, para propor-lhe que apresentasse ante o Congresso dos princípes de Aquisgran (1818) seus planos para combater a miséria social
ou que Fourier fizesse uma sugestão semelhante ao ministro de Justiça de Napoleão, esperando, mais tarde, durante dez anos, o homem que havia de pôr à
sua disposição um milhão de francos, soma com a qual pretendia fazer um ensaio prático de grande envergadura, para a realização de suas idéias.
No ano de 1809 apareceu em Paris uma obra em dois tomos, intitulada "La Philosophie du Ruvarebohni", um dos produtos mais engenhosos da literatura
socialista daquela época
(2).
A obra contém toda uma série de reflexões brilhantes sobre as bases de uma sociedade socialista, no detalhe das quais não podemos penetrar. O característico
deste livro é que seu autor imagina a libertação da sociedade pelo grande chefe Poleano, que, com a ajuda dos grandes sábios do povo dos Icanarís, inicia
e dirige o grande renascimento da humanidade. Da mesma forma que o cônsul romano Cincinato, depois da guerra volveu ao seu arado, assim Poleano renuncia
voluntariamente o seu poder, para viver como os seus concidadãos, gozando com eles dos frutos da obra que tinha levado a cabo tão brilhantemente. Poleano
é, logo se vê, uma deformação do nome de Napoleão e o povo dos Icanarís é outra designação para os dos franceses (français).
Sem dúvida, os autores desse estranho livro sentiram-se estimulados a escrevê-lo pelos múltiplos planos de Napoleão, mediante os quais este esperava
romper a resistência dos ingleses e converter a indústria francesa na primeira do mundo. Suas inumeráveis conferências com homens de ciência, técnicos,
industriais e representantes do alto capital, assim como com aventureiros de toda laia, impostores de toda classe, charlatões, cujo único objetivo era
o de encher os seus bolsos, só tinham em vista essa única meta. Em tais circunstâncias era compreensível que nossos filósofos abrigassem a esperança de
ganhar o Imperador para seus projetos, fazendo do absolutismo o ponto de partida do socialismo.

O modelo do Estado totalitário

A esperança de ganhar Napoleão para a causa de uma transformação socialista da sociedade, não constituía, em suma, nenhum fenômeno separado. A objeção
de que homens como Saint-Simon, Fourier e os dois autores da mencionada obra acreditassem na possibilidade de uma ajuda, presenteada por Napoleão, unicamente
devido à sua aversão íntima a todas as tentativas revolucionárias, não é válida, pois encontramos tendências semelhantes também naqueles círculos que tinham
permanecido fiéis às tradições jacobinas, esperando de uma ditadura revolucionária a realização de seus planos socialistas. Também Miguel Buonarroti, companheiro
de Babeuf, e a quem Bakunine classificou como o maior conspirador do século, fundava suas esperanças em Napoleão, e acreditava seriamente que este estava
destinado a ser o instrumento de uma revolução, para acabar o que a primeira havia deixado inconcluso.
Quando Napoleão, em virtude da sentença das grandes potências européias, foi desterrado para Elba, seus antigos camaradas no exército juntaram-se ao
resto dos jacobinos, formando com eles associações secretas dirigidas contra o governo de Luís XVIII que havia sido imposto à França.
Napoleão, que possuía muita clarividência quanto à lógica dos acontecimentos, sabia perfeitamente que não podia esperar ajuda nenhuma da burguesia
francesa, que o tinha resolutamente abandonado quando da invasão dos exércitos aliados. Portanto, via-se obrigado a apoiar-se nas classes populares mais
baixas, alimentando-as com grandes promessas, a fim de pô-las em movimento. Quando regressou às Tulherias, em 20 de março de 1815, visitou arrabaldes e
fábricas, permitiu que os operários lhe apresentassem relatórios sobre a situação econômica e prometeu-lhes que dedicaria o resto de sua vida à paz, para
mostrar ao mundo que "não era somente o Imperador dos soldados, mas também dos camponeses e proletários". Alguns velhos democratas, antigos inimigos do
Imperador, entraram no governo, para que o povo reconhecesse que se tomava a sério o prometido "reino da paz e da democracia". Aboliu-se a censura e suprimiu-se
o controle policial sobre o comércio de livros. Seu adversário de muitos anos, Benjamin Constant, que se sentava no mesmo governo ao lado de Carnot, recebeu
o encargo de elaborar o projeto da nova Constituição. Foi, com efeito, "uma época de vertigem" esse período dos "Cem Dias", que iria encontrar um fim tão
rápido e sangrento na batalha de Waterloo. Bonapartistas e jacobinos tinham abandonado, desde o regresso dos Bourbons, seu velho feudo, pronunciando-se
ambos a favor do restabelecimento do Império. A política gera às vezes estranhos companheiros, mas tais pactos, em regra geral, costumam celebrar-se unicamente
quando os pactuantes têm idênticas aspirações básicas. Fizeram-se diversas conjeturas sobre como se teria desenvolvido o futuro da Europa se Napoleão tivesse
oportunidade de levar avante as reformas sociais que prometera. Mas é difícil supor que teria cumprido suas promessas se não tivesse sucumbido tão rapidamente
ante os adversários militares. Um homem do seu caráter, acostumado tão perfeitamente à idéia de desempenhar, na Europa, o papel da providência, considerando
sua própria vontade como lei suprema, dificilmente teria sido capaz de ir por outros caminhos. Não é impossível que realmente abrigasse a idéia de grandes
reformas sociais. Seus planos definitivos de fundir a Europa numa grande unidade econômica sob a hegemonia da França, assim como outras idéias, parecem
favorecer essa hipótese. Mas essas reformas só teriam sido adequadas à sua própria natureza: um Estado de termitas sobre a base de uma moral de quartel,
que afogaria todo o indivíduo e submetê-lo-ia ao ritmo autômato de uma máquina, que reduz tudo ao mesmo nível.
Se Fourier e Saint-Simon acreditaram ganhar a Napoleão para a causa de uma grande reforma social foi porque Napoleão, aos seus olhos, encarnava em
si todas as possibilidades que podiam facilitar um novo desenvolvimento da vida social. Esperavam, contudo, que um intento sério nessa direção tornaria,
com o tempo, supérflua toda a base política e militar sobre a qual descansava o domínio do Imperador, substituindo-a por novas instituições sociais. Foi
este um erro psicológico, que se explica, contudo, tendo em conta a situação política e social da época.
De modo diferente devemos julgar, por outra parte, a posição de Buonarroti e de seus partidários comunistas posteriores nas sociedades secretas da
França. Entre eles e Napoleão existia certo parentesco interno, embora não se dessem conta disso. Buonarroti, que anteriormente tinha pertencido ao círculo
dos íntimos de Robespierre, acreditava com o mesmo fervor na onipotência da ditadura; da mesma forma que Napoleão, nada lhe parecia impossível se tinha
atrás de si um exército. Também Buonarroti contava com os homens como se fossem números, e se Napoleão estava firmemente convencido de poder quebrar toda
resistência por meio da força, aquele e seus partidários acreditavam que era preciso forçar os homens a realizar sua felicidade por meio do terror revolucionário.
No fundo, Napoleão continuou sozinho, com maior envergadura, o que Robespierre e seus discípulos já tinham iniciado, quer dizer, a centralização de todos
os ramos da vida social. Portanto, não era, na verdade, o herdeiro da Revolução que tinha proclamado a "Declaração dos Direitos do Homem", mas apenas o
representante do jacobinismo, que tinha convertido esses direitos em coação, ilustrando sua interpretação, mediante a guilhotina.
Muitas vezes, na vida política, os extremos se tocam, mas só quando existem pontos de atração comuns, que, em certas circunstâncias, se orientam na
mesma direção. Todas as reformas de Napoleão foram produto de uma atmosfera de quartel. O comunismo igualitário de Babeuf, Buonarroti e de toda a escola
posterior de babeufistas, obedecia a idênticas premissas. É o parentesco íntimo do pensamento e do sentimento que leva avante tais alianças. O pacto entre
jacobinos e bonapartistas na época da Restauração; a adesão que Lassale buscou em Bismarck, e que não encontrou, porque não tinha atrás de si nenhuma potência
equivalente; a aliança entre Stalin e Hitler, que se converteu na causa imediata da guerra mundial de hoje, tudo isso só se pode compreender assim. Em
todos esses casos se trata de determinadas conseqüências de princípios absolutistas idênticos, embora sob diferentes formas. Quem não compreender essas
relações internas nada lhe poderá revelar a História.
Toda a escola babeufista do socialismo encontrou seus representantes em homens como Barbés, Blanqui, Teste, Voyer d'Argenson, Bernard, Meillard, Nettré,
etc., que ao desenvolver sua atividade, em associações secretas, tais como a "Sociedade das Famílias" e a "Sociedade das Estações", mostram-se absolutamente
autocratas em todas as suas tendências. Segundo um informe secreto que foi aprovado em 1840 por todas as seções das sociedades, um diretório composto de
três pessoas tinha de organizar a sublevação próxima; depois da vitória, o mesmo diretório seria instituído em governo provisório. A seguir, esse corpo
ditatorial devia ser eleito, não pelo povo, mas pelos próprios conspiradores. O governo assumiria a direção da indústria, assim como da agricultura e da
distribuição dos produtos. Para estabelecer a igualdade ante o Estado, os filhos, a partir de cinco anos de idade, seriam afastados dos pais para serem
educados em institutos oficiais. Deste modo, pois, os socialistas elaboraram naquela época o modelo do Estado totalitário. Também a idéia de Lenin do "revolucionário
profissional" é apenas uma cópia do "estado maior revolucionário" de Blanqui. A "idéia monárquica", à qual Proudhon havia declarado guerra, estava enraizada
mais profundamente do que podiam suspeitar, e, como demonstram os últimos acontecimentos, ainda hoje em dia não perdeu o seu efeito.
Também a escola socialista de Esteban, Cabet, Louis Blanc, Contantin Pecquer e de outros mais, está impregnada de pensamentos absolutistas. Só em Fourier
e seus partidários encontramos freqüentemente idéias liberais e tendências conscientemente federalistas. O socialismo inglês da velha escola, assim como
o posterior, mostra um espírito muito mais liberal, porque as grandes correntes das idéias liberais exerceram uma influência muito maior sobre os seus
representantes; o mesmo sucede na Espanha,, onde as tradições federalistas estavam enraizadas mais profundamente no povo, desenvolvendo-se o socialismo
anarquista e convertendo-se num movimento de massas. Igualmente podemos dizer da Itália, onde as doutrinas de Pisacane e do socialismo libertário constituíram
um eficaz contrapeso às tendências autoritárias da época.

Saint-Simon e as teorias da época

Entre os socialistas da velha escola não só encontramos multas vezes uma hostilidade pronunciada contra todas as aspirações liberais como um namoro
manifesto com as concepções do absolutismo político, como até inclinações teocráticas, que procediam diretamente das concepções do catolicismo romano.
Assim se observa especialmente nos discípulos de Saint-Simon e nos partidários do chamado comunismo teosófico. Entre as doutrinas ae Saint-Simon e os conceitos
sociais vertidos em sua escola por seus discípulos existe uma divergência tão grande que se torna impossível, por vezes, a conciliação. E só poderíamos
qualificá-la como uma degenerescência das idéias originárias do mestre. Entre os grandes precursores do socialismo, Saint-Simon foi, sem dúvida, uma das
figuras mais notáveis, pois, com suas idéias, fecundou todas as tendências socialistas posteriores, desde as marxistas até as anarquistas. Seus amplos
conhecimentos e a extraordinária faculdade de observação histórica deram-lhe um lugar junto aos mais importantes pensadores de sua época, lugar que mantém
com indiscutível direito. Chamaram-lhe de "natureza de Fausto", e não sem razão, pois ele apelou para muitas portas ocultas. E a fome eterna de conhecimentos
cada vez mais profundos, constitui o conteúdo de toda a sua vida singular, tão rica pela originalidade e emocionante pela grandeza trágica.
Saint-Simon nunca estabeleceu uma teoria determinada quanto à solução do problema social, nem tampouco se perdeu na busca de representações abstratas,
como fizeram seus discípulos posteriores. Sua imensa superioridade intelectual fica demonstrada pelo fato de que uma série de espíritos importantes de
sua época não puderam subtrair-se ao encantamento de seus pensamentos. Augustin Thierry, o grande historiador francês; o geólogo Le Play; Augusto Comte,
o fundador da "Filosofia do Positivismo"; o jurista Lerminier; H. Carnot, que foi mais tarde ministro de Instrução Pública; compositores como Léon Halévy
e F. David; engenheiros como Barrault, Mony e Lesseps, o construtor do canal de Suez; economistas e financistas como Michel Chevalier, Adolphe Blanqui,
O. Rodriguez, Émile Péreire; homens que mais tarde haviam de desempenhar um papel destacado no movimento, socialista, como por exemplo A. Bazard, P. Enfantin,
P. Leroux, J. Reynaud, Ph. Buchez e muitos outros, ainda, todos eles saíram da escola de Saint-Simon, ou então sofreram uma forte influência de suas concepções.
Também Enrique Heine e a novelista George Sand foram impressionados por suas idéias. Só um espírito superior poderia produzir um influxo tão forte e duradouro.
A verdadeira grandeza de Saint-Simon funda-se em sua brilhante análise das novas condições econômico-políticas, resultantes da Revolução Francesa,
assim como nas profundas idéias sobre a importância da indústria moderna, que considerou, com razão, como um dos fatores mais decisivos para o desenvolvimento
econômico e político da sociedade européia. Ao mesmo tempo, a indústria não significava para ele tão-somente um fenômeno material mas também um elemento
espiritual, pois por meio dela, o espírito poderia vencer a matéria e criar, por sua vez, certas normas éticas de vida, desconhecidas da velha sociedade:
a valorização do trabalho humano.
Saint-Simon foi um dos primeiros grandes filósofos sociais que traçaram um limite claro entre a organização política do Estado e a estrutura natural
da sociedade, tratando de determinar claramente a esfera de influência de ambos. Em seu trabalho Du systhème industriel (1821) atribui o eclodir da Grande
Revolução à tutela exercida pelo Estado e à regulamentação da indústria, concluindo daí que o peso principal de toda a atividade humana não podia basear-se
nas formas políticas do governo, mas nas condições econômicas e gerais da época. Enquanto a humanidade não tinha ainda ultrapassado seu estado de infância,
a tutela exercida pelo governo era apenas uma função natural, fundada nas mesmas circunstâncias que a tutela que exercem os pais sobre o filho. Mas assim
como o homem adulto prescinde dessa tutela e em sua maturidade traça a sua vida conforme as suas próprias necessidades e com sua própria responsabilidade,
assim também a humanidade, como totalidade, há de suprimir, pouco a pouco, o governo, aprendendo a ser independente. "A arte de governar os homens desaparecerá
para dar lugar a uma nova arte: a arte de administrar as coisas". A época da maturidade social se inicia, segundo Saint-Simon, com a criação da indústria.
E esta não só há de libertar os homens da maldição da pobreza, mas também da necessidade de serem governados.
Mas os discípulos de Saint-Simon não souberam aproveitar as idéias luminosas do mestre, que Proudhon acolheu e desenvolveu, e se converteram não só
em representantes de um novo catolicismo, mas também de uma nova hierarquia, à qual chamaram de "Igreja saint-simoniana". O fim a que aspiravam era uma
teocracia social, na qual os representantes da arte, da ciência e do trabalho constituiriam a estrutura interna do Estado. Em oposição à maioria das tendências
socialistas, os saint-simonianos eram adversários da República, pois viam na forma republicana do Estado a expressão de uma cisão interna. "A República
- disse Rodriguez - é impossível; nunca se realizará. Até o seu nome desaparecerá, e será substituído pelo de associação. É um erro acreditar que o saint-simonismo
é republicano."
Enquanto os representantes da escola liberal queriam impedir o abuso do poder público por meio de uma divisão dos poderes e, sobretudo, pela separação
dos poderes legislativo e executivo, os saint-simonianos viam nesta divisão apenas um fracionamento das forças sociais, que teriam de conduzir fatalmente
a uma corrupção da comunidade. Eles aspiravam à união de todos os poderes políticos e sociais, concentrados em uma única pessoa. "O chefe do Estado é,
ao mesmo tempo, legislador e juiz. Ele determina as linhas diretrizes da ordem pública e decide sobre sua aplicação. Ele é a lei viva, o órgão do qual
procede tudo, elogio e censura".
Como, segundo a concepção dos saint-simonianos, a existência material dos homens acha-se ligada estreitamente à religião, a nova Igreja, como união
sintética e unidade orgânica, eleva-se sobre todas as estruturações da vida econômica e social. Por isso, toda a direção da sociedade descansa nas mãos
do sacerdote, pois a Igreja deixa de ser uma instituição da sociedade e converte-se na própria sociedade. Toda a ordem social se edifica sobre a base de
três grandes princípios: "amor, pensamento e força", representados por três classes sociais: artistas, sábios e trabalhadores, que formam a hierarquia
da vida social. Em uma tal comunidade não há lugar para interesses individuais e pessoais; todo o individual desaparece fundindo-se no organismo da sociedade.
O sacerdote é o intermediário em todas as relações sociais. Não só decide sobre os assuntos da vida espiritual, mas também designa o lugar de cada membro
da comunidade e cuida do equilíbrio social mediante uma distribuição justa da produção geral e a divisão adequada doa produtos do trabalho.
A "Associação Universal de Trabalhadores" dos saint-simonianos tem o caráter de uma teocracia social, em cuja cabeça está o Papa industrial, cujas
ordens cada indivíduo tem de obedecer sem objeção, já que são igualmente obrigatórias para todos. É o modelo do Estado totalitário que mantém todas ás
manifestações da vida dentro de bitolas justas, cuidando que cada um receba a parte que lhe corresponda em virtude de sua posição e casta social. Trata-se
da representação de uma Igreja social como símbolo da confraternização humana, Igreja que determina a cada indivíduo o lugar que há de ocupar para fazer
prosperar os interesses da comunidade. Esse era o ideal político dos saint-simonianos, os quais, consciente ou inconscientemente, se encontram neste ponto,
com os representantes rigorosos do princípio absolutista da autoridade. Também sua organização tinha a marca teocrática de uma nova Igreja. Esta era dirigida
por um "Sacro Colégio", a cuja frente figuravam como "sacerdotes supremos", Bazard e Enfantin. Possuía comunidades, bispados e sedes episcopais em Paris,
Tolosa, Angers, Lyon, Metz, Blois, Bordéus, Nantes, Limonges, Tours, Dijon e numa série de cidades, contando com representantes ativos no estrangeiro,
sobretudo na Bélgica.
Particularmente depois da morte de Bazard, quando Enfantin se converteu em cabeça única, o "Papa" da nova Igreja, o fervor religioso de seus adeptos
assumiu, muitas vezes, um caráter que hoje dificilmente podemos explicar. Por exemplo, escreveu-lhe uma vez Reynaud, da Córsega: "O beijo de meu Pai me
dará forças; sua palavra, eloqüência. Ponho toda a minha confiança em meu Pai, pois sei que ele conhece melhor a seus filhos que estes mesmos. E, contudo,
por que me ponho a tremer quando sinto a sua aproximação?" E Barrault, um dos oradores mais brilhantes, e apóstolo da nova Igreja, escreveu a Enfantin:
"Pai, tu és o mensageiro de Deus na terra e o rei de todos os povos! Jerusalém viu o seu Cristo e não o reconheceu. Paris viu teu rosto e ouviu a tua voz.
Mas a França conhece apenas o teu nome".
Não há dúvida de que Enfantin estimulou este vergonhoso fervor religioso para dar à sua influência uma base espiritual, contra a qual se chocavam os
argumentos do senso comum. Se com ele comparamos a atitude da Igreja política do comunismo moderno, cujos cegos membros, sempre se acham, dispostos, por
ordem superior, a caluniar tudo quanto ainda ontem haviam celebrado, tornam-se compreensíveis muitas coisas que nos pareciam estranhas ao estudar aquela
época que passou.

Fernando Lassalle e seu socialismo

A influência das correntes absolutistas no desenvolvimento das idéias socialistas nos primeiros períodos de seu crescimento, foi sem dúvida nefasta,
apesar de as causas nos parecerem compreensíveis tendo-se em conta as condições da época. Mas na França não existia apenas uma tradição jacobina e autoritária
senão que a própria Grande Revolução deixara sulcos profundos no pensamento dos homens; sulcos imperecedouros que ofereciam pontos de contacto para novas
possibilidades de desenvolvimento. E embora seja um fato indiscutível que certas tendências do socialismo francês estavam impregnadas do absolutismo político
e clerical, essas tendências encontraram certamente um peso eficaz nas reflexões histórico-filosóficas de Saint-Simon; na idéia da associação federalista
do fourierismo e em sua doutrina do "trabalho atrativo", assim como, sobretudo, na influência predominante da filosofia social-anarquista de Proudhon.
Muito distinta, porém, era a situação na Alemanha, carente de toda tradição revolucionária; onde o liberalismo foi sempre um débil substituto do modelo
inglês, e onde as idéias da democracia burguesa nunca encontraram raízes no povo. A Alemanha continuou sendo, até o final da primeira guerra mundial, um
Estado meio absolutista, e todas as vitórias eleitorais da social-democracia alemã não puderam mudar em nada esse fato histórico. Os primeiros princípios
do movimento socialista na Alemanha foram importados da França; mas como seus mais eminentes representantes tinham saído, quase sem exceção, da escola
de Hegel e Fichte, suas concepções adotaram, desde início, um caráter especial, que as diferenciava esssencialmente de todas as tendências socialistas
que prevaleciam na Europa ocidental. Hegel, o "filósofo do Estado prussiano", como se lhe chamou com razão, fizera do Estado o "Deus na terra", e Fichte,
em seu trabalho "O Estado mercantil fechado", elaborara o projeto de uma sociedade socialista estatizada que poderia servir de modelo a qualquer estrutura
de Estado totalitário. Quando Frederico Engels disse em seu trabalho "Do socialismo utópico ao socialismo científico": "Nós, os socialistas alemães, estamos
orgulhosos de não descender apenas de Saint-Simon, Fourier e Owen, mas também de Kant, Fichte e Hegel", não fez outra coisa senão constatar um fato. Mas
outra questão é saber se esse fato deu realmente ao socialismo alemão a superioridade intelectual que Engels lhe atribui.
A agitação levada a cabo por Fernando Lassalle preparou o caminho para o moderno movimento operário alemão. Sua influência sobre este movimento vigorou
por muito tempo e voltou a despertar novamente sobretudo antes da primeira guerra mundial e depois da revolução de novembro de 1918. Lassalle foi durante
toda a sua vida um partidário fanático da idéia hegeliana do Estado. Seus discípulos estavam tão convencidos da "missão libertadora do Estado", que sua
fé no mesmo adotava às vezes formas grotescas. No estrangeiro acredita-se comumente que a Alemanha foi sempre o país mais marxista do mundo, e a luta bárbara
dos chefetes do Terceiro Reich contra o "marxismo" confirmou em muitos essa opinião. Na realidade as coisas são muito distintas: o número de autênticos
marxistas era relativamente pequeno na Alemanha, pois a posição política da social-democracia alemã achava-se muito mais sob a influência de Lassalle que
sob a de Marx e Engels. Dele herdaram os socialistas alemães sua fé fervorosa no Estado e a maior parte de suas tendências autoritárias. De Marx tomaram
apenas o determinismo econômico, a crença no poder invencível das condições econômicas e a terminologia dos conceitos.
Lassalle não era absolutista somente por suas idéias, mas também por seu caráter. Era um desses autocratas natos, convencidos tão profundamente de
sua própria infalibilidade que qualquer objeção lhe parecia um pecado contra o "Espírito Santo". Plenamente consciente disso, fez que se enraizasse tão
profundamente, nas cabeças do pequeno número de seus adeptos fanáticos, a crença em sua "missão histórica", que estes o contemplavam com entusiasmo exaltado,
como a um novo Messias que tinha em suas mãos a salvação da humanidade. Animado por tal espírito, "O Novo Social-democrata", órgão da escola de Lassalle,
escreveu o seguinte:
"Por que somos tão entusiastas, tão enérgicos? Por que, nós, os lassaliananos, estamos possuídos de um fanatismo tão ardente? Porque a doutrina de
Lassalle é uma doutrina infalível, e porque os lassalianos, ao proclamá-la, têm de considerar a si mesmos infalíveis nesse aspecto. A doutrina de Lassalle
é a única verdadeira; é ínfalível e a fé nessa doutrina pode mover montanhas. Sem ter uma fé inabalável em sua doutrina, os primeiros cristãos não teriam
vertido o sangue por ela; sem a infalibilidade dessa religião, não teria sido conhecida como tal. E sem a fé em Lassalle o socialismo nunca logrará lançar,
entre os obreiros alemães, as raízes que um dia farão florescer a árvore da humanidade feliz"
Comparemos com essas efusões de ardente hidrofobia religiosa a repetida apelação à "necessidade do fanatismo" nos discursos de Hitler, e compreenderemos
que os dois são feitos da mesma massa. Lassalle possuía todas as qualidades do ditador, só lhe faltavam as circunstâncias das quais procede a ditadura.
Toda a sua organização tinha um caráter ditatorial apesar dos adornos democráticos. O Allgemeiner Deustscher Arbeiter-Verein (Associação Geral dos Operários
Alemães) elegeu a Lassalle como seu presidente, para cinco anos, com poder ditatorial. Desenvolveu então o chamado "princípio do caudilho", que hoje forma
a pedra angular do "Terceiro Reich", e desenvolveu-o com lógica assombrosa. Assim, em seu famoso discurso de Ronsdorf, em maio de 1864, disse:
"Ainda devo mencionar outro elemento sumamente notável de nosso êxito: é este espírito afeito à mais rigorosa unidade e disciplina que reina em nossa
associação. Também neste aspecto, e sobretudo nele, nossa associação cria uma época e aparece como um fenômeno completamente novo na História. Esta grande
associação, estendendo-se a quase todos os estados alemães, move-se e atua com uma unidade fechada de um só indivíduo. Poucas comunidades me conhecem pessoalmente,
pois não pude visitá-las, e, contudo, desde o Reno ao Mar do Norte, e desde o Elba ao Danúbio nunca me responderam um 'não'; a autoridade que me haveis
confiado descansa em vossa constante e mais alta liberdade de eleição. Onde quer que eu tenha chegado, em todas as partes, ouvi, dos operários, palavras
que se podiam resumir nesta frase: Devemos fundir todas as nossas vontades num só martelo, pôr este martelo nas mãos de um homem, em cuja inteligência,
caráter, e vontade tenhamos a devida confiança, a fim de que seja capaz de assestar certeiros golpes!"
O conceito liberal do Estado, que a este só reconhece o direito de proteger a liberdade dos cidadãos e do país contra os agressores de dentro e de
fora foi classificado por Lassalle de "idéia de candieiro". Também sobre este ponto pensava como um hegeliano. "Se a burguesia fosse conseqüente ao pronunciar
sua última palavra", dizia Lassalle, "então teria de confessar que, conforme essa sua idéia, o Estado seria completamente supérfluo, se não existissem
ladrões". Lassalle absolutamente não queria saber dessas idéias, o que o diferenciava de Marx. Para ele o Estado era apenas o "todo ético" de Hegel, "que
tem a função de conduzir o gênero humano para a liberdade".
Foi precisamente essa concepção, absolutamente falsa sob o ponto de vista histórico, que o moveu a buscar uma aliança com Bismarck. O namoro de Lassalle
com a "monarquia social", "apoiada no punho da espada" para levar a cabo a grande tarefa, "se estivesse decidida a perseguir fins verdadeiramente grandes,
nacionais e populares", foi a causa de que a imprensa do Deutsche Fortscrittspartei (Partido Alemão Progressista) lançasse contra Lassalle e seus partidários
a acusação de que serviam os interesses de Bismarck. Para essa acusação, na verdade, não se pode aduzir nenhuma prova material. A posição de Lassalle repousava
em seu modo de pensar. Não servia os interesses de Bismarck, mas acreditava poder utilizá-lo para que servisse os seus, e aí, precisamente, se encontrava
o ponto perigoso de seu jogo audaz, pois era Bismarck o que podia apoiar-se no "punho da espada" e não Lassalle. Seu biógrafo, Eduardo Bernstein, qualificou
as manifestações de Lassalle, naquela época, de "linguagem própria do cesarismo", e com razão, tanto mais que chegou ao extremo de dizer que a Constituição
prussiana vigente era "um favor outorgado pela realeza às classes burguesas". Num país como a Alemanha, semelhante concessão, feita por um chamado "democrata",
tinha de tornar-se duplamente fatal.
Lassalle era um homem de grandes dotes e, como disse ele mesmo uma vez, "guarnecido com toda a armadura intelectual de seu tempo". Mas de muitas manifestações
suas, contidas em discursos e escritos, e em algumas de suas cartas dirigidas a Sofia de Solutzew e à condessa de Hatzfeld, assim como de muitos outros
detalhes, pode verificar-se que nesse homem extraordinário, venerado por muitos operários alemães como um semideus, a ambição pessoal foi o motivo verdadeiro
de suas açõos. Por esta razão, ninguém poderia dizer aonde teria chegado Lassalle se a bala do aristocrata húngaro von Rakowitza não tivesse dado um fim
prematuro à sua vida. Essa ambição realmente malsã manifesta-se nele já na adolescência. Escreveu, por exemplo, depois de assistir a uma representação
teatral de Fiesko de Schiller, em seu diário, estas palavras significativas:
"Apesar de professar convicções revolucionárias democrático-republicanas, parece-me que, posto no lugar do conde de Lavagna, teria procedido como ele,
não me teria conformado a ser o primeiro cidadão de Gênova, e teria estendido minha mão à coroa. Disto se deduz, ao examinar o caso friamente, que sou
um egoísta. Se tivesse nascido príncipe ou monarca, de corpo e alma seria aristocrata. Mas como sou um humilde filho de burguês, serei democrata em seu
devido tempo".
Também os ídolos têm seus lados de sombra, ao examiná-los à luz do dia. E Lassalle tinha uma grande quantidade de sombras.

