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Lançamento Gênesis do Conhecimento - Sem Anestesia - Alex Botsaris



ALEX BOTSARIS

SEM
ANESTESIA
O Desabafo de um Médico

OS BASTIDORES DE UMA MEDICINA CADA VEZ
MAIS DISTANTE E CRUEL


OBJETIVA
2001

Dedico este livro ao meu filho Milton, a meu avô Milton e a
todos os colegas que amam a medicina e desejam fazer dela
uma ciência admirada, em especial aos meus colegas de
turma, que completam vinte anos de profissão em dezembro
de 2001.
A Mana, minha mulher, Yuri, Pedro e Filipe, meus filhos,
pelo tempo que abdicaram de minha companhia para que eu
pudesse concretizar esse sonho.
Aos colegas que contribuíram com meu trabalho,
especialmente: Dr. Humberto Fonseca, Dra. Regina
Fonseca, Dra. Nazaré Solino, Dr. Alexandre Carvalho, Dr.
Marcelo Cosendey, Dr. Helion Póvoa, Dra. Adriana Aquino,
Dr. Luís Felipe Mascarenhas, Dra. Sioni Fraga, Dr. Eduardo
Bandeira de Mello, Dr. Sérgio Sales Xavier, Dr. Tomás
Pinheiro da Costa, Dra. Patrícia Machado, Dr. Alcio Luiz
Gomes, Dr. Ricardo Calmont e Antunes, Dr. Roberto Leal
Boorhem, Dr. Ronaldo Azem, Dra. Rosamélia Cunha, Dr.
Orlando Gonçalves, Dr. Daniel Taback, Dra. Miriam
Andrade, Dr. Dirceu Sales, Dra. Cláudia Torres, Dr. Balta
Radu, Dra. Denise Bom David, Dra. Martha Turano, Dra.
Telma Rezende e Dr. Hélio Luz.
A Maria Cláudia, em respeito ao sofrimento com a perda de
seu filho.
E a todos os que contribuíram, de alguma forma, para a
laboriosa construção destas páginas.

SUMÁRIO

Prefácio
Introdução
O livro

PARTE I
DO OUTRO LADO DO ESTETOSCÓPIO
Capítulo 1: Varrendo a Sujeira para Debaixo do Tapete
Capítulo 2: O Enigma da Qualidade

PARTE II
A AVENTURA DA MEDICINA
Capítulo 3: A Ciência Médica: um Modelo Obsoleto
Capítulo 4: O Arquétipo do Médico
Capítulo 5: O Conservadorismo na Medicina

PARTE III
O DINOSSAURO MODERNO
Capitulo 6: O Divórcio da Magia
Capítulo 7: A Perda da Humanidade
Capítulo 8: A Opressão do Capital
Capítulo 9: A Formação Limitada
Capítulo 10: A Medicina Despedaçada

PARTE IV
A MEDICINA DO FUTURO
Capítulo 11: A Medicina e o Caos ou Receber uma Flor Pode
Curar um Câncer
Capítulo 12: Um Caminho Mais Humano


PREFÁCIO

O livro do nosso prezado colega e amigo Alex Botsaris nos
faz refletir sobre vários problemas que afligem a nossa
medicina atualmente.
Um destes, bem enfocado no livro, é o da iatrogenia, ou
seja, o mal causado por medicamentos que ainda não foram
estudados e são aprovados de maneira apressada,
provocando problemas de relevância na saúde corporal!
Recentemente, tivemos um medicamento abundantemente
usado para a terapia da obesidade e que causava problemas
cardíacos graves, tendo sido por isto retirado do mercado.
Isto ficou bem claro neste livro, em que se revela a crítica
contundente que a medicina clássica faz às práticas da
medicina alternativa, considerando-as como inúteis e de
eficácia duvidosa.
Aqui mesmo, sentimos isto na própria carne, quando foi
proibida a venda de lactobacilos por considerá-los inócuos,
sendo que está comprovada a sua eficiência em casos de
distúrbios por microorganismos (candidíase) intestinais e
outras alterações.
Em realidade, não há medicina alternativa nem tradicional.
Uma é o complemento da outra.
Quando professor visitante de nutrição da universidade de
Harvard, fiquei impressionado com o grande número de
cursos versando sobre medicina alternativa, que hoje
corresponde a 55% dos tratamentos dos norte-americanos.
Aqui, infelizmente, as nossas autoridades médicas proíbem
esta medicina, esquecendo-se de que algumas delas
correspondem a séculos de prática e experimentação
humana, com resultados altamente satisfatórios.
Recentemente, numa experiência, verificou-se que a oração,
apenas ela, possibilitou a melhoria clínica significativa em
pacientes cardíacos, conforme trabalho publicado numa
revista de alto gabarito científico (Armais of Internal
Medicine).
Infelizmente, as multinacionais se preocupam apenas em
promover uma verdadeira lavagem cerebral em nossos
colegas, lançando produtos muitas vezes cheios de
problemas colaterais e efeitos indesejáveis.
Como magnífica borboleta desprendendo-se de um pútrido
casulo, a nossa profissão brotou na magia, alcandorando-se
logo a uma sublime postura divinal.
Mas o planger dos doentes jamais se modificou "curai-nos",
"aliviai-nos" e o médico se vê na obrigação de desempenhar
o papel de homem-deus: de Imhotep ou de Esculápio,
saindo da ilha Cós com a sua companheira, a Serpente, ou
mesmo a de Cristo a pregar "vinde a mim vós que sofreis e
sereis aliviados".
Escrevemos estas linhas porque, no final do livro, o colega
assume uma posição de idealismo cristão em que enfatiza
um princípio por demais exaltado por nós: "o conhecimento
das doenças é que faz a medicina, mas é o amor dos doentes
que faz o médico".
À beira dos leitos, irão aperfeiçoar nossas qualidades técnicas
e nosso potencial humano, já que "nossos atos são sementes
do destino semeadas aqui em nossa terra e colhidas na
eternidade, um caminhar diríamos celestino para a nossa
eterna felicidade".
Ao enfatizar a melhoria da relação médico-doente, ao
insistir em que o aspecto mais relevante da medicina é o
amor e carinho aos enfermos, o nosso Alex Botsaris se
impregna de celsitude: "O homem que é bom de anjo possui
o viso, e está um tanto ou quanto deificado, pois que se ele
não adentrou o paraíso, o céu já terá nele entranhado!".
Caro Alex, o fecho de seu livro, pregando a intensificação do
calor humano na relação médico-paciente, é um verdadeiro
hino de amor à humanidade, diria mesmo uma obra de
magnificência poética!
Daí pedir permissão para encerrar este comentário com esta
ode sobre poesia e medicina:

É uma verdade nítida e serena
Que na poesia há muita medicina,
Já que ela e a todos rija terapia,
Mas medicina é quase só poesia,
Pois que só corações sensíveis e puros
Podem enfrentar doenças e toxinas!
São iguais em sua função o médico e o poeta,
Um pretende salvar o corpo humano,
Mas do poeta a tarefa, em sua essência,
E redimir a nossa alma lutuosa,
E mais que redimi-la é fazê-la
Digna de ser libertada e resgatada!
Rio, 16/7/01
Helion Póvoa Filho


Introdução

O ano de 1994 foi marcante para mim. Foi um tempo de
muita dor, e de grandes mudanças. Em fevereiro, meu avô,
Milton Weinberger, ortopedista e cirurgião, e minha maior
referência como homem e profissional, sofreu um acidente
vascular cerebral e faleceu. Perdê-lo me doeu fundo. Minha
mulher, na época, estava grávida de um menino, e
decidimos chamá-lo Milton, para que essa nova vida
substituísse, ao menos em parte, o vazio deixado por meu
avô. Meu filho nasceu prematuro, sem apresentar
complicação alguma: não tinha membrana hialina,
alimentava-se normalmente, sugava com força a ponta do
dedo. Foi levado a um dos melhores serviços de terapia
intensiva para neonatos no Rio de Janeiro, mas, no 1º dia de
vida, morreu subitamente, sem causa aparente. Com o
trauma dessas duas perdas, tão próximas, fui acometido por
um brutal inconformismo. Quis buscar justiça, processar
aqueles médicos, por imperícia e imprudência. Minha
mulher Foi contra, e acabei concordando que isso não
resultaria em benefício algum. Afinal, eles não tinham agido
de má-fé, apenas aplicado à medicina que tinham aprendido,
de princípios rígidos, incapaz de encontrar caminhos
diferenciados para cada paciente.
Minha missão seria, portanto, muito mais complexa. Seria
preciso investir, profundamente, contra a estrutura viciada
da medicina. Passei a questionar, profundamente, certos
valores e dogmas, e a descobrir como as pessoas estavam
descrentes dela. Comecei a vê-la, em seu gigantismo atual,
como um verdadeiro bicho pré-histórico, um "dinossauro
branco", cujos movimentos podiam ajudar ou lesar milhares
de seres humanos. Ao mesmo tempo, sentia uma crescente
necessidade de me manifestar, de lutar pelo que acredito, de
escrever, em algum lugar, a mensagem que justificasse
minha existência e que, de certa forma, explicasse a breve e
sofrida passagem daquele pequeno ser pela Terra. Vencendo
meu medo, decidi encarar o monstro, identificando seus
principais problemas. Às vezes, era tomado por
pensamentos angustiantes, como: "Quem sou eu, pobre
médico da América Latina, para desafiar dogmas propostos
por cientistas do Primeiro Mundo?" Mas, no meu trabalho
de formiguinha, aos poucos fui descobrindo que não estava
só: outros pesquisadores, em várias partes do mundo, e
mesmo aqui, também questionavam pontos que me
preocupavam.
E fui em frente, disposto a lançar-me nessa cruzada pela
recuperação de valores essenciais de minha profissão. Nos
anos seguintes, minha cabeça fervilhou com histórias e
idéias, e em 1998 lancei-me a campo, nas pesquisas e coletas
de informações que resultaram neste livro.

Procurando Rumos

Na verdade, antes de minha tragédia pessoal, já me sentia
um pouco "peixe fora d'água" no meio médico
convencional. Minha insatisfação com a medicina vem de
muito tempo e meus conceitos com relação à sua qualidade
cada vez me parecem mais distantes daqueles que aprendi na
faculdade. Desde meu ingresso no curso de medicina, em
1976, percebo que o conhecimento acadêmico precisa ser
enriquecido, ampliado, discutido. Já no segundo ano,
comecei a estudar medicinas tradicionais a homeopática, a
antroposófica e a acupuntura. Achava que o médico tinha
que ser informado sobre essas terapêuticas, para poder
aconselhar seus pacientes. Esses estudos foram decisivos
para minha vida profissional, norteando-me na difícil
convivência com a morte e a doença.
Naquela época, o acesso às informações sobre essas
medicinas era escasso e difícil. Recorri a grupos de estudo,
freqüentei consultórios de acupuntura e homeopatia,
importei livros enfim, envolvi-me arduamente na busca
desses conhecimentos. Logo percebi que seria inviável
conciliar a faculdade com todas essas frentes. Sempre fui
excelente aluno, mas não tinha tempo para estudar
profundamente tudo o que me interessava, mesmo
reduzindo as horas de sono. Teria que optar por apenas um
caminho, além da faculdade. Instintivamente, escolhi a
acupuntura.
Hoje, imagino que o motivo real dessa opção se deva ao meu
fascínio por esta milenar técnica terapêutica, que, para mim,
preenchia requisitos indispensáveis: contribuiria para minha
formação, como médico generalista, e ao mesmo tempo me
aproximaria do trabalho de meu avô meu consultor em
ortopedia, e entusiasmado aliado nesse meu interesse pela
técnica chinesa. A acupuntura se preocupa com o indivíduo,
como um todo, e tem grande aplicação nos problemas
músculo-esqueléticos. A inserção de agulhas na pele pode
ser comparada ao exercício do bom instinto invasivo que
norteia o bisturi do cirurgião.
Enquanto continuava as atividades acadêmicas, aperfeiçoava
minhas habilidades com as agulhas. No final dos anos 70,
resolvia problemas comuns de saúde no meu círculo de
amizade, depois os dos amigos dos amigos, e acabei
conquistando um grupo de clientes cativos. Contando com
uma pequena renda, aluguei um apartamento, em sociedade
com outros colegas de faculdade. Ali vivíamos, com
intensidade, nossa fantástica aventura no mundo da
medicina, trocando experiências, livros e idéias. Foi um
período de grande crescimento profissional e pessoal.
No 6º ano da universidade, passei num concurso para
estagiário do Centro de Tratamento Intensivo do Hospital do
Andaraí, e vivi os extremos da profissão: a necessidade de
enfrentar a morte e outras situações dramáticas, tomando
decisões difíceis e imediatas. Em seu embate quixotesco
contra a morte, a terapia intensiva me fascinava tanto
quanto a medicina chinesa, com sua obsessão pelo equilíbrio
orgânico. Mas a tensão entre esses dois mundos,
aparentemente heterogêneos aos olhos de meus colegas, era
quase insuportável para eles. Virei personagem de chacota:
sempre que surgia um caso complicado no CTI, um
engraçadinho me sugeria: "Enfia uma agulha nele, Alex, pra
ver se ele melhora." já os simpatizantes da medicina chinesa,
estranhavam meus procedimentos invasivos, próprios de um
intensivista, e não perdoavam: "Enfia um tubo no paciente
pra ver se ele melhora!"
Na faculdade, acostumei-me a ser chamado, volta e meia, de
"o bruxo". Conciliar meus conhecimentos, o que parecia
impossível para eles, para mim nunca o foi. Estavam
compartimentados, no cérebro, sem risco de se chocarem
pelo contrário, se complementando. Sempre acreditei que a
medicina fosse uma só. Na vida acadêmica, amarguei
problemas maiores. Minha "dupla atividade" causou
desconforto entre alguns professores patente, por exemplo,
por ocasião da prova da residência para o Hospital do
Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Aprovado em 4º lugar na prova teórica, para um concurso
de 12 vagas na área de clínica médica, fui desclassificado
numa prova prática ridícula, quando me foi solicitada uma
palpação do baço e a percussão do tórax. Era o mesmo que
pedir a um piloto de corrida que estacionasse um carro na
vaga. Senti-me apunhalado pelas costas, rejeitado,
inconsolável. Muitos colegas se solidarizaram comigo: a
desclassificação fora inesperada, injusta, inacreditável.
Percebi, naquele momento, que estava sepultado o sonho de
seguir carreira acadêmica, teria que "dar a volta por cima",
enfrentando e vencendo outros concursos.
Hoje, acredito que não haveria mesmo espaço para um
médico com fama de "bruxo" no hospital universitário.
Acabei por fazer residência no Hospital dos Servidores do
Estado, na época com excelente padrão e maior flexibilidade
para aceitar alguém com interesse em medicinas
tradicionais. Passei num concurso do extinto Inamps,
ocupando uma vaga no staff do Centro de Tratamento
Intensivo do Hospital da Posse. Continuei nos extremos da
medicina: trabalhando no CTI, com uma equipe de grande
qualidade, ao mesmo tempo em que participava da formação
de um grupo de estudos que fundaria o Instituto de
Acupuntura do Rio de Janeiro, em 1985 atualmente, no
gênero, uma das melhores escolas do Brasil.
Exercer livremente meu aprendizado, empregando os
conhecimentos acumulados, exigiu-me tempo e paciência.
Com o grupo, que contava com dois médicos recém-
chegados da China, e os novos livros publicados em inglês,
pelas universidades chinesas, fui me aprofundando e
compreendendo melhor essa vertente da medicina. Nesse
momento, fortaleceram-se em mim os vínculos entre o
conhecimento acadêmico e o tradicional. Nessa época, tive
um insight emocionante, que me remeteu à infância,
quando, brincando na praia, cavava túneis na areia e meus
dedinhos encontravam os da criança que cavara do outro
lado. Era isso: estava feita a conexão definitiva entre os dois
lados do cérebro, entre meus conhecimentos da medicina
convencional e da tradicional. Restava apenas amadurecê-la.
Foi um processo muitas vezes penoso. Os primeiros dez
anos do Instituto de Acupuntura marcaram passagens de
grande importância para mim — a primeira viagem à China,
por exemplo. Com uma bolsa do CNPq, fui fazer uma
especialização chamada Curso Avançado de Acupuntura,
vivendo nos hospitais chineses durante quatro meses e
assistindo a tratamentos e a curas incríveis. Na época, era do
staff do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do
HSE, e contei com a compreensão do meu chefe, o
fantástico Dr. Adrelírio Rios, que me permitiu lançar-me
nesta aventura que, fatalmente, mudaria minha vida. Voltei
daquele país com novos conceitos e uma outra visão do
modelo de medicina e de saúde pública.
Lá, além de presenciar a recuperação, pela acupuntura, de
doentes com enfermidades sérias e de difícil terapêutica,
alguns fatos me sensibilizaram profundamente, como o de
um paciente paraplégico, sem nenhuma atividade motora
residual, mexer as pernas durante uma aplicação de Qi Gong,
e o uso quase universal de plantas medicinais no tratamento
primário de problemas de saúde. Medicamentos de origem
química só eram empregados em último caso, prescritos no
hospital. A partir de então, mergulhei de cabeça no
fascinante mundo da fitoterapia. Tão marcante foi minha
experiência nessa área que mais tarde publicaria dois livros
sobre o assunto.
Em 1991, fui colocado em disponibilidade pelo ministro da
Saúde, Sr. Alceni Guerra. O desserviço por ele prestado ao
país, tirando milhares de médicos, de forma desnecessária,
de seus postos de trabalho, ao menos para mim foi
vantajoso. Estava cada vez mais afastado da equipe do
Serviço de D1P5 do HSE. Apesar de manter fones laços
afetivos com meus companheiros, a separação seria
necessária para que pudesse me aprofundar nos campos que
mais me atraíam. De volta da disponibilidade, fui requisitado
para o Programa Estadual de Plantas Medicinais, com o qual
contribuí até meados de 1999.

O Livro

Sem anestesia procura investigar as razões para tantas
distorções e desacertos, e encontrar as soluções mais
adequadas. Perseguindo tais objetos, não poupa críticas aos
responsáveis pelos equívocos apontados ao longo de suas
linhas, nem teme dissecar a complexa trama do
corporativismo da classe medica um cone na própria carne
para então buscar os bons aspectos da medicina, como o do
médico ao qual toda a família recorria em cega confiança,
num passado não tão distante, e que hoje seria aquele que se
preocupa em entender os processos que afetam sua prática,
discute aspectos técnicos, científicos e filosóficos da ciência
médica. O ponto inicial de sua investigação será, sempre, a
relação médico-paciente, pois, a partir daí, todos os grandes
problemas serão identificados.
E o que mostro, nestas páginas. O material básico utilizado
são entrevistas, relatos, informações e estudos colhidos em
palestras, artigos científicos e em diversas publicações.
Pesquisas de campo foram desenvolvidas para identificar a
visão de médicos e pacientes sobre os problemas atuais da
medicina a partir de dados estatísticos que sustentaram as
hipóteses apresentadas. Os relatos de histórias clínicas são
verídicos, embora fictícios os nomes dos envolvidos.
Meu trabalho partiu, também, do pressuposto de que a saúde
é um tema a ser discutido por toda a sociedade. Ela deve
participar da definição de seus novos rumos, num grande
movimento que envolva profissionais de diferentes áreas,
com formas também diversas de pensar. Não é possível
delegar decisões tão importantes a um restrito grupo
acadêmico e aos interesses econômicos do setor.
Para lidar com o questionamento, amplo e complexo, da
estrutura da medicina, dividi o livro em quatro partes. A
primeira, "Do Outro Lado do Estetoscópio", trata da
distância entre o universo do médico e o do paciente, e do
que ocorre quando o primeiro vive a situação do segundo —
como experimentei, por ocasião da morte de meu filho. Em
"A Aventura da Medicina", investigo as origens da ciência
médica, seus mitos e influências sobre a que é hoje
praticada. Na parte que chamei de "O Dinossauro Moderno",
discuto as grandes distorções e erros estratégicos da prática
médica. "A Medicina do Futuro" propõe novas idéias para
aperfeiçoá-la, como ciência e arte de curar.
Por fim, gostaria de frisar que, a despeito de ter me
empenhado em revelar as mazelas desse universo, ao qual
pertenço, com orgulho e amor à profissão, não considero
minha prática médica perfeita, nem inquestionável. E não
critico a totalidade de meus colegas. Isso seria hipocrisia.
Muitos adotam posturas mais humanas e sensatas, bem
orientadas tecnicamente, não importando se adeptos de
procedimentos alternativos ou convencionais merecem todo
o meu respeito e admiração. Mas, infelizmente, não são a
maioria. E existe, ainda, um expressivo número de bons
profissionais que cometem distorções, na prática, não por
má fé, mas por estarem inteiramente influenciados por
conceitos equivocados. Este trabalho passou pelo
reconhecimento de distorções na minha própria atuação
profissional.
Quantas vezes fui obrigado a atender pacientes de forma
rápida demais, configurando a "Síndrome do Médico
Apressadinho"? Em outras, focalizei meu exame unicamente
nas partes que os incomodavam, caracterizando a
compartimentalização da medicina. E houve uma época,
logo após minha formatura, em que eu desprezava os
sintomas subjetivos dos meus pacientes, por haver
aprendido que eram resultado "de sua imaginação".
Mesmo herdando essas distorções, vou tentando reciclar-
me. Aprendi que o importante é desenvolver o senso crítico
e a capacidade de aprender, dia-a-dia. Espero que o livro
contribua tanto para o aprimoramento dos médicos
preocupados em humanizar sua profissão como para motivar
os pacientes para que lutem por uma medicina mais humana
e de melhor qualidade que, afinal, é o verdadeiro significado
da arte de curar.

PARTE I
Do Outro Lado do Estetoscópio

Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Dito popular

CAPÍTULO 1
Varrendo a Sujeira para Debaixo do Tapete

Meu filho Milton Botsaris nasceu de parto prematuro numa
maternidade da Zona Sul do Rio de janeiro. Com 32
semanas, não apresentava complicação alguma, mas foi
levado a um dos melhores serviços de terapia intensiva para
neonatos. Começou a ganhar peso, estava bem. Mas a equipe
desta UTI era intervencionista e iniciou um tratamento
chamado nutrição parenteral. Perguntei a razão para aquele
procedimento, já que a criança estava se alimentando
normalmente por via oral, e me informaram de que esta era
a rotina. Disseram-me que, dessa forma, as crianças
ganhavam peso mais rapidamente e podiam receber alta em
menor tempo.
Mas esse não é um tratamento destituído de complicações:
que pode provocar problemas metabólicos, distúrbios
eletrolíticos, alterações da coagulação e infecção. Quando
cheguei para visitar o menino, no seu décimo dia de vida, fui
surpreendido por uma algazarra na incubadeira. Depois de
muito entra-e-sai, e de momentos angustiantes, informaram-
me que meu filho morrera. A causa mortis, segundo os
médicos, fora infecção generalizada. Desesperado, finquei o
pé e disse que não aceitava o diagnóstico. Acompanhara
meu menino dia a dia, já havia trabalhado com crianças em
UTI e conhecia muito bem os sinais de infecção em
neonatos. Concordamos em mandar o corpo de Milton para
sua última prova neste mundo hostil: o exame de necrópsia.
O resultado foi morte causada por infarto agudo do
miocárdio, com ruptura de músculo papilar. Por outro lado,
a criança não tinha qualquer anomalia cardíaca congênita
que justificasse um infarto. Traduzindo: a morte fora em
decorrência de algum fator que gerara um trombo ou que
aumentara a coagulabilidade do sangue, o que resultara no
entupimento de uma artéria coronária.
Isso significava que a conduta médica adotada falhara
gravemente: eu estava à frente de um caso de iatrogenia, ou,
em outras palavras, de uma situação na qual o tratamento
médico é a causa da doença. Tinha ficado acertado que a
equipe da UTI me procuraria com o resultado da necropsia
para discutirmos melhor o assunto. Ninguém apareceu para
me dar explicações. Também não voltei mais àquele lugar
era doloroso demais mexer nessa ferida. Se o pequeno
Milton tivesse nascido no interior, longe dos hospitais
sofisticados, provavelmente teria sobrevivido. Sem
nenhuma dessas abordagens agressivas e contando com o
leite, o calor e o carinho maternos, teria tudo para se tornar
um adulto saudável. Mas, infelizmente, caíra nas mãos de
uma equipe de UTI intervencionista, de um hospital super
equipado, o que lhe custara a vida.
Nesse triste episódio, vimos que uma criança morre
inesperadamente numa UTI neonatal de excelente padrão e
não há preocupação da equipe médica em investigar a fundo
a causa mortis. A estratégia foi empurrar um diagnóstico
qualquer, como "infecção". Nesse caso, não aceitei as
explicações e exigi a necropsia — o que é uma exceção à
regra, pois a maioria das pessoas não gosta de submeter seus
entes queridos a mais uma agressão. E o resultado, que a
equipe da UTI ignorou, foi surpreendente. Como não voltei
para questioná-la, foi cômodo deixar tudo como estava.
Continuo me perguntando se o que matou meu filho se
repete com freqüência, nessa UTI, com outras crianças. Não
sabemos, ao certo. Mas o pior é que não parece haver, por
parte das equipes médicas, suficiente preocupação em apurar
casos como este.
São vários os fatores que geram essa maneira de proceder. O
mais óbvio é o pânico, por parte dos médicos, da ameaça de
processos judiciais ou de outras formas de punição. Mas há
ainda a complexidade da prática médica atual, que dificulta a
implantação de sistemas de avaliação eficientes e, ainda, a
tensão gerada pelo contato constante com a doença e a
morte, as implicações econômicas de uma autocrítica mais
severa os interesses do grande capital investido em empresas
ligadas à área da saúde e mesmo a visão estreita gerada por
um modelo científico excessivamente rígido. Por isso,
apesar de ouvirmos falar, a torto e a direito, em erro médico,
o fato é que apenas uma minoria insignificante de casos é
reportada ou discutida sob o ponto de vista científico.
Alguns, mais chocantes, ganham os jornais, levados por
gente inconformada com a perda de familiares por erro ou
negligencia médica, quando optam por intermináveis
embates judiciais, quase sempre inglórios.

Separando o Joio do Trigo

Nunca havia reparado como pode soar estranha a discussão
sobre o que presta ou não na medicina. No caso de meu
filho, por exemplo, sendo prematuro, precisaria ser
transferido para uma UTI neonatal. Por querer o melhor
para ele, telefonei para alguns amigos médicos para pedir
opiniões e ouvi conselhos como "não interne no hospital Y
que não é bom", ou "chame o Dr. Fulano que é o melhor."
Enfim, todos tiveram um conselho a dar, como que cientes
de que determinadas escolhas seriam essenciais à
preservação da saúde de Milton. Essas discussões traziam,
claramente, a percepção da existência da divisão, ainda que
nebulosa, entre a "boa" e a "má" medicina e a necessidade de
ser muito cuidadoso, para se proteger da "parte má".
Na hora, não atentei para a gravidade dessa ameaça. Se o mal
existe, pensei, pelo fato de ser médico, minha família estaria
imune a ele. Mas, após a dramática e curta vida do meu
pequeno, ficou evidente como é quixotesca essa atitude
onipotente. Reflexão, profissionais qualificados e um caro
serviço de neonatologia não foram suficientes para
neutralizar os males de uma medicina ruim. Uma questão
passou a me atormentar: como identificá-la e ficar a salvo de
suas terríveis garras? Esta me parecia uma pergunta sem
resposta. Depois de o mal surgir no meu quintal, passei a vê-
lo infiltrado por toda parte, e eu já não sabia como evitá-lo.
Ficou patente, nesse triste episódio, que a própria
corporação médica tem uma percepção exata de que algo vai
mal no seu universo, e que acredita que a solução para o
problema está personificada nesse ou naquele especialista,
ou numa determinada equipe, ou num hospital. Mas a dura
realidade dos fatos nos mostra que está cada vez mais difícil
separar o joio do trigo.
A história de meu filho que veio ao mundo para viver
apenas dez dias gera questionamentos filosóficos e práticos.
Podemos tirar mais um importante ensinamento dessa
tragédia: uma grande distorção na medicina moderna, que
chamo de "Síndrome da Sujeira Varrida para Debaixo do
Tapete", um movimento de ocultar problemas decorrentes
da prática médica, de forma consciente ou inconsciente,
pelo próprio profissional, sua corporação, ou mesmo pela
equipe de saúde. Isso ocorre de várias formas: minimizando-
se as queixas dos pacientes, negando-se evidências, fazendo
corpo mole para mexer nos podres e, principalmente,
evitando-se a instalação de sistemas eficientes de avaliação
da qualidade da medicina.
Os privilegiados de nossa sociedade costumam pensar que
graves problemas de saúde são enfrentados desembarcando-
se, de um jatinho, no Instituto do Coração, em São Paulo, ou
em algum hospital famoso nos EUA. É cerro que o In cor é
um grande hospital e que nos Estados Unidos há excelentes
centros médicos. Mas a tecnologia ou as aparências não são a
resposta para todas as dificuldades geradas pela doença.
Mesmo procurando uma solução aparentemente ideal, pode-
se esbarrar na tal '"medicina ruim".
Foi exatamente o que descobri, da maneira mais dolorosa. A
morte de Milton gerou em mim um grande sentimento de
impotência e de responsabilidade. Como médico, onde
falhara? Tinha certeza de que havia escolhido uma UTI do
melhor padrão e subitamente veio, como que jogado na
minha cara, aquele diagnóstico de infarto do miocárdio num
bebê de dez dias. Tanto esforço para buscar o melhor e
descubro que por trás de toda a aura de competência que
cercava a equipe que o tratava lá estava a "Síndrome da
Sujeita Varrida para Debaixo do Tapete". Comecei a
entender, então, que não há como escapar das ciladas da má
medicina sem lutarmos para modificá-la, como um todo, de
forma profunda e cirúrgica.

Do Outro Lado do Estetoscópio

É interessante notar como, muitas vezes, só percebemos
certas coisas quando elas nos afetam de forma pessoal. Em se
tratando de médicos, geralmente eles só percebem o drama
do paciente exposto às limitações da medicina quando, por
obra do acaso, passam para a outra extremidade do
estetoscópio. No papel de doente, deparam-se com a
angústia e o medo normais do ser humano à mercê de uma
medicina impotente ante o desconhecido e o imprevisível.
Isso pode ser ainda mais assustador quando existem sintomas
subjetivos desprezados pela prática médica e o paciente fica
sem explicação para o que está sentindo. O fato é que, nessa
posição, numa situação grave, o profissional passa a conviver
com toda a gama de sentimentos contraditórios vividos por
seus clientes.
Essa situação foi mostrada de forma magnífica pelo ator
William Hurt em Um golpe do destino. No filme, ele faz o
papei de um famoso cirurgião cuja postura era fria e objetiva,
como se a medicina fosse ciência exata. Acometido de um
câncer de laringe, que afetara sua voz, o médico passa pelas
dificuldades que subestimara em seus pacientes, o que
provoca uma drástica mudança no seu comportamento:
começa a compreender a origem e a essência do sofrimento
de quem procura um médico, e exige dos alunos que
experimentem trocar de posição para não se tornarem
médicos frios e distantes como ele fora até então.
No episódio que culminou com a morte do meu filho,
ocorreu um processo semelhante. Já nessa época sentia-me
insatisfeito com muitos aspectos da medicina, como contei,
e tudo o que passei reforçou meus sentimentos. Vi-me
impotente e frustrado, limitado a acompanhar a dura rotina
diária da UTI neonatal, sem concordar com as decisões
tomadas. Não houve preocupação da equipe médica em me
informar antecipadamente sobre suas decisões, cm explicar
claramente os motivos nos quais elas estavam
fundamentadas, ou em tentar aliviar a angústia que me
atormentou com o fim inesperado do meu filho.
Ao final dos fatos, explodi num turbilhão de sentimentos
que variaram do ódio e da revolta ao desejo profundo de
mudar um injusto sistema de cuidar das pessoas. Nada como
ficar do outro lado do estetoscópio para reavaliar conceitos e
valores da medicina. Dor não combina com racionalidade. E
impossível pretender que alguém seja lógico quando seu
universo psíquico está tomado por uma dor infinita. Com o
passar do tempo, ela foi sendo substituída por idéias que me
obcecavam, dia e noite. Fui anotando todas e aos poucos
encontrando respostas para questões que me atormentavam.
A medicina estava tão impregnada de verdades e dogmas
que deixara de se preocupar com o que se passava na cabeça
e no coração dos pacientes, Tornara-se excessivamente
técnica e cartesiana, negando seus aspectos irracionais e
mágicos. Passei a ver o quanto é praticada sem um controle
de qualidade eficiente, sem a existência de um fórum para
onde se possa levar críticas, com liberdade, e a perceber
uma tendência à acentuação desses problemas. Tudo isso, a
meu ver, propiciando uma queda crescente na qualidade de
seu exercício e no surgimento de freqüentes erros
estratégicos na conduta médica.

Iatrogenia, Doença em Expansão

Há muito tempo é sabido que as intervenções médicas
podem causar um mal maior que a doença em si. Hipócrates
já recomendava que o médico procurasse evitar esse
equívoco ao prescrever um tratamento. Com o surgimento
de especialidades e super especialidades, a introdução de
técnicas sofisticadas nas novas áreas da medicina, o aumento
de procedimentos invasivos, o aparecimento de muitas
drogas no mercado, houve um aumento significativo dos
casos de iatrogenia. Isso também é reflexo de fatores
negativos como o tecnicismo, a falta de humanidade e o
privilégio do capital que, afinal, provocaram o adoecimento
da medicina. Ela própria reconheceu a gravidade do
problema ao criar um termo para designá-lo, embora ainda
não tenha instituído um sistema adequado para aferi-lo, nem
vem tomando providências para reduzir sua incidência.
É faro relevante a inexistência de qualquer método de
avaliação estatística para aferir a freqüência da iatrogenia,
não só no Brasil como nos países do Primeiro Mundo. Por
trás disso existe o pânico generalizado, na classe médica, de
que essa preocupação possa se reverter contra ela, em ações
judiciais impetradas por pacientes prejudicados por seus
tratamentos. Processos por responsabilidade médica crescem
em todo o mundo, o que pode refletir tanto um aumento da
iatrogenia como um novo comportamento do paciente, mais
exigente com relação ao profissional escolhido para tratá-lo.
O Dr. Daniel Taback, oncologista do Inca, no Rio de Janeiro,
manifestou sua preocupação afirmando que uma boa relação
médico-paciente poderia reduzir o número de ações
judiciais contra médicos, "primeiramente por implicar na
diminuição dos próprios casos de iatrogenia, já que a melhor
qualidade dessa relação reduz a margem de erros da
avaliação médica". Se existe um bom diálogo entre eles,
avalia Taback, e as decisões são tomadas em conjunto, o
paciente, mais bem informado dos riscos do tratamento,
aceita com mais naturalidade as eventuais complicações que
possam surgir.
Este é um dos melhores médicos que conheço: alia ao seu
extensíssimo conhecimento técnico, a humanidade e
humildade em lidar com as limitações e dificuldades da
prática cotidiana. Por outro lado, ele trabalha em oncologia,
um dos ramos onde a iatrogenia costuma ser um sério
problema, em virtude da toxicidade dos medicamentos anti-
câncer. Ao ser perguntado sobre um possível aumento
desses casos, confirma: "A documentação médica não é boa,
nem a qualidade das avaliações médicas, e tampouco o
conhecimento dos fenômenos que levam à iatrogenia." Para
ele, já há uma percepção geral de que esse fenômeno está
aumentando e que faltam meios eficientes para avaliá-lo em
profundidade.
A falta de parâmetros para lidar com a iatrogenia transforma-
a num mito. Isso reforça a percepção por parte da população
de que os procedimentos médicos são excessivamente
agressivos e "podem prejudicar a saúde". Como
conseqüência, há uma piora da imagem da própria medicina,
e da relação médico-paciente de uma forma geral. Todos
sabem que as coisas não vão bem: ouvem-se histórias de
vizinhos, parentes e amigos prejudicados por tratamentos.
Estamos num ambiente gerador de frustrações e
desconfianças. Não importa quanto merchandising se faça
na promoção das instituições e serviços ligados à saúde: a
forte percepção da ameaça causada pela iatrogenia mobiliza a
sociedade, cada vez mais, e ela já clama por soluções.
Meu pequeno Milton foi mais uma das milhares de vítimas
anônimas desse problema aqueles infelizes que não
aparecem em nenhuma estatística. Caso eu não tivesse
intercedido, questionando a equipe médica e insistido na
necrópsia, seu diagnóstico verdadeiro nunca seria
conhecido, e ficaria no que está escrito no atestado de óbito:
"Septicemia conseqüente a parto séptico."
O Dr. Alexandre Carvalho, pneumologista radicado em
Dallas, no 'Texas, concorda com Taback: a iatrogenia
certamente aumenta por não existirem instrumentos
adequados para avaliá-la e, assim, evitá-la. Porém, acredita
que há mais razões para isso, como a maior sobrevida de
portadores de doenças crônicas ou de difícil manejo, como
diabetes, câncer e AIDS. Explica ele que esses doentes,
atualmente, vivem mais tempo, e são submetidos, cada vez
mais, a recursos invasivos e sofisticados, aumentando-se
muito as chances de ocorrerem complicações. Carvalho
entende que uma avaliação global da iatrogenia não
acrescentará dados importantes, por compreender
problemas heterogêneos como a má prática médica e as
reações inesperadas às drogas. Mas, na posição de paciente,
gostaria de ser mais bem informado sobre os riscos de certos
tratamentos.
O Dr. Alexandre é um grande amigo e temos intimidade
para discutir temas dessa natureza. Estudávamos juntos
quando ele fez a prova do Consulado Americano, que lhe
permitiu exercer a medicina nos Estados Unidos. Conhecida
por VQE, é uma prova difícil e poucos conseguem vencê-la.
Contando com meu incentivo, e com muita força de
vontade, Carvalho conseguiu não só ser aprovado como é
hoje um dos especialistas mais respeitados de Dallas.
Portanto, quando ele me diz: "Você gosta de objetivos
ideais, de perfeccionismo, mas o ideal não existe", respondo
que o mundo globalizado exige perseguir metas que estão,
no mínimo, próximas ao ideal.
Por que a iatrogenia não é avaliada? Simplesmente porque
não há, ainda, metodologias que tornem isso possível, e nem
se vê, nas instituições médicas ou órgãos de saúde pública,
uma real vontade de fazê-la. Esse é um ponto fundamental
para revertermos uma situação que pode vir a se tornar
dramática. Os colegas que entrevistei concordam com
Taback e Carvalho sobre o aumento da iatrogenia, mas não
crêem ser tarefa simples avaliá-la e controlá-la, ou mesmo
não parecem preocupados, suficientemente, com isso. Para
resolver o problema, seria necessário tornar públicos os
podres da medicina, varrer para fora, afinal, a sujeira que se
amontoa sob o tapete.
Há um excessivo foco na medicina americana, por pane dos
médicos brasileiros, e, como os Estados Unidos não estão tão
mobilizados para o problema quanto algumas sociedades
européias, nossos profissionais preferem ignorar que já há
muita gente preocupada com a questão. O grupo Human
Pharmacology Work Group (AGAH), integrado por
representantes dos ministérios da Saúde de vários países,
como da Suíça e da Alemanha, desde 1997 levanta dados
para avaliar casos de iatrogenia originados por
procedimentos médicos e prescrição de drogas, incluindo os
anestésicos. Segundo um resultado preliminar publicado em
O Globo, em 2 de agosto de 1999, cerca de 25 mil pessoas
morrem vítimas desse mal, só na Alemanha. O AGAH ainda
mostrou que esse número corresponde a três vezes o de
vítimas de acidentes de trânsito.
Cabe ainda comentar que a medicina alemã é muito menos
agressiva e intervencionista que a americana, ou a brasileira,
o que pode significar que o problema pode ser muito mais
sério entre nós.
Mais Entulho sob o Tapete

Podemos relatar incontáveis fatos nos quais ocorreram
graves falhas médicas, algumas por puro descaso, como
exemplifica o que ocorreu numa UTI de um grande hospital
carioca, em 1998, no qual um auxiliar de enfermagem
executava pacientes terminais injetando neles cloreto de
potássio ou desligando seus respiradores, sem que a equipe
médica percebesse. O caso estourou nos jornais, descoberto
por uma simples faxineira. Suspeita-se que tenham sido
executadas cerca de 100 pessoas, num período pouco
superior a um ano. Nunca ninguém se dera conta de que
algo errado acontecia ali, sob o nariz de tantos profissionais!
Caryle Hirshberg e Marc Ian Rarasch, autores do livro Curas
extraordinárias, que trata do levantamento de casos de
câncer que tiveram cura espontânea (inclusive a do próprio
Marc), nos Estados Unidos, relatam que ficaram intrigados,
durante a pesquisa feita em hospitais, com a indiferença dos
médicos a respeito desses fatos. Esse é o motivo da
inexistência de estatísticas sobre essas ocorrências, afirmam.
Outros estudiosos garantem que essas curas são fenômenos
raros, algo como um caso para 100 mil doentes, mas
Hirshberg e Barasch acreditam que a freqüência é muito
maior. Atentar para fatos dessa natureza é uma forma de se
obter informações valiosas para o desenvolvimento de novas
armas para o tratamento da doença — dados que acabam
perdidos sob essa atitude pouco científica.
Estas são outras formas de se "jogar a sujeira para debaixo do
tapete". Não é coerente nem científico tratar assuntos dessa
relevância com tanto desinteresse, mas é o que ocorre,
como conseqüência da mentalidade, que prevalece nos
meios médicos, de ocultar informações incômodas e
polêmicas.

A Busca de Novos Caminhos

Se a sociedade se conscientiza desses problemas, mesmo
sem dispor de informações suficientes, reage procurando
outros caminhos: as chamadas medicinas alternativas. Nos
Estados Unidos, houve um aumento de 30 para 55% das
consultas pagas, no sistema de saúde, na área de medicina
alternativa, nos últimos dez anos, segundo a revista médica
JAMA. A população anseia por uma medicina menos
agressiva.
O movimento de resgate das "alternativas" cresce no mundo
todo, não só nos Estados Unidos. É comum se ouvir dos
pacientes que eles não querem tomar determinados
medicamentos para não se intoxicarem, ou que não desejam
ingerir substâncias químicas que se acumulam no corpo.
Apesar de certo preconceito a respeito disso, e de
concepções errôneas, isso reflete a percepção de que a
medicina convencional está contaminada por conceitos e
atitudes equivocadas.
Portanto, para melhorar a qualidade da prática médica, é
preciso promover uma profunda reforma conceitual, uma
faxina cm regra nos seus parâmetros e formas de atuação:
rediscutir os modelos, repensar o papel do médico, melhorar
sua formação e eliminar conceitos antigos e limitantes.


Conclusões

A medicina pratica muitos equívocos, não esclarecidos, na
maioria das vezes, pois não há eficientes sistemas de
apuração da sua qualidade.
Há uma tendência a ocultar problemas, o que gera a
"Síndrome da Sujeira Debaixo do Tapete". Com isso, muitos
deixam de ser identificados e a qualidade da medicina cai, de
forma progressiva.
Separar a "boa" da "má" medicina, e descobrir como evitar a
segunda, é uma necessidade absurda, mas que resulta desses
problemas.
A queda da qualidade da medicina leva ao aumento da
iatrogenia situações onde os tratamentos prejudicam a saúde
ao invés de melhorá-la. Apesar de haver indícios do
aumento significativo desses casos, não há nenhuma
abordagem científica para quantificar o problema nem para
procurar soluções.
Na medicina européia, há mudanças sensíveis nessa
concepção, com as primeiras ações para se medir a
iatrogenia, através do grupo AGAH. Os resultados
preliminares foram preocupantes, incluindo-a entre as
principais causas de mortalidade no mundo atual.
A medicina precisa passar por profundas reformas estruturais
e conceituais. Isso exige mudanças de paradigmas,
discutindo-se o papel do médico na sociedade, revendo-se o
modelo econômico, melhorando a formação médica e
propondo novas estratégias científicas.

O Enigma da Qualidade

Uma boa maneira de saber se os avanços tecnológicos da
medicina estão na direção correta é avaliar a qualidade dos
seus serviços, através da opinião do usuário do sistema de
saúde: ele está satisfeito? Sua resposta é fundamental para
que saibamos, exatamente, em quais aspectos ela precisa
melhorar, e por quê. Mas temos que levantar outra questão:
sob quais parâmetros analisá-la? Como vimos, a medicina
praticada entre nós não se preocupa em avaliar sua
qualidade, no que diz respeito ao usuário. As informações
disponíveis são colhidas pelos médicos, a partir de seu
próprio conceito de qualidade, ou através da abordagem
superficial dos pacientes, quando questionados sobre pontos
como cumprimento de horários de consulta etc.
Ao escrever este livro, eu não tinha conhecimento de
pesquisas dessa natureza. Mas, como muitos, sei das forces
evidências da insatisfação generalizada com relação aos
serviços de saúde. Na prestigiada revista JAMA, encontrei
números significativos com relação ao aumento da procura
por consultas em terapias alternativas nos Estados Unidos,
de 30%, em 1990, para 55% em 1999. A publicação, porta-
voz oficial de Associação Médica Americana, chamou a
atenção para o que isso representa: um protesto do usuário
contra o modelo vigente. A Alemanha, por exemplo,
experimenta uma mudança crescente no mercado
farmacêutico, com fitoterápicos conquistando fatias cada vez
mais expressivas no mercado, ao longo dos últimos anos,
estando atualmente na faixa de 38%. Um estudo sobre a
medicina alternativa nos Estados Unidos, conduzido por
Eisemberg e seus colaboradores, e publicado em 1993, no
New England Journal of Medicine, estima que em 1990 os
americanos gastaram 13,7 bilhões de dólares em consultas
com médicos alternativos, sendo que 10,3 bilhões foram
pagos do próprio bolso.
Para dar suporte às críticas que gostaria de fazer neste livro,
necessitava de avaliações ainda mais objetivas. Decidi
contratar uma pesquisa especial para avaliar a situação no Rio
de Janeiro. Apesar da limitação geográfica, seus resultados
foram bastante expressivos, justificando uma análise
detalhada. Somados ao que se vê e sabe, no dia-a-dia: os
dados não deixaram dúvidas: é preciso, urgentemente,
corrigir muitas coisas.

A Qualidade da Medicina no Rio de Janeiro

Na pesquisa realizada em maio de 1998, pela Faculdade de
Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 400 pessoas foram ouvidas o que é uma amostragem
estatisticamente significativa da população carioca. Quando
perguntados sobre seu nível de satisfação com relação à
qualidade da medicina, os entrevistados responderam, na sua
maioria, com objetividade: 14,2% disseram que estavam
satisfeitos, 83,6% que estavam insatisfeitos, e 2,2% não
souberam opinar.
Quando questionados sobre o porquê da insatisfação,
apontaram segundo a tabela abaixo.


Percentagem Motivo geral Motivos
específicos

25,8% Custos elevados da 25% custos elevados da
medicina medicina em
geral

0,8% Custos elevados de
consultas e
medicamentos


25,6% Toxicidade e efeitos 22,6% drogas são
muito
adversos de tóxicas
medicamentos
1,4% drogas causam
muitos
efeitos colaterais

0,6% drogas curam umas
doenças, mas causam
outras

0,4% drogas possuem
efeitos excessivos

0,4% drogas possuem muita
química artificial

0.2% drogas deixam
resíduos tóxicos no corpo


24,2% Má qualidade dos médicos 18,4% médicos
não
E do atendimento dedicam suficiente
Atenção aos
pacientes

4,2% qualidade da
consulta médica
está muito ruim


1,2% qualidade da
formação do
médico está muito
ruim


0,2% médicos não
têm consideração
pelos pacientes


0,2% médicos
erram muito


4,6% Deficiências do setor público 0,8% faltam
equipamentos nos
hospitais públicos

0,8% hospitais
públicos estão em
péssimo estado
0,6% faltam
médicos
e profissionais da
saúde
nos hospitais
públicos
0,6% excesso de filas
para o atendimento
0,4% acesso a
atendimento no setor
público é difícil
0,2% poucas verbas
para saúde
0,2% equipamentos
dos
hospitais públicos estão
quebrados
0,2% falta de atenção à
saúde pública
0,2% equipamentos dos
hospitais públicos estão
obsoletos
0,2% muita burocracia
na saúde
0,2% fraudes no setor
público

É claro que, no Brasil, existem muitos fatores, relativos à
ineficiência do setor público, que podem contribuir para
esses resultados. Analisando-se os dados é possível separar
os que relatam queixas contra o setor público dos que
reclamam da medicina de uma forma geral. Nessa avaliação,
vemos que apenas 4,6% tem críticas específicas contra o
setor público, contra uma expressiva maioria que aponta
problemas básicos, que são abordados neste livro.
Por outro lado, é evidente que a maioria dos insatisfeitos
(53,4%) reclama de questões relativas à falta de atenção dos
médicos, má qualidade do atendimento, tratamentos
ineficazes, entre outros pontos. A pesquisa ainda nos
possibilitou entender que as queixas contra os custos da
medicina (25,8%) vêm dos constantes aumentos dos preços
dos seguros de saúde e dos medicamentos.
Alguns usuários do sistema de saúde conseguem perceber
falhas específicas e apontá-las, como o surgimento de
especialidades em excesso, substituindo o bom clínico geral;
a falta de personalização nos tratamentos e mesmo a
solicitação de tantos exames complementares em
substituição a consultas clínicas mais acuradas. Todos esses
problemas são conseqüência de erros conceituais e de
estratégia, como a falta de humanidade, a
compartimentalização excessiva, a indiferença às queixas
subjetivas do pacientes e a invasividade.
Para entendermos melhor esse cenário, poderíamos avaliar o
que acontece em outras áreas, como no comércio e na
indústria. Atualmente, há consenso sobre a necessidade de
se programar o desempenho das empresas, a partir da
avaliação da opinião de quem consome seus serviços.

Modelos de Eficiência e Qualidade

A medicina é pobre cm modelos de qualidade, por isso, a
única solução seria pegar emprestados os que estão sendo
empregados com sucesso nessas outras áreas que lidam com
métodos e processos, como setores de produção de bens e
serviços, que utilizam, por exemplo, como referência
paradigmática de qualidade total, a metodologia Seis Sigma.
Seis Sigma é uma avaliação probabilística de ocorrência de
erros em processos, definida graficamente como uma curva
em forma de sino, que, por semelhança com a letra grega, é
chamada de sigma. O número que precede a letra traduz o
nível de controle das variáveis — que determinam o
controle do processo. A área da curva representa a
probabilidade de ocorrerem erros (ver gráfico na p. 48). A
metodologia permite aperfeiçoar processos de produção até
atingir a meta de 3,4 defeitos por um milhão de
oportunidades, ou seja, um índice de acerto de 99,9997%,
como o obtido no programa de qualidade dos produtos da
empresa Motorola. Contudo, chegar a esse resultado não é
fácil. É preciso estudar um grande número de variáveis e
instalar sistemas eficientes para o seu controle, utilizando-se
uma metodologia própria.
Para a medicina, adotar um método Quatro Sigma com nível
de exigência menor que o Seis Sigma, mas traduzindo índice
de qualidade acima de 99% seria um ganho monumental.
Considerando-se a complexidade da matéria, a diversidade
de processos e o número de variáveis envolvidas, atingir essa
meta já seria um grande desafio. Para isso, seria necessário
dispender anos em treinamento, controle de processos e
melhora de qualidade no atendimento, para que fosse
possível se efetuar mudanças conceituais que levassem a um
bom nível de satisfação. Sem isso, a medicina corre o risco
de não melhorar, e até de piorar, ao longo dos anos.
Um outro ponto a ser revisto é a relação entre custo,
agregação de tecnologias e qualidade. Enquanto à medicina
são agregados recursos tecnológicos numa velocidade
alucinante, seus custos crescem e a qualidade cai. Em
qualquer outro setor da economia, isso já teria resultado em
auditorias, mudanças de rumo e questionamentos de
resultados, por serem provas irrefutáveis de ineficácia e
aplicação equivocada de tecnologia. Mas, como na área
médica não existe uma avaliação de qualidade, e não há
controle da inter-relação desses fatores, nada se faz nesse
sentido.
Para se fazer uma profunda análise da saúde pública, é
necessário incorporar mais dados às avaliações que já
existem como a da mortalidade infantil, da expectativa de
vida e da incidência de diversas doenças. O ideal seria que os
sistemas de avaliação estivessem mais focados no bem-estar
do usuário, ao invés de se basearem apenas em índices
clássicos como os de mortalidade infantil e de expectativa de
vida. Considerando a definição de saúde adotada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), como "o bem-estar
físico, psíquico e social", seria construtivo contar com um
índice de satisfação com a medicina ou, no mínimo, um
índice de ocorrência de iatrogenia. O usuário do sistema de
saúde, com certeza, agradeceria.

Conclusões

Há fortes evidências da insatisfação com a medicina, em
vários locais do mundo, especialmente na Europa. Os
Estados Unidos registram, em seu sistema de saúde, um
aumento de 30 para 55% na procura por consultas em
terapias alternativas.
A pesquisa da Faculdade de Comunicação Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, feita em maio de
1998, ouvindo 400 pessoas, mostrou que 86,3% estavam
insatisfeitas com a medicina, de uma forma geral.
Na mesma pesquisa, 25,8% se queixaram dos custos dos
serviços médicos, 25,6% afirmaram que os medicamentos
são tóxicos ou que os tratamentos são agressivos e 24,2%
lembraram a desatenção dos médicos para com os pacientes.
Mesmo adotando tecnologias de ponta, a qualidade da
medicina vem caindo, proporcionalmente ao aumento de
seus custos. Isso é uma evidência clara da aplicação
equivocada da tecnologia.
E preciso criar novas bases de dados para se avaliar, de forma
mais eficiente, a satisfação do usuário com o sistema de
saúde, os custos da assistência médica e os índices de
iatrogenia talvez a metodologia Seis Sigma.

PARTE II
A Aventura da Medicina

A vida é tão curta, a arte demora tanto a ser aprendida, as
oportunidades desaparecem rapidamente, a experiência é
enganosa e as decisões difíceis de tomar.
Primeiro aforismo de Hipócrates, pai da medicina

Capítulo 3
A Ciência Médica: um Modelo Obsoleto

Discutir a qualidade da medicina e identificar seus equívocos
é um enorme desafio. Quando comecei a pensar sobre o
assunto, passei a conversar com pacientes e colegas, e a ler
tudo que abordasse o tema. Ao me deparar com informações
interessantes, anotava. Precisava definir um ponto de partida
para o trabalho. A medicina, em seu gigantismo atual, me
parecia mesmo um dinossauro branco. Desejando evitar que
mortais indefesos continuem a ser pisoteados por ele,
acreditei ser um bom começo observar suas patas e tentar
torná-las menos perigosas. As patas do dinossauro da
medicina são a base conceitual da ciência que sustenta todas
as ações terapêuticas. Se há erros aí, é certo que toda a
estrutura médica será afetada. Para entrarmos neste tema
polêmico, precisamos discutir a própria estrutura do
conhecimento médico.


O Conhecimento Médico

A medicina nasceu da união entre conhecimentos
empíricos, aspectos culturais e a contribuição de diversas
ciências, e essa diversidade de origem resultou em conceitos
bastante heterogêneos. A dificuldade maior é se criar um
sistema gerenciador para lidar com essa miscelânea de
conceitos. Conhecê-los bem é fundamental para discutirmos
outros aspectos e entender os erros estratégicos.
Conhecimentos empíricos são os que não possuem uma
comprovação científica. Diversas técnicas utilizadas na
medicina derivaram de descobertas geradas pelo processo
cultural. Por exemplo, a vacinação contra varíola, que foi
"inventada" pelo médico Edward Jenner (1749-1823), na
realidade era conhecida das populações rurais de Gloucester,
assim como de outros locais da Europa. Pessoas que
trabalhavam com gado já haviam percebido que quem se
infectava com o vírus da vacinia1 não contraía varíola.
Jenner, que adquirira uma propriedade rural na região, soube
disso através de uma ordenhadora de vacas. Colheu, então,
um raspado das lesões bovinas e apresentou-o ao meio
médico londrino, inoculando-o em si e em seus familiares, e
provando sua resistência à varíola. Posteriormente, o
método foi comprovado cientificamente.
Muitas outras práticas nasceram dessa forma, como, por
exemplo, a cirurgia. Durante anos, ela foi desenvolvida por
barbeiros os "barbeiros cirurgiões que drenavam abscessos,
retiravam cistos e outras coisas simples. Os médicos da
época limitavam-se a fazer as amputações, cuja origem
também foi empírica. Até meados da década de 40, a maior
parte dos tratamentos foi aperfeiçoada dessas descobertas
leigas. Até hoje, algumas são introduzidas na medicina, ou
no contexto sociocultural, para depois serem comprovadas
cientificamente. O mesmo aconteceu com a acupuntura,
surgida há milênios.
Portanto, a prática da medicina ê recheada de empirismo.
Quando um médico prescreve um medicamento, não sabe
se o paciente vai reagir bem a ele ou sofrer efeitos colaterais.
Agimos por tentativas. Somos experimentadores.
Ministramos o remédio sem ter certeza quanto aos
resultados. Fazer prognósticos precisos, às vezes, é
impossível. Por outro lado, é bastante provável que nunca
consigamos eliminar completamente o empirismo, por mais
que a ciência avance. Isso porque, nesse universo, a
complexidade e a dependência de fatores aleatórios são
enormes. Vamos ver a questão sob dois aspectos essenciais:
o processo cultural e o desenvolvimento científico.

Processo Cultural

Antes de ser ciência, a medicina é uma função essencial na
organização dos grupos humanos. Desde que as civilizações
mais rudimentares se organizaram socialmente, houve
necessidade de que alguém assumisse a tarefa de curar as
pessoas, auxiliando-as a lidar com a dor, com a incapacidade
física e com a angústia frente à doença e à morte. Por isso,
todos os povos, atuais ou antigos, desenvolvidos ou
primitivos, têm um sistema médico. É comum, nos mais
primitivos, que uma mesma pessoa acumule as funções de
líder religioso e "médico". Caso dos xamãs, dos pajés das
nossas tribos indígenas, dos druidas das civilizações antigas
européias, dos curandeiros e feiticeiros das tribos africanas e
da Oceania. Essa junção de líder religioso e médico vem da
relação da morte com a saúde e da atribuição divina dos
poderes da cura. Sociedades mais avançadas e organizadas,
como a chinesa, a indiana, a judaica, a persa, a grega e a
romana, já diferenciavam médicos de líderes religiosos. É
interessante constatar que, mesmo na atualidade, em grupos
socialmente desassistidos, sem acesso a sistemas de saúde,
alguém assume a função de doutor, de "curador". Temos aí
os raizeiros, as rezadeiras e os representantes de algumas
religiões, como os médiuns do espiritismo, da umbanda, e os
pais de santo do candomblé. Antes de ser ciência, a
medicina tem uma origem mística, fruto de necessidades do
inconsciente coletivo.
Sempre que temos um médico atendendo alguém,
estabelece-se um contexto mágico que transcende a questão
científica. Isso dá a sua atividade dimensão e
responsabilidade comparadas apenas ao que se passa num
confessionário. Não só o paciente se despe frente a ele como
se revela emocionalmente, solicitando, mesmo
inconscientemente, o auxilio de uma força "sobrenatural"
para vencer o obstáculo aparentemente intransponível da
doença. Nesse momento, entra-se num universo paralelo
extremamente amplo. É como se cada xamã, pajé ou druida,
enfim, todo o contexto simbólico da atividade médica,
associado ao conhecimento científico e tecnológico,
estivesse presente no instante da consulta, sintetizados na
figura do médico. O processo cultural determina como as
pessoas interpretam a morte, a doença e os diferentes
tratamentos. A atuação do médico, e mesmo a própria
evolução científica e tecnológica do sistema, depende deste
arcabouço conceitual e simbólico.
Quando, por exemplo, um paciente ingere um comprimido
de digoxina para tratamento de sua insuficiência cardíaca,
todas as fases dessa complexa interação estão presentes. No
processo cultural das populações da antiga Europa, o
conhecimento médico foi estruturado em torno dos druidas,
que detinham a responsabilidade dos rituais religiosos e de
cura. Eles sabiam que o uso da dedaleira era bom nos casos
de fadiga, falta de ar e edema. Muito mais tarde, uma
curandeira que herdara esse conhecimento o passou para um
médico, que começou a utilizá-lo e relatou os resultados a
seus colegas. Posteriormente, a planta foi estudada, e os
glicosídeos cardiotônicos isolados, incluindo a digoxina. Esta
substância se transformou numa das principais drogas usadas
na insuficiência cardíaca, ainda hoje.

Conhecimento Científico

A medicina moderna começou a incorporar, no final do
século XVIII, o método científico clássico, com
experimentação e comprovação. No século XX, com a
introdução da estatística e de outras sofisticações, ela teve
um enorme avanço tecnológico. Na formação das bases
científicas atuais, temos um incrível mosaico de
conhecimentos biologia, anatomia, química orgânica,
farmacologia, genética, psicologia e fisiologia. Esta última
área surgiu a partir da união de todas as outras, e trouxe
novos dados ao cenário médico, como a hidrodinâmica,
utilizada para descrever as funções do sistema
cardiovascular; a dinâmica dos gases, que auxiliou a
compreensão da fisiologia do pulmão; e a física dos sólidos
em solução, que auxiliou na criação da biofísica. Mas era
preciso entender a doença, e daí nasceu a patologia, ciência
materialista e descritiva que detalha as lesões orgânicas.
Dela, surgiu a fisiopatologia, que explica o funcionamento
errado do corpo, que gera a doença; e ainda a etiologia, que
investiga sua causa
Mais recentemente, agregaram-se conhecimentos de outras
áreas, ainda mais variadas. Nos exames por imagem, por
exemplo, têm sido empregados conceitos de engenharia,
informática e até da física quântica. No campo das próteses,
noções de metalurgia e inovações da tecnologia dos
plásticos. Informações no campo da eletricidade e da
eletrônica são essenciais à realização de exames e
tratamentos que vão do eletrocardiograma ao mapeamento
cerebral. E técnicas de biotecnologia são utilizadas em
genética, endoscopia, cirurgia endoscópica e laparoscópica,
órgãos artificiais ou transplantados, microcirurgia, cirurgias
empregando laser. Esta multiplicidade de conhecimentos e a
agregação de tantas técnicas dá à medicina um perfil único
entre as ciências.

As Bases da Ciência Médica
A Escola Hipocrática

A ciência médica moderna tem seu início na ilha de Cós, na
Grécia antiga, com a escola de Hipócrates, considerado o
"pai da medicina". Também filósofo, o médico conheceu
grandes pensadores, como Demócrito, o criador do conceito
de átomo como constituinte básico da matéria. Hipócrates
nasceu em 460 a.C., nessa ilha, e faleceu em 370 a.C., em
Tessália. Segundo Platão, era descendente, do lado paterno,
de Asclépias, mítico médico da Antigüidade citado na Iliada,
e estudou medicina num templo dedicado a ele, em Cós,
formando o grupo Asclepiadae (filhos de Asclépias). Viajou
muito, tendo clinicado e ensinado em muitas cidades gregas.
Da "escola hipocrática" saíram outros grandes nomes da
medicina, como Crisipos e Praxágoras. Muitos autores
atribuem a estes médicos e a outros de seus alunos o crédito
de parte do trabalho de Hipócrates. Sua obra está compilada
nos volumes da Coleção Hipocrática (Corpus
Hippocraticum), organizada por Ptolomeu, general das
tropas de Alexandre, o Grande, feita para a Biblioteca de
Alexandria. Esses livros compreendem também escritos
posteriores, de autores diversos, formando algo entre 70 e
100 volumes. No seu trabalho, Hipócrates fez descrições
acuradas de várias doenças, como a epilepsia, a febre amarela
e a gota, e discorreu sobre exames físicos, diagnósticos,
cirurgias, ginecologia e obstetrícia. Outros conceitos
introduzidos por ele trataram das doenças mentais e da
psicologia.
Suas idéias são, ainda hoje, citadas em inúmeros textos
científicos, como referências de acuidade diagnóstica, de
ética e raciocínio clínico. Contudo, numa análise mais
detalhada, mostram que, sob os aspectos filosóficos,
estratégicos e conceituais da medicina, ainda são
desconsideradas ou mal-interpretadas. Hipócrates era um
vitalista, ou seja, acreditava que a matéria viva compreendia
a energia vital que proporciona aos seres vivos
características especiais. Daí a famosa descrição da "face
hipocrática" (Fascies Hippocraticus), correspondendo ao
momento em que essa energia se extingue de um ser, usada
ainda hoje para caracterizar o aspecto do doente na
iminência da morte. Ele desenvolveu também a teoria dos
humores fluidos que, acumulados no corpo, poderiam ser
causadores de doença ou de sintomas -, hoje vista como uma
interpretação rudimentar da fisiologia corporal. Na verdade,
essa teoria guarda semelhanças com sistemas das medicinas
ayurvédica e chinesa, utilizados para explicar a
sintomatologia peculiar dos pacientes e suas diferentes
formas de reação aos estímulos do meio ambiente.
O método hipocrático, incrivelmente atual, compreende
ainda uma proposta de raciocínio lógico, livre de influências
religiosas, fundamental para se chegar a um diagnóstico e
para a prescrição de um tratamento adequado. A seguir,
passamos a descrever os seus principais pontos.


Observar o Todo

Segundo Hipócrates, a observação acurada e global do
paciente era fundamental para que nenhum detalhe se
perdesse. Para isso, era preciso aguçar os sentidos, analisar
tudo com calma e repetidamente, anotando as impressões.
Seria preciso perceber até mesmo o que fosse omitido ou
desvalorizado pelo paciente. Mesmo que este sofresse de um
determinado órgão, aspectos como o sono, o estado
emocional, a alimentação e os hábitos intestinais deveriam
ser investigados. Isto permitiu ao médico fazer, na
Macedônia, uma famosa cura: de um rei diagnosticado como
portador de uma doença consumptiva. Percebendo que se
tratava de um problema emocional, usou técnicas de
persuasão, conversou com o rei sobre questões que o
atormentavam e obteve seu pleno restabelecimento.
Hipócrates se opunha à classificação das doenças segundo o
órgão afetado, considerando sempre que o paciente adoecia
como um todo e não numa única parte.
A meu ver, a compartimentalização excessiva da medicina
atual é a causa da perda progressiva da visão global do
paciente, como já previra o gênio de Cós. É preciso estudar,
principalmente, o paciente, não a doença. Hipócrates
sustentava que cada caso era um caso. E que a manifestação
da doença não dependia apenas de sua natureza, mas
também do doente e de seus hábitos de vida. Isso explicava
porque uma mesma enfermidade podia evoluir de forma
diferente em pessoas distintas. Individualizar os tratamentos
é outra base do método hipocrático que não é valorizada
pela medicina convencional.

Avaliar com Fidedignidade

Embora tenha sido tão bem-sucedido com o rei, Hipócrates
não obteve o mesmo sucesso com todos os seus pacientes.
Mas registrou os casos detalhadamente, admitindo as falhas
nas terapêuticas adotadas. Para ele, a evolução do
conhecimento e a instituição de novas estratégias de
tratamento só poderiam ocorrer com um relato fidedigno da
resposta do paciente à terapêutica. A falta de mecanismos de
avaliação eficientes mostra que, atualmente, a medicina está
se distanciando desse compromisso.

Promover o Equilíbrio Natural

Para o mestre, a natureza sempre busca o equilíbrio. Na
doença, os mecanismos patológicos bloqueariam esta
tendência do organismo e o papel da medicina seria o de
estimulá-la. A concepção de enfermidade como ruptura do
equilíbrio orgânico e da terapêutica voltada ao reequilíbrio é
a mesma que encontramos em medicinas tradicionais, como
a chinesa e a ayurvédica. Mas essa idéia também se perdeu
no modelo convencional. Vemos, portanto, que a medicina
vem se afastando cada vez mais dos conceitos propostos por
Hipócrates. Até mesmo os pontos fundamentais do
juramento prestado pelos formandos de medicina estão
desvirtuados. Assistimos, assim, cada vez com mais
freqüência e pesar, a colegas cometendo desvios de ética,
comportando-se de forma mercantilista ou tomando-se frios
e desumanos.
Outras Contribuições: da Alquimia ao Microscópio
Cornelius Celso foi o médico mais expressivo da Roma
antiga, que muito influenciou a medicina da Europa
medieval. Nascido em Verona, não são conhecidas suas
datas de nascimento e de morte. Versado em várias ciências,
como agricultura, leis, filosofia e retórica, escreveu Da
Medicina, primeiro tratado editado após a invenção da
imprensa, por Guttemberg. O trabalho resultou das
experiências de diversos médicos e de seus escritos.
Algumas partes são extraordinárias: trazem, por exemplo,
uma descrição detalhada de procedimentos cirúrgicos, como
amputações, hérnia escrotal, circuncisão e restauração do
prepúcio, e sobre o tratamento de feridas profundas. E ainda
há a descrição da primeira ligadura de um vaso sangüíneo
para estancar hemorragia.
Celso deixou contribuições na área clínica, como a descrição
dos quatro sinais clássicos da inflamação (rubor et tumor
cum calor et dolor), ainda atual. Era rigoroso na aprovação
de terapêuticas. Em seu tratado, recomenda apenas repouso
ou exercícios, dieta, ventosas, massagens e cirurgia. Foi um
crítico severo do uso da maioria das plantas medicinais e de
"encantamentos", considerando a "feitiçaria" um método
rudimentar e contrário à religião. Da Medicina foi
redescoberto pela Igreja após sua publicação em 1478,
fundamentando os conceitos dominantes no pensamento
médico até o século XVIII. Influenciado pelo grupo dos
asclepíades, Celso rejeitava a idéia hipocrática de que o
corpo possuía forças curativas naturais e acreditava que a
cura dependia unicamente da intervenção médica. A
cirurgia era um exemplo. Seu pensamento foi a semente da
tendência intervencionista que predomina hoje.
Porém, foi Galeno quem mais influenciou a medicina e a
farmacologia, na Antigüidade. Era um homem bastante
vaidoso, autoritário, dogmático, crítico severo, mas também
observador cuidadoso e detalhista, criativo, com idéias
originais e raciocínio rápido, exímio debatedor. Ele nasceu
na cidade grega de Pergamum em 129 d.C. Em sua educação
básica, conheceu as ciências naturais, a matemática a
filosofia e a geografia. Aos 14 anos, sonhou com Esculápio, o
"deus da medicina", que lhe apontou seu caminho
profissional. Aos 16 anos, estudou com sábios de sua cidade,
e conheceu os trabalhos de Hipócrates e Dioscórides. Viajou
por toda a Grécia e conviveu com grandes médicos,
cirurgiões e anatomistas, ampliando seus conhecimentos
sobre plantas medicinais. De volta a sua cidade, foi eleito
médico dos gladiadores, ganhando grande experiência em
cirurgias e tratamentos de lesões traumáticas. Em 164, foi a
Roma divulgar suas idéias. Bastante prestigiado, cuidou de
Severus, que mais tarde se tomaria imperador. Autoridades e
pensadores importantes freqüentavam suas conferências,
sempre prontos a apoiá-lo, quando desferia críticas
contundentes contra seus adversários os metodistas,
pneumatistas e empíricos. Mais tarde, Galeno foi convocado
por Marco Aurélio para acompanhar as tropas nas Guerras
Germânicas. Vivia em Roma por ocasião do brutal incêndio
que a destruiu, em 191, e que também reduziu a cinzas
muitas de suas obras. Morreu na Cecília em 200 d.C.
Suas idéias marcaram a medicina por cerca de 15 séculos. Ao
contrário de Hipócrates, que assumira friamente seus
insucessos, Galeno utilizava-se de argumentos teológicos
para explicar tratamentos malsucedidos. Valiase da frase de
Aristóteles, "A natureza não faz nada sem propósito", e
acrescentava, categórico: "E eu conheço esse propósito."
Seus conceitos convinham às pretensões da Igreja, que os
utilizou no fundamento de suas doutrinas, durante a Idade
Média e parte do Renascimento. Suas obras, assim como as
de Celso, foram editadas logo após a invenção da imprensa e
divulgadas na Europa medieval. Sua contribuição foi grande
no campo da fisiologia: mostrou que o sangue circulava nos
vasos e que as veias o levavam da periferia para o coração, e
que as artérias continham sangue e não ar. Afirmava que os
nervos se conectavam com a medula e esta com o cérebro.
Realizou experiências com animais, demonstrando que o
coração continuava a bater após a secção do nervo vago, ou
que os reflexos se modificavam após a secção da medula.
Foi o primeiro a discorrer sobre os cuidados na preparação
de medicamentos, criando a metodologia para a manipulação
de pós e extratos. Por isso, é considerado o ''pai da farmácia",
e as preparações simples são chamadas até hoje de "formas
galênicas". Juntava plantas medicinais em fórmulas para
tratar humores afetados, baseando-se em conceitos da
farmacologia tradicional (frio e quente, seco e úmido).
Segundo ele, uma doença de calor exigia o tratamento com
uma erva fria, conceito muito semelhante ao que é
preconizado pela medicina chinesa. Sua obra incluiu tratados
sobre anatomia, fisiologia, farmacologia, patologia, cirurgia,
dietética, higiene e redução de luxações e fraturas. A
medicina do século XVIII apoiou-se especialmente nas suas
descrições anatômicas e nas técnicas de preparo de
medicamentos. As idéias vitalistas e holísticas, como o
sistema de relação dos quatro humores, foram
progressivamente sendo esquecidas e hoje são vistas como
uma crença curiosa, destituída de interesse científico.
No fim do século XVIII e durante o século XIX, a medicina
resistia à influência da física clássica. Newton via o universo
como um relógio, com leis simples que determinavam seu
funcionamento numa cadência perfeita e dinâmica. Essas
idéias foram ampliadas por René Descartes. Segundo o
filósofo e matemático francês, o corpo também era um
relógio, composto por partes os órgãos que executavam
funções específicas. A resistência a esse pensamento está
bem caracterizada no protesto vitalista do médico francês
Diderot. Em seu artigo para a Enciclopédia, nessa época,
classificou a química, a biologia e a medicina como ciências
que exigiam arte e sensibilidade na percepção dos seus
aspectos posturas absolutamente diversas daquela pregada
pelo imperialismo abstrato dos newtonianos.
Segundo o vitalismo, não era possível aplicar as teorias da
física à medicina, pois a vida subentendia um princípio vital,
uma "energia divina". Essa corrente de pensamento teve seu
prestígio máximo com Stahl, no início do século XIX, e com
a criação da homeopatia, pelo alemão Samuel Hanneman. O
primeiro notou que as leis universais da química, que
explicam a decomposição das substâncias, não se aplicam aos
seres vivos, pois, apesar de constituído de substâncias frágeis
e instáveis, o ser humano resiste, em vida, à decomposição.
Isso só poderia ser explicado através de uma força
desconhecida que seria "o princípio vital". Stahl foi o criador
do primeiro sistema químico coerente, que resultou no que
é hoje conhecido.
Durante o século XIX, esse conceito foi sendo substituído
pelo reducionismo. Vários fatores contribuíram para isso,
especialmente a invenção do microscópio. O aparelho
possibilitou muitas descobertas, entre elas a de que os
tecidos eram feitos de células. Com ele, Pasteur identificou
as bactérias e sedimentou o conceito de que as doenças eram
causadas por agressões de microorganismos. A influência do
pesquisador foi tão grande que, 100 anos após sua morte,
prevalece entre os cientistas o cacoete de buscar bactérias ou
vírus para explicar doenças de causas indefinidas. Com isso,
o modelo reducionista e mecanicista passou a dominar a
medicina, marcando seu desenvolvimento no século XX.

Conflitos de Pensamento

Essa bipolaridade conceitual, vitalismo versus reducionismo,
gerou um conflito que persiste no meio acadêmico e na
forma como a sociedade vê a medicina. Produz conflitos
como ciência humana versus ciência exata, ou medicina
alternativa versus convencional, ou mesmo visão espiritual
do ser humano versus visão científica. Portanto, no decorrer
dos tempos, muitos de meus colegas se fizeram a mesma
pergunta: "Qual, afinal, a essência da medicina?" As respostas
foram sempre diversas, pois caminhos vêm sendo propostos,
resultando nessa ampla gama de conceitos que hoje
norteiam a prática médica.
Aparentemente, vitalismo e reducionismo são opostos
incompatíveis. Contudo, podem coexistir num mesmo
modelo. O melhor exemplo é a alquimia. Baseadas em vários
de seus procedimentos, muitas coisas foram desenvolvidas e
incorporadas à medicina convencional. Newton dedicou
mais tempo à alquimia que à física. Alguns autores,
recentemente, aventaram a possibilidade de que a
descoberta das leis da física do macrocosmo pode ser
resultante de experiências alquímicas. A própria química
inorgânica nasceu daí. Theophrastus Bombast von
Hohenhein, médico alemão da Antigüidade que por se achar
superior a Celso se autodenominou Paracelsius -, foi
pioneiro em aproximar a medicina desse campo. Explicava
que o objetivo da alquimia não era a transmutação de
elementos em metais preciosos, mas sim a fabricação de
medicamentos, e frisava que a compreensão dos processos
da natureza era essencial no entendimento do organismo
humano.
Dessa forma uniu, harmonicamente, conceitos do vitalismo
e do reducionismo, influenciando a farmacologia clássica e a
homeopatia. Nascido em 1490, em Eisiedeln, Paracelsius
estudou medicina na Universidade de Basiléia e começou a
exercê-la nas minas de Tirol, tratando das doenças
contraídas pelos mineiros com a exposição excessiva aos
minerais. O estudo da atuação dessas substâncias no
organismo o aproximou da alquimia. Segundo historiadores,
ele chegou a queimar obras de Galeno e Avicena, durante
uma de suas aulas, para demonstrar que "medicina se fazia
olhando para o futuro, não para o passado". Seus
experimentos o levaram a criar um tratamento à base de
banhos com mercúrio, enxofre, ferro, chumbo e arsênico.
Fez tinturas alcoólicas a partir de plantas e resgatou a visão
platônica de que o homem está inserido no universo e só o
vendo dessa forma seria possível tratá-lo.
Paracelsius propôs, também, a teoria das "assinaturas",
segundo a qual as características morfológicas e ecológicas
das plantas tinham relação com sua atividade no corpo
humano. Para ele, a doença era causada por um
desequilíbrio nos elementos alquímicos do corpo (ferro, sal,
mercúrio e enxofre). Seu trabalho influenciou médicos
famosos, como o herbalista John Gerard 1 e Samuel
Hanneman. Considerado o pai da farmacologia moderna,
Paracelsius contribuiu também para a descrição da ação
farmacológica de várias plantas.
Com a organização do pensamento científico, por Newton e
Descartes, os conceitos da alquimia foram se distanciando da
ciência clássica, pois não eram bem vistas pela Igreja,
perseguidora feroz dos alquimistas durante a Inquisição,
provocando a quase completa extinção dessa prática. Por
outro lado, por manter boa relação com a elite católica, a
ciência clássica continuou a crescer. O emprego do
microscópio na medicina — fundamental, por exemplo, nos
trabalhos do italiano Marcello Malpighi e do holandês
Antony von Leeuwenhoek selou definitivamente a
hegemonia do reducionismo sobre o vitalismo. Malpighi
desenvolveu as técnicas de preparo dos tecidos para
observação em microscópio, sendo considerado o "pai da
histologia moderna", e Leeuwenhock, por sua vez,
descreveu os glóbulos vermelhos do sangue, as estrias dos
músculos e os espermatozóides. Foi através desse aparelho
que Pasteur identificou as primeiras bactérias e descreveu
seu papel em algumas doenças.
As correntes vitalistas sobreviveram em pequenas
comunidades, alijadas do meio universitário. Com isso, a
homeopatia e a medicina antroposófica, também reprimidas,
limitaram-se aos consultórios de seus seguidores. Os
homeopatas americanos radicalizaram sua posição,
recusando-se a reconhecer os avanços da medicina
alopática, o que culminou com a proibição e o banimento da
homeopatia dos Estados Unidos, no final do século XIX. A
ciência negava-se como ainda hoje a dar crédito a qualquer
conhecimento considerado não-científico, ou seja, que não
surgisse de processos criados por ela. As correntes vitalistas
insistiram em suas crenças, mesmo sabendo que seus
conceitos não poderiam ser comprovados pelos modelos
"científicos". Daí começarem a ser chamadas de alternativas,
subsistindo na marginalidade.
A medicina conservou algumas qualidades do vitalismo,
através do holismo. Até a década de 60, ainda existia a figura
do clínico geral, aquele que conduzia inteiramente o
tratamento do paciente, conhecendo profundamente seu
histórico de doenças e resolvendo seus problemas. Mas a
massificação do tecnicismo acabou com os resquícios do
holismo, e fez com que esse profissional sumisse do mapa.
Inteiramente fragmentada nas especializações técnicas, a
medicina atual precisa conceber um modelo que lhe permita
lidar harmoniosamente com idéias diversas. É essa medicina
que estará capacitada para cuidar do ser humano desse novo
século. Se a alquimia favoreceu a convivência construtiva
entre reducionismo e vitalismo, no contexto renascentista,
certamente haverá espaço para que isso volte a acontecer.

O Grande Equívoco

Estávamos preocupados com as patas de nosso dinossauro e
vimos que uma delas, a do vitalismo, não pisa bem: nela,
cravado, está o espinho do preconceito. Nosso animal, além
de manco, locomove-se com dificuldade, anda em círculos,
sem sair do lugar. O problema, portanto, é mais complexo:
ele também parece não enxergar bem, como se uma venda
lhe cobrisse os olhos justamente os equívocos nas bases
conceituais da ciência médica.
Eles são relacionados à forma como a medicina atual vê a
vida, a natureza, o ser humano, em descompasso total com a
noção de "essência da vida". Assim, quando planeja suas
estratégias, considera apenas suas idéias básicas, gerando
resultados muitas vezes incompatíveis com as expectativas
profundas do ser humano. Procurei identificar esses
equívocos e a maior parte deles resulta, justamente, da
negação do vitalismo.


Mecanicismo e Linearidade

O universo de Newton funcionava de forma precisa, cada
elemento cumprindo seu papel a um determinado tempo,
como engrenagens funcionando em cadeia. Descartes
reforçou esse conceito de que tudo, no corpo humano,
acontecia numa relação linear de causa-e-efeito. É o que
chamo de visão mecanicista da fisiologia do organismo.
Exemplifiquemos com o caso da regulação da glicose no
sangue. Do ponto de vista da medicina clássica, a cadeia dos
fenômenos mostra que quando a pessoa se alimenta, a
glicose se eleva, o pâncreas secreta insulina e a glicose baixa.
Mas, hoje, já existem informações suficientes para provar
que nada no corpo funciona dessa forma. Nos mecanismos
fisiológicos, são múltiplos os fatores influenciando-se
mutuamente e gerando respostas. É um sistema complexo de
interações que pode ser traduzido de forma simplificada, no
esquema da página seguinte.
Neste esquema, que se aproxima muito mais da realidade
fisiológica, vários tipos de influência afetam o fator central
estudado. Pode haver fatores que atuam indiretamente e
interação paralela entre outros fatores. Nesse exemplo, nota-
se como vários fatores, além da insulina, influenciam sua
taxa no sangue, interagindo de forma complexa. A realidade
é que a imensa maioria dos processos que ocorrem no corpo
segue esse mecanismo, de interação complexa e
multifatorial. Aproveitando o desenvolvimento da
informática, é possível propor modelos tridimensionais para
melhor visualizar as diversas etapas dos processos orgânicos,
quebrando-se, assim, a tendência ao raciocínio mecanicista e
linear que prevalece entre os médicos.
O cientista russo Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Física, é
uma das vozes mais ativas no questionamento dos conceitos
equivocados da biologia e da medicina. Para ele, essas áreas
carecem de mudanças profundas para que seus protocolos
experimentais se adaptem às realidades que pretendem
estudar. Em sua opinião, muitos dos resultados tidos como
científicos, na atualidade, terão que ser revistos. Juntando-se
à brilhante bióloga belga Isabelle Stengers, ele escreveu, em
1984, um importante livro sobre filosofia da ciência,
colocando conceitos atuais e pertinentes, fundamentais para
os profissionais que querem se preparar para a medicina do
futuro. A Nova Aliança propõe uma nova relação entre
ciência, filosofia e o mundo no qual vivemos.
No livro, os autores comentam que um modelo científico,
para ser eficiente, necessita de uma linguagem adequada à
realidade estudada.
Ou seja, ao analisar um fenômeno, é importante que se
utilize um método próprio, a partir do conhecimento
profundo desse fenômeno. Caso contrário, os resultados
serão sempre equivocados. Portanto, não é mais possível
manter protocolos de estudo em medicina baseados em
raciocínios lineares. Prigogine e Stengers também discutem
a questão da complexidade na biologia. Num organismo
vivo, ela é infinita. Os modelos científicos, afirmam, se não
conseguem abrigá-la na sua totalidade, também não
deveriam ser formulados como se ela não existisse. Os vários
aspectos podem estar representados em outros modelos de
avaliação, que deveriam ser elaborados para as áreas de
biologia e medicina.

A Compartimentalizaçao Excessiva

Compartimentalização é uma estratégia de subdividir um
sistema complexo, como os organismos biológicos, em
subsistemas que podem ser estudados separadamente.
Baseada nessa estratégia, a fisiologia do corpo humano tende
a ser vista através de sistemas estanques e isolados, como se
não estivessem interligados evidenciando a grande
influência de Descartes. A estratégia não pode ser
desconsiderada. Ela é importante por fornecer informações
preciosas que impulsionaram o desenvolvimento
tecnológico e científico nas últimas décadas. O problema é
que esse modelo tem sido imposto como única abordagem
para se lidar com a doença. Alguns pesquisadores têm se
manifestado sobre o assunto, e algumas das argumentações
mais convincentes vêm do famoso neurologista português
Antônio Damásio, professor da Faculdade de Medicina da
Universidade de Iowa, Estados Unidos, considerado a maior
autoridade mundial em funcionamento do cérebro. No livro
O Erro de Descartes, ele propõe conceitos sobre o
funcionamento do cérebro baseados nos estudos com
pacientes portadores de lesões neurológicas em diferentes
partes do órgão. Traça, obviamente, duras críticas a
Descartes, mostrando que tanto o cérebro como todo o
corpo só podem ser compreendidos se vistos como um todo.
Damásio explica que o cérebro precisa juntar funções de
diferentes estruturas para formar o que chama de
"construções cerebrais" que compreendem imagens, sons,
percepções, emoções etc. E mostra que, quando há um
bloqueio em alguma estrutura, o funcionamento do órgão é
afetado. Pacientes com lesão no lobo frontal, por exemplo,
neurologicamente impedidos de processar sua percepção
emocional, são incapacitados de compreender questões
complexas como a conveniência nas relações sociais. Para o
cientista, toda construção cerebral induz a um quadro
fisiológico corporal correspondente, e vice-versa, o que
significa que, mental ou físico, o problema estará sempre nas
duas esferas. Seu estudo desmonta argumentos do tipo "o
problema está apenas na cabeça do paciente", tão
corriqueiros quando os médicos não conseguem chegar a
um diagnóstico. E mostra que não é possível entender o
cérebro a partir de funções estanques.
Da mesma maneira, muitos aspectos da fisiologia corporal só
poderão ser mais bem compreendidos a partir do momento
em que o corpo for estudado como um todo.
Se Damásio frisa a vital importância de se rever o modelo
compartimentalista, sabemos que este, de fato, gera grandes
problemas na prática médica, devido às estratégias, muito
rígidas, apoiadas em modelos de especialidades e super
especialidades, e pela crescente capacidade de análise em
detrimento da síntese, dificultando o avanço em várias áreas.
Sob essa visão, nosso dinossauro mexe-se como um robô,
com movimentos duros, mecânicos, repetitivos, sem
coordenação de braços e pernas. E, assim, é bem provável
que um dia caia e tenha enorme dificuldade para se levantar.

O Conceito de Etiologia

A palavra etiologia significa "causa das doenças". Portanto,
seu conceito consiste na procura dos fatores que agridem o
organismo gerando doenças e, atualmente, está fortemente
voltado à procura de uma única causa externa muitas vezes
um organismo microscópico. Essa corrente foi fortalecida
com a descoberta, por Pasteur, dos micróbios e de seu
potencial gerador de doenças, e reforçada pelo impacto da
introdução dos antibióticos. As pesquisas em etiologia são
voltadas, de forma maciça, para o encontro de causas únicas
das doenças, e para identificar os microorganismos que as
provocam.
Uma análise simplista mostra que isso é um grande
equívoco. Vejamos um simples caso de asma, por exemplo.
Na visão médica convencional, essa é uma doença de
etiologia não esclarecida que apresenta lima reação
exacerbada da mucosa dos brônquios, com o
desencadeamento de processos alérgicos. A verdade é que
existem muitos fatores determinantes de um ataque de asma,
como mudanças bruscas de temperatura, poluição, fatores
emocionais, medicamentos, alimentos e exercícios físicos. O
que provoca asma em algumas pode ser a cura para outras.
Há pessoas que não suportam um clima úmido, como o do
Rio de Janeiro, e a desenvolvem, assim como outras passam
muito bem nessa cidade e vão apresentar sintomas
respiratórios em Brasília, por não suportarem a secura do ar.
E há fatores, os mais diversos e indefinidos, na deflagração
desses processos. Se considerarmos dois casos de asma em
situações diferentes, será possível avaliar como é falho o
conceito de etiologia relacionado a um único fator externo e
agressor.
Imaginemos uma criança com pais abastados e histórias de
alergia, morando no Rio de Janeiro. Com uma dieta
excessivamente rica em açúcares e laticínios, e estando
acima do peso ideal para sua idade e altura, tem asma desde
os dois anos de idade, e ela piora a cada mudança de tempo.
Este é um caso típico em que a exposição à umidade, uma
dieta inadequada e a ausência de atividades físicas
contribuem para agravar um problema ao qual ela já está
predisposta. No segundo caso, uma criança moradora na
periferia de Recife, desnutrida e de família pobre, teve dois
episódios de pneumonia. Sua família foi vítima de algum
tipo de violência policial e após esse episódio a criança, sem
antecedentes alérgicos, começa a ter fortes crises de asma e
bronquite. Vemos que o ambiente social e as características
orgânicas de ambas são diferentes e, no entanto, o resultado
da combinação de fatores foi o mesmo.
A partir dessas situações, podemos concluir que não é
possível identificar uma única causa ou etiologia para a asma,
de acordo com o catecismo da medicina clássica. O que
ocorre, normalmente, é o médico tratar os dois casos
prescrevendo dilatadores dos brônquios, atividade física e
uma avaliação de alergia com propósito de tentar uma vacina
um claro erro de estratégia. É muito mais fácil entender a
etiologia da asma a partir da formação de um ambiente
propício à doença. Nos dois casos hipotéticos, identificamos
situações nocivas que provocaram seu aparecimento. É o
que chamo de conceito ecológico de etiologia: ver a doença
não com uma única causa, mas decorrente de um
desequilíbrio do organismo no seu meio ambiente,
dependente das predisposições específicas de cada
indivíduo.
Revendo a etiologia da asma, sob a ótica ecológica, será
muito mais fácil entender porque ela se instala e o que fazer
para combatê-la. Se acontece em ambientes tão diversos,
isso implica em medidas terapêuticas também diferentes,
para cada asmático. A etiologia multifatorial deveria ser
aplicada também à compreensão de outras doenças, como é
proposta por medicinas tradicionais, como a chinesa e a
ayurvédica.
Vamos considerar uma doença infecciosa comum, uma
gripe, por exemplo. Na visão atual da medicina, ela é causada
por um vírus.
Mas sabe-se que existem outros fatores propícios ao seu
aparecimento, como a exposição ao tempo frio. As
estatísticas mostram que a incidência de gripes e
pneumonias dobra no inverno e a explicação usual é que,
nessa estação, as pessoas permanecem por mais tempo em
ambientes fechados. O argumento é falho, a meu ver, já que,
no Rio de Janeiro, há um aumento dos casos de gripe, nessa
época, sem que as pessoas modifiquem radicalmente seus
hábitos. Por outro lado, qualquer um sabe que deixar uma
criança mal agasalhada é expô-la ao risco de adoecer. Existe
ainda a questão das defesas orgânicas: se o sistema
imunológico está com suas funções deprimidas, é certo que
a infecção viral resultará em doença; do contrário, o vírus é
destruído no corpo. Nos fumantes, ou em quem está muito
exposto aos poluentes do ar, crescem as chances de contrair
gripe, após exposição ao vírus.
Desconsiderar os diversos fatores que participam da etiologia
das doenças é uma forma de prejudicar o enfoque
estratégico para uma abordagem terapêutica mais eficiente.
Sem o vírus, argumentam os médicos, não haveria a gripe.
Certo, mas se utilizarmos o conceito ecológico de etiologia,
onde se observa a relação da pessoa com o ambiente,
veremos o quão questionável é esse argumento. Existem
vírus no ambiente, e uma grande quantidade deles pode
causar um quadro gripai, mas, teoricamente, uma pessoa
pode entrar em contato com eles sem, entretanto, contrair a
doença.
Ainda na análise dos fatores que determinam doenças
infecciosas, existe uma variável importante: a virulência do
agente infeccioso. Através de um processo de mutação,
muitas vezes surgem vírus com maior capacidade de agredir
o corpo humano. Foi o que ocorreu nas epidemias das
famosas gripes espanhola e asiática. Milhares de pessoas
morreram, outras ficaram gravemente enfermas, mas se
recuperaram, outras ainda tiveram apenas uma gripe
comum, mais forte, e houve quem apresentasse apenas
sintomas passageiros ou mesmo nem ficaram doentes. O
conceito ecológico de etiologia permite considerar essas
variáveis.
Como vimos, a etiologia moderna tende a acreditar que as
doenças são sempre causadas por agentes externos, vírus,
bactérias, vermes, protozoários e fungos. Pesquisas recentes,
publicadas nas melhores revistas médicas, buscam encontrar
agentes infecciosos para explicar uma enorme variedade de
doenças de causas indefinidas. Lá estão os vírus, apontados
como possíveis causadores da esclerose múltipla, a infecção
crônica por clamídia1' provocando arteriosclerose e infarto
do coração, a infecção crônica por herpes, o vírus Epstein
Bahr14 e o citomegalovírus, associados a problemas como
fadiga crônica. Baseando-se nesses estudos, os médicos
passaram a dar excessiva importância, por exemplo, à
bactéria Helicobacter pilori, que pode causar gastrite e úlcera
péptica, e começaram a priorizar o tratamento da bactéria
em detrimento de medidas básicas, como a dieta. No
primeiro esquema, proposto entre 1989/1990, eram
empregados três medicamentos que provocavam efeitos
colaterais no sistema digestivo: o bismuto, um antibiótico
chamado eritromoana e o metronidazol. Muitos pacientes
sofriam mais com os efeitos do tratamento do que com a
doença e, entre aqueles que se livraram da bactéria, uma
fração expressiva se infectou novamente, seis meses depois.
Basta um mínimo de bom senso e visão ecológica da
etiologia para concluir que, se a bactéria está no estômago, é
porque há um ambiente propício à sua presença, e isso
devido a muitos fatores, alguns deles velhos conhecidos dos
médicos o mais óbvio é o relacionado à dieta. Pessoas com
alimentação excessivamente rica em carnes produzem mais
compostos nitrogenados, que formam um meio favorável ao
crescimento bacteriano. Já quem tem uma dieta rica em
folhas ingere mais taninos e óleos essenciais, inimigos
mortais das bactérias. Efetivamente, trabalhos recentes
provaram o que já se imaginava: que o Helicobacter pilori é
sensível a diversas plantas ricas em taninos e óleos
essenciais.
Alguns alimentos e medicamentos, e ainda o estresse,
também podem enfraquecer a chamada "barreira mucosa"
do estômago, favorecendo a infecção pela bactéria, sem falar
nas predisposições individuais e do sistema imunológico de
cada um. Outro fator a ser considerado é a acidez do suco
gástrico: se ele fica excessivamente ácido, acaba lesando a
mucosa e causando irritação, micro-lesões e úlceras,
favorecendo sua infecção. Existem indivíduos que, por
predisposição genética ou fraqueza imunológica, se infectam
e desenvolvem doenças com mais facilidade. Há um tipo de
anticorpo chamado IgA, específico para proteger pele e
mucosas. A baixa de IgA pode favorecer a infecção em
alguma mucosa, ou na pele. Portanto, a etiologia única e
centrada em microorganismos precisa ser revista, para que as
propostas de tratamento fiquem mais adequadas à realidade
dos indivíduos e do seu ambiente.

As Falhas nos Modelos Científicos

No universo da medicina, as teorias se baseiam em pesquisas
desenvolvidas em todo o mundo. Voltando ao nosso
símbolo, o dinossauro branco, é preciso dizer que esses
experimentos se constituem no seu alimento. Se existem
problemas nos modelos vigentes, significa que o nosso
animal ingere comida estragada, com prejuízo de sua saúde.
Imagino que os leitores já devem estar apreensivos com
relação às suas condições, coitado, tão combalido. Já falamos
que, se há falhas nas metodologias usadas nesses trabalhos,
obtêm-se resultados distorcidos, que reforçam os tais
equívocos conceituais. Assim, fecha-se um ciclo vicioso que
tende a cristalizar os erros.
Hoje, a estratégia de realização de estudos científicos
resume-se nos experimentos in vitro, feitos com órgãos
isolados, células ou tecidos, em geral de animais; os in vivo,
realizados em animais vivos; e os clínicos, com seres
humanos. Os modelos in vitro estudam parâmetros
específicos da fisiologia e da farmacologia, possibilitando
maior conhecimento sobre o funcionamento de órgãos e sua
reação a medicamentos. Por exemplo, os medicamentos
bloqueadores dos canais de cálcio podem ser estudados em
coração isolado de rã, para se verificar se são eficientes e
potentes. Os experimentos com animais se constituem num
segundo estágio para o estudo de drogas ou doenças. A
última etapa das pesquisas é utilizar os medicamentos no
homem.
Esses estudos são fundamentais para se saber como reagimos
às diversas substâncias. Em geral, um grupo de indivíduos
recebe o tratamento verdadeiro e é comparado a um outro
que recebe um placebo. Se a diferença entre os grupos é
estatisticamente significativa, o medicamento é considerado
ativo. Recomenda-se também que se neutralize o máximo
de variáveis que possam interferir nos resultados, no caso, o
uso de outros medicamentos simultaneamente. Certas
experiências, mais minuciosas, exigem que as pessoas façam
uma dieta semelhante ou que fiquem juntas, sob controle,
num determinado ambiente.
Os estudos científicos clássicos são importantes e têm
possibilitado um acúmulo de informações que têm
contribuído para o avanço vertiginoso da medicina nos
últimos 40 anos. Mas existem pontos que precisam ser
questionados. A seguir, passo a enfocar os principais
equívocos nas metodologias das pesquisas.