As teorias de Marx e Bakunine

DE índole muito diferente foi a influência que Marx exerceu sobre o movimento operário alemão, Marx não era um orador fascinante como Lassalle, que
pudesse exercer um influxo imediato sobre o auditório por meio da palavra viva. As idéias de Marx ultrapassam freqüentemente a faculdade de compreensão
até dos operários mais inteligentes, e só podiam chegar a estes por meio de explicações populares de segunda mão. Além disso, viveu no estrangeiro a maior
parte de sua vida, enquanto Lassalle atuava na Alemanha, e, portanto, podia verificar melhor as necessidades imediatas de sua propaganda. Além disso havia
nas doutrinas de ambos uma série de diferenças essenciais que encontravam sua expressão sobretudo em sua posição quanto ao Estado. Também Marx tomava como
ponto de partida determinados conceitos absolutos, embora condicionasse o desenvolvimento da vida social a necessidades imperiosas, fundadas nas condições
de produção que prevalecem numa determinada época. "O modo de produção da vida material condiciona o processo vital, social, político e espiritual, em
geral", como se expressa em sua famosa introdução à Crítica da Economia Política.
Marx estava firmemente convencido de ter descoberto as leis do movimento da sociedade burguesa. Portanto, empenhava-se em fundamentar as pretensas
leis da física social como "puras" e "absolutas". No primeiro tomo de O Capital, qualifica a chamada acumulação de capital de lei absoluta e geral e segundo
a mesma "a riqueza de uma nação está em proporção com a sua população; e a miséria, em proporção com a sua riqueza". Como discípulo de Hegel, representou
esse processo de desenvolvimento como uma trilogia do acontecer, produzida, com necessidade rigorosa, automaticamente, pelas condições econômicas de vida.
Assim lemos no primeiro tomo de O Capital:
"O modo de produção capitalista tende à acumulação do capital. Daí constituir a propriedade privada capitalista a primeira negação da propriedade privada
individual, baseada no próprio trabalho. Mas, a produção capitalista engendra, com a necessidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação
da negação. Esta não restabelece a propriedade privada, mas a propriedade individual a partir das conquistas da era capitalista: sobre a base da cooperação
e a propriedade comum do solo e dos meios de produção, originados pelo próprio trabalho".
Essa concepção mecanicista e fatalista dos fatos históricos, que se apresenta aqui como verdade absoluta, produziu, ao crescer a influência do movimento
alemão sobre as tendências socialistas de todos os países, um efeito paralisador quanto à formação da idéia socialista, embora Marx esperasse que, com
o desenvolvimento progressivo dos fatos econômicos, se chegaria à superação de todos os poderes absolutistas do Estado. Precisamente neste aspecto, distingue-se
essencialmente de Lassalle, o qual, durante toda a sua vida, permaneceu hegeliano quanto à concepção do Estado. No Manifesto Comunista lê-se:
"No decorrer do tempo, quando tenham desaparecido as diferenças de classe e esteja concentrada toda a produção em mãos dos indivíduos associados, o
poder público perderá seu caráter político. A força política é, na verdade, a força organizada de uma classe para opressão de outra classe. Se o proletariado,
em sua luta contra a burguesia, se une necessariamente formando uma classe, através da revolução, converte-se numa classe dominante, e põe fim pela força
às antigas condições de produção, suprime conjuntamente com estas condições de produção a existência da contradição de classes, as próprias classes, e,
com elas, seu próprio domínio como classe... Em lugar da velha sociedade burguesa com suas classes e contradições de classes, aparece uma associação, em
que o livre desenvolvimento de cada uma está condicionado pelo livre desenvolvimento de todos".
Até no panfleto, cheio de ódio, L'Alliance de la Démocratie socialiste et l'Association internationale de Travailleurs, redatado por Marx, junto com
Engels e Lafarge contra Bakunine e a ala libertária da Internacional, repetem-se outra vez as palavras contidas já naquela famosa Circular do Conselho
Geral, Les pretendues scissions dans l'Internationale:
"Todos os socialistas entendem por anarquia isto: uma vez alcançada a meta do movimento proletário, quer dizer, a supressão das classes, desaparecerá
o poder do Estado, que serve para manter a grande maioria produtora sob o jugo de uma minoria exploradora e as funções de governo se converterão em simples
funções administrativas".
A meta política que Marx tinha em vista era, pois, indubitavelmente a eliminação do Estado na vida da sociedade. Neste aspecto, estava totalmente sob
a influência das idéias de Proudhon. Só na forma de alcançar essa meta se distinguia essencialmente de Bakunine e das federações libertárias dentro da
Internacional. Bakunine e seus amigos defendiam o ponto de vista de que uma transformação social tinha de suprimir o aparelho político do Estado junto
com as instituições de exploração econômica, a fim de tornar possível um livre desenvolvimento da nova vida social. Marx, pelo contrário, queria utilizar
o Estado, sob a forma de "ditadura do proletariado", como meio de levar a cabo praticamente o socialismo e suprimir as contradições de classes dentro da
sociedade. Só depois de desaparecer as classes, teria de ser destruído o aparelho político do Estado, para dar lugar à mera administração. A oposição entre
ambas as opiniões e a tentativa de Marx e seus partidários, no Conselho Geral, de impor uma forma de organização centralizada às federações da Internacional,
e normas fixadas à sua política, foram as verdadeiras causas que mais tarde originaram a cisão e decomposição interna da grande associação operária.
A História contemporânea decidiu quem teve razão nessa controvérsia. O experimento do bolchevismo na Rússia demonstrou claramente que por meio da ditadura
pode chegar-se ao capitalismo de Estado, nunca ao socialismo. Também uma sociedade sem propriedade privada pode escravizar um povo. A ditadura pode suprimir
uma velha classe, mas sempre se verá obrigada a apoiar uma casta governante formada por seus próprios partidários, outorgando-lhes previlégios que não
os possui o povo. A ditadura como "movimento de libertação" é impulsionada pela lógica das circunstâncias a ser um instrumento de opressão, substituindo
qualquer forma antiga de escravidão por outra nova. Também a chamada "ditadura do proletariado" não é, na realidade, senão uma ditadura sobre o proletariado,
até quando é imaginada como provisória, como período de transição. Porque "todo governo provisório mostra a tendência a converter-se em permanente", como
predisse Proudhon, com sua profunda compreensão dos fenômenos. O fato de este conhecimento ter sido adquirido à custa de tanto sangue, tantas lágrimas
e tantas esperanças perdidas, constitui, sem dúvida, um dos aspectos mais trágicos da História.
Em 20 de julho de 1870, Marx escreveu a Engels estas palavras, tão expressivas de seu caráter e de sua personalidade:
"Os franceses necessitam de açoites. Se ganham os prussianos, também ganhará a centralização do pior Estado, útil para a centralização da classe operária
alemã. O predomínio alemão mudará, além disso, o centro de gravidade do movimento operário europeu, da França para a Alemanha, e basta apenas comparar
o movimento, de 1866 até hoje, em ambos os países, para se verificar que a classe operária alemã é superior, em teoria e organização, à francesa. Seu predomínio,
no teatro mundial, sobre a francesa, significaria, ao mesmo tempo, o predomínio de nossa teoria sobre a de Proudhon, etc."
Marx tinha razão. A vitória da Alemanha sobre a França significou, com efeito, um ponto crucial na história da Europa e do movimento socialista internacional.
O socialismo libertário de Proudhon foi postergado pela nova situação, deixando o campo livre para as concepções de Marx e de Lassalle, autoritárias até
a medula. A faculdade de desenvolvimento livre, criador e ilimitado, do socialismo, foi substituída, nos subseqüentes cinqüenta anos por um dogmatismo
rígido, que se apresentou ante o mundo com a pretensão de ser uma ciência, mas que, na realidade, só repousa sobre uma amálgama de argúcias teológicas
e de errôneas conclusões fatalistas que vieram a sepultar toda a idéia autenticamente socialista. Essa mania de superioridade tomava, às vezes, formas
verdadeiramente grotescas. Os alemães consideravam-se como guias do "socialismo científico" e como "mestres do movimento operário internacional", esquecendo
completamente que a Alemanha de Bismarck era um Estado militar e policíaco semidespótico, que ainda teria de conquistar o que outros países da Europa Ocidental
há muito tempo já tinham obtido; conquistas com as quais nem sequer se ousava sonhar no país das paradas, da arbitrariedade policial e da "obediência de
cadáver".
O fato de um proletariado que não tinha atrás de si nem as mínimas tradições revolucionárias, que conhecia a idéia socialista apenas na forma do fatalismo
econômico de Marx e através da fé cega no Estado de Lassalle, tenha podido converter-se em guia do movimento socialista internacional, foi tão nefasto
para o socialismo como o foi a política de Bismarck para o destino da Europa. Meu inesquecível amigo, o poeta Erich Mühsam, assassinado pelos nazis no
campo de Oranienburg, criou para essa tendência singular a palavra "bismarxismo", a melhor e mais acertada definição que se poderia ter encontrado.

O caminho das ditaduras

A grande transformação política, que se realizou depois da guerra franco-alemã de 1870-71, tinha de produzir efeitos semelhantes também sobre o socialismo.
Em lugar de criar grupos possuídos pelos ideais socialistas e de levantar organizações de combate no campo da economia, nas quais as frações progressivas
da Primeira Internacional viam as células da sociedade futura e os órgãos naturais para a transformação da economia num sentido socialista, os modernos
partidos operários, trasladaram o centro de gravidade do movimento da idéia da conquista do solo e das empresas industriais para a conquista do poder político.
Assim se foi desenvolvendo no curso dos anos uma ideologia completamente nova. O socialismo foi perdendo cada vez mais o caráter de um novo ideal de cultura,
cuja missão deveria ter sido a de preparar os povos espiritualmente para a desaparição da civilização capitalista, e capacitá-los praticamente, não detendo-se,
portanto, ante os estreitos limites do Estado nacional.
Na cabeça dos líderes dessa nova fase do movimento, se misturavam os interesses do Estado nacional com os do partido, até que, afinal, já não foram
capazes de guardar certo limite, acostumando-se a considerar o socialismo através dos chamados "interesses nacionais". Por isso teve de suceder fatalmente
que o moderno movimento operário se incorporasse sucessivamente à estrutura do Estado, favorecendo, consciente e inconscientemente, as tendências absolutistas
dos governos. Seria errôneo atribuir esta estranha conduta à traição cometida pelos líderes, como muitas vezes se disse. Na verdade trata-se apenas de
uma adaptação paulatina do mundo de idéias da velha sociedade, condicionada pela atividade prática dos partidos operários de hoje e que, fatalmente, tinha
de ter repercussões sobre a atitude intelectual de seus representantes políticos. Os mesmos partidos que foram educados para conquistar, sob a bandeira
do socialismo, o poder político, viam-se, pela lógica implacável das circunstâncias, encurralados cada vez mais até tomar uma posição que os forçava a
sacrificar um após outro, todos seus princípios socialistas à política nacional do Estado. Por meio de uma política nacional queriam conquistar o socialismo,
mas o que realmente conseguiram foi que a política nacional conquistasse seu socialismo.
Como fascinados contemplavam os grande êxitos eleitorais da social-democracia alemã e admiravam o poderoso aparelhamento de partido que tinham construído,
mas se esqueciam que, apesar daqueles êxitos, nada se tinha mudado na realidade alemã. A centralização de ferro do partido e a disciplina de quartel, copiada,
tomando como modelo o Estado prussiano, afogavam toda iniciativa viva. A organização que só tinha de ser um meio para alcançar um fim, converteu-se em
fim, matando o espírito que teria podido dar-lhe um conteúdo vivo. Citemos um exemplo para demonstrar que o que dizemos não é de forma alguma um exagero:
Quando, depois da queda de Bismarck, o novo chanceler do Reich, von Caprivi, nomeado pelo Imperador, elogiou abertamente numa sessão do Reichstag, o zelo
dos soldados social-democratas no exército alemão, contestou-lhe o líder mais prestigioso do partido, Augusto Bebel:
"Isso não me estranha nada, e só demonstra que os senhores da direita e do governo têm uma opinião completamente falsa da capacidade dos social-democratas.
Creio até que a boa disposição com que precisamente os membros do meu partido se submeteram à disciplina regulamentar, é realmente conseqüência da disciplina
que os domina. A social-democracia constitui, em certo modo, uma escola primária para o militarismo.".
Ante atitude semelhante, podeis acaso estranhar que a Revolução Alemã de 1918 falhasse tão lamentavelmente? O Varwaerts (órgão social-democrata), ainda
nas vésperas do 9 de novembro, recordou a seus leitores que o povo alemão ainda não estava maduro para a República. Ninguém objeta à social-democracia
alemã o fato de não intentar introduzir depois da guerra o poder político ao qual durante tanto tempo tinha aspirado, implantando uma República solialista:
na realidade, o povo alemão, em virtude da educação recebida não estava capacitado para tal. Mas, o primeiro governo puramente socialista que ocupou o
poder depois da guerra, poderia ter feito uma coisa: acabar com o poder nefasto do junkerismo prussiano na Alemanha, atacando a grande propriedade da terra,
na qual descansava o poder político dos Junkers. Os revolucionários burgueses da Revolução francesa, que não tinham idéias socialistas, compreenderam perfeitamente
que só podiam libertar a França do predomínio político da aristocracia e do clero se expropriassem os latifundiários, despojando-os assim do verdadeiro
poder e de sua influência política. Mas os socialistas alemães não tomaram tal medida, a única pela qual a República teria podido atrair os pequenos camponeses,
os quais, mais tarde, se converteram em seus mais encarniçados inimigos. O resultado foi que, depois, dois Junkers prussianos, o filho de Hindemburgo e
Franz von Papen, fizeram o jogo de Hitler, fazendo o poder passar para as suas mãos.
O que mostra a incapacidade da social-democracia alemã é que nem sequer se pensou em tocar na fortuna dos príncipes alemães. Enquanto as massas, meio
mortas de fome, iam caindo cada vez mais na miséria, o Governo republicano seguia pagando às famílias do ex-Kaiser somas fabulosas, como "indenizações",
e tinha tribunais servís que cuidavam zelosamente de que nem um centavo se deixasse de pagar àqueles parasitas. Só os Hohenzollern reclamavam uma indenização
de 200 milhões de marcos ouro. As exigências totais dos príncipes alemães ultrapassavam em quatro vezes o empréstimo Dawes. Se os líderes do movimento
operário alemão tivessem procedido de maneira mais radical com a fortuna e as prerrogativas dos Junkers e príncipes, medidas essas radicais apenas na metade
em comparação às usadas pelos nazistas, quando roubaram aos operários as caixas fortes dos sindicatos e todas as suas propriedades que somavam um valor
de milhões, a Alemanha teria poupado a vergonha do Terceiro Reich e teria poupado ao mundo a catástrofe mais sangrenta de todos os tempos. Por outra parte,
o Partido Comunista alemão só se alimentou das faltas e omissões da social-democracia, sem que desenvolvesse por si mesmo uma idéia criadora. Não foi nunca
outra coisa senão o órgão submisso da política exterior russa, aceitando sem pestanejar qualquer ordem de Moscou. Assim insuflava o partido a fé na necessidade
inevitável da ditadura naquela parte do proletariado socialista que já tinham perdido a confiança na social-democracia. Sobretudo entre a juventude, o
partido comunista desenvolveu um fanatismo sem precedentes, que a fazia surda e cega a qualquer apreciação sensata da situação. Seu ruidoso protesto contra
as medidas reacionárias do governo levava, desde o princípio, a marca da simulação e da hipocrisia, já que não podia honradamente defender a liberdade,
quando aspirava a implantar a ditadura, que é a negação da mesma. Todo o fim encarna-se em seus meios. Ao despotismo do método sempre corresponde o despotismo
da idéia. A ditadura à qual aspiravam os comunistas alemães há tantos anos, chegou efetivamente, mas proveio do lado oposto, triturando-os sob sua engrenagem.
Não cabe dúvida para todo observador sincero da situação atual e das causas que a originaram, que o manobrar com conceitos absolutistas, no campo socialista,
não só quebrantou a força de resistência do movimento socialista em muitos países, e sobretudo na Alemanha, como favoreceu, espiritualmente, a reação fascista.
Porque o socialismo será livre ou não existirá.