Supervalorização de Experiências com Animais

Quando comento, com meus colegas, sobre uma planta
medicinal que vem sendo utilizada há centenas de anos, pela
população, no tratamento de reumatismo, não os
impressiono. Mas se afirmo que ela possui efeito
antiinflamatório em situações como edema da pata de rato,
então começam a encará-la de outra maneira. Já há uma
vasta experiência com plantas medicinais no mundo todo,
ainda subutilizada por falta de metodologias específicas
aceitas pela ciência. A indústria farmacêutica prefere investir
em moléculas novas, que vão ser testadas inicialmente em
animais, ao invés de aproveitar os conhecimentos
acumulados pelo conhecimento tradicional.
Em se tratando de novas moléculas, estudar a farmacologia
em humanos é inviável, e os estudos são feitos com animais
de laboratório ou com seus órgãos. O problema maior é se
acreditar que os resultados obtidos nesses experimentos
serão os mesmos encontrados nos seres humanos. Em
termos de fisiologia, os bichos são apenas semelhantes a nós.
Mesmo os macacos têm diferenças importantes. É claro que
os pesquisadores sabem disso, mas há uma tendência à
simplificação. Quando, recentemente, o hormônio leptina
foi estudado em ratos, eles afirmaram que haviam
encontrado uma solução para a obesidade. Mas, quando a
substância foi pesquisada em pessoas, os resultados foram
bem diferentes. Os mecanismos que regulam nosso
metabolismo são muito mais complexos.
Os cientistas preferem medicamentos baseados em
resultados obtidos a partir de experimentos desse tipo. As
informações sobre sua ação no homem, considerando-se as
inúmeras variáveis a que este está exposto, são insuficientes
e limitadas. À medida que temos necessidade de entender
melhor as substâncias que utilizamos como medicamento,
para obtermos o melhor resultado com o menor risco, o
ideal seria usar aquilo de que o homem já vem lançando mão
há milhares de anos: as plantas medicinais.

Modelos incompatíveis com a Vida

Para Prigogine e Stengers, quanto mais artificial o modelo
estudado, maior a chance de o resultado não refletir a
realidade dos fatos e sua aplicabilidade ser pouco eficiente.
Essa crítica pode ser feita tanto às pesquisas com animais de
laboratório quanto aos estudos clínicos. No segundo caso, é
fundamental que se respeite a vida normal das pessoas,
evitando-se um controle excessivo de suas atividades e de
sua interação com o meio ambiente, pois, do contrário, os
resultados são distorcidos. Isso se traduz, na clínica, na piora
da qualidade de vida dos pacientes. É comum ocorrerem
problemas com medicamentos que causam grande
desconforto físico, sem que isso esteja relatado na literatura
médica.
Vejamos o caso de Ruth Ladin Bisset, que sofre de um
câncer de seio, com recidiva na outra mama, e usou, por
muito tempo, o medicamento tamoxifeno, um bloqueador
dos efeitos do estrogênio. Seu uso implica uma série de
efeitos colaterais, alguns semelhantes aos da menopausa,
como calores, ressecamento da pele etc. Porém, em vez
disso, ela começou a sentir uma pressão na altura do coração
que a incomodava terrivelmente, mas que o médico
considerou ser de natureza emocional. Ruth, entretanto,
convenceu-se de que estava com alguma doença do coração
e pediu que ele solicitasse exames como eco e
eletrocardiograma que deram resultados normais. A opressão
precordial intensificou-se e ela caiu em depressão. A
medicação indicada para isso não surtiu bons resultados.
Ruth ficou anos usando tamoxifeno, com opressão no peito
e depressão. Em seu relato, contou que não suportava mais
viver daquela maneira. Um dia, conheceu uma mulher que
tinha tirado a mama, por câncer, que lhe contou ter também
sentido depressão e opressão no peito com esse
medicamento, e que resolvera interromper seu uso por
conta própria, melhorando em seguida. Como já se haviam
passado mais de cinco anos sem recidiva do seu tumor, Ruth
abandonou o remédio imediatamente e livrou-se dos
sintomas. Desistiu do tratamento convencional e procurou
um alternativo.

Falta de Metodologia Eficiente para Lidar com
variáveis Múltiplas

Os modelos científicos são construídos para lidar com uma
única variável, ou com poucas, o que dificulta o
entendimento das reais situações de tratamento que
ocorrem com as pessoas. O médico, quase sempre, depara
com situações imprevistas e, por não dispor de informações
suficientes, tem dúvidas sobre qual caminho seguir. Sem
falar nas situações nas quais a associação de variáveis pode
representar um risco desconhecido à saúde.
Por isso, existe a necessidade de se fazer uma amostragem 8
ampla, com complexa análise dos dados, incluindo
cruzamento da maior quantidade possível de informações.
Isso exige uma enorme logística, custa muito dinheiro e foge
à objetividade buscada pela indústria farmacêutica, principal
financiadora das pesquisas de medicamentos. Não há,
portanto, interesse em se desenvolver esse tipo de
metodologia, e não surgem idéias novas ou descobertas
nesse campo. E tudo, enfim, continua como está.
Um grande passo para se obter mais informações sobre os
diversos aspectos das doenças seria a criação de um sistema
integrado de comunicação entre setores médicos, conectado
a programas de análise de dados, favorecendo o intercâmbio
de descobertas e resultados. A proposta resultaria num
constante aprendizado dos profissionais, e de forma
coordenada, promovendo maior desenvolvimento de
drogas, conceitos e tratamentos. Em última análise, o
sistema propiciaria uma arrancada em termos científicos e
tecnológicos.
Há quem ache essa proposta absurda, mas ela se assemelha à
que está sendo empregada para melhorar a eficiência das
previsões do tempo. No livro A Essência do Caos, Edward
Lorenz explica que, para chegar a uma avaliação da situação
climática global que permitisse uma previsão eficiente do
tempo, foi implantado, em 1991, um sistema para colher,
diariamente, informações básicas sobre temperatura,
velocidade e direção do vento, e umidade relativa do ar, em
45 mil pontos da superfície terrestre e em 31 altitudes
diferentes. Mas, para ele, será necessário, ainda, desenvolver
sistemas mais sofisticados para se atingir uma previsão
superior a sete dias.

Tratamento igual para indivíduos Diferentes

Outro sério equívoco é a falta de um método que permita
distinguir, ao menos em pane, como as diferenças
individuais poderão influenciar na resposta aos tratamentos
ou na evolução das doenças. Com a atual metodologia de
estudos, as pessoas são submetidas aos mesmos tratamentos.
A lógica é a seguinte: se eles funcionam com uma parte
significativa de pacientes, são considerados bons e utilizados
para todos. Nos testes de medicamentos, utiliza-se a
randomização, estratégia que consiste numa amostragem de
pacientes feita ao acaso, e considerada representativa da
população. Com isso, acreditam os pesquisadores, evita-se a
seleção de pessoas mais propensas a responder
positivamente ao tratamento, afetando as estatísticas. Eles
consideram menos confiável qualquer amostragem feita fora
desses padrões.
A questão é que a randomização impede a avaliação das
respostas de diferentes subgrupos a determinados
tratamentos. No estudo de qualquer medicamento, há uma
enorme diversidade de respostas: há quem, com ele,
melhore muito, pouco ou nada. Se a droga testada não é
muito agressiva, aproximadamente 15% das pessoas
apresentam efeitos colaterais. Os dados são anotados e
divulgados, mas nenhuma outra metodologia é
experimentada para se identificar diferenças entre os que
respondem bem e os que não reagem às substâncias testadas.
Não sou o único a levantar essa questão. Outros autores já se
manifestaram sobre a necessidade de se procurar subgrupos
numa amostra de pacientes. Aivan R. Feinstein,
epidemiologista da Universidade de Yale, nos EUA, publicou
em 1983 uma série de artigos na respeitada revista Annah of
Internal Medicine. Neles, mostrou que a randomização traz
restrições às avaliações de várias questões, como a do estudo
de múltiplas formas de terapêutica e a da influência de certos
detalhes do tratamento nos resultados, das mudanças rápidas
nos procedimentos devido às inovações tecnológicas, dos
efeitos adversos a longo prazo e da relação da etiologia com
fatores agravantes das doenças.
Feinstein cita um trabalho sobre câncer de pulmão,
mostrando que, atualmente, dependendo do grau de
evolução da doença, o tratamento ideal pode ser
radioterapia, quimioterapia, cirurgia ou uma associação delas.
Por este motivo, prossegue ele em sua análise, quando os
pacientes de câncer são avaliados de forma randômica, os
resultados não refletem a resposta real aos tratamentos
disponíveis. Vemos então que, quanto mais multifatorial se
apresenta um quadro clínico, menos eficiente é a
metodologia de pesquisa adotada. Feinstein diz, de forma
indireta, que é preciso elaborar estudos que proporcionem
uma visão mais eficiente das características individuais dos
pacientes.
Infelizmente, suas idéias não foram bem recebidas e seus
artigos caíram no esquecimento. Persiste, na cabeça dos
médicos, a idéia de que as metodologias hoje utilizadas são as
mais sofisticadas e não há necessidade de mudá-las ou
melhorá-las. Durante a elaboração deste livro, entrevistei
cerca de 30 deles, de diversas especialidades. Quando lhes
falava da necessidade de criar novos métodos para identificar
grupos de pacientes que respondem de forma diferenciada
aos tratamentos, todos se admiravam: "Por quê?",
perguntavam. O modelo linear mecanicista está tão
sedimentado que muitos não conseguem vislumbrar outras
fórmulas de análise. A médica Regina Fonseca,
coordenadora da residência em cardiologia do Hospital
Universitário Clementino Fraga da UFRJ, ao ouvir minhas
explicações, garantiu que nunca havia pensado nisso, mas
reconheceu a lógica do meu raciocínio. "Na faculdade,
aprendemos o que está nos livros, e eles não refletem
inteiramente a realidade", disse. "Desenvolvemos o senso
clínico quando começamos a praticar e precisamos de
tempo até termos segurança suficiente para mudar uma
conduta indicada nos livros."
Existem três áreas estratégicas, a meu ver, que poderiam ser
investigadas para que possamos propor melhores avaliações
das respostas dos pacientes aos tratamentos: uma é a que se
relaciona com o perfil genético de cada um, pois os
problemas parecem determinados pela sensibilidade herdada
a certas moléculas conhecida como "reações idiossincráticas"
- a outra, com o bioupo; e, finalmente, a que se refere às
alergias, ou "mecanismos de hipersensibilidade". As reações
idiossincráticas podem estar relacionadas com o padrão
genético e são as mais graves, como mielotoxicidade e
hepatite medicamentosa. Essas reações são bem mais raras, e
determinadas por uma sensibilidade particular e exagerada a
uma ou mais substâncias que causam lesões nas células. Sua
associação a algum padrão genético específico deveria ser
investigada. O ideal seria fazer um completo estudo do DNA
das pessoas para identificar o perfil de genes que poderia
estar relacionado com as reações adversas. Mas isso parece
ainda inviável, pois mapear o genoma individual de todo
mundo sairia excessivamente caro. Resta, ainda, a
possibilidade de apelar para traços do fenótipo das pessoas, o
que permitiria uma distinção individual e precisa. Existem
evidências científicas de que acidentes anatômicos, como
pregas de orelha e dos olhos, têm relação com os genes. Um
estudo feito no início da década de 1980 mostrou que
pessoas que têm uma prega no lóbulo da orelha carregam
um risco significativamente maior de desenvolver doenças
cardíacas. Seguindo esse raciocínio, as impressões digitais
poderiam ser utilizadas como padrão de individualização
para identificar pessoas susceptíveis a desenvolver efeitos
colaterais sérios a certos medicamentos e não apenas
utilizadas nas investigações criminais, como ora acontece.
Na área das reações de hipersensibilidade, a questão é ainda
mais complexa. Sabemos que as células possuem um sistema
de identificação formado por antígenos de superfície, que
permitem ao sistema imunológico reconhecer quais são as
suas células (self) e quais não são (notself), conhecido como
Sistema de Antígenos de Histocompatibilidade, ou HLA, e
que é utilizado nos transplantes, na procura de doadores
compatíveis. Sabemos que pessoas com certos tipos de HLA
tendem a desenvolver reações imunológicas que causam
doenças. É possível que a alergia a alguns antígenos
específicos, como a certos medicamentos, também tenham
relação com o HLA. Essa possibilidade nunca foi
suficientemente avaliada.
A individualização dos pacientes, nos tratamentos, poderia
ser feita, ainda, através do estudo da anatomia das linhas da
mão. Esse conceito, em parte, é tradicional: nas medicinas
chinesa e ayurvédica, tem grande importância na
determinação de suscetibilidades a doenças e na
compreensão do temperamento dos indivíduos.
Infelizmente, esses conhecimentos são marginalizados no
meio científico, provavelmente pela imagem negativa da
prática da leitura das mãos, pelos ciganos. Entretanto, não
faltam evidências sugerindo que a anatomia das mãos tem
íntima relação com o perfil genético das pessoas. Doenças
congênitas conseqüentes a alterações nos cromossomos
acabam por criar características específicas em mãos e
dedos, com relação ao formato, às pregas etc.
Para a avaliação do biótipo, acredito que a melhor estratégia
seria, portanto, aproveitar os sistemas das medicinas
tradicionais, que criam subgrupos de pessoas com
características fisiológicas específicas.
A Dra. Qi Li, neurologista e minha orientadora durante um
estágio feito em 1988, no Hospital Guan An Men, em
Pequim, demonstrou que esses modelos podem ser
utilizados nos prognósticos feitos pela medicina ocidental.
Num trabalho, por ela desenvolvido, encontrou uma
concordância de 81,3% entre pacientes com acidente
vascular isquêmico com os sinais e sintomas classificados
como "estagnação pela medicina chinesa. E 92% de
concordância entre pacientes com acidente vascular
hemorrágico com o diagnóstico de "calor' segundo a
medicina chinesa. O mais interessante foi sua constatação de
que muitos sintomas já existiam antes da instalação da
doença, o que significa que, se a pessoa tem sintomas de
"estagnação"', tem mais chances de sofrer um acidente
isquêmico, enquanto que, se os sintomas são de "calor", de
ocorrer um acidente hemorrágico. Infelizmente, esse
trabalho foi registrado apenas numa publicação chinesa.
Outro autor que identifica a necessidade de uma nova
abordagem para a questão da heterogenicidade de uma
amostragem é o psicólogo espanhol Fernando Silva, que
publicou Psychometric Foundations and Behavioral
Assestment, obra pioneira no assunto. Embora voltado para
o desenvolvimento dos métodos de avaliação psicológica, o
trabalho traz conceitos que podem ser aproveitados na
medicina. Uma das conclusões de Silva é que os dados
probabilísticos de um grupo não traduzem, necessariamente,
os de indivíduos específicos. Para ele, a aplicação de
metodologia de avaliação excessivamente padronizada pode
afetar os resultados, na medida em que é incapaz de filtrar e
compreender variáveis que influenciam os indivíduos.
Vemos o que acontece com relação às cirurgias, por
exemplo. Embora cada pessoa tenha uma anatomia
específica, os processos cirúrgicos são iguais. A ciência
médica se comporta como se essas diferenças não
existissem. As propostas de tratamento individualizado não
são experimentadas por falta de protocolos de estudo
universalmente aceitos, que são casos da acupuntura, da
homeopatia e da psicanálise.
O ambiente de crescente insatisfação com a medicina
origina-se das conseqüências desses equívocos nas
abordagens terapêuticas impostas aos pacientes.

Novos caminhos Conceituais

A evolução da física exigiu a quebra de dogmas e de
concepções decorrentes da forma limitada como vemos o
mundo. Mas os ecos desses avanços chegaram timidamente
à ciência médica. A análise de seus conceitos evidencia que
ela está contaminada pela visão mecanicista da fisiologia, o
que resulta na absoluta pobreza de novas idéias. As últimas
grandes descobertas que ajudaram na compreensão da
fisiologia dos seres vivos e do homem em particular são do
final do século XIX e início do século XX. As inovações têm
vindo do desenvolvimento dessas idéias, da aplicação maciça
de tecnologia e da introdução de técnicas específicas nas
diversas especialidades.
A genética, descrita por Mendel no século passado,
possibilitou o estudo das doenças hereditárias, culminando
no ambicioso projeto do genoma humano (mapeamento dos
genes). A neuroanatomia está avançando com as técnicas de
mapeamento cerebral. A teoria da estruturação da mente,
proposta por Freud, no século XIX, não foi absorvida pela
neurologia, e seu desenvolvimento parece acontecer de
forma independente em relação ao da medicina. A química
orgânica também experimentou avanços, a partir da
descrição das fórmulas estruturais e espaciais das enzimas,
resultando no trabalho de Quecoulet. A fisiologia dos órgãos
desenvolve-se significativamente. Mas sistemas onde
existem interações complexas e multifatoriais, como o
sistema imunológico e os sistemas de regulação da
homeostase, e o cérebro ainda são pouco compreendidos.
Avanços significativos exigem novas idéias. Muitas foram
apresentadas, especialmente em áreas do conhecimento que
sofreram grandes mudanças conceituais, como a física, que
estuda o comportamento do universo, sua constituição e
organização micro e macroscópica. De alguma forma, esses
conceitos deveriam ser aplicados também aos seres vivos
como os da mecânica estatística de Boltzman, o Princípio da
Incerteza, o Princípio da Complementaridade, as noções de
entropia e irreversibilidade e as novas descobertas sobre a
Teoria do Caos.
O físico austríaco Ludwig Boltzmann dedicou-se ao estudo
da cinética dos gases, no final do século XIX, e demonstrou
que era inviável avaliar o comportamento de bilhões de
moléculas que se movem de forma caótica, chocando-se
umas com as outras segundo o modelo clássico de Newton:
calcular velocidade e direção de cada molécula, num
determinado instante. Propôs, então, um outro tipo de
cálculo, de posições e velocidades individuais, utilizando as
médias a partir de uma avaliação probabilística. Os cálculos
de Boltzmann explicaram alguns achados encontrados cm
experiências com gases feitas em laboratório por físicos da
época. Mas suas idéias foram duramente criticadas pela
grande maioria. Isolado e deprimido, com a saúde abalada,
suicidou-se em 1906. Dois anos depois, suas teorias foram
confirmadas pelo trabalho do físico francês Jean Perrin. A
estratégia usada na teoria de Boltzmann pode, por exemplo,
ser adaptada para os organismos biológicos visando à
formulação de mecanismos de avaliação das complexas
interações metabólicas,
O Princípio da Incerteza, introduzido pela física quântica,
decorreu da impossibilidade de se determinar a velocidade e
a posição de uma partícula subatômica mais especificamente,
de um elétron num determinado momento, como exigiam
os ensinamentos de Newton. Sempre que a velocidade era
medida, não era possível precisar sua posição. E toda vez
que a posição era determinada, era impossível mensurar a
velocidade. A descoberta dessa incomunicabilidade entre
posição e movimento não só quebrou todos os conceitos da
física clássica como trouxe novidades conceituais. Esse
princípio mostra que o sistema quântico é sensível a
qualquer mudança no quantum energético — o que significa
que ocorrem alterações instantâneas, a cada influência
recebida. Pesquisadores notaram que isso efetivamente
acontece durante as experiências de medição de massa ou
velocidade de partículas atômicas. A simples presença de um
aparelho de observação já modifica as variáveis. É como se o
sistema quântico fosse "sensível" e "inteligente" e
respondesse de forma "diferente" a cada estímulo.
O Princípio da Incerteza pode ser usado para explicar as
diferenças entre matéria inerte e matéria viva esta tem uma
atividade química imensamente superior à primeira. Mas
essa atividade depende da transferência de elétrons entre
substâncias, de elétrons ativados trocando de órbitas, de íons
hidrogênio em solução, entre outros fenômenos, que podem
ser encarados como uma "atividade" quântica. Isso explica,
por exemplo, o fato de os seres vivos terem reações que
transcendem as explicações fisiológicas clássicas. O segundo
ensinamento que podemos tirar desse princípio é que, como
as sub-partículas, o homem é sensível e inteligente. Por isso,
toda pesquisa científica feita com humanos nunca vai captar
inteiramente a realidade dos fatos. Sempre que um
instrumento de avaliação é usado para medir suas reações,
elas vão se modificar, o que implicará em imprecisão dos
resultados, por mais sofisticadas que sejam as metodologias
empregadas.
O Princípio da Complementaridade Foi uma das questões
que mais ocupou Niels Bohr, físico que propôs os
fundamentos da física quântica. Uma explicação simples para
o dilema do sistema quântico é a seguinte: durante uma
experiência, se você pergunta ao elétron: "Você é uma
partícula?", ele responde: "Sim"; em seguida você perguntar.
"Você é uma onda?", ele responde: "Sim"! Onda ou
partícula? Energia ou matéria? Bohr postulou que, no
ambiente quântico, o sistema responde de acordo com a
solicitação, porque o sentido de realidade é diferente do
mundo macroscópico. Segundo ele, as sub-partículas
atômicas possuem tanto propriedades de matéria quanto de
ondas eletromagnéticas. Essas qualidades, apesar de opostas,
são complementares, e contribuem, ambas, para o equilíbrio
do mundo quântico.
Segundo Prigogine e Stengers, o Princípio da
Complementaridade demonstra a riqueza do real. Isto
permite propor considerações sobre a ciência médica, como,
por exemplo, a inexistência de uma realidade única. Quando,
por exemplo, somos procurados por um paciente, há uma
demanda por uma ação. Em geral, a procura é por uma
resposta objetiva, mas ele anseia também por uma subjetiva:
comporta-se, portanto, como um elétron. Ao ser
questionado: "Quer uma solução objetiva?", ele responde:
"Sim", mas no minuto seguinte solicita uma solução
subjetiva. Portanto, qualquer forma de medicina deve saber
lidar com isso. Outra consideração é relativa à leitura das
formas de reação do organismo às diferentes agressões, e na
evolução das patologias. Para essa discussão, acredito que o
ideal seria recorrer às formas tradicionais de medicina, que
lidam com o conceito dos opostos.
Outra teoria que, a meu ver, pode contribuir para avanços na
ciência médica é a do Caos, que surgiu recentemente, a
partir de estudos do comportamento da atmosfera terrestre.
E incomum encontrarmos autores que recorrem a ela para
explicar fenômenos patológicos ou fisiológicos. Até o
momento, li referências à sua utilização apenas na explicação
das arritmias cardíacas. Mas o aproveitamento desse
conceito já foi feito em outras áreas do conhecimento, com
sucesso, como no trabalho realizado pela física e filósofa da
ciência Danah Zohar. Formada por uma das universidades
mais conceituadas do mundo, o Massachusets Institute of
Tecnology, autora de livros e consultora de empresas como
Shell, Volvo e da cadeia de lojas britânica Marks & Spencer,
ela tem utilizado os conceitos da física quântica e da Teoria
do Caos para melhorar o desempenho de empresas, com
resultados surpreendentes. Em seu livro O Ser Quântico, ela
lança mão desses conceitos e combate o reducionismo e
modelos lineares e rígidos no trato com o ser humano. (A
Teoria do Caos será tratada com maior profundidade no
Capítulo 11, "A Medicina e o Caos".)
Portanto, o aproveitamento dos conceitos revolucionários
da física em sistemas biológicos pode representar uma nova
tendência do mundo científico.
Cabe mencionar ainda algumas idéias apresentadas no livro
Espaço, Tempo e Medicina, do médico americano Larry
Dossev, que cita as críticas de Ilya Prigogine aos modelos
científicos aplicados às ciências biológicas. Dossey mostra
que é impossível dissociar os aspectos humanos da ciência
médica. Discutindo a questão dos seres vivos como
estruturas dissipativas, ele defende a idéia de que a relação
espaço-tempo, para o ser humano, pode se alterar, podendo
se constituir na causa ou conseqüência de doenças. E explica
que, assim como ocorre em fortes campos gravitacionais ou
cm grandes velocidades, a relação espaço-tempo pode sofrer
alterações na interação dos organismos vivos com o meio,
sob estímulo patológico. Para exemplificar, ele fala da
"doença do tempo", que significa a falta de ajuste entre o
tempo biológico e o real, como causa de problemas como
hipertensão arterial e insônia.
O livro Medicina Vibracional do médico norte-americano
Richard Gerber, discute, justamente, a introdução dos novos
conceitos da física na medicina, e reúne o resultado de
algumas pesquisas. A questão mais interessante apresentada
diz respeito aos efeitos biológicos de campos
eletromagnéticos de fraca intensidade. Um experimento
conduzido na Universidade de Montreal, pelo biólogo e
professor Bernard Grad, revelou que sementes de cevada
expostas à água, expostas a campos eletromagnéticos fracos,
apresentaram maior índice de germinação e crescimento, e
as plantas tiveram maior capacidade de síntese de clorofila
do que as que receberam água comum.
Grad estudou ainda a influência, em camundongos, da
exposição a campos eletromagnéticos fracos, comparando-os
com o poder de cura das mãos de um curandeiro. Os animais
tiveram bócio induzido por dieta pobre em iodo associada a
um medicamento chamado propiltiouracil que impede a
tireóide de sintetizar seus hormônios. Os camundongos
foram divididos em três grupos: o primeiro foi exposto a
campos magnéticos produzidos por uma aparelhagem
especial; o segundo recebeu o tratamento feito com as mãos
do curandeiro; e o terceiro não recebeu tratamento algum,
para servir como controle do experimento, No final, os
camundongos foram sacrificados e as tireóides pesadas e
medidas, para avaliar seu aumento. Tanto o grupo exposto
aos campos eletromagnéticos quanto aquele que recebeu o
tratamento por imposição das mãos do curandeiro
apresentaram tireóides com tamanho e peso
significativamente menores que o grupo sem tratamento. O
fato de as glândulas terem crescido menos significa que o
tratamento trouxe uni benefício objetivo e mensurável. Em
seguida, Grad demonstrou que o curandeiro era capaz de
induzir, com as mãos, um campo eletromagnético fraco.
Suas conclusões, ainda pouco aceitas pela ciência, é que
curandeiros atuam por meio de energia bioeletromagnética.
Uma outra linha de investigação sobre esses efeitos foi
conduzida pela Dra. Justa Smith, que detectou um aumento
da atividade enzimática da tripsina in vitro após a exposição
a campos eletromagnéticos fracos e específicos. Num
segundo momento, inativou-a e notou um ressurgimento
significativo de atividade enzimática após a exposição aos
mesmos campos. Gerber atribui esses achados à
interferência destes com os elétrons, tornando-os mais
excitados, o que poderia interferir na cinética química ou
mesmo estimular o rearranjo espacial de uma enzima
inativada. E relaciona várias formas de tratamento, ainda
sem reconhecimento científico definitivo, como a ação
farmacológica dos medicamentos homeopáticos e a ação de
campos magnéticos sobre os sistemas biológicos. Seus
estudos reforçam a possibilidade de haver, efetivamente,
algum tipo de comunicação entre as propriedades quânticas
e a fisiologia dos organismos vivos.
Todos esses conceitos podem parecer estranhos, mas
merecem ser investigados. Quando os fundamentos da física
quântica foram propostos por Bohr, a maior parte dos
especialistas tratou-os com descrédito, considerando-os
incompatíveis com as leis da física e até mesmo contrários
ao senso comum acerca da realidade. Mas, aos poucos, com
as evidências, esses especialistas foram obrigados a
reconhecê-los e a estudá-los.
Portanto, antes de rejeitar essas novas idéias, simplesmente
por parecerem demasiado exóticas, a comunidade médica
acadêmica deveria se preocupar em promover estudos que
possam atestar sua veracidade científica. No meu entender, a
medicina precisa sofrer um choque, como o provocado pela
Teoria da Relatividade, de Einstein, na física, para que se
livre, finalmente, desse modelo cartesiano e reducionista.
Ela precisa se render às evidências de que a fisiologia e os
processos patológicos do corpo humano têm um nível de
complexidade maior que o atribuído pelos modelos atuais, e
flexibilizar seus conceitos, permitindo a incorporação de
novas idéias.

O Saber Milenar inspirando Novas idéias

Uma pessoa cética, com relação a novas idéias, chegará ao
fim deste capítulo certa de que as que foram aqui
apresentadas são interessantes, mas não oferecem
alternativas melhores que as do modelo científico clássico,
que consegue resultados práticos. A verdade é que tanto na
física quântica quanto no conhecimento do uso das plantas
medicinais, encontraremos caminhos seguros para
renovarmos o universo médico. E preciso lançar mão de
todas as armas de que dispomos, das mais sofisticadas às mais
simples, das soluções nascidas espontaneamente nas culturas
às surgidas com anos de estudos e experiências em
laboratórios. A condição essencial para avançarmos é nos
livrarmos dos preconceitos, das idéias fixas e arraigadas, do
medo de parecermos primitivos ou abstratos demais. Os
caminhos para a nova medicina passam, necessariamente,
pelas velhas trilhas de terra que alimentam as amplas free-
ways asfaltadas e vice-versa.
Não resisto a relatar uma metodologia aparentemente
simples, implementada por um médico tradicional do
Vietnã, que exemplifica, na prática, tudo o que foi dito.
Usando um processo inaceitável, pelas regras da ciência
clássica, ele venceu um desafio que nem milhões de dólares
em tecnologia conseguiram resolver até o momento: curar
viciados em opiáceos. Pah Kuan Dan vive numa pequena
aldeia do interior do país e pertence a uma família de
médicos tradicionais, já de muitas gerações, e cuja formação
profissional é completamente diferente dos moldes
ocidentais. Na década de 1980, ele perdeu o irmão e o pai,
entre outros familiares, devido ao vício dos opiáceos. A
dependência desse tipo de droga, no Vietnã, é um sério
problema de saúde pública. Revoltado, o médico decidiu
empenhar-se, ao máximo, em descobrir uma cura para esse
mal. Sua metodologia de trabalho foi absolutamente
inovadora e incomum: começou por viciar-se também, para
conhecer com precisão os sintomas da doença. Então usou
todo seu conhecimento de plantas medicinais na busca das
mais indicadas para debelar os sintomas que apresentava. Ao
longo de dois anos, testou inúmeras combinações de plantas,
sempre aperfeiçoando seu composto. Finalmente, conseguiu
uma fórmula, um composto de 13 plantas, que abolia
completamente os sintomas de abstinência e tiravam o
desejo de ingerir ópio. Livre do mal, Pah Kuan Dan passou a
tratar outros viciados de sua aldeia. As histórias de suas curas
se espalharam pelo país e ele foi chamado para discutir o
emprego da sua fórmula pelo ministério da Saúde. Foi,
então, fabricada uma série iniciai do composto, distribuída a
130 mutilados de guerra que recebiam doses de opiáceo do
governo. No mês seguinte, 70% deles não voltaram para
pegar suas doses mensais.
Trata-se, até hoje, do melhor e mais expressivo resultado
obtido por qualquer procedimento adotado para
dependentes de opióides em todo o mundo! Para avaliarmos
melhor a eficiência desse composto de ervas, lembramos
que, nos mais avançados centros de tratamento de viciados,
onde o tempo de internação é, em média, de sete meses, são
empregadas técnicas que vão da psicoterapia às drogas como
metadona e antidepressivos, hipnose e até acupuntura, e o
índice de sucesso é inferior a 40%! Com os resultados
obtidos pelo médico vietnamita, a Organização Mundial da
Saúde montou um projeto de pesquisa clínica no Vietnã.
Nesse estudo, o composto foi batizado de "Heatos", e seus
componentes químicos, assim como a padronização no seu
uso, ainda estão em estudos, para que o produto possa ser
patenteado. O que se sabe é que são necessários dois meses
para o tratamento completo, mas, usando apenas o "Heatos",
80% dos dependentes não sofreram recaídas cm até um ano
após o uso do composto.
Nessa história, um médico tradicional, munido de coragem,
de um arsenal terapêutico formado por 600 plantas, e de
seus conhecimentos da medicina oriental, chegou a um
tratamento eficiente para uma doença difícil. Milhões de
dólares, tecnologia de ponta e o trabalho de muitos
pesquisadores estão sendo empregados, há anos, sem
resultados tão satisfatórios. E não foi obra do acaso o que
levou Pah a descobrir a formulação certa. Pela lei das
probabilidades, é mais fácil uma pessoa morrer fulminada
por um meteorito do que um composto desses ser
descoberto por acaso. Isso significa que um método
tradicional é eficiente para nortear novas descobertas, pois
lida com a questão multifatorial, o que pode significar uma
economia de milhões de dólares.
É interessante constatar como um método tradicional, que
se orienta pelos sintomas subjetivos gerados pelas doenças e
os correlaciona com alterações da fisiologia corporal,
encontra soluções para casos muitas vezes incompreensíveis
para a medicina convencional.

Conclusões

A ciência resulta de um processo complexo que inclui
imaginação, criatividade, tradição, capacidade de
experimentação e comprovação e a constante inovação de
conceitos que ampliem o entendimento da realidade.
A medicina atual se baseia em conceitos ultrapassados,
originários da física newtoniana e da filosofia cartesiana,
com visão reducionista e raciocínios lineares, impróprios
para explicar os sistemas biológicos, e em particular o ser
humano.
Como está estruturada, ela não consegue lidar com a
dualidade do ser humano, que ora necessita de uma
abordagem reducionista, ora vitalista ou holística.
Os modelos experimentais são inadequados para estudar os
seres humanos de acordo com suas variáveis individuais.
Os conceitos reducionistas e unifatoriais de etiologia
dificultam a compreensão dos mecanismos geradores de
doenças e, conseqüentemente, o estabelecimento de
estratégias adequadas a cada paciente.
A adoção de novos conceitos, como os introduzidos pela
física quântica, como a Teoria do Caos, são importantes para
o desenvolvimento de modelos mais aprimorados que
expliquem fenômenos ainda não esclarecidos.
Os métodos tradicionais, como os da medicina chinesa,
podem ser eficientes na descoberta de medicamentos e
tratamentos, e na valorização dos sintomas subjetivos,
podendo representar uma economia de milhões de dólares
em pesquisas.

Capítulo 4
O Arquétipo do Médico

A palavra arquétipo foi introduzida pelo famoso psicanalista
alemão Carl G. Jung para descrever aspectos da psicologia
humana que tinham uma dimensão maior que os
representados por cada individualidade. Na sua definição,
são traços psíquicos inconscientes comuns aos seres
humanos, alguns independentes de raça, cultura e religião, e
se manifestam através de processos simbólicos notáveis nas
culturas, regendo alguns padrões de comportamento. A
medicina é uma atividade tão disseminada em todas as
culturas e civilizações que pode ser considerada um traço
arquetípico do ser humano. A observação de padrões de
comportamento e da inter-relação da medicina e de seus
representantes com os meios sociais apontam para certas
características, quase universais, que vamos considerar como
arquetípicas dos médicos.
Uma análise rápida e superficial mostra que esses
profissionais têm muitos pontos em comum, como a grafia
de garranchos incompreensíveis, a dedicação aos estudos, a
preferência por trabalhos independentes, pois não gostam de
ter patrão -, o tempo ocupado com muitos afazeres e o
desejo de serem tratados com deferência especial. Tudo isso
pode ser resultado de arquétipos do seu inconsciente.
Vamos investigar essas características, associando-as com
mitos e padrões de comportamento, através de uma
coletânea de histórias, de ditos populares enfim, de material
produzido espontaneamente no ambiente cultural.

O Dinossauro Branco

O dinossauro branco tem aspectos que o tornam o principal
arquétipo da medicina, manifestando-se em todos os
médicos. Dinossátiros simbolizam o arcaico, que em
linguagem psicanalítica é tudo o que está nas profundezas do
inconsciente. São verdadeiros fósseis de nossas memórias.
Esses animais também são pesados como a própria medicina,
caracterizada pelo conservadorismo, a lentidão em suas
mudanças e a grande resistência às idéias inovadoras. E, ao
mesmo tempo, os bichos parecem tão atuais, como objetos
de estudos e de reconstituições: estão no cinema, na TV, em
jornais e revistas, nas lojas de brinquedo. Mas, da mesma
forma que o ocorrido com a arte da cura, mantê-lo em cena
exigiu mudanças em sua natureza: hoje são, por dentro,
movidos a circuitos elétricos e, por fora, de plástico.
A cor branca, com que os médicos são identificados, em
suas roupas, significa limpeza, assepsia e capacidade de
purificação. Simboliza, enfim, o potencial de curar. Mesmo
sendo pesada e resistente a mudanças, a medicina carrega,
intrinsecamente, o grande poder de aliviar o sofrimento das
pessoas. A imagem do dinossauro branco traduz essas boas
intenções, dentro de uma estrutura imensa e complexa, mas
detentora de enorme força vital. Mas já vimos que quando
ele se movimenta, com seu corpanzil, sem precaução, pode
causar enormes estragos à sociedade como ilustram as
histórias contadas neste livro, de pacientes desafortunados -,
além das muitas que ouvimos diariamente.
Nosso grande animal pré-histórico é um arquétipo que
representa a medicina como corporação.
Para compreender melhor o que se passa no inconsciente do
médico, é preciso se ater aos arquétipos que influenciam os
indivíduos em sua prática. E o primeiro aspecto mítico a ser
considerado é a história de Esculápio, considerado por
gregos e romanos como o deus da Medicina. Ele era filho de
Apoio e tinha o dom da cura. Viajava pela Grécia antiga
tratando enfermos e promovendo curas consideradas
milagrosas. Consta que ele foi o mestre de Hipócrates. Certa
vez, utilizou o sangue da deusa Hera, que lhe havia sido por
ela confiado, como um amuleto, para ressuscitar duas jovens
mortas pela peste. Enfurecida, Hera envenenou os ouvidos
de Zeus com intrigas, e este fulminou Esculápio com um
raio.
O mito reflete o grande temor que assola os médicos: o
medo da vingança, da perseguição, como decorrência de
suas atividades profissionais. Ao longo dos séculos, eles
foram idolatrados, mas também odiados, e foram vítimas de
represálias, de acordo com o resultado dos tratamentos
ministrados, das expectativas e da compreensão dos
pacientes. O desenvolvimento científico, com suas pesquisas
e experimentos, foi outro fator que muito contribuiu para
gerar situações de perseguição. Médicos sempre foram
experimentadores que desafiaram valores morais e religiosos.
Esses problemas persistem cm nossa sociedade. Fala-se de
crimes médicos, com freqüência cada vez maior, nos meios
de comunicação.
Nos Estados Unidos, os profissionais já têm seguro para
cobrir eventuais indenizações decorrentes de processos. No
Brasil, o número de ações judiciais de responsabilidade
profissional, nessa área, multiplicou-se por sete dos últimos
dez anos. Por isso, falar do arquétipo do perseguido é nosso
ponto de partida: seus aspectos podem ser evidenciados em
quase todos os médicos, influenciando outras estereotipadas
características de sua conduta. Quando elas se manifestam
negativamente, interferindo na qualidade da prática médica,
surgem as distorções que chamo de "síndromes".


O Perseguido

Cientistas sempre foram alvo de perseguições políticas e
religiosas, especialmente durante o apogeu do catolicismo.
Para o povo, cientistas possuem idéias estranhas, fazem
experiências incompreensíveis e pretendem mudar
conceitos arraigados. Essa imagem ameaçadora é
representada pelo mito do cientista maluco, que perde o
controle de sua experiência, produzindo algo assustador.
Como essa reputação lhes trouxe problemas, através dos
tempos, era costume, da Idade Média ao século XVIII, os
cientistas protegerem-se atrás de muralhas, em castelos e
mosteiros. Isso lhes custava ter de submeter seus trabalhos
ao controle daqueles que lhes davam abrigo. Resignados a
uma produção tutelada, ficavam a salvo de seus
perseguidores e mantinham suas idéias e experiências em
segredo para evitar problemas. Várias sociedades secretas
formaram-se, na Idade Média, para acobertar práticas não
aceitas na época. A Maçonaria e a Ordem Rosa-cruz são
alguns exemplos de entidades que chegaram aos nossos dias.
Mas foi na alquimia que a ciência conseguiu se fortalecer e
ganhar notoriedade. Uma sociedade secreta necessita de
códigos que permitam a comunicação interna de seus
membros, impedindo que mensagens sejam decifradas por
não-iniciados, evitando-se a difusão de idéias que contrariem
o pensamento dominante especialmente as que ferem tabus
morais e religiosos, capazes de gerar reações drásticas de
setores conservadores. Esses códigos secretos deram origem
a linguagens diferenciadas, próprias de cada grupo de
cientistas, de acordo com seu trabalho ou com o contexto de
cada entidade. Hoje, essa "linguagem diferenciada"
transformou-se em "linguagem científica". O emprego do
latim para nomear termos científicos reflete a influência da
Igreja Católica, que abrigou cientistas em seus conventos e
mosteiros. Por isso, o idioma predomina nas ciências
naturais e descritivas, como a botânica e a zoologia, cujo
conteúdo era compatível com as exigências ideológicas do
catolicismo. Já o grego aparece mais em ciências como a
física e a astronomia, nas quais as áreas de conflito
conceitual com os dogmas religiosos eram maiores. E
curioso notar que nos países asiáticos, onde não havia a
perseguição a cientistas e médicos, não houve o surgimento
de sociedades secretas para albergá-los, nem de linguagem
diferenciada ou "científica".
A medicina sempre viveu uma relação dupla com a Igreja.
Por um lado, havia a necessidade de uma convivência
pacífica com os dogmas religiosos, já que o médico dependia
de plena aceitação social para poder realizar seu ofício.
Entretanto, ao lidar com questões essenciais, como vida e
morte, saúde e o próprio corpo humano, a medicina gerava
situações de conflito com a estrutura conceitual do
catolicismo. Dessa forma, os médicos ora atendiam às
solicitações do clero, ora sentiam-se instigados a aprofundar
seu conhecimento, o que implicava em transgressões, como
a dissecção de cadáveres. Não foram poucos os acusados de
feitiçaria, perseguidos e presos pela Inquisição ou queimados
na fogueira.
A perseguição através dos tempos gerou características que
podemos observar no comportamento do médico
contemporâneo. A primeira delas é o corporativismo.
Defender um colega em apuros, ou, ao menos, não
contribuir para sua desgraça, é uma reação instintiva da
classe, independente da idade do profissional ou das
características culturais, legais e soei o econômicas de
diferentes países. Isso torna a corporação muito forte, mas
também pode levá-la a sérios erros de conduta. Seu aspecto
positivo está associado à preservação do grupo e à troca de
conhecimentos e experiências, mas não pode ser levado às
últimas conseqüências, como muitas vezes acontece.
Corporativismo saudável não pode ser sinônimo de
tolerância com falta de ética e nem com crimes de
responsabilidade previstos na legislação, como imprudência
e imperícia.
Outro aspecto deste arquétipo é a tal linguagem científica.
Médicos podem falar em "medicinês" que só eles
compreendem. Simples mortais que assistirem a uma
discussão nesse linguajar certamente vão ficar "boiando".
Dessa forma, os profissionais falam sobre questões da sua
área sem serem compreendidos — é uma maneira de buscar
proteção, por meio de um código secreto. O médico lida
com decisões extremamente difíceis. Às vezes, necessita
administrar uma droga com toxicidade ou adotar um
procedimento que envolve risco ao paciente. Este pode e
deve participar desse momento, mas, se algo der errado, o
médico será o responsável. Outras vezes, há a suspeita de
doença grave, ainda não confirmada, ou o paciente não
consegue lidar com dados de sua realidade não aceita, por
exemplo, a possibilidade de estar com câncer ou de morrer.
Muitos deles, ou de seus familiares, voltam-se contra os
profissionais que os atendem cm busca de algum reparo para
seu sofrimento. Na percepção do médico perseguido, quanto
mais bem informados forem o paciente e sua família, mais
recursos estes terão contra ele, em caso de processo por má
conduta. Esta é a razão por que muitos falam o mínimo
necessário aos clientes, sem traduzir, em linguagem
acessível, as implicações e riscos de determinadas decisões.
Com sua linguagem escrita ocorre a mesma coisa, porque
tudo o que está grafado pode ser usado como uma prova
irrefutável contra ele. Por isso, a famosa "letra de médico"
garranchos incompreensíveis que só farmacista compreende
-, que deve estar relacionada ao arquétipo do perseguido. A
grafia ininteligível funciona como uma variante do código
secreto — ou seria apenas a pressa do médico? O certo é
que, se alguém escreve algo que não pode ser claramente
entendido, sujeito a diferentes interpretações, isso dificultará
uma acusação fundamentada em documento manuscrito.
Uma pesquisa nacional, patrocinada pelo Conselho Federal
de Farmácia, e apresentada no Jornal Nacional, da TV Globo,
no dia 30/9/2000, mostrou que, de cada dez receitas
médicas, sete são ilegíveis. É importante que o profissional
tenha consciência da responsabilidade do ato de escrever e
tente fazer uma caligrafia legível. Na era da informática, os
incorrigíveis podem apelar para o computador e a
impressora.
A atitude defensiva dos médicos, temerosos de perseguições
e acusações injustas, pode levar a comportamentos que
induzem a outros problemas. O mais comum é o excesso de
exames complementares, para não ser acusado de omissão.
De forma geral, não há necessidade de solicitar uma
ressonância magnética para todo caso de dor de cabeça. Mas
já há quem faça isso para não ser acusado de retardar o
diagnóstico nos raros casos onde ela é provocada por
doenças como rumor cerebral. O maior problema
decorrente desse tipo de comportamento é que gera um
grande aumento no custo da medicina, e quem vai pagar a
conta final é o paciente.

O Lobo Solitário

O comportamento do "lobo solitário" decorre, em grande
parte, de uma reação ao medo da perseguição, discutido
acima. Só que, nesse caso, ao invés de procurar proteção na
estrutura corporativa, o médico a busca num determinado
segmento da sociedade. Forma-se, nesse caso, um sistema
no qual as pessoas assumem papéis definidos e comportam-
se de acordo com eles. O médico é, então, amparado pelo
grupo, desde que atue dentro das regras preestabelecidas
pela comunidade. E o caso de profissionais que trabalham
apoiados por grupos religiosos ou em pequenas cidades do
interior, onde estão fortemente vinculados à elite local.
Corresponde à herança de aspectos ligados a prestadores de
serviços de saúde de pequenas comunidades, como pajés e
xamãs, das aldeias indígenas. Nesses casos, a atuação do
profissional é incorporada às necessidades religiosas e
culturais do grupo, e atendê-las está acima da preocupação
com as questões individuais. Portanto, seu suporte vem da
percepção de quais ações são necessárias para a preservação
da harmonia e da identidade cultural daquele grupo. Isso
pode significar ações que, por exemplo, estimulem o
isolamento da comunidade, para fugir às influências culturais
que possam "contaminá-la". A estratégia desse arquétipo,
especialmente quando mal elaborado, é fomentar o
isolamento do profissional. Ele passa a evitar contatos
freqüentes com entidades que representam a estrutura
corporativa da medicina.
O tipo "lobo solitário" relaciona-se também à formação do
conhecimento médico empírico. Esse comportamento
pressupõe que ao menos parte do seu conhecimento é
propriedade intelectual resultante de uma difusão vertical,
ou seja, que se deu de pai para filho, ou de mestre para
aluno. Concepção que se opõe à difusão horizontal, que
implica na troca de conhecimentos entre indivíduos da
mesma corporação. Esta última teve papel fundamental na
construção do conhecimento científico, constituindo-se um
dos aspectos saudáveis do corporativismo. A forma vertical,
entretanto, tem seu lado positivo: ensina que pode haver
mais de um caminho entre a doença e a cura, e que médicos
podem propor soluções diversas, oriundas de sua experiência
pessoal, sem que isso signifique, necessariamente, a piora da
qualidade da atividade profissional. Através desse arquétipo,
fica patente a necessidade de preservação da individualidade
do médico, capaz de procurar soluções que se adaptem ao
contexto de sua prática e às características de cada paciente.
Esse arquétipo tem, no momento atual, um importante
papel, que é o de se contrapor aos exageros de um
movimento chamado "medicina baseada em evidências".
Essa tendência propõe engessar, de forma progressiva, a
conduta do médico, limitando-a àquela considerada
cientificamente comprovada. Ao buscar uma rígida
uniformidade nos tratamentos propostos, ela acaba por
abolir as individualidades dos dois protagonistas do ato
médico o doutor e o paciente -, tornando o primeiro frio,
mecânico e impessoal.
A questão é que esse arquétipo também pode levá-lo ao
isolamento. Sentindo-se seguro, do ponto de vista social, ele
não mais se comunica com o mundo exterior, nem com a
medicina. Em geral, estuda pouco, não gosta de trocar
experiências com colegas e se desatualiza. Sem o apoio da
corporação, acaba sentindo-se inseguro em sua prática
médica. Não gosta de pacientes que perguntem muito, que
questionem sua conduta, que exijam explicações detalhadas
sobre o diagnóstico ou o tratamento. Quando surgem, sente-
se ameaçado situação que caracteriza uma completa
distorção de sua atuação profissional, gerando a síndrome a
seguir.