Vida de Bakunine

MIGUEL ALEXANDROVICH BAKUNINE nasceu em 20 de maio de 1814 em Prymukhino, pequena aldeia do governo de Tver, Rússia. Sua família era uma das mais antigas
e aristocráticas desse país e segundo parece sua posição não era má. O pai de Bakunine humanitário e liberal, havia participado no movimento dos decembristas;
mas na velhice se mostrou muito pessimista em relação às tendências liberais por haver perdido a fé em sua realização.
A mãe de Bakunine era uma verdadeira aristocrática: fria e soberba com todo o mundo, até com sua própria família. Sobre a infância de Bakunine pouco
se sabe: mas consta que recebeu uma educação cuidadosa.
Ao cumprir vinte anos entrou para a Escola de Artilharia de Petrogrado, onde aprendeu com muito êxito a ciência da guerra. Aos vinte e um anos de idade
foi nomeado oficial em um regimento de infantaria próximo à fronteira polaca. Mas a monótona vida de soldado não oferecia interesse para o jovem Bakunine.
Passava os dias recostado num sofá entregue a meditações. Em 1834 abandonou finalmente o exército, renunciando à carreira militar.
A filosofia alemã exercia nesta ocasião uma influência muito forte na juventude russa e também Bakunine se interessou muito pelos conceitos abstratos
e as doutrinas de Kant, Fichte, Schlegel, etc. Graças a viagens realizadas a Moscou e Petrogrado entrou em contacto com alguns círculos estudantis, nos
quais se reuniam os jovens russos para estudar os diversos sistemas dos filósofos alemães e franceses. Em 1835 travou conhecimento com Stankevich, que
era então o chefe espiritual de um círculo importante. Ambos os jovens uniram-se em estreita amizade e Bakunine se fez colaborador ativo de seu círculo.
Por influência deste, conheceu o filósofo Gottlieb Fichte, cujas obras estudou com grande entusiasmo.
N. Bielinsky, que adquiriu mais tarde grande renome na literatura russa, editava naquela época um periódico de filosofia, "O Telescópio". Nele publicou
Bakunine seu primeiro trabalho literário, uma tradução para o russo das "Conferências sobre o destino do sábio", de Fichte.
Quando Stankevich abandonou a Rússia, Bakunine converteu-se no inspirador intelectual do círculo. Em 1838 conheceu pela primeira vez as teorias do
filósofo alemão Hegel, que exercia, naquela época, um influxo magnético sobre todos os espíritos. Era tão poderosa essa influência que causou uma revolução
nas opiniões de Bakunine e seu amigos. A conhecida proposição de Hegel: "Todo o racional é real e todo o real é racional" provocou profundas diferenças
entre as pessoas inclinadas aos estudos filosóficos, divergências que deram origem a parcialidades extremas.
Bakunine, Bielinsky e outros jovens se tornaram hegelianos ortodoxos e não se detiveram ante ás conseqüências reacionárias de Hegel.
"O absolutismo russo existe; portanto, está justificado e é natural".
Esta afirmação que apresentara Bielinsky era o ponto de vista do círculo estudantil. Por ele então Bakunine publicou vários artigos e traduções no
"Moscovski Nabludatel" de um caráter francamente reacionário.
Mas o temperamento atormentado do jovem Bakunine sentiu logo a estreiteza e a unilateralidade do hegelianismo reacionário; compreendeu a pouco e pouco
que a vida real era mais do que um jogo vão de palavras.
Seu espírito são lhe deu a entender que a força das idéias de Hegel não residia no conteúdo espiritual e moral de sua filosofia, mas no método crítico
que aplicava.
Por intermédio do conhecido escritor russo Ogareff, que editou mais tarde, junto com Herzen, "O Sino" ("Kolokol"), Bakunine chegou a conhecer o grande
pensador e literato russo Alexandre Herzen. Este era um adversário decidido das concepções conservadoras de Hegel, o que deu lugar a um forte conflito
entre ele e os membros do círculo de Bakunine. Esta luta foi provavelmente a primeira razão que induziu Bakunine a desistir de suas teorias reacionárias
unilaterais e de suas especulações conservadoras. A vida monótona, a falta de atividade e de movimento se lhe tornou insuportável e resolveu ir para Berlim
a fim de estudar filosofia.
Em Berlim relacionou-se com a tendência neo-hegeliana que compreendia todos os elementos revolucionários da Alemanha. A vida se lhe apareceu envolta
em nova luz; abriu-se ante ele um amplo terreno para suas atividades e se entregou com ardorosa paixão à corrente ideológica progressista. Conheceu também
em Berlim a Turgueniev, com quem assistia aos cursos do professor Werder sobre a filosofia hegeliana. Os conceitos reacionários e metafísicos de Schelling
ofereceram ao jovem Bakunine uma ocasião para o ataque. Publicou em 1842 um folheto, "Schelling e a revelação crítica da última tentativa reacionária de
combater a filosofia livre". Nesse ensaio defende Bakunine as idéias revolucionárias de Luis Feuerbach, pai da filosofia materialista alemã; este trabalho
constitui a primeira manifestação do espírito rebelde de Bakunine. Em termos eloqüentes preconiza a luta pela liberdade, e mesmo quando essa luta era para
ele tão-somente filosófica se reconhece nela, contudo, o grande processo evolutivo que se havia realizado em suas idéias. Dali Bakunine foi para Dresden;
esta cidade era então o centro intelectual dos neo-hegelianos revolucionários. Arnold Ruge, o representante mais significativo dessa tendência e editor
dos famosos "Anais Alemães", acolheu o jovem Bakunine com a maior satisfação e amizade. O círculo avançado de Ruge e seus amigos lhe produziu muito boa
impressão e graças às freqüentes discussões com esses homens cultíssimos, suas convicções se tornaram mais radicais, mais revolucionárias. Em 1842 publicou
nos "Anais Alemães" um artigo que chamou a atenção. Intitulava-se: "A reação na Alemanha, fragmento de um francês" e estava assinado com o pseudônimo de
Jules Elyzard. Nesse trabalho se descobre já o verdadeiro Bakunine, o fundador da filosofia da destruição, o inimigo mortal de todo compromisso e de todo
recurso diplomático.
Defende a Revolução como princípio do progresso eterno e combate veementemente a chamada filosofia positiva. A Revolução é o espírito eterno da negação,
a força viva da história humana. Todo reformador é um reacionário, pois obstaculiza a grande finalidade do movimento novo que tende à destruição completa
do atual mundo político e social. O notável artigo terminava com estas palavras características:
"O ar é pesado e todos nós sentimos a aproximação da grande tormenta; façamos, pois, um chamado a nossos irmãos ofuscados: 'Arrependei-vos, arrependei-vos,
porque chegou a época do Messias!'
Aos positivistas dizemos:
"Abri vossos olhos espirituais. Deixai que os mortos enterrem os mortos; compreendei de uma vez que o espírito, o espírito eternamente jovem e eternamente
renovado, não vive nas vetustas ruínas desmoronadas! Confiemos no espírito humano que cria e destrói, porque ele é a fonte eterna e fecunda da vida. O
anelo de destruição é um desejo de criação!'
Poucos meses depois da publicação deste artigo, Bakunine abandonou Dresden, pois sua situação se tornou insegura. O governo russo chegou a saber que
ele era o autor do trabalho "A reação na Alemanha" e, segundo parece, pediu que fosse deportado para Rússia. Bakunine foi para Suíça e dentro de pouco
tempo se encontrava novamente atuando entre os elementos revolucionários que devido às mesmas causas se haviam reunido em Zurich.
Na Suíça, Bakunine ocupou-se pela primeira vez do problema econômico. As obras dos socialistas franceses exerceram uma profunda influência em seu espírito
rebelde e, como sempre deduzia as conseqüências mais extremas de uma idéia, converteu-se logo em um dos partidários mais avançados do socialismo. Naquela
época o comunista alemão Guilherme Weitling organizava associações operárias na Suíça. O centro dessas uniões era Zurich, onde Weitling pregava a edição
de um novo periódico de propaganda. Mas o governo suíço prendeu-o inesperadamente, apoderando-se de seus papéis e correspondência. Entre as cartas havia
também algumas que comprometiam a Bakunine e revelavam suas relações secretas com os comunistas suíços. Por isso Bakunine teve de partir para Berna para
evitar que o detivessem. A polícia suíça entregou ao cônsul russo em Zurich os documentos comprometedores e este exigiu, em nome de seu governo, a deportação
de Bakunine. Este, porém, era mais ágil que a polícia e abandonou a "livre" Suíça, dirigindo-se para Paris.
Ali travou conhecimento com os elementos progressistas e revolucionários da capital francesa, sendo seus amigos mais íntimos o poeta revolucionário
alemão George Herweg, Proudhon e muitos outros. O socialismo de Proudhon produziu-lhe uma forte impressão, pois estava baseado sobre a liberdade do indivíduo.
O socialismo ou o comunismo das outras tendências, devido a seu caráter autoritário e ditatorial, jamais gozaram da simpatia de Bakunine. Em Paris se encontrou
também com Karl Marx, Frederico Engels e outros conhecidos socialistas alemães. Escreveu também alguns breves artigos no periódico alemão "Vorwaerts",
que aparecia então em Paris. Mas as discórdias pessoais que dividiam os emigrantes alemães causaram má impressão em Bakunine, razão por que freqüentava
mais os círculos russos, polacos e franceses.
Paris também não foi lugar seguro para ele. Em 29 de novembro de 1847 pronunciou um discurso numa grande assembléia organizada em comemoração à revolução
polaca de 1830. Este discurso foi a primeira declaração de guerra do valente revolucionário ao czarismo russo. Em termos fogosos censurou as infâmias do
despotismo russo, ao qual proclamou publicamente como inimigo da liberdade da Europa. Esse discurso teve uma eficácia tremenda. Os revolucionários saudaram-no
com um entusiasmo delirante; mas para os tiranos ressoou como uma sentença de morte. O governo russo pediu à França que expulsasse Bakunine. O jovem campeão
da liberdade viu-se obrigado a deixar a bela Paris e seguiu para a Bélgica.
Não pensava permanecer muito tempo ali porque sabia perfeitamente que não oferecia segurança para a sua pessoa; seu projeto consistia em trasladar-se
para a Inglaterra, única nação da Europa sobre a qual o czarismo russo não exercia nenhuma influência. Mas antes de terminar os preparativos para sair
da Bélgica, estalou em Paris a revolução de Fevereiro de 1848. Esta notícia infundiu a Bakunine novas forças. A revolução que aguardava por tanto tempo
havia chegado finalmente. E o jovem rebelde saudou-a como a aurora dê uma nova época. Voltou imediatamente para Paris e entregou-se de corpo e alma às
ondas tempestuosas da revolução. Dormia nos quartéis e comia junto com os soldados; pregava-lhes sua teoria da destruição geral, o socialismo e a abolição
das formas de governo; exortava-os a sustentar a revolução até que fossem derrubados todos os fundamentos da velha sociedade. Bakunine achava-se em todas
as partes: nas barricadas, nos quartéis, nas praças públicas; numa palavra, suas forças se decuplicaram. E o grande revolucionário não era apenas o pavor
dos reacionários; até os republicanos tremiam ante ele mercê de sua influência poderosa. O oficial de barricadas Caussidière, republicano, dizia falando
de Bakunine:
"Que homem! Que homem extraordinário! O primeiro dia da revolução é uma verdadeira jóia, mas no dia seguinte deve ser fuzilado".
Flocon, ministro durante a revolução de Fevereiro, disse certa vez estas palavras características:
"Se houvesse na França trezentos homens como Miguel Bakunine, todo governo seria impossível".
Logo viu Bakunine que a revolução francesa de 1848 não podia oferecer o resultado desejado por ele e seus amigos; ao mesmo tempo compreendeu que não
convinha também afastar-se, senão que era preciso aproveitar as circunstâncias e preparar revoluções em toda a Europa.
Em Abril de 1848 abandonou Paris; o ministro Flocon entregou-lhe mil francos e um passaporte francês para que se dirigisse à Alemanha e provocasse
ali uma revolução. Na realidade aquele era apenas um recurso para desfazer-se do temível revolucionário. Bakunine compreendeu também que seu lugar já não
era Paris e desapareceu repentinamente. É provável que durante certo tempo tenha estado na Rússia e nos outros países eslavos, com o objetivo de preparar
um levante revolucionário. A esse respeito ao menos, diz Arnold Ruge em suas Memórias, que "tinha ido à Rússia para fazer ali obra de agitação". Naquela
época então mantinha Bakunine estreitas vinculações com todos os revolucionários da Europa, especialmente com os dos países eslavos.
Em 1.° de Julho de 1848, Bakunine assistia ao congresso eslavo internacional celebrado em Praga, porque esperava encontrar ali campo propício para
agitação em prol de seus planos revolucionários e da internacionalização da revolução. O congresso eslavo propunha-se unir todos os povos dessa raça para
defender em comum seus interesses contra as outras nações. Parece que a maior parte dos delegados não professavam idéias muito progressistas. As atas de
dito congresso não foram nunca publicadas e por isso ignoramos se Bakunine nele encontrou ou não a ocasião que procurava.
Mas o congresso não transcorreu tão pacificamente como supunham alguns. O governo austríaco, com efeito, temendo as demonstrações revolucionárias dos
tchecos, proibiu toda manifestação pública que tendesse a demonstrar sua simpatia pelo congresso. Esta decisão causou verdadeiro desgosto entre a população
de Praga e todas as ruas se encheram de gente; mas os numerosos soldados fizeram sua aparição repentinamente e impediram a tempo toda tentativa séria da
multidão.
Defronte ao hotel "A Estrela Azul", onde se alojava Bakunine, congregou-se uma imensa multidão. Os soldados trataram da dispersá-la, mas não tiveram
êxito. Vários disparos foram feitos sobre os soldados das janelas do hotel. Era o sinal para uma luta sangrenta entre os militares e o povo. Este levantou
barricadas e Bakunine tomou uma participação ativíssima na luta. Seu valor e sangue frio mereceram admiração de todos. Refere o escritor tcheco Iretchek
que Bakunine assumiu a direção militar da revolta. No terceiro dia da luta, o general Windischgreutz, comandante militar, abandonou a cidade, retirando-se
para as fortalezas situadas nos arredores de Praga. Dali mandou bombardear a cidade, que logo foi incendiada. Depois da repressão do levantamento de Praga,
Bakunine fugiu da Áustria, ocultando-se em Berlim, Kothen e outras cidades alemãs.
Em Kothen publicou Bakunine seu conhecido "Apelo aos povos eslavos", no qual os convidava a prepararem-se para a próxima revolução geral da Europa.
Sentia a proximidade de uma nova revolução e aplicava seus esforços no sentido de unificar todos os elementos revolucionários num poder sólido contra a
reação. Era uma época tempestuosa de luta, de agitação, de vida; e Bakunine vivia e lutava mais que todos os outros. Numa carta a seu querido amigo George
Herweg expressou os sentimentos que o animavam então:
"Eu não creio numa constituição nem em lei alguma; nem a melhor constituição poderia satisfazer-me. Precisamos agora de outra coisa: precisamos de
tempestade e vida, de um novo mundo livre e por conseguinte livre de leis".
Estas palavras são características, porque elas nos pintam o verdadeiro Bakunine, o homem de ação, o rebelde entusiasta, o apóstolo da revolução eterna.
Mantinha Bakunine naquela época contacto secreto com todo o mundo revolucionário; e segundo parece trabalhava nesses momentos por um levantamento dos
tchecos e polacos.
Em Maio de 1849 voltou a encontrar uma ocasião para manifestar publicamente seu valor e sua energia incomparáveis. Em diversos pontos da Alemanha haviam
estalado revoluções, como em Baden e Dresden. Bakunine encontrava-se então nesta cidade e preparava-se para fazer uma viagem a Boêmia quando estalou a
revolução de Maio em Dresden. Como é natural, desistiu de sua projetada viagem e colocou-se nas primeiras filas do movimento. Fez-se membro do comitê revolucionário
e durante os três dias que durou a revolução foi o homem indispensável da capital saxônia. Um dos seus colaboradores foi Ricardo Wagner. Amigos e inimigos
admiravam a energia gigantesca de Bakunine e os reacionários o temiam como o diabo em pessoa e não se cansavam de falar de seus atos terroristas. Um escritor
reacionário dizia referindo-se a ele:
"Seu princípio era o fogo e até o governo revolucionário tremia ante sua energia selvagem. Quanto mais próximo se achava o momento da decisão, Bakunine
tornava-se mais extremista. A cidade inteira tremia ante esse homem".
As resoluções do chamado governo revolucionário não exerciam influência nenhuma sobre Bakunine;, procedia de acordo com as circunstâncias, sem ater-se
à vã fraseologia dos políticos. O seguinte episódio demonstra quão pouco estimava aos representantes, do novo governo: Bakunine tinha introduzido grandes
caixões de material esplosivo nos sótãos do palácio municipal de Dresden e em outros edifícios públicos. O conselheiro Pffafenhauer, muito covarde, correu
à procura de Bakunine para fazer-lhe saber a desgraça que poderia sobrevir se explodisse a pólvora. Bakunine gritou: "Quem se preocupa cem as coisas de
vocês? Que voem pelos ares!" E tendo o bom homem insistido, pô-lo para fora de casa.
No dia 9 de Maio terminou a luta desesperada em Dresden; os soldados prussianos saíram vitoriosos. Bakunine retirou-se para Chemnitz a fim de organizar
ali também um levante. Mas foi preso na noite de 9 de Maio, quando ainda estava na cama, graças à traição dos vizinhos. Foi entregue aos soldados prussianos;
deste modo o herói revolucionário caiu nas mãos sangrentas da reação, da qual levou doze anos para libertar-se.
Quando Bakunine foi preso, o governo russo anunciava que recompensaria com dez mil rublos a quem o detivesse; e a cidade de Chemnitz, que tinha detido
o grande rebelde, manteve por algum tempo as gestões correspondentes para receber o dinheiro da traição. Mas não se sabe se a Rússia entregou o dinheiro.
Da prisão de Dresden, Bakunine foi transferido para a de Koenigstein, onde aguardou com soberba calma e sangue frio a sorte que lhe ia deparar o futuro.
Sua situação era pior que a dos outros prisioneiros, pois tanto de dia como de noite estava carregado de pesadas cadeias.
No dia 14 de Janeiro de 1850 foi condenado à morte. Digno e valoroso, escutou, sem demonstrar a menor emoção, sua sentença. A única observação que
fez foi a seguinte: "Na história o único que decide é o êxito. Se eu tivesse, conseguido realizar meus planos me teriam considerado um grande homem; vencido,
condenam-me à morte". A atitude digníssima de Bakunine ante o conselho de guerra produziu uma profunda impressão e muitos jornais publicaram seu retrato
acompanhado de comentários favoráveis. Foi proposto que se levasse ao rei de Saxônia um pedido de indulto, mas Bakunine recusou tal proposta declarando
que preferia a morte a rebaixar-se. Mas, pouco tempo antes de ser executada a sentença, o governo austríaco pediu que o célebre revolucionário lhe fosse
entregue devido à participação que teve na revolução de Praga em 1848. Carregado de pesadas cadeias, Bakunine foi conduzido à fronteira austríaca. Acreditava
o governo da Áustria que por intermédio de Bakunine saberia os segredos do movimento revolucionário dos países eslavos; mas suas esperanças não se realizaram:
Bakunine negou-se a fazer declarações. Em 19 de maio de 1851 condenaram-no pela segunda vez à pena capital por ter atuado na revolução de Praga. Durante
seis meses permaneceu na fortaleza de Almitz, encerrado numa cela escura, encadeado à parede à espera da morte. Mas graças a uma circunstância realmente
extraordinária salvou-se de novo.
Com efeito o governo russo havia pedido sua extradição e algumas semanas mais tarde o prisioneiro foi levado para a Rússia. Depois de uma longa viagem
chegou a Petrogrado onde o encerraram por muitos anos na fortaleza de Pedro e Paulo. A prisão na Rússia foi para Bakunine o período mais duro de sua vida,
pois a solidão e a tristeza eram para ele piores que a morte. Nicolau I exigiu dele certas declarações a respeito do movimento eslavo, ao qual contestou
Bakunine com sua célebre carta "Ao czar russo". Em termos enérgicos defendeu ali suas convicções revolucionárias, negando-se a denunciar nomes. As dignas
palavras do rebelde prisioneiro causaram profunda impressão ao czar, que, o deixou em paz.
Os parentes de Bakunine trataram várias vezes de conseguir do czar o indulto; mas Nicolau declarou francamente que a Rússia não era suficientemente
grande para que homens como Bakunine pudessem existir simultaneamente. Repetidas vezes Bakunine tentou suicidar-se, mas não pôde realizar seu desejo devido
à guarda rigorosa que o rodeava. Acima de tudo o torturava a idéia de que a solidão o levaria à loucura ou diminuiria sua força e suas energias. Com o
propósito de fortificar seu espírito, Bakunine dramatizou a lenda de Prometeu, à qual sua fantasia animou de entusiasmo; na solidão de sua cela silenciosa
sonhava com a destruição do velho mundo e assim como Prometeu trouxe a luz para a humanidade, Bakunine aguardava o dia da libertação para poder levar o
facho da revolução pelo mundo escravizado.
Em 1854 Bakunine foi transferido a Schlusselburgo, onde ficou até 1857. Este período foi o mais terrível de suas prisões, porque além do seu estado
moral, seu organismo se ressentia de enfermidades penosas. Ao morrer Nicolau I, a mãe de Bakunine fez uma nova tentativa ante Alexandre II para obter o
indulto; mas o novo czar declarou que, enquanto ele vivesse, Bakunine não teria liberdade. Alguns meses mais tarde era deportado para a Sibéria.
Ali sua estadia foi mais suportável que nos cárceres de Petrogrado. Graças à sua poderosa influência pessoal conquistou certos privilégios de que não
gozavam os outros prisioneiros. Sua atuação entre os decembristas presos na Sibéria não é para ser descrita aqui. Em Março de 1859, Bakunine foi transferido
ao oriente da Sibéria. Tinha preparado durante muito tempo essa transferência, pois dali ser-lhe-ia mais fácil fugir que dos outros lugares. Finalmente,
em 1861, tendo-se ausentado o governador da Sibéria oriental, aproveitou-se dessa ocasião para fugir.
O mais notável na fuga de Bakunine é o fato de ter-se valido de um vapor do governo russo para realizar seu plano. As coisas ocorreram da seguinte
forma: tinha resolvido Bakunine descer o rio Amur até o Oceano Pacífico, onde pensava encontrar um vapor americano que o levaria ao Japão. Ao chegar ao
Amur, encontrou-se com um navio de bandeira imperial russa. Decidiu-se imediatamente. Bakunine aproximou-se de um bote do navio e apresentou-se ao capitão
como caixeiro-viajante de uma importante firma da Rússia. O capitão, que não conhecia Bakunine, sentiu profunda simpatia pelo comerciante desconhecido,
que mostrou ser um interessante e amável homem mundano. Ao manifestar Bakunine seus desejos de acompanhá-lo, o outro aceitou. Depois de algumas horas de
viagem, Bakunine já conhecia todos os segredos do capitão, o objetivo de sua viagem, etc. Chegou a saber que o capitão hospitaleiro ia receber o governador
da Sibéria oriental, que vinha ao seu encontro num navio de guerra.
A situação do fugitivo era muito crítica, pois o governador o conhecia e se se encontrasse com ele todos os seus projetos cairiam por terra. Mas Bakunine
não era homem de amedrontar-se ante um perigo. Com muitas precauções perguntou ao capitão onde e quando devia encontrar-se com o navio de guerra. O capitão,
não suspeitando nenhum mal, deu-lhe todos os informes. Bakunine fez rapidamente seus preparativos; próximo do lugar onde havia de encontrar-se com o governador,
pediu-lhe que permitisse passar-se para um navio americano que se dirigia para o Japão. O capitão acedeu, com a maior boa vontade, ao desejo de seu hóspede
desconhecido e meia hora mais tarde Bakunine passava tranqüilamente diante do navio em que ia o governador, que não suspeitava achar-se próximo, naquele
momento, o revolucionário mais temido da Europa.
Foi aquele o último perigo; sem maiores dificuldades chegou a Yokohama. Dali dirigiu-se para São Francisco, onde encontrou diversos amigos que lhe
proporcionaram os meios necessários para ir a Nova York. Em novembro de 1861 Bakunine deixava Nova York, a caminho de Londres. Ali foi acolhido com a maior
simpatia por Alexander Herzen, Ogareff e os outros do círculo que se havia formado ao redor do "O sino", órgão, dos revolucionários russos. Desta maneira
terminou a viagem de Bakunine ao redor do mundo, viagem, que realizou com as mãos carregadas de cadeias e como expatriado fugitivo.
Depois de uma longa prisão, Bakunine via-se livre finalmente e entregou-se de novo ao movimento revolucionário com todo o seu temperamento tempestuoso.
Herzen nos deixou uma breve descrição daquela atividade:
"Depois de um silêncio de nove anos, sumido na solidão mais absoluta, Bakunine começou a viver de novo. Discutia, pregava, mandava, agitava, organizava
e permanecia ativo todo o dia, toda a noite durante as vinte e quatro horas. Nos escassos momentos livres que lhe sobravam corria à sua mesa de trabalho
e escrevia cinco, dez, vinte cartas a Semiplatinsk, Arazzo, Belgrado, Praga, Constantinopla, Bessarábia e Bulgária".
Bakunine tinha escolhido à sua volta um círculo de entusiastas adeptos e, graças à sua influência poderosa, "O Sino" tornava-se mais radical de número
a número. Atacava a Herzen porque este não era demasiado revolucionário e aceitava certos compromissos. Todas as esperanças colocava-as então Bakunine
nos povos eslavos, para cujo movimento dedicou seus esforços. Lançou naquela época as bases de uma organização secreta na Rússia e nos outros países eslavos.
Compreendeu Bakunine que lhe seria impossível trabalhar junto com Herzen e Ogareff. Estes estavam muito ligados às esferas oficiais da Rússia e o grande
revolucionário queria romper todos os laços com a Rússia oficial. Os trabalhos que publicou com esse fito, então, por exemplo "A todos os amigos russos,
polacos e eslavos" e o folheto "Romanoff, Pugatchef ou Pestel?" testemunham as idéias práticas que professava naquele tempo.
Mas graças ao problema polaco voltaram a encontrar-se Bakunine e os editores do "O Sino". Na Polônia iniciara-se um vigoroso movimento de rebeldia
contra o jugo russo, chamando a atenção de todos os revolucionários eslavos. O movimento polaco, encabeçado pelo partido aristocrata, não tinha na realidade
nada de comum com as idéias de Bakunine; mas este queria aproveitá-lo para seus fins.
Pouco tempo antes do rompimento da sublevação polaca de 1863, realizou-se uma importante conferência entre os editores do "O Sino" e os delegados do
comitê revolucionário de Varsóvia. Foi resolvido que Bakunine conduzisse à Polônia um vapor com armas e revolucionários polacos e que participasse por
sua vez no levante. Desgraçadamente os preparativos não foram feitos pelo próprio Bakunine e esta foi a razão por que fracassou a tentativa. Em 21 de fevereiro
Bdkunine deixava Londres dirigindo-se para Copenhague e dali para a Suécia, onde o aguardava o navio com a expedição polaca. Mas devido à imprevisão com
que foi preparada a empresa e a traição do capitão que comandava o navio, o projeto não pôde ser realizado. Só graças à energia inquebrantável e ao valor
heróico de Bakunine conseguiu-se pôr a salvo a tripulação e o navio. Bakunine, com efeito, chegou a saber que o capitão tinha visitado em Copenhague o
cônsul russo e temeu que o traidor os entregasse a um navio de guerra de seu país. Achando-se já em alto mar, manifestou ao capitão que não lhe tinha a
menor confiança e que se chegasse a perceber algum navio de guerra russo, atacá-lo-ia imediatamente; e em caso de não conseguir vencê-lo, afundaria o vapor
em que ele viajava. O capitão não quis seguir viagem e voltou para Copenhague apresentando diversos pretextos. O plano fracassou, pois, devido aos preparativos
deficientes dos polacos. Bakunine ficou por algum tempo na Suécia e enquanto trabalhava ali publicamente, buscou e encontrou vinculações secretas com a
Rússia para a difusão regular e sistemática da literatura revolucionária naquele país. Ao mesmo tempo entabolou relações de caráter revolucionário com
a Finlândia. Seu plano consistia em cruzar clandestinamente a fronteira russa e ir à Polônia através da Lituânia com o propósito de ter uma participação
direta na rebelião polaca. Mas os dirigentes desse levante, em sua maioria aristocratas e patriotas desprovidos de qualquer aspiração revolucionária, temiam
a Bakunine mais que ao governo russo, pois suas idéias e projetos eram excessivamente radicais para eles. Por isso dissuadiram-no de vir, valendo-se de
falsos pretextos. Além disso a sublevação polaca não se prolongou tanto como o esperavam Bakunine e seus amigos. Este abandonou, pois, a Suécia e encaminhou-se
novamente para Londres. Mas embora tivesse fracassado sua tentativa, o governo russo se sentia inquieto ante a energia vigorosa e o valor desesperado de
Bakunine. Durante sua estadia na Suécia, o governo russo fixara uma recompensa de trinta mil rublos para quem entregasse o temível revolucionário, vivo
ou morto.
Bakunine não permaneceu muito tempo em Londres, pois tinha planejado uma viagem à Itália. Em janeiro de 1864 chegou a Florença. Com esta viagem termina
sua propaganda exclusivamente eslava: desde então dedicou sua formidável força de agitador ao movimento revolucionário internacional.
A Itália oferecia um campo propício para a sua ação de propagandista. O temperamento revolucionário do povo italiano e seu grande interesse pela propaganda
conspiradora eram excelentes fatores para os projetos de Bakunine. Não obstante estas condições favoráveis, achou também muitas dificuldades e obstáculos.
Precisamente os elementos que representavam o movimento revolucionário na Itália e com os quais contava Bakunine, eram partidários de Mazzini. Bakunine
arremeteu pois, briosamente contra as teorias e aspirações deste e de seus adeptos, conquistando com sua habilidade uma assinalada influência sobre a juventude
italiana. Numerosos estudantes e operários abandonaram o campo religioso e patriótico de Mazzini, aderindo às idéias ateístas e revolucionárias do grande
rebelde russo.
De Florença, Bakunine passou para Nápoles, onde permaneceu dois anos. Ali conheceu a muitos simpáticos companheiros de luta, como Fanelli, Gambuzzi,
Mulletti, Farlandina e outros, com os quais constituiu o primeiro grupo anarquista daquela cidade. Foi então que expôs suas doutrinas no "Poppolo d'Italia"
e em "Libertá e Giustizia", primeiro periódico anarquista daquele país.
Durante este período, Bakunine dedicou toda a sua atividade à criação de uma sociedade internacional secreta que servisse de base a um sólido movimento
revolucionário na Europa. Seu plano consistia em conquistar para o seu programa anárquico-ateu os homens mais inteligentes, mais honrados e enérgicos do
movimento revolucionário. Esses homens fundariam logo em todos os países da Europa organizações secretas e imprimiriam um caráter acentuadamente revolucionário
ao movimento. Assim foi que nasceu a "Sociedade revolucionária internacional", mais conhecida sob o nome de "Irmãos internacionais". Numa carta a Alexander
Herzen fala Bakunine de seus êxitos neste sentido, dizendo ter encontrado partidários na Suécia, Noruega, Dinamarca, Inglaterra, Bélgica, França, Espanha,
Itália, Polônia e Rússia.
Muitos pormenores de sua propaganda daquela época se perderam, mas considerando os movimentos revolucionários dos países latinos, especialmente de
Espanha e Itália, podemos apreciar a obra gigantesca deste grande homem.
Para apreciar com justiça a atividade de Bakunine naquele período, é mister tomar em conta as condições sociais e políticas de então. Depois da revolução
de 1848, iniciou-se na Europa um período de reação e de estancamento que perdurou mais de dez anos, condicionando o surto, na maioria das nações, de um
anelo revolucionário. A sublevação dos polacos, a propaganda de Lassalle na Alemanha, a atividade de Mazzini e Garibaldi na Itália, o período "liberal"
na Rússia, etc., etc., eram sintomas de uma nova época. O processo evolutivo desse ciclo revolucionário só foi interrompido pela declaração de guerra franco-alemã
de 1870, a qual afiançou na Europa o domínio dos grandes estados e do sistema militarista. O caráter revolucionário daquela época explica, portanto, a
atuação subterrânea de Bakunine. Havia presenciado o fracasso da revolução de 1848 e dedicava então todos os seus esforços para evitar um novo fracasso;
por isso tratou de unificar os elementos revolucionários de todos os países.
A atividade de Bakunine era, pois, geralmente secreta. Participava pouco do movimento público; não desejava aer notado, a fim de poder preparar o terreno
para a sua atividade posterior. O momento que lhe ofereceu uma excelente oportunidade para desenvolver ante o mundo suas idéias anarquistas, chegaria antes
do que ele esperava.
As relações entre a Alemanha e a França se tinham tornado tensas em 1867 devido à questão do Luxemburgo, assunto que arrastaria a uma guerra entre
ambos os países. Então se iniciou um vasto movimento em prol da paz, no qual tomaram parte pessoas pertencentes a todas as classes e partidos. O resultado
desse movimento foi a fundação da "Liga da Paz e da Liberdade". Essa união tinha um caráter internacional e numerosas personalidades do mundo político
e revolucionário, como Garibaldi, Castelar, Johan Jacobi e outros, aderiram a ela.
Bakunine compreendeu logo que a "Liga da Paz e da Liberdade" oferecia um campo propício para a sua propaganda revolucionária. Certamente nunca pensou
converter a Liga ao anarquismo; só queria encontrar novas vinculações em favor de seus planos. Em setembro de 1867 partiu da Itália, dirigindo-se para
Genebra, onde se celebrava o primeiro congresso da Liga. Bakunine e alguns de seus amigos mais íntimos eram delegados nesse congresso. Tenho ante os olhos
uma descrição da impressão produzida por Bakunine na assembléia:
"De repente apareceu na tribuna um homem gigantesco, que chamou a atenção dos presentes por suas formidáveis qualidades oratórias. Este homem era Miguel
Bakunine. E em lugar de falar da paz em geral, preconizou a revolução social, a guerra contra a religião, o Estado e a propriedade".
Nos notáveis discursos que pronunciou no congresso demonstrou que as causas da guerra são muito mais profundas do que supõem alguns e chegou à conclusão
de que essas causas estão representadas pelo Estado, pela religião e pelo capital privado. Baseando-se neste ponto de vista, pedia Bakunine que a Liga
não se limitasse a defender a paz, mas a atacar as instituições fundamentais da sociedade moderna, causas fundamentais das guerras e das matanças dos povos.
A maioria do congresso, naturalmente, não estava de acordo com os conceitos revolucionários de Bakunine; mas tampouco foram de todo rechaçados. Bakunine
até foi eleito membro do comitê de organização da Liga. Foi então que expôs suas idéias numa obra intitulada "Federalismo, Socialismo e Antiteologismo",
que foi editada mais tarde, em 1865, pelo doutor Max Nettlau.
No transcurso do primeiro ao segundo congresso da "Liga da Paz e da Liberdade" a organização fez poucos progressos devido à divergência de opiniões
que havia entre os seus componentes. Por isso Bakunine resolveu dedicar todos os seus esforços em infundir-lhe um caráter manifestamente socialista e revolucionário,
ou então provocar uma cisão entre os elementos avançados e conservadores da Liga. Em 1868 celebrou-se o segundo congresso da Liga, e Bakunine propôs que
ela se fundisse com a "Associação Internacional dos Trabalhadores", fundada alguns anos antes. Além disso pedia que o congresso se pronunciasse pela libertação
econômica do proletariado. O congresso negou-se a aceitar suas proposições, razão por que Bakunine e seus amigos se retiraram da Liga. Entre os membros
da minoria achavam-se Elie e Elisée Réclus, Fanelli, Gambussi, Jasclar e muitas personalidades conhecidas do movimento revolucionário.
Com freqüência pergunta-se por que Bakunine não aderiu imediatamente à "Associação Internacional dos Trabalhadores". A resposta é bem simples. Durante
os primeiros anos de sua existência, a Internacional era exclusivamente reformista e anti-revolucionária. Só mais tarde se fomentou o espírito socialista
e revolucionário na grande Associação. Havia também outras causas que impediram a Bakunine a imediata incorporação nela; mas em virtude da importância
que ia adquirindo a Internacional, propôs sua fusão com a Liga da Paz e da Liberdade.
Ao retirar-se a minoria do congresso da Paz celebrado em Berna, Bakunine propôs que todos aderissem à Internacional, a fim de pregar suas idéias no
seio da poderosa corporação. Mas parte de seus amigos estavam resolvidos a fundar uma nova organização que desenvolvesse a propaganda revolucionária nos
países europeus.
Esta associação chamou-se a princípio "Aliança da Democracia Socialista", e mais tarde simplesmente "Aliança Internacional". A Aliança organizou grupos
e círculos em todos os países da Europa ocidental e a enérgica agitação de seus membros lançou as bases do socialismo revolucionário nesses países. Um
amigo de Bakunine, o italiano Fanelli, recebeu o encargo de propagar a idéia revolucionária na Espanha. Sua campanha teve um êxito assombroso. Em Barcelona,
Madrid, Reus, Zaragoza e outras cidades os operários e os estudantes aderiram ao novo movimento; e deste modo foi introduzido naquele país o anarquismo
revolucionário. Exigiria demasiado espaço a descrição da atividade desenvolvida pela Aliança nos diversos países, como Itália, França, Suíça, etc. Em 1869,
foi dissolvida e seus membros se incorporaram à "Associação Internacional dos Trabalhadores". Com a entrada dos aliancistas na Internacional, abriu-se
para Bakunine um novo campo de trabalho. O formidável desenvolvimento da poderosa organização nos países latinos foi uma conseqüência direta de sua propaganda.
A "Associação Internacional dos Trabalhadores" foi fundada em 1864 em Londres. Seu propósito consistia em unir os operários de todos os países para
conseguir, mediante um esforço comum, o melhoria da classe proletária. Durante os dois primeiros anos de sua existência o desenvolvimento foi diminuto;
mas quanto mais revolucionária e socialista se fazia, tanto maiores eram os êxitos. No primeiro congresso da poderosa associação, celebrado em Genebra,
foram adotados certos estatutos que davam a todas as tendências do movimento operário a possibilidade de aderirem a ela. O princípio básico e tático desses
estatutos era a luta pela libertação econômica da classe operária. Proclamando tais princípios, a Internacional agrupou todas as escolas e partidos do
movimento social, por distintos que fossem seus pontos de vista em outras questões. Cada tendência tinha o direito de propagar suas idéias e de aplicar
seus métodos de luta desde que não contradissessem os princípios fundamentais da Associação. A tolerância e a autonomia absoluta das Seções e Federações
constituíam a força e o poder da Internacional; se tivesse tido um programa determinado e uma tática fixa jamais teria podido reunir dois milhões de trabalhadores
da Europa e da América. Compreendia a Internacional diversas tendências: proudhonianas, marxistas, coletivistas, mutualistas, anarquistas e outras, pois
a todas elas as unia a luta pela libertação econômica.
A princípio, como ficou dito, a tendência geral da Associação era indefinida e escassamente socialista; mas graças ao desenvolvimento teórico das idéias
e principalmente devido às perseguições dos governos, o elemento revolucionário da poderosa organização aumentou consideravelmente, sobretudo nos países
latinos. No congresso internacional de Bruxelas, verificado em 1868, as idéias revolucionárias conseguiram um predomínio. O socialista belga De Paepe defendeu
nele o coletivismo contra as aspirações anti-revolucionárias dos proudhonianos franceses e contra o comunismo de Estado dos marxistas.
O período de 1868 e 1870 foi o mais brilhante que teve a Internacional.
Na primavera de 1869, Bakunine e muitos de seus amigos aderiram à Internacional e a atividade do grande revolucionário tornou-se uma força de inapreciável
valor para o desenvolvimento e a difusão da gigantesca associação operária. Vivia então em Genebra e graças à sua atividade incansável desenvolveu-se um
forte movimento revolucionário na Suíça francesa. Ele era naquela época, o redator-chefe do "Egalité" de Genebra, periódico no qual definiu suas teorias
numa série de brilhantes artigos. Graças às diversas viagens de propaganda nas pequenas regiões dos Montes do Jura chegou a conhecer muitos simpatizantes
que se converteram em fiéis companheiros e excelentes propagandistas de suas idéias. Em setembro de 1869, realizou-se em Basiléia o quarto congresso da
Associação Internacional dos Trabalhadores, no qual participou Bakunine como representante dos mecânicos de Nápoles e dos tecelões de Lyon. O de Basiléia
foi o mais importante de todos os congressos celebrados pela Internacional, pois nele obteve vitória o socialismo revolucionário sobre o velho proudhonismo
e o marxismo autoritário. Bakunine e seus amigos Varlain, Farga, Pellicer, De Paepe e outros preconizaram conjuntamente as idéias do coletivismo revolucionário.
Em um dos discursos que Bakunine pronunciou nesse congresso disse:
"Quero não só a propriedade coletiva do solo; quero que todas as riquezas sejam propriedade coletiva: por isso sou partidário da revolução social,
por isso luto pela supressão do Estado político e legal. O coletivismo é a base do indivíduo e a propriedade privada não é outra coisa senão o despojo
de produtos criados mediante o trabalho coletivo".
Bakunine expressou suas idéias em três palavras: "Ateísmo, Coletivismo, Anarquismo". Estas idéias foram os princípios básicos do movimento operário
da Bélgica, Holanda e dos países latinos. A influência de Bakunine na Internacional crescia de dia para dia e seu nome ia adquirindo eco no mundo revolucionário.
Pouco tempo depois do congresso de Basiléia, Bakunine abandonou Genebra e se dirigiu para Lugano. Mantinha então volumosa correspondência com quase todos
os conhecidos socialistas e revolucionários da Europa, mas sua atividade propagandista fez-se sentir especialmente na Itália, Rússia, Espanha e França.
Entre 1869 e 1870 publicou em russo grande quantidade de manifestos e folhetos, como "Algumas palavras aos meus jovens irmãos da Rússia"; "A Ciência e
a aspiração revolucionária do presente"; "Aos oficiais do exército russo" e outros. Nessa época travou conhecimento com o revolucionário russo Nechaiev.
Não é este o lugar para descrever a atuação de Nechaiev e suas relações com Bakunine; não era anarquista, mas um homem de ação, e por isso Bakunine simpatizava-se
com ele. Só mais tarde, ao ver este último que Nechaiev se valia de seu nome para exercer influência sobre a juventude russa em favor de suas próprias
idéias e convicções, é que Bakunine se separou dele. Mas quando o governei russo pediu ao da Suíça a extradição de Nechaiev, por motivo do assassínio em
Petrogrado do estudante Ivanov, a que Nechaiev considerava como traidor, Bakunine fez todo o possível para salvá-lo. Quando Nechaiev caiu por traição nas
mãos da polícia suíça, Bakunine publicou seu conhecido folheto: "Os ursos em Berna e o urso em Petrogrado", com o qual tratou de impressionar a opinião
pública contra a extradição do revolucionário russo. O nome de Nechaiev foi muito caluniado; é certo que seus meios de ação nem sempre foram os mais recomendáveis,
mas é indubitável que era revolucionário sincero e o trágico fim que teve é causa suficiente para que se olhem, com mais benignidade, seus defeitos.
O rompimento da guerra franco-alemã de 1870 impulsionou novamente Bakunine para o campo de batalha da revolução. Compreendia que a contenda ia necessariamente
fortalecer a reação européia e sua única esperança cifrava-se numa manifestação revolucionária da Itália, Espanha e França, que combatesse o crescente
espírito militarista provocado pela guerra. Sabia que o triunfo da Alemanha significaria a vitória do militarismo, o triunfo do Estado centralizado; a
vitória de Napoleão seria a vitória do despotismo e da corrupção. E para evitar tais conseqüências só havia um meio: a revolução. Bakunine dava-se conta
de que se não estalava uma revolução, as aspirações libertárias se veriam sufocadas por muito tempo. Seu primeiro trabalho consistiu na publicação de um
folheto, "Cartas a um francês", no qual expunha seus projetos. O folheto apareceu em 1870 e teve uma vasta difusão. Ao mesmo tempo se encaminhou a Lyon,
a fim de preparar ali o levante. Aguardava Bakunine uma revolução em Paris, para cuja sustentação Lyon teria sido um dos pontos mais importantes. Em 28
de setembro os rebeldes de Lyon proclamaram o levante e os bakuninistas conseguiram mesmo conservar a cidade em suas mãos durante algum tempo. Mas a falta
de unidade entre os revolucionários e a indiferença das outras cidades prejudicou o êxito da empresa. Bakunine viu-se envolvido no perigo e teve de abandonar
secretamente Lyon. Dali se dirigiu para Marselha, onde contribuiu grandemente na sublevação geral. Projetava então voltar para Lyon, sempre que os revolucionários
fizessem os preparativos necessários para um novo levante. Finalmente, depois que todos os seus projetos tivessem ficado sem resultado, devido à indiferença
das massas populares, retornou para Lugano. Estava muito descontente com a situação e seu vigoroso espírito sentia que, no momento, a reação imperaria
em toda a parte. Nesse período foi que decidiu publicar suas teorias numa obra especial. A primeira parte apareceu em 1871 sob o título de "O Império Knuto
germânico e a revolução social"; a segunda parte foi publicada em 1882, quer dizer, seis anos depois de sua morte, com o nome de "Deus e o Estado"; a terceira
parte, conclusão de "Deus e o Estado", foi editada em 1895 pelo doutor Nettlau. Esse trabalho constitui uma brilhante crítica das idéias de "Deus e do
Estado". Nesse mesmo tempo escrevia seus notáveis trabalhos polêmicos contra Mazzini, os quais obtiveram um grande êxito na Itália.
A proclamação da Comuna suscitou novo entusiasmo em Bakunine; mas sabia que Paris devia cair, pois as províncias estavam mortas. Seu único desejo era
que a queda de Paris fosse heróica, a fim de que servisse de exemplo para o mundo. Começou a escrever um livro sobre a Comuna, mas o prólogo dessa obra
só se publicou em 1878, sob o título de "A Comuna de Paris e o princípio do Estado".
Em setembro de 1871 celebrou-se em Londres uma conferência da Internacional, na qual se adotou uma resolução que admitia a luta política como condição
tática de todas as Federações que a integravam. Bakunine e sua tendência foram ali fortemente atacados. Essa conferência provocou o protesto da maior parte
das Seções da Internacional contra a atitude intolerante do Comitê Geral de Londres, o que levou mais tarde à desaparição da "Associação Internacional
dos Trabalhadores".
Em 2 de setembro de 1872 realizou-se o célebre congresso de La Haya. Segundo se diz, esse congresso foi convocado especialmente em La Haya a fim de
que Bakunine não lhe pudesse assistir, pois deveria cruzar a França ou a Alemanha e em tal caso seria detido. É impossível relatar aqui as deliberações
do Congresso de La Haya (os detalhes os achará o leitor nas "Memórias da Federação do Jura"); Bakunine e Guillaume foram expulsos da Internacional sob
o pretexto de que haviam fundado uma organização em seu seio. A prova de que o triunfo da tendência marxista sobre a de Bakunine não foi senão um triunfo
de puro formulismo, demonstra-o o fato de ter proposto Marx a transferência do Comitê Geral aos Estados Unidos, o que significava, em outras palavras,
a desaparição da Internacional. A minoria revolucionária convocou imediatamente um novo congresso em Saint-Imier, Suíça, o qual se expressou contra as
resoluções de La Haya, declarando também que interrompia suas relações com o Comitê Geral de Londres. As secções italianas, espanholas, francesas, belgas,
holandesas, russas e as distintas seções da Suiça e da América constituíram uma nova Internacional, que existiu muitos anos depois da dissolução da Internacional
marxista.
Depois do congresso de Saint-Imier, Bakunine se retirou da atividade pública. A enfermidade que contraíra como conseqüência de sua longa prisão na
Rússia ia piorando e lhe impedia toda ação. Em julho de 1874 o movimento revolucionário de Itália era tão poderoso que todos aguardavam o rompimento da
revolução. Os amigos de Bakunine a prepararam e este se dirigiu secretamente para Bolonha. Sua atitude a respeito da sublevação de Bolonha permanece ainda
envolta em mistério. A empresa fracassou e Bakunine, gravemente enfermo, teve de voltar para a Suíça. Piorava cada vez mais, razão por que resolveu transferir-se
para Berna, para a casa de um velho amigo, o professor Alfred Vogt, que cuidaria dele. Mas em 1 de julho de 1876 morreu ali, aos 62 anos de idade.

Luísa Michel

LUÍSA MICHEL, a heroína da Comuna de Paris, a lutadora e propagandista incansável da revolução social, morreu repentinamente, inesperadamente. A férrea
mão da Parca deteve de maneira imprevista sua vida rica e agitada; o coração que amava tão profunda e sinceramente e que odiava com tanta veemência já
não bate no peito frio. E os lábios febris que foram capazes de pronunciar tantas palavras entusiastas e rebeldes emudeceram para sempre. Que vida magnífica,
abundante em pormenores dramáticos, em fatos maravilhosos e extraordinários, foi a existência da "boa Luísa"!
Foi toda uma novela, mas não uma novela vulgar, comum, mas um romance escrito com o sangue do coração de sua autora, uma novela vivida e sofrida por
ela.
O movimento revolucionário tem dado origem a muitos tipos de mulheres notáveis, mulheres que mereceram o amor e a admiração das épocas posteriores,
mas ainda não produziu, e é duvidoso que ofereça no futuro, uma figura semelhante à de Luísa Michel.
A "boa Luísa" foi sem dúvida uma das personagens mais surpreendentes da época moderna; alguns de seus historiadores lhe chamaram a Joana d'Arc revolucionária,
a moderna Virgem de Orléans; esta comparação é certamente feliz porque se observa nela o mesmo entusiasmo poético e idealista, a fé inquebrantável na justiça
de suas convicções e o heróico valor que lhe proporcionou forças para suportar todos os perigos e obstáculos de sua vida de mártir.
Constitui Luísa Michel o verdadeiro tipo d a mártir, mas não da que se vê obrigada a sê-lo em virtude das circunstâncias; havia nascido mártir, o martírio
foi para ela uma necessidade natural e na satisfação dessa necessidade colocou a felicidade de sua vida, toda a sua alegria.
Julgava a vida com um critério diferente do de seus contemporâneos; o que era para outros motivo de dor foi para ela um prazer, uma satisfação interior.
Este traço psicológico de sua idiossincrasia foi compreendido perfeitamente pelo editor de suas "Memórias" ao dizer que se Luísa Michel tivesse vivido
mil e novecentos anos antes teria sido tratada como os primeiros mártires do cristianismo: seu corpo débil seria destroçado pelas feras na arena imperial;
e se tivesse vivido na Idade Média teria sido morta, sem dúvida, na fogueira da Inquisição.
Essa fé de mártir foi a verdadeira força interior da "boa Luísa", a razão pela qual o corpo doente não se extinguiu antes, aniquilado pelos sofrimentos
indescritíveis que essa mulher admirável teve de padecer em sua vida tão fecunda em fatos. Luísa Michel foi feliz, feliz em todo o sentido da palavra porque
sua alma jamais foi invadida pelo ceticismo suicida do presente; seu coração generoso não se sentiu torturado nunca por esses problemas obscuros da dúvida
que fazem tão difícil e insuportável a vida do homem moderno.
Era feliz até quando a afligiam cruéis dores, pois jamais perdeu o equilíbrio moral de sua alma e todos os seus pensamentos e ações giraram sempre
em torno do centro de sua existência de mártir; a esperança absoluta no triunfo inevitável da revolução social e a fé profunda e ilimitada em um futuro
melhor. Essa harmonia interior a defendia contra toda dúvida; era uma couraça de aço contra toda idéia pessimista, uma couraça contra a chamada "dor universal",
o imenso mal da geração contemporânea. A dor universal! A "boa Luísa" nunca soube o que era isso.
Se os seus atos estavam de acordo com suas opiniões por que havia de ter piedade do mundo? A dor universal! Invenção de uma época débil, palavra baixa
na qual se quer ocultar a covardia pessoal e a servidão da alma. Perdemos a harmonia entre nossas idéias e nossas ações, vivem em nossos corações duas
personagens diferentes e nosso espírito está dominado por dois pensamentos diferentes. Amamos o novo sem ter a coragem de pô-lo em prática; odiamos o velho,
mas falta-nos a força de vontade para romper com o passado. Em uma palavra, procedemos ao contrário do que pensamos e por isso falamos de "dor universal";
sentimos compaixão do mundo quando seria melhor que tivéssemos piedade de nós próprios...
Luísa Michel não conhecia estas fraquezas. Quando abandonou o castelo onde passara sua mocidade e entrou no mundo como professora de escola estava
imbuída de idéias radicais e anticlericais. Mas essas idéias não estavam de acordo com o ensino das escolas de Napoleão III. Que importava?
Luísa instruiu as crianças conforme suas convicções e não como lhe exige o governo imperial. Diz às crianças que Napoleão é um criminoso, um tirano,
um traidor da República, ensina-lhes cantos revolucionários e outras coisas. Os pequenos mostram-se muito contentes com a singular professora, mas o diretor
chega à conclusão de que ela não serve para o magistério.
Luísa dirige-se então a Paris e ante seus olhos se descortina um mundo novo. Convive com os chefes da democracia radical, ao mesmo tempo que freqüenta
as assembléias da Internacional e os centros clandestinos dos comunistas. Trabalha dia e noite, esquecendo completamente sua existência material e somente
um desejo anima seu coração: a ruína do Segundo Império. Participa em todas as tentativas revolucionárias contra Napoleão III e quando o trono imperial
cai destruído na voragem da guerra franco-alemã, ela é a primeira a atacar a chamada República de Setembro, a república da burguesia francesa. Vem depois
o 18 de março de 1871; a capital sublevada proclama a Comuna. Luísa Michel adquire forças gigantescas, é a encarnação do temperamento revolucionário, a
personificação do entusiasmo rebelde. É incansável em sua atividade.
Fala às multidões e publica seus artigos fragorosos no "Le Cri du Peuple". Depois vem a catástrofe, o último ato da Revolução Francesa: a Comuna luta
entre a vida e a morte contra a reação combinada do Estado e do Capital. Nas barricadas, vestindo o uniforme da Guarda Nacional, fuzil na mão, Luísa é
ferida no assalto de Port-Ivry e, antes de o ferimento se cicatrizar acha-se novamente no campo de batalha.
Cuida dos feridos, beija os lábios agonizantes dos irmãos caídos na luta das barricadas. A Comuna cai; no Père Lachaise e no sangrento combate de Sartori
morrem seus últimos defensores. Luísa Michel encontrou neste momento um refúgio seguro. Mas em seguida toma conhecimento de que a reação se prepara para
acusar de seus atos sua querida mãe.
Em vão os amigos esforçam-se em demonstrar-lhe que a notícia não é verdadeira. Luísa não se deixa convencer e se entrega às mãos dos verdugos sanguinários.
No dia 16 de dezembro de 1871 comparece ante os juizes pedindo para si a morte. Sua atitude perante esse tribunal é heróica: censura em termos apaixonados
os assassinos da Comuna chamando-lhes cachorros covardes e jura que, sendo absolvida, não deixará de sublevar o povo contra seus verdugos. O conselho de
guerra condena-a à prisão em Nova Caledônia. Os parentes valem-se de todas as suas influências para libertá-la, mas Luísa declara que somente voltará com
todos os outros.
Durante nove anos arrastou as correntes do presídio até que finalmente foi posta em liberdade com todos os companheiros graças à anistia de 1880. O
proletariado francês recebeu com ruidoso entusiasmo a "boa Luísa". Um ou outro dos comuneiros condenados perdeu a coragem na prisão, mas Luísa continuou
a mesma de sempre. Em 1882 foi condenada a duas semanas de prisão por ofensas à polícia e nessa mesma época aderiu à tendência anárquica do socialismo.
Quando, em 1883, se celebraram as grandes manifestações dos desocupados, Luísa achava-se à testa do movimento. Via a fome de seus filhos, os proletários
de Paris, e sabia que nada poderia ser remediado com palavras bonitas. "Venham, filhos, eu vos darei de comer", disse à multidão faminta. E levantando
a bandeira negra quebrou as vidraças de algumas padarias e açougues com o objetivo de prover aos pobres e miseráveis.
Foi condenada a seis anos de prisão, mas foi posta em liberdade pela anistia de 1886. Nesse mesmo ano foi novamente condenada por ofensas ao governo;
depois a obrigaram a abandonar a França, pois as autoridades tinham a intenção de recolhê-la a um manicômio. No transcorrer dos muitos anos que viveu na
Inglaterra escreveu algumas novelas e duas pequenas coleções de versos. Suas novelas "A miséria. Os malditos, A filha do povo", e principalmente "Os micróbios
humanos e O novo mundo" são descrições da miséria do proletariado e acusações veementes contra a sociedade moderna. Nelas se reflete toda a riqueza de
seu caráter extraordinário, seus sentimentos profundos e nobres pelos humildes e explorados e particularmente essas relações misteriosas, quase místicas,
que existiam entre ela e as multidões operárias de Paris. Antes de abandonarXq França editou o primeiro volume de suas Memórias. Seu último trabalho de
caráter literário foi um excelente livro sobre a Comuna de Paris.
Nos últimos anos de sua vida fecunda fez algumas viagens de propaganda por toda a França; encontrava-se em Marselha para pregar a idéia da liberdade
geral por meio da revolução social quando a morte interrompeu bruscamente sua atividade incansável.
Em poucas palavras esta é a biografia maravilhosa de Luísa Michel, heroína e lutadora. Todas as suas ações estiveram sempre em concordância com suas
idéias. Obedeceu, em todo o momento, à voz de seus sentimentos íntimos e essa voz jamais a atraiçoou.
Foi uma figura completa e seu coração ignorou o dualismo desesperançado que tão fortemente domina a geração atual.
Luísa teve uma morte bela. Três meses antes de seu falecimento, quando todo o mundo acreditou que morreria irremissivelmente, ela venceu, apesar de
tudo, a cruel enfermidade. E até teve a rara felicidade de ler o próprio necrológio... Viu as lágrimas ardentes dos humildes e explorados do mundo inteiro
para quem ela havia sido sempre a "boa Luísa".
E essas lágrimas, esse amor ilimitado e essa veneração dos oprimidos foi a maior recompensa que pôde receber.
Era demasiado boa e por isso a morte lhe concedeu um privilégio especial. Mas seu nome viverá eternamente em todos os corações amantes da liberdade.

O imperativo da hora

A pouco e pouco, até os que acreditavam poder refutar os fatos históricos mediante teorias herdadas, compreendem que a guerra que se estende a todos
os continentes e inunda como um dilúvio vermelho a humanidade, não pode ser medida ao compasso dos antigos conflitos militares.
O hábito de qualificar todos os acontecimentos históricos somente como uma conseqüência de determinadas leis econômicas, que, em última instância têm
de levar-nos a uma etapa superior da vida social, é uma perigosa superstição que contribuiu não pouco para o desenvolvimento da situação presente. Pode
ser-se adversário irredutível do atual sistema social, mas a afirmação de que esta guerra é feita simplesmente em interesse dos grupos capitalistas, implica
um desconhecimento completo de todas as realidades. Inclusive admitindo que certas camadas do mundo capitalista obtêm benefícios da grande matança dos
povos, não se pode negar que a catástrofe atual se converte numa sangrenta fatalidade para o próprio capitalismo, de tal modo que seus representantes não
podem ter nenhum interesse nela.
Um terremoto social de semelhante magnitude é perigoso para todo o sistema social. Por isso esta catástrofe não é um assunto de determinadas classes,
mas um problema para a sociedade em geral.
É um pequeno consolo sustentar que os trabalhadores poderiam impedir a guerra se tivessem percebido melhor seus "interesses de classe". Ninguém nega
que tinham oportunidade de fazê-lo, mas o fato de que, apesar de tudo, não o fizeram, é a grande tragédia de nosso tempo. Sabemos hoje que grandes massas
do proletariado francês contribuíram para a decomposição da resistência contra as hordas hitleristas.
Teria sido um mérito, talvez, se os trabalhadores alemães tivessem feito o mesmo. Mas como não o fizeram, a decomposição interna do país só podia levar
o proletariado francês a atirar para os seus ombros, com a invasão alemã, um jugo muito mais pesado e sangrento. O mesmo processo se repetiu em cada país
da Europa. Justamente porque os operários não perceberam seus chamados "interesses de classe" e menosprezaram o perigo que os ameaçava, se converteram,
e com eles a sociedade inteira, em vítimas da mais espantosa tirania da história.
A guerra atual não é somente um problema econômico. É em primeira plana um problema de poder entre duas tendências diversas do desenvolvimento social,
uma das quais significa uma recaída no absolutismo e, em conseqüência, tem de levar à escravidão geral da humanidade, enquanto a outra pretende a elevação
paulatina a uma cultura social superior e representa, por assim dizer, a herança que nos deixaram as revoluções do passado. A supressão do absolutismo
dos príncipes e da ordem econômica feudal pelas revoluções da democracia e do liberalismo criou as condições prévias para que pudessem desenvolver-se o
movimento operário moderno e o socialismo. Sem a conquista de determinados direitos e liberdades políticas não se teria podido pensar sequer nos movimentos
sociais do presente. Por isso foi aplainado o caminho para as novas aspirações sociais.
Mas os direitos de que desfrutamos hoje, nos chamados países democráticos, não chegaram aos povos como um presente dos governos; foram o resultado
de duras e sangrentas lutas e tiveram de ser obtidos, quase sempre, ao preço dos maiores sacrifícios. Por defeituosos que sejam, não se há de esquecer
nunca que representam conquistas revolucionárias que não devem ser abandonadas, se é que não queremos sacrificar infamemente as reivindicações sociais
de nosso tempo. Quem não concede importância alguma a esses direitos e quem torne sua a máxima de Lenine de que "a liberdade é um preconceito pequeno-burguês",
está definitivamente perdido para a causa da libertação social. Não se serve a esta libertação abandonando sem luta os direitos conquistados, mas somente
quando se está disposto a ampliar e a acentuar esses direitos mais fortemente. O que nós queremos não é reduzir nossos direitos e liberdades, mas acrescentar
aqueles e procurar para estas uma contínua ampliação. O que pensar de outro modo, está maduro para as concepções ditatoriais e para o Estado totalitário
e fomenta consciente e inconscientemente o desenvolvimento da reação social.
Mas se é verdade que a democracia e o liberalismo tiveram que preparar o caminho para o moderno movimento operário e para as aspirações sociais do
presente, também é indubitável que a supressão dessas conquistas democráticas e liberais tinha de conduzir forçosamente a uma supressão do movimento operário
e de todas as aspirações libertárias. Que não fazemos aqui uma afirmação no ar, prova-o eloqüentemente a história contemporânea. O Estado totalitário converteu-se
num leito de Procusto da liberdade. Por não tê-lo advertido desde o princípio, temos de pagar agora com sangue. A espantosa tirania em todos os países
dominados pelo alento pestífero da ditadura totalitária, fala uma linguagem que não pode ser mal interpretada.
O aniquilamento completo do movimento operário independente e de toda aspiração libertária nos países conquistados, o assassínio covarde e impiedoso
dos chamados reféns, a execução cotidiana de operários e camponeses antifascistas na Noruega, Holanda, Bélgica, França, Tcheco-Eslováquia, Rumânia, Sérvia,
Hungria, etc.; a perseguição medieval contra os judeus; a terrível condição dos milhões de seres humanos na Europa, declarados literalmente caça livre;
os horrores dos campos de concentração; a opressão bárbara de todas as conquistas culturais, convertem a existência do Estado totalitário e a vitória eventual
de Hitler numa catástrofe para a civilização.
Afirmar que pode ser-nos indiferente o triunfo de um ou de outro dos beligerantes nesta contenda horrível, eqüivale a virar as costas aos covardes
assassinos e preparar o mundo para as bênçãos da "nova ordem" hitlerista. A luta contra a escravidão totalitária e contra suas conseqüências bestiais é
o primeiro dever do presente, a condição prévia de um novo desenvolvimento social com espírito de liberdade e de justiça. Ao considerar como primeiro imperativo
da hora a luta contra a ditadura e o canibalismo do Estado totalitário, não acreditamos nem por um momento sequer que a sociedade burguesa é o melhor dos
mundos; só acreditamos na possibilidade de um desenvolvimento social superior sob condições melhores e mais humanas. Quando o mundo tenha sido libertado
da peste da militarização da vida social e de todas as raízes do Estado totalitário, abrir-se-ão novas possibilidades para o desenvolvimento de uma obra
construtiva. A liberdade não conhece metas finais, mas é o único meio que pode abrir-nos as portas de um novo futuro.
Se as camadas laboriosas da sociedade não foram capazes de opor um dique ao dilúvio vermelho da guerra, ao menos a terrível lição da história recente
lhes sirva de motivo para pôr fim, de uma vez por todas, às tais catástrofes. O Estado de escravos de uma suposta "raça de senhores" não pode ser objetivo
da humanidade, mas uma federação de povos livres, como a que previram Saint-Simon, Proudhon e Bakunine. É a única base que permitirá o desenvolvimento
de uma nova vida e dará à nossa existência valor e conteúdo.

Sociedade e classe

O período iniciado depois da passada guerra mundial, e que hoje conduziu a uma nova catástrofe de incalculável alcance, não somente lançou à margem
uma quantidade de instituições políticas e sociais, como deu também uma nova direção ao pensamento e leva hoje à consciência de muitos o que alguns haviam
reconhecido há muito tempo. Não só se produziu uma modificação no pensamento das camadas burguesas da sociedade; a mesma modificação se observa também
no campo do socialismo. A grande maioria dos socialistas que acreditaram com Marx na missão histórica do proletariado e sustentaram com o marxismo que
"de todas as classes que se encontram hoje ante a burguesia, só o proletariado é uma classe realmente revolucionária", encontram-se agora ante fenômenos
que não podem explicar com argumentos puramente econômicos. Era muito cômodo ver no proletariado o herdeiro da sociedade burguesa e acreditar que isso
obedecia a férreas leis históricas, tão inflexíveis como as leis que regem o universo.
Este é o defeito inevitável de todos os conceitos coletivos e das generalizações arbitrárias. Mas o pensamento e a ação do homem não são apenas um
resultado de sua incorporação a uma classe. Está submetido a todas as influências sociais imagináveis e, sem dúvida, também depende, em parte, de certas
disposições inatas que encontram a expressão mais variada sob a ação do ambiente social circundante. Seis filhos engendrados pelo mesmo pai proletário,
dados à luz pela mesma mãe proletária e crescidos no mesmo ambiente proletário, seguem, no desenvolvimento de sua vida ulterior, os caminhos mais divergentes
e são atraídos por toda a sorte de aspirações sociais, ou são alheios a todo o sentimento social. Um chega ao campo hitlerista, o outro se torna comunista,
socialista, reacionário, revolucionário, livre-pensador ou sectário religioso. Por que ocorre isso? Não o sabemos, e tampouco os melhores ensaios de explicação
são capazes de descobrir-nos absolutamente o desenvolvimento do indivíduo.
Se o pensamento da evolução tem um sentido, só pode consistir em que todo fenômeno leva em si as leis de sua formação gradual, leis que se ajustam
às condições externas do ambiente social e natural. Já o fato singular de que a fé na "missão histórica do proletariado", a idéia própria do socialismo,
não nasceram do cérebro dos chamados proletários, mas foram inventadas pelos descendentes de outras classes sociais e foram apresentadas às classes trabalhadoras
como um condimento pronto para o consumo, deveria soar algo criticamente. Quase nenhum dos grandes precursores e animadores do pensamento socialista surgiu
do campo do proletariado. Com exceção de J. P. Proudhon, W. Weitling, E. Dietzgen, H. George e algum par de outros mais, os representantes espirituais
do socialismo de todos os matizes surgiram de outras camadas sociais. Ch. Fourier, H. Saint-Simon, A. Bazard, B. Enfantin, V. Considérant, Th. Dezamy,
E. Cabet, C. Pecquer, Louis Blanc, E. Buret, Ph. Buchez, P. Leroux, Flora Tristan, A. Blanqui, J. de Collins, W. Godwin, Robert Owen, W. M. Thompson, J.
Gray, M. Hess, Karl Grun, Karl Marx, F. Engels,. F. Lassalle, K. Rodbertus, E. Dühring, M. Bakunine, A. Herzen, N. Chernichewski, P. Lavroff, Pi y Margall,
F. Garrido, C. Pisacane, Elisée Réclus, P. Kropotkin, A. R. Wallace, M. Fluerschein, W. Morris, N. Hyndman, F. Domela Nieuwenhuis, K. Kautsky, F. Tarrida
del Marmol, F. Mehring, Th. Hertka, C. Landauer, Jean Jaurès, Rosa Luxemburg, H. Cunow, G. Plekhanov, N. Lenin e centenas de outros não eram membros da
classe operária.
Não foram as leis da "física econômica" as que levaram esses homens e mulheres ao campo do socialismo, mas principalmente motivos éticos, e talvez
em alguns também tenham intervido outros fatores. Seu sentimento de justiça se rebelou contra as condições sociais de seu tempo e deu a seu pensamento
uma orientação determinada.
E por outra parte, vemos homens como Noske, Hitler, Stalin e Mussolini, que surgiram das mais baixas camadas sociais, se elevarem à categoria dos piores
inimigos de um movimento operário independente e se converterem em veículos conscientes de uma reação social cuja significação para o próximo futuro não
se pode calcular ainda.
Se se pudesse provar que o pertencer a uma classe determinada influi tão fortemente no pensamento e no sentimento do homem que o distingue, por toda
a sua essência, dos membros das outras classes sociais e o leva por uma direção completamente determinada, então se poderia falar, talvez, de "necessidades"
e de "missões históricas". Mas como não é assim, por essa senda não se chega senão a perigosos sofismas que transformam o pensamento vivo em um dogma morto,
incapaz de outro desenvolvimento. O que hoje se costuma qualificar como "conteúdo social" de uma classe, como "psicologia" de uma raça ou "espírito" de
uma nação, é sempre o resultado de um trabalho mental individual que se atribui logo, arbitrariamente, como suposta "lei da vida", à classe, à raça ou
à nação. No melhor dos casos, não passa de uma engenhosa especulação. Mas na maioria das vezes opera como uma fatalidade, pois não estimula nosso pensamento,
mas condena-o a uma infecunda paralisia.
A classe é só um conceito sociológico que tem para nós a mesma significação que a divisão da natureza orgânica, pelo homem de ciência, em diversas
espécies. É um fragmento da sociedade como a espécie é um fragmento da natureza. Atribuir-lhe uma "missão histórica" é incorrer num jogo especulativo de
nosso pensamento e não tem maior valor que se um naturalista quisesse falar por exemplo da missão dos crocodilos, dos macacos ou dos cães. Não é a classe,
mas a sociedade em que vivemos, e da qual a classe não é mais que uma parte, que influi continuamente até no mais profundo de nossa existência espiritual.
Toda a nossa cultura, a arte, a ciência, a filosofia, a religião etc., é um fenômeno social, não um fenômeno de classe, e se impõe a cada um de nós, qualquer
que seja a camada social a que pertençamos.
Não nos deu já a Alemanha neste aspecto um exemplo clássico? Há ainda, nestas horas, bobos que querem ver no movimento hitlerisía apenas uma rebelião
da pequena burguesia, afirmação absurda privada de todo fundamento. Na instituição do Terceiro Reich contribuíram os homens de todas as classes sociais
e não em último termo as grandes massas do proletariado alemão. Em 1924 recebeu Hitler nas eleições l.900.000 votos; dez anos mais tarde em 1934 essa cifra
alcançou 13.732.000. O exército pardo de Hitler não se compunha somente de pequenos burgueses e de intelectuais, mas, principalmente, de operários alemães
que, apesar de sua origem proletária, foram tão subjugados pelas idéias do fascismo como as outras camadas sociais.
Se se quer combater eficazmente a barbárie geral que ameaça nossa cultura, é preciso renunciar a mais um dogma morto e atirar ao monte de cisco mais
uma "verdade absoluta".