Síndrome do Médico Ameaçado

Com a piora da qualidade da medicina, os pacientes estão se
tornando mais exigentes. A internet oferece acesso à grande
quantidade de informações, o que faz de alguns, muitas
vezes, pessoas mais informadas que seus próprios médicos.
Isso geralmente ocorre quando este tem uma formação
deficiente, não se atualiza, ou quando, assediado pelos
pacientes, foge de assuntos que o incomodam. Muitas vezes,
esse médico carrega inseguranças inconscientes que afloram
como raiva ou com a sensação de que está sendo desafiado.
Pode até mesmo tornar-se agressivo, levantar a voz e
discutir com o paciente, perdendo o controle da situação.
Enfim, sofre da tal síndrome persecutória que dificulta, e
muito, a formação do vínculo com o paciente, fundamental
para a terapêutica.
O empresário Roberto Hering conta que, ao resolver marcar
hora com alguns pediatras, para escolher o mais adequado
para cuidar de seus filhos, foi recebido pelo Dr. M., no Rio
de Janeiro. Notou a surpresa do seu interlocutor ao revelar o
motivo da consulta. "O senhor está aqui para me avaliar?",
perguntou, em tom ameaçador. "Certamente", respondeu
Roberto, "pois não vou colocar meus filhos na mão de um
pediatra sem ter certeza de sua competência e conhecer sua
linha de conduta. Por exemplo, não quero um medico que
fique entupindo meus filhos de antibiótico", informou. O
Dr. M. encarou aquilo como um desafio e aumentou a voz:
"Antibiótico é um excelente medicamento, e eu o uso
sempre!" A baralha estava armada. Roberto voltou à carga:
"Pois acho que ele deve ser usado com muito critério, e não
é preciso ser médico para saber que crianças que usam
antibióticos freqüentemente ficam com o sistema
imunológico fraco." O medico resolveu dar por encerrada a
conversa e levantou-se como quem pretendia interromper a
consulta. Mas o cliente estava disposto a continuar com o
duelo: "Por que o senhor se levantou? Quanto tempo dura
sua consulta? Nós não estamos aqui nem cinco minutos e
ainda tenho dúvidas a tirar", insistiu. O doutor sentou-se,
mas não se deu por vencido: "O senhor sabe que está
cometendo um deslize ético criando uma situação como
essa, em meu consultório!" E ouviu de volta: "Ética o senhor
discute com os seus colegas, sou um consumidor e tenho o
direito de saber a quem estou entregando a saúde dos meus
filhos. Estou pagando pela hora e o senhor tem obrigação de
me dar os esclarecimentos solicitados, pois o mínimo que se
espera de um profissional é que esclareça com paciência e
competência técnica tudo o que lhe for perguntado." Hering
ainda traçou outras considerações sobre seus direitos e,
finalmente, se retirou.
Neste caso, percebe-se claramente como o médico se sentiu
ameaçado porque um pai desejava informações sobre sua
forma de trabalhar. Apesar do questionamento insistente de
Roberto, cabia a ele dar os esclarecimentos solicitados. Ao
invés disso, tornou-se agressivo, perdendo o controle da
situação, e foi obrigado a ouvir verdades. Isso poderia ser
evitado caso mantivesse a calma e a paciência. E claro que
há pacientes de todos os tipos, e alguns, por seu
temperamento, dificultam o trabalho do médico, Mas este
precisa estar preparado para aceitar as pessoas, com suas
limitações, e aparar as arestas que possam surgir.

O Cientista Maluco

Muitos pacientes foram vítimas de experimentos médicos
malsucedidos. As primeiras cirurgias, por exemplo,
verdadeiras carnificinas, ofereciam resultados pouco
animadores. Mas, graças ao arrojo e à coragem dos cirurgiões
de então, contamos, na atualidade, com um leque
diversificado e eficiente de técnicas cirúrgicas. Como já
vimos, a característica investigativa do médico, tão
importante, ainda ameaça a sociedade, que não aprecia a
idéia de ser "cobaia". Se as pesquisas, em geral, suscitam
desconfiança e medo, por outro lado, se resultam em
sucesso, contribuem para atenuar a impressão negativa
gerada pelos fracassos. Dessa mistura de impressões
contraditórias resultou a idéia de que todo médico tem algo
de "louco" de onde vem o dito popular: "De médico e de
louco todos temos um pouco." Portanto, esses dois aspectos
da medicina, o que cura e o que faz loucuras, estão
profundamente assimilados pela sociedade.
Ela crê que o médico tem os dois lados.
Se a prática médica exige arrojo, desprendimento, gosto pela
aventura e pela investigação, é como se pegássemos um
cientista, um policial, um aventureiro e um padre, e os
colocássemos num liquidificador. O resultado, reconheço, é
esquisito. Por isso, médicos esses seres estranhos, esses
"cientistas malucos" sempre despertaram um misto de medo
e admiração, impressões que encontram sua maior
representação na famosa história do Dr. Frankenstein,
personagem de romance de terror escrito em 1818 por Marc
Wollstonecraft Shelley. Estudante de medicina,
Frankenstein era obcecado pela idéia de ressuscitar um ser
humano. Visitando o cemitério e roubando partes de
cadáveres, ele constrói um ser e, em seguida, tenta animá-lo
usando energia elétrica. Depois de várias tentativas, desiste,
porem é surpreendido, mais tarde, pelo desaparecimento
misterioso da criatura. Descobre que o monstro feito de
retalhos ganhara vida e vagava pela cidade, aterrorizando a
população. Empenha-se, então, em defendê-lo dos que
pretendiam matá-lo, escondendo-o em sua casa, mas acaba
vítima de sua própria criação. Revoltado com sua situação de
ente sem alma, e deformado fisicamente, o monstro mata
Frankenstein e é finalmente destruído, quando a população,
enfurecida, ateia fogo à casa, queimando-o vivo.
E interessante o fato de Frankenstein ter sido chamado de
"Prometeu moderno", quando o romance de Mary Shelley
foi publicado, no século XIX. Na mitologia grega, Prometeu
roubou o fogo do Olimpo e o deu aos homens. Como
punição, Zeus acorrentou-o a um rochedo e ordenou a um
abutre que, a cada dia, comesse um pouco de seu fígado.
Criar a vida e desafiar a morte talvez seja o grande objetivo
da medicina. Algumas de suas propostas parecem desafiar os
limites das "leis divinas", e podem ter conseqüências
desastrosas para a espécie humana e para o planeta. O
incômodo causado por atividades científicas que não
respeitam a ordem natural das coisas, na sociedade, está por
trás de manifestações espontâneas, como a rejeição aos
alimentos transgênicos. Recentemente, um cientista
americano declarou que iria criar uma bactéria a partir de
genes sintetizados em laboratório, confirmando o temor da
sociedade com relação a certos experimentos.
Esse aspecto assume uma dimensão cada vez mais
assustadora, pois se materializa em ameaças reais. A medida
que avançam os conhecimentos de medicina e da biologia,
surgem cientistas propondo experiências altamente
questionáveis e de conseqüências imprevisíveis. Seres
transgênicos ou criados em laboratório, clonagem de seres
humanos, desenvolvimento de embriões humanos fora do
útero e produção de armas bacteriológicas são assuntos que
provocam calafrios pelo seu potencial de gerar efeitos
desastrosos para a civilização.
Na história de Frankenstein, vemos vários aspectos míticos
da medicina. Um deles é a pretensão de se criar vida,
desafiando a morte simbolizada na capacidade de ressuscitar,
como ocorre também no mito de Esculápio. A mensagem
dessa lenda é clara: mexer com assuntos "divinos" é arriscar
a própria cabeça. Como demonstra Marv Shelley em seu
livro, um ser que não possua a "centelha divina", como o
humanóide criado por Frankenstein, está fadado ao
descontrole e à destruição.
E ainda temos a imagem, um tanto repulsiva, do dissecador
de cadáveres, aquele que, na imaginação popular, invade o
cemitério e mexe com os mortos em busca de material para
suas experiências. Isso simboliza, igualmente, a falta de
respeito pelo corpo, pela integridade dos seres, sejam vivos
ou mortos. Há, por trás da história de Frankenstein, uma
severa crítica às experiências feitas com partes de seres. A
percepção geral é a de que há uma ordem natural das coisas
que não deve nem pode ser quebrada impunemente, sob a
alegação de que a ciência não conhece limites. Quando o
cientista liberta forças desconhecidas da natureza, deve estar
consciente do grande risco a que está submetendo a si
mesmo e a seus semelhantes.
O médico que incorpora, de forma excessiva, o "cientista
maluco", distancia-se de seu paciente: nas consultas,
costuma usar termos técnicos, acreditando que o
interlocutor não tem capacidade para compreender as
sutilezas da medicina. Não gosta de dar esclarecimentos
detalhados sobre a doença e seu tratamento, e é, geralmente,
um apreciador das técnicas mais modernas e das
aparelhagens de alta tecnologia. Mas, com tudo isso, o
doente sente-se ameaçado, inseguro quanto à real gravidade
de sua doença. Como confiar num médico dado a
experiências sem qualquer preocupação em explicá-las?
Vendo seu paciente se afastar para outros consultórios, o
médico passa a sofrer da "Síndrome do Gênio
Incompreendido".

Síndrome do Gênio Incompreendido

Esta caracteriza uma situação na qual o médico subestima o
paciente, acreditando que ele não tem condição intelectual
para entender sua própria doença. Não quer ser questionado
em sua conduta, nem dividir as decisões. Portanto, não dá
satisfações do que está fazendo afinal, é "o grande cientista",
e leigos estão a muitos metros abaixo de seu pedestal,
embora sirvam para suas experiências e aplicações de
tratamentos recém-descritos.
A socióloga Paula Kramer me fez um relato interessante
sobre sua experiência com um "gênio incompreendido". Ela
conta que sua mãe sempre foi muito ativa e disposta, e que
foi um grande susto quando recebeu um telefonema da irmã
dizendo que ela estava no hospital. "Chegando lá, eu a vi em
uma cadeira de rodas, sendo levada para exames. Logo
chegou o Dr. C., neurologista indicado por um médico da
família, que nos informou que ela havia sofrido um acidente
vascular cerebral (AVC), mas que se recuperaria. Quis saber
exatamente o que era AVC e que áreas do cérebro haviam
sido afetadas, preocupada que ela não pudesse mais usar as
mãos para pintar, o que seria uma grande tragédia. A
resposta foi que confiasse nele porque tudo era muito
complicado para que eu entendesse. Fiquei possessa e disse
que não era burra e bastava que me falasse em português que
seria perfeitamente compreendido. E claro que, com a
arrogância característica de alguns médicos, explicou em
'medicines' mesmo, interrompido pelas minhas perguntas,
sempre sem respostas. As explicações só complicaram
minha compreensão. O médico queria nosso apoio para
colocar minha mãe naquela máquina horrível para fazer uma
ressonância magnética. Por sorte, um residente do hospital
me forneceu as informações que eu precisava", lembra.
Entender que tipo de "curto-circuito" cerebral ocorrera com
sua mãe a acalmou, assim como a toda a família, e eles
aceitaram, finalmente, a necessidade dos exames indicados.
Nesse caso, o "gênio incompreendido" gerou total
insegurança entre familiares de uma paciente. Em vez de
tranqüilizá-los, a tecnologia de uma ressonância magnética
inspirou pânico, até que, finalmente, surgiu um profissional
paciente que explicou o que estava acontecendo. Isso deu
tranqüilidade a todos, facilitando a aceitação do exame e
melhorando as condições psíquicas da paciente. Paula
identificou claramente o problema, ressaltando que o
neurologista insistia em empregar uma linguagem
incompreensível — o dialeto que só médicos
compreendem. O profissional em questão tinha excelente
formação técnica, e ótima reputação, portanto não estava
inseguro, e essa não era a causa de sua postura arredia,
quando assediado. O fato é que ele é o típico profissional
que acredita que a ciência médica é um bem de uso
exclusivo dos médicos, e que quanto mais os pacientes são
informados, mais problemas provocam. Ao ser pressionado
por pessoas descontentes com sua atitude, o gênio se irrita
com essa ingerência em assuntos que considera privados, o
Médico e o Monstro: as Duas Faces de Esculápio
Esse arquétipo já é, instintivamente, identificado pela
sociedade, que o adotou como expressão idiomática. Em
termos de arquétipo, é uma variante do "cientista maluco".
Quando o médico acerta o diagnóstico, ou o tratamento,
numa situação dramática, é o doutor milagroso que todos
veneram. Quando falha, é o monstro, um incompetente que
não "descobriu a doença", ou que aplicou um tratamento
equivocado, ou muito agressivo, e não se comoveu com a
dor do paciente. Traduzindo, toda vez que o "cientista
maluco" faz alguma coisa que dá muito certo, é um herói; do
contrário, é execrado como culpado por tudo de ruim que
tenha acontecido ao doente. Sabendo da duplicidade de
julgamento que a sociedade faz de seu trabalho, o médico
procura se resguardar, ao máximo, para evitar condenações.
Mas tem um outro lado: sabe também que tem que fazer o
papel do carrasco, ou do chato, ou assumir uma atitude
desagradável com o paciente, em função da exigência
terapêutica.
Farte do trabalho do médico e altamente desagradável. Ele
pode ser obrigado a prescrever um procedimento doloroso
ou a comunicar um diagnóstico terrível, como câncer, por
exemplo. Em outras situações, as drogas indicadas podem
causar severos efeitos colaterais ou o tratamento implicar
imobilização prolongada. E ainda existe a possibilidade de
que tudo culmine numa internação em UTI o que não
desejo ao meu pior inimigo. Enfim, a prática da medicina
envolve não só curar ou aliviar o sofrimento, como, muitas
vezes, induzir o paciente a sofrimentos que poderão
mostrar-se desnecessários, com a evolução negativa dos
fatos.
Esse arquétipo forma-se a partir de percepções arcaicas da
sociedade, formadas através dos tempos. Nos primórdios da
medicina, a aplicação dos tratamentos geralmente era
sinônimo de suplício: sangrias; administração de catárticos,
cauterização, com ferro em brasa, de feridas infectadas;
amputações a sangue frio etc. Então, no momento em que
os pacientes eram submetidos a isso, os médicos
transformavam-se em torturadores, seres disformes, sádicos
desalmados, verdadeiros monstros sem qualquer compaixão
com o sofrimento alheio. Foram centenas e até milhares de
anos de sofrimentos impostos por uma medicina
rudimentar, cuja capacidade de levar ao sofrimento, em
certos casos, ainda persiste.
Outra percepção arcaica é a que se forma no inconsciente
das crianças, nos primeiros anos de vida, quando são
submetidas a tratamentos ou a internações hospitalares. Para
elas, estas são experiências traumatizantes e por isso
introjetam uma imagem negativa dos médicos. São crianças
que entram em pânico e abrem o berreiro quando se
aproxima alguém vestido de branco. Ou que, quando
adultos, não gostam de médicos, enxergando neles criaturas
ameaçadoras.
No romance de suspense O Médico e o Monstro ou The
Strange Case Dr. Jekyl and Mr. Hide, escrito por Robert
Louis Stevenson, a dualidade "médico-monstro" está muito
bem representada.
A história se passa em Londres, no final da Era Vitoriana,
quando as bases da sociedade industrial estavam se
configurando. Nesse contexto, Henri Jekyl era um médico
competente, bem-sucedido, considerado pessoa de caráter
bom e exemplar. Em sua clínica, herdada do pai, atendia os
ricos. Contudo, demonstrava sua bondade e espírito
solidário guardando parte do seu tempo de prática para os
desafortunados, Jekyl era um apaixonado pela ciência e
desenvolvia experiências para interromper o processo de
envelhecimento humano. Já percebendo, em si mesmo, o
surgimento de sinais degenerativos da idade, misturava
substâncias químicas na tentativa de encontrar uma fórmula
que revertesse as conseqüências lamentáveis do passar dos
anos.
Finalmente, obtém uma solução impressionante, de
efervescência contínua, e cores mutantes, e num impulso
incontrolável bebe-a de um gole, sem antes submetê-la aos
rituais de experimentação. É envolvido por uma onda de
dores e espasmos e, quando volta à consciência, não se
reconhece mais. Seu corpo, sua fisionomia e até seu
temperamento haviam se transformado. Essa nova pessoa
encontra até um nome novo Edward Hide e é o inverso de
Jekyl: mais jovem, tem uma face deformada por uma
expressão bestial que provoca calafrios em todos os que se
aventuram a olhá-lo nos olhos. Seus sentimentos são baixos,
mesquinhos e destrutivos. No decorrer do romance, Hide
demonstra toda sua maldade, sadismo e ausência de
princípios, quando mata pessoas a sangue frio ou falsifica um
testamento de Jekyl em seu próprio benefício, como que
pretendendo eliminá-lo. A personalidade de Hide vai se
fortalecendo e dominando a de Jekyl, até o momento em
que a transformação acontece sem a necessidade de ingerir a
bebida. No final, o médico se suicida, horrorizado com o
monstro no qual havia se transformado.
A análise do material de Stevenson é muito interessante,
considerando-se sua trajetória de vida. Tísico desde os vinte
e poucos anos, o autor sempre lutou com a doença, passando
por inúmeras internações, tratando-se com diferentes
médicos. E bem possível que tenha vivenciado
transformações de médicos em monstros e vice-versa, no
decorrer de sua longa história clínica. Ele capta muito bem
essa capacidade de mutação de seres bons e preocupados
com o bem-estar das pessoas em torturadores sem qualquer
resquício de humanidade e comiseração com quem cai em
suas garras. Seu romance vem igualmente repleto de outros
símbolos vinculados ao arquétipo do médico: o principal é o
do "cientista maluco" aquele que perde o controle sobre seu
próprio experimento e, em geral, torna-se sua primeira
vítima. O Dr. Jekyl cria uma solução com grandes poderes,
mas não sabe como conduzir seu experimento, e acaba
produzindo dor e sofrimento a si próprio e a outras pessoas
inocentes. Autores que analisaram a obra mostram que esse
aspecto reflete a insegurança gerada por certos avanços
científicos incorporados pelo capitalismo industrial da
época.
Outro aspecto abordado no livro é a quixotesca luta contra a
morte travada pela medicina. Na percepção instintiva da
sociedade, desafiá-la pode ter conseqüências desastrosas.
Quando Jekyl produziu um composto que revertia a
tendência ao envelhecimento, aconteceram coisas nefastas,
como a explosão de sentimentos negativos e destrutivos. A
mensagem é clara: mudar o fluxo natural da vida, de forma
tão profunda, como reverter o envelhecimento, resulta em
castigo. O preço a pagar é sempre muito alto. Todo médico
traz consigo essa potencialidade, de ser o curador e o
monstro, mas alguns deles, por sua personalidade, caráter e
formação, deixam prevalecer o segundo aspecto, em
detrimento dos seus valores positivos.

Síndrome do Médico Monstruoso

Esse médico se acostuma ao sofrimento dos pacientes e ao
clima impessoal e depressivo dos hospitais e, dessa forma,
vai se abrutalhando. Torna-se também frio, distante e
tecnicista, adorando condutas agressivas cm doentes frágeis,
sensíveis e carentes de atenção. Ao invés de ser seu aliado,
transforma-se no seu mais cruel inimigo. Costuma valorizar,
apenas, procedimentos ou tratamentos invasivos. Diante
dessas indicações, o paciente se vê forçado a acatá-las muitas
vezes sofrendo as conseqüências por toda a vida. Estas serão
pessoas que entrarão em pânico cada vez que se depararem
com um médico.
Maria Lúcia Botelho, professora aposentada, chegou ao meu
consultório para sua consulta inicial e a primeira frase foi:
"Não gosto de ir a médicos." E continuou: "Só estou aqui
porque meu braço dói muito, não tenho mais posição para
dormir e meu filho me garantiu que o senhor é diferente,
que usa métodos naturais." Quis entender o porque da
aversão a médicos e consegui que desabafasse. Há cerca de
15 anos, durante um exame de rotina, em seu ginecologista,
foi identificado um nódulo no seio e ela foi convencida a
retirá-lo, numa cirurgia simples, para que uma biópsia
pudesse ser feita. Medrosa, resistente, e difícil de lidar, não
foi esclarecida sobre as suspeitas diagnosticas e todas as
possíveis conseqüências do resultado da biópsia. Na cirurgia,
como de praxe, nesses casos, um pedacinho do nódulo foi
congelado e analisado no microscópio: era um tumor
maligno com grande capacidade de invadir os tecidos. O
cirurgião decidiu, imediatamente, retirar sua mama, e
quando Maria Lúcia acordou da anestesia, viu-se nesse
estado. Podemos imaginar o choque. Profundamente
deprimida, iniciou um tratamento complementar com
quimioterapia. Seu estado psíquico piorou e ela foi mantida
no hospital. Ao final de três semanas, sentindo-se melhor,
quis voltar para casa. Como seus apelos não fossem ouvidos,
tentou fugir do hospital. Na terceira tentativa, a família
concordou com a alta. Desde então, tomou aversão a
médicos e me disse que só de ver um sujeito vestido de
branco ou um hospital passava mal e sentia o coração aos
pulos. Não os procura sob hipótese alguma, apesar de seus
problemas de saúde. Durante seu relato, chorou várias vezes,
e falou de sua angústia, especialmente nos últimos anos,
quando passou a sofrer mais pressões para que procurasse
um médico o que era impedido por sua fobia.
Vamos analisar esse caso: um médico teve uma conduta
perfeita, do ponto de vista técnico: suspeitou que um nódulo
mamário fosse maligno, providenciou uma biópsia, e como a
análise da lâmina mostrou que o tumor tinha grande
capacidade de se disseminar, retirou-o logo, e fez uma
quimioterapia preventiva no pós-operatório. O problema é
que não percebeu como sua paciente era frágil, do ponto de
vista psíquico, cheia de medos e bloqueios. Apesar de
curada, ela ficou tão traumatizada que desenvolveu uma
fobia de médicos que a impediu até de fazer uma cirurgia
plástica para refazer a mama retirada. Para ela, eles eram
seres terríveis que mutilavam pessoas, e passou a sentir-se
condenada a viver para sempre com sua mutilação.
Há profissionais bastante identificados com esses aspectos.
Com certeza, o exemplo mais terrível é o do Dr. Joseph
Menghele, alemão que realizou experimentos cruéis com
pessoas, especialmente judeus, durante o nazismo. A versão
brasileira está nos profissionais que participaram de sessões
de tortura no período repressivo do regime militar, como
conta Fernando Gabeira em seu livro O que é Isso,
Companheiro? Infelizmente, alguns profissionais
apresentam esse traço de perversidade, e durante o curso de
medicina não é possível se identificar os alunos que
carregam esses traços de sua personalidade para impedi-los,
de alguma forma, de exercer a profissão.
Outra experiência traumática foi a do advogado Edmar
Lustosa, que foi a uma clínica fazer um check-up. "Fui fazer
um exame completo, para minha idade. No início,
realizaram os mais comuns: prova de esforço, endoscopia
etc. Mas num determinado momento, levaram-me a uma
sala e pediram que eu me despisse. Um médico, de forma
lacônica, ordenou que eu me inclinasse sobre a maca,
mantendo os pés no chão. Em seguida, sem demonstrar
qualquer constrangimento, foi besuntando minha nádega
com uma pomada. Senti-me muito mal: vi-me como um
personagem de piada grosseira de bar. Ele, então, empunhou
um aparelho e me alertou, com três ou quatro palavras, que
iria introduzi-lo no meu ânus. Ensaiei um protesto, dizendo
que esse exame não estava programado. Com ironia, o
médico perguntou-me se eu não pedira um exame
completo. E zombou: "Ou será que o senhor está com
medo"? Estava profundamente constrangido e não encontrei
palavras para sustentar meu protesto. O médico rodava o
aparelho em várias direções, injetando ar, gerando dor e
desconforto, e me dava ordens, em voz alta, para que
pressionasse minha nádega para trás. Foram minutos que
pareceram horas. Enquanto sofria, imaginava-o como um
ogro, um ser mitológico, que se nutria do prazer de deflorar
sua vítimas. Ao fim do exame, eu estava de tal forma
envergonhado que nem sequer pude olhá-lo. Levei algumas
semanas para buscar os resultados, que estavam rodos
normais. Senti um ódio incontrolável, afinal, todo aquele
sofrimento em vão! Pensei em processar a clínica, mas
desisti: imagine contar essa história na frente do juiz. Agora
compreendo porque mulheres estupradas não gostam de
denunciar seus agressores.
Pelo relato de Edmar, pode-se pensar que o médico agiu de
má-fé não teve nenhum cuidado em preparar
psicologicamente o paciente, não se mostrou sensível à sua
angústia e ainda pareceu debochar da situação. Por outro
lado, é também possível que não tenha, necessariamente,
uma índole ruim, e seu comportamento resultou da falta de
sensibilidade e da inabilidade em lidar com pacientes. O cara
simplesmente errou de profissão! Um profissional com boa
formação deveria saber que qualquer pessoa, numa situação
de estresse e de constrangimento, fica muito suscetível. Se o
médico não está sintonizado, se não age com cuidado em
momentos delicados, transforma-se, aos olhos do paciente,
num monstro.

O Sacerdote

A relação entre medicina e religião foi a tônica nos sistemas
médicos primitivos, em diversas culturas e povos. Na
concepção européia, tornaram-se independentes. Havia uma
afinidade entre o milagroso, o sagrado e o ato de curar, mas a
religião, segundo os dogmas da Igreja, estava separada das
áreas técnicas de conhecimento. Para ela, o poder dos
homens dependia, em última instância, dos desígnios de
Deus. Mas a proximidade conceitual entre a medicina e a
religião, sem uma delimitação clara onde terminava uma e
começava a outra, gerou áreas de conflito e disputas de
poder no modelo cultural ocidental, especialmente durante a
Idade Média e o início do Renascimento. Quando as curas
eram provenientes de milagres ou produzidas por uma
intervenção do médico? Que critérios usar para a distinção
entre bruxaria e a verdadeira medicina? Foram muitas as
perguntas cujas respostas nem sempre foram claras e
coerentes. Médicos foram perseguidos e acusados de
bruxaria. Muitos segmentos do clero consideravam o poder
de cura uma atribuição divina, e viam os médicos como
potenciais usurpadores desse poder. Por isso, em
determinada época, estes introjetaram valores religiosos à
sua prática, creditando a Deus o mérito das curas. Tornaram-
se meros assistentes dos doentes, limitando sua ação a
medidas pouco intervencionistas, apenas tentando aliviar o
sofrimento e proporcionar conforto.
Esse tipo de profissional ainda existe. Outro aspecto que o
identifica é sua dedicação ao paciente. É condição essencial,
no seu trabalho, o amor ao próximo e um desprendimento
semelhante ao exigido do sacerdote. Esse, que escolhe a
medicina e casa-se com ela, pode ser comparado ao padre,
que oferece seu voto de castidade à Igreja. Esse aspecto
relaciona-se com a questão humana da medicina. Assim
como o sacerdócio subentende o amor ao outro, a medicina,
ao menos em sua forma clássica, ensina que a saúde do
paciente é uma questão de humanidade, estando acima de
remuneração ou das necessidades pessoais.
Todos os papéis desempenhados pelos médicos, ao longo
dos anos de feiticeiro, cm sistemas primitivos de saúde;
assistente, na agonia e na morte; conselheiro, diante do
sofrimento e das perdas; agente divino, ou de dedicação e
amor à espécie humana -, criaram afinidades de postura e
atuação com as dos que abdicaram de todos os confortos
materiais para servir ao próximo. Nesses laços, encontra-se a
origem de frases como: "A medicina é um sacerdócio."
No mito de Esculápio, a capacidade de cura deriva do poder
divino, e é oferecida aos mortais como uma dádiva. Ele era
um semideus, filho de Apoio com uma mortal, e seu
trabalho, como médico, foi realizado em templos e em meio
a rituais religiosos. Ainda de acordo com a mitologia, ele
ensinou medicina a Hipócrates. Assim, podemos concluir
que, no simbolismo, os médicos possuem uma afinidade
com essa figura mítica, na relação com o divino. Hipócrates
criou um juramento que os médicos prestam por ocasião da
formatura, e que é um dos fortes elos com o perfil do
sacerdote.
Um outro exemplo desse arquétipo, hoje, e a organização
Médicos sem Fronteiras, merecida mente agraciada com o
Prêmio Nobel, em 1999, por mostrar desprendimento e
vontade de ajudar o próximo, atuando em países em guerra,
lugares pobres, e melhorando a qualidade da saúde local,
contando com doações e trabalho voluntário. Tenho
orgulho desses colegas, que só enobrecem nossa profissão, e
também contribuo com a organização, há alguns anos,
acreditando que os que possuem senso de civilidade também
deveriam fazê-lo.
Exemplos como esse, que mostram os aspectos positivos
desse arquétipo, estão ficando raros. O tecnicismo na
medicina contribuiu para afastá-la cada vez mais do
simbolismo mágico e religioso da ação de curar. Médicos
tornaram-se pessoas céticas, frias e distantes. Por outro lado,
as relações comerciais na medicina fizeram de alguns deles
trabalhadores explorados, mais preocupados em sustentar
seu padrão de vida do que em se ocupar com questões
sociais. Desapareceu de cena a figura do profissional que
cobra dos ricos, mas atende aos pobres de graça. Os aspectos
negativos, entretanto, estão se tornando cada vez mais
comuns: são os valores mal elaborados, associados ao poder
sobre a saúde, a vida e a morte, questões que estão se
tornando cada vez mais importantes cm detrimento do
sentimento de humanidade que deve permear a prática
médica. A relação da medicina com a divindade, sob o
escopo do poder, é a distorção básica que leva à síndrome do
semideus.

Síndrome do Semideus

Relaciona-se também com os aspectos simbólicos ligados ao
poder divino da cura. Só que este não se identifica, em nada,
com o sacerdote. Muito pelo contrário: enquanto para este o
objetivo principal é fazer o bem ao próximo, o semideus usa
o poder de cura em benefício próprio, o que em geral
significa, no mínimo, falta de respeito para com o paciente.
Para o onipotente, não há limites, O médico que incorpora
esse papel arrisca tudo, inclusive a carreira, pelo poder e a
projeção de seu nome. Em alguns casos, pode pagar um alto
preço por sua ambição, especialmente quando cruza os
limites da ética e do bom senso. Seu grande defeito é,
obviamente, o orgulho e a vaidade: gosta de títulos e
posições na hierarquia médica, é estudioso e técnico, mas
não admite ser questionado e não tolera competidores à
altura.
Médicos interferem com processos naturais, evitando ou
adiando a morte e costumam ser admirados por isso. E tão
comum se escutar: "Dr. fulano é um grande médico, pois
salvou a vida da minha mãe." Mas se esse mesmo
profissional, incensado e admirado, perde a noção de limites,
o salvamento de vidas passa a significar pacientes mantidos
vivos de forma artificial, através de aparelhos, numa UTI, ou
em tratamentos caros e dolorosos aplicados
desnecessariamente a anciãos e doentes terminais.
Esta síndrome é comum entre médicos americanos, segundo
os críticos, devido ao excesso de autoconfiança que eles
desenvolvem. Nos Estados Unidos, um indivíduo que estuda
medicina numa boa universidade é considerado superior, em
capacidade intelectual, a outros profissionais de qualquer
outra área. Se ele não tem auto-crítica, pode desenvolver o
narcisismo a ponto de sentir-se um semideus. O problema
foi abordado em Médico ou Semideus, do escritor e médico
americano Robin Cook, que sempre aborda, em seus
romances, temas relacionados ao seu métier. Nesse livro, ele
conta a história de um cirurgião que perdeu completamente
a noção de limites. Tecnicamente superior aos colegas,
trabalhava, supostamente, em Boston, considerada o gueto
dos médicos mais badalados dos EUA. Além da capacidade
intelectual, tinha muita habilidade manual, mas
emocionalmente era infantil, o que o levou a um
comportamento inteiramente distorcido e doente.
Trabalhava de forma febril e obsessiva, no hospital, e
estudava compulsivamente. Em dado momento, passou a
matar pacientes operados por seu chefe e por outros
médicos da equipe,
No seu raciocínio, o chefe era um cirurgião medíocre e
precisava se aposentar, e ele precisava provar que era o mais
indicado para substituí-lo, pois obtinha melhores resultados
do que os colegas. Assim, foi assassinando pacientes e
piorando as estatísticas de mortalidade de seus concorrentes.
Mas não matava qualquer um: escolhia os que, na sua
avaliação, não mereciam viver ou se beneficiar da melhor e
mais cara medicina do mundo. Cook criou um personagem
que discriminava pacientes com retardo mental, com baixo
nível social ou portadores de condições terminais ou
crônicas, com diabetes e cirrose. Ou seja, o semideus, dono
da vida e da morte, concentrava em suas mãos o poder de
decidir quem merecia ser salvo.
O terrível personagem acaba sendo descoberto pela própria
esposa, também médica, que, por pouco, não se transforma
em mais uma vítima de sua loucura. Descontrolado, ele sai
dirigindo em alta velocidade, bate o carro e morre, para
alívio de todos. É obvio que a história é exagerada. Médicos
que matam pacientes, movidos por delírios, felizmente são
raridade. Mas o comportamento do semideus não é assim tão
raro. É possível encontrá-lo naquele que começa a adotar
condutas equivocadas, desconsiderando a realidade do
paciente. No caso a seguir, vemos como a onipotência
impediu um deles de reconhecer seu erro e de reavaliar sua
posição.
Juca veio ao meu consultório com a mãe, Cláudia Carvalho,
já minha paciente, com dor no joelho, surgida após um jogo
de futebol. Tinham consultado um ortopedista, Dr. M.,
considerado um dos melhores da Barra da Tijuca, bairro de
classe média alta do Rio de Janeiro. Dr. M. considerou que o
caso não era nada grave, receitando apenas um anti-
inflamatório. Como o menino não melhorasse, a mãe o
trouxe para uma sessão de acupuntura. No exame físico,
constatei que tinha o chamado "sinal da gaveta", que mostra
lesão do ligamento cruzado, viral para a estabilidade do
joelho, e que só pode ser corrigido através de cirurgia.
Solicitei uma ressonância magnética, que confirmou a
ruptura do ligamento cruzado anterior, e de lesão do
menisco interno. Sugeri que voltassem ao ortopedista, já
com a indicação de cirurgia. Mas o Dr. M. com a ressonância
na mão, negou-se a reexaminar o menino, afirmando,
categórico, que o resultado do exame estava errado, que ela
fizesse exatamente o que ele havia mandado usar os anti-
inflamatórios. Diante desse fato absurdo, indiquei outro
ortopedista, que confirmou meu diagnóstico e a indicação
cirúrgica. Juca foi operado e os problemas corrigidos.
Nesse caso, felizmente, as conseqüências não foram graves,
pois a distorção foi logo identificada e corrigida. Como
Cláudia tinha confiança no meu trabalho, e o resultado da
ressonância confirmava o que eu dizia, não houve espaço
para uma opinião delirante e onipotente. Mas se o paciente
seguisse com a terapêutica equivocada, poderia ter seqüelas
definitivas e limitantes.

Síndrome do Medalhão

Medalhão é um termo pejorativo usado, no Brasil, para
designar médicos famosos e, muitas vezes, arrogantes. É
uma variante tupiniquim do 'semideus", porém ainda mais
vaidoso. Segundo o dicionário, "medalhão é uma pessoa que,
sendo medíocre e de poucos dotes intelectuais, desfruta de
posição social elevada ou respeito em função de suas posses
financeiras". O uso dessa definição, para o médico, revela
não uma deficiência intelectual, mas sim a falta de
humanismo para com o paciente. O "medalhão", narcisista
ao extremo, geralmente peca, justamente, por considerar o
doente muito menos importante que ele. É um sujeito
eternamente preocupado com seu ego e sua imagem. Acha
que está acima de tudo, acredita que seu nome é tão
considerado que tudo o que disser ou fizer será reconhecido.
Por isso, não tem tempo nem paciência para explicar
detalhadamente ao paciente qual a terapêutica a ser adotada.
Se disser que será dessa ou daquela forma, assim será feito e
amém. O paciente, coitado, geralmente não tem chance de
discordar. A relação entre ambos fica, assim, bastante
comprometida.
Esse grande doutor também se sente como o dono da vida e
da morte dos pacientes, e gosta de usar seus conhecimentos
para adivinhar quando esse ou aquele vai se curar ou morrer.
Também aprecia ver seu nome como principal autor em
algum trabalho científico, muitas vezes desenvolvido por
estudantes de medicina ou residentes. E vibra quando é
chamado para falar em congressos e se apresentar para
grandes platéias de médicos. São momentos que afagam seu
ego. Há quem goste dele pacientes que se sentem
importantes quando atendidos pelo médico da moda,
impressionados com sua enorme autoconfiança. O problema
começa quando surgem intercorrências com o tratamento e
eles o questionam, coisa que, evidentemente, não admite:
fica uma fera e reduz o pobre interlocutor à sua
insignificância. Há pacientes que não aceitam esse tipo de
conduta e enfrentam o poderoso de frente. Foi o que fez o
médico Aldo Luís Garcia, numa consulta com um medalhão
da cardiologia.
Aldo resolveu procurá-lo, pois sua pressão arterial estava
elevada. O atendimento inicial foi leito por um assistente,
assim como a coleta de dados. Finalmente, o Dr. S. entrou e
deu uma passada de olhos nos dados, prescrevendo um
medicamento. O paciente questionou o colega, por imaginar
que seria feita alguma investigação antes da prescrição,
estranhando também não haver uma orientação sobre a
dieta. Sem saber que Aldo era médico, pois não tinha lido
com atenção sua ficha, o cardiologista lhe disse que não
cabia ao paciente discutir questões técnicas, e que sabia
exatamente o que estava fazendo. Continuou a escrever a
receita e deu rápidas instruções sobre o uso da medicação.
Quando terminou de falar, Aldo voltou à carga, dizendo que
não concordava cm tomar uma medicação sem saber
exatamente por quê. O Dr. S. se irritou e disse que era muito
ocupado, tinha muitos pacientes para atender e que não
podia mais perder tempo com explicações. Se quisesse seguir
sua orientação, muito bem, caso contrário, o melhor seria
buscar outro médico. Aldo então se identificou, e disse que
achava a atitude do colega muito agressiva, e que, como
cliente, tinha direito às informações que desejava. O Dr. S.
tentou se desculpar, alegando que se soubesse que ele
também era médico teria lhe dado mais atenção. Mas o
estrago já estava feito.

O Feiticeiro

É um arquétipo variante do sacerdote, que assume o modelo
mais ocidental, influenciado pela Igreja, no qual a medicina
fica com a ciência e a Igreja com os aspectos mágicos da
cura. No feiticeiro, os dois aspectos se fundem, resultante da
identificação com os sistemas médicos primitivos, nos quais
o curandeiro também era o líder espiritual. Acredito que
essa imagem se origine de um processo do inconsciente
coletivo dos médicos, como também da percepção, por
alguns, de que é importante refundir a magia e a medicina
para melhorar e humanizar sua prática. O arquétipo reúne
muitas de suas qualidades, que considero perdidas com a
revolução tecnológica. O "feiticeiro" e aquele médico que
acredita ser o tratamento espiritual tão ou mais importante
que o dos males físicos do doente. Por trás do movimento
de busca, pelas medicinas alternativas, esse personagem
pode ser visto com certa freqüência. Aquele que o incorpora
começa a mudar sua prática, tornando-se mais místico,
menos técnico e materialista.
No livro Manifesto da Nova Medicina, o psiquiatra
americano James Gordon conta sua trajetória em direção às
terapias alternativas. Tudo começou com uma dor na coluna
lombar, que não era eliminada com os métodos tradicionais.
Acabou curado por um médico indiano, que praticava
medicina chinesa. Impressionado, começou a se interessar
pelo assunto e encontrou nos ensinamentos de Hipócrates
uma bússola para redesenhar sua trajetória profissional.
Incorporou técnicas de meditação e alimentação energética,
e reformulou seus hábitos de vida. Isso gerou modificações
na abordagem clínica dos seus pacientes, e novas técnicas
foram incorporadas à sua prática. Concluiu que sua evolução
atingiu a maturidade quando percebeu que os aspectos
espirituais do paciente deviam ser o principal foco do
médico. A descoberta da medicina alternativa acabou por
levá-lo a personificar o arquétipo do feiticeiro.
Esta foi a força inconsciente que moveu médicos quando
eles deram importantes passos na direção de novos métodos
a serem agregados ao conhecimento instituído. Vimos que a
ciência médica se apropriou de procedimentos populares,
reivindicando posteriormente sua descoberta, como no caso
da vacinação contra a varíola. O feiticeiro é também um
rebelde. Enfrenta o mundo "oficial", e essa força levou
muitos médicos a desenvolverem pesquisas, mesmo durante
o auge das perseguições da Igreja. Originaram-se também
desse arquétipo outros movimentos de questionamento do
saber instituído, como a psicanálise, criada por Sigmund
Freud, e a homeopatia, de Samuel Hanneman. Hoje, o
feiticeiro é a força motriz que determina um
questionamento dos valores da medicina, através dessa
guinada para as terapias alternativas, observada em países
ocidentais. Há quem tenha optado radicalmente por essas
áreas de atuação, caracterizando a síndrome do médico
alternativo.

Síndrome do Médico Alternativo

Esse tipo de medicina está desempenhando um papel
importante, incorporando conceitos e contribuindo para
alavancar a qualidade da prática médica. Mas a opção
obsessiva pelas terapêuticas não-oficiais pode se constituir
num grande erro. No capítulo anterior, vimos que, na
estruturação da ciência médica, duas correntes de
pensamento se opuseram: o vitalismo e o reducionismo. Do
meu ponto de vista, a medicina convencional está
contaminada pelo segundo, e não consegue enxergar
questões globais, nem a individualidade do paciente. Da
mesma forma, uma guinada exagerada para o vitalismo é
uma distorção que também pode piorar a qualidade da
medicina e, de certa forma, dificultar seu desenvolvimento.
O médico alternativo, aqui tratado pejorativamente, é aquele
que envereda de corpo e alma nesse universo de tantos
caminhos, negando muito do que estudou na faculdade. A
medicina convencional tem falhas graves, mas um valor
inquestionável, e a alternativa oferece novos valores elas
podem, portanto, se complementar. Quando é necessário
lidar com questões objetivas, a convencional tem armas
eficientes; nos "ajustes finos", na individualização do
tratamento, ou no trato de questões de caráter subjetivo, a
alternativa possui as soluções mais adequadas. O ideal é ter
bom senso para saber usar ambas.
O problema do "alternativo" é que ele se isola em sua
prática, esquecendo-se, inclusive, da necessidade de
comprovar os métodos empregados. A Organização Mundial
da Saúde criou a expressão medicinas tradicionais para
caracterizar aquelas que, ainda que não tenham suficiente
comprovação científica, estão suportadas por um
conhecimento acumulado ao longo dos anos o
conhecimento tradicional. Este passou a ser respeitado
porque, investigadas à luz da ciência, essas vertentes
mostraram-se eficientes. Isso visa distingui-las de um grupo
de novas práticas surgidas não se sabe de onde, sem nenhum
fundamento científico e cultural. O "alternativo" incorpora
técnicas sem suficiente critério e as pratica de forma
indiscriminada, por questões filosóficas ou outras quaisquer.
Alguns homeopatas tem esse perfil, devido à herança de
correntes ligadas ao Dr. James Tyler Kent, eminente
especialista que viveu nos Estados Unidos no século passado.
Nessa época, havia uma verdadeira guerra entre o
pensamento reducionista, representado pela medicina
convencional, e as linhas de tratamento vitalistas,
representadas pela homeopatia. Existem registros de filhos
de homeopatas que morreram de apendicite porque seus
pais se recusavam a tratá-los com métodos alopáticos,
incluindo a cirurgia. Isso se justifica, em parte, por ser muito
alta a mortalidade cirúrgica, nessa época. Contudo, mesmo
assim, esse recurso representaria a única chance de
sobrevivência dessas crianças e ela lhes foi negada. A guerra
terminou com a proibição da prática da homeopatia em solo
americano e a saída dos homeopatas para a Inglaterra, onde
puderam dar continuidade ao seu trabalho. Hoje, já aceita, a
especialidade pode ser praticada nos EUA, e a Europa detém
a reputação de seu grande pólo difusor.
Muitos dos que se incorporaram à luta de Kent ainda não
aceitam os medicamentos químicos, sob hipótese alguma.
Existem os que repudiam qualquer tratamento, mesmo a
acupuntura, acreditando que tudo interfere com a energia
vital do organismo, dificultando o trabalho de drenagem e
equilíbrio proporcionado pelo medicamento homeopático.
Há situações em que o paciente não reage bem ao re médio
homeopático e o médico insiste no tratamento, sem
considerar questões objetivas, provocando, muitas vezes, o
agravamento da doença, com risco para o doente.
O físico José Farias procurou um homeopata devido a uma
dor na perna. O Dr. C. conversou longamente com ele,
repertorizou1 seus sintomas, prescreveu um medicamento,
mas não o examinou. Ao final de uma semana, a dor piorara.
José voltou ao consultório alegando o aparecimento de um
edema. O médico garantiu que este era um fenômeno
chamado "agravação" comum nos tratamentos homeopáticos
e aumentou a potência do remédio, sem examiná-lo. A dor e
o edema pioraram, mas o médico manteve-se insensível,
reafirmando sua conduta. Com isso, Jose perdeu a confiança
nele e chegou ao meu consultório. Examinei-o e vi que
apresentava um sintoma chamado "sinal de Homans",
considerado indicativo de tromboflebite profunda. Nessa
doença, o sangue coagula nas veias da perna, inflamando-as.
O diagnóstico foi confirmado pelo "scan venoso com
Doppler". Expliquei que era um problema sério e que seria
necessário adotar um tratamento objetivo, devido ao risco
de embolia pulmonar. A complicação pode acontecer se o
coágulo se desprender da veia, passar pelo coração e entupir
um ramo da artéria pulmonar — o que aumenta a pressão na
artéria e dificulta a oxigenação do sangue, podendo ocorrer
também uma parada cardíaca. Depois das explicações,
receitei um medicamento anticoagulante, e recomendei
repouso absoluto. Sua veia desentupiu e ele melhorou.
O bom senso mostra que esse médico alternativo, que
assumiu uma postura excessivamente rígida, estava tão
equivocado quanto o alopata que nega a homeopatia ou a
acupuntura. Cada situação clínica necessita ser
compreendida em sua complexidade, para que se possa
decidir pela melhor opção terapêutica. Se, na maioria dos
casos, é preciso ser subjetivo e não menosprezar sintomas,
em vez de alegar que são criados pela imaginação, há
situações nas quais um problema objetivo necessita de uma
intervenção imediata. No caso de José, se o diagnóstico de
tromboflebite não tivesse sido feito a tempo, ela poderia ter
causado sua mora. O médico não o examinou, nem
valorizou aspectos objetivos da questão, errou o diagnóstico
e colocou seu paciente em risco.

O Dissecador

Esse arquétipo possui algumas características diametralmente
opostas às do feiticeiro, mas ambos tem o arrojo como
qualidade comum. Ao contrário deste último, um místico, o
dissecador é um materialista ferrenho: acredita que apenas
conhecendo a anatomia em profundidade conseguirá
dominar a medicina. Por isso, usa e abusa de manobras para
driblar a repressão contra a violação de cadáveres e com isso
poder investigar melhor os detalhes do corpo humano.
Graças a ele, possuímos uma riquíssima descrição da nossa
anatomia.
Foi igualmente o arrojo do dissecador, e de sua convicção de
que a doença pode ser corrigida através de uma intervenção
física, que sofisticadas técnicas de cirurgia se
desenvolveram. Portanto, esse arquétipo é a grande força
por trás do desenvolvimento da cirurgia, razão pela qual
todo cirurgião é fortemente identificado com ele. O
dissecador possui uma natureza invasiva: agrada-lhe atuar
diretamente no interior do corpo do paciente, pois acredita
que esta é a melhor maneira de curá-lo rapidamente.
Médicos que trabalham com terapia intensiva também são
guiados por essa força arquetípica.
Percebe-se que, cada vez mais, aumenta a invasividade na
medicina. São novas cirurgias e procedimentos incorporados
ao conhecimento, à medida que a ciência evolui. Por outro
lado, há um dado interessante: à medida que estes vão se
sofisticando, ficam menos agressivos. Cirurgias que há dez
anos exigiam a abertura do abdome, hoje são feitas por via
laparoscópica, que exige apenas a abertura de um
buraquinho de dois centímetros no umbigo, e mais um ou
dois, auxiliares, dependendo do tipo de cirurgia. Isso mostra
que os procedimentos tendem a se adequar a padrões cada
vez mais humanos.
Mas não resta dúvida de que o dissecador pode desenvolver
um comportamento agressivo ao optar sempre por técnicas
invasivas ou cirurgias, retirando órgãos de forma
desnecessária, gerando, inclusive, o aumento da iatrogenia.
Essa distorção pode resultar cm comportamentos destrutivos
para a prática médica, que podem ser percebidos nas
síndromes que identifiquei.