A volta a Deus

Réplica a Dorothy Thompson

MISS DOROTHY THOMPSON é uma mulher extraordinária. Alguns de seus adversários não o querem reconhecer. Pior para eles, não para Miss Thompson. A pessoa
que serve a uma grande causa, respeita aos inimigos, porque respeita a si mesma. Refiro-me aos adversários honestos, pois só eles merecem esses nomes.
Miss Thompson é uma mulher valorosa, uma pessoa que pensa e que sente, da escola do velho liberalismo norte-americano, que teve seus melhores representantes
em Paine, em Jefferson, em Thoreau, em Emerson e em muitos outros. Miss Thompson não é daqueles "liberais" que tornaram seu o pensamento de que as interpretações
políticas e sociais de Jefferson e de seus partidários não são aplicáveis à época atual, porque as condições materiais da vida se modificaram e adquiriram
formas que não poderiam prever os liberais da velha escola.
Miss Thompson compreende que o pensamento da liberdade humana não está ligado a nenhuma época e a nenhuma condição material; que constitui o mais profundo
conteúdo de nossa vida, do qual emana toda cultura, todo progresso na história. O ambiente material em que vivemos se modifica sem cessar e nos impõe novos
ensaios e métodos, mas o espírito de liberdade é imutável, pois encarna o valor da personalidade, a dignidade do ser humano, sem o qual a vida perde o
conteúdo.
Dorothy Thompson é, neste aspecto, mais revolucionária que muitos de nossos radicais que, assustados com as terríveis experiências do fascismo vermelho
e pardo, se aferram à ordem atual de coisas e perderam toda capacidade para contemplar novas perspectivas para o futuro. O maior mérito de homens como
Paine e Jefferson esteve em terem reconhecido que todo período tem seus problemas especiais, e que nenhuma geração tem o direito de prescrever o modo de
viver às gerações futuras. Nada existe para a eternidade. O câmbio contínuo das coisas é a grande lei da vida. A fatalidade de toda reação política e social
foi sempre que seus promotores inventaram ligar os homens a uma condição existente e quiseram impedir todo desenvolvimento ulterior.
Miss Thompson o assinala. Por isso busca a salvação, não no passado, mas no desenvolvimento de um novo espírito que brote da necessidade de liberdade
do ser humano e adapte as condições materiais da vida a essa necessidade. Compreendeu os perigos do monopolismo político e econômico e a grande exigência
de uma transformação de todos os valores espirituais e materiais. Assinala também que, na grande luta contra a barbárie do Estado totalitário, só pode
triunfar a liberdade se esta forjar suas próprias armas e não tomá-las do arsenal da tirania. Por isso soa tanto mais singularmente sua afirmação "de que
nosso terrível período deve ser atribuído ao fato de ter excluído da vida humana o conceito de Deus e ter criado, em sua substituição, um vazio espiritual
que procuram encher hoje um Hitler, ou um Stalin".
Não pertenço aos que se assustam com a palavra Deus. Se chamamos à grande razão primária de todas as coisas, Deus ou Natureza, nem por isso nos aproximamos
mais dela. Nosso pensamento move-se sempre na superfície dos conceitos criados por nós mesmos. Podemos interpretar o mundo e a vida diversamente, mas nem
por isso descerramos o véu atrás do qual está oculto o grande mistério. Nem a religião nem a ciência podem informar-nos sobre este ponto. As concepções
materialistas e teístas se sucedem em cada período da história; parece até que ambas têm sido solidárias. Por sua aparição alternativa criam uma certa
nivelação de nosso pensamento. É como uma vara que se curvou para um lado e que é preciso ser curvada para o outro para ficar direita. Mas é falso, é perigoso
e injusto querer carregar a responsabilidade de determinados fenômenos sociais a um certo modo de pensar. Sem dúvida, um déspota pode aproveitar certas
idéias para seus fins, mas com isso não fica provado que uma idéia em si e por si seja despótica. Talvez os piores crimes se perpetram em nome de Deus.
Se se pudesse demonstrar que os períodos de credulidade religiosa estiveram livres de guerra, de ódio e de perseguição, não necessitaríamos disputar
acerca deste problema. Mas justamente as guerras religiosas foram até aqui as mais cruéis de todas as guerras, e não existiu um déspota que não tenha justificado
sua tirania em nome de Deus. As cruzadas, as guerras contra os albigenses, bogomilos e hussitas, a guerra dos Trinta Anos e as guerras dos huguenotes na
França são eloqüentes testemunhos.
Hitler é, sem dúvida, um homem religioso que acredita firmemente que é um instrumento de Deus na terra. Essa idéia fanática reaparece em todos os seus
discursos. Mas seu ex-amigo Stalin pensava com Marx que a "religião é o ópio do povo". Ambos têm concepções totalmente distintas sobre a religião e chegaram,
contudo, ao mesmo despotismo. Não prova isso que o verdadeiro problema é mais profundo? Torquemada que mandava queimar os corpos para salvar as almas,
era um representante manifesto do absolutismo político e religioso. Maquiavello e Hobbes, ao contrário, não acreditam nem em Deus nem no diabo e eram,
contudo adeptos do absolutismo estatal.
Acusou-se a Darwin de ser a sua teoria da luta pela existência responsável pelo egoísmo social de nosso tempo. Mas foi esquecido que, segundo sua própria
confissão, precisamente essa parte de sua teoria foi influída fortemente pelas doutrinas malthusianas. Malthus, que sustentava que "a mesa da vida não
está servida para todos", não só era um homem profundamente religioso, como também era sacerdote. E Kropotkin, declaradamente "materialista", que não acreditava
em nenhum Deus pessoal, desenvolveu das conclusões de Darwin a filosofia do apoio mútuo, nascida do mais profundo amor humano.
Não sustento que um ser religioso não possa ser uma boa pessoa. Um homem pode crer em Deus e pertencer às criaturas mais nobres da terra. Mas o mesmo
pede também ocorrer com homens que não acreditam em nenhuma divindade pessoal e estão firmemente convencidos de que o ser humano venera em Deus somente
seu próprio retrato. Kropotkin, Reclus, Owen, Malatesta e cem outros pertenciam, apesar de sua "incredulidade", aos representantes socialmente mais sensíveis
da espécie humana. Não é o sinal externo ou a necessidade pessoal de fé que formam os seres humanos reais, mas a conduta ante seus semelhantes, seu respeito
ante a liberdade dos outros, sua compaixão ante a dor do próximo, sua profunda necessidade de justiça para todos. A religião é, em geral, um conceito muito
indefinido. A palavra latina religio significa a ligação dos homens a algo superior. Neste sentido todo ser de disposição idealista é um religioso. O homem
pode chamar divino ao supremo que aspira. Sobre as palavras não vale a pena discutir. Mas o Deus que cria por si mesmo tem sempre que permanecer seu próprio
Deus. No momento em que o impõe aos outros, converte-se em cilício do próximo. Isto se aplica a Deus, a toda "verdade absoluta", a toda idéia. Pois para
todos nós tem validade a frase de Goethe:
"Assim como és, é teu Deus. Por isso se converte muitas vezes a divindade em escárnio".

II

Não são as idéias, quer lhes atribuamos uma origem divina ou uma origem humana, que causam a nossa infelicidade, mas a falta de idéias, a petrificação
paulatina das concepções viventes em dogmas mortos que asfixiam o espírito e fazem perder a capacidade para a ação. Idéias que influem em nosso desenvolvimento
espiritual, surgem sempre das circunstâncias da época e de certas necessidades da vida como o fruto da flor na árvore. As idéias não se movem no ar; brotam
das condições do ambiente material circundante em que vivemos e reacionam sobre ele, ajudando-nos a modificá-lo. Surgem novas idéias sempre que o tempo
amadurece para elas. Unimo-las freqüentemente ao nome de alguns indivíduos e esquecemos muito freqüentemente sua formação gradual, antes de adquirir uma
forma determinada através da energia intelectual de um homem de gênio.
A idéia da evolução não foi inventada por Darwin. Teve uma grande quantidade de precursores em todos os povos de nosso círculo cultural, entre eles
Diderot, Treviranus, Lametrie, Buffon, Goethe, Lamarck, etc., antes que Darwin e Wallace resumissem as experiências de seus predecessores e as próprias.
O chamado marxismo, que não só teve influência sobre o movimento socialista, mas também sobre o pensamento econômico e histórico de um determinadò período,
não nasceu em todas as suas partes integrantes do cérebro de Marx. Encontramos os fundamentos da "interpretação materialista da história", da "teoria da
plus-valia", da doutrina da "concentração do capital", etc., nos escritos de Saint-Simon, Bazard, Considérant, Vidal, Pecquer, Louis Blanc, William Thompson,
Proudhon e muitos outros. O mérito de Marx consiste em ter resumido os rudimentos de seus predecessores de maneira coesa e fecundá-los com os próprios.
Mas o fato de tê-los formulado como lei absoluta, determinante de todo o desenvolvimento da humanidade, foi sua fatalidade, pois criou com essa fé no absoluto
um dogma que, em mãos de seus adeptos, impediu todo o desenvolvimento ulterior.
As idéias são sempre boas, enquanto o espírito vive nelas e estimula os homens a pensar por sua própria conta. Perdem sua fecundidade natural quando
degeneram em dogma morto e cessam realmente assim de ser idéias. Pelo fato de Hitler e Stalin terem querido suplantar a Deus, como afirma Miss Thompson,
não chegaram a ser açoites da humanidade mas homens sem idéias que intentam impor ao mundo um dogma morto, o dogma do Estado totalitário, e querem obrigar
os homens, com cego fanatismo e violência brutal, a reconhecer sua loucura. A crença no absoluto é o maior obstáculo para todo desenvolvimento espiritual.
Lessing, o grande sábio, disse uma vez: "Se Deus viesse a mim, com a verdade absoluta numa das mãos e a aspiração à verdade na outra, e me dissesse:
'Escolhe meu filho', eu lhe responderia: 'A verdade absoluta, Senhor, conserva-a para ti, pois todo o absoluto está feito para os deuses. A mim, dá-me
a eterna aspiração à verdade, pois nela está a dignidade humana'". Nestas palavras está contido todo o programa do homem que pensa e luta em todos os tempos
e países. Não há perfeição absoluta; há uma aspiração à verdade. Nem a religião nem a ciência nem a filosofia podem dar-nos a verdade absoluta, mas apenas
esclarecimentos que hoje são exatos e amanhã são relegados por novas interpretações. É o espírito somente o que gera sempre nova mutação e dá à nossa existência
finalidade e conteúdo. Mas o espírito só opera em liberdade; por isso odeia o absoluto e compreende que as coisas não possuem mais que um valor relativo.
Também Dorothy Thompson compreende isso. Por isso fala de um novo espírito que há de chegar aos seres humanos para criar os rudimentos de um novo mundo
depois do dilúvio vermelho. Compara a atual catástrofe com a decadência de Roma e prevê o "derrubamento de instituições, valores, classes, sistemas econômicos
e políticos". Mas essa perspectiva não a torna pessimista: olha, ao contrário, com maior esperança para o futuro. Isto é alentador nesta época tenebrosa.
Tem razão quando diz: "A terrível e dramática contradição de nosso tempo é que existe nele muito mal e outro tanto bem; é a época da desesperação, mas
também a época da esperança". Palavras formosas e nobres, ante as quais podem tonificar-se as almas cansadas que perderam a fé num melhor porvir.
Mas o espíirito que há de vir para nós, não será o do passado, mas o do futuro. Um ancião pode pensar em sua juventude com muda nostalgia, mas não
volverá a ela. Como viveu sua própria vida, assim tem de morrer sua própria morte. Depois da grande catástrofe das guerras napoleônicas, peregrinaram centenas,
milhares de jovens artistas, filósofos e antigos revolucionários a Roma para voltar ao seio da Igreja. O que encontraram ali não foi o Deus que buscavam,
mas a "Santa Aliança" da reação social, o domínio de Metternich, que substituiu Napoleão e fez da Europa um cemitério intelectual. Somente as revoluções
de 1848-1849 suprimiram esse obstáculo e deram aos povos novas esperanças.
Inclusive a idéia mais fecunda pode terminar em dogma morto, não somente na religião, mas também na ciência, na filosofia, em todo o domínio da vida
espiritual. Só o espírito livre libera, o dogma escraviza. O espírito suspende sua obra, começa a escravidão voluntária, incapaz de toda sublevação. O
dogmático forja as próprias cadeias e alivia o trabalho dos tiranos. Adapta-se às coisas dadas e renuncia à aspiração da verdade; esquece sua dignidade
humana. O mundo pende dele como uma pedra ao colo, pois sente-se uma parte do eterno movimento de todas as coisas, que não reconhece um ponto morto. Dorothy
Thompson tem razão quando fala de um novo espírito para dar à nossa vida novos valores espirituais e materiais e penetra todas as nossas aspirações com
o anelo de uma grande sensibilidade ética. Importa pouco o nome que se lhe dê, enquanto se compreenda que ser homem é ser combatente ardoroso.
Só cria novos valores o que não se extravia no labirinto de conceitos do passado e vê na liberdade o único valor da vida. Mas o novo de que necessitamos
está à nossa frente, e não atrás. Do Oriente sai o sol, no Ocidente se põe.

Considerações sobre o imperialismo inglês

O pior tirano é a frase feita! É um déspota sem espírito; por isso apela mais poderosamente aos seres sem alma, que se alimentam com grande esforço
dos desperdícios de pensamentos reais. Os escritores marxistas têm enchido bibliotecas inteiras sobre a significação do imperialismo como última forma
historicamente necessária do desenvolvimento capitalista, que nos tem de conduzir tão inevitavelmente ao socialismo com um trem rápido de uma cidade a
outra. Um amigo da Suécia me enviou há pouco um folheto sobre o imperialismo inglês como causa da guerra atual. O autor, naturalmente um stalinista, quis
provar, com ajuda de supostos "fatos", que a Inglaterra preparou a guerra há muito tempo e que privou a Alemanha de toda possibilidade de alimentar sua
população excessiva. Bastaria o governo inglês ceder algumas de suas colônias a Hitler e toda a catástrofe teria sido evitada. É a velha canção que nos
canta a imprensa comunista desde a aliança germano-russa, canção que não deixou de causar efeito entre os comunistas. Vale a pena, pois, analisar as coisas
mais intimamente.
Antes de tudo, é uma afirmação inteiramente falsa essa de que o imperialismo é uma conseqüência lógica do desenvolvimento capitalista. Existiam estados
imperialistas quando não se podia falar de capitalismo no sentido atual. Impérios antigos como Pérsia, Babilônia e Roma se afirmavam completamente sobre
a política do imperialismo: Um "império" é um Estado que trata de fazer tributários seus, por meio da conquista, a outros países, e domina politicamente
e explora economicamente esses países desde um centro determinado ou metrópole, sem garantir-lhes independência alguma. Também a Inglaterra foi, em outros
tempos, um Estado imperialista dessa espécie. Suas colônias eram administradas de Londres e organizadas ali economicamente ou cedidas como monopólios.
Foi isso que moveu as colônias inglesas norte-americanas em 1775 a rebelarem-se contra a metrópole, de onde surgiram os Estados Unidos.
Mas essa condição se modificou há muito tempo, muito embora haja ainda seres a quem as árvores não deixam ver o bosque. O desenvolvimento imperialista
da Inglaterra não conduziu certamente ao socialismo, como devera acontecer, de acordo com a concepção materialista da história, mas a uma superação do
imperialismp como tal. As antigas colônias se converteram em Estados independentes, com exceção da Índia; mas também ali começou há muito tempo esse desenvolvimento
e, sem dúvida, terá o mesmo curso que em outras colônias. O império inglês não é já um "império" no sentido que tem essa palavra, mas uma federação de
Estados independentes, muito mais independentes em suas decisões que cada um dos 48 Estados da União norte-americana. Canadá, Austrália, Nova Zelândia,
a União Sul-Africana têm governos próprios, legislação própria, política comercial própria, sistema tributário próprio, até leis de imigração próprias,
segundo as quais podem ser expulsos de seus territórios até os ingleses, se esses Estados julgarem conveniente. A Inglaterra não tem sequer o direito de
obrigar os seus "Domínios" a participar em suas guerras. A melhor prova está na Irlanda, que, como domínio britânico, declarou-se neutra na guerra atual
e segue mantendo um representante em Berlim.
O que mantém essa liga de Estados independentes não é a coação da metrópole, mas os pactos livres que se apresentam em cada parlamento dos Domínios,
pactos nos quais a Grã-Bretanha possui os mesmos direitos que qualquer outra parte do império inglês. Existem principalmente três causas como base dessa
federação dos Estados britânicos: 1) A cultura comum e as tradições democráticas que ligam as antigas colônias à mãe pátria; 2) As vantagens econômicas
que se oferecem ao Domínio Federado, e das quais não é a Inglaterra, de modo algum, o único beneficiário; 3) A segurança que garante a cada uma das partes.
Sem essa segurança, Austrália e Nova Zelândia há muito que teriam sido presa do Estado militar japonês, e tampouco haveria sido firme a independência da
União Sul-Africana. Todos os Estados imperialistas sucumbiram no decorrer do tempo porque não fizeram concessões às suas colônias e as impulsionaram dessa
maneira à rebelião aberta contra a metrópole. A Espanha, que foi o maior país colonial do mundo, perdeu por essa causa todas as suas possessões. O mesmo
se teria dado, sem dúvida, com o império mundial britânico se não tivesse posto um limite, por própria decisão, às suas aspirações imperialistas, compreendendo
muito bem que uma federação de Estados livres é melhor garantia para a existência do império que a espada da conquista.
O mesmo não ocorre com a Alemanha. Para Hitler e seus aliados fascistas esta guerra é uma guerra imperialista em todo o sentido da palavra. Seu livro
"Mein Kampf" é a alta canção do imperialismo. Fez ali o propósito de repartir, com a Alemanha e a Itália, o domínio sobre a Europa, e suprimir a França
como nação independente. E como não conseguiu alcançar esse objetivo de acordo com a Grã-Bretanha, intenta realizá-lo contra a Grã-Bretanha e destruir
a comunidade britânica de Estados. Hitler não dissimulou nunca essas aspirações e intentou, ainda, dar-lhes uma justificação teórica, declarando que a
raça alemã está chamada pela história a dominar todos os povos. A nova ordem desejada para a Europa é a ordem da "raça dos amos", para encadear todos os
outros povos ao jugo da escravidão total e impor-lhes sua vontade com a ponta das baionetas.
Há apenas umas semanas declarou o ministro alemão de economia, dr. Funck, o seguinte: "A futura economia de paz tem de garantir ao Grande Reich Alemão
um máximo de segurança e ao povo alemão um máximo de produtos de consumo para aumentar seu bem-estar. Toda a economia européia tem de orientar-se segundo
esse propósito".
Em outras palavras: os alemães, o povo eleito; Berlim, o coração do mundo; e os outros povos, rebanhos de gado, bons somente para serem ordenhados
ou devorados pela hoste organizada de ladrões. Magnífico futuro, certamente! A barbárie como princípio! O cárcere como símbolo da segurança! O látego como
cetro da nova ordem!
Os gladiadores da antiga Roma iam ao circo ao grito de "Ave, César, os que vão morrer te saúdam!" Por que não haveriam de ir os povos da Europa ao
matadouro ao grito de "Heil Hitler"?
E de repente apresenta-se um qualquer, que não sabe o que é imperialismo, que não tem nenhuma idéia do que é economia e história e anuncia ao mundo
que bastaria o imperialismo inglês ceder à Alemanha algumas de suas colônias para impedir a guerra. O bom homem dormiu quase cinqüenta anos; do contrário
saberia que a Inglaterra não está em condições de oferecer colônias que já não possui e às quais não pode impor normas, nem política nem legalmente. Nada
supera a sabedoria do oráculo de Moscou.

II

Nossas considerações sobre o desenvolvimento do imperialismo inglês para a qualidade de federação de Estados independentes seriam incompletas se deixássemos
à margem as relações atuais do governo britânico com a Índia. São precisamente essas relações as que proporcionam à imprensa comunista a melhor matéria
para seus ataques contra o imperialismo britânico, dando-lhe ocasião de comparar a "tirania britânica" com a excelência da União das Repúblicas Socialistas
dos Sovietes. Também neste aspecto é preciso distinguir claramente entre os fatos históricos do passado e o estado atual de coisas que surgiu daqueles
fatos lentamente. Pode julgar-se como quiser a história do domínio inglês na Índia, mas afirmar que ali não mudou nada desde a época de Robert Clive, é
um verdadeiro absurdo e uma incurável cegueira ante o progresso da história.
É certo que a Índia se encontra desde os últimos cinqüenta anos no mesmo caminho de desenvolvimento político que conduziu, em última instância, à transformação
das antigas colônias em membros independentes do império britânico. Depende das circunstâncias distintas, que esse desenvolvimento da Índia não se tenha
realizado com a mesma celeridade que nas outras colônias. Antes de tudo não se deve esquecer que os primeiros colonos do Canadá, da Austrália, da União
Sul-Africana, etc., chegaram da metrópole e estavam ligados a ela pelos costumes, religião, concepções políticas e hábitos sociais. Por isso o desenvolvimento
geral pôde realizar-se ali muito mais fácil e espontaneamente. Mas a Índia, um país com 375 milhões de habitantes e 225 idiomas, que se distinguem da Inglaterra
não só pela raça, pela história, religião e costumes, mas que se decompõe em centenas de tribos e grupos étnicos, era impossível que pudesse levar a cabo
essa evolução no mesmo tempo que as outras colônias inglesas. Não só há na Índia uma imensidade de povos distintos, mas também toda uma série de civilizações
diversas.
Quando o inglês Allan O. Hume organizou em 1885 o Congresso Nacional da Índia, que hoje é a alma do movimento de unificação nacional hindu, acreditava
poder associar todos os povos da Índia numa só nação, para que desfrutasse dentro do império britânico da mesma independência dos atuais Domínios. Mas
teve de reconhecer muito cedo que sua idéia era um mero sonho. O novo movimento não só se cindiu logo numa tendência moderada e numa tendência radical,
como foi muito obstaculizado em seu desenvolvimento por toda uma série de contradições religiosas e sociais, que até hoje não foram superadas, embora a
poderosa propaganda de Gandhi tenha contribuído muito para uma nivelação. Contudo, existe ainda junto ao grande movimento do Congresso Nacional da Índia,
a Liga Islâmica, que representa a parte maometana da população e aspira a um Estado autônomo para ela. O problema, segundo toda probabilidade, só poderá
resolver-se por uma federação de povos da Índia, reconhecida pela Inglaterra como Domínio independente.
Essa mudança da situação é inevitável. Começou já em 1917, quando a Inglaterra, sob a pressão do movimento nacional, resolveu elaborar para a Índia
uma nova Constituição sobre a base de um governo responsável. Desde então a reforma da Índia não se paralisou, e nem sequer os conservadores ingleses puderam
resistir-lhe; ao contrário, seus intentos de resistência aceleraram mais o movimento, pois provocaram distúrbios no país, que o governo, mais tarde, não
pôde conter senão mediante novas concessões. Em sua política comercial e em relação com sua administração financeira, a Índia é já independente e tem,
como os Domínios britânicos, direito a tarifas aduaneiras próprias.
Politicamente, a Índia nunca teve administração unitária. Uma parte de suas províncias esteve diretamente sob a administração inglesa; outra foi governada
pelos príncipes hindus, dependentes da administração central inglesa. Nas primeiras, quer dizer, nas províncias como Assam, Bengala, Madrasta, Bihar, Orissa,
Sind, Bombaim, etc., existe já hoje uma auto-administração política bastante ampla, e também nas outras se observa cada vez mais fortemente esse desenvolvimento,
especialmente depois da conferência chamada da "Round Table" em Londres, 1930-31. Neste aspecto, tampouco a Índia é já, no velho sentido, uma "colônia
da coroa", mas um país ineludivelmente destinado a ocupar seu posto entre os Domínios britânicos num prazo mais ou menos curto. A guerra atual interrompeu
esse processo até certo grau, mas só poderia ser paralisado se o próprio império britânico fosse derrubado.
O atual movimento nacional da Índia, que quer a independência do país, e cujo órgão é o Congresso Nacional da Índia, compõe-se da tendência moderada
de Gandhi e da tendência radical, representada por Nehru. Ambas as tendências aspiram a uma federação democrática dos povos hindus sobre a base de um governo
independente e da igualdade política de todas as castas, raças, religiões e classes. Tanto Gandhi como Nehru são adversários declarados de toda ditadura,
e até Nehru, que é muito mais hostil ao governo inglês que Gandhi, declarou há pouco em seu periódico "The National Herald", que não é possível nenhuma
paz "enquanto a maldição do hitlerismo não tenha sido extirpada da face da humanidade".
Ambas as tendências acusaram reiteradamente o governo inglês de ter retardado intencionalmente o processo de auto-administração; contudo, especialmente
Gandhi, cuja influência é sempre a mais forte, está firmemente convencido de que a Índia só pode alcançar sua liberdade como Domínio independente dentro
do império britânico, se é que o país não quer cair vítima das aspirações imperialistas da Rússia, do Japão ou da Alemanha. Somente por esse caminho é
possível, segundo Gandhi, um desenvolvimento ulterior sobre o caminho da libertação econômica e social.
Em comparação com a famosa União das Repúblicas Soviéticas Russas, a Índia é inclusive nas condições atuais, um paraíso de liberdade e de independência.
Nenhuma das repúblicas russas poderia atrever-se a suplantar, dentro de suas fronteiras, a ditadura de Stalin por outro regime. Nenhuma poderia, junto
ao partido comunista, consentir na existência de outro partido. O movimento hindu da independência tem, ao menos, ò direito a manifestar-se pela palavra
e por escrito em prol de suas aspirações. Na Rússia nem sequer poderia sonhar com semelhante possibilidade. Não se liberta a seres humanos submetendo-os,
todos, à mesma tirania. Sem a plena liberdade da decisão própria, toda "união" política não é mais que letra morta e um despudorado jogo com falsos fatos,
que tem tão pouco que ver com a realidade da vida como o coaxar de uma rã com a nona sinfonia.