Síndrome do Estripador

E o médico muito agressivo no manejo do bisturi e de outros
instrumentos cirúrgicos, que remove órgãos por engano,
lesa vasos ou nervos importantes, faz a imobilização de ossos
de forma errada, levando a deformações, e assim por diante.
São cirurgiões que produzem cicatrizes excessivamente
grandes ou que esquecem pinças ou gazes no interior do
paciente. O ato cirúrgico deve ser um momento de extrema
compenetração e cuidado. E a situação de maior entrega do
paciente, que está anestesiado, com seu corpo e seu destino
nas mãos do profissional. Sua intimidade física está sendo
invadida e qualquer erro pode significar perdas enormes,
inclusive da vida. Mas o estripador não se preocupa com
isso, opera de forma desleixada, brincando com o corpo do
paciente. Para ele, cortar é um divertimento. Não presta
atenção aos detalhes técnicos. É, geralmente, mal treinado,
pouco estudioso e desinteressado da medicina como arte de
curar, o que aumenta suas chances de errar. Desleixo e
incompetência, associados à agressividade com o bisturi e
com outros instrumentos cirúrgicos, convenhamos, é uma
combinação macabra.
Já vi muitos casos que poderiam exemplificar essa síndrome.
O que mais me impressionou foi o que acompanhei há
muitos anos, antes mesmo de me formar. Dividir essa
história terrível com o leitor me causa tristeza, mas ela
poderá ser usada para que, cada vez mais, a sociedade e a
corporação médica se mobilizem para evitar que tais
atrocidades continuem a acontecer.
O caso ocorreu quando eu estagiava na Unidade de
Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Cardoso Fontes, em
Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Nessa época, era comum os
hospitais do extinto Inamps receberem casos complicados
de clínicas da Baixada Fluminense, visto que suas UTIs eram
de bom padrão. Recebemos Marli, encaminhada por um
hospital da periferia. Tinha sofrido um aborto espontâneo,
há cerca de três semanas e, como continuasse a perder
muito sangue, procurara uma clínica de emergência na
Baixada. Aí foi feito o diagnóstico de restos de placenta no
útero e realizada uma curetagem. Ela voltou para casa, mas,
nos dias subseqüentes, começou a sentir muitas dores na
barriga. Voltou à clínica, mas o médico garantiu que as dores
eram normais após uma cirurgia daquela natureza. Contudo,
as dores pioraram, a barriga inchou, e Marli começou a ter
febre. Procurou outro hospital, onde lhe disseram que
precisava ser operada com urgência. Nessa cirurgia, foi
constatado que, durante a curetagem, o médico perfurara
seu útero e arrancara um pedaço do seu intestino delgado.
Ela estava com peritonite e fístula digestiva, e com esse
quadro foi transferida para o Hospital Cardoso Fontes.
Apesar do esforço da equipe da UTI, morreu vítima de
necrose da parede abdominal e infecção generalizada.
Nesse caso, é fácil evidenciar a brutalidade do médico que a
operara. Qualquer ginecologista sabe que o tecido uterino
que recebeu uma placenta é muito friável, e por isso uma
curetagem precisa ser feita com delicadeza, pois existe risco
de perfuração. Quando isso ocorre, identificamos um
médico inábil, com pouca prática. Mais ainda: extirpar um
naco de intestino delgado denota absoluto despreparo,
descaso, crueldade, caráter violento. Um crime com a
garantia de impunidade, sob a proteção de um diploma de
medicina.

Síndrome do Arrasador

Outro aspecto do arquétipo mal elaborado do dissecador é a
do médico que gosta de extirpar órgãos que considera
"desnecessários". Isso ocorre com cirurgiões que acreditam
que, quanto mais órgãos a pessoa tiver, mais chances terá de
desenvolver, neles, uma doença ou tumor. São casos onde
uma vesícula, sem cálculos, é retirada durante uma cirurgia
abdominal, ou de ovários e útero removidos durante uma
miomecromia, ou ainda de uma mastectomias total feita
quando o indicado era apenas a retirada parcial da glândula.
O argumento é sempre o mesmo: para que manter certos
órgãos, se não são vitais e poderão apresentar problemas
futuros? A verdade é que o fato de não serem essenciais à
vida não significa que não sejam importantes, do ponto de
vista prático ou simbólico. O dedo mindinho não é vital,
mas ninguém gostaria de perdê-lo ele faria falta, certamente.
Alguns médicos argumentam que útero e ovários perdem a
importância após a menopausa. Sob esse raciocínio, os
testículos também são desnecessários para o homem idoso!
Mas ficar sem eles não agrada a homem algum, assim como
mulheres submetidas à retirada do útero ficam deprimidas,
sentindo-se castradas em sua feminilidade. Portanto, órgãos
só devem ser extirpados quando estritamente necessário.
Quando uma retirada parcial é possível e indicada, esse deve
ser o procedimento. Esta síndrome é mais comum no
campo da ginecologia, como podemos observar nos relatos
que se seguem.
Lida Gonzaga Ferreira, psicóloga, procurou uma
ginecologista por causa de um aumento do seu sangramento
menstrual. Foi-lhe solicitado um ultra-som, pelo qual foram
diagnosticados mioma no útero. Quando voltou para nova
consulta, já com o ultra-som, ela ouviu da médica que o
tratamento, nesse caso, indicava a retirada do órgão. A
paciente questionou-a sobre outras soluções, argumentando
que só aceitaria o procedimento em última hipótese, ao que
a médica lhe garantiu que ele estava miomatoso e não servia
mais para nada: "Você não vai mais engravidar mesmo!
Vamos tirar tudo, é muito melhor, você fica livre do risco de
câncer!", disse. Lida saiu arrasada e foi procurar seu clinico,
de muito anos, que pediu novos exames e concluiu que a
operação não era necessária. "Foi um alívio! Só isso fez parar
o sangramento e fiquei boa. Nem precisei tomar remédios",
relembra.
A Dra. A., anestesiologista, contou-me uma história vivida
por sua secretária, Janete de Amoedo. A senhora tinha 48
anos e um pequeno mioma intramural no fundo do útero,
detectado num ultra-som, mas que não apresentava qualquer
sintoma. Mas as Dras. M. e C, colegas de consultório da Dra.
A., insistiram na retirada do útero. Isso gerou uma discussão
entre as sócias, com a Dra. A. contrária à cirurgia, já que
achava que não havia uma indicação formal para isso. Mas
Janete foi convencida pelas outras e marcou a operação. No
pós-operatório, teve uma infecção urinaria e uma descência
de satura, que a levou a um período maior de internação.
Quando saiu do hospital, foi se queixar à Dra. A., ao que esta
comentou que pacientes aceitam fazer esse tipo de cirurgia
por não terem consciência de como podem ser afetadas por
esses procedimentos.
Vimos casos onde médicos queriam arrancar algo fora do
paciente sem necessidade. Num deles, a pessoa reagiu,
percebendo, de forma instintiva, que ia ser vítima de uma
agressão desnecessária. No outro, houve concordância da
paciente, que percebeu tarde demais o alto preço pago por
isso. Os relatos mostram a angústia que as acometeu quando
se sentiram na iminência de serem violentadas. Extrair a
doença, cirurgicamente, pode ser a alternativa correta
quando há uma melhora objetiva com a eliminação do
tecido enfermo. Mas, se o problema não oferece riscos para
o paciente e esse não tem clara motivação pessoal para a
retirada do órgão, este deverá continuar onde está. Cirurgia é
sempre um procedimento invasivo, não destituído de risco,
podendo levar ao desenvolvimento de uma complicação que
pode se transformar num grande transtorno — no mínimo,
uma teia cicatriz, resultante da descência da sutura.
Nas conseqüências negativas das síndromes do estripador e
do arrasador, podemos acrescentar o aumento do custo da
medicina. Cada cirurgia dessas, custa no mínimo, dez mil
reais, considerando exames pré-operatórios, internação,
locação do centro cirúrgico, pagamento da equipe médica,
medicamentos e anestésicos. Isso pode ser visto sob o
ângulo social: uma operação desnecessária, num país com
carência de leitos hospitalares e de centros cirúrgicos, como
o Brasil, é um crime. Custos adicionais e desnecessários, no
sistema de saúde, vão sobrecarregá-lo, provocando um
déficit, que no final, de uma forma ou de outra, será pago
pela sociedade. Um país com poucos recursos para aplicar
em saúde tem que cuidar para que o sistema se torne o mais
eficiente possível, evitando-se o desperdício de verbas.

O cruzado contra a Peste

Um dos aspectos mais dramáticos da prática médica é ter
que enfrentar ameaças invisíveis representadas pelos micro-
organismos. À medida que o homem se organizou cm
comunidades maiores, produzindo lixo e facilitando a
transmissão de doenças, epidemias começaram a assolar as
populações urbanas e a gerar uma demanda de atendimento
médico. Na Antigüidade, já existiam relatos de surtos de
doenças infecciosas, como a cólera, a malária, a varíola, o
tifo e a disenteria, dizimando grandes populações, em
diversas partes do mundo. De todas as doenças epidêmicas
enfrentadas pelo homem, a peste bubônica foi a que mais
trouxe pânico e desespero. Nessas ocasiões, os médicos
trabalharam incansavelmente, e corajosamente, pois a maior
parte das pessoas fugia dela como quem corre do demônio.
A simples suspeita da doença gerava pânico, e os que
ousavam enfrentar os riscos eram vistos como heróis. Quem
abraçava a medicina tinha como terrível encargo a
responsabilidade de enfrentar a epidemia. Do contrário,
quem fugisse perdia, para sempre, a credibilidade, e era
obrigado a procurar outra profissão. O livro O Físico, do
escritor americano Noah Gordon, conta a vida de um
médico inglês durante a Idade Média. Numa das passagens, o
Dr. Carle se vê obrigado a enfrentar uma epidemia de peste.
Evita contato direto com as secreções que saem das fissuras
na pele, mas percebe que a transmissão pode ocorrer pelo ar,
pois os pacientes morrem de pneumonia. Protege seu rosto
com um lenço, saindo incólume da sua perigosa aventura. A
ficção baseou-se numa extensa pesquisa do autor e pode ser
usada como referência dos aspectos predominantes que
influenciaram os médicos da Idade Média. Da mesma forma,
em outros ambientes culturais, na Ásia ou na África,
médicos depararam, freqüentemente, com violentas
epidemias.
Carregar esse pesado fardo marcou profundamente a classe,
através da história. Essas marcas provocam reações, positivas
ou negativas. O aspecto positivo desse arquétipo é a coragem
e o arrojo para salvar vidas, um dos aspectos mais nobres e
admirados da profissão. São os médicos que viajam para
países pobres e se expõem a riscos para tratar dos
necessitados, ou que trabalham em frentes de batalha, entre
balas e estilhaços de obus, para salvar a vida de soldados. Ou
os que ficam em laboratórios, com bactérias e vírus
altamente agressivos, buscando a descoberta de antibióticos
e de vacinas para doenças que ameaçam a humanidade como
o vírus Ébola e o meningococo, que causa a meningite.
Graças a eles, muitas conquistas foram possíveis, mas muitos
pagaram com suas vidas por esse arrojo e amor à profissão.
Se profissionais como Eduard Jenner, que se inoculou com a
varíola para demonstrar a atividade da sua vacina, são o
orgulho da classe médica, os que incorporam os aspectos
negativos desse arquétipo se prestam a um triste papel: o do
covarde, que se esconde atrás do jaleco. São, justamente, os
que fogem dos fantasmas que deveriam combater. E o que
acontece na síndrome do médico asséptico.

Síndrome do Asséptico

Assepsia é um conceito fundamental para a medicina,
assunto bastante debatido na faculdade. Graças a ela, é
possível evitar a transmissão de doenças e fazer cirurgias
livres de infecção. Por isso, em geral, médicos têm um senso
de assepsia bem apurado: sabem que hospitais, apesar de
aparentemente limpos, são locais cheios de germes
agressivos e perigosos. Portanto, se não adotarem
procedimentos como lavar as mãos após o exame de um
paciente, podem se tornar transmissores de uma doença
qualquer. Se pouca assepsia é péssimo, exagerada também é.
Um estudo feito com camundongos mostrou que se logo
após nascerem eles são mantidos em ambiente estéril, por
seis meses, ficam com a imunidade deficiente. Se são, em
seguida, colocados num meio com bactérias comuns, sofrem
infecções incontroláveis e morrem. Mesmo animais adultos,
com imunidade normal, mantidos em ambientes estéreis por
longos períodos, experimentam uma redução na sua
capacidade de defesa. Isso mostra que o contato com
microorganismos comuns funciona como um estímulo para
manter a imunidade funcionando bem. Mas, para alguns
médicos, a assepsia torna-se praticamente uma obsessão.
Estes vivem com medo de se infectar no trabalho. Não
gostam de tocar nos pacientes, mantendo seu jaleco
impecavelmente limpo e com o vinco bem marcado. Evitam
as situações em que têm que entrar em contato com
qualquer secreção ou líquido dos doentes, mesmo usando
luvas. Para eles, há uma clara divisão entre o mundo da
doença, onde está o paciente, e o seu mundo, saudável,
perfeito. Essa atitude, muito fria, obviamente os distancia do
doente, prejudicando a relação de compreensão e confiança
que deve haver entre ambos.
Se o paciente sofrer de doença infecciosa grave, essa
distorção pode ficar bem evidente. Quando a AIDS
começou a se tornar um sério problema em nosso país, e sua
transmissão não estava inteiramente esclarecida, assisti a
demonstrações dolorosas de como esse arquétipo pode ser
forte e cruel. Certa vez, após chegar a um diagnóstico de
AIDS num doente internado num hospital particular da
Zona Sul do Rio de Janeiro, fui pressionado pela direção a
lhe dar alta, pois não queriam portadores da doença no local.
E os que me pressionaram tinham diploma de médico!!!
Quando trabalhava no serviço de DIP do Hospital dos
Servidores do Estado, cansei de atender pessoas, na
emergência, que outros colegas se recusavam a examinar.
Fui obrigado até a trocar a roupa e a limpar as fezes desses
pacientes, por não haver mais ninguém que o fizesse. Se o
profissional manifesta medo de examinar um doente, os
auxiliares de enfermagem, com um grau de instrução
inferior, também ficam temerosos. O asséptico, portanto,
não mede as conseqüências de sua atitude.
O jovem João Armando Brito de Freitas foi internado com
diarréia crônica num hospital particular, e fui chamado para
acompanhar seu caso. Havia uma suspeita de infecção, e
seus exames confirmaram que estava infectado pelo vírus
HIV. Contou-me ter usado drogas injetáveis, confirmando a
via de contágio. Na pesquisa do microorganismo que poderia
estar causando a diarréia, a equipe médica optou por solicitar
também uma endoscopia digestiva, pois havia necessidade
de coleta de material na luz intestinal e uma biópsia do
intestino. Foi chamado para fazê-la um profissional cujo
horário, por acaso, coincidiu com o da minha visita. O
médico chegou, deixou seu material no quarto do paciente e
foi examinar a papeleta. Subitamente, vejo-o recolhendo
suas coisas para ir embora. Abordei-o para saber a razão de
sua atitude e ele me falou, aos brados, que estava indignado
por lhe terem solicitado o exame sem terem informado que
o paciente era portador do vírus HIV. Argumentei que os
dados estavam na papeleta, que deveria ser lida antes do
exame. Mas ele, exaltado, continuou a questionar o fato de
termos solicitado uma endoscopia para um paciente
soropositivo. Disse-lhe que não via problemas, desde que o
colega tomasse as devidas precauções, usando luvas, protetor
de olhos, etc. Perguntei quando ele voltaria para realizar o
exame e ele me disse que não o faria em pacientes com
AIDS. Indagado sobre a razão, visto que as evidências
mostravam que o risco de contaminação durante um exame
como endoscopia era muito baixo, retrucou que tinha
mulher e filhos, que tinha responsabilidades e, portanto, não
poderia dar-se ao luxo de se expor à doença. Não resisti e
zombei dele, perguntando como ele faria para esquivar-se ao
exame num paciente HIV que ainda não tivesse sido
diagnosticado. Iria usar a imaginação? E por que não
discriminar também o vírus B da hepatite, que é muito mais
resistente que o da AIDS?
Infelizmente muitos colegas têm reações excessivas, como
essa, quando se deparam com agentes infecciosos agressivos
ou mortais. O médico deve estar consciente dos riscos e
tomar as medidas adequadas para evitá-los, sendo cuidadoso
na manipulação de sangue e material infectado. O
inadmissível é recusar-se a atender um paciente com doença
infecciosa. O aumento da informação sobre a AIDS e o
temor de infecção diminuiu, mas a síndrome do asséptico
ainda pode ocorrer, dependendo da situação e da formação
do profissional.

O Oportunista

O médico sempre teve status, em rodas as sociedades, o que
lhe trouxe regalias, prestígio e, certamente, uma
remuneração melhor que a de profissionais de muitas outras
áreas. Há pessoas que ao ficarem doentes entram em
desespero, e são capazes de dar todo seu patrimônio em
troca de uma promessa de cura. Ter status e se aproveitar
dessa posição privilegiada para extorquir dinheiro desses
pacientes é o sonho de muito oportunista. Por isso, desde
sempre, ele é visto em cena, no seu jaleco branco. Esse
arquétipo não tem nada de positivo.
Medicina e oportunismo estão mais distantes, em sua
essência, que a Terra de Plutão. Mas há tanto tempo essa
dualidade está presente na profissão que esse aspecto parece
incorporado ao inconsciente de alguns médicos, que
colocam seus interesses, geralmente financeiros, à frente da
ética e das necessidades dos pacientes. Eles indicam uma
cirurgia ou um tratamento desnecessários, ganham
comissões de farmácias de manipulação, podemos citar uma
extensa lista de malandragens, mas esse assunto é tão
deprimente que não quero me alongar nele. A esperteza
existe, disso ninguém duvida, e ela, infelizmente, não é mais
uma raridade.
No dia 6 de fevereiro de 2000, vi na TV um exemplo de
como se pode ir longe nessa questão. Numa clínica para
idosos, no Rio de Janeiro, os velhinhos estavam
abandonados, sem banho, comida, ou qualquer cuidado. Mas
a clínica recebia dinheiro do ministério da Saúde e de uma
entidade privada e a quantia não era pequena. Eram apenas
seis funcionários para tomar conta de dezenas de pacientes.
Na farmácia, quase não havia medicamentos, nem comida
na cozinha. As imagens daquelas pobres pessoas me
chocaram! Desnutridas, sujas, num local que mais parecia
um presídio, pedindo para morrer! E os diretores, senhores
bem vestidos, de gravata, fazendo um discurso nada
convincente para explicar para onde iam os recursos que
deveriam ser aplicados no cuidado dos velhinhos. Ali
estavam os oportunistas, espécie que deveria, esta sim, ser
extinta da face da Terra.
Outro caso, envolvendo um colega inescrupuloso, teve
como vítima Márcia Luna Abranches, que apareceu no meu
consultório com micro-varizes, pedindo minha opinião
sobre uma cirurgia prescrita por um angiologista. A proposta
era fazer uma safenectomia. Perguntei-lhe se o médico havia
examinado suas veias, ou se havia solicitado um scan
venoso. Ela me disse que não, mas que tinha ido a dois
outros especialistas que falaram a mesma coisa. Examinei-a:
sua safena era perfeitamente funcional! Solicitei o exame,
que acusou normalidade, e fui obrigado a dizer-lhe que
aqueles colegas estavam tentando enganá-la.
A safena só deve ser retirada se seu sistema de válvulas for
insuficiente quando o sangue corre para trás ao invés de para
a frente e aumenta a pressão na micro-circulação, gerando as
varizes. Mas, se funciona bem, ajuda a drenagem venosa.
Quando retirada, os sintomas pioram! Esses médicos
acreditam que, se retirarem a safena, ela não fará falta ao
paciente e eles vão ganhar com a cirurgia, que é cara. Há
ainda um argumento importante contra violências
despropositadas como essa: a pessoa operada pode precisar,
mais tarde, de pontes de safena, e não haverá safena para
fazê-las! Casos assim já foram relatados na literatura médica
mundial.
Já Alberto Miranda Ferreira teve um episódio de dor
abdominal aguda, de forte intensidade, e, como não
melhorasse com a medicação habitual, foi levado a uma
emergência. Lá chegando foi submetido a raios X simples e
hemograma completo, que registraram estado normal. Não
apresentava febre. Mesmo assim, os médicos insistiram na
cirurgia imediata, em vez de deixá-lo em observação, para
confirmar o diagnóstico. Alegaram que a sintomatologia era
muito sugestiva de apendicite aguda e levaram-no para
apendicectomia. Estes profissionais eram licenciados por seu
convênio e ganhariam com a cirurgia. Alberto foi operado.
O apêndice, apesar de ter sido descrito no relato cirúrgico
como inflamado, não foi encaminhado à patologia. Ao ser
informado da história, pelo paciente, procurei o cirurgião e
indaguei sobre a falta do exame patológico. Ele me
respondeu, irritado, que este não foi necessário, pois o
apêndice estava com pus. A desculpa não me convenceu, já
que toda peça cirúrgica tem que ir para a patologia,
independentemente do aspecto macroscópico. Tudo faz crer
que esses médicos fizeram uma operação desnecessária,
apenas para ganhar dinheiro.
A análise desses casos mostra que os procedimentos
cirúrgicos foram desnecessários, e a motivação aparente foi
econômica. No de Maria Luna, dois angiologistas
pretendiam retirar uma safena normal. Já no de Alberto, os
médicos decidiram rapidamente por uma cirurgia, pois
estavam de plantão e perderiam a oportunidade de ganhar
dinheiro ao final do expediente. De olho na remuneração,
passaram a faca num paciente com uma simples dor
abdominal, não mandaram o apêndice para a patologia,
jogando-o fora e livrando-se da "prova do crime".
Submeteram o paciente a um grande risco desnecessário a
mortalidade em cirurgias abdominais de emergência pode
chegar a 3%, dependendo da doença e do hospital onde é
feita.
Na verdade, atitudes como as tomadas por esses médicos são
crimes de estelionato — não se encaixam nos delitos
médicos por imperícia, imprudência ou negligência —
porque visam, deliberadamente, lesar o patrimônio dos
seguros de saúde e de particulares, à custa do risco e da dor
do próximo. Elas refletem a falta, cada vez maior, de valores
como humanidade, ética e amor pela medicina.

Conclusões

O arquétipo do médico corresponde a aspectos comuns a
todos os profissionais, o que reflete a longa experiência da
medicina, desde os primeiros curandeiros até a praticada
atualmente.
O "dinossauro branco" é o que reflete o universo médico,
com suas arraigadas características, como a lentidão de
movimentos, o peso excessivo, a relação com valores
ultrapassados e sua capacidade de curar, hoje afetada pela
tecnologia mal aplicada.
Alguns aspectos do arquétipo do médico estão expressos no
mito de Esculápio, divindade da mitologia grega que tinha o
dom da cura e foi fulminado por Zeus ao ultrapassar os
limites e ressuscitar pessoas.
Um dos principais arquétipos do médico é o "perseguido",
em função das perseguições sofridas ao longo dos séculos.
Outro é o "feiticeiro", relacionado aos aspectos mágicos da
cura e da luta contra a morte, intrínsecos na prática médica.
Há também o arquétipo do "dissecador", que permitiu um
conhecimento profundo da anatomia e o enorme
desenvolvimento de técnicas cirúrgicas hoje existentes.
Existe, por fim, o do "oportunista", gerando fatos
vergonhosos que denigrem a medicina, especialmente nos
últimos anos.

Capítulo 5
O Conservadorismo na Medicina

Quando nos debruçamos sobre a história do conhecimento,
percebemos que na sociedade sempre existiu uma força
conservadora se opondo, sistematicamente, às idéias
inovadoras e aos avanços do campo científico. Vimos que,
no passado, cientistas foram perseguidos, acusados de
bruxaria e até queimados na fogueira. Existem evidências de
forças conservadoras em todos os campos do conhecimento:
na física, na astronomia, nas ciências biológicas, nas ciências
sociais e até nas artes e na literatura. Contudo, no campo da
medicina, essa tendência é muito mais marcante. As
evidências, causas e conseqüências disso serão discutidas a
seguir.
De forma geral, podemos considerar que o conservadorismo
da ciência médica, na atualidade, tem contribuído, de forma
significativa, para dificultar a incorporação de novas idéias e
a transposição de teorias de outras áreas para o contexto
médico. Ele impede, igualmente, que o pesquisador
questione as limitações do modelo atual. Por que a medicina
tem essa postura? Essa é a primeira pergunta que nos ocorre.
Responder à questão não é um simples exercício de crítica e
exige uma reflexão sobre vários temas.

As Raízes do Mal

Pude identificar vários fatores geradores do
conservadorismo após examinar o material que me
municiou na elaboração deste livro: eles derivam de
influências que vão desde os anseios profundos da sociedade
ao modelo econômico que move a medicina. Merecem ser
considerados separadamente.
A Relação com os Medos inconscientes
O médico relaciona-se com as ameaças da doença e da
morte, que geram grandes medos inconscientes. A
sociedade busca segurança e confiabilidade, quando procura
por cuidados médicos. Alguém confiável significa que cem
um comportamento conservador, que representa símbolos
altamente respeitados, como, por exemplo, as figuras de pai
e mãe. Por isso, o médico sabe, instintivamente, que precisa
incorporar essa forma de agir, para, simplesmente,
sobreviver profissionalmente. Isso se reflete na sua imagem,
na forma como se veste e se comporta, mas também
transparece em sua maneira de pensar e de se posicionar, em
termos políticos e ideológicos. Aqueles que não se
comportam em conformidade com essas regras, se não
forem discretos, podem ser discriminados. Há, portanto,
uma tendência a uma seleção de médicos de perfil
conservador.
Essa questão foi levantada pela Dra. Nazaré Solino, cujo foco
de interesse é a toxicologia tema de sua tese de doutorado,
mas que também trabalha com saúde no trabalho e qualidade
de vida. Em sua prática, ela lida com muitos médicos e tem
opiniões definidas sobre o assunto. Acredita que a razão
desse conservadorismo está, justamente, no fato de que a
ciência médica lida com valores essenciais ou ameaçadores:
a doença, a morte, o sofrimento, o corpo, o sexo, a
reprodução. "Tanta expectativa implica, fatalmente, na
necessidade de se lidar com valores muito fundamentados,
gerando o comportamento conservador do médico."

O Contato Constante com as Incertezas

Ainda utilizando as colocações da Dra. Nazaré, é possível
identificarmos uma outra questão importante: a constante
mutabilidade do oceano onde o médico navega. Ou seja, ele
lida, o tempo todo, com incertezas. Nada é definido,
imutável e exato no seu trabalho. Então, vejamos: a doença
pode estar mascarada, apresentar-se de forma pouco
característica, ou ainda assumir um curso imprevisível. Não
é incomum, também, exames terem resultados negativos,
apesar da presença da doença, o que torna o diagnóstico
difícil e tardio. E, ainda, o medicamento indicado é passível
de causar efeitos indesejáveis e piorar a condição do
paciente, assim como o tratamento pode ser ineficaz ou
insatisfatório. Enfim, por mais que o médico se esforce, os
bons resultados nunca são garantidos. Ele precisa ter um
mínimo de segurança e precaução para conviver com tantas
incertezas. Tudo isso leva ao conservadorismo.

A Disputa de Poder

Parece incrível, mas há uma forte disputa de poder no meio
científico. Existe sempre um grupo dominante, que ocupa
posições importantes na academia, ou mesmo dentro de
sociedades, e que luta para se manter no topo dessa
estrutura. Para uma produção científica abundante e de
qualidade, há necessidade de cooperação e de uma
competição saudável. Mas, muitas vezes, isso se transforma
numa disputa destrutiva que pode ser levada às últimas
conseqüências. Existem casos de idéias e mesmo de
trabalhos roubados por professores, que se aproveitam de
sua posição para explorar ou perseguir alunos. Da mesma
forma, os grupos podem usar de sua força e influência para
bloquear idéias novas que ameacem a hegemonia do poder.
Ou seja, para ascender na carreira acadêmica, ou mesmo nas
diversas corporações médicas, é preciso estar em sintonia
com esses grupos e jogar segundo suas regras. E claro que a
pressão é sutil e, na maioria das vezes, exercida de forma
inconsciente pelos poderosos. Mas ela existe, e acaba
reforçando o perfil conservador da classe. Esse
comportamento é um dos fatores responsáveis pela falta de
espaços significativos para as pesquisas de medicina
intituladas alternativas pela academia.

A Formação Médica

Existe a questão da formação do médico, que é um
importante determinante de sua forma de agir e pensar. E
ela está cada vez mais tecnicista e compartimentalizada.
Tudo começa na faculdade, onde não há estimulo à
criatividade no campo das idéias. Os conhecimentos são
passados de forma estanque e não há muito espaço para
discussões ou contestações. Isso cria médicos com uma visão
estreita do mundo e da ciência, sem capacidade crítica.
Portanto, sempre terão dificuldades para aceitar conceitos
novos e diferentes daqueles com os quais estão acostumados
a lidar, não questionando as distorções do modelo vigente,
limitando-se a segui-lo. Por isso, a medicina evolui mais nos
campos técnicos específicos que no das novas idéias.
Veremos esse ponto no Capítulo 9, "A Formação limitada."

A Dispersão do conhecimento

Se no meio acadêmico a medicina se comporta de forma
conservadora, dificultando o acesso às novas idéias, estas se
desenvolvem em outros ambientes. Criam-se escolas,
profissões, cursos universitários, tudo à revelia da
corporação médica. Hoje temos graduações em medicina
oriental (OMD), em osteopatia (OD) e em acupuntura (Tec
Ac), nos Estados Unidos, regulamentadas como cursos e
profissões. No Brasil, Alemanha e Suíça, temos formações
independentes em homeopatia e medicina antroposófica.
Aqui, algumas universidades não-médicas estão tentando
criar cursos de "medicina natural", sem falar em escolas de
Florais de Bach, Aromaterapia etc. A própria psicanálise, de
conceitos incontestáveis, caminha de forma bastante
independente da medicina clássica. Com a dispersão do
conhecimento, a corporação médica se enclausura num
ambiente artificial em que prevalecem seus parâmetros e
modelos. E viceja a falsa impressão de que tudo o que se
desenvolve fora daí não presta o que reforça o discurso
conservador. Não há espaço para um saudável confronto de
idéias e correntes de pensamento. Por outro lado, como bola
de neve, essa distância entre os conceitos da medicina
clássica e os das terapias alternativas dificulta ainda mais a
compreensão das idéias diferentes e inovadoras.

O Lobby da Saúde

O atual modelo da medicina é também fornecido pelos
interesses das empresas que investem no setor. São os
laboratórios farmacêuticos, as empresas fabricantes de
equipamentos médicos e as que administram os planos de
saúde. A maior parte deles não vê com bons olhos as
mudanças que possam afetar seus negócios. Esses
conglomerados financiam os congressos e são os grandes
anunciantes das revistas médicas, dessa forma influenciando
nos temas que ganham dimensão. Para eles, o "novo" pode
ser ameaçador e, entre o certo e incerto, preferem o modelo
atual, ao qual estão adaptados. Trataremos mais do tema no
Capítulo 8, "A Opressão do Capital".

As Evidências do Conservadorismo

O pensamento conservador começou a ficar evidente à
medida que significativas mudanças de conceitos científicos
começaram a ocorrer, a partir da metade do século XIX. O
caso clássico é o que ocorreu com Sigmund Feud. O "pai da
psicanálise" descreveu um caso de histeria, num homem,
doença considerada, na época, exclusiva das mulheres e
decorrente de hormônios secretados pelo útero. No final do
século, Freud apresentou o caso na Academia de Medicina
de Viena, e foi ridicularizado por seus colegas e pressionado
a reconsiderar sua posição. Como não voltou atrás, foi
expulso e perseguido.
Ao discutir as evidências do conservadorismo na medicina,
é preciso citar Medicai Maverick (Desafiando a Medicina),
de Hugh Riordan, médico e presidente da Associação
Americana de Medicina Holística. O livro foi inspirado no
fazendeiro Samuel A. Maverick, pioneiro, nos Estados
Unidos, em não marcar seu gado. Ele sofreu tantas pressões
por adotar um comportamento não-convencional em seu
meio que seu nome é usado, hoje, quando nos referimos a
alguém que assume uma postura independente e
desbravadora de novos caminhos, na ciência e na sociedade.
Riordan vem lutando há 30 anos para que a medicina resgate
a visão do paciente como um todo, recuperando seus valores
humanos e combatendo o excesso de tecnicismo e
compartimentalização. Com intuito de mostrar que as
importantes mudanças de curso são aquelas que implicam
em profundas revisões conceituais, e que grandes
inovadores foram perseguidos e suas idéias combatidas
irracionalmente, o autor conta as histórias de 18 cientistas
que introduziram conceitos revolucionários.
Algumas merecem ser relembradas, para que possamos tirar
delas lições de vida e colocar de lado nossos preconceitos,
como a descoberta dos micróbios, esses seres capazes de
provocar tantas doenças, feita por Louis Pasteur, Quem diria
que, tão reverenciado hoje, Pasteur foi perseguido por
médicos por um longo período, só sendo reconhecido no
final da vida, quando as evidências de suas descobertas eram
irrefutáveis. O pesquisador francês, bacharel em ciências,
especializou-se em química, e começou suas descobertas ao
investigar a causa de problemas que ocorriam na produção
de cerveja. Notou que o levedo bom apresentava formas
regulares ao microscópico, o que não ocorria no estragado.
Suspeitou, então, de que ali estavam pequenas formas de
vida. Demonstrou que o levedo saudável produzia uma
fermentação adequada, enquanto que o estragado, quando
empregado, fazia a fermentação ser produzida por outros
organismos, que deterioravam o malte da cevada. Usando
técnicas de filtragem do ar em contato com o malte,
descobriu que esse fenômeno era inibido. Propôs que os
microorganismos, transmitidos pelo ar, eram os responsáveis
pela contaminação da fermentação da cerveja, estragando o
malte. Logo em seguida, viu que isso poderia acontecer
também na fermentação da uva para a produção de vinho.
Postulou, então, que o fenômeno poderia explicar a infecção
de feridas e cotos de amputação. Nessa época, demonstrou
também que o calor podia eliminar as bactérias,
desenvolvendo um método de aquecimento para
esterilização, que ainda leva seu nome: a pasteurização.
O cientista redigiu suas conclusões e as apresentou na
Academia Nacional de Medicina da França. Mas sua teoria
contrapunha-se à concepção médica da "geração
espontânea", que propunha ser a infecção uma forma natural
de evolução dos ferimentos, e não causada por organismos
microscópicos conduzidos pelo ar. Nesta apresentação,
Pasteur foi duramente atacado. "Como um leigo ousa
questionar e discutir medicina?", gritavam. Respondendo a
todos de forma veemente, ele iniciou um bate-boca tão
exaltado que acabou expulso do recinto. Mesmo
constantemente agredido e perseguido, a partir desse
episódio encontrou refúgio na indústria, interessada em
resultados concretos. A de seda francesa, por exemplo,
estava ameaçada por uma praga que atacava os ovos do
bicho-da-seda. Após três anos de intensas pesquisas, Pasteur
isolou dois tipos de bacilos, responsáveis pela doença,
desenvolveu um método para identificar insetos doentes e
uma técnica para prevenir o problema.
Os ótimos resultados obtidos provocaram ainda mais a ira
dos inimigos. Mesmo alguns criadores de bichos-da-seda,
que não acreditavam em seus métodos, espalharam pesados
boatos sobre a vida do pesquisador, deflagrando uma grande
crise cm sua família. Seu estresse foi tão intenso que em
1868 ele sofreu um acidente vascular cerebral, ficando com
um lado do corpo paralisado. Mesmo assim, não se deu por
vencido e, recuperando-se, voltou a se dedicar às pesquisas,
desta vez tentando descobrir a causa do antraz. Em dois anos
de trabalho, isolou o bacilo causador da doença, e conseguiu
desenvolver uma vacina para sua prevenção.
Por volta de 1870, tomou conhecimento do trabalho do
médico alemão Robert Koch, que posteriormente
descobriria o bacilo da tuberculose e cuja linha de
pensamento possuía muitas semelhanças com a dele.
Tentou se aproximar de Koch, mas foi rechaçado, sob uma
saraivada de críticas. Koch escreveu, na época, um artigo no
qual dizia que Pasteur era apenas um químico, sem
qualificação para compreender as doenças humanas, e que
por isso seus métodos não seriam confiáveis. O curioso é
que, apesar de Koch não admitir, muitas das suas descobertas
foram baseadas nas idéias de Pasteur. Ao invés de se abater
com o não-reconhecimento de seu trabalho, Pasteur foi se
tornando cada vez mais ousado cm seus experimentos,
tentando convencer a comunidade médica. Então voltou sua
atenção para a busca de uma solução para a raiva. Mesmo
sem conseguir isolar o agente causador da doença, obteve
uma vacina eficaz, que aplicou num menino que acabara de
ser mordido por um cão hidrófobo e ele sobreviveu, sem
contrair a doença.
A raiva tem curso maligno e seu vírus, uma potência
destrutiva, descomunal, sobre o cérebro — e por isso muitos
pacientes, mesmo vacinados pelo cientista, morreram. Isso
fez com que seus inimigos re-dobrassem a perseguição a ele,
acusando-o até mesmo de assassinato. Ao mesmo tempo,
sabia-se que a raiva resultava em 100% de mortalidade, e
muitos procuravam desesperadamente pela vacina de
Pasteur ao serem mordidos por cães suspeitos, pois, afinal,
esse era o único tratamento disponível. Como várias pessoas
mordidas por animais raivosos não ficaram doentes, tornou-
se evidente a grande contribuição de Pasteur à humanidade.
Um grupo de eminentes professores reconheceu os méritos
do trabalho, que, assim, foi finalmente aceito pela
comunidade médica. Com o prêmio em dinheiro que o
governo francês lhe deu, Pasteur criou o instituto que leva o
seu nome, e que dirigiu até sua morte, em 1895.
Outra história interessante, do livro de Hugh Riordan, é a da
invenção da anestesia. Os principais protagonistas foram dois
dentistas e sócios, cm início de carreira, no final da primeira
metade do século XIX. O primeiro, Horace Wells, notou
que, durante os trabalhos dentários, a utilização de gás
hilariante (protóxido de nitrogênio) reduzia a dor de seus
pacientes. Animado, enviou seus resultados à Academia
Médica de Massachusetts, em 1846, sendo, então, desafiado
a mostrar a descoberta a uma comissão de médicos. Wells
surpreendeu-se ao ver, nessa audiência, um paciente deitado
e pronto para uma amputação. O gás hilariante tem uni
potencial analgésico apenas moderado, e é, ainda hoje,
utilizado para potencializar outros anestésicos, em virtude de
sua excelente tolerância, mas é insuficiente para uma
analgesia em casos dessa natureza. Sem saída, foi obrigado a
tentar o uso do gás numa situação na qual não tinha qualquer
experiência. Resultado: o paciente gritou de dor, e os
médicos ridicularizaram o dentista, de tal forma que este foi
obrigado a se esconder numa cidade do interior.
Seu sócio, William Morton, foi mais persistente, e levou
adiante o projeto de buscar uma substância com potencial
anestésico. Havia lido que a colocação de algumas gotas de
éter sobre uma cárie reduziam a dor de forma significativa.
Tentou, então, durante anos, administrar a substância de
várias formas, a animais, e acabou por descobrir que a
inalação de seu vapor induzia o sono e reduzia a dor.
Desenvolveu um inalador e passou a aplicar a descoberta em
seus pacientes, durante procedimentos cirúrgicos. Como não
tinha total controle do método, alguns deles tiveram
problemas, o que lhe rendeu as primeiras perseguições por
parte dos médicos. Sempre lembrando o fracasso de Wells,
alegavam que um dentista não tinha competência para
administrar medicamentos, nem para descobrir uma droga
que inibisse a dor. Ações na justiça e multas quase levaram o
dentista à falência.
Mas Morton prosseguiu tentando, com tenacidade, ser
reconhecido, e ao final de muito esforço teve a
oportunidade de demonstrar uma anestesia a John Colins
Warren, importante médico da época. Na demonstração,
extirpou um tumor do pescoço de um paciente sem que este
reclamasse, impressionando Warren. Contudo, mesmo
contando com seu apoio, o dentista não conseguiu licença
para usar seu fluido anestésico na maior parte dos hospitais
de Boston. Sua sorte começou a mudar após concordar em
fornecê-lo, gratuitamente, para Warren, numa série de
amputações e cirurgias de urgência. Alguns médicos
acompanharam as operações e o interesse pelo anestésico
aumentou. O único obstáculo passou a ser o segredo da
fórmula do líquido, mantido a sete chaves por Morton,
temeroso de que alguém a roubasse. Só a partir do apoio de
vários médicos, finalmente, revelou ser éter o misterioso
fluido.
Mas o que parecia resolvido foi o início de um pesadelo para
o dentista. Com a divulgação dos bons resultados das
anestesias, no Hospital Geral de Massachusetts, uma legião
de médicos, de todas as partes dos Estados Unidos, atacaram
o procedimento, sob muitas alegações, tais como
ineficiência ou toxicidade. Os de Boston admitiram que os
ataques eram motivados pela inveja e pelo medo do avanço
tecnológico. Aos adversários somaram-se as vozes de
pastores protestantes, que alegavam que a anestesia feria as
regras de Deus, e mesmo de dentistas, que espalhavam
boatos sobre seu colega. Morton ainda foi acusado por um
químico, Charles Jackson, que havia sido seu professor, de
lhe ter roubado a invenção. Isso custou ao dentista anos de
aborrecimentos e lutas na justiça. A invenção foi mais aceita
a partir de sua utilização em amputações pelo Exército
americano, durante a guerra do México. O reconhecimento,
de fato, veio no final de sua vida. Já Wells não teve a mesma
sorte. Após o sucesso de Morton, voltou a Boston para lutar
pela aceitação de seu gás hilariante, mas foi rejeitado por
todos, inclusive pelo antigo sócio. Foi perseguido e acusado
de fraude. Deprimido, e com a saúde debilitada, morreu na
obscuridade alguns anos depois. Apenas no século seguinte
sua descoberta foi reconhecida.
No livro de Riordan ainda há outras histórias importantes,
como a de Leopold Auenbruger (1722-1809), descobridor
da percussão método usado na semiologia médica -; de
Elisabeth Blackwell (1821-1910), primeira mulher a
conseguir se graduar médica numa universidade; de Zabdiel
Boylston (1680-1766), responsável pela introdução da
vacinação contra a varíola nos EUA; de Joseph Goldberger
(1874-1902), descobridor da causa e do tratamento da
pelagra; e a de Joseph Lister (1827-1912), um dos pais da
cirurgia moderna. Todos introduziram idéias inovadoras,
sofreram pressões por parte da própria corporação médica e
foram perseguidos por longos períodos.

As Conseqüências do conservadorismo

Existem relatos de idéias que ficaram perdidas por décadas,
ou mesmo séculos, até que alguém as recuperasse ou
apresentasse outras, semelhantes. Uma perda de tempo
enorme, certamente, que satisfez apenas aos conservadores.
E possível que, se todas as grandes descobertas da medicina
tivessem sido divulgadas de pronto no meio científico e
aproveitadas sem resistências em novos projetos e
experimentos, estivéssemos bem mais adiantados. O excesso
de conservadorismo, como vemos, retarda o
desenvolvimento da ciência médica.
A exclusão dos conhecimentos, por puro preconceito, é
inconcebível. Idéias que se chocam com o conhecimento
instituído são simplesmente ignoradas pela academia. Mas,
como compõem o universo conceitual da sociedade,
sobrevivem, e a instituição se torna impotente para
controlar a expansão dessas idéias, já que não se condenam
mais à fogueira indivíduos com convicções diferentes da
corrente dominante. Estes, então, organizam-se, e vão
criando escolas de pensamento, desenvolvendo e
sedimentando as variantes da hoje chamada "medicina
alternativa".
Não conheço nenhum outro campo do conhecimento onde
haja uma escola que sobreviva de forma independente e
excluída da academia como é o caso da medicina alternativa.
Nunca se ouviu falar, por exemplo, em "economia
alternativa", apesar de existirem duas fortes escolas, os
monetaristas e os estruturalistas. Nas boas faculdades dessa
matéria, todos os autores importantes são lidos, até porque,
para se criticar alguém ou alguma coisa, é preciso conhecer
bem sua linha de pensamento. Os grandes economistas, hoje
classificados como neoliberais, leram O Capital, de Karl
Marx, mesmo não concordando com as idéias socialistas. Por
outro lado, conheço pouquíssimos médicos alopáticos que
tenham lido Organon, do homeopata Samuel Hanneman! Da
mesma forma, médicos, em geral, ignoram a teoria da
medicina chinesa, e mesmo as idéias da ortomolecular.
Por isso me pergunto com que base podem opinar sobre a
medicina, como um todo, se existem tantas formas de
enxergá-la também do ponto de vista filosófico -, e muitas
ignoradas por eles. Quantas vezes fui fazer palestras sobre
acupuntura para um público de médicos e vi levantar-se um
indivíduo para dizer que não "acredita em acupuntura!
Pergunto onde ele estudou o assunto e quantos artigos
científicos leu para formar sua opinião. A resposta é,
invariavelmente, a mesma: não tem nenhuma fonte de
informação confiável para respaldar seus conceitos. Baseia-se
apenas nos preconceitos que adquiriu.
Acontece que, atualmente, quando só se feia em
globalização e no novo milênio, ninguém quer ser chamado
de conservador. Muitos médicos reagem a esse estigma
partindo, agilmente, para a incorporação de novas técnicas.
É a tal história, como diziam os antigos: "Por fora, bela viola;
por dentro, pão bolorento!" Por fora moderno, por dentro
antigo, preconceituoso, avesso à diversidade das correntes
de pensamento. Não se pode confundir falta de precaução
com mentalidade inovadora. Não há nada de inovador,
convenhamos, em se absorver, sem nenhum critério, um
monte de novas drogas que a indústria farmacêutica despeja
no mercado sem que sua utilidade esteja bem definida pela
experiência acumulada ao longo dos anos. É preciso abrir os
olhos para os novos conceitos, e manter o cuidado habitual
com medicamentos de última geração, para que se chegue a
um melhor equilíbrio entre o novo e o antigo, e a um maior
discernimento sobre o que é ou não seguro.
São passos fundamentais para que a medicina reencontre o
caminho do avanço conceitual sem expor os pacientes a
riscos desnecessários.

Conclusão

O conservadorismo e um traço marcante na medicina, ao
longo dos séculos. Sempre existiram grandes resistências às
mudanças conceituais e descobertas inovadoras.
As causas do conservadorismo são muitas: a mais importante
é a falta de constância do universo do médico, ou seja, o
doente e a doença apresentam muitas variáveis, exigindo do
médico conceitos muito bem fundamentados para orientar
sua prática. Outros fatores importantes são a disputa de
poder na ciência e os interesses econômicos, que
pressionam contra qualquer mudança que possa contrariar
seus interesses.
O conservadorismo na medicina gera uma situação sem
precedentes em outras áreas do conhecimento: à revelia da
academia, desenvolve-se uma infinita variedade de técnicas
terapêuticas alternativas.
Com o desenvolvimento das medicinas alternativas, deu-se a
"dispersão do conhecimento" — ou seja, as informações não
se concentram mais nas universidades, o que favoreceria a
exposição e a discussão de temas o que acaba por privar a
medicina de idéias inovadoras.
Médicos, hoje, não querem ser tachados de conservadores e
assumem um falso progressismo que consiste, unicamente,
em incorporar, de forma rápida e pouco criteriosa, os
avanços tecnológicos, especialmente na área de novas
drogas.

Parte III
O Dinossauro Moderno

Considerando alguns problemas da ciência relacionados à
unidade do conhecimento... ou seja, há uma verdade
poética, espiritual ou cultural, distinta da verdade científica
que não pode ser desconsiderada.
Niels Bohr

Capítulo 6
O Divórcio da Magia

Desde o surgimento dos primeiros xamãs, pajés, druidas,
feiticeiros e todos aqueles que criaram os sistemas médicos
primitivos, independentemente da raça, ambiente cultural e
geográfico, ou do grau de desenvolvimento da sociedade, a
magia sempre foi o principal aspecto do tratamento. Esse
traço absolutamente universal acompanhou a medicina, em
maior ou menor intensidade, até sua estruturação como
ciência, especialmente a partir do século XIX, quando esse
lado "mágico" foi definitivamente tachado de "fantasia",
"crendice", "invencionismo leigo" ou outras denominações
discriminatórias. Na ciência racional, no pensamento linear
do raciocínio lógico, e na estrutura da filosofia cartesiana,
não havia, e não há, espaço para algo tão primitivo. Nos
moldes modernos, a medicina procurou manter distância de
qualquer procedimento terapêutico que pudesse lembrar o
incômodo primitivismo das práticas mágicas.
Entretanto, uma característica tão inerente ao ser humano
não poderia ser varrida dos hábitos culturais das sociedades.
Lembremos a grande propriedade do ditado Vox populi, vox
Dei! A despeito de toda a tecnologia, e das declarações da
ciência desqualificando essas práticas leigas ligadas à
medicina, elas subsistem em todos os cantos do mundo, de
várias formas e em diferentes linguagens. E vemos que a
tendência atual é a de procurar, cada vez mais, por esse tipo
de tratamento. Quando as pessoas ficam doentes, querem
um conselho médico. Mas, dependendo de seu perfil
psicológico e das características da doença, vão procurar um
auxílio extra, na religião, por exemplo, num centro espírita,
na medicina alternativa, ou cm outro tipo de abordagem
identificada com a magia. Meu objetivo, neste capítulo, é
mostrar as conseqüências negativas do afastamento da
ciência médica desses aspectos, assim como apontar
caminhos para que ela recupere seu conteúdo mágico e o
utilize para melhorar seu desempenho.
Uma pesquisa feita ao longo de 20 anos, na Universidade de
Rochester, nos Estados Unidos, por um professor de
medicina chamado George Engel, mostrou que males
crônicos, como câncer, arteriosclerose, infarto do
miocárdio, doença inflamatória do intestino e enfermidades
do sistema nervoso central, estavam relacionadas a estresse
psíquico prolongado, frustrações, e à falta de motivação
psíquica. Engel e seus colaboradores colheram histórias de
pacientes com essas enfermidades e mostraram que 80%
deles tinham passado por sérios problemas emocionais e
estresse psíquico que consumiram suas forças, e o traço
comum entre eles era o sentimento de estarem "desistindo"
da vida. Em muitos casos, encaravam a doença como um
sinal de que sua saúde havia sido consumida de forma
definitiva, e que, para eles, não havia mais alternativas de
cura. E importante ressaltar ser muito baixa, em pessoas
saudáveis, a incidência de histórias de estresse psíquico
prolongado e de severas frustrações afetivas, configurando-
se essa situação, portanto, um importante dado estatístico.
Ora, se doenças sérias e crônicas têm, como base, esses
fatores emocionais, de que adianta o médico dar um
medicamento se não atuar na raiz da doença nem ser capaz
de mudar a atitude desses pacientes diante da vida? Quando
se processou o divórcio entre magia e medicina, esses
aspectos perderam o valor. Com isso, a qualidade do trabalho
médico foi reduzida, a despeito da maior eficácia dos
tratamentos apoiada nos avanços tecnológicos. Na verdade,
foi exatamente essa evolução da tecnologia o que afastou a
ciência médica da magia.

A Falsa Magia

Esse processo começou a cristalizar-se a partir de três
significativos avanços da ciência médica: a descoberta do
microscópio, por Malphigi; a descrição dos
microorganismos, por Pasteur; e o desenvolvimento da
anatomia patológica, por Laennec. Essas novas informações
"decifravam" melhor a doença, tirando-lhe aquele caráter
incompreensível e ameaçador do passado. A partir de então,
ela tinha causa definida, os micróbios — pois as alterações
patológicas nos tecidos do corpo podiam ser identificadas.
No século XX, com o aparecimento dos antibióticos, a
ciência parecia tê-la dominado, de forma definitiva. A
tecnologia da química farmacêutica possibilitava fazer drogas
cada vez mais potentes para matar micróbios e combater
grande parte das enfermidades.
Aos olhos da população leiga, tudo isso tomava a forma de
uma nova magia, a magia da ciência. Com a tecnologia, era
possível se fazer milagres: ela via o que os olhos não podiam
enxergar, descobria substâncias no sangue, via os ossos com
os raios X e dispunha de drogas milagrosas. Sem dúvida, a
tecnologia e o saber médico têm valor inestimável,
possibilitando feitos nunca antes sonhados, em termos de
tratamento.
As pessoas pareciam aceirar a tecnologia como a magia do
futuro. Contudo, esse deslumbramento se desfez, aos
poucos. Como aqueles truques de mágicos que encantam as
crianças apenas num primeiro minuto, a tecnologia também
passou a frustrar no momento em que passou a ser
compreendida. Ela é fria, distante, e a busca da magia, pelos
pacientes, passou a significar expectativas que não são
satisfeitas apenas com a abordagem tecnológica. Eles
esperam mais do que, simplesmente, a mera aplicação de
uma técnica: anseiam por um feito especial, uma ação
personalizada que modifique seu rumo de vida e os traga de
volta ao estado de saúde. Querem acreditar que forças
divinas estarão ao seu lado, para se sentirem seguros na
batalha contra a doença. Para tanto, é preciso que alguém os
envolva nessas idéias, convencendo-os de que essas forças
estarão à seu favor.
A tecnologia não oferece esse tipo de sensação ao usuário da
medicina ela é árida, impessoal, rígida enfim, contrapõe-se
às necessidades de comunicação e de troca do ser humano,
sem predispor a uma abordagem individual. E o médico está
despreparado para lidar com essa solicitação. Tudo isso
contribuiu para o aumento desse sentimento de frustração,
com relação à medicina atual. A tecnologia se desenvolveu
extraordinariamente nos últimos dez anos, mas as pessoas
não enxergaram grandes melhoras nos serviços médicos.
Pelo contrário, a percepção geral é de que a medicina
tecnológica ficou mais agressiva, mais invasiva e
atemorizante. Parece que o feitiço virou contra o feiticeiro.
E significativo o número de pacientes desacreditados da
capacidade "mágica" da tecnologia médica. E comum, hoje,
eles entrarem em meu consultório dizendo que não usam
medicamentos químicos ou antibióticos. O que, em geral,
obriga-me a gastar meia hora explicando que, se prescritos
no momento correto, tais remédios podem ser milagrosos.
Trata-se de um segmento de pessoas frustradas, que cresce
dia a dia. Portanto, a abordagem tecnológica e científica,
pura e simples, não substitui a magia. Esse equívoco deixa
muitos pacientes perdidos, especialmente quando
confrontados com diagnósticos que geram angústia e medo
da morte. Um exemplo que considero clássico é o da atriz
Dina Sfat. Ao receber um diagnóstico de câncer de mama,
há 15 anos, procurou um tratamento alternativo. Como o
nódulo continuasse a crescer, voltou ao convencional, mas o
câncer já estava inoperável. Nessa época, na esperança de
algum milagre, acabou buscando ajuda no exterior,
submetendo-se a um tratamento em Londres, que não foi
diferente do que poderia ser aplicado no Brasil.
Provavelmente, frustrou-se na sua busca pela magia, nas
duas fontes procuradas, e a doença acabou seguindo seu
curso. Ocorreu aí a síndrome da ausência de magia.

Síndrome da Ausência de Magia

O paciente, especialmente aquele com uma doença grave,
fica extremamente ameaçado e regredido. Sente-se acuado,
um ser pequenino diante da ameaça gerada pela doença.
Para enfrentá-la, precisa de aliados poderosos. Precisa de um
milagre! E busca algo que em sua escala de valores detenha o
poder de realizar esse milagre, seja um médico espírita, ou
um especialista altamente recomendado. A síndrome ocorre
quando essa expectativa é frustrada.
Pessoas muito racionais dirão que a tecnologia é a resposta
para todos os milagres. Mas sabemos que não é bem assim.
Mesmo uma cirurgia aparentemente simples pode se tornar
um pesadelo para os doentes. E estes estão cobertos de
razão. As vezes, o inesperado acontece, gerando risco de
vida. Instintivamente, eles sabem que existe aquele 1% de
mortalidade, número com o qual a medicina lida friamente,
mas que, para quem está prestes a ter suas vísceras rasgadas
por uma lâmina de bisturi, é apavorante. Quem garante que
o paciente não vai cair naquela mórbida fatia do 1%? Por
isso, para sobreviver, escapar do 1%, vencer os fantasmas
interiores, ele precisa desesperadamente de uma mágica, um
encanto, uma força sobrenatural, um mago que o guie por
esse labirinto de ameaças e dificuldades. Essa pessoa deve ser
o médico, que, se não estiver do seu lado, e não o colocar
sob sua guarda mágica, não terá capacidade de produzir o
"feitiço" protetor, que o confortará e lhe dará esperanças.
Sem isso, o paciente ficará desorientado, à mercê de seus
medos, sem saber para que lado correr. E o que ocorreu na
história que conto a seguir: uma paciente absolutamente
acuada por sua doença mudou seu comportamento quando
lhe foi proposta uma abordagem diferente.
Acompanhei o caso de Rosamaria Silva no ambulatório do
Instituto de Acupuntura do Rio de janeiro. Ela veio se
consultar comigo trazida por sua prima e vivia uma situação
desesperadora. Sentia fortes dores de cabeça, atribuídas, de
início, ao estresse, já que, professora primária, trabalhava
excessivamente. As dores se intensificaram e ela teve um
episódio semelhante a uma convulsão, quando resolveu
procurar um médico. Foi feita uma tomografia
computadorizada da cabeça, que mostrou um tumor do
tamanho de um limão graúdo. A cirurgia, feita em seguida,
mostrou que este era um glioblastoma multiforme. O
cirurgião removeu o que podia, e foi tentada uma
radioterapia paliativa. Mas o tumor logo voltou a crescer, e
as dores de cabeça voltaram, e em seguida as convulsões. Em
virtude do tipo de tumor, que não respondia ao tratamento,
Rosamaria foi deixada de lado por seus médicos, que lhe
sugeriram uma abordagem paliativa, para que suportasse a
evolução da doença. A moça trancou-se em casa para
morrer. Mesmo tomando os medicamentos, as convulsões
continuavam, e esses episódios a enchiam de vergonha: não
mais queria aparecer em púbico. Num certo momento,
resolveu parar de tomar os medicamentos, para morrer logo.
Nesse estado, desesperada e deprimida, com uma cefaléia
intratável, chegou para a consulta, com um prognóstico
otimista de crês meses de vida. Esse primeiro contato
demorou mais de uma hora: era preciso convencê-la a tomar
novamente a medicação, para que sua qualidade de vida
melhorasse. Em seguida, como sempre faço, animei-a a não
se deixar vencer pela doença. Disse-lhe que as agulhas de
acupuntura estimulavam o sistema imunológico e que,
assim, poderia deter o crescimento do tumor. Apesar de não
concordar em voltar com a medicação, aceitou tratar-se com
acupuntura, e obteve uma melhora significativa após a
primeira sessão. A cefaléia ficou dois dias sem incomodar e,
quando voltou, foi menos intensa, e os episódios de
convulsão diminuíram de quatro para um ao dia. Com isso,
ganhei a absoluta confiança de Rosamaria, e consegui fazer
com que voltasse a tomar os medicamentos, a dexametasona
e o ácido valpróico — o primeiro, diminui a região de
inchação em torno do tumor e com isso a pressão no
interior da cabeça, melhorando o estado do cérebro; o
segundo, inibe as convulsões. Combinando as drogas com a
acupuntura, ela passou a ter menos de uma convulsão por
semana e ficou sem cefaléia. Estimulei-a a voltar a dar aulas
no colégio onde lecionava, e seus alunos a receberam com
muita emoção e carinho, o que renovou suas forças para
continuar lutando. Sua vida praticamente voltou ao normal.
Numa das consultas, veio em minha direção,
surpreendendo-me com um abraço, e dizendo: "O senhor é
milagroso!" Realmente, sua melhora era inacreditável.
Quatro meses após o início do tratamento, o tumor se
mantinha do mesmo tamanho. As férias escolares, oito
meses depois, a desanimaram um pouco, e a cefaléia voltou a
piorar, embora discretamente. Rosamaria ainda viveu mais
quatro meses, mantendo razoável qualidade de vida até uma
semana antes de morrer, quando entrou em coma.
Nesse caso, vemos como a falta de magia na medicina jogou
essa paciente numa situação desesperadora. O médico
precisa sinalizar positivamente mesmo que o doente
apresente uma condição fatal, como um câncer. A
instituição do tratamento precisa ser feita de forma que ele
acredite que vai melhorar. Quem carrega a função de
promover a cura tem que guardar algumas cartas na manga
para oferecer numa situação dessas. Uma medicina sem
magia reserva ao doente um destino sombrio apenas o de
aguardar a morte, e sofrendo. Com o estabelecimento de
uma nova relação de confiança médico-paciente, o doente
pode vir a reagir, melhorando sua qualidade de vida. Com
Rosamaria, a acupuntura foi uma arma importante, pois seu
poder analgésico a impressionou. Com isso, ela se dispôs a
utilizar uma medicação corretamente prescrita, acreditando
no seu poder. A modificação de sua atitude fez com que a
progressão da doença desacelerasse, e ela ganhou mais um
ano de vida. Quanto vale um ano de vida? O valor é
inestimável! Isso tudo operou um verdadeiro milagre para
ela e sua família, como Rosamaria mesma me disse. A magia
tinha sido reincorporada à medicina! Infelizmente, não foi
suficiente para curá-la. Mas seu benefício foi incontestável.
Existem outras opiniões abalizadas apontando para essa
questão, como a do Dr. Balta Radu, anestesista do Hospital
de Liemgo, na Alemanha, que acredita que a tendência à
mudança de rumo que ocorre atualmente na medicina do
seu país relaciona-se com o resgate da magia. Como todo
anestesista, o Dr. Radu é interessado em dor, ou melhor, em
aliviar a dor. Por isso, com sua equipe, convidou um médico
acupuncurista para tentar reduzir a dor de doentes operados.
Os dados da pesquisa foram monitorados por ele, que notou
melhora significativa em vários outros parâmetros dos
pacientes, inclusive na mortalidade pós-cirúrgica. Isso o
motivou a estudar a acupuntura, o que fez, inicialmente, na
Alemanha. Sua experiência com essa técnica foi tão
marcante que decidiu completar sua formação na
Universidade de Pequim, onde nos conhecemos em 1999.
"Muitos pacientes, na Alemanha, estão procurando as
terapias alternativas, o xamanismo, a homeopatia ou a
acupuntura. Os médicos que as praticam estão mais
preparados para ouvir seus pacientes. E fundamental saber o
que os doentes têm a dizer. Existe a questão do medo dos
métodos modernos, dos tratamentos, combinações
químicas, efeitos colaterais, métodos invasivos, fazendo com
que procurem algo mais natural. Para mim, a questão
principal é que a medicina alternativa trata melhor da psique
e da alma do paciente que a convencional", disse-me o Dr.
Radu, numa ocasião.
Para recuperar a magia, o médico precisa modificar sua
atitude para com o paciente. Na Alemanha, houve uma
grande pressão popular por mudanças nesse sentido, o que
fez com que os profissionais também modificassem sua
maneira de agir. Atualmente, escutam mais os doentes e
preferem prescrever plantas medicinais ao invés de
medicamentos. Foi uma mudança imposta pelo mercado,
mas que deu certo, e o modelo está sendo exportado para
outros países. Outro ponto importante no depoimento do
Dr. Radu é quanto ao relacionamento médico-paciente, para
que a magia ocorra. Quando o primeiro sabe usar esse
vínculo para comprometer o doente, de corpo e alma, com
o tratamento e a cura, o milagre acontece. Por outro lado, a
fàlta de magia cria um espaço para a "fabricação" de todo tipo
de "milagres".

Síndrome do Milagre Fabricado

Na aridez da medicina atual, as pessoas estão sedentas de
milagres.
Esse é um grande filão para se vender jornais e revistas.
Pega-se um resultado de pesquisa, aqui ou ali, doura-se a
pílula, e as pessoas ficam embevecidas quando um novo
"milagre" é anunciado pela imprensa. Sem dúvida, a
tecnologia tem permitido avanços substanciais no
tratamento de várias doenças, porém a maior parte deles não
chega a se transformar cm produtos de consumo de massa,
por ser resultado de estudos experimentais, ou de drogas
lançadas com indicações específicas, ou, finalmente, por
tratar-se de histórias sem fundamento. Tudo isso é vendido,
na mídia, com alto grau de pirotecnia, como uma fórmula
milagrosa que resolverá os problemas de saúde de metade da
humanidade. Além do aspecto puramente ilusório desse
milagre fabricado, essas ondas de drogas e tratamentos
mágicos muitas vezes induzem os pacientes a utilizarem-
nos, sem qualquer critério, com conseqüências desastrosas
para sua saúde.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a endostatina,
substância que inibe a formação de novos vasos sangüíneos
e apresentou resultados no tratamento do câncer, com os
primeiros relatos feitos em janeiro de 1997. Contudo, as
pesquisas foram desenvolvidas em camundongos, cuja
reação às drogas, muitas vezes, é substancialmente diferente
da apresentada pelos seres humanos. Ninguém sabe, ainda, o
que ocorrerá se for utilizada nas pessoas, e sua atividade
biológica sugere bastante cautela até que seja aplicada como
droga anti-câncer. Mas, na semana seguinte à divulgação do
"milagre", centenas de pacientes queriam tomar endostatina,
a qualquer preço.
Ainda analisando a síndrome, quando a imprensa divulga
um tratamento alternativo, alguém aparece para alegar
efeitos milagrosos. Isso ocorreu com o confrei (Synphytum
officinale). Na década de 1980, várias reportagens
mostraram leigos dizendo que o uso interno da planta
prevenia doenças cardíacas e o envelhecimento. As
informações não eram baseadas em estudos científicos
sérios, nem havia referência ao seu uso prolongado, com
aquelas indicações. Muitos aderiram à novidade, de forma
indiscriminada, o que resultou em casos de hepatite tóxica,
cirrose e câncer do fígado. O confrei possui alcalóides
tóxicos em sua composição, e o que parecia uma singela
receita de chá de comadres, que melhorava os índices de
audiência da televisão, se transformou numa intoxicação cm
massa.
Este outro caso, muito triste, mostra como o milagre
fabricado pode ser destrutivo e fatal. Cecília Maria
Fernandes Fonseca me procurou para tratar de uma artrite,
cm duas articulações do pé, que não tinha respondido a
várias tentativas terapêuticas. A doença já havia sido
investigada por diferentes ortopedistas e reumatologistas,
sem diagnóstico. Como ela não melhorasse, foi encaminhada
ao meu consultório para um tratamento com acupuntura. Na
mesma época, apresentou um episódio de infecção urinária,
e, em seguida, uma diarréia aguda. Nos exames de
laboratório, uma redução da sua contagem de leucócitos
chamou-me a atenção, o que poucos médicos sabem é que a
artrite pode ser uma manifestação rara da AIDS. Como
trabalhei com doenças infecciosas durante muitos anos,
estava atualizado sobre as manifestações raras dessa terrível
doença. Solicitei exames para detectar o vírus HIV, que
foram positivos. Neste ínterim, a artrite de Cecília melhorara
de forma significativa, com a acupuntura, o que representou
um grande ganho em qualidade de vida. Por outro lado, dar
um diagnóstico de AIDS, nessa época, era o mesmo que uma
condenação à morte. Para comunicá-lo, fui muito cuidadoso.
Foram horas de conversa, e em alguns momentos chegamos
a chorar.
Era impossível ficar frio e indiferente a uma jovem de 23
anos que havia contraído o vírus com seu primeiro parceiro
sexual. Nesse período, a fiz vislumbrar a possibilidade de
vencer a doença. Mostrei-lhe um artigo comentando os
hábitos de pacientes que haviam sobrevivido por mais de 15
anos, com o vírus, sem complicações sérias. Todos tinham
em comum o fato de cuidarem bem da saúde, praticarem
meditação e serem tratados com medicina convencional e
alternativa. Isso fez com que Cecília ganhasse autoconfiança,
e assim começou um tratamento combinando AZT, plantas
medicinais, exercícios e acupuntura. Por meu estímulo, ela
começou a trabalhar como voluntária na ABLA, ONG criada
pelo sociólogo Betinho, para dar suporte a portadores de
imunodeficiência adquirida. Todas essas ações foram
importantes, apesar de seus exames de laboratório
demonstrarem uma imunidade bastante comprometida.
Cecília ficou muito bem por dois anos, mantendo o
tratamento. Não teve infecção oportunista, nem qualquer
outro problema Na época, argumentei que novas drogas
antivirais iriam surgir em pouco tempo. Efetivamente, no
período, surgiram o DDI e o DDC, mas ela tomou DDI por
pouco tempo. Enganada por uma falsa promessa, abandonou
os antivirais. Isso aconteceu porque, em 1992, apareceu um
indivíduo alardeando uma terapia cuja origem não estava
clara, chamada Unibiótica. A imprensa apadrinhou a
novidade, divulgando quase semanalmente seus pretensos
benefícios. No ano seguinte, Cecília foi convencida, por
alguns familiares, a submeter-se ao tal tratamento. Foi,
então, a uma reunião em que pessoas se apresentaram
dizendo terem se curado de AIDS com a terapia. Para fazê-
la, foi aconselhada a se internar numa "clínica" em
Petrópolis, por duas semanas. De início, teve que fazer um
jejum de dois dias, para, em seguida, ser induzida a uma
diarréia, com leite de magnésia. Tomava banhos de água e de
ar. Em duas semanas, perdera cerca de 17 quilos.
Contrastando com sua compleição anterior, normal, agora
parecia mesmo uma doente, e nunca mais foi a mesma. Um
mês depois, era internada com pneumonia. Em seguida, teve
uma toxoplasmose cerebral, e morreu após quatro meses.
Se existe alguém que pode "fazer chover", em medicina, esse
é o médico, como bem disse o Dr. Radu. É ele quem dispõe
das informações técnicas e da experiência para orientar o
paciente e conseguir os milagres. Para isso, tem que reunir
qualidades que, infelizmente, hoje, poucos têm: em
primeiro lugar, desejo real de ajudar o próximo; depois,
capacidade de valorizar o bom relacionamento com o
paciente, desenvolver um instinto especial para antecipar
situações e propor soluções criativas; e, ainda, ter abertura
para incorporar a sabedoria e as soluções simples oferecidas
por medicinas tradicionais.
Fabricar milagres e vendê-los sempre deu dinheiro. A
história da humanidade está cheia de exemplo disso. Mas,
para o paciente, o que interessa é aquele que resolva o seu
caso, que lhe dê mais qualidade de vida, combata a doença e
restaure sua saúde. Isso, na enorme maioria dos casos, não ê
oferecido pelo milagre fabricado que gera frustração e
repercussões negativas na vida das pessoas.

O Efeito Placebo

Uma grande parte dos milagres da medicina ocorre por
conta de um efeito que os médicos denominam "efeito
placebo", observado quando o paciente melhora ao receber
algum medicamento ou tratamento sem qualquer eficácia
biológica. Isso parece resultar da ativação de mecanismos de
cura do próprio organismo, devido a alguma mudança
interna da pessoa. O nome placebo vem do latim, piacere,
que significa "darei prazer" ou "servirei", e foi criado no
século XIX por médicos que queriam caracterizar
substâncias inócuas, administradas aos pacientes apenas para
agradá-los, sem qualquer pretensão de cura. Eles começaram
a perceber que, mesmo sem ter ação biológica, essas
substâncias muitas vezes resultavam em melhora objetiva.
Mais tarde, nos estudos científicos, compararam o efeito das
drogas com o de um placebo, para eliminar as variações
criadas por esse efeito. Hoje, qualquer medicamento, para
ser considerado válido pela ciência, tem que apresentar
resultados melhores que um placebo.
Henri Beecher, professor de anestesiologia da Universidade
de Harvard, interessou-se em estudar a fundo esse efeito e
mostrou que ele varia muito, de acordo com a fé do paciente
no tratamento, c, ainda, que ele é responsável, em média,
por 30% da potência de diferentes drogas, independente de
quais sejam e de qual doença está sendo tratada. Beecher
descobriu que alguns tratamentos interrompidos, por serem
comprovadamente ineficazes, tiveram resposta considerada
boa ou excelente, em 70% dos casos, devido à fé dos
pacientes. Os estudos do anestesiologista mostram, portanto,
que o efeito merece ser mais bem investigado, para que se
possa tirar melhor proveito de seu poder.
Por alguma razão ainda não completamente esclarecida,
grande parte dos médicos não gosta da idéia de induzi-lo.
Parecem desprezá-lo, procurando eliminá-lo de sua prática
corrente. O preconceito contra um recurso que traz
benefícios e não tem custos adicionais parece estranho.
Cabe discutir suas razões. Em geral, quando uni
medicamento ou tratamento novo é testado, ele passa por
um tipo de comparação com o placebo, para afastar a
possibilidade de sua ação resultar desse efeito. Com isso,
persiste a idéia de que ele não se constitui num
procedimento médico, mas, sim, numa farsa, destinada a
enganar o paciente. A outra razão do preconceito deriva do
fato de que o placebo é difícil de ser mensurado, com seus
resultados condicionados a fatores subjetivos de difícil
controle, relacionados à saúde mental, ao envolvimento no
tratamento e à capacidade de superação do paciente.
Esses fatores fazem do efeito placebo uma ovelha negra na
medicina. Houve pouco interesse em avaliar o quanto pode
melhorar a eficácia dos tratamentos, ou qual seu impacto nos
resultados da medicina caso fosse desenvolvida uma técnica
para potencializar o placebo. Não se ouve falar de médicos
que se orgulhem de terem criado um potente efeito placebo
para seus pacientes. Nem tampouco existem, na prática
corrente, estudos ou abordagens que sugiram uma
metodologia para ser aplicada na indução desse efeito.
O fato é que as informações existentes indicam que ele é um
instrumento de grande valia pela possibilidade de
potencializar, significativamente, o poder de qualquer
tratamento e, sozinho, de promover curas extraordinárias,
ou mesmo efeitos marcantes na fisiologia do corpo humano.
Marc Barasch e Caryle Hirshberg, em seu livro, relatam um
fato, bem documentado, de cura de um tumor maligno com
o uso de um placebo.
Antropólogos que estudaram os sistemas médico-religiosos
de tribos africanas e populações da Oceania relataram
alterações fisiológicas marcantes em indivíduos após terem
se submetido aos rituais de feitiçaria, tais como modificações
do ritmo cardíaco, da atividade psíquica, do tônus muscular,
do nível de resposta aos estímulos do meio ambiente e da
pressão arterial. Existem até relatos de morte, por parada
cardíaca, sem causa física ou doença aparente, após um
feitiço feito com o intuito de punir infrações graves às
tradições dessas sociedades. Isso mostra que o efeito placebo
pode não apenas curar, como também matar. O antropólogo
Claude Lévi-Strauss, no livro Antropologia estrutural, faz um
interessante estudo sobre o poder de indução de rituais de
feitiçaria cm alterações da fisiologia corporal. Além de
comentar os efeitos da magia dos xamãs sobre os indígenas,
mostra o profundo simbolismo dos rituais e das palavras
mágicas. Outro ponto interessante, levantado por ele, é que
o feitiço, para ser eficiente, está relacionado a três fatores: à
crença do enfeitiçado na mágica, à confiança do xamã em
sua técnica de produzir encantamentos e à perfeita inserção
do ritual no contexto cultural da comunidade onde vive o
paciente. Se fosse possível explorar a fundo o poder do
efeito placebo, adaptando as premissas propostas por Lévi-
Strauss, e associando-o às modernas técnicas da medicina, os
resultados dos diversos tratamentos, certamente,
apresentariam melhoras significativas.
Desprezar e não investigar a natureza do efeito placebo e um
erro estratégico da maior gravidade. Todos os sistemas
tradicionais de medicina, como já comentei, empregavam
várias técnicas para conseguir desencadeá-lo, porque, não
importando qual o método usado, os resultados eram sempre
bons, Não existe razão para que nosso sistema médico ignore
esse fato. Induzir o efeito placebo ainda traz uma vantagem:
a de melhorar a satisfação do paciente com o procedimento
terapêutico utilizado. Sempre que o médico o induz em
alguém, significa que ambos estão envolvidos por um forte
laço, de grande confiança. Com isso, o paciente se sente
mais seguro e satisfeito, mais tolerante com eventuais
frustrações.
É claro que as técnicas utilizadas pelos antigos xamãs e
feiticeiros não se adaptam ao nosso contexto cultural. Se o
médico disser palavras estranhas, dançar em torno do
paciente, ou colocar máscaras e fantasias representando os
espíritos curativos da natureza, vai parecer um doido varrido
e não vai impressionar paciente algum. Entretanto, existem
formas de se adaptar a magia à nossa realidade e simbolismo
cultural. É preciso apenas atualizá-la através de novas
técnicas e conhecimentos.

Atualizando a Magia: Novos Truques de cura

Alguns podem considerar a magia como uma característica
de sociedades atrasadas. E um engano. Ela vai ser sempre
atual, não importa quanto a tecnologia evoluir, pois
responde às necessidades humanas mais profundas, de busca
do significado da vida, tomando formas e expressões a partir
do inconsciente coletivo e dos signos culturais de cada povo.
As pessoas desejam e absorvem a tecnologia, sem dissociá-la
da magia. E esta é um recurso essencial no nosso cotidiano.
Não nos esqueçamos da bela frase do grande escritor
argentino Jorge Luis Borges: "No lo creo en las brujas, pero
que las hai, las hai." Sem a magia inventada por nós mesmos,
essa que nos consola e anima, essa que nos redime e cura,
que nos remete às nossas heranças culturais, certamente a
vida seria muito mais penosa.
Para atualizar sua linguagem, é preciso entender sua
essência, que é a transformação, seja da matéria ou da
realidade espaço-tempo. O efeito deriva do poder de induzir
essas transformações em situações em que parece impossível
que ocorram. Por exemplo, revertendo o processo de uma
doença considerada incurável. Encarando a magia como
agente de transformação, é possível entender como ela
transcende o efeito placebo. O fenômeno pode ser mais bem
compreendido no contexto da Teoria do Caos. A
complexidade do sistema caótico do universo implica em
mudanças inesperadas e improváveis no curso das coisas.
Combinando efeito placebo, drogas e tratamentos adequados
que reforcem o retorno à harmonia homeostática do
organismo, e contando com um pouco de sorte, a doença
pode evoluir, de forma inesperada, no sentido da cura,
gerando a percepção de uma transformação improvável.
Podemos conceber, portanto, a cada momento, ações mais
adaptadas às necessidades do paciente, para encaminhá-lo
nesse sentido, como propõe Antonio Damásio.
Outra forma de entender a transformação da magia, ainda no
contexto da ciência, é através da Teoria de Entropia e do
Conceito da Irreversibilidade. De acordo com a física, os
sistemas estão sempre migrando de situações de maior à
menor entropia. Isso significa que há uma tendência, em
qualquer sistema do nosso universo, de mudar
constantemente no sentido de se desorganizar. E isso que
torna o tempo irreversível, pois a energia necessária para
aumentar a entropia dos sistemas não está disponível. Um
exemplo claro do fenômeno é a imagem de um vidro se
quebrando. A energia para quebrar um vidro é imensamente
menor que a despendida para juntar seus pedacinhos e
reconstituí-lo. Contudo, os organismos biológicos desafiam
o fenômeno, e encontram formas de retardar ou mesmo
reverter a evolução de sistemas, de alta para baixa entropia.
Quando você sofre um corte na pele, por exemplo, e ela se
regenera, isso significa que a entropia do sistema foi
revertida.
Por outro lado, várias doenças se instalam porque a
capacidade do organismo de reverter a entropia é limitada.
Podemos tomar como exemplo a diabetes, que ocorre
quando as células do pâncreas são destruídas, e o paciente
não consegue mais produzir insulina. Ou seja, as doenças
podem se tornar crônicas ou fatais devido ao princípio da
irreversibilidade. Se o processo é revertido, mesmo quando
aparentemente improvável, há a impressão de que houve
um milagre. Considerando-se que os organismos biológicos
possuem uma tendência a lutar contra a redução da entropia,
ela pode acontecer quando um forte efeito biológico soma-
se a uma intervenção terapêutica eficiente.
A questão da irreversibilidade me remete a um caso que
acompanhei, de uma mulher jovem que apresentou uma
grave infecção local na cicatriz de uma cesariana. A bactéria
era um microorganismo hospitalar extremamente agressivo
e se disseminou com rapidez pelos tecidos e, apesar de uma
terapêutica antibiótica altamente potente, ela teve uma
extensa necrose da parede abdominal. Nesses casos, que são
terríveis, as vísceras ficam expostas, o que facilita a invasão
de novas bactérias, causando infecções reincidentes, que,
em geral, levam à morte. A única solução, no caso, era
conseguir, de alguma forma, reconstituir a parede
abdominal. Foi feita uma tentativa heróica, a seu pedido,
pois ela se dizia disposta a tudo para sobreviver e assim
cuidar do filho recém-nascido. A equipe médica estava
muito ligada a ela e, motivada, decidiu lutar ate o fim: o
cirurgião colocou uma tela sobre o abdômen e, sobre a tela,
implantes musculares e de pele, extraídos da coxa da
paciente. A área era grande e os implantes insufidentes para
cobrir a extensão necrosada. Quase ninguém acreditava que
ela conseguisse sobreviver. Como por uma "mágica", a
regeneração do implante foi rápida, cobrindo as partes da
tela que haviam ficado sem tecido, e a incidência de
infecção foi pequena. A pele reepitelizou o tecido granular
que havia surgido sobre a ferida, e a moça ficou boa. Bastou
um auxílio competente da equipe para que uma lesão
aparentemente irreversível fosse recuperada, desafiando,
dessa forma, o conceito da irreversibilidade. Deu-se, aí, a
mágica: motivados pelo desesperado desejo de viver da
paciente, os médicos acionaram sua capacidade de produzir
milagre, e ele aconteceu.
Alguns médicos, efetivamente, têm fama de magos, pois, na
percepção das pessoas, conseguem resultados melhores que
os de seus colegas. Eles têm um instinto especial para dizer a
palavra certa no momento exato, ou de instituir o
tratamento correto, obtendo tuna qualidade de resultados
significativamente superior a de outros profissionais. No Rio
de Janeiro, clinicou, por várias décadas, até abril de 2001,
quando faleceu, aos 91 anos de idade, o Dr. Orlando Mollica,
homeopata que tinha fama de milagreiro. Seu consultório
vivia cheio de fiéis pacientes que alardeavam aos quatro
ventos suas qualidades. Diziam que era médium não
precisava de muita conversa para saber de que mal sofria o
doente, e quais os remédios que deveria tomar. Certa vez,
inquirido por uma paciente sobre essa sua pretensa
faculdade, respondeu simplesmente: "Não sou médium não,
minha filha, o pessoal é que cria coisas, só procuro lazer o
melhor."
Médicos como o Dr. Mollica devem ter algum segredo, que
não sabemos, que poderia explicar tanta eficiência. Esse
fenômeno foi estudado por dois pesquisadores americanos,
Richard Blander e John Grinder. No livro A Estrutura da
Magia, o primeiro afirma que parte da capacidade de
conseguir resultados extraordinários depende da
comunicação entre terapeutas e pacientes. Partindo da
análise da capacidade do aparato sensório-neural de cada
pessoa, e da estrutura da linguagem, ele propõe uma série de
técnicas para tornar eficiente essa relação. Inicialmente
criada com o intuito de auxiliar psicoterapeutas, a técnica da
programação neurolinguística, desenvolvida por Blander e
Grinder, foi utilizada para diversos fins, da melhora da
performance de executivos ao maior sucesso de vendas, com
bons resultados. Isso torna a medicina, com certeza, um
campo potencialmente promissor para a aplicação da PNL.
Infelizmente, no Brasil, a técnica tem sido usada de forma
pouco profissional, e vendida como panacéia em livros de
auto-ajuda. Com isso, sua imagem ficou desgastada,
afastando-a, mais ainda, do meio médico. Mesmo assim,
vários colegas a têm incorporado ao seu arsenal terapêutico,
e reportam excelentes resultados. O maior exemplo, entre
nós, é o do Dr. Nelson Spritzer, cardiologista da UFRGS, em
Porto Alegre, que foi discípulo de Blander, e estuda e aplica
a PNL há muitos anos. Empregando-a no tratamento da
hipertensão arterial, Spritzer obteve resultados
estatisticamente significativos em relação aos casos de
pacientes tratados apenas com drogas no ambulatório de
hipertensão do Hospital Universitário.

Os instrumentos de Magia

Para que a magia seja reintroduzida na medicina, é preciso
que o profissional domine alguns "instrumentos", ou seja, os
recursos a serem utilizados para motivar o paciente nesse
processo de transformação que o conduzirá ao equilíbrio
psíquico e homeostático. É preciso muita atenção nesse
processo, para que se possa obter o efeito placebo mais
intenso possível. Essa é a opinião da Dra. Denise Bem David,
que trabalha como coordenadora de pesquisas da Aventis,
multinacional da indústria farmacêutica. Ela familiarizou-se
há anos com a PNL, sendo umas das pioneiras na sua
aplicação médica, e garante que utilizando a técnica e outras
abordagens não-convencionais, na indução de estados
psíquicos e fisiológicos que facilitem a cura, pode-se obter
melhores resultados que os promovidos pela abordagem
convencional. Para atingir esse objetivo, ela garante, "é
preciso construir uma excelente relação com o paciente,
conquistando sua confiança, e essa comunicação pode ser
melhorada com a introdução da PNI".
Os "instrumentos de magia" identificados em minhas
pesquisas são o elo mágico, a varinha de condão, o ritual da
cura, a palavra e a poção mágicas, a expulsão do mal e o
feitiço curativo. Vejamos o papel de cada um.
O Elo Mágico

A questão básica para que se opere a transformação desejada
pelos pacientes, como vimos, é sua boa relação com o
médico. Portanto, quanto maior o aprofundamento do
vínculo entre ambos, maior será o poder de transmutação da
doença em cura. Nesse contexto, o elo pode ser definido
como essa relação que permite ao paciente entregar sua vida
e sua saúde nas mãos do médico. Isso permitirá o emprego
da combinação de uma terapêutica eficaz com um potente
efeito placebo. Investir nesse ponto é fundamental para que
outros instrumentos de magia possam sei' aplicados.
Na medicina, existe um fator chamado "adesão ao
tratamento", significando a aquiescência do paciente à
prescrição. Num estudo feito por Sackett, professor de
epidemiologia na McMaster University, EUA, em 1976,
chegou-se à conclusão de que 50% das pessoas não a
seguem. Mas essa pesquisa foi baseada em auto-relatórios,
onde é possível que elas superestimem seu grau de adesão.
Num outro estudo, com critérios mais rígidos, realizado por
Boyd descrito no livro de James Gordon a estimativa foi de
que apenas 22% delas seguem à risca a prescrição médica.
Podemos deduzir disso que mais da metade dos pacientes
não faz o que os médicos mandam. Um ponto fundamental
para que um tratamento funcione é que os pacientes sigam à
risca o que lhes for solicitado fazer. É isso, sem dúvida,
depende unicamente do elo mágico. É preciso lembrar que
uma prescrição significa não apenas o uso de uma droga,
como também de mudanças na dieta e nos hábitos de vida e
essa é a parte que, normalmente, exige grande esforço
pessoal.
Estabelecer esse elo não é tarefa fácil. Atualmente, os
pacientes se apresentam nos consultórios com um pé na
frente e o restante do organismo atrás. Com toda a razão,
estão desconfiados, temerosos. Como confiar plenamente
em alguém que atende rápido, não examina e não tem uma
visão global do indivíduo? Como confiar em profissionais
que não escutam a história do paciente, desinteressados dos
aspectos subjetivos da questão? Essas barreiras precisam ser
vencidas até que se estabeleça o elo mágico, e isso exige
tempo, paciência e estratégia. O primeiro passo é dispor de
tempo e sensibilidade para ouvir o que o paciente tem a
dizer e discutir seus problemas à exaustão. Na minha
opinião, se o médico tenta vê-lo de forma global, holística,
conhece um pouco de medicina alternativa, tem
conhecimentos de psicologia e faz um bom exame físico,
está apto a estabelecer o elo mágico.
A programação neurolingüística possui uma estratégia
interessante para individualizar a abordagem e facilitar o
estabelecimento de um laço terapêutico eficiente. Segundo a
PNL, a forma como as pessoas percebem o mundo, e
decodificam a linguagem, depende do seu aparelho sensório-
neural. Baseando-se nessa idéia, elas são divididas em três
grupos: os visuais, os auditivos e os somestésicos. O
primeiro, que engloba a grande maioria, tem como canal
sensitivo dominante a percepção visual; o segundo, o
ouvido; e, finalmente, o terceiro a minoria da população -, a
percepção tátil e gustativa. Esses canais funcionam como
base referencial, tanto para os aspectos já vividos - a
memória -, como para a relação com o meio, ou seja, a
vivência do momento. Portanto, para a PNL, se o medico
adaptar sua linguagem a essas características do paciente,
estabelecerá uma comunicação mais eficiente e profunda
com ele.
Se este tem o canal sensorial visual predominante, vai
compreender melhor o médico que use uma linguagem do
tipo: "Veja bem, fulano, essa inflamação é assim, os glóbulos
brancos soltam substâncias que funcionam como cartazes,
onde existem mensagens escritas convocando mais glóbulos
brancos. Logo, forma-se um aglomerado de glóbulos
brancos, como uma multidão numa praça, que é a
inflamação em si. Você visualiza o que expliquei?" Todas as
expressões sublinhadas invocam imagens.
Quando o paciente é um auditivo predominante, vai
entender melhor se ouvir: "Escute bem, fulano, essa
inflamação é assim: os glóbulos brancos soltam substâncias
que funcionam como um chamado, convocando mais
glóbulos brancos; logo se forma um aglomerado de glóbulos
brancos, como uma multidão gritando inflamação! Você
pode entender o que eu estou dizendo?" Todas as expressões
sublinhadas são "auditivas", ou seja, o canal de reconstrução
da vivência invoca um som.
Por fim, se o canal sensorial predominante do paciente for o
somestésico, a explicação ficaria melhor com o seguinte
formato: "Sente como funciona uma inflamação, fulano. Os
glóbulos brancos soltam substâncias que sensibilizam outros
glóbulos brancos, Logo se juntam muitos glóbulos brancos,
formando um aglomerado. Essa multidão pulsante de
glóbulos brancos é a inflamação. Você consegue perceber
como isso acontece?" As expressões marcadas são
"somestésicas", com canal de reconstrução da vivência
invocando sensações corporais.
A essas expressões a PNL chama de "predicados". E preciso
estar atento a eles para que seja possível identificar a
predominância sensorial do paciente. A descrição que este
fizer de seu mal, de sua vida afetiva, de suas idéias sobre o
tratamento, ou seja, qualquer construção mental poderá
apontar para seu canal dominante. Outra forma de
identificá-los, segundo a PNI, é através dos seus
movimentos de olhos: se os volta para cima durante a
construção de imagens, seu canal é visual; se os direciona
para os lados é auditivo; para baixo, é somestésico. O
emprego dessa estratégia favorece a afinidade de linguagem
entre médico e paciente, e este se sentirá compreendido, já
que seu interlocutor decodifica, com facilidade, o que lhe é
dito.
A Dra. Gladys Taylor McGarey, em O médico que existe em
um de nós, afirma que, num processo de cura, é essencial
despertar o médico que existe dentro de cada pessoa.
Quando um novo paciente a procura, ensina-o a entrar em
contato com seu lado saudável aquele que tem potencial de
reverter sua doença. Ela mostra ser este o primeiro passo
para que cada um entre em contato com seu médico
interior. À medida que o médico interior do doente ganha
força, torna-se um forte aliado do terapeuta, ajudando-o a
promover grandes modificações na doença, favorecendo a
indução de estados fisiológicos que produzem sua melhora
ou cura. Apelando para esse recurso, a Dra. Gladys consegue
reduzir a pressão de hipertensos, obter remissão de
pacientes portadores de doenças do colágeno e até a
regressão de tumores malignos. São os instrumentos de
magia induzindo às transformações. A estratégia da Dra.
McGarey se encaixa também no conceito de "feitiço
curativo".

A Varinha de Condão

Relaciona-se com o mito do toque transformador. Trata-se
das situações nas quais a intervenção física direta é
fundamental para a ocorrência de fatos que determinarão a
cura, seja na esfera da realidade ou da fantasia do paciente ou
em ambas. Por exemplo, está na mão do cirurgião encontrar
o caminho mágico para extirpar o tumor, ou o abscesso, sem
lesar as estruturas sadias. A cirurgia é um aspecto importante
do toque mágico. Em termos de metodologia, ela tem
características específicas, que a diferenciam de uma outra,
assim como não existem pacientes com anatomias
exatamente iguais. Isso torna o tratamento cirúrgico uma
abordagem altamente individualizada. Como procedimento
invasivo, é muito mais passível de complicações sérias e de
mortalidade, o que ameaça os pacientes, torna-os regredidos,
temerosos. Mas, quando há o vínculo mágico com o
cirurgião — e cada um está consciente da sua importância
para o sucesso do tratamento -, podem ocorrer resultados
inexplicavelmente melhores que os esperados. É o
profissional que consegue realizar com sucesso uma cirurgia
extremamente difícil e o paciente que se recupera de forma
surpreendente.
Um ponto fundamental do contato entre eles é o exame
físico. Quando o médico examina alguém com atenção, o
toque mágico começa a ser acionado: ele deve, sempre,
palpar cuidadosamente a região acometida, percuti-la, sentir
sua temperatura enfim, lazer uma semiologia bastante
minuciosa no local, locar a pessoa durante o exame não só se
constitui num bom efeito placebo como também pode
desencadear algum tipo de reação bioeletromagnética que
auxilia o processo de cura. A cura pelo toque ou a
interposição das mãos é relatada e praticada em diversos
ambientes culturais, como em sistemas médicos da Ásia,
Oceania, África, e em várias tribos indígenas das Américas.
Os médicos e pesquisadores Bernard Grad, da Universidade
de Montreal, e John Zimmerman, da Universidade do
Colorado, estudaram o fenômeno de cura através das mãos,
e mostraram que, efetivamente, elas induzem um efeito
biológico mensurável quando associado à presença de
campos magnéticos fracos. Voltando a lembrar a
propriedade do ditado "A voz do povo é a voz de Deus",
reforço a idéia de que, quando existe uma técnica de
tratamento comum a culturas geograficamente distantes e de
origens diferentes, a chance de ser eficiente ou de ter
fundamento é tão grande quanto a de uma droga testada
num estudo multicêntrico. A explicação da influencia
terapêutica das mãos através de campos eletromagnéticos é
considerada pouco convincente pela maioria dos médicos,
mas isso não significa, necessariamente, que seja
cientificamente impossível.
Tive a oportunidade de presenciar uma sessão de um
tradicional tratamento chinês feito com as mãos, o Qi Gong,
quando estudei na China. Foi uma experiência
impressionante, pois um mestre nessa técnica fez as pernas
de um paraplégico se moverem apenas com a interposição
de suas mãos. Sabe-se que uma pessoa nessas condições não
pode fazer isso espontaneamente, e se nos basearmos no
conhecimento médico atual, o que aconteceu foi pura
magia, sem explicação. Quando conto o episódio aos meus
colegas, a maioria deles faz comentários céticos, acreditando
que houve um truque que não pude perceber.
Existem outras maneiras de o médico conferir poder mágico
às suas mãos, além de empregá-las em técnicas como a
cirurgia, ou no toque direto na pele do paciente. Pelo menos
duas preenchem essas características: a acupuntura, que
envolve a inserção das agulhas em locais muito específicos,
e resulta, muitas vezes, em alívio imediato dos sintomas do
paciente que muito o impressiona e, a outra, as escolas de
manipulação articular, como a osteopatia e a quiroprática.
Veja o relato de uma experiência de aplicação dessas
técnicas vivida por mim, e que resultou em verdadeira
mágica, como foi interpretada por quem a assistiu.
Este fato ocorreu em Caraíva, aldeia ao sul do estado da
Bahia, há aproximadamente oito anos. Nessa época, o
povoado era isolado, com acesso apenas por barco, ou a pé.
Sempre que viajo para lugares ermos, levo agulhas de
acupuntura, úteis numa emergência, e estava com meu
estojo. Hospedei-me numa pousada perto da foz do rio
Caraíva que contorna o povoado e desemboca mais ao norte.
Este é o primeiro local por onde passam as pessoas que vêm
a pé de Arraial da Ajuda, a 40km ao norte. Já passavam das
11 horas da noite, eu me preparava para dormir, quando
ouvimos batidas à porta. De início, os hóspedes
confundiram os sons com os da chuva, mas uma voz gritou
por ajuda, e os donos da pousada, com mais algumas pessoas,
foram ver do que se tratava. Ao abrirem a porta vimos um
rapaz, que parecia ter cerca de 20 anos quase desfalecido,
amparado por uma moça: o colocamos sobre um tipo de
espreguiçadeira. Ele ardia em febre. Não havia termômetro,
mas a temperatura devia estar próxima de 40 graus. A jovem
contou, então, que tinham resolvido vir caminhando do
Arraial da Ajuda, e que, no meio do caminho, seu namorado
começara a se sentir mal, com calafrios. Mas decidiram
chegar a Caraíva. O rapaz, cada vez mais febril, fez um
esforço extremo para caminhar, na chuva, até o povoado.
Quando o examinei, sua pulsação estava em 120 batimentos
por minuto, e a freqüência respiratória era de 30 incursões
por minuto. Estava delirando, devido à febre e ao cansaço.
Como não havia medicamentos na pousada, peguei minhas
agulhas de acupuntura e as utilizei nos pontos indicados para
febre alta em condição infecciosa aguda. Fiquei
acompanhando sua reação, e estimulei as agulhas
manualmente, em movimentos de redução, como manda a
tradição da medicina chinesa, para reduzir a febre. E
incomum fazer esses estímulos em pacientes ocidentais, por
causarem muita dor. Mas a gravidade da situação e a falta de
recursos, naquele momento, não me deixavam outra opção.
Cerca de uma hora depois, o rapaz começou a ter sudorese e
a febre baixou. Fui dormir e deixei-o sob a guarda de sua
namorada. No dia seguinte, qual foi minha surpresa em vê-lo
completamente recuperado, tomando café da manhã.
Daquele quadro todo, só restara um pouco de fadiga e de
dores musculares.
Fiquei com fama de mágico. Alguns anos depois, encontrei
o moço em Belo Horizonte. Não me lembrava mais dele,
mas fui imediatamente reconhecido: ele veio falar comigo,
ainda agradecido por minha ajuda naquela noite.