Marx e o anarquismo

HÁ alguns anos, pouco depois da morte de Frederico Engels, o sr. Eduardo Bernstein, um dos membros mais conspícuos da comunidade marxista, assombrou
seus companheiros com uns descobrimentos notáveis. Bernstein manifestou publicamente suas dúvidas a respeito da exatidão da interpretação materialista
da história, da teoria marxista da plus-valia e da concentração do capital; ate atacou o método dialético, chegando à conclusão de que não era possível
falar de um socialismo crítico. Homem prudente, Bernstein reservou para si seus descobrimentos até quando morresse o velho Engels, e só então os tornou
públicos ante o espanto dos sacerdotes marxistas. Mas nem sequer essa prudência pôde salvá-lo, pois foi atacado por todos os lados. Kautsky escreveu um
livro contra o herege e o pobre Eduardo viu-se obrigado a declarar no congresso de Hannover que era débil pecador mortal e que se submetia à decisão da
maioria científica.
Entretanto, Bernstein não tinha revelado nada de novo. As razões que expunha contra os fundamentos da doutrina marxista já existiam quando ele ainda
seguia sendo apóstolo fiel da igreja marxista. Esses argumentos tinham sido retirados da literatura anarquista e o único importante era o fato de que um
dos social-democratas mais conhecidos se valesse deles pela primeira vez. Nenhuma pessoa sensata negará que a crítica de Bernstein deixara de produzir
uma impressão inesquecível no campo marxista; Bernstein tinha tocado nos alicerces mais importantes da economia metafísica de Karl Marx e não é estranho
que os respeitáveis representantes do marxismo ortodoxo se tivessem alvoroçado.
Não teria sido tão grave tudo isso se não interviesse um outro inconveniente pior que o anterior. Há mais de meio século os marxistas não deixam de
pregar que Marx e Engels foram os descobridores do chamado socialismo científico. Inventou-se uma distinção artificial entre os socialistas intitulados
de utópicos e o socialismo científico dos marxistas, diferença que existe tão-somente na imaginação destes últimos. Nos países germânicos a literatura
socialista foi monopolizada pelas teorias marxistas e todo social-democrata as considera como produtos puros e absolutamente originais dos descobrimentos
científicos de Marx e Engels.
Mas também este sonho se desvaneceu; as investigações históricas modernas estabeleceram, de uma maneira inconteste, que o socialismo científico não
é mais que uma resultante dos antigos socialistas ingleses e franceses e que Marx e Engels conheceram perfeitamente a arte de se vestirem com penas alheias.
Depois das revoluções da 1848, iniciou-se na Europa uma reação terrível; a Santa Aliança voltou a estender suas redes em todos os países com o propósito
de afogar o pensamento socialista, que tão riquíssima literatura produziu na França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Itália. Tal literatura foi
quase totalmente relegada ao esquecimento durante essa época de obscurantismo que começou depois de 1848. Muitas das obras mais importantes foram destruídas
até reduzir-se o seu número a poucos exemplares que acharam abrigo nalgum lugar tranqüilo de certas grandes bibliotecas públicas ou de algumas particulares.
Só no espaço dos últimos vinte e cinco ou trinta anos, essa literatura foi novamente descoberta e hoje causam admiração as idéias fecundas que se encontram
nos velhos escritos das escolas posteriores a Fourier e Saint-Simon, nas obras de Considérant, Desami, Mey e muitos outros. E nessa literatura se achou
também a origem do chamado socialismo científico. Nosso velho amigo W. Tcherkesoff foi o primeiro a oferecer um conjunto sistemático de todos os fatos;
demonstrou que Marx e Engels não são os inventores dessas teorias que durante tanto tempo foram consideradas como seu patrimônio intelectual; até chegou
a provar que alguns dos mais famosos trabalhos marxistas, como por exemplo o Manifesto Comunista, na realidade são apenas traduções livres do francês feitas
por Marx e Engels. E Tcherkesoff obteve o triunfo de ver suas afirmações a respeito do Manifesto Comunista reconhecidas pelo "Avanti", o órgão central
da social-democracia italiana, depois de ter tido o autor a oportunidade de comparar o Manifesto Comunista com o Manifesto da Democracia de Victor Considérant,
que apareceu cinco anos antes que o opúsculo de Marx e Engels.
O Manifesto Comunista é considerado como uma das primeiras obras do socialismo científico e o conteúdo desse trabalho foi tirado dos escritos de um
"utopista", pois o marxismo inclui a Fourier entre os socialistas utópicos. É esta uma das ironias mais amargas que se possa imaginar e não constitui,
certamente, uma recomendação favorável para o valor científico do marxismo. Victor Considérant foi um dos primeiros escritores socialistas que Marx conheceu;
mencionava-o até na época em que não era socialista. Em 1842, a "Allgemeine Zeitung" atacou a "Rheinische Zeitung", da qual Marx era redator-chefe, acusando-a
de simpatizar-se com o comunismo. Marx respondeu então com um editorial em que declarava o seguinte:
"Obras como as de Leroux, Considérant e especialmente o livro perspicaz de Proudhon não podem ser criticadas com algumas observações superficiais e
é preciso estudá-las detidamente antes de entrar a criticá-las".
O socialismo francês exerceu a maior influência sobre a desenvolvimento intelectual de Marx, mas de todos os escritores socialistas da França é P.
J. Proudhon quem mais poderosamente influiu em seu espírito. Até é evidente que o livro de Proudhon "Que é a propriedade?" induziu a Marx a abraçar o socialismo.
As observações críticas de Proudhon sobre a economia nacional e as diversas tendências socialistas descerraram ante Marx um mundo novo e foi principalmente
a teoria da plus-valia, tal como foi desenvolvida pelo genial socialista francês, que maior impressão causou na mente de Marx. A origem da doutrina da
plus-valía, esse grandioso "descobrimento científico" de que tanto se orgulham os nossos marxistas, achamo-la nos escritos de Proudhon. Graças a este,
Marx chegou a conhecer essa teoria, que modificou mais tarde mediante o estudo dos socialistas ingleses Bray e Thompson.
Marx reconheceu até publicamente a grande significação científica de Proudhon e num livro especial, hoje completamente desaparecido da venda, chama
a obra daquele "Que é a propriedade?" o "primeiro manifesto científico do proletariado francês". Essa obra não voltou a ser editada pelos marxistas, nem
foi traduzida em outro idioma, apesar de os representantes oficiais do marxismo terem feito os maiores esforços para difundir em todas as línguas os escritos
de seu mestre. Este livro foi esquecido, e sabe-se por que: sua reimpressão descobriria ao mundo o colossal contra-senso e a insignificância de tudo quanto
Marx escreveu mais tarde sobre o eminente teórico do anarquismo.
Marx não somente tinha sido influenciado pelas idéias econômicas de Proudhon, como também se sentiu influído pelas teorias anárquicas do grande socialista
francês e em um de seus trabalhos daquele período combate o Estado na mesma forma em que o fizera Proudhon.

II

Todos os que tenham estudado atentamente a evolução socialista de Marx deverão reconhecer que a obra de Proudhon "Que é a propriedade?" foi a que o
converteu ao socialismo. Os que não conhecem de perto os pormenores dessa evolução e aqueles que não tiveram oportunidade de ler os primeiros trabalhos
socialistas de Marx e Engels julgarão estranhas e inverossímeis essas afirmações. Porque em seus trabalhos posteriores Marx fala de Proudhon com sarcasmo
e desprezo e são precisamente estes escritos os que a social-democracia voltou a publicar e a reimprimir constantemente.
Deste modo tomou corpo a pouco e pouco a opinião de que Marx foi desde o princípio o adversário teórico de Proudhon e que nunca existiu entre ambos,
ponto de contacto algum. E verdadeiramente, quando se lê o que o primeiro deles escreveu a respeito do segundo em seu conhecido livro Miséria da Filosofia,
no Manifesto Comunista e na necrologia que publicou no "Sozialdemokrat" de Berlim pouco depois da morte de Proudhon, não é possível ter outra opinião.
Na "Miséria da Filosofia" ataca a Proudhon da pior maneira; valendo-se de todos os recursos para demonstrar que as idéias daquele carecem de valor
e que não têm nenhuma importância nem como socialista nem como crítico da economia política.
"O senhor Proudhon - diz - tem a desgraça de ser compreendido de um modo estranho: na França tem o direito de ser um mau economista, porque ali é considerado
um bom filósofo alemão. Na Alemanha pode ser considerado um mau filósofo embora seja considerado o melhor economista francês. Na minha qualidade de alemão
e economista vejo-me obrigado a protestar contra este duplo erro".
E Marx vai mais longe ainda: acusa a Proudhon sem oferecer nenhum prova, de ter plagiado suas idéias do economista inglês Bray. Escreve:
"Cremos ter achado no livro de Bray a chave de todos os trabalhos passados, presentes e futuros do senhor Proudhon".
É interessante observar como Marx, que tantas vezes utilizava de idéias alheias e cujo Manifesto Comunista não é na realidade senão uma cópia do Manifesto
da Democracia de Victor Considérant, denuncia os outros como plagiários.
Mas prossigamos. No Manifesto Comunista, Marx apresenta Proudhon como representante burguês e conservador. E na necrologia que escreveu no "Sozialdemokrat"
(1865) lemos as seguintes palavras:
"Numa história rigorosamente científica da economia política, esse livro (refere-se a 'Que é a propriedade?') apenas mereceria ser mencionado. Porque
semelhantes obras sensacionais desempenham nas ciências exatamente o mesmo papel que na literatura novelesca".
E nesse mesmo artigo necrológico, reitera Marx sua afirmação de que Proudhon carece de todo valor como socialista e como economista, opinião já emitida
na "Miséria da Filosofia".
Fácil é compreender que semelhantes asserções, que Marx lançava contra Proudhon, tinham de divulgar a crença, melhor a convicção, de que entre ele
e o grande escritor francês não existiu nunca o menor parentesco. Na Alemanha, Proudhon é quase totalmente desconhecido. As edições alemãs de suas obras,
feitas mais ou menos em 1840, estão esgotadas. O único livro seu que voltou a ser publicado em alemão é "Que é a propriedade?" e ainda esta edição foi
difundida apenas num círculo restrito. Esta circunstância explica o fato de que Marx tenha conseguido desfazer os traços de sua primeira evolução como
socialista. Que seu conceito de Proudhon era bem distinto, a princípio, já tivemos oportunidade de ver mais acima e as conclusões que seguem corroborarão
nossa assertiva.
Sendo redator-chefe da "Rheinische Zeitung", um dos periódicos principais da democracia alemã, Marx chegou a conhecer os escritores socialistas mais
importantes da França, embora ele ainda não fosse socialista. Já mencionamos numa citação sua que alude a Victor Considérant, Pierre Leroux e Proudhon
e não cabe dúvida que Considérant e especialmente Proudhon foram os mestres que o atraíram ao socialismo. "Que é a propriedade?" exerceu sem dúvida alguma,
a maior influência no desenvolvimento socialista de Marx; assim, no periódico mencionado, chama o genial Proudhon "o mais conseqüente e sagaz dos escritores
socialistas". Em 1843 a "Rheinische Zeitung" foi suprimida pela censura prussiana; Marx partiu para o estrangeiro e durante esse período evolui para o
socialismo. Tal evolução nota-se muito bem em suas cartas ao conhecido escritor Arnold Ruge e melhor ainda em sua obra "A Sagrada Família" ou "crítica
da crítica crítica", que publicou conjuntamente com Frederico Engels. O livro apareceu em 1846 e tinha por objeto polemizar contra a nova tendência do
pensador alemão Bruno Bauer. Além das questões filosóficas, essa obra se ocupa também de economia política e de socialismo e são precisamente essas partes
as que nos interessam aqui.
De todos os trabalhos que publicaram Marx e Engels é a "A Sagrada Família" o único que não foi traduzido para outros idiomas e do qual os socialistas
alemães não fizeram outra edição. É verdade que Franz Mehring, herdeiro literário de Marx e Engels, publicou, por encargo do Partido socialista alemão,
a "Sagrada Família" junto com outros escritos correspondentes ao primeiro período de atuação socialista dos autores, mas isto se fez sessenta anos depois
de ter saído a primeira edição, e por outra parte, a reedição estava destinada aos especialistas, pois seu custo era excessivo para um trabalhador. Fora
disso, Proudhon é tão escassamente conhecido na Alemanha que muito poucos terão sido os que se tenham dado conta da profunda discrepância que há entre
os primeiros conceitos que Marx emitiu sobre ele e os que sustentou mais tarde.
E contudo este livro demonstra claramente o processo evolutivo do socialismo de Marx e o influxo poderoso que nele exerceu Proudhon. Tudo o que os
marxistas atribuíram depois a seu mestre, Marx o reconhecia, na "A Sagrada Família", como mérito de Proudhon.
Vejamos o que diz a este respeito na pág. 36:
"Todo desenvolvimento da economia nacional considera a propriedade privada como hipótese inevitável, esta hipótese constitui para ela um fator incontestável
que nem sequer trata de investigar e ao qual só se refere acidentalmente, segundo a ingênua expressão de Say. Proudhon propôs-se analisar, de um modo crítico,
à base da economia nacional, a propriedade privada, e foi a sua primeira investigação enérgica, considerável e científica ao mesmo tempo. Nisto consiste
o notável progresso científico que realizou, progresso que revolucionou a economia nacional, criando a possibilidade de fazer dela uma verdadeira ciência,
'Que é a propriedade?' de Proudhon tem para a economia a mesma importância que a obra de Say 'Que é o terceiro estado?' teve para a política moderna".
É interessante comparar estas palavras de Marx com as que escreveu depois acerca do grande teórico anarquista. Na "A Sagrada Família" diz que "Que
é a propriedade?" foi a primeira análise científica da propriedade privada e que deu a possibilidade de fazer da economia nacional uma verdadeira ciência;
mas em sua conhecida necrológio, publicada no "Sozialdemokrat", o mesmo Marx assegura que numa história rigorosamente científica da economia essa obra
apenas merece ser mencionada.
Onde está a causa de semelhante contradição? Tal pergunta os representantes do chamado socialismo científico não esclareceram ainda. Na realidade,
há apenas uma resposta: Marx queria ocultar a fonte de onde havia bebido. Todos os que tenham estudado a questão e não se sintam arrastados pelo fanatismo
partidarista terão de reconhecer que esta explicação não é caprichosa.
Sigamos ouvindo o que manifesta Marx sobre a importância histórica de Proudhon. Na pág. 52 do mesmo livro, lemos:
"Proudhon não somente escreve em favor dos proletários, como ele mesmo é também um proletário, um operário; sua obra é um manifesto científico do proletariado
francês".
Aqui, como se vê, Marx expressa em termos precisos que Proudhon é um expoente do socialismo proletário e que sua obra constitui um manifesto científico
do proletariado francês. Contudo, no Manifesto Comunista, assegura que Proudhon encarna o socialismo burguês e conservador. Cabe maior contradição? A quem
havemos de acreditar, no Marx da "A Sagrada Família" ou no autor do Manifesto Comunista? E a que se deve essa divergência? É uma pergunta que fazemos novamente
e, como é natural, a resposta é também a mesma: Marx queria ocultar ao mundo tudo o que devia a Proudhon e para ele qualquer meio era viável. Não pode
haver outra explicação para este fenômeno; os meios que Marx empregou mais tarde em sua luta contra Bakunine evidenciam que não era muito delicado na eleição
desses meios.

III

Quanto Marx foi influído pelas idéias de Proudhon e até por suas idéias anarquistas, demonstram-no seus escritos daquele período, por exemplo o artigo
que publicou no "Vorwaerts" de Paris.
O "Vorwaerts" era um periódico que aparecia na Capital francesa durante 1844-1845, sob a direção de Enrich Bernstein. Sua tendência era, a princípio,
liberal somente. Mais tarde, porém, depois da desaparição dos "Anais Germano-Franceses", Bernstein travou relações com os antigos colaboradores desta última
publicação, os quais o conquistaram para a causa socialista. Desde então o "Vorwaerts" converteu-se em órgão, oficial do socialismo e numerosos colaboradores
da extinta publicação de A. Ruge, entre eles Bakunine, Marx, Engels, Enrique Heine, Georg Herweg, etc., contribuíram com seus trabalhos.
No número 63 desse periódico (7 de agosto de 1844), Marx publicou um trabalho de polêmica "Anotações críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma
agrária'". Nele estuda a natureza do Estado e demonstra a incapacidade absoluta de um organismo para minorar a miséria social e para suprimir o pauperismo.
As idéias que o autor desenvolve nesse artigo são idéias puramente anarquistas e estão em perfeita concordância com os conceitos que Proudhon, Bakunine
e outros teóricos do anarquismo estabeleceram a esse respeito. Pelo seguinte extrato do estudo de Marx poderiam julgar os leitores:
"O Estado é incapaz de suprimir a miséria social e anular o pauperismo. E ainda quando se preocupa com este problema, se é que se decide a fazer algo,
não dispõe de outros recursos que a beneficência pública e as medidas de caráter administrativo e freqüentemente nem sequer isso.
Nenhum Estado pode proceder de outra forma; porque para suprimir a miséria deveria suprimir-se a si mesmo, pois a causa do mal reside, na essência,
na natureza do Estado, e não numa forma determinada dele como supõe muita gente radical e revolucionária que aspira a modificar essa forma por outra melhor.
É um gravíssimo erro acreditar que a miséria e os terríveis males do pauperismo podem ser curados mediante uma forma qualquer de Estado. Se o Estado
reconhece a existência de certos males sociais, trata de explicá-los, quer como leis naturais contra as quais nada pôde fazer o homem, ou então como resultados
da vida privada, na qual não pode imiscuir-se, ou, também, como defeitos da administração pública. Por isso, na Inglaterra, a miséria é considerada como
conseqüência de uma lei natural, segundo a qual os homens aumentam em proporção maior que os meios de vida. Outros afirmam que a má vontade dos pobres
é a causa de sua pobreza; o rei da Prússia, Frederico Guilherme I, vê a causa disso nos corações pouco cristãos dos ricos; e a Convençãp, o parlamento
revolucionário francês, sustenta que os males sociais são a conseqüência do pânico contra-revolucionário que demonstram os proprietários. Por conseguinte,
na Inglaterra, castigam-se os pobres, o rei da Prússia recorda aos ricos seus deveres cristãos e a Convenção francesa corta as cabeças dos proprietários.
Além disso, todos os Estados buscam a causa da miséria nos defeitos fortuitos ou intencionais da Administração e, portanto, acreditam possível reduzir
o mal mediante reformas administrativas. Mas o Estado não possui o poder de salvar a contradição existente entre a boa vontade da administração e sua capacidade
real; porque se assim fosse, teria que anular a si mesmo já que ele se baseia na contradição reinante entre a vida pública e privada, entre os interesses
gerais e os particulares. Por isso a Administração se acha limitada por uma função exclusivamente formal e negativa, pois onde principia a vida civil termina
o poder da Administração. O Estado não pode impedir jamais as conseqüências que se desenvolvem logicamente devido ao caráter anti-social da vida civil,
da propriedade privada, do comércio, da indústria e do despojo mútuo dos distintos grupos sociais. A vileza e a escravidão da sociedade burguesa constituem
o fundamento natural do Estado moderno. A existência do Estado e a da escravidão não podem ser separadas. Do mesmo modo que o antigo Estado e a escravidão
antiga - contradições clássicas e francas - estão intimamente vinculados entre si, assim também o Estado moderno e o atual mundo de mercadores - contradição
cristã e hipócrita - estão fortemente aferrados um ao outro".
Esta interpretação essencialmente anarquista da natureza do Estado, que parece tão estranha se se recordam as doutrinas posteriores de Marx, é uma
prova evidente da origem anárquica de sua primeira evolução socialista. No mencionado artigo se refletem os conceitos da crítica do Estado feita por Proudhon,
crítica que teve sua primeira expressão no famoso livro "Que é a Propriedade?". Esta obra imortal exerceu a influência mais decisiva na evolução do comunista
alemão, apesar de que ele se tenha esforçado por todos os meios - e não foram estes os mais nobres - em negar as primeiras fases de sua atuação como socialista.
Naturalmente, os marxistas apoiarão nisto o seu mestre e desta maneira desenvolve-se a pouco e pouco o falso conceito histórico acerca do caráter das primeiras
relações entre Marx e Proudhon.
Na Alemanha principalmente, sendo este quase desconhecido, puderam circular as mais estranhas afirmações neste sentido. Mas quanto mais se conhecem
as importantes obras da velha literatura socialista, tanto mais se nota tudo quanto o chamado socialismo científico deve àqueles "utópicos" que durante
tanto tempo foram esquecidos devido à propaganda gigantesca da escola marxista e de outros fatores que relegaram ao esquecimento a literatura socialista
do primeiro período. E um dos mestres mais importantes de Marx e que assentou as bases de toda a evolução posterior foi precisamente Proudhon, o anarquista
tão caluniado e mal compreendido pelos socialistas legalitários.

Social-democracia e anarquismo

A oposição entre a social-democracia e o anarquismo não reside tão-somente na diversidade de seus métodos táticos, mas primacialmente na diferença
de princípios. Trata-se de duas concepções distintas acerca da posição do indivíduo na sociedade, de duas interpretações diferentes do socialismo. Desta
diferença nas premissas teóricas, resulta por si só, a diferença na escolha dos métodos táticos.
A social-democracia, principalmente nos países germânicos e na Rússia, intitula-se, com preferência, de "socialismo científico" e aceita a doutrina
marxista que serve de base teórica ao seu programa. Seus representantes afirmam que o devir da sociedade deve ser considerado como uma série indefinida
de necessidades históricas cujas causas é preciso ir buscá-las nas condições de produção de cada momento. Estas necessidades acham sua expressão prática
na luta contínua de classes divididas em campos inimigos por interesses econômicos distintos. As condições econômicas, isto é, a forma em que os homens
produzem e trocam seus produtos, constituem a base férrea de todas as outras manifestações sociais ou, para empregar a frase de Marx, "a estrutura econômica
da sociedade é a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e a que responde uma determinada forma da consciência social".
As representações religiosas, as idéias, os princípios morais, as normas jurídicas, as manifestações volitivas, etc., são meros resultados das condições
de produção de cada momento, porque é "a forma de produção da vida material, que determina em absoluto o processo de vida social, política e psíquica".
Não é a consciência dos homens que plasma as condições em que vivem, mas ao contrário, são as condições econômicas que determinam sua consciência.
Assim considerando, o socialismo não é a invenção de algumas cabeças engenhosas, mas um produto lógico e inevitável do desenvolvimento capitalista.
O capitalismo deve criar primeiro as condições de produção - divisão do trabalho e centralização industrial - nas quais unicamente o socialismo pode realizar-se.
Sua realização não depende da vontade humana, mas apenas de um determinado grau de evolução das condições de produção.
O capitalismo é a premissa necessária e ineludível que deve conduzir ao socialismo; seu significado revolucionário reside precisamente em levar em
si, desde o princípio, o germe de sua própria destruição. A burguesia moderna, na qual o capitalismo se sustenta, teve de dar vida, para fundar seu poder,
ao proletariado moderno, criando assim seus próprios coveiros. Pois o desenvolvimento do capitalismo se efetua com o rigor de uma lei natural em linhas
perfeitamente determinadas das quais não há fuga possível. Pois está na essência desse desenvolvimento o absorver as empresas industriais pequenas e médias,
substituindo-as por empresas cada vez maiores de forma que as riquezas sociais se concentrem em número de mãos cada vez menor. Simultaneamente se realiza,
de modo impossível de conter, a proletarização da sociedade, até que, por fim, chega o momento em que se encontram frente a frente uma imensa maioria de
escravos assalariados e uma pequeníssima minoria de empresários capitalistas. E assim como chegará o tempo em que o capitalismo se tenha tornado um estorvo
para a produção, chegará necessariamente a época da revolução social, o momento em que se possa levar a cabo a "expropriação dos expropriadores".
Para que o proletariado esteja em condições de assumir a direção da terra e dos meios de produção deve apoderar-se primeiro do poder político, o qual,
depois de certa época de transição, isto é, depois da supressão total das classes, se irá extinguindo paulatinamente. A conquista do poder político é assim
a tarefa principal da classe operária e para preparar a realização desta obra é necessário que os trabalhadores se organizem em partido político independente
para a luta política contra a burguesia.
Desta maneira a social-democracia converteu a ação parlamentar no ponto central de sua propaganda, subordinando-lhe toda outra forma de ação. Sob a
influência da social-democracia alemã a maior parte dos partidos socialistas dos outros países adotaram em maior ou menor grau o mesmo caráter. No transcorrer
dos últimos cinqüenta anos conseguiram organizar em suas fileiras milhões de trabalhadores, colocar-se em todos os corpos legislativos do Estado moderno
de classes e penetrar em numerosos casos até o ramo executivo do governo.
Uma imprensa fortemente desenvolvida e uma propaganda impressa realizada em grande escala foram abrindo constantemente à social-democracia novos círculos
no mundo operário e na classe média. Esta obra é apoiada ainda por todo um exército de agitadores a soldo e empregados do partido que atuam no interesse
de suas respectivas organizações.
Pela exclusão dos anarquistas e de outras tendências que repudiam a ação parlamentar, a social-democracia alemã conseguiu ainda eliminar sistematicamente
toda oposição real nos congressos socialistas internacionais.
Desse modo, onde quer que lhe obedecessem massas operárias consideráveis, este partido se desenvolveu como um Estado dentro do Estado e por muitos
anos tem estado em condições de esmagar, com desconsideração sistemática e inescrupulosa, qualquer outra tendência socialista.
Somente a catástroíe terrível de 1914 revelou o verdadeiro caráter da social-democracia, destruiu seu prestígio internacional e abriu brecha num edifício
que parecia ser para sempre invulnerável a qualquer ataque.
O anarquismo, quer dizer, aquela tendência na ideologia do socialismo que se enfrenta mais irreconciliavelmente com a social-democracia, parte de outras
premissas nas suas idéias sobre as condições sociais e a posição do indivíduo na evolução histórica. Seus partidários, de maneira alguma, desconhecem a
poderosa influência das condições econômicas no processo geral da evolução social, mas também repelem a fórmula unilateral e fatalista que Marx deu a esta
comprovação. Antes de tudo são de opinião que na investigação e apreciação dos fenômenos sociais, pode-se proceder por métodos científicos, mas que de
nenhum modo é lícito considerar a história e a sociologia como ciências. A ciência somente reconhece aqueles fatos certos que foram irrefutavelmente estabelecidos
pela observação ou experimentação. Neste sentido somente podem considerar-se científicas as ciências chamadas "exatas", como a física, a química, etc.
A famosa lei da gravitação de Isaac Newton, em que se apoiam todos nossos cálculos astronômicos, é uma lei natural, científica, porque se verifica
em todos os casos e não admite jamais "a exceção da regra".
O desenvolvimento das formas sociais na história não se efetua todavia com a forçosa necessidade das leis da física. Podemos, na verdade, fazer conjeturas
sobre a conformação social das condições sociais do futuro e estabelecê-las cientificamente, como pode calcular-se o período de revolução de um planeta.
E é complicada e muito desconhecidos são ainda seus pormenores elementares para que possamos falar de uma lei natural férrea que possa servir de base para
apreciar, sequer com relativa certeza, as forças motrizes do devir histórico nos tempos passados ou talvez ainda para averiguar as formas sociais do futuro.
Por esta razão o socialismo não é uma ciência, não pode ser uma ciência e quando se fala de um "socialismo científico" é vã presunção e frívolo desconhecimento
dos verdadeiros princípios da ciência.
Quem aceita a concepção anarquista não compartilha da crença de que o desenvolvimento das condições econômicas deva conduzir indefectivelmente ao socialismo,
que o sistema capitalista leve já em si, por assim dizer, o germe do socialismo e que somente seja preciso esperar sua maturidade para que rasgue a envoltura.
Não verá nesta crença outra coisa senão a tradução do fatalismo religioso no campo da economia, o que se torna igualmente perigoso, pois ambas as crenças
paralisam o sentimento impulsivo e o instinto de ação e engendram em vez de uma visão viva em constante luta por ampliar suas perspectivas, a mesma e inflexível
fé dogmática. O anarquista de maneira alguma vê na divisão do trabalho e na centralização industrial as condições elementares do sistema capitalista de
exploração, agudamente opostas por sua própria essência ao socialismo. Bem pode conduzir-nos o desenvolvimento econômico a novas fases da existência social,
mas também poderá significar o ocaso de toda civilização. A horrível catástrofe da guerra mundial fala neste sentido uma linguagem eloqüente para todo
aquele que tenha ouvidos e queira ouvir. Se os povos da Europa não conseguem com seu esforço fazer surgir do caos presente formas novas e superiores da
civilização social nenhum profeta será capaz de prever a que abismo nos arrastará a fatalidade.
Não, o socialismo não virá porque deva vir com a inalterabilidade de uma lei natural; somente virá se os homens se armarem de firme vontade e forças
necessárias para pô-lo em prática.
Nem o tempo, nem as condições econômicas, somente nossa convicção interior, nossa vontade, poderá estender a ponte que conduza do mundo da escravidão
assalariada à terra nova do socialismo.
Tampouco compartilha o anarquista da opinião de que a evolução das formas sociais capitalistas constituem o necessário antecedente psicológico que
prepara a mentalidade do proletário. A Inglaterra, a pátria do capitalismo e da grande indústria, não provocou, apesar disto, um movimento socialista de
consideração, enquanto outros países de economia quase exclusivamente agrária, como a Andalusia e a Itália meridional, contam há muitos anos com fortes
organizações socialistas. O camponês russo, que trabalha ainda em condições primitivas de produção, está mais próximo da ideologia socialista porque está
vinculado com seus vizinhos muito mais intimamente que nós. O comunismo agrário que o camponês russo praticou por séculos implica uma constante colaboração
e solidariedade e desenvolveu assim um instinto social tal que dificilmente se encontrará igual no proletariado industrial da Europa ocidental e central.
Não obstante tudo isso os teóricos da social-democracia russa anunciaram em nome da ciência que as instituições comunais antiquadas da povoação rural
russa estão destinadas a desaparecer por não estarem em concordância com o desenvolvimento moderno e constituir em conseqüência um obstáculo para o socialismo.
Para os partidários do anarquismo, as formas de Estado e a legislação não são exclusivamente a superestrutura política da estrutura econômica da sociedade;
as idéias, os conceitos de justiça e outras formas da consciência humana não são meros produtos do processo produtivo de cada momento, mas fatores determinantes
do espírito humano que, se influídos pelas condições econômicas, reagem, porém, por sua vez, sobre essas mesmas condições econômicas da sociedade. Desta
forma se origina uma série infinita de efeitos recíprocos até ser freqüentemente impossível comprovar um fator básico. Podem ser consideradas como materiais
todas estas manifestações e pode supor-se com Proudhon que todo ideal é uma flor cujas raízes se encontram nas condições materiais da vida. Mas neste caso,
as condições econômicas seriam somente uma parte dessas chamadas condições materiais gerais: não constituiriam a base férrea, determinante do absoluto
processo evolutivo de todas as outras manifestações vitais da sociedade mas que estariam submetidas à mesma e nunca interrompida interação de todos os
demais fatores da vida material. Assim, por exemplo, o Estado seria, sem a menor dúvida, em primeiro lugar, um produto do monopólio privado da terra, instituição
nascida com a cisão da sociedade em distintas classes com interesses também distintos. Mas haveria também que admitir que uma vez existente dedica todas
as suas forças à perpetuação desse monopólio e à manutenção das diferenças entre as classes com o objetivo de conservar assim a escravidão econômica. Converteu-se
deste modo o Estado, no curso de sua evolução, no mais formidável organismo de exploração da humanidade. Tais efeitos recíprocos podem ser comprovados
à vontade em qualquer número e em todas as formas imagináveis; são, na verdade, característica na evolução histórica da humanidade e se tornam tão evidentes
que nossos neo-marxistas se vêem obrigados a fazer contínuas e novas concessões ante a crítica inexorável que vai destruindo sua interpretação da história.
Se para a social-democracia a conquista do poder político é a tarefa principal, prévia para a realização do socialismo, para o anarquismo é de importância
decisiva a supressão de todo poder político.
O Estado não se formou por um ato de vontade social, mas é uma instituição nascida numa determinada época da história humana como conseqüência do monopólio
e da divisão da sociedade em classes.
O Estado não surgiu para a defesa dos direitos da coletividade, mas exclusivamente para a defesa dos interesses materiais de pequenas minorias privilegiadas
a expensas da grande massa. O Estado não é outra coisa que o agente político das classes possuidoras, a força organizada que mantém em pé o sistema de
exploração econômica e o governo de classe.
Suas formas são variadas no curso da história mas sua índole essencial, sua missão histórica, é sempre a mesma. Para a grande massa do povo, o Estado,
em todo tempo e em qualquer de suas formas, somente constituiu um instrumento brutal de opressão; por isto é impossível que sirva alguma vez a essas mesmas
massas como instrumento de libertação. A social-democracia que, em seus diferentes matizes, está ainda empapada das idéias do jacobinismo, crê que é impossível
prescindir do Estado porque somente concebe a realização do socialismo de cima para baixo por meio de decretos e "ukases". O anarquismo, que aspira à destruição
do Estado, vê somente um caminho para a implantação do socialismo e esse caminho vai de baixo para cima, pela atividade criadora do próprio povo e com
a ajuda de suas organizações econômicas. Surge aqui uma questão em que aparece claramente a diferença fundamental entre ambas as tendências: a relativa
à posição do indivíduo na sociedade. Para os teóricos do socialismo, o indivíduo isolado é somente um elemento insubstancial na engrenagem geral da produção
social, uma "força de trabalho", instrumento inanimado da evolução econômica, que determina irrevocavelmente sua vida mental e suas manifestações volitivas.
Esta concepção é o resultado necessário de toda sua doutrina. Enquanto tratam do indivíduo, consideram-no sempre como um produto do meio social ao
qual aplicam, com todo o rigor, os conceitos gerais.
Os social-democratas amoldaram-se a uma determinada visão da realidade vivente e são de certa maneira vítimas de uma ilusão ótica quando confundem
a miragem de sua imaginação com a própria realidade.
Não vêem na evolução histórica senão as rodas mortas, o mecanismo exterior e esquecem assim muito facilmente que atrás das forças e condições de produção
há seres vivos, homens de carne e osso, com desejos, inclinações e idéias próprias e por isso as diferenças pessoais - que constituem depois de tudo a
verdadeira riqueza da vida - somente lhes parecem aditamento supérfluo e a própria vida, algo completamente descolorido e esquemático.
O anarquismo segue também aqui outros caminhos. O ponto de partida de suas especulações sociais é o indivíduo isolado: não o indivíduo como sombra
abstrata desligada de seu meio social, mas como ente social vinculado aos demais homens por mil laços materiais e espirituais.
Para apreciar o bem-estar social, a liberdade e a civilização de um povo, o anarquista não se fundamenta na produção quantitativa ou na "liberdade"
formal estabelecida em qualquer constituição nem no grau cultural de um determinado período. Trata-se de determinar, pelo contrário, a participação individual
que no bem-estar toca a cada ser, em que medida este se encontra em condições de satisfazer dentro do marco da coletividade suas inclinações, desejos e
necessidades de liberdade.
Segundo estes dados formulará seu juízo sobre o caráter geral da sociedade. Para o anarquista, a liberdade pessoal não é uma representação indefinida
e abstrata mas concebe-a pelo contrário como a possibilidade prática de que cada qual pode desenvolver suas forças, talentos e aptidões naturais. E como
reconhece na consciência da personalidade a expressão suprema do instinto de liberdade repele fundamentalmente todo princípio de autoridade, toda ideologia
da força bruta. A completa liberdade baseada na igualdade econômica e social é para ele a premissa única de um futuro digno do homem. Somente nestas condições
pode dar-se, segundo sua opinião, a possibilidade de que se desdobre até sua máxima florescência em cada homem o sentimento de responsabilidade pessoal
e de que se desenvolva nele a consciência viva da solidariedade em um grau tal que seus desejos e necessidades apareçam, por assim dizer, como resultado
de seus sentimentos sociais. Para o caráter dos movimentos sociais, sua forma libertária de organização é de importância decisiva, pois é a que melhor
responde à sua natureza íntima; assim é apenas natural que também neste sentido haja um abismo intransponível entre a social-democracia e o anarquismo.
Os partidários da social-democracia, que já se intitulam maioritários, independentes ou "comunistas", são, por íntima convicção, jacobinos, representantes
do princípio da centralização. Assim como a democracia é por sua própria índole centralista, de igual maneira o federalismo responde melhor à natureza
íntima do anarquismo.
O federalismo foi sempre a forma natural de organização de todas as correntes realmente sociais e das instituições baseadas nos interesses coletivos,
como foram, por exemplo, as federações livres das tribos nos tempos primitivos, as federações das cooperativas das feiras nos começos da Idade Média, as
guildas ou corporações de artesãos e artistas nas cidades livres e as uniões federativas das comunas livres, às quais deve a Europa uma cultura tão maravilhosa.
Estas eram formas de organização verdadeiramente sociais, na acepção ampla da palavra; nelas harmonizavam a livre atividade individual e os interesses
gerais da coletividade; eram agrupações humanas engendradas espontaneamente pelas necessidades da vida. Cada grupo era senhor de seus próprios assuntos
e estava federado ao mesmo tempo a outras corporações para a defesa e a prosperidade de seus interesses comuns. O interesse coletivo constituía o eixo
de suas aspirações e a organização de baixo para cima era a expressão mais acabada destas aspirações.
Somente com a formação do Estado moderno começa a era do centralismo.
A Igreja e o Estado foram seus primeiros e mais conspícuos representantes. Os determinantes da nova forma de organização não foram mais os interesses
da coletividade, mas os interesses das minorias privilegiadas que fundavam seu poder na exploração e na escravidão da grande massa.
O federalismo, a organização natural de baixo para cima, foi substituído pelo centralismo, a organização artificial de cima para baixo.
A liberdade teve de ceder ante o despotismo, o velho direito consuetudinário se transformou na lei, a variedade na uniformidade e o esquema, a educação
e a formação da personalidade no amestramento intelectual, a responsabilidade pessoal na obediência cega, o cidadão livre no súdito.
É significativo para o caráter despótico da social-democracia, o fato de que haja copiado sua forma de organização dos modelos proporcionados pelo
Estado. A disciplina foi sempre e continua sendo a divisa mais característica de seus métodos educativos e com os mesmos meios com que o Estado forma súditos
leais e bons soldados, a social-democracia forma companheiros de disciplina provada.
Uniu milhões de partidários sob sua bandeira, mas afogou também a iniciativa fecunda e a capacidade de ação autônoma nas massas.
Engendrou enfim um árido governo de empregados, uma nova hierarquia, uma espécie de providência política ante a qual a livre iniciativa e a independência
de pensamento devem amainar as velas.
Somente assim se explica que a social-democracia haja podido extraviar completamente sua ação no ambiente estreito do parlamentarismo burguês, que
a vulgar e mesquinha política do dia tenha podido chegar a constituir o ambiente espiritual de toda sua propaganda. Organizou ela seus eleitores como o
Estado seus exércitos e erigiu, como este, em princípio supremo, a impotência espiritual. No caminho do poder político enterrou tudo o que originariarnente
havia nela de socialista, de tal forma que somente restou um encoberto capitalismo de Estado que se introduz no mercado político sob um rótulo falso.
A burguesia não encontrou ainda seu "próprio coveiro", mas não se deve à social-democracia o fato de que aquela não tenha podido chegar a ser até agora
o coveiro do socialismo.
O anarquismo é o inimigo indômito do Estado: repele em princípio toda colaboração nos corpos legislativos, toda forma de ação parlamentar. Seus partidários
sabem que nem a mais livre lei eleitoral será capaz de atenuar os abissais contrastes na sociedade moderna e que o sistema parlamentar não tem outro objetivo
senão o de emprestar aparências de legalidade ao sistema da mentira e das injustiças sociais e induzir o escravo a selar ele mesmo, com o selo da lei,
sua própria escravidão. O método tático do anarquismo é a ação direta contra os defensores do monopólio e do Estado; trata de iluminar a consciência das
massas pela palavra falada e escrita. Participa em todas as lutas diretas, econômicas e políticas, dos oprimidos contra o sistema da escravidão assalariada
e a tirania do Estado e trata de comunicar a estas lutas, por sua colaboração, um mais profundo significado social, trata enfim de fomentar as próprias
iniciativas das massas e de fortalecer nelas o sentido de responsabilidade. Os anarquistas são os genuínos sustentadores da revolução social, os que levam
adiante por todos os meios a guerra contra o poder e contra a exploração do homem pelo homem, os que têm como bandeira de combate a libertação social,
econômica e política da humanidade.
Constituem as hostes do socialismo libertário, os arautos da civilização social do futuro.