O Ritual de Cura

Ele induz, no paciente, a percepção subjetiva de que alguma
coisa está se transformando dentro dele, e que vai provocar
uma melhora ou a cura de sua patologia. Todo trabalho
médico, seja durante uma consulta, um tratamento, ou uma
cirurgia, pode ser vivenciado pelo paciente como um ritual
de cura. Quando isso ocorre, há uma potencialização muito
positiva do efeito placebo. Por isso, é recomendável que o
médico trabalhe sempre de forma seria e compenetrada,
conferindo um aspecto ritualístico às suas funções. Alguns
pacientes demandam por um ritual mais elaborado, para
terem a sensação da transformação despertada em seu
inconsciente. Nesses casos, podem verbalizar o desejo, por
exemplo, de freqüentar sessões espíritas de cura, ou
questionam o médico sobre sua opinião a respeito de outros
rituais. Alguns destes, mais elaborados, podem ser feitos
dentro ou fora do consultório, dependendo da especialidade
do médico e das exigências do paciente. Por exemplo, se o
primeiro domina técnicas de hipnotismo, um transe
hipnótico pode ajudar a deflagrar, no segundo, uma
percepção modificada, na qual o ritual de cura ocorra.
Porém, o mais comum é que este aconteça fora do
consultório. Nesses casos, o paciente pede a aprovação do
médico, ou o informa sobre o ritual que gostaria de agregar
ao tratamento. O profissional deve estimulá-lo nesse sentido,
ressaltando a grande ajuda que o recurso poderá trazer,
estabelecendo relações entre este e as eventuais melhoras
clínicas. Freqüentemente, o paciente procura por atividades
religiosas, como as missas, por exemplo, ou se submete a
sessões espíritas de cura. Tudo isso pode ser aprovado por
seu médico, porque se tornará potente indutor do efeito
placebo. Caryle Hirshberg e Marc Barasch descrevem vários
casos de curas espontâneas, de câncer, relacionados a rituais
religiosos e relatados como "milagres". Concluem eles, em
seu livro, que um dos aspectos comuns entre pacientes que
se curaram de câncer, de forma inexplicável, é o forte
vínculo social e emocional com outros seres humanos,
associados a rituais de cura. Entre os casos relatados, está o
de Daniel, que fez hipnose e participou de experiências de
"renascimento espiritual"; também o de Rocky, que fez
programas de visualizações duas vezes ao dia; de Ian Gawler,
operada espiritualmente por médiuns das Filipinas; e o de
Guo Ling, que se submeteu a sessões de acupuntura e Qi
Gong.
O próprio médico pode sugerir um ritual de cura a seu
paciente, se perceber que existe uma abertura para isso e se
este é portador de uma condição grave e incurável que
justifique essa tentativa. Nesses casos, o ideal é que converse
longamente com ele, para poder lhe indicar um ritual
compatível com seus interesses e crenças. Se a pessoa for
religiosa, poderá ser estimulada a freqüentar missas, por
exemplo; se gostar de música, a ir a concertos que sejam
marcantes. Pode-se sugerir muitas outras coisas simbólicas e
positivas para ela. Certa vez, indiquei a um paciente com
câncer de pulmão que quando acordasse pela manhã
repetisse em voz alta que estava expelindo o tumor a cada
vez que expectorava. Quando acabava de tossir, ele
concluía: "Estou cada dia melhor" sempre seguindo à risca
minha orientação. O fato é que, apesar de ser portador de
um tipo histológico com mau prognóstico, o tumor
estacionou durante o tempo em que acompanhei o caso.
Mais tarde, esse paciente viajou para fora do Brasil, e não
mais tive notícias dele.
Cada um pode criar seu ritual. Às vezes, isso acontece
espontaneamente, e o médico apenas deve aprovar e
estimular. Uma pessoa portadora de artrite reumatóide, que
acompanhei, sentiu uma melhora significativa depois que
começou a fazer, toda manhã, um ritual de colocação de
ímãs e de lama medicinal. É possível que houvesse alguma
ação do emplastro, ou dos ímãs, mas não a ponto de
justificar a grande melhora experimentada por ela, já que
essa doença não se resume a um problema local, mas está
relacionada a uma disfunção do sistema imunológico.
Para que o médico possa chegar a um ritual individualizado,
é importante tentar descobrir qual a simbologia da doença
nos contextos sensoriais do paciente, usando, para isso, as
técnicas de PNL, e fornecendo elementos para que ele
próprio estruture um ritual eficiente. Se a pessoa é
predominantemente visual, o médico poderá lhe sugerir que
dê uma "forma" ao seu mal, e, em seguida, perguntar o que,
em sua fantasia, poderia destruí-la. Imaginemos que seja
descrita como um "animal repugnante". O médico, então,
pedirá mais detalhes sobre essa imagem, para que a
visualização seja a melhor possível. Perguntará sobre a cor
do animal, se sua boca é grande, se tem dentes, quantas
cabeças tem, se é peludo ou tem escamas, quantas patas tem
etc. Em seguida, questionará o paciente sobre como fazer
para se livrar do bicho. No início, o paciente talvez se sinta
impotente para fazê-lo e, nesse caso, o profissional poderá
sugerir que vá "apagando" o animal, como se tivesse uma
borracha gigante. À medida que a pessoa ganhar confiança,
ela própria chegará ao seu ritual de cura, visualizando, por
exemplo, o animal sendo queimado. Estimulada, poderá
desenhar o bicho e queimar o papel, jogando as cinzas no
lixo. Dessa forma, estará estabelecido um forte ritual de cura.
Ainda utilizando a PNL para estruturar um ritual terapêutico,
vamos imaginar um indivíduo puramente auditivo. O
médico pedirá a ele que construa sua percepção da doença.
Considerando que também a descreva como um "animal
repugnante", poderá perguntar que sons emite, com os de
que animal se parecem. Se a resposta for, por exemplo, uma
combinação do rugido do leão com o silvar de uma serpente,
o médico poderá lhe pedir que explique melhor o ruído, se é
contínuo ou ritmado, longo ou curto, se tem mais sons
agudos ou graves. Ao ser perguntado como poderá se livrar
desse som terrível, e o paciente sentir-se impotente, este
deverá ser orientado a imaginar-se sentado à frente de um
amplificador e ir diminuindo os sons agudos até eliminá-los;
em seguida, os médios e os graves. Depois de algumas
tentativas, ele "descobrirá" um meio de se livrar
inteiramente do som — imaginará, por exemplo, que está
enchendo a boca do bicho de isolante acústico. Poderá
imitar o som do bicho e, ao reproduzi-lo, ir abaixando o
volume, progressivamente. Em seguida, nesse jogo de faz-
de-conta, retirará a fita do gravador, a colocará numa caixa
de isopor e a jogará fora, livrando-se, para sempre, do som e
do animal.
Já o paciente somestésico, caso simbolize sua doença como
um "animal repugnante", será ajudado na construção
sensitiva desse animal. Podemos perguntar se ele é frio ou
quente, se sua pele é áspera ou lisa, seca ou úmida, se é
pesado ou leve, qual seu sabor, se e grande ou pequeno, se
seus movimentos são rápidos ou lentos. Se a pessoa se sentir
impotente para criar um ritual de eliminação do bicho,
poderemos sugerir, por exemplo, que o imagine sendo
triturado num moedor de carne. Se o paciente se sentir
desconfortável com essa imagem sangrenta e desagradável,
sugerimos que "congele" o bicho, e depois o submeta à
moagem. Este jogo poderá se transformar num ritual de
cura. Uma solução que funciona, para somestésicos, é pedir
que comprem uma massa de modelar e que, todos os dias,
modelem, de olhos fechados, as formas que imaginam serem
do animal. Quando esta é atingida, pode ser colocada no
congelador, para então ser mo ida a marteladas.

A Palavra Mágica

A capacidade de muitos médicos para conseguir resultados
significativamente melhores que os de outros está também
no fato de estabelecerem uma comunicação altamente
eficiente com seus pacientes, induzindo-os a uma atitude
positiva diante da doença, e promovendo boa adesão ao
tratamento. Essa comunicação relaciona-se com a "palavra
mágica", e se, através dela, o médico conseguir influenciá-
los para que adotem hábitos saudáveis, estará provocando
uma mudança de grande efeito positivo em suas vidas,
contribuindo para prevenir possíveis complicações de saúde.
Há quem já tenha esse dom. Mas há também como
consegui-lo. Primeiramente, o discurso do médico deve ser
otimista e sempre no sentido de indicar caminhos ou
soluções aceitáveis para o paciente, independentemente da
gravidade da situação. Depois, é preciso estabelecer tuna
linha de contato com ele, mesmo que, em algumas
situações, isso possa parecer impossível e absurdo. Se o
doente está em coma, seja um bebê ou um autista, o canal de
comunicação, pela palavra, deve ser utilizado durante a
atividade clínica. Outra questão importante para se chegar à
palavra mágica é ajustar a linguagem à realidade do paciente,
respeitando seu contexto cultural e simbólico, para que tudo
possa ser plenamente compreendido, e isso possa atuar
positivamente no tratamento.
A estratégia da PNL, de identificar o canal sensorial
predominante de cada pessoa, para adequar a linguagem a
ser adotada, favorece, certamente, essa comunicação. Com
isso, pode-se usar palavras que produzam grande impacto, e
que induzam respostas psíquicas intensas. Essa não é a única
das suas armas para tornar a comunicação mais dinâmica.
Há, ainda, a questão da descoberta dos significados ocultos
na linguagem do paciente, que podem ser trabalhados com
as chamadas perguntas inteligentes. A estratégia é identificar
problemas de percepção da realidade, expressos
indiretamente por ele, e, ao mesmo tempo, dissecar sua área
afetiva, para reavaliar sua realidade.
Para ela, são três as formas principais de percepção incorreta
da realidade: a distorção, a eliminação e a generalização. A
primeira resulta de uma apreciação alterada da realidade e
corresponde ao dilema clássico da física quântica segundo o
qual a simples presença do observador modifica a essência
do que está sendo observado. A eliminação decorre da
exclusão de alternativas de atuação entre os "modelos de
relação" — expressão da PNL que significa a forma como as
pessoas apreendem e utilizam as informações para se
relacionarem com o meio. A generalização, por sua vez,
consiste na atribuição de qualidades à realidade observada,
através da incorporação do que foi apreendido de outras
situações, que o observador acredita semelhantes.
O médico deve ter uma boa noção de psicologia para
entender os conflitos dos pacientes e interpretá-los. Com
isso, poderá opinar sobre questões pessoais ou familiares que
não necessitem do acompanhamento de um psicoterapeuta.
Muitas vezes, uma boa conversa ajuda a resolver questões
relacionadas a culpas, numa briga conjugai, ou à sensação de
rejeição gerada pela perda de um emprego. Quando o
médico é um pediatra, tem que dizer duas palavras mágicas,
uma para a criança e a outra para a mãe. Isso também
implica num bom conhecimento dos aspectos psicológicos
da relação mãe-filho. Se é obstetra, precisa estar
familiarizado com os medos e angústias que freqüentemente
acometem as gestantes, além de tentar compreender as
modificações que o novo componente trará ao
relacionamento dos pais.
Na minha experiência, a incorporação da medicina
tradicional à prática médica potencializa a capacidade de
comunicação entre profissional e paciente, porque valoriza a
subjetividade e a linguagem coloquial dos leigos ao
descreverem sensações que acreditam decorrentes do seu
mal. Interessando-se, cada vez mais, por detalhes subjetivos,
o médico faz com que seus pacientes sintam sua
comunicação mais valorizada. Isso tudo favorece a
ocorrência da "palavra mágica".

A Poção Mágica

A poção mágica refere-se ao simbólico poder curativo das
drogas e está intimamente ligada ao que a medicina chama
de efeito placebo dos medicamentos. Quando o paciente os
ingere, tem a sensação positiva de estar em tratamento, o
que desencadeia mecanismos fisiológicos de cura, e ele
poderá efetivamente melhorar. Quando uma droga é
prescrita, o médico deve explicar muito bem sua indicação.
Quanto mais clara, maior será, para a pessoa, a impressão de
que o medicamento está agindo e maior o efeito placebo.
Outros pontos contribuem para que a prescrição tenha a
função de poção mágica. Se o ritual da consulta fizer com
que a pessoa se sinta bem cuidada, auxiliará o resultado da
prescrição.
A poção mágica relaciona-se, também, com uma habilidade
especial para prescrever e combinar drogas e tratamentos de
maneira a obter um efeito maior que o comumente
esperado. Quando a ação de um medicamento eficaz e
adequadamente prescrito é combinada a um poderoso efeito
placebo, resulta na poção milagrosa. Mas a medicina, como
está estruturada, oferece obstáculos para que o médico
aprenda a combinar drogas e a individualizar prescrições. Os
medicamentos são indicados para as doenças e não para as
pessoas, e a descoberta de interações tóxicas entre drogas
sintéticas trouxe muita cautela às prescrições. Com isso, o
profissional se sente temeroso de associar drogas.
Aqui, novamente, as medicinas tradicionais despontam
como excelente opção para a criação dessas poções. Tanto a
homeopatia como várias outras terapias que utilizam plantas
medicinais associam-nas a outros medicamentos de origem
natural. O médico que domina esses procedimentos ganha a
capacidade adicional de formular medicamentos específicos
para seus pacientes que, por sua vez, valorizando esses
recursos, tornam o efeito placebo mais poderoso. A
medicina ortomolecular tem desenvolvido uma estratégia de
combinação de vitaminas minerais e aminoácidos que
permite individualizar a prescrição. Incorporando, à minha
prática, conhecimentos de formulação da medicina
tradicional chinesa, vejo que eles contribuem para uma
melhora significativa da qualidade do meu trabalho, e para os
resultados que consigo. É o que vou mostrar no caso a
seguir, no qual o efeito "poção mágica" foi evidente e ajudou
um paciente com doença potencialmente séria e sem
perspectiva de solução.
O Sr. Heitor Lobo chegou ao meu consultório com um
quadro de diabetes, hipertensão e colesterol alto, e, em
conseqüência disso, uma doença isquêmica do coração. Não
acreditava em plantas medicinais e veio quase obrigado pela
filha. Portanto, de início, o efeito placebo não poderia
acontecer. Foi necessária uma ação efetiva do medicamento
para que o "elo mágico" pudesse ser desenvolvido entre nós,
e, com isso, uma ação mais profunda de transformação. Há
cinco anos ele vinha sofrendo de angina do peito. Fora
tratado, inicialmente, com medicamentos por seu
cardiologista. Mas, após alguns meses, voltou a sofrer dor, e
lhe foi indicada uma cineangiocoronariografia, no Instituto
do Coração, em São Paulo. O exame revelou algumas
obstruções nos principais vasos do coração, nenhuma que
justificasse uma ponte de safena. Foi feita, então, uma
angioplastia, procedimento no qual é passado um cateter
(com um balãozinho inflado, na ponta) na região da
obstrução, para dilatá-la e, assim, melhorar a passagem de
sangue. O Sr. Heitor melhorou, mas cerca de um ano e meio
depois voltou a sentir dor no peito, ao fazer maior esforço.
Com sintomas mais intensos, voltou a São Paulo, para nova
coronariografia. Apareceram novas lesões, mas com
obstrução ainda menos significativa que da primeira vez.
Nova angioplastia foi feita e as dores melhoraram. Contudo,
seis meses depois, a angina voltou, progredindo de forma
muito rápida.
De volta a São Paulo, para nova coronariografia, o exame
não revelou nenhuma obstrução em vaso grande do coração.
Os pequenos, até onde podiam ser vistos, estavam
irregulares, e a parede anterior do órgão, com uma contração
fraca, sugeria falta de sangue. O diagnóstico foi de doença
dos pequenos vasos do coração, um tipo de arteriosclerose
que ocorre em diabéticos, não tem tratamento e tem um
curso muito ruim. Em geral, pacientes com disfunção do
miocárdio, portadores dessa doença, têm uma média de 18
meses de sobrevida. Aceitei traçar dele, explicando, na
primeira consulta, que seu caso era avançado, e que seria
difícil obter um resultado significativo. Prescrevi três
medicamentos diferentes: uma reposição de cromo, pois
esse oligoelemento é um co-fator da insulina e sua
deficiência pode explicar um diabetes de difícil controle —;
uma fórmula tradicional da medicina chinesa, com oito
plantas; e uma outra criada por mim, juntando
conhecimentos de farmacologia de plantas com espécies
indicadas pela medicina popular no tratamento de angina de
peito. Com um mês de tratamento, os episódios diminuíram
muito e o paciente mostrava-se menos cansado, podendo
caminhar diariamente. Após três meses, eles haviam
sumido. Quando fez sua avaliação cardiológica anual, em São
Paulo, o paciente surpreendeu seus médicos: no
eletrocardiograma, tinham desaparecido as alterações de
repolarização e, na avaliação feita pelo ecocardiograma, a
parede anterior do coração voltara a contrair-se
normalmente. Com isso, o Sr. Heitor se entusiasmou com o
tratamento e não deixou mais de tomar suas plantas
medicinais, ou seja, suas "poções mágicas". Assim, pude
aprofundar a relação com ele, auxiliando-o também quanto à
sua vida pessoal conselhos seguidos à risca. Seu estado
evoluiu de forma admirável: seu colesterol e sua diabetes
estão, hoje, bem controlados, a função cardíaca, normal, e
há evidências de que a obstrução das artérias coronárias
regrediu. Enfim, ele está livre dos sintomas que o abatiam
por ocasião de sua primeira consulta, há cinco anos.
Nesse caso, uma doença de evolução extremamente mim
sem alternativa cirúrgica para a correção da falta de irrigação
do coração — foi revertida com uma "poção mágica".
Combinando plantas com atividades de dilatar as artérias e
melhorar o metabolismo das células musculares do órgão, e
ainda de combater o acúmulo de colesterol nos vasos, além
da prescrição do cromo, que melhora o diabetes, conseguiu-
se algo considerado improvável. A equipe médica que
acompanha o paciente, no Instituto do Coração, ficou
surpresa com sua melhora clínica e com o desaparecimento
dos sintomas da angina.
O conhecimento de medicina tradicional me permite
desenvolver mais um aspecto da "poção mágica": sempre
individualizar as prescrições, mesmo quando estou usando
medicamentos convencionais. Isso pode ser evidenciado,
por exemplo, nos casos de hipertensão arterial, que tenho
tratado com bons resultados. Essa é uma doença que tem
muitas caras e na qual a constituição do doente implica em
como vai evoluir e reagir aos medicamentos. Existem alguns
com hipertensão, com excesso de sal e água, e outros, com
sal normal; os que a sofrem devido à renina alta, e outros
com renina normal; os que a apresentam com maior ou
menor quantidade de adrenalina no sangue, e assim por
diante. Por outro lado, o mecanismo de ação dos
medicamentos usados varia amplamente, desde drogas que
diminuem a força de contração do coração às que dilatam as
artérias, às que eliminam água e sal e às que agem nos
centros reguladores da pressão no cérebro. Usando a
metodologia da medicina tradicional, classifico as drogas em
"frias" e "quentes", como "drogas que circulam" e "drogas
que eliminam", "drogas com ação no alto" e "drogas com
ação na parte baixa do corpo". Se o paciente tem "sinais de
calor", emprego uma droga "fria", como um bloqueador. Se
tem "sinais de frio", emprego uma droga "quente", como um
bloqueador dos canais de cálcio; se tem estagnação de
energia (com tensão emocional, irritabilidade e outros
sintomas subjetivos), associo um vasodilatador e um sedativo
suave, ou uma droga de ação central; se tem retenção,
emprego, principalmente, dieta e drogas que eliminam,
como um diurético.

A Expulsão do Mal

Quem não se lembra daquele velho filme de faroeste no qual
o mocinho leva um tiro, parece que vai morrer, mas é
milagrosamente salvo depois que um médico de última hora
lhe dá um porre de uísque e retira a bala com uma faca?
Mesmo sem nenhum fundamento científico, essa cena já se
repetiu tantas vezes que perdemos a conta. Se nos
perguntarmos por que é tão comum, talvez haja apenas uma
resposta: faz sucesso. E isso ocorre, justamente, porque ver o
mal ser extraído de um corpo provoca em nós um grande
bem-estar, seja o nosso ou o de qualquer pessoa com a qual
nos identificamos. Essa sensação de alívio brota do
inconsciente coletivo e deve, provavelmente, ter relação
com a percepção de sentimentos não-elaborados e
reprimidos, e também com a consciência de quantas
agressões o corpo humano sofre, quer de microorganismos,
quer outros agentes potencialmente patogênicos do meio
ambiente. Existem, portanto, indicações de como o processo
de expulsão do mal é importante, sob o ponto de vista
simbólico.
Claude Lévi-Strauss narrou um fato surpreendente, sobre
um curandeiro de uma população indígena sul-americana
que sai em peregrinação por outras tribos. Este, no relato,
conta uma experiência em que sua técnica foi comparada à
de outros curandeiros. Ele dominava uma prática que
simulava a expulsão, nos pacientes, de um objeto repulsivo,
semelhante a um verme, entre rezas, encenação de rituais e
a emissão de palavras mágicas. Percebeu que os resultados de
seus trabalhos eram sempre melhores que os de outros
colegas porque os doentes ficavam satisfeitos em ver o mal
sendo expulso de seus corpos. Isso demonstra como a força
simbólica pode melhorar o resultado de um tratamento e
induzir um potente efeito placebo. A antropologia acumula
várias evidências da importância do ritual de expulsão do
mal em processos de cura. Estudiosos descreveram sessões
comuns em tribos africanas ou em populações da Oceania,
nas quais foram usados artifícios mostrando a retirada, do
corpo, de objetos que simbolizavam a doença. Esses fatos
são altamente significativos, em termos estatísticos,
provando que sua prática deve estar relacionada a elementos
simbólicos do inconsciente coletivo, induzindo a benefícios
no resultado final dos tratamentos.
É possível, ainda, citar outras evidências de como e
agradável ao ser humano eliminar de seu corpo aquilo que
identifica como ruim.

Uma grande empresa americana de produtos naturais
operando em marketing de rede, com ramificações no
Brasil, tem como seu campeão de vendas um "kit de limpeza
corporal". Ou seja, a primeira coisa a atrair os consumidores
é a possibilidade de eliminar elementos que identificam
como nocivos, tais como a presença de inseticidas,
pesticidas, e de outras substâncias industriais na comida e na
água que acreditam estar acumulando em seus corpos. A
crença não é absurda. Um recente estudo da Associação
Médica americana mostrou que a incidência de câncer de
mama é maior entre mulheres de classes média e alta que na
operária, e um dos motivos especulados é o maior consumo,
por parte das pessoas de melhor poder aquisitivo, de
produtos com ingredientes químicos ou alimentos com
defensivos agrícolas.
Portanto, independentemente da capacidade de expulsar do
corpo alguma substância tóxica, um parasita ou uma doença,
a sensação de expulsá-los do corpo, em rituais ou
tratamentos, é extremamente positiva. Sendo assim, por que
não procurar explorar esse recurso na medicina? Isso pode
ser feito de várias maneiras, desde que o médico saiba
adequar os procedimentos à nossa realidade cultural e
tecnológica.
A primeira aplicação desse instrumento de magia se dá na
cirurgia. Sem dúvida, a moderna cirurgia, com toda sua
diversidade e complexidade, derivou do instinto, por parte
dos médicos antigos, de abrir a pele para extirpar a doença
que estaria incrustrada nas vísceras e nos órgãos. Em muitos
casos, a doença assume esse perfil, justificando a abordagem
cirúrgica. Portanto, o cirurgião pode explorar, ao máximo,
esse aspecto do tratamento, para induzir um potente efeito
placebo, e com isso melhorar seus resultados. Uma forma de
fazê-lo é guardando a peça cirúrgica num vidrinho com
formol, e exibi-la ao paciente. Este poderá aceitá-la como
presente ou rejeitá-la. No segundo caso, o médico poderá
lhe perguntar como se livrar daquilo, como forma de sugerir
que fantasie um ritual de eliminação da doença. Muitas
vezes será necessário mandar a peça cirúrgica para a
patologia nesse caso, um fragmento pode ser separado e
apresentado ao paciente. Outra maneira de proceder,
quando esta não estiver disponível, é fotografá-la após sua
retirada, ou filmar todo o procedimento, para que a pessoa
veja e compreenda como a doença foi extirpada do seu
corpo.
Existem mais formas de eliminação do mal, representadas
pelos processos de limpeza corporal, feitos com medidas
simples, como tomar bastante água, em especial de fonte
limpa; os "banhos de descarrego" da cultura popular; ou
introduzir muita fibra na dieta. O médico pode ressaltar a
importância desses hábitos e explicar como contribuem para
a limpeza orgânica. Esses recursos podem incluir um
tratamento, ainda controvertido, chamado quelação,
introduzido pela medicina ortomolecular, feito através da
injeção de uma substância na veia, que se liga a metais
pesados e os elimina pela urina. Os médicos dessa
especialidade, em geral, pedem um exame do cabelo
chamado "mineralograma", para diagnosticar o excesso de
metais no corpo — mas, como ele é pouco preciso, há
necessidade de confirmá-lo com outros mais específicos. A
quelação pode dar excelentes resultados, especialmente se
houver grande acúmulo de metais. Além da sensação de
eliminação de algo ruim, gerando um efeito placebo, o
processo ocasiona melhora objetiva de muitos sintomas,
gerando bons resultados onde, anteriormente, nenhuma
ação funcionara. Já tratei, com esse método, alguns casos de
depressão que não respondiam ao tratamento habitual e nos
quais havia acúmulo de mercúrio no corpo. Com a
eliminação da substância, os pacientes voltaram e responder
bem à medicação antidepressiva. A quelação é feita com a
administração de um quelante, em geral um aminoácido
chamado EDTA.

O Feitiço Curativo

Caracteriza-se pela associação dos instrumentos de magia
para se conseguir um efeito poderoso. É a mesma estratégia
adotada pelos feiticeiros e xamãs, em seus sistemas médicos.
Cantando e dançando, eles falam palavras mágicas, invocam
divindades, simulam a retirada do mal do corpo e
prescrevem poções. Essa associação de recursos também
pode ser empregada no contexto da medicina
contemporânea. Um paciente de câncer, por exemplo, pode
receber ou participar de um ritual, como uma missa, ou fazer
uma psicoterapia eficiente (palavra mágica), ser submetido à
cirurgia para retirada do tumor (retirada do mal do corpo) e
ainda receber um tratamento com associação de drogas
(poção mágica). Se todos esses recursos da magia moderna
forem explorados de forma adequada, contribuirão para
melhorar a eficiência do tratamento proposto.
Uma boa idéia do feitiço curativo é a estratégia usada pela
Dra. Gladys McGarey, que começa ensinando o paciente a
identificar e conhecer seu lado médico, como já vimos. À
medida que esse lado se fortalece, ela emprega métodos para
induzir novos estados fisiológicos, através de várias técnicas,
como a interpretação de sonhos e a "imaginação guiada". O
resultado da abordagem inclui desde mudanças nos hábitos
alimentares até mudanças em conceitos filosóficos e
existenciais. Em seu trabalho, ela descreve casos como o de
uma moça que esteve à morte por causa de um linfoma que
não respondia ao tratamento convencional e que, com essa
abordagem, teve remissão.

A Magia e a Ciência

Estamos vendo como a ciência precisa de magia. Seu próprio
surgimento resultou de um processo de alta complexidade,
iniciado com o aparecimento da vida na Terra. Alguns
aspectos da evolução das espécies ainda não estão
compreendidos. Se ocorreram por pura obra de um
fenômeno físico, químico ou biológico, ou se há outra
explicação que transcenda nosso conhecimento atual do
universo, a polêmica é grande. Podemos considerar que a
própria ciência deriva de um processo que podemos
considerar mágico. É possível identificar, nela, histórias
permeadas por situações especiais. Como vimos no Capítulo
3, as bases da ciência contemporânea têm vínculos
indiscutíveis com a alquimia, cujos conceitos se aproximam
do que chamamos magia.
Acreditam os alquimistas que existe um processo chamado
de transmutação da matéria, que estaria vinculado,
necessariamente, à um outro, o da transformação espiritual
do alquimista. Ou seja, só alguém de espírito evoluído
poderia realizar a transmutação da matéria, cujas etapas se
revelariam à medida que o espírito se desenvolveria. Tanto a
idéia de transmutação quanto a vinculação entre o espaço
físico e espiritual são conceitos que, de forma geral, não são
aceitos pela ciência atual. Por isso, é mais fácil se associar a
alquimia à magia que à ciência. Sabemos que nos séculos
XVII e XVIII os alquimistas foram perseguidos pela
Inquisição, e que até hoje são vistos como personagens
míticos. O Despertar dos Magos, de Louis Pauwels e Jacques
Bergier, retrata muito bem essa atmosfera de mistério e
fascínio. Segundo os autores, os alquimistas modernos
perseguem os mesmos objetivos da alquimia clássica. O
livro, do início da década de 70, a era hippie, de grande
misticismo, mostra o início de uma mudança conceitual na
sociedade, que iria gerar os diversos questionamentos da
ciência, como os que observamos hoje na área da saúde.
Muitos daqueles que contribuíram para a própria construção
da ciência contemporânea foram influenciados pela
alquimia. Isaac Newton, considerado um dos pilares da
ciência atual, era alquimista. Alguns autores afirmam que
Galileu teve contato com alquimistas e leu vários de seus
escritos secretos, na busca de informações que sustentassem
suas teorias. A descrição das primeiras reações químicas, e os
primeiros métodos de laboratório, foram desenvolvidos por
alquimistas. Podemos, portanto, considerá-los como os
"pais" da atual química.
A magia, vista na sua intercessão com mitos e religiões,
relaciona-se igualmente com os limites do conhecimento
científico. Tudo aquilo que está além do conhecido é
preenchido pela fantasia, impregnada de mistério. Numa
abordagem, interessante o físico Marcelo Gleiser mostra, em
A Dança do Universo, que a motivação da física e da
astronomia está muito próxima da que criou os mitos de
muitas religiões: a origem e a formação do universo. Gleiser
analisa mitos e demonstra, através da interpretação de seus
símbolos, que eles não estão tão distantes da realidade, ao
menos à luz das últimas descobertas da ciência. Ou seja,
quando os mitos são adequadamente depurados e
interpretados passam a ter um sentido lógico.
Por outro lado, o conjunto de mitos e fantasias acerca do
desconhecido é a matéria básica sobre a qual se estruturaram
as hipóteses sobre a origem do universo. Seja para provar ou
rejeitar uma idéia, o cientista lida com mitos, e estes podem
estar até mesmo no seu próprio inconsciente, influenciando
suas pesquisas. Conceitos que pertencem à visão mágica do
mundo são, muitas vezes, incorporados pela ciência, no seu
processo de desenvolvimento. E foi o que ocorreu, por
exemplo, com a introdução da Teoria dos Buracos Negros.
Seria absurdo, há 40 anos, alguém falar em dimensões do
espaço não percebidas por nós. Contudo, com a evolução da
astrofísica e a descoberta de particularidades dos buracos
negros, o fenômeno passou a ser mais aceito. Um buraco
negro suga, constantemente, toda a matéria existente à sua
volta. E essa matéria viaja para o centro do buraco, onde se
concentra um imenso campo gravitacional. Mas a
progressiva concentração da matéria, com o aumento de sua
densidade, não poderia caber, infinitamente, nesse buraco.
Há um limite de concentração. Por isso, alguns astrofísicos
sugerem que a matéria pode estar sendo tragada para uma
outra dimensão do espaço, e assim o enorme campo
gravitacional seria uma abertura, unia passagem para ela.
Um estudo recente publicado na conceituada revista
Archieves of Internal Medicine mostrou que podem existir
aspectos não explicados pela ciência que influenciam na
evolução clínica dos pacientes. Ou seja, os tais aspectos
"mágicos". O trabalho foi feito com 900 cardiopatas, dos
quais a metade foi ajudada pela mentalização, feita por um
padre e um grupo de oração, durante sua permanência no
Hospital Saint Lukas, nos EUA. A outra parte não recebeu a
mentalização. Os primeiros não sabiam que estavam sendo
ajudados pelo grupo de oração, e a avaliação clínica foi feita
de acordo com um escore de pontos que levava em conta a
evolução da doença, a resposta ao tratamento e a incidência
de complicações. As pessoas que receberam ajuda espiritual
tiveram uma diferença significativa de 11%, para melhor,
em sua pontuação. Esse trabalho ainda causa muita polêmica
na comunidade científica. O médico que o coordenou é
muito religioso, e seus colegas acreditam que, de forma
inconsciente, possa ter influenciado nos resultados. Ele se
defende alegando que não tratou diretamente de muitos dos
doentes, e que não sabia quais haviam sido selecionados para
receber a ajuda. De qualquer forma, fica evidente que
existem aspectos que transcendem o conhecimento e
pertencem mais à área da magia, na medicina, e que
precisam ser reconhecidos para que o materialismo
excessivo não atrapalhe a evolução da própria ciência.
Podemos concluir que, para se lidar bem com a ciência, é
preciso aceitar, respeitar e compreender esse vasto universo
simbólico criado pelas diversas culturas.
Por outro lado, quando ocorre um fenômeno que se
incorpora à ciência médica, deixando, portanto, de ser,
simplesmente, magia, há uma tendência a minimizar sua
importância. A história do óleo de Lorenzo, verídica,
ocorrida nos EUA, em 1988, retrata esse aspecto, e é
contada, de forma admirável, num filme recente,
magistralmente interpretado por Nick Noite e Susan
Sarandon. Qual a possibilidade do tratamento de uma doença
genética ser descoberto pelos pais de uma criança doente? Se
essa pergunta fosse feita há dez anos, a resposta seria
nenhuma, zero! Mas hoje temos o exemplo incrível da força
e da tenacidade do casal Odone, que, desafiando a arrogância
da ciência e da sociedade, e até ultrapassando os limites do
bom-senso, aprofundou-se no estudo do metabolismo das
gorduras, e abriu caminho para a descoberta do tratamento
do seu filho Lorenzo, portador de uma leucodistrofia. A
doença é hereditária, causada por um erro genético dos pais.
No caso do menino, a ALD (adrenoleucodistrofia) é herança
ligada ao sexo, ou seja, a um gene que está no cromossoma
X, e por isso só se manifesta em homens. Ela provoca a
degeneração do cérebro afetando, principalmente, a
substância branca, que corresponde ao local por onde
passam os prolongamentos dos neurônios. Privadas das
conexões entre eles, as funções do cérebro também acabam
por se deteriorar completamente. Com a evolução da
doença, a criança perde o controle motor e pára de falar e
andar, até morrer por perda completa das funções
vegetativas do cérebro.
A degeneração do cérebro é conseqüência do
funcionamento errado de uma enzima que regula o
metabolismo dos ácidos graxos de cadeia longa, causando
um acúmulo de um ácido graxo com 26 átomos de carbono.
Este se acumula na bainha de mielina da substância branca
do cérebro, destruindo-a progressivamente. Antes do
tratamento descoberto pelos Odone, todos os portadores de
ALD morriam após dois anos do início da doença — ou seja,
100% dos óbitos ocorriam antes dos 12 anos de idade.
Atualmente, os portadores podem viver como indivíduos
normais.
Augusto Odone mergulhou de corpo e alma no estudo da
doença para compreender o mecanismo de funcionamento
da enzima que sintetiza os ácidos graxos de cadeia longa. O
mecanismo lhe foi revelado num sonho, após dias de estudo
exaustivo. Baseado em suas conclusões sobre o metabolismo
das gorduras, deu para o filho dois ácidos graxos que inibiam
a enzima descontrolada: o oleico, que existe em boa
quantidade no azeite de oliva, e o erúcico, de difícil
obtenção. Além de ter que enfrentar dificuldades para obtê-
los, ainda encontrou enorme resistência de pediatras e
especialistas em apoiar suas suposições, mesmo após as
evidentes melhoras de Lorenzo. Eles expunham argumentos
pretensamente científicos, afirmando que um único caso
não tinha expressão estatística e que o ácido erúcico era
tóxico para camundongos c, portanto, não poderia ser aceito
para experimentação em humanos. A Associação de
Portadores de Leucodistrofia, que congregava pais de
crianças portadoras de ALD, também trabalhou contra o
casal, para desacreditá-lo. Porém, a melhora de alguns outros
portadores da doença, que iniciaram o tratamento com o
óleo de Lorenzo, fez com que a notícia se espalhasse, e os
médicos fossem pressionados a tentar uma série clínica
supervisionada.
Se os pais do menino não tivessem sido tão persistentes e
confiantes, desafiando a ciência, o tratamento da doença não
teria sido encontrado. Por outro lado, se tivessem aplicado
seu tratamento, obtendo curas, e seu trabalho não tivesse
sido incorporado pela ciência, seriam considerados
"milagreiros", e os óleos teriam uma conotação mágica. Na
medicina, transformações consideradas altamente
improváveis ocorrem com bastante freqüência, e,
geralmente, não são percebidas na rotina médica. Por causa
de experiências como essa, friso que, em medicina, certas
coisas são improváveis, mas não impossíveis! Portanto, o
médico deve estar preparado para lidar com transformações
imprevistas, tentar compreender sua essência e respeitar os
aspectos espirituais do ser humano.

A Magia e o Espírito Humano

Para este livro procurei, sempre que possível, buscar teorias
científicas para fundamentar minhas opiniões e para propor
modelos de estudo mais bem adaptados à complexidade do
ser humano. Mas, como vimos, a ciência moderna não é
capaz de explicar todos os fenômenos que ocorrem na área
biomédica: médicos espíritas que prescrevem e fazem
cirurgias sem anestesia quando estão recebendo espíritos,
pacientes que acordam de comas prolongados sem seqüelas
neurológicas significativas, ou que se curam de enfermidades
crônicas com orações ou medicamentos caseiros enfim, uma
infinidade de casos sem explicação satisfatória.
Ao entrar em contato com seu paciente, o médico se depara
com a complexidade dessa mente, com todos os misteriosos
símbolos que convencionamos chamar de espírito. Isso
significa entrar em contato com questões ainda sem
respostas, mas que têm importância fundamental,
especialmente para aquele que está doente. Qual é a
verdadeira razão da vida? Terá cada ser humano uma missão?
Como será essa força superior que chamamos Deus? Qual a
relação da doença com o que ocorre no espírito do
enfermo? Existirão outras razões, que não as biológicas, para
justificar as enfermidades? São perguntas tão antigas quanto
o mundo, cujas respostas, buscadas incessantemente, estão
por trás de toda a ciência, como coloca Marcelo Gleizer. São
questões que pertencem tanto a esse campo quanto ao da
religião. Todas as religiões afirmam, de forma unânime, que
Deus dotou o homem de um espírito, e que sua missão na
Terra é desenvolvê-lo. Resta ao médico respeitar esse
preceito.
Independente de ter crenças, ou da forma de ver o mundo,
ele deve despojar-se dos preconceitos para tentar
compreender e participar do mundo espiritual do paciente.
Só dessa forma poderá ajudá-lo em conflitos profundos que
podem atormentar sua alma no momento da doença. Deve
estar preparado para propor soluções quando o outro estiver
perdido, sem condições de enxergar um caminho à sua
frente. Transcender a questão objetiva da ciência faz parte
do trabalho de quem exerce a função de curar. Ao mesmo
tempo em que um curandeiro oferecia um tratamento para o
corpo, apresentava outro, para o espírito, e a cura vinha da
combinação das duas ações.
Se as forças espirituais podem exercer efeito terapêutico, é
preciso que o médico saiba aconselhar seu paciente a fazer
uso desses recursos. Cabe a ele estimulá-lo a se espiritualizar,
para que ganhe, com isso, um arsenal de armas secretas para
derrotar a doença. Vários autores, como a Dra. MacGarey,
têm defendido a idéia de que a verdadeira cura está no
espírito. Profundamente religiosa, ela tem um histórico
pessoal e profissional singular: seus pais eram médicos e
missionários católicos na índia, onde passou a infância e
parte da adolescência, ajudando-os a cuidar dos pobres. Ao
voltar para os EUA, para estudar medicina, nos anos 30,
deparou com professores retrógrados que acreditavam que
mulheres não podiam ser médicas. Vencendo obstáculos,
impôs-se como profissional competente. Guiando-se por sua
sensibilidade e espiritualidade, MacGarey foi incorporando
medicinas alternativas à sua prática, fundando, com quatro
colegas, há cerca de 20 anos, a Associação Médica Holística
Americana. Atualmente, é muito respeitada nos EUA, e sua
fama lhe vale pacientes famosos, de diversas partes do
mundo, que buscam sua clínica em Scottsdale, no Arizona.
Em seu livro, ela reforça a importância de se zelar pelo
espírito dos pacientes, apresentando uma seleção de casos
mostrando como a cura surge quando o espírito recebe o
tratamento adequado.
Esta é também a abordagem do famoso endocrinologista
indiano Deeprak Chopra, em seu A Cura Quântica que
guarda semelhanças com o pensamento de James Gordon -,
e reforça a idéia de que o caminho da cura é o espiritual. No
seu trabalho, este americano cita estudos mostrando que
pessoas com sentido de religiosidade desenvolvido são mais
saudáveis, relatando o caso de uma moça com câncer de
mama que vem vencendo a doença graças à sua fé em Deus.
Conta ele que quando a doença foi diagnosticada, ela
separou-se de um marido infiel e alcoólatra, tornou-se
católica e passou a atuar como missionária. Como voluntária,
em El Salvador, tratou de crianças pobres, e seu convívio
com essa gente reforçou sua fé cristã. Com tudo isso, sua
doença foi mantida sob controle. Ao voltar aos EUA, o
câncer atingiu os pulmões e, consultado Cordon, este lhe
mostrou como sua força espiritual era importante no
processo de cura, ajudando-a a reconquistar a autoconfiança.
As metástases regrediram e a doença foi controlada.

Conclusão

A magia e a medicina estão intimamente ligadas, desde os
primórdios da humanidade. Com o desenvolvimento da
ciência, a magia foi separada da medicina.
A falsa magia, representada pela tecnologia, não satisfiz as
necessidades subjetivas dos seres humanos. Isso cria espaço
para o oportunismo e o sensacionalismo, que fabricam
milagres e enganam as pessoas.
Para utilizar os instrumentos de magia, o médico precisa
desenvolver sua capacidade de aprofundar o relacionamento
com o paciente e, com isso, ganhar sua absoluta confiança.
O terapeuta que quer incorporar a magia à sua prática precisa
adquirir novos conhecimentos: psicologia, lingüística,
técnicas de hipnose e medicinas alternativas como a
ortomolecular, a acupuntura, a homeopatia e a fitoterapia.
A magia simboliza mitos e fantasias que preenchem o vácuo
do conhecimento científico, e é essencial para os seres
humanos, especialmente quando lidam com as limitações da
doença ou com a angústia da morte.
A medicina não explica muitos fenômenos, que representam
a magia, na prática médica. Eles são, em geral, negados por
ela que, assim, dificulta o conhecimento de sua essência.

Capítulo 7
A Perda da Humanidade

A medicina nasceu de sentimentos nobres que distinguem
homens de outros animais: o desejo de auxiliar e aliviar o
sofrimento do próximo, seja físico ou psíquico —
proposições claramente expressas em textos clássicos. O
juramento de Hipócrates compromete o médico a nunca
negar socorro a pessoas necessitadas, mesmo que não
possam pagar, e tentar aliviar seu sofrimento quando a cura
for impossível. Muitos já arriscaram suas vidas enfrentando
o risco de contaminação e o perigo das guerras para cuidar
de doentes e feridos. E, outros tantos, têm sido os maiores
confidentes de seus pacientes, contribuindo para resolver
problemas de toda ordem que afligem suas vidas.
Talvez seja a profissão que mais exija dedicação. Na vida do
médico, não existe fim de semana ou feriado. Um chamado
de urgência pode chegar a qualquer momento, exigindo que
ele coloque de lado suas necessidades pessoais e atenda
quem precisa de assistência imediata. Por isso, foi
considerada a mais nobre das profissões, comparada ao
sacerdócio. Vários autores, especialmente nas décadas de
1960 e 1970, publicaram obras que valorizaram esses
aspectos. No Brasil, um deles se destacou, o Dr. Danilo
Perestelo, professor de psicologia médica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que liderou, por anos, o Grupo
Balint da Santa Casa da Misericórdia da cidade, na época
freqüentado por médicos de renome. No livro A Medicina
da Pessoa, ele ressalta a importância da atenção aos aspectos
humanos do paciente. Relata casos clínicos nos quais a
abordagem individualizada foi fundamental para o sucesso
do tratamento. E mostra que o grau de amadurecimento e
autoconhecimento do médico influencia a qualidade de seu
atendimento. Para o autor, é preciso estar atento aos
próprios aspectos psíquicos para não confundi-los com
questões do paciente e, dessa forma, interferir na relação de
ambos.
O trabalho de Perestelo foi fundamentado na obra do
psicanalista inglês Michael Balint, precursor das principais
teorias contemporâneas da psicologia médica, e enérgico
defensor da idéia de que o paciente não pode ser tratado
como "coisa". A tendência ao excesso de tecnicismo e
compartimentalização na medicina, coisificando as pessoas,
já havia sido detectada por médicos ingleses, o que motivou
o trabalho de Balint. O "paciente-coisa" não tem emoções,
vontade ou direitos e, a partir dessa visão, procedimentos,
cirurgias ou medicamentos lhe são aplicados exclusivamente
segundo critérios técnicos. A repercussão do livro provocou
uma melhora nesse aspecto da prática médica infelizmente
passageira. A grande influência da medicina americana, a
partir da década de 1980, acentuou o interesse pelo
tecnicismo, provocando a progressiva desumanização da
medicina. Hoje, pouco se ouve falar em Grupos Balint, ou na
importância dos aspectos emocionais do doente na decisão
da conduta médica.
Essa perda da humanidade modificou a relação da medicina
com a sociedade. Aquele sentimento de admiração e
respeito que inspirava deu lugar, nos últimos 20 anos, à
desconfiança e ao temor. De profissionais admirados,
queridos e respeitados, os médicos vêm-se transformando
em campeões de processos por imperícia e falta de ética. A
expressão "máfia de branco" não surgiu por acaso. A
medicina americana, tão admirada cm nossa mentalidade
colonizada, é a campeã mundial de processos judiciais. Não
existe profissional nos EUA que trabalhe sem um seguro
específico para esses casos. Isso não é uma contradição,
quando essa mesma medicina é considerada de tão boa
qualidade?
Alguns profissionais entrevistados para meu livro citaram a
perda progressiva dos valores humanos como um dos
principais fatores envolvidos na piora da qualidade da prática
médica. Entre eles, a Dra. Nazaré Solino, responsável pelo
setor de medicina do trabalho da IBM do Brasil; o Dr.
Marcelo Cosendey, que atua como consultor do ministério
da Saúde; e a Dra. Rosamélia Cunha, da divisão médica do
Hospital dos Servidores do Estado, que reforçam a idéia de
que se perdeu o enfoque principal o bem-estar do paciente e
sua condição no contexto social e pessoal, com seus medos e
dificuldades.
Na Europa, em países como a Alemanha e a França, onde
existe maior flexibilidade da corporação médica às novas
idéias, o resgate dos aspectos humanos ocupa o centro da
discussão de colegas preocupados com a perda de qualidade
de sua prática. Este assunto está sendo abordado em
hospitais e publicações médicas, como contou-me o Dr.
Balta Radu: "Não há ainda um estudo mostrando a dimensão
da corrente humanista na medicina alemã, mas, de qualquer
forma, ela tem um perfil muito mais humanista do que a de
outros países. É de alto padrão, e voltada para o paciente, e
há uma tendência à procura de terapias alternativas, tudo
isso espelhando a preocupação, cada vez maior, com o bem-
estar das pessoas. Penso que esse é o caminho a ser tomado
nos próximos anos e tenho certeza de que, nele, não
estaremos sozinhos."

As Evidências do Mal

Minha primeira lição prática, quando comecei a trabalhar
como estagiário no pronto-socorro do Hospital do Andaraí
(instituição do ministério da Saúde, na Zona Norte do Rio de
Janeiro), foi triste. Estava no quarto ano de medicina. Um
interno estudante do último ano e que já pratica, sob
supervisão -, acompanhado de um staff explicou-me que eu
não deveria perder tempo com "pitis", ou seja, manifestações
histéricas dos pacientes. Quando entrasse alguém, cm geral
mulher ou homossexual, desmaiado ou semi-consciente,
respirando rápido, sem responder às solicitações verbais,
sem sinais neurológicos, e com as pálpebras tremendo, o
tratamento era uma ampola de Lasix na veia e esperar o
"afetado" sair correndo para urinar no banheiro. Lembro-me
ainda hoje dessas palavras cruéis, mas minha memória
apagou o rosto e o nome do infeliz que as pronunciou,
tamanho o mal-estar que me causaram. Esse foi um dos
meus primeiros contatos com o atendimento clínico de
pacientes, há mais de 20 anos, e a falta de humanidade já
estava ali, presente. Felizmente, tinha discernimento
suficiente para rejeitar esse tipo de ensinamento, mas é
possível que muitos outros acadêmicos, com valores
humanos ainda pouco sedimentados, sejam influenciados
por informações desse tipo.
Alguns estudos da literatura médica, na década de 1980,
demonstraram que a desnutrição era uma verdadeira
epidemia nos hospitais. Dependendo da instituição, até 40%
dos pacientes a apresentavam. Ou seja, ninguém estava
preocupado em alimentar os internados de forma adequada!
E claro que a preocupação com a alimentação aumentou e
esse problema diminuiu, mas a questão básica por trás disso,
a falta de humanidade, não foi atacada. Outro aspecto
gritante do problema é a relutância de muitos médicos em
oferecer uma analgesia eficaz para seus pacientes. O caso
seguinte aconteceu numa das clínicas mais sofisticadas e
caras da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Sheila Fagundes Parreira estava grávida, entrando no nono
mês, quando começou a sentir desconforto no abdômen.
Com cesariana marcada para dali a duas semanas, chegou ao
consultório do seu obstetra, Dr. R. O exame constatou que já
estava em trabalho de parto e foi levada imediatamente ao
hospital, onde deu à luz, de parto normal, a uma criança
saudável. Contudo, quando o efeito da anestesia diminuiu,
passou a sentir uma forte dor no local da episiotomia, e a
comunicou aos enfermeiros, que não lhe deram importância
e apenas lhe administraram uma novalgina. Como a dor a
impedisse até de andar até o banheiro, chamou seu médico.
Este, por sua vez, também lhe prescreveu uma solução
analgésica, sem examinar o local. A tal medicação foi
insuficiente, e Sheila, com muitas dores, não conseguia nem
mesmo amamentar o bebê. Com a retirada dos pontos da
episiotomia, elas reduziram de intensidade, por algumas
horas, para, em seguida, intensificarem-se, irradiando-se
para a perna. O obstetra continuou indiferente aos sintomas.
Ao longo da semana, já com alta do hospital, continuava
com dores, que aumentaram, e passou a tomar um
antiinflamatório prescrito pelo médico, que lhe dizia que
eram provocadas por uma tendinite. Mas a situação se
agravou e a perna de Sheila inchou. O Dr. R., então, preferiu
passar a bola para a frente, indicando-lhe um ortopedista.
Este, imediatamente, diagnosticou uma tromboflebite,
encaminhando-a a um angiologista. Foi feito um scan das
veias da perna afetada mostrando que quase todas elas
estavam entupidas, e Sheila foi obrigada a iniciar o uso de
anticoagulante e interromper o aleitamento do bebê. A dor
passou, mas até hoje sua perna fica dolorida e inchada se fica
muito tempo em pé.
A desumanidade desse médico o impediu de valorizar a dor
de uma paciente. Não apenas tratou o sintoma de forma
insuficiente como não se preocupou cm saber se havia
alguma causa orgânica importante que o justificasse. Ela
acabou por desenvolver uma tromboflebite, que resultou
numa inflamação. Todo bom obstetra sabe que, no final da
gravidez, a coagulabilidade do sangue aumenta em função da
influência dos hormônios femininos, e que isso pode
representar maior risco de tromboflebite, e, portanto, deve-
se estar atento para essa complicação. Não sabemos o que
aconteceu com Sheila, pois seu caso não foi investigado
desde o início, mas há um forte indício de que a dor já
tivesse relação com a tromboflebite. Poderia ser um
hematoma local pressionando a veia, ou mesmo o início da
formação do coágulo.
O fato é que ela ficou traumatizada psiquicamente, por ter
passado tantos dias com dores, e depois descobrir-se
portadora de um problema sério, cujas conseqüências a
afetam ainda hoje, sem falar na interrupção do aleitamento
do bebê. Se o médico fosse atencioso, ele teria, certamente,
aliviado esses sintomas, teria examinado a paciente com a
devida atenção, e evitado a complicação do quadro. A falta
de humanidade trouxe sofrimentos desnecessários a Sheila e
resultou em iatrogenia.
Em seu Manifesto da Nova Medicina, James Gordon atenta
para o problema, na medicina praticada nos Estados Unidos.
Conta que, no século passado, as comunidades menores
favoreciam a ajuda mútua entre as pessoas: alguém doente se
tornava uma preocupação de todos. Na organização atual,
quando se tem uma doença mais séria, vai-se para o hospital.
É uma solução técnica e prática, já que a maior parte das
pessoas à sua volta não se importa com o fato. Ninguém mais
tem tempo ou paciência para cuidar de doente. Isso criou
uma generalizada indiferença da sociedade para com a
doença, e ela se reflete na medicina, influenciando o
comportamento dos médicos.