Don Quixote

(Em comemoração de seu terceiro centenário)

DON QUIXOTE, nobre cavaleiro da Mancha, amigo e protetor dos sofredores, amante da imortal Dulcinéia del Toboso e dono do fiel Rocinante: cobre teu
rosto com ambas as mãos para que não se note sua vergonha ante a ofensa que acabam de infligir-te; porque nunca te ofenderam tanto como hoje, trezentos
anos depois daquele dia inesquecível em que abandonaste pela primeira vez tua casa e teus amigos para percorrer o mundo em defesa da justiça e para fazer
ressuscitar a fama eterna da cavalaria andante.
Muito padeceste em tua vida, grande cavaleiro da Triste Figura! Combateste uma batalha desesperada contra gigantes, mas afinal os gigantes eram apenas
moinhos de vento e tiveste de pagar teu erro com a cabeça quebrada e alguns ossos partidos. Rústicos aldeães quebraram teus dentes cavalheirescos, pastores
de ovelhas vulgares pisaram-te com seus pés, gente ingrata, incapaz de compreender a grandeza cavalheiresca, te encerrou numa jaula de madeira e te convenceu
de que estavas encantado; até corrias o perigo de que em tua estranha clausura se sentisse o mau cheiro, e se não fosse o bom Sancho, a poesia de tua empresa
heróica teria terminado num fato demasiado prosaico... Mas suportaste com paciência augusta, porque teu escudo estava branco e nenhuma mancha sugava tua
honra de cavaleiro. Todo o mundo se ria então de tuas façanhas imortais, mas que importava o seu riso? Tu vivias em teu mundo próprio, mundo distinto do
dos outros; cada acontecimento se apresentava ante ti em cores e imagens particulares e quem se atreveria a sustentar que tuas visões eram piores que as
dos outros? Tu vias gigantes, enquanto Sancho só percebia moinhos de vento, e considerando-se que a verdade absoluta não existe, já que aquilo que denominamos
verdade está sempre determinado por nossas condições subjetivas, por nossa convicção interior, tua opinião não foi pior que a do bom Sancho... Se tivesses
contemplado o mundo com os mesmos olhos que os outros homens, jamais terias sido Don Quixote; no entanto, devido precisamente a teres interpretado os fenômenos
do mundo segundo tua própria maneira, teu nome se tornou imortal e tua imagem aparece em nossos corações tão fresca e vivida como há três séculos. Portanto,
nada pôde agravar-te por ter visto e sentido de um modo distinto do de teus contemporâneos. Eles zombaram de ti, mas tu nem sequer os ouvistes: seu riso
não teve eco em teu mundo.
Mas hoje, ah! hoje o quadro variou completamente. Hoje te admiram, valente cavaleiro da Triste Figura. Agora celebram teu terceiro centenário com sábios
discursos e festas ruidosas. Os mercadores, Don Quixote, os traficantes, os filhos pervertidos de teu fiel criado Sancho, te admiram. Outrora eras grande
porque os mercadores, os homenzinhos prudentes e práticos zombaram de ti, mas hoje, hoje celebram tua memória ocultando o quadro de tua grandeza luminosa
com seus ventres avultados e suas almas grosseiras... Nem sequer te consultaram se estás de acordo com seus festejos, se agradam suas homenagens... Eles
são os donos da vida, grande cavaleiro, eles, os traficantes, compraram a propósito várias fangas de aveia para o magro Rocinante, a fim de que não seja
tão magro em meio de uma companhia tão gorda.
Ó, compreendo tua dor, cavaleiro imortal! Sei por que ocultas teu rosto com ambas as mãos: para que o mundo não veja a ofensa grave que te causaram.
Acredita-me, nobre cavaleiro, que conheço teus pensamentos ocultos e participo completamente da dor de tua alma ofendida. Que o mundo se tenha rido de
ti, que importava? Mas, que os mercadores festejem tua memória, que os ricos comerciantes de Madrid estabeleçam um prêmio de vinte mil pesetas para o que
pinte o melhor retrato de ti, isto sim é doloroso, mais amargo que o fel... Eu não sei que classe de quadro vão fazer de ti, mas temo muito que representem
o bom Rocinante como cavalo de cervejeiro e que a ti mesmo te ponham uma pança... Sim, grande cavaleiro, temo que o façam, porque nos tempos que correm
já não se respeitam os ideais "magros"; no mundo dós mercadores até o idealismo engordou: não lhes nasceram asas, mas em compensação adquiriram um ventre
respeitável... Que necessidade têm de asas? O caminho para as estrelas foi esquecido; hoje o idealismo permanece tranqüilamente no solo e recolhe vermezinhos...
Ó, nobre cavaleiro da Mancha! Tu travaste uma batalha contra gigantes e serpentes de fogo; os gigantes morreram a pouco e pouco, o fogo extinguiu e
só ficaram as serpes, serpes - mercadoras, frias, escorregadiças que não podem contemplar o céu azul e o sol luminoso porque se arrastam através da vida
como ladrões. Se te levantasses agora de teu túmulo e não voltasses a percorrer o mundo para realizar façanhas heróicas certamente deverias lutar com os
mercadores, mais perigosos que os antigos gigantes...
Recordo ainda como se fosse a primeira vez que te conheci. Eu tinha então uns doze ou treze anos. Era uma noite de Natal; nós, as crianças, estávamos
na cozinha aguardando com impaciência que a mãe bondosa abrisse a porta; estávamos impacientes, pois quem poderia adivinhar as surpresas que mamãe havia
preparado para nós? E por fim abriu-se a porta do paraíso e todos corremos ao aposento com tanto ímpeto como se houvesse tratado de salvar a vida. As velas
da árvore de Natal brilhavam com todas as cores e ao derredor delas estavam distribuídas as coisas boas que mamãe havia comprado para nós e ocultado com
tanto zelo durante toda a semana. Aí estava o meu lugar: uma pequena espingarda, um quepe, um teatro infantil, maçãs, nozes e diversos doces, e no meio
de toda essa riqueza havia um livro. A princípio não o havia visto, pois meus olhos estavam absorvidos por outros objetos; mais tarde, porém, ao descobri-lo,
tomei-o rapidamente na mão e o contemplei com olhares curiosos. Trazia na capa um quadro: duas figuras extravagantes. Um homem alto e delgado que levava
uma velha armadura demasiado pequena para ele e montava um velho cavalo tão magro como o dono; ao lado do primeiro ginete ia, montado em um asno cinzento,
um homem pequeno e gordo. O título do livro era: História do engenhoso fidalgo Don Quixote de la Mancha. Aquela noite contemplei apenas as figuras do livro
- era uma edição ilustrada para crianças - mas não li nem uma palavra. Na manhã seguinte me entreguei ao meu tesouro literário. Fazia um frio espantoso
em casa; não havia lume porque minha mãe dormia ainda. Cuidadosamente desci da cama, peguei o livro e tornei a meter-me nela entre os frios lençóis. E
comecei a ler. A princípio a história não me produziu grande impressão; logo depois, porém, quando cheguei às façanhas heróicas do nobre fidalgo, eu não
contive o riso. "Que louco! - pensei - Até um cego poderia ver que se trata de moinhos de vento e não de gigantes. Estranhava-me que não se importasse
com as palavras razoáveis do prudente Sancho!" E eu experimentava um verdadeiro prazer quando lhe quebravam as costelas. Mas logo nasceu em meu coração
outro sentimento: a compaixão. Eu imaginava a figura de mártir do valente cavaleiro e seus lábios ensangüentados e me indignei porque o tratavam tão mal.
"É um louco; não sabe o que faz! Por que maltratá-lo tanto?"
Voltei a ler o livro com freqüência, até que o perdi um dia no bosque. Sentia-o muito, mas as crianças esquecem facilmente e eu também esqueci a pouco
e pouco a Don Quixote, a Sancho Pança, a Rocinante, à formosa Dulcinéia del Toboso. Passaram-se os anos. O idealismo tormentoso da juventude me abraçou
também a mim com toda a veemência de sua força. Nesse formoso período voltei a ler pela segunda vez Don Quixote. Havia caido por causalidade em minhas
mãos e desde então já não me separei dele.
Eu não poderia afirmar que me tenha sentido entusiasmado por ele nos primeiros tempos. Ainda via nele um cego fantaseador, vítima inconsciente de uma
idéia fixa; contudo lia-o com sumo agrado, porque a esplêndida arte narrativa de Cervantes me produzia uma fote impressão. Então compreendi também contra
quem havia dirigido sua obra imortal, o grande espanhol; algumas coisas somente me eram incompreensíveis: eu não percebia ainda o Rocinante, que eu mesmo
montava e ainda não me dava conta de que eu estava também enamorado da imorredoura Dulcinéia del Toboso. Agora sei muito bem que cada um de nós cavalga
em seu próprio Rocinante e está enamorado de alguma Dulcinéia e, para dizer a verdade, alegro-me de que seja assim... Mas então ignorava tudo isso. Don
Quixote era um dos meus favoritos, mas na realidade só era um hóspede para mim.
E novamente transcorreram meses e anos. Eu abracei a vida e a beijei com todo o idealismo, com toda a força da juventude. Em minha mente se refletiam
quadros sublimes, quadros de felicidade e de amor, de um futuro grandioso e belo. E neste período me visitava amiúde um hóspede estranho, desconhecido;
chegava ao anoitecer, quando a obscuridade se estendia lá fora, e levava sempre a mesma capa negra sobre os ombros secos. Sua visita nunca era prolongada.
Vinha, contemplava-me com olhos frios e cruéis, em seus lábios finos e pálidos aparecia um sorriso de desprezo e não pronunciava uma única palavra. Cada
vez que me visitava eu sentia uma punhalada no coração: não o queria, mas tampouco o odiava. Eu esperava sempre que me falasse; às vezes até movia os lábios
como se me quisesse dizer alguma coisa, mas eu nada compreendia. Logo deixou de vir por algum tempo. Mas uma noite voltou de novo e esta vez sim, falou-me.
"Louco, para que?" - isso foi tudo o que disse, e logo partiu. "Louco, para que?" Estas palavras ardiam em minha alma como um fogo infernal, ressoavam
constantemente em meus ouvidos, causando-me muitos momentos amargos e dolorosos. Qual, é o sentido dessas palavras? - perguntava-me. E de repente me apareceu
a cara conhecida, com os olhos frios e impiedosos, os lábios finos e pálidos e o eterno sorriso de desprezo... E perdia o valor de achar uma resposta à
minha pergunta.
Em certa ocasião, era no inverno, voltei para casa altas horas da noite. Havia ido ver Hamlet e a obra formidável do genial inglês impressionou os
sentimentos mais recônditos de minha alma. Eu sentia tanta amargura em meu coração, estava eu tão triste e melancólico, que quase ia a romper em choro.
Sentado ante minha mesa, volvi a ouvir as palavras terríveis que tanto me haviam torturado e que me eram tão odiosas: "Louco, para que?" Desesperado, tomei
do livro: era o primeiro tomo de Quixote. Nobre cavaleiro da Mancha, podes imaginar quão agradecido te fico? A não ser por ti, certamente não teria sobrevivido
àquela noite tremenda, inesquecível. Passei a noite lendo e meu coração se sentiu aliviado e contente; meus olhos derramaram lágrimas, não por causa da
dor, mas devido a uma alegria interior que me fazia chorar. Por fim deixei o livro de um lado e me pus a passear pela pequena casa. Nessa noite, que começou
tão tristemente, senti-me inteiramente ditoso.
De repente olhei por acaso o espelho que estava em cima da chaminé. Que é isso, um sonho ou um quadro real? Ali, no espelho, divisei o fidalgo da Mancha.
Montava seu Rocinante e me fazia amavelmente um sinal com a cabeça. Mas seu rosto me era muito conhecido! Movi o braço para a esquerda e o cavaleiro do
espelho fez o mesmo. Meneei a cabeça; Don Quixote fez idêntico movimento. E logo compreendi quem era e conheci também Rocinante. Mas não vou revelar-vos
o segredo... "Louco, para que?" ressoou novamente em meus, ouvidos; mas esta vez já não tive medo da pergunta, porque já sabia que responder. "Louco, para
que?", perguntas, hóspede silencioso e desconhecido dos grandes olhos enigmáticos, "para que?". Pois agora vou dizer-te: para montar um Rocinante e estar
enamorado de uma Dulcinéia del Toboso...
Então eu não sabia nada de Nietzsche, mas já compreendia a magnífica lição de Zaratustra: Ditoso é o homem que pode zombar de si mesmo! Desde aquele
momento o nobre cavaleiro da Mancha já não era para mim um hóspede, mas um bom amigo. Via-o em todos os períodos da história humana e concebi que Don Quixote
e Hamlet são os dois pólos ao redor dos quais gira a nossa existência.
Sim, valente fidalgo, tu eras grande, não por teus fatos, mas pela força de tua vontade poderosa. Não esperastes que algum dia criara um mundo para
mim, tu mesmo criastes um mundo, teu próprio mundo; podem os outros rir dele, tu contudo és um criador, enquanto eles são somente seres de outro mundo,
que receberam em herança, pois eles jamais seriam capazes de criá-lo. Tu és imortal porque o és todo para ti; não querias ser o escravo mas o senhor da
vida e por isso tiveste sempre o valor de proceder, ainda quando a razão prática de teus coetâneos não via nenhum motivo para a ação. Ó, cavaleiro da Triste
Figura, oxalá tivéssemos nós um pouco desse valor para agir, desse valor que não teme as conseqüências! Que bem nos faria nesta época em que o espírito
de Hamlet domina as almas e os corações dos poucos homens que não tomam parte no baile dos mercadores em torno do bezerro de ouro! Todos nós temos visto,
como Hamlet, o fantasma de nosso pai assassinado e conhecemos o assassino, mas renunciamos à ação, à ação salvadora e libertadora, nobre cavaleiro. Vivemos
num mundo de ciência positiva e nossos corações estão vazios e as almas murchas.
Antigamente os homens tremiam ante a morte e por isso suportavam com mais resignação o jugo da servidão e da escravidão, desde que pudessem salvar
a vida. Os Hamlet de nossa época não temem a morte, sua covardia adquiriu um caráter diverso: tremem ante o ridículo, porque se esqueceram de rir de si
mesmos. Eles vêem a sombra ensangüentada do assassinado e bem quiseram tirar vingança do homicida, mas há uma coisa que os detém: não o medo da morte,
mas a idéia de que talvez os gigantes se convertam em moinhos de vento, que a tragédia talvez termine em comédia; e em tal caso Hamlet perderia sua fama
de pensador profundo,é a gente diria: "Vede que néscio é, nem sequer sabe distinguir entre um gigante e um moinho de vento"; e para Hamlet a burla das
pessoas é pior que a morte...
Uma partícula de teu espírito, nobre cavaleiro, uma partícula apenas... Isto é o que poderia salvar-nos. A ação foi relegada ao esquecimento pelo conhecimento:
aprendemos, graças a Deus, a diferenciar os gigantes dos moinhos de vento, mas se tu não ressuscitas nós apodrecemos no conhecimento: saberemos tudo mas
não saberemos nada... Nossos cérebros se tornarão cada vez mais perfeitos; contudo a força dos músculos se irá extinguindo, nossos braços se tornarão impotentes...
E não obstante, devemos dirigir-nos hoje tão-somente aos Hamlet; talvez nos entendam e com o tempo, quem sabe, ambos os pólos talvez se encontrem no
equador da vida e Don Quixote e Hamlet se tornem amigos: o primeiro aprenderá a ser o fantasma do pai morto, a reconhecer o assassino verdadeiro, e Hamlet
irá montado num Rocinante e escreverá poesias dedicadas à imortal Dulcinéia del Tòboso... Quem pode saber o que nos oferecerá o futuro? E a quem, se não
aos Hamlet, iremos dirigir nossa palavra? Hamlet nasceu sob o céu cinzento e nas névoas espessas da Inglaterra e quando tiver ocasião de conhecer a pátria
de Don Quixote, o formoso céu azul da Mancha, quem sabe como nele influirá o clima?
A quem nos haveremos de nos dirigir, nobre cavaleiro? Aos mercadores que celebram agora tuas façanhas imortais? A eles, don Quixote? A eles havemos
de falar? Ó, nobre cavaleiro da Mancha, vejo quão vermelho fica o teu rosto ao recordar com quanta crueldade te ofenderam! Tu não podes compreender como
degenerou a tua raça. É verdade que Sancho era um grande comilão, sua inteligência não abarcava mais que as necessidades de seu estômago e de noite, quando
tu, valente fidalgo, sonhavas com grandes façanhas e com a formosa Dulcinéia, ele permanecia estendido, roncando ruidosamente. Apesar disso, era um homem
bom e alegre e quando não havia nada melhor ficava satisfeito com um pedaço de pão e um par de cebolas. Mas tudo isso ocorria enquanto tu vivias. Tu eras
seu amo e ele com seu jumento tinha de arrastar-se atrás de ti e de Rocinante, porque sabia muito bem que só tu e não outro lhe proporcionarias a ilha
prometida. E foi uma desgraça que não tenha morrido antes de ti, porque depois de teu falecimento considerou-se senhor e viveu de tua honra. Seus filhos
esqueceram logo que seu pai havia sido um simples escudeiro e lhes pareceu que o velho Sancho foi o herói verdadeiro de tua história. Certamente o pai
lhes falou antes de morrer da formosa Dulcinéia e eles se empenharam em encontrá-la: como gente prática, que nunca voa no ar com seus pensamentos, deram
logo com ela. Mas adivinhai o que fizeram. Tenho medo de dizê-lo, mas também não posso ocultar, porque o assunto gravita sobre minha razão como uma pedra.
Violaram-na, os miseráveis, e a divina Dulcinéia foi engravidada pelos filhos de um escudeiro... Nobre cavaleiro: os ricos comerciantes de Madri que
estabeleceram um prêmio por teu retrato autêntico são os filhos espúrios, os netos de teu antigo criado Sancho Pança...
E esses bastardos são agora os donos da vida. Eles prostituíram os sentimentos delicados da humanidade, fecharam com portas de ferro o caminho para
as estrelas e adornaram com moedas de prata o caminho que leva ao lodaçal. Esses servidores do bezerro de ouro fizeram do mundo uma mancebia, e ai daqueles
que se negam a reconhecer sua honestidade de mercadores! Um dia, um rouxinol cantou ante as suas portas e eles lhe perguntaram em seguida: "Qual é teu
preço comum? Quanto se te deve pelo canto?" e o rouxinol fugiu para nunca mais voltar. E foi bem feito. Porque ali onde grunhem os porcos, não pode cantar
o rouxinol. Felizmente os portões do céu estão fechados, senão os senhores da vida enviariam uma delegação ao Criador para perguntar-lhe o que lhe devem
pelo universo que criou para eles.
Ó, nobre cavaleiro da Mancha, defensor da justiça, que fizeram de teu nome honesto essas almas de mercadores que celebram agora teu terceiro centenário?
Temo que o bom Rocinante não poderá suportar a ignomínia e a vergonha que te causaram. E para consolar-te, grande cavaleiro, para diminuir um pouco as
tuas aflições, escrevi estas palavras, mediante as quais se recordarão os solitários, os ascéticos e incrédulos, os sonhadores de coração sangrante e de
alma enferma, que trezentos anos atrás vivia um cavaleiro que se sentia feliz de cavalgar num Rocinante e de estar enamorado da bela Dulcinéia. E talvez
leiam tua história e a alegria lhes suavize os pobres corações...
Esta é a minha homenagem em teu aniversário; eu não sei se vai agradar-te, mas hás de recebê-la com o coração limpo... Contudo, sentir-me-ia feliz
se ressuscitasses no mundo dos mercadores. Eu te receberia como um monarca e com lágrimas nos olhos te beijaria como o salvador e redentor da humanidade
escravizada. E chamaria a todos os desesperançados e desesperados para que se reconfortassem com a tua presença e lhes diria: "Tirai os sapatos porque
a terra em que pisais agora é terra sagrada".

O homem sem cabeça

MINHA avó era uma mulher rara. Tinha muitas boas qualidades, mas era terrivelmente supersticiosa e sabia uma quantidade de "coisas extraordinárias",
das quais a nossa sabedoria escolar não podia suspeitar nada. Em nossa cidade havia uma velha rua solitária, chamada Hohl, na qual até em pleno dia raramente
se encontrava um ser humano. Daí dessa rua, guardada por velhas árvores, uma ampla escada de pedra conduzia à torre de Stephan. Contava minha avó uma vez
que, por essa escada, passeava um homem, vestido de negro, entre as doze da noite e uma da madrugada. Por que havia escolhido aquele homem precisamente
essa escada para o passeio, era seu segredo; muito mais singular, porém, era a circunstância de esse homem não ter cabeça.
Sem dúvida uma história muito rara que me causou muitas preocupações quando criança. Refleti sobre o assunto um dia e outro, e cheguei à conclusão
de que sem cabeça não se podia ir passear. Foi isto, sem dúvida, um grande descobrimento. Hoje, não longe dos setenta, reconheci, contudo, que durante
toda a minha vida não fui um sábio, mas um pobre louco. Talvez esse reconhecimento me faça agora realmente um sábio; mas a sabedoria veio muito tarde.
Torna-se uma pessoa inteligente quando na longa viagem, que se chama a vida, se aproxima da última estação.
Não fui eu sábio e filósofo, mas minha avó. Necessitei de setenta anos para aprender que se pode realmente andar passeando sem cabeça por este formoso
mundo. Para minha vergonha tenho de confessar que por mim mesmo não teria caído nunca nessa verdade; foi meu bom amigo da foice e do martelo que me auxiliou.
Meu amigo era um santo singular; nele nunca sabia a mão esquerda o que fazia a direita. Durante anos me tinha pregado que os trabalhadores não deviam adquirir
nenhum compromisso com a burguesia e com os chamados "social-fascistas". Só a "ditadura do proletariado" podia trazer-nos a solução. A democracia era um
engano, a liberdade um "preconceito pequeno-burguês", a ética social um "estimulante para os frouxos".
Mas um dia o meu amigo veio visitar-me, meteu o martelo e a foice num caixote de antigüidades, e gritou: "Agora temos o justo! Frente única! Morra
o fascismo! Salvemos a democracia!" Apelava aos "social-fascistas", aos liberais, aos maçons, aos católicos, ao Papa, aos pequeno-burgueses. O presidente
Roosevelt, que antes era apenas um "reflexo do capitalismo americano", converteu-se de repente num gênio político. O sr. Browder defendeu-o com todo o
calor de sua alma fogosa e declarou modestamente, num discurso pelo rádio, que os reacionários combatiam Roosevelt, mas que na realidade só se referiam
a ele, Browder. Era uma época magnífica aquela da "frente única" contra o fascismo, da luta da democracia contra Hitler, o antropófago e "cão raivoso da
Europa". Recordei ao meu amigo sua posição anterior, mas gritou-me na cara: "Isso é dialética social; disso não entendes nada".
Logo fez Stalin seu pacto com Hitler. Meu amigo perdeu por algum tempo a voz. Mas chegou a nova ordem de Moscou e começou outra vez a trabalhar o bico.
"Estes vis imperialistas! A Inglaterra tem a culpa da guerra! Churchill e Roosevelt são os sacerdotes de Mamon por quem deve sacrificar-se o proletariado!"
E meu amigo me mostrou um formoso desenho de "New Massas", onde Roosevelt, vestido de bruxa no inferno, revolve o fogo de uma caldeira onde é cozinhada
a sopa da guerra. Churchill, com seu grosso charuto na boca, aparece ali como um vampiro e sorri. H. Hillman, como víbora, contempla os manejos de Roosevelt,
enquanto Knox e Stimson arrastam a um pobre proletário para ser cozido na caldeira e encher a barriga do imperialismo. Até me trouxe meu amigo um boletim
"Aos judeus", no qual se diz que só a política de Stalin pode libertar o mundo do anti-semitismo. Recordei-lhe que há muitos anos, na Palestina, foi editado
também um manifesto dessa espécie, no qual se defendia o nacionalismo árabe contra o perigo judeu. Mas meu amigo me gritou na cara: "Isto é dialética social;
tu não entendes".
Veio o ataque de Stalin contra a Finlândia. Mencionei ao meu amigo uma frase de Lenin em 1918: "Um socialista russo que negue a liberdade da Finlândia
é um chauvinista". Mas meu amigo me mostrou um artigo do novelista Alexis Tolstoi, no Pravda, onde se lê: "Stalin sabe o que convém mais à Finlândia. Ele,
mais que nenhum outro, sabe o que assegurará a felicidade a todos os povos da humanidade. Ele pensa em tudo o que pode alegrar a vida do homem. Não há
um só ser humano de que ele não seja amigo e ao qual não abra seu coração. Oh! quão mais ditosos seriam os ingleses se Stalin pudesse fundar a felicidade
do povo inglês!" Mas desgraçadamente já não entendia nada disso. Era dialética social.
Meu amigo atribuía aos ingleses todos os pecados; não falava uma palavra de que Hitler, coberto pela aliança de Stalin, espezinhava os povos da Europa.
Os ingleses eram os malditos imperialistas. O fato de Stalin anexar partes da Finlândia, meia Polônia, Bessarábia a até a Bucovina, que nunca pertenceu
à Rússia, naturalmente não era "imperialismo", mas apenas dialética social.
Veio logo o fim amargo. Hitler fez marchar seus exércitos contra a Rússia e Stalin apelou para a ajuda dos "imperialistas", da Inglaterra e dos Estados
Unidos. Devíeis ver a cara do meu amigo. "Esse Hitler assassino! Ladrão, bandido, que assalta países e povos e os põe em seus alforjes, e que nem sequer
consente que Chaplin use os seus bigodes!" E meu amigo se pôs a ajudar a Knox, Stimson a pôr o proletariado na caldeira. Churchill, o "pirata do mar",
converteu-se num grande estadista e Roosevelt teve repentinamente o destino do mundo em suas mãos.
Recordei ao meu amigo o caso de Lindbergh e do senador Weeler, que na véspera haviam sido qualificados como representantes da tradição americana e
comparados com Jefferson e Lincoln. Pôs-se enraivecido e resmungou que "não queria ter nada que ver com gente que trabalhava para Hitler", Stalin esteve
sempre contra Hitler. Só concertou a aliança com ele para preparar a guerra contra ele. "Mas foi Hitler que marchou sobre Moscou", disse. "Porque do contrário
Stalin teria marchado sobre Berlim", acrescentou o amigo. "Esta é a dialética social da história" .
Olhei fixamente o meu amigo, e descobri que não tinha cabeça. Minha avó tinha toda razão. Pode um ser humano passear sem cabeça. É até mais cômodo.
"Mas devia ter uma cabeça", objetareis. Sim, mas era só um rosto com dois olhos, e estes não viam. Uma cabeça é uma cabeça quando serve para pensar. Sobre
os ombros do meu amigo podeis pôr uma cabaça, um nabo, um tambor ou um pedaço de madeira; prestará os mesmos serviços. Como comunista, pode ir a passeio
sem cabeça.

Germinal

GERMINAL! Um grito longínquo da outra margem trepida ébrio de esperança através da gelada noite de inverno. Germinal, renovador da vida, mensageiro
de um novo devir, espírito de destruição, espírito criador, nós te saudámos. Pelos pálidos crepúsculos de um presente malogrado, sentimos o cálido alento
do futuro, nós, os carregados com a maldição dos séculos, a quem o desejo atormenta o coração como uma chama vermelha.
Tempestades de inverno devem preceder a tua vinda, frígidas tempestades de inverno, para libertar os espíritos das tradições escravizadoras dos escombros
e do lodo e dos conceitos petrificados que matam nossa vontade nas cadeias e estrangulam a ação salvadora na rede sutil dos esgares artísticos da acrobacia
dialética.
Ensinaram-nos a compreender e a interpretar "historicamente" as diversas fases da escravidão; desde então arquejamos sob a carga do velho e admiramos
em silenciosa veneração o cordão umbelical que nos prende às formas de servidão dos milênios passados. Graças a Deus, não somos mais utopistas; aprendemos
a distinguir entre o possível e o impossível, e conhecemos exatamente as fronteiras onde o dado praticamente se perde no mar nebuloso dos conceitos fantásticos
e das representações indefinidas. Temos remexido, medido e demarcado cientificamente os trajetos particulares da escravidão humana, e nos regozijamos regiamente
de haver triunfado tão bem no trabalho. Graças ao céu pusemos ordem em nossas relações com o passado; oxalá também nosso futuro se baseie nelas. A pálida
inveja não nos pode proibir este reconhecimento.
Apenas em alguns de nós sonha ainda, cheia de promessas e carregada de desejos, a canção distante de uma ilha lendária em mares desconhecidos que ainda
não divisou nenhum barco. São os últimos rebentos da geração do nobre cavaleiro de la Mancha, guardiães do Graal do ideal, espíritos entusiastas que perderam
a terra firme sob os pés, e que respiram com seus sentidos além das nuvens.
Para os nove vezes sábios da "sã razão humana" serão sempre uma abominação, pois desprezaram todas as normas das tradições antigas e toda ordem legal
das coisas.
Levam o signo de Caim da liberdade na fronte, e em sua alma se oculta a ânsia ardente e a rebeldia tenaz das tempestades celestes. Sua rotas, se abre
sobre os abismos e as furnas, pois evitam expressamente os caminhos trilhados do cotidiano. Alguns caem nas profundidades obscuras, mas nunca se consideram
vítimas e o pobre incenso do martírio lhes parece insípido e fútil. Agem sempre por impulsos interiores e devem agir assim porque não podem fazê-lo de
outro modo.
O estranho e o raro lhes atrai e o utópico é, neles, uma necessidade vital, pois sua alma está sedenta de novas fontes e de ocultas maravilhas.
São hipotecários do futuro, porta-bandeiras do conhecimento e afirmadores da vida. Seu olhar é puro, o passo leve, porque o espírito não está carregado
com as tradições da servidão que nos prendem com férreas correntes aos fatos banais do "historicamente dado".
Salvai vós, os de vôo ligeiro, em cujo espírito atuam o impulso da destruição e a alegria dos criadores para dar à luz novos mundos.
Tradição da servidão! Esta é a peste invasora que quebranta nossa força, carcome nossa vontade, a eterna carga que nos esmaga e que afoga nosso anelo
no lodo da rotina, antes que possa florescer. O peso inteiro da história humana nos abate; contudo, não nos atrevemos a arrojar a carga de nossos ombros
por medo de perder o equilíbrio e ter de nos afundarmos dentro do nada. Entre gemidos e suspiros vagamos com nossa bagagem histórica, cambaleantes, pelas
ruas da vida e cobrimos já o futuro com as hipóteses do passado.
O imenso caos das formas mortais e dos conceitos cristalizados, onde as últimas chispas da realidade vivente há muito já se extinguiram, nos oprime
e arrasta nosso espírito às profundidades. Não há dúvida de que também nessas envolturas mortas habitou uma vez a alma e circulou a palpitação da vida;
mas essa época está distante e somente dela nos ficaram inúteis escórias, nas quais o embaciado brilho das grandezas passadas centelha falsamente como
fria mica sobre a rocha estéril.
Nosso cérebro é como uma sala de novidades na qual se agitam sombras sem alma: por toda parte múmias, "verdades" embalsamadas e relíquias carcomidas
pelas quais não passa mais o alento de deus. O pálido reflexo do acontecido chispa fantasmagoricamente sobre os velhos cofres e os carcomidos altares dos
quais se desprende o cheiro a mofo das épocas mortas. Nada nos une com esse mundo de espectros de brilho inanimado senão a tradição, a servidão, o espantoso
respeito ante as máscaras irônicas do passado, atrás das quais já se não oculta nenhuma vida real. Mas esse mundo de pálidas sombras e de sagrados embustes
está entre nós e a realidade das coisas e nos mostra todos os fenômenos da vida em formas caricaturais.
A própria existência nos é visível somente mediante a obscura atmosfera das tradições abstratas, e ali onde acreditamos ter percebido a essência das
coisas, zomba de nós somente a dança das sombras do passado, que projeta sobre as coisas da realidade material seu jogo enganador.
Vemos a realidade somente nas perspectivas do passado, ou melhor ainda não vemos as coisas como são, não vemos nada mais que a aparência das coisas.
Mas essa aparência das coisas, esse retrato enganador da realidade efetiva, nos aparece como a existência completa, como a realidade superior, e a ela
sacrificamos constantemente nosso ser particular.
Alimentamos os quadros de sombras de nossas representações abstratas com o sangue de nosso próprio coração, e nos convertemos em vítimas de uma ilusão
ótica que nos faz aparecer a realidade vivente como fantástica e inanimada. É a sombra das coisas que nos leva à imolação e nos faz dobrar o joelho. Peter
Schlemihl, o que vendeu a sombra ao homem de casaco cinzento, cai no desespero porque perdeu desse modo o objeto de sua idolatria e de sua veneração hereditária.
O homem criou deus à sua imagem, mas o fez inconscientemente, com a ingenuidade da criança a quem ainda está vedado o sentido das coisas.
Olhou o espelho mágico da natureza onipotente, que refletiu ampliado o seu retrato. E se curvou em tímida veneração ante esse reflexo que chamou deus
e que se converteu para ele na realidade absoluta, à qual sacrificou sua própria existência. Assim se transformou o criador em escravo de sua própria criação,
a aparência em realidade. Quanto maior e mais forte aparecia deus ao homem, tanto mais o aterrou, a ele, o verdadeiro criador, o sentimento de sua insignificância.
Disfarçou o produto de sua força de imaginação com todas as qualidades preciosas, e na auréola dessa divindade lhe apareceu todo o humano miserável e vão.
Enquanto a crença dos povos estava ainda rodeada com os prestígios da poesia ingênua da primeira infância, apenas chegou à consciência do homem a grande
tragédia de sua queda. Mais tarde, porém, quando a fé infantil das épocas passadas se petrificou nas formas mortas da dogmática teológica e a comunidade
dos crentes se transformou em igreja, a diminuição do homem divino, princípio sagrado e pedra angular de todas as religiões chamadas, positivas, Deus foi
tudo; o homem, nada.
Como um mendigo sujo, o filho da terra se encolheu ante seu próprio retrato e suplicou proteção e bênção sobre sua cabeça pecadora.
Assim se converteu a terra em vale de lágrimas e a vida em uma maldição. Para salvar a "alma divina", mortificou o corpo, o corpo de impureza e das
cobiças insensatas. Na mesma medida que o fantasma deus cresceu até o gigantesco, encolheu-se o homem até o nível do liliputiano miserável que não se atrevia
a aproximar-se da sombra morta de seu próprio eu senão mediante a intervenção dos "eleitos", e com santo respeito.
Deus é tudo, o homem nada.
E os "eleitos" transmitiam aos crentes os mandamentos de deus gravados em pedra e amarelentos pergaminhos, que deveriam servir-lhes como regra de conduta.
Assim receberam as sombras uma vontade, e o homem as carregou sobre seus ombros como santo jugo para merecer o reino dos céus.
- "Eu sou o senhor, teu deus!" - retumba por milênios da história humana - e milhões e milhões de "pobres mortais" inclinam respeitosos a cabeça ante
o ídolo que nasceu de sua própria força de imaginação e que prolonga a existência graças à ilusão de sua fé.
As formas da crença mudaram no curso dos tempos; mas suas raízes são sempre as mesmas, o mesmo, quer se trate do mesquinho fetiche dos selvagens, quer
do deus abstrato das religiões monoteístas.
É sempre a mesma mudança fatal de papéis; a aparência se transforma em realidade, a criação em dono e senhor do criador.
O número de deuses caídos é uma legião; mas deus mesmo não caiu nunca e nos faz caretas sob máscaras sempre novas. Quando o homem derruba um velho
ídolo do pedestal mais sagrado, faz sempre para arrojar-se ao solo ante uma nova divindade, cujo brilho ainda não foi embaciado na mutação infinita dos
acontecimentos.
Em nome de deus o homem suportou o jugo de toda tirania, entusiasmou-se por toda ilusão fabricada por sua ardente fantasia, santificou todo crime que
lhe foi pregado pelos sacerdotes como expressão da vontade divina, ofereceu-se ele próprio constantemente em sacrifício para estar certo da existência
de seu ídolo. Não é por casualidade que quase todas as religiões estão fundadas na idéia do sacrifício, pois deus se alimenta do sangue dos homens, das
substâncias vivas de sua existência material.
Em toda parte onde um sacerdote proclama a palavra de deus; onde os crentes, ciosos de sacrifício, inclinam a cabeça em santo amor ante a alta vontade,
aí há um Gólgota em que se crucifica o homem.
Proudhon percebera a raiz misteriosa da tragédia da humanidade quando gravou estas palavras:
"Deus é a estupidez e a covardia; deus é a hipocrisia e a mentira; deus é a tirania e a miséria; deus é o mal"!
Mas deus não está somente na casa, nas igrejas dos crentes e nos livros santos dos teólogos: leva sua essência a todos os domínios da vida humana,
e habita em cada oculta dobra de nosso cérebro.
A forma de todo Estado é somente uma tradução do princípio divino de autoridade e o que chamamos simplesmente "política" é apenas a teologia do Estado.
Não é em vão que se nomeiam os reis "pela graça de deus", pois o poder da realeza e do Estado em geral nasce da mesma fonte que alimenta a onipotência
de deus. Por estas razões sustinha De Maistre, o grande apóstolo da reação, com justa razão, que toda forma de governo era teocrática por sua natureza
e que toda constituição vinha de deus.
Todo poder de acordo com sua essência íntima é de origem divina, pois em última conseqüência é, não a violência brutal que mantém um sistema político,
mas a fé sagrada na necessidade desse sistema, a tradição da servidão, que obriga mais e mais os homens a oferecerem a realidade vivente do existir real
a um quadro inanimado de sombras, e como todo poder segundo sua essência é divino, é sempre absoluto, também quando trata de ocultar modestamente sua nudez
sob o ouropel do direito parlamentar. Já se trata aqui da forma fetichista do Estado, em que o princípio do poder achou sua expressão direta na pessoa
do monarca absoluto, ou de uma abstrata "república una e indivisível" dos jacobinos ou melhor ainda, da famosa "ditadura do proletariado" de Lenin e Trotzky,
isto é de uma importância secundária. Estas são somente diferenças na forma, que não podem mudar nada na natureza da própria coisa.
Bonald, o seco e o incurável pedante e o defensor invariável do princípio de autoridade, compreendeu bem o germe da coisa, quando escreveu as terríveis
palavras:
"Deus é o poder soberano sobre todos os seres; o filho de Deus é o poder sobre toda a humanidade; a cabeça suprema do Estado é o poder sobre todos
seus súditos; a cabeça da família é o poder em sua casa. Como todo o poder é criado à imagem de Deus e nasce de Deus, todo poder é absoluto".
Somente uma coisa não compreendeu Bonald, e não poderia compreender. Compreendeu a divindade de todo poder, mas não compreendeu a origem da divindade
que, segundo ele, foi dada pela eternidade. A grande tragédia do homem não chegou nunca a seu conhecimento, pois foi um sedutor e um seduzido ao mesmo
tempo.
Como deus só prolonga sua nebulosa existência na força de representação dos homens e somente é sensível para estes o poder divino pela atividade consagrada
de seus sacerdotes e eleitos, assim também o conceito do Estado em si e por si é unicamente uma formação abstrata que tão-somente chega à consciência dos
leais súditos pela alta eficácia de seus representantes e de sua hierarquia burocrática. O crente espera a salvação de deus, porque sua própria força lhe
aparece miserável. Pelas mesmas razões o súdito crente espera a salvação do Estado, que se converteu para ele na providência terrestre.
Não compreende que o Estado na melhor das conjunturas somente pode devolver-lhe o que lhe tirou antes em forma de impostos e de tributos, e compreende
menos ainda que a imensa maioria das oferendas que faz ao Estado diariamente não servem a seus próprios interesses, mas aos interesses do Estado, e de
seus dignatários, sejam estes "postos por deus" ou eleitos pelo povo, o que no fundo é o mesmo, porque segundo a afirmação da tendência mais avançada da
moderna teologia política a "voz do povo é a voz de deus". Como na religião deus é tudo e o homem é nada, assim na política o Estado é tudo e o cidadão
nada.
Ambas as máximas da autoridade terrestre e celeste, o "Eu sou o senhor, teu deus" e a "Sede submissos ante a autoridade!", cresceram juntas desde as
origens mais remotas, como irmãs gêmeas.
Enquanto o homem venerou em deus o conceito da perfeição absoluta, se converteu ele próprio, o criador de deus, em miserável "verme da terra", na encarnação
viva de toda fraqueza e insignificância terrestre, e os teólogos e os escribas não se cansaram de convencê-lo de que era um "pecador de nascimento", que
somente poderia ser salvo do abismo infernal pela declaração e cumprimento dos santos mandamentos de deus.
E enquanto o cidadão dotava o Estado de todos os atributos da perfeição terrestre, degradava-se ele próprio até à caricatura da impotência espiritual
e de menor idade a quem os escribas do direito e os teólogos do Estado martelaram mais e mais a convicção de que, de fato, a sua natureza está carregada
com os obscuros instintos do criminoso nato e de que somente mediante as leis do Estado tem que ser dirigido pelo caminho da virtude oficialmente reconhecida.
O divino "Tu deves" e o estatístico "Tu tens de..." completam-se reciprocamente de um modo maravilhoso. Mandamento e lei são somente formas distintas de
expressão do mesmo princípio de autoridade.
Como a figura de deus e a crença em deus dos homens aceitaram diversas formas e figuras no curso dos tempos, assim também a forma externa do Estado
e a crença no governo dos valorosos súditos estão submetidas às mutações da História. Mas a natureza da coisa ficou invariável e se tratou sempre de novas
envolturas do mesmo princípio de poder.
Da mesma maneira que o problema da melhor religião era antes o controle das rivalidades entre as distintas escolas teológicas, assim girou o cérebro
dos políticos sempre ao redor do problema de "melhor governo".
E da mesma maneira que no domínio da religião há judeus, islamitas, católicos, protestantes, mórmons, se encontram no domínio da política, monarquistas,
constitucionalistas, republicanos, democratas ou bolcheviques, que se atacam reciprocamente, mas, no entanto - consciente ou inconscientemente - perseguem
o mesmo objetivo.
Todos os partidos não são na realidade nada mais que igrejas políticas que servem à sua maneira o Estado, e o mesmo que cada igreja dos sistemas diferentes
de religião segundo seu próprio rito, proclama a glória de seu deus.
Em todas as partes vemos o mesmo ardor de sacrifício dos crentes do termo médio e a mesma codícia do poder nos "eleitos", que arrastam a vida ao lugar
do holocausto para abandoná-la a uma sombra abstrata.
Mas até num domínio tão concreto como a vida econômica do homem agita o espectro divino seu jogo extraordinário e exige, por intermédio dos sacerdotes,
seu tributo humano.
Não será o chamado "direito de propriedade" de nossos economistas senão uma projeção da idéia de deus no domínio do econômico? Em geral, não tem sido
toda a economia nacional burguesa senão a teologia da propriedade?
Os escribas do direito de propriedade procederam do mesmo modo que os teólogos da igreja e do Estado. Assim como estes viram sua tarefa mais ilustre
em inspirar no rebanho dos crentes ou na chusma dos súditos a consciência de sua absoluta insignificância, assim se esforçaram aqueles com todo zelo por
sugerir à massa dos produtores e dos trabalhadores o sentimento de sua necessária dependência para poder prender-lhes, com mais firmeza, às correntes de
seus ídolos. E da mesma maneira que a teologia política e eclesiástica de todas as escolas e tendências procura ocultar a origem e a essência de seu deus
nas regiões da névoa e do mistério, assim também seus representantes no domínio da vida econômica não deixaram nenhum meio sem prova para simular a origem
e a natureza da propriedade com o espesso véu de uma metafísica estranha.
Pois também a propriedade é divina, e todo o divino é mistério.
Neste sentido todas as constituições políticas dos homens - embora se trate dos preceitos teocráticos de Dalai-Lama do Tibete ou da famosa legislação
democrática de 1793 - rodearam a propriedade com uma aureóla de glória e lhe dedicaram o lugar mais distinto em seus documentos legais.
Certamente a propriedade é sagrada, mas é uma das numerosas metamorfoses da idéia de deus que surgiu do sombrio impulso imaginativo do homem, e somente
pode viver sua vida crepuscular nas regiões fantasmagóricas da mais turva fantasia. E também aqui o parecer se converte em ser, desaparece a realidade
vivente numa ilusão.
Como o fetiche que aparece ao selvagem como a morada santa de algum espectro, imaginamos nós que habita em cada objeto, que nossos olhos vêem e nossas
mãos tocam, um fantasma.
Atrás das coisas sensíveis da existência real se refugia a propriedade e até o produto do trabalho de nossas mãos se converte em fetiche onde um demônio
encontrou sua moradia. Ai! Vivemos ainda na idade do fetichismo apesar de toda a instrução, apesar de toda a ciência.
E não somente demos a parte de leão de nosso trabalho a essas ilusões: oferecemo-lhes também como engodo corpos vivos e nos embriagamos no sentimento
de nossa honestidade cívica.
A concupiscência vital dos bravos súditos é poderosamente excitada quando passam ante a exposição sugestiva dos armazéns e depósitos da grande cidade
com o estômago vazio, mas não se atrevem a estender sua mão para todas essas magnificências, por muito que a fome roa seu estômago se não está em situação
de satisfazer o tributo de sacrifício à propriedade. Milhões de criaturas humanas estão abandonadas durante toda a vida à mais horrorosa miséria, em meio
de uma abundância criminosa, que cotidianamente zomba ante seus olhos vorazes de maneira ostensiva, e contudo guardam fiéis os mandamentos do chamado direito
de propriedade, como um crente guardaria os mandamentos de seus deus.
Ilusão, ilusão em toda parte! Dança de espectros ao redor do Gólgota e da vida palpipante sobra os altares fumegantes do sacrifício.
Em constante comunicação com o mundo de espectros dos deuses nos convertemos nós mesmos quase em espectros. Pesa em todos nós algo horroroso, pesado,
que carrega nosso espírito e o atrai aos lugares misteriosos do sacrifício. A tradição de servidão incrusta-se em nosso sangue como um veneno oculto, nutre-se
constantemente de nossa força vital e nos faz ver o mundo como numa caótica embriaguez de ópio.
Ibsen reconheceu o ponto frágil de nosso intelecto quando pôs na boca da senhora Alving estas palavras:
"Não somente nos rodeia o que herdamos de pai e de mãe. Também todos os conceitos velhos e mortos imagináveis e toda espécie de crenças mortas e assim
sucessivamente. Não vive em nós, mas apesar de tudo está em nosso sangue e não podemos ficar livres. Se seguro um jornal e o leio, passa-se alguma coisa
assim como se visse espectros deslizar entre as linhas. Em torno do país devem viver espectros. Devem ser tão numerosos, creio, como a areia do mar. E
além disso todos somos tão míseros morcegos, tanto uns como outros...!"
Ai! o espectro em nós nos faz morcegos e covardes. Trememos ante nossas próprias sombras, e nosso espírito imagina os sistemas mais maravilhosos para
justificar nossas fraquezas e dar-lhes uma aparência heróica.
Assim se mudou a servidão em virtude, a submissão em princípio. Toda nossa vida está dificultada por férreas necessidades que nós mesmos descobrimos
e aumentamos até que se nos tenham transformado em uma fatalidade. Perseguem-nos desde o berço até ao túmulo e oprimem todos nossos atos no molde das sagradas
leis e dos conceitos tradicionais.
Tudo isto se nos converte em obrigação, em irrevocabilidade e ainda depois de romper em pedaços um velho jugo esperamos anelantes novas religiões às
quais possamos oferecer nossa reverência.
Somente no primeiro dia de nossas revoluções zunem à nossa volta os relâmpagos do crepúsculo dos deuses; mas no segundo dia nos ajoelhamos novamente
ante novos altares.
E se alguém da geração dos predestinados vem a nós para convercer-nos com o sentimento de seu humanitarismo, levamo-lo à guilhotina ou o vestimos com
os atributos da santidade. Os fariseus fazem morrer um homem na cruz, mas três dias depois de sua morte fazem surgir do túmulo a ilusão dos crentes num
deus. Quando chegará finalmente a sexta-feira santa do deus que traga a ressurreição do homem?

* * *

Ouvis o grito longínquo da outra margem? Sonho cheio de esperança e radiante de vida pela gelada noite de inverno como um mensageiro do porvir. A rigidez
se dissolve. Um grande anelo vai pelo mundo, como um sopro de primavera. São os presságios do grande crepúsculo dos deuses que nos anuncia a festa da ressurreição.
Germinal! Ouvis retumbar o grito de meia-noite? Germinal, renovador da vida, núncio de um novo devir, espírito de destruição, espírito criador, nós
te saudámos.
Germinal! Germinal!

RUDOLF ROCKER
"As Idéias Absolutistas no Socialismo"

Rudolf Rocker é um nome internacional. Sua acidentada fuga da tirania hitlerista, além de sua obra de revolucionário, veio torná-lo uma das figuras
de primeira plana do movimento socialista libertário da atualidade. Inimigo de toda tirania, amante incansável da liberdade, lutador impertérrito contra
todo o dogma, crente na capacidade humana de criar, defensor dos oprimidos, tudo contribuiu para torná-lo uma das figuras mais empolgantes dos últimos
tempos. A obra que ora apresentamos é composta de um dos seus últimos trabalhos realizados depois da guerra e de ensaios que escreveu durante os dias em
que a humanidade esteve entregue à mais terrível de todas as ameaças que penderam sobre a liberdade e a dignidade, humanas.
Livro de polêmica, escrito, porém, com um estilo brilhante, claro, intuitivo, é uma das mais vigorosas contribuições do socialismo libertário em contraposição
às tendências autoritárias no socialismo. Foi ele membro do Conselho Federal da "Frein Arbeiter-Union Deutschlands", diretor do importante órgão proletário
"Der Syndicalist" e colaborou também no "Der Freie Arbeiter". Atualmente Rocker, já em idade avançada, vive nos Estados Unidos onde deu à publicidade seus
livros entre os quais este que ora publicamos e seu famoso trabalho "Nacionalismo e Cultura", também programado por esta editora, e que mereceu de Bertrand
Russell, de Lewis Mumford, Louis Adamic, Thomas Mann, Charles A. Beard, Rupert Hughes, Herbert Read e muitos outros os mais entusiásticos aplausos.
Os problemas fundamentais do socialismo são examinados neste livro e, além disso, Rocker estimula todos os estudiosos da questão social a investigar
os novos terrenos que se oferecem e que tanta luz podem trazer a todos aqueles que lutam por ideal em prol da humanidade sofredora.

EDIÇÃO DA
Editora e Distribuidora Sagitário Ltda.
Avenida São João, 487
Caixa Postal, 500
SÃO PAULO

notas
(1)
- A feia palavra Gleichschaltnug [equalizar,nivelar - N.E.], tão empregada na linguagem nazi, aparecia já antes do advento do Terceiro Reich, na boca dos
líderes sindicalistas e socialistas na Alemanha. Em semelhantes palavras em voga se reflete, muitas vezes, todo um modo de pensar.

(2)
- Os autores, segundo se verificou mais tarde, eram Nicolas Buguet e Pierre-Ignace Jannez-Sponville.

(c)2002 - Rudolf Rocker

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Julho 2002

De: geraldagelopes


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