As Causas

Discutir as causas da perda da humanidade é enfrentar uma
questão complexa, em função de sua subjetividade.
Poderíamos perguntar o que leva um ser humano a agir de
forma fria e cruel para com seu semelhante. Eis aí um ponto
que pode envolver aspectos psicológicos, culturais,
sociológicos e antropológicos. Mas não deixa de ser
alarmante quando um segmento da sociedade, que deveria
agir com um alto nível de ética, calor humano, compreensão
e solidariedade, começa a se portar de forma inversa. Não
estou sugerindo que esse seja um comportamento corrente
de todos os profissionais de saúde, mas, sim, que há uma
forte tendência ao aumento desses valores negativos.
Avaliando a opinião de autores importantes e de indiscutível
reputação médica, como James Gordon, Daniel Taback,
Nazaré Solino e Balta Radu, entre outros, vemos que a dois
aspectos, especialmente, é creditado esse problema: a
valorização excessiva da tecnologia e a influência que a vida
moderna tem sobre a sociedade, como um todo,
modificando padrões de comportamento. Sobre o primeiro
ponto, estou certo de que esse tecnicismo exagerado leva o
médico a relevar questões pessoais do paciente. Se, por
exemplo, há necessidade de um procedimento invasivo, que
certamente vai ameaçar o doente, não se perde tempo
tentando descobrir as razões desse receio, e, assim, discuti-
las exaustivamente, até que a situação seja perfeitamente
compreendida. O médico, em geral, coloca a questão técnica
como uma razão maior e pressiona o paciente a submeter-se
a um leque infindável de exames. Sabemos, através de
estudos científicos, que se o paciente estiver altamente
estressado ou desmotivado, e, mesmo assim, for induzido a
procedimentos que envolvem invasividade e riscos, há
maiores chances de ocorrerem complicações. Não há,
portanto, apenas uma questão técnica em jogo, mas uma
decisão difícil na vida de um ser humano. Só ganhando sua
confiança, e isso será possível apenas com uma postura
humana e generosa, o profissional o terá como aliado nessa
difícil decisão.
Vimos no Capítulo 3, "A Ciência Médica", que o excesso de
compartimentalização contribuí de forma indiscutível para o
problema. O super especialista, com uma visão muito
influenciada pelo reducionismo, costuma lidar mal com
valores gerais como conflitos íntimos do paciente ou
repercussões das condutas e procedimentos que adota. Com
as modificações dos últimos dez anos, no mercado e na
instituição médica, cada vez mais, nas universidades, os
jovens estão se especializando e perdendo a visão global da
medicina, do ser humano e da doença.
Acredito que o desprezo pela subjetividade dos pacientes
seja o fator com maior potencial de gerar comportamentos
desumanos. Essa tendência faz com que os médicos
assumam uma postura desconfiada, incrédula, diante de uma
queixa que não tenha uma causa orgânica definida. Quando
o quadro lhes escapa à compreensão, é comum
minimizarem um sintoma, acreditando que ele pode estar
sendo relatado com certo exagero. Contudo, sabemos que as
pessoas percebem a dor de forma diversa, e a obrigação de
quem as trata é lhes aliviar o sofrimento enquanto não for
possível debelar a doença que as aflige.
Outro comportamento corriqueiro é se prescrever um
sedativo ou um ansiolítico, sempre que alguém se queixa em
demasia de um sintoma inexplicável. Acreditam os doutores
que as queixas originam-se de ansiedade e de problemas
depressivos mal resolvidos, mas parte significativa desses
pacientes piora com o calmante. Quando um deles sente um
efeito adverso não relatado na literatura médica, atribuindo-
o a um determinado medicamento, pode esbarrar no
desinteresse do médico. A tendência de subavaliar a
subjetividade faz com que este insista na continuidade do
tratamento, a despeito dos sintomas. São situações que
geram intenso sofrimento às pessoas, e uma das razões para
que procurem a medicina alternativa.

As Conseqüências

À medida que o problema cresce, há uma tendência ao
surgimento de procedimentos e condutas que mais fazem
lembrar um filme de terror. O médico pode estar bem-
intencionado, mas sua falta de flexibilidade, somada à
aplicação estrita de uma norma técnica, acaba por gerar
efeitos desastrosos. Com isso, os pacientes se tornam
receosos e excessivamente exigentes, e a boa relação entre
eles se torna impossível.
Existe ainda um outro aspecto a ser avaliado na questão: a
relação de poder existente numa instituição hospitalar. Aí,
quem determina a lei é o corpo médico e, muitas vezes, por
consenso entre seus membros, ou outras questões de seu
interesse, os direitos individuais dos pacientes deixam de ser
respeitados. Isso ocorre, especialmente, em situações em
que eles ficam impossibilitados de manifestar sua vontade de
forma objetiva. Pode ocorrer, por exemplo, com crianças,
pacientes neurológicos, portadores de doenças febris, idosos
e pacientes terminais. Em determinadas situações, são
submetidos a métodos invasivos ou expostos à dor ou ao
desconforto, sem os devidos cuidados. É evidente que
muitos médicos são altamente conscienciosos e procuram
respeitá-los. Mas é notório o aumento de casos em que seu
direito é lesado.
Em algumas situações, a falta de humanidade na medicina
gera comportamentos ou situações estereotipadas,
caracterizadas nas histórias clínicas que recolhi.

Síndrome do Dr. Pólo Norte

Em geral é um exímio técnico e renomado profissional,
sério, de pouca conversa e bastante objetivo na consulta, e o
chamo assim porque e frio e distante Não se envolve com
seus pacientes, pois, no seu modo de ver, muita emoção
prejudica a técnica. Sua conduta é rígida, inflexível. Esse
comportamento resulta da combinação de excesso de
tecnicismo e compartimentalização com o desprezo pelos
aspectos emocionais do paciente. Um caso característico
dessa síndrome ocorreu num dos melhores hospitais de
oncologia do mundo, o Memorial Hospital, de Nova Iorque.
Essa é a história da doença de Gilson Leite e de sua mulher,
Solange. Ela sempre tivera bons hábitos de vida, mas o
intestino preso. Para se equilibrar, fazia tratamento com
homeopatia unicista. Começou, então, a ter sangramento
com as fezes, e resistiu, inicialmente, em procurar
tratamento, atribuindo-o às hemorróidas. O quadro persistiu
e obrigou-a a buscar auxílio médico. Após consulta a um
gastro e exames, foi diagnosticado câncer de intestino e ela
foi encaminhada ao Dr. M., famoso oncologista. Segundo
sua avaliação, a chance de cura era elevada, com um
tratamento combinando radioterapia e quimioterapia.
Contudo, após alguns meses, a doença mostrava sinais de
atividade. O Dr. M., então, embarcou para Nova Iorque, para
buscar alternativas novas ou experimentais para o
tratamento. Passaram-se dois meses e, sem notícias, Solange
e Gilson ficaram apreensivos. Localizaram o Dr. M. nos
Estados Unidos e foram orientados, por ele, a embarcarem
para uma consulta com o Dr. S., médico do Memorial
Hospital, considerado um dos papas da oncologia. Lá
chegando, Solange foi submetida a uma laparotomia
exploradora. Após a cirurgia, recuperada da anestesia, ela
recebeu uma visita do Dr. S., que, de forma fria e sem
interrupções, disse que apenas fizera uma colostomia, já que
o tumor invadira estruturas vizinhas e havia metástases no
fígado. Acrescentou que a doença não tinha mais
tratamento, e que a paciente voltasse para casa e aguardasse a
morte. Terminando sua exposição, com um lamento por não
ter podido ser mais útil, saiu rapidamente e não mais
apareceu para vê-la. Solange entrou numa depressão terrível.
Dc volta ao Brasil, ela caiu num longo mutismo, só vencido
com a ajuda dos amigos. Quando se sentia um pouco
melhor, começou a sentir dores intensas. Definhando de
forma rápida, faleceu. O marido, extremamente cansado e
traumatizado, passou a ter crises de tosse, e um desconforto
no tórax. Um raio X mostrou que estava com uma massa no
mediastino. Há dois anos havia retirado um nódulo dessa
região, mas a biópsia o apontara como benigno. Ao contrário
do câncer de sua mulher, detectado já em estágio avançado,
seu tumor era passível de tratamento. Mas Gilson
convenceu-se de que iria morrer, desejando acompanhar a
mulher, e colocou toda sua energia em resolver seus
negócios. Só algum tempo depois, sob a influência de amigos
e dos filhos, aceitou fazer quimioterapia. Contudo, o câncer
avançara muito e a resposta ao tratamento não foi boa. Cerca
de um ano depois de Solange, ele também falecia.
A observação desses fatos dramáticos mostra uma série de
óbvios erros estratégicos óbvios na condução médica. O
tumor da paciente não teve uma resposta esperada ao
tratamento proposto. Muitas vezes, os tumores do tubo
digestivo, como o do intestino grosso, respondem mal à
quimioterapia e à radioterapia. Frente ao insucesso, o Dr. M.
abandonou o gerenciamento da doença e saiu de cena, com
a proposta de buscar alternativas de tratamento, que na
verdade, àquela altura, não existiam. Ao invés disso, poderia
ter tentado, aqui mesmo, um procedimento paliativo
cirúrgico, mas dias preciosos foram perdidos na sua viagem.
Sem ter o que oferecer a ela, sumiu, sem coragem de
procurá-la, e, ao ser localizado, sugeriu uma consulta com
um especialista de renome, como uma forma de se livrar do
problema. A paciente e seu marido viajaram cheios de
esperança, sem saber que isso era apenas um jogo de
empurra. Ao chegarem ao hospital americano, a solução
paliativa já não era mais possível. O oncologista, do alto de
sua pompa, comunicou-lhe, friamente, que seu destino já
estava traçado e que só lhe restava esperar a morte. O
impacto emocional foi tamanho, para o casal, que não só
apressou a doença da mulher como também fez entrar em
atividade um tumor do marido, sem forças para lutar contra
o novo problema. Quando o marido decidiu reagir e tratar-
se, a doença já havia evoluído e não havia mais chances de
cura. A sentença de morte, dada pelo Dr. Pólo Norte, não
apenas contribuiu para matar rapidamente a paciente como
deve, certamente, ter ativado a doença do marido,
reduzindo sua capacidade de reação.

A Instituição Depauperada

Esse é um problema sério no Brasil. E ocorre quando
clínicas e hospitais, e o próprio sistema de saúde, não
oferecem as condições necessárias a um atendimento
médico adequado. Com isto, muitas vezes o paciente nem
chega a ser atendido, ou tem que se contentar com serviços
de péssima qualidade, não por culpa do profissional que o
assiste, mas porque a infra-estrutura é inadequada. São
problemas expostos diariamente na imprensa, na forma de
tragédias pessoais protagonizadas, geralmente, por gente
humilde. E importante frisar que, nesses casos, o médico é
quase sempre outra vítima, não carrasco. São milhares de
profissionais trabalhando no sistema público, fazendo o
impossível para atender seus doentes, sem dispor dos
mínimos recursos necessários. São outros milhares fazendo
mágica para adaptar sua prática às regras absurdas e à
remuneração inadequada oferecida pelos planos de saúde.
Em todos esses casos, muitas vezes, são injustamente
acusados e atacados como responsáveis por um sistema
completamente falido e desorganizado.
Essa síndrome pode assumir diversas configurações: é o
medicamento do paciente crônico que não está disponível
na farmácia do hospital público, a falta de médicos nos seus
diversos setores, de uma equipe para dar o apoio necessário
ao paciente, de instalações para o funcionamento das
unidades de saúde, de material hospitalar, de aparelhagem e
de organização do sistema, e é ainda a fila interminável para
o atendimento enfim, são muitas as deficiências. O sistema
privado, por sua vez, carrega grandes distorções, como a
limitação de exames e de dias de internação hospitalar, a
recusa de atendimento por atraso de pagamento do plano,
falta de vagas em bons hospitais etc.
O que conto a seguir aconteceu em 1986, quando eu
trabalhava no setor de Clínica Médica do Hospital dos
Servidores do Estado, considerado, na época, um dos
melhores da rede pública, e por esse dado podemos avaliar o
alto grau de dramaticidade a que pode chegar o caso de um
paciente necessitado de uma infra-estrutura hospitalar
operante. Severino Dias da Silva era servente de obra e
estava trabalhando numa demolição quando uma marquise
caiu sobre sua cabeça e seu dorso, causando várias fraturas
de vértebras cervicais. Foi encaminhado para aquele
hospital, onde foi operado de urgência, para a fixação das
vértebras fraturadas, ficando internado no setor de
ortopedia. Ficou tetraplégico, como conseqüência da fratura
cervical. O setor solicitou que a clínica médica o
acompanhasse, pois a parte ortopédica estava feita. Pacientes
tetraplégicos precisam de muitos cuidados de enfermagem.
Às vezes, há uma significativa melhora do déficit
neurológico com o tratamento fisioterápico, justificando
esse esforço. Ao vê-lo, solicitei, imediatamente, um colchão
de água, para evitar a formação das escaras típicas em quem
fica muito tempo imóvel no leito. Fui informado de que não
havia nenhum disponível, nem previsão de compra. Fiz,
então, um pedido pessoal à chefe da enfermagem: que
mudasse a posição do paciente, na cama, a cada quatro
horas. Solicitei, também, um sistema coletor de urina
fechado, para evitar a infecção urinária o que, igualmente,
não foi providenciado.
Estando o servente num andar diferente do meu setor, não
havia como controlar, amiúde, o seu atendimento. No
sétimo dia de internação, ele começou a apresentar as lesões
iniciais de escara. Voltei a pressionar a enfermagem e
solicitei, formalmente, ao chefe da ortopedia, que
intercedesse para que o paciente tivesse um tratamento
adequado. Minhas tentativas foram infrutíferas. O
inadequado sistema coletor de urina gerou recorrentes
infecções urinárias, com germes cada vez mais resistentes a
antibióticos. As escaras foram se formando, uma após outra.
Tentei tratá-las com curativos, mas, sem o apoio necessário,
surgiam novas outras, na região sacra, nas panturrilhas, nos
calcanhares, nas escápulas, na nuca, nos cotovelos e nos
ombros. A escara sacra ficou tão profunda que atingiu a
articulação sacroilíaca. Numa das panturrilhas, evoluiu para
uma necrose do músculo gastrocnemus, obrigando um
debridamento cirúrgico. Todos os dias, quando eu chegava
para examinar Severino, ele chorava. Pedia, "por favor", para
que eu "desse um jeito" em suas feridas, para aliviar seu
sofrimento. Tentei tudo o que estava ao meu alcance:
prescrevi solução analgésica, pois ele ainda mantinha alguma
função sensitiva e as lesões doíam muito; utilizei os
melhores antibióticos disponíveis na época, mas faltava a
infra-estrutura hospitalar mínima para dar o suporte
necessário a um enfermo daquele tipo. Cerca de um mês
após a sua internação, uma das bactérias que infectava as
lesões invadiu o sangue, provocou septicemia e ele morreu,
em dois dias!
Nesse caso, vemos que o paciente tinha uma condição
altamente incapacitante, mas que não o colocava em risco
de vida. No entanto, sua recuperação dependia de intensivos
cuidados de enfermagem e fisioterapia que o hospital não
estava capacitado para dar ou não se esforçou o suficiente
neste sentido. Com isso, Severino foi desenvolvendo
complicações que normalmente ocorrem quando certas
medidas não são adotadas. Teve um sofrimento físico e
psíquico terrível. O odor que escapava de suas escuras era o
de alguém que apodrecia vivo. Cada vez que era manipulado
na cama, chorava de dor, apesar da solução analgésica. Com
a falta de atenção intensiva da enfermagem, ficava sujo de
fezes por longo tempo.
Coloque-se no lugar desse cidadão. Ou melhor, imagine seu
pai apodrecendo vivo, porque uma instituição não consegue
ou não se esforça para comprar um simples colchão d'água.
Como você se sente? Existe alguma razão que possa justificar
tamanha crueldade, tamanho descaso? Por situações
cotidianas como essa, não podemos nos esquecer de que o
modelo desumano da medicina atual precisa ser
definitivamente enterrado.
Uma das maiores preocupações da Dra. Rosamélia Cunha é
com a melhora da qualidade do atendimento médico,
tornando-o mais humano e acessível aos pacientes.
Conheço-a desde a época em que fui estagiário do CTI do
Hospital Cardoso Fontes (que pertencia ao inamps). Nessa
época, esse era um dos melhores serviços de terapia
intensiva do Rio, e logo travamos uma boa relação
profissional, por compartilharmos de idéias semelhantes.
Trabalhamos juntos, novamente, no Serviço de Doenças
Infecciosas e Parasitárias do Hospital dos Servidores do
Estado, durante a década de 1980 e começo da de 1990.
Desde então, a Dra. Rosamélia vem se interessando pela área
de administração hospitalar e gerência de sistemas de saúde.
Hoje, atua, ativamente, tanto no setor público quanto no
privado.
"Estou tentando atuar, seriamente, na estrutura dessas
instituições, em sua área gerencial, para que modifiquem e
melhorem a qualidade dos serviços prestados, desde a
chegada do paciente ao hospital, quando deverá ser bem
atendido pela recepcionista, até o instante em que tem alta e
deverá ser adequadamente orientado sobre a medicação que
utilizará em casa. Quando se analisa esta cadeia de ações, vê-
se que quase tudo está errado. Há um nível de desrespeito
inaceitável para com o usuário do sistema de saúde, desde o
momento em que ele chega ao hospital, de madrugada, e
tem que entrar na fila para marcar consulta. Temos que agir,
e isso significa pressionar as instituições para que funcionem
melhor. O problema não é apenas da área pública, acontece
também na privada", enfatiza.

O Hospital Gelado

Se imaginarmos corrigidas todas as suas deficiências técnicas,
veremos que, mesmo assim, as instituições irão apresentar
muitos aspectos desumanos que urgem por reformas.
Hospitais são lugares frios, sem colorido, sem graça, que
cheiram a éter, têm uma comida detestável, e onde vemos
pessoas com expressões de sofrimento conduzidas em maças
ou cadeiras de rodas, e profissionais de branco, circulando
nos corredores. Resumindo, hospital tem cara de doença.
Quando o paciente entra num, sente-se ainda pior. E essas
características ficam mais óbvias quanto mais grave for a
doença. Se ele necessitar de uma unidade intermediária, ou
de uma UTI, a frieza das instalações e a sensação de doença
e solidão se acentuam.
Precisamos de hospitais onde os pacientes se sintam bem,
entendam que estão em locais que podem lhe devolver a
saúde e não onde se sentirão infelizes. Para tanto, é preciso
discutir e propor novos projetos arquitetônicos, nova
decoração etc. Felizmente, já existe preocupação nesse
sentido. Podemos citar vários exemplos de tentativas de
tornar esses ambientes mais agradáveis, em centros de
excelência da área médica, dentro e fora do Brasil. No Incor,
um dos melhores hospitais do país, há um movimento
denominado "humanização do hospital", tema de um artigo
da Revista do Incor; publicada em agosto de 1999. Nele
enfoca-se, especialmente, a atuação dos "doutores do riso"
médicos preocupados em tornar menos penosas as
internações de crianças, através da organização de
brincadeiras e atividades recreativas, que vão de jogos a
espetáculos de teatro. A humanização hospitalar, ainda
segundo o artigo, passa por uma arquitetura mais
aconchegante, e pelo treinamento dos profissionais de
saúde. Em Londres, um hospital construiu uma sala de
cinema para que os pacientes pudessem ter algum lazer.
Isso me faz lembrar de Pach Adams, um médico de perfil
diferente, obrigado, nos Estados Unidos, a travar uma
batalha jurídica para se formar, cujos percalços resultaram
no filme A História de Pach Adams, interpretada de forma
magistral por Robin Williams, e já exibido no Brasil.
Percebendo a falta de contato dos médicos com os pacientes
internados, Pach, como era chamado carinhosamente por
seus colegas, fantasiava-se de palhaço e inventava histórias e
performances para diverti-los. Sua conduta começou a ser
frontalmente questionada pelo diretor do hospital onde fazia
seu internato. Mas ele citava estudos, feitos em vários cantos
do mundo, mostrando que o riso melhorava a saúde, de
forma geral, e que os pacientes careciam desse ripo de
atenção. Seus oponentes alegavam que a medicina, para ser
bem praticada, exigia uma postura incompatível com a dele.
Na formatura, a faculdade recusou-se a lhe entregar o
diploma. O caso foi levado à comissão julgadora da Ordem
dos Médicos de seu Estado, onde, finalmente, Pach venceu a
questão. Hoje, o médico dirige uma fundação que oferece
tratamento gratuito a pessoas de baixo poder aquisitivo.
Outro exemplo empolgante e que enche de esperanças
médicos que, como eu, torcem para que a medicina
caminhe na direção de padrões mais humanos é o Projeto
Plátano que assim se chama porque, segundo lendas,
Hipócrates atendia seus pacientes à sombra dessa bela árvore
mediterrânea. O projeto tem proporcionado mudanças
estéticas e humanas no ambiente hospitalar de algumas
unidades dos Estados Unidos: propõe atividades artísticas aos
pacientes, como cerâmica e pintura; instala biblioteca e
videoteca; patrocina apresentações de músicos e peças de
teatro.
Segundo Gordon, existem evidências suficientes de que a
humanização dos hospitais traz melhora, tanto nas
estatísticas médicas quanto nos custos. Como insistia Pach,
já foi provado que rir faz bem à saúde, melhorando várias
funções do organismo. Intervenções psicoterapêuticas
obtiveram redução no tempo de internação em até dois dias,
nos casos de fratura de colo de fêmur, e exercícios de
meditação reduziram a quantidade de anestésicos e o índice
de complicações pós-operatórias. São evidencias de que,
quanto mais humano for o tratamento, melhor será a
evolução dos doentes. Mas, para que isso seja de fato
absorvido na prática diária, a mentalidade dos profissionais
precisa mudar. Entre aplicar dinheiro para tornar um
hospital mais aconchegante ou comprar um equipamento de
última geração, grande parte deles ainda prefere a segunda
opção. Se empacamos aí, já no ponto de partida do processo
se não abrirem suas mentes e corações para essas questões -,
como poderemos chegar às reformas estruturais dos
hospitais?
Como frisa o Dr. Daniel Taback, "o aspecto humano,
caloroso, físico, da relação médico-paciente, é totalmente
insubstituível, a despeito de toda a tecnologia: o diálogo, o
abraço no momento de crise, a partilha das situações
dolorosas, se o tratamento se mostrar insuficiente, a
satisfação com o bom resultado. À medida que os médicos se
tornam insensíveis a isso, os aspectos negativos da medicina
passam a ser ressaltados. Por exemplo, o profissional poderá
ser responsabilizado por um tratamento malsucedido, não
por ter se equivocado na prescrição do procedimento, mas
pela insatisfação do paciente com o atendimento pessoal,
transferida, equivocadamente, para um problema técnico
inexistente. A necessidade de contato físico e emocional
com o doente é o aspecto mais primitivo da medicina, e o
que a torna diferente de todas as profissões".

O Distanciamento Físico ou Síndrome da
Ausência de Toque

Além dos aspectos positivos sobre a psique e a emoção dos
pacientes, a realização de um acurado exame físico e o
domínio dessa técnica são indispensáveis à boa medicina.
Quando um médico acompanha clinicamente um paciente,
uma alteração no seu exame físico pode ser a dica de que
algo não vai bem e precisa ser investigado. Isso é essencial,
mesmo naquele que se encontra internado, pois é
impossível fazer-se um ultra-som ou uma tomografia
computadorizada diariamente, para acompanhar um tumor,
por exemplo. Se ele for palpável, o exame físico pode ser
utilizado como parâmetro de avaliação.
Além dos argumentos colocados de forma absolutamente
pertinente pelo Dr. Taback, temos, também, evidências da
importância do contato físico para a saúde. Isso foi
demonstrado em animais. Em 1950, Harry Harlow,
psicólogo da Universidade de Wisconsin, demonstrou que
macacos que não eram tocados, durante a fase de
crescimento, tinham desenvolvimento físico e motor
prejudicados. Mas que isso poderia ser corrigido se fossem
tocados por falsas mães feitas de pano. Em seguida, foi
mostrado que ratinhos separados de suas mães e privados de
contato físico, além de desenvolverem anormalidades, como
baixo peso e deficiências motoras, tinham um número baixo
de receptores de hormônios esteróides no cérebro. Esses
distúrbios desapareciam se tocados pelos dedos dos
pesquisadores. Estudos feitos com humanos, após receberem
uma ou várias sessões de massagem, mostraram que
apresentaram melhora em várias funções do organismo,
reforçando o efeito terapêutico do toque. A massagem
melhora o humor e reduz a dor de portadores de câncer,
também a pressão arterial, a ansiedade de internados em
unidades coronarianas e de pacientes psiquiátricos, e
normaliza o ritmo cardíaco de idosos.
Podemos notar duas conseqüências negativas da perda de
contato físico médico-paciente: a primeira e a avaliação
incorreta do quadro clínico, o que pode levar a erros de
diagnóstico; e a segunda é o paciente sentir-se pouco
cuidado, o que gera nele insegurança e perda de confiança
no profissional que o atende. E o que podemos ver no caso
que relato a seguir.
Marina Leite Garcia começou a sentir dores no joelho
direito durante a ginástica que fazia regularmente e foi
encaminhada ao médico da academia que, ao examiná-la,
constatou edema na articulação, foi-lhe, então, solicitada
uma ressonância magnética, que mostrou ruptura do
menisco interno do joelho. De posse do exame, Marina
procurou o consultório do Dr. H., ortopedista que lhe fora
recomendado por uma amiga. Ele ouviu a história, olhou o
exame e apenas sugeriu que marcasse uma artroscopia para a
semana seguinte. Ela lhe pediu que a examinasse, ao que o
figurão retrucou que não havia necessidade, pois as
informações estavam na ressonância. A moça, então,
encerrou o assunto, dizendo que não aceitaria ser operada
por alguém que nem sequer olhara para o seu joelho, e saiu
do consultório. Na semana seguinte, consultou outro
especialista, que a examinou cuidadosamente e, só então, a
cirurgia foi marcada.
Nesse caso, a paciente teve suficiente personalidade para
rejeitar o médico que não lhe dera um tratamento à altura
inclusive, do que costumava cobrar pela consulta. Mas
muitos se sentem inseguros, sem coragem de questionar o
profissional abertamente, como fez Marina. Com isso,
submetem-se a tratamentos sem a necessária confiança para
garantir seus bons resultados.

A Humanidade e a Ética

Ética é uma questão fundamental na medicina. A noção de
sua importância vem do tempo de Hipócrates. Os primeiros
conceitos foram introduzidos, justamente, para conferir
nobreza à profissão, distinguindo-a das práticas de cura feitas
por leigos. A ética visa, basicamente, impedir que o médico
tire proveito de sua posição e da confiança nele depositada,
em benefício próprio ou com objetivos escusos. E também
se busca estimular a idéia de que a prestação de serviços está
acima de outros valores, como a remuneração, e que o
médico deve prestar assistência a qualquer pessoa que esteja
em situação de extrema necessidade. Se este tiver uma boa
noção do que seja humanidade, nunca irá tirar proveito de
seus pacientes, nem irá omitir socorro aos necessitados. A
piora dos padrões éticos, apontada como um dos grandes
problemas da moderna civilização, nada mais é que um
reflexo da perda da humanidade. Se esses aspectos fossem
reforçados, na formação do profissional, certamente seu
nível de ética aumentaria e sua profissão seria mais
respeitada. Ao invés disso, é com grande desgosto que
vemos a medicina ganhar a triste alcunha de "máfia de
branco".
Por outro lado, há médicos preocupados com o bem-estar de
seus pacientes, e que não negam esforços para lhes oferecer
a melhor opção de tratamento. Considerando-se as
colocações de Gordon, a perda da humanidade, assim como
a redução dos valores éticos na medicina, são aspectos que
ocorreram de forma concomitante e progressiva, na
passagem para o século XX, como conseqüência do enfoque
da técnica em detrimento da ciência humana.
Essa percepção coincide com a de vários colegas
entrevistados para este livro, e é fundamentada na obra do
sociólogo americano Richard Sennett, professor da
Universidade de Nova Iorque. Baseado cm entrevistas com
operários, nos Estados Unidos, ele escreveu o ensaio A
Corrosão do Caráter, no qual mostra como os valores do
capitalismo contemporâneo contribuem para destruir suas
qualidades individuais e seu caráter. Segundo Sennett, as
constantes mudanças nas relações de trabalho, a insegurança
na continuidade do emprego e as crescentes exigências de
treinamento e atualização do mercado atuam como fatores
para essa completa degradação. Ele alega, também, que a
palavra flexibilidade, agregada ao capitalismo moderno, na
realidade significa "falta de relações estáveis e definidas com
os empregados". Isso tudo leva a classe trabalhadora a adotar
valores superficiais, sendo, portanto, impossível se esperar
dela posturas corretas. Numa economia em que a política e
constantemente replanejada, cujos objetivos são quase todos
de curto prazo e avesso a rotinas, não se pode pressupor a
construção de relações humanas estáveis ou objetivos
duráveis. Com isso, as pessoas se fixam em planos
imediatistas e não aprofundam experiências no trabalho
fatores essenciais para a elaboração dos valores éticos, Como
conseqüência, priorizam apenas ganhar uma hora extra e
comprar um disco ou uma roupa, ao invés de se
preocuparem com questões básicas, como as possibilidades
de crescimento profissional, ou de ganhar a confiança dos
patrões e reivindicar um tratamento mais humano e justo.
Transpondo os argumentos de Sennett para a área médica,
podemos detectar os mesmos fatores atuando de forma
degradante nos profissionais, de uma forma geral. A
medicina, como instituição e técnica, passa, cada vez mais,
por modificações rápidas e profundas.
A atualização é uma pressão constante sobre o médico. Por
outro lado, a figura do profissional liberal desapareceu. Cada
vez mais ele depende da remuneração de empresas
seguradoras e da infra-estrutura hospitalar. Sofre, ainda, as
pressões da indústria farmacêutica, na prescrição de drogas.
Tornou-se, portanto, um joguete na mão de poderosos
grupos econômicos, indiferentes aos seus valores éticos, ou à
sua individualidade. Pouco a pouco, a profissão vai perdendo
status e nobreza, e a medicina convencional, estruturada
sobre os interesses de empresas, vive de metas cada vez mais
imediatistas, corroendo o caráter desses profissionais. Não se
pode esperar que a ética se mantenha preservada num
contexto destes.
Portanto, curar a medicina significa recuperar sua
humanidade e sua ética, resgatando valores estáveis: as
relações de trabalho do médico e sua prática.

Conclusões

O sentido de humanidade nasceu com a medicina e é um
dos principais aspectos da sua prática. A medicina o vem
perdendo, de forma assustadora e progressiva, nos últimos
anos.
A perda da humanidade é causada, especialmente, por três
fatores: o excesso de tecnicismo, o desprezo pela
subjetividade dos pacientes e a formação médica incompleta
e pouco direcionada para seus aspectos humanos.
Como conseqüência disso, temos médicos frios e
fisicamente distantes dos pacientes, e instituições
despreparadas para acolhê-los com eficiência e respeito.
Alguns esforços estão sendo feitos no sentido de reverter a
atual situação, como a implantação de programas de lazer
nos hospitais, mas essas iniciativas ainda são tímidas frente à
grande necessidade de mudanças.
A queda dos níveis éticos da medicina que fizeram dela um
dos mais nobres ofícios está relacionada à falta de valores
estáveis na sociedade moderna, assim como ao
esmagamento do médico, como profissional, frente às
poderosas forças econômicas que dominam o mercado.

C A P ÍT U LO 8
A Opressão do Capital

Há quem ache que tratamento de saúde não combina com
lucro, que é absurda a idéia de se querer ganhar dinheiro à
custa de alguém que está doente, improdutivo, fora de
combate. E repugnante vê-lo, fragilizado pela doença, ser
achacado por uma grande empresa. Se é uma distorção
resumirmos, nessa imagem terrível, a prática da medicina
privada, pelo menos ela serve para evidenciar a necessidade
de se regular a ingerência do capital nos serviços de saúde
prestados à sociedade, para que se evitem os abusos que hoje
vemos. Muitas distorções na medicina, como ciência ou
prática, são resultantes dessa situação.
Sabemos que o capital visa, exclusivamente, ao lucro, e que
o sistema desenvolvido pelas sociedades modernas está
apoiado nessa premissa, alheia a questionamentos filosóficos,
éticos, ou às demandas sociais. Sendo assim, é freqüente
entrar em conflito com os objetivos primordiais e nobres da
medicina. Na ausência de uma regulamentação eficiente,
sem a ação de uma agência de controle forte e
independente, e sem uma melhora no padrão dos serviços
oferecidos pelo setor público, é fácil saber quem ganha e
quem perde nessa queda-de-braço.
A situação ideal, justa, de bom senso, seria que a empresa
lutasse por um melhor posicionamento no mercado sem que
isso significasse prejuízo à saúde das pessoas. Mas não é isso
o que costuma ocorrer: a medicina, hoje, é exercida sob a
plena e absoluta opressão do capital. O mercado precisaria
estar atento às limitações geradas pelas questões técnicas e
éticas da área médica para que a saúde das pessoas não
dependesse, inteiramente, das suas regras. Desde que o
mundo é mundo, observa-se que a ambição e a agressividade
de alguns prejudicam muitos.
Alguns médicos percebem o problema e o apontam como
um dos maiores da vida moderna. Como o Dr. Sérgio Xavier,
por exemplo, chefe do setor de cardiologia do Hospital
Universitário Clementino Fraga, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, que se confessa impressionado com a
situação a que chegamos. "Vemos que, nas universidades, há
uma maior procura pelos campos da medicina mais
valorizados sob o ponto de vista financeiro. E o que é hoje
proposto como conduta, na prática médica, está
condicionado à tabela de remuneração e pagamento das
atividades. A valorização excessiva dos exames
complementares, em detrimento da atividade clínica, está
intimamente relacionada a esse comportamento. O médico
não tem mais motivação para fazer clínica, porque ela não
traz mais qualquer compensação financeira, nem prestígio.
Com isso, ele passa a se interessar mais pelos procedimentos
modernos, sofisticados, bonitos, que dêem retorno
financeiro. E a medicina virou essa indústria, em que o
paciente é apenas uma mercadoria, num processo de
produção que visa obter cada vez maiores lucros. A
deterioração da profissão contribuiu para isso. Os médicos se
transformaram em empregados dos planos de saúde, e
procuram definir sua atuação segundo o sistema proposto
pelas empresas", desabafa.
O comentário do Dr. Xavier não é uma opinião isolada.
Entrevistei muitos colegas que também criticaram os grupos
econômicos. Vale registrar o depoimento do Dr. Tomás
Pinheiro da Costa, obstetra e professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que atribui grande pane da piora
da qualidade da medicina às influências distorcidas do
mercado. "O maior problema é a ideologia dominante na
sociedade, esse deus mercado, que regula nossas vidas,
privilegia aspectos que não são, muitas vezes, a essência das
questões médicas, como, por exemplo, a preocupação com a
imagem das empresas, e com o marketing dos seus produtos,
em detrimento do enfoque na veracidade e na seriedade das
informações. Os empresários acreditam que o encanto da
população pelos milagres da tecnologia vende mais do que
um atendimento médico eficiente."
Com certeza, é fundamental que o médico se conscientize
do problema, pois só através de pressões exercidas por
organizações de classe e ligadas às universidades o quadro
poderá se modificar. Para tanto, é necessário também
mobilizar os colegas para a questão. Isso poderá ser feito
através de redes de informação, ainda pouco utilizadas no
Brasil, mas que podem vir a ter grande alcance e força de
influência.
Uma maneira de se buscar respostas mais específicas é
compreendendo como e em quais segmentos de mercado
atuam as empresas do setor. Podemos dizer que há três
grandes grupos loteando a grossa fatia de consumidores dos
serviços e produtos de saúde: as administradoras de planos,
os fabricantes de equipamentos médicos e a indústria
farmacêutica. Cada um pressionando o mercado para atender
às suas demandas. Vejamos como atuam.

As Administradoras de Planos de saúde

Os planos existem para permitir que cada vez mais pessoas
tenham acesso à medicina privada, através de sistemas de
securitarização. No Brasil, o governo optou pelo que é
fundamentado, basicamente, no capital da iniciativa privada,
que, por sua vez, mimetiza o que vigora nos Estados Unidos.
Assim, ele espera que as empresas supram as necessidades da
maior parte do mercado enquanto se ocupa em financiar a
saúde dos segmentos mais pobres da população. Esse nosso
sistema é um verdadeiro desastre. As empresas estão muito
mais preocupadas com sua saúde financeira do que com a da
população, menos ainda, com a dos pacientes em
tratamento. A maneira como agem tem lógica: se gastam
mais do que arrecadam, oferecendo um bom atendimento,
vão falir, e enterrar, com elas, o dinheiro de seus segurados.
Por outro lado, não é possível que uma empresa apresente
um belo fluxo de caixa enquanto a saúde da população é
condenada à falência. Mas é triste constatar que e esse o
modelo adotado.
Na concepção das administradoras, o importante e oferecer
um produto que venda, e que o preço pago seja suficiente
para cobrir despesas e garantir lucros. São imediatistas e nem
um pouco preocupadas com o que poderá acontecer com os
associados daqui a 30 anos. A questão central é como estará
o fluxo de caixa neste e no próximo ano, e quantos novos
segurados elas poderão captar. Os investimentos estão
voltados aos benefícios de efeito pirotécnico, que tenham
impacto de marketing, como UTIs móveis em jatinhos e
helicópteros e equipamentos de última geração, mas jamais
em prevenção. Se os custos da medicina fossem estáveis,
seria mais fácil, para as administradoras, equilibrar suas
contas. Mas, como aumentam, de forma descontrolada,
conseqüentemente suas despesas também crescem, ano a
ano. A estratégia a ser adotada é encontrar brechas para
reduzi-las. E isso, hoje, é feito de duas formas, ambas
nocivas à saúde dos pacientes e à do próprio sistema:
negociando preços e custos com os fornecedores e
diminuindo o número de sinistros a serem cobertos.
No primeiro contexto, o médico se torna a parte mais fraca,
se comparado a hospitais e laboratórios. Seu trabalho é o que
menos pesa no custo geral da medicina, com sua baixíssima
remuneração.
A conseqüência disso e a piora de sua prática, o que acaba
por gerar custos adicionais ao sistema. Com relação à
restrição de cobertura a sinistros, é utilizada uma
metodologia absolutamente perversa: a de encontrar alguma
forma, legal ou não, de não pagar os tratamentos dos
segurados. Até há bem pouco tempo, faziam-se contratos
com diversas cláusulas restritivas, para se eximirem da
responsabilidade do pagamento até mesmo de
procedimentos comuns. Por força de uma lei promulgada
em 1999, essa estratégia cínica não pôde mais ser utilizada
de forma indiscriminada, e as empresas começaram a apelar
para outros expedientes. Os mais freqüentes: a criação de
entraves burocráticos para a autorização de exames e
procedimentos ou, então, simplesmente, o não-
cumprimento do contrato. É comum pacientes desistirem de
serviços dos quais necessitam frente aos obstáculos
encontrados para fazerem valer seus direitos.
Quando se tratar de um descumprimento de contrato, é
preciso que o lesado leve o caso à justiça. Isso se inicia com
um registro de queixa no Serviço de Proteção ao
Consumidor (Procon). Em final de junho de 2000, o órgão
divulgou seu relatório semestral sobre os campeões de
reclamação, e as administradoras de planos de saúde
ocuparam um dos primeiros lugares. Caso o consumidor e a
empresa não entrem num acordo, o primeiro deve entrar
com uma ação indenizatória por quebra contratual, o que,
geralmente, está fora de suas condições financeiras. De
modo geral, ele busca por um acordo ou desiste da
empreitada. Sabendo disso, algumas espertas administradoras
de planos de saúde, em mais uma manobra cruel, não se
preocupam em pagar aos segurados.
E há, ainda, uma estratégia adicional, que é a de punir
qualquer irregularidade cometida pelo cidadão, suspendendo
sua cobertura. As mais freqüentes são por atraso de
pagamento da mensalidade ou a alegação da existência de
doenças preexistentes. Com isso, livram-se de cobrir custos
de exames e tratamentos. Em qualquer sociedade que se diga
civilizada, esse comportamento é intolerável. É preciso que
se criem mecanismos para inibir essas distorções, através de
uma fiscalização mais eficiente, de multas ou de outras
penalizações de ordem financeira, para que o segurado possa
usufruir, justamente, da cobertura do seu seguro, quando
necessitar.
Se as possibilidades de redução ou controle de custos se
esgotam, outra solução adotada pelas administradoras é por
que não simplesmente aumentar a receita. Elas têm
aumentado suas mensalidades acima da inflação, como
instrumento de equilíbrio de suas contas, sob os auspícios do
governo, que acaba por sucumbir à incansável pressão dos
lobbies e libera os aumentos! Essa estratégia foi
implementada a partir da publicação da lei que elevava o teto
das coberturas, e que eliminava as "malandragens" do
contrato. Mesmo sobre um aparente controle da Agência de
Vigilância Sanitária, os preços dos planos praticamente
dobraram nos últimos cinco anos, em valores reais.
Foram propostas outras soluções para baratear o custo da
medicina e equilibrar o caixa das empresas de planos de
saúde. Contudo, estas atendem mais aos interesses do capital
do que, propriamente, à área da saúde. A mais conhecida é o
sistema Manage Care, proposto nos Estados Unidos, que se
baseia no pagamento de um determinado valor, por um
grupo de pessoas, a uma empresa de prestação de serviços
médicos. O valor da mensalidade é estimado pela empresa
de forma a corresponder aos menores custos possíveis para
esse atendimento. A estratégia para atingir a rentabilidade
almejada é limitar o acesso das pessoas aos serviços médicos.
Isso é feito com a utilização de médicos na linha de frente os
gate keeper, cujo papel é selecionar os que "realmente
precisam" de maiores cuidados. O modelo tem sérias falhas,
pois, se está voltado aos indivíduos mais doentes do grupo,
os demais ficam sem um atendimento qualificado o que
significa focar os esforços na doença e se esquecer da
prevenção, agravando as distorções do sistema atual.
Outro ponto a ser questionado é a conjunção de interesses
de empresas que prestam os serviços médicos e administram
o dinheiro dos segurados, simultaneamente. Basta um pouco
de bom senso para se ver que esse tipo de verticalização de
negócios e lesivo à saúde da população. Equivale a colocar a
raposa para cuidar do galinheiro. Quando as empresas que
cuidam dos recursos financeiros dos segurados também
prestam serviços médicos, os resultados podem ser
desastrosos: se o número de sinistros é alto, elas podem
comprar material de segunda categoria, para baixar seus
custos. Ou fazer convênios com clínicas e médicos pouco
qualificados. Os segurados, obrigados a buscar os
profissionais e serviços conveniados, ficam sem opção,
resignados a aceitar a piora gradativa da qualidade dos
serviços que lhes são oferecidos, ao mesmo tempo em que
pagam mensalidades cada vez mais pesadas.

Os Laboratórios Farmacêuticos

Talvez o grupo que tenha maior poder de atuação, e que
mais influencia a medicina, de forma negativa, seja o das
grandes empresas farmacêuticas. Detentoras de um enorme
faturamento e buscando, sempre, aumentá-lo cada vez mais,
elas focam seus esforços em reforçar sua posição
monopolista no mercado. A sociedade brasileira tem
assistido, boquiaberta, à constante queda-de-braço entre o
ministério da Saúde e essa indústria, cm função do abuso nos
preços dos medicamentos. Para um setor cujo principal
objetivo é o lucro, certamente não existe espaço para
preocupações com a pobreza ou a saúde da população. A
chegada dos medicamentos genéricos ao mercado mostrou
como são exagerados os ganhos das grandes empresas, pois
são feitos com a mesma matéria-prima das marcas
consagradas e custam quase a metade do preço.
A justificativa oferecida para preços tão elevados é que
produzir um remédio custa caro, e as empresas são
"obrigadas" a repassar as despesas para o consumidor. Mas na
hora de detalhar esses "custos elevados" elas são
estranhamente lacônicas, informando apenas que um
medicamento exige investimentos da ordem de 250 milhões
de dólares, sem explicar onde e como conseguem gastar essa
montanha de dinheiro.
A tabela mostra os custos reais das pesquisas de
medicamentos, discriminados em suas etapas.
Conclui-se, portanto, que os investimentos destinados a
provar a eficácia e a segurança de um medicamento giram
em torno de cinco milhões de dólares. E claro que existem
custos adicionais não previstos nesse orçamento, como o de
desenvolvimento e implantação de processos, manutenção
de setores de pesquisa, o custo financeiro do investimento
de maturação lenta, o de pesquisa básica que pode ser
grande, dependendo da estratégia do laboratório. Mas, tudo
somado, não ultrapassa a casa dos 50 milhões de dólares.
Para onde vão os outros 200 milhões? Há quem estime que
seus maiores gastos são destinados ao marketing e às verbas
corporativas ou seja, nós pagamos altos preços pelos
medicamentos para custear as propagandas que irão nos
influenciar. Não é irônico? Além dos anúncios nas revistas e
dos minutos preciosos na televisão, investe-se,
principalmente, no patrocínio dos formadores de opinião,
geralmente médicos muito conhecidos, para os quais são
financiadas viagens e outras facilidades. Uma grossa fatia das
verbas vai, também, para centros de pesquisa, congressos, e
para o pagamento de um bom time de representantes do
laboratório, que visitam os profissionais. Isso não parece
absurdo? Mas é o que acontece.
Grande número de médicos não está consciente desses
problemas, mas há vozes questionando a postura ética e os
conceitos técnicos e científicos introduzidos no meio, pelas
empresas. Uma delas é a do Dr. John Lee, que vive na
Califórnia. Há 25 anos, o ginecologista iniciou pesquisas
sobre as ações da progesterona natural, com o objetivo de
administrá-la às suas pacientes durante a menopausa. Sobre o
assunto publicou, em 1993, o livro Natural Progesterone:
Multiple Roles of a Remarcable Hormone, no qual afirma
sua surpresa diante do completo desinteresse e mesmo
resistência dos laboratórios em utilizar essa substância.
Segundo ele, são feitas 650 mil histerectomias por ano, nos
Estados Unidos, e a maior parte poderia ser evitada com o
uso desse hormônio, preterido aos progestágenos sintéticos
que aumentam a incidência de várias doenças, tais como
miomatose e endometriose. Lec fez levantamentos sobre a
incidência de câncer ginecológico e demonstrou que ele
aumentou, significativamente, após a introdução dos
estrogênios sintéticos no mercado. No seu novo livro, What
Your Doctor May Not Tell You About Menopause,
desaconselha, taxativamente, seu uso, recomendando o de
estrogênios e progesterona natural. Sua conclusão é a de que
os laboratórios privilegiaram os sintéticos porque estes
puderam ser patenteados, e, dessa forma, estão gerando
maior retorno financeiro.
Até hoje, a maior parte dos ginecologistas prescreve esses
hormônios, a corto e a direito, tamanha a força do
marketing dos laboratórios. Nem os estudos mostrando o
aumento da incidência de câncer ginecológico,
paralelamente ao seu emprego, conseguiu modificar esse
comportamento. Há um raciocínio simples, que mostra
como essa influência é nociva: como se produz a ciência
médica? Através de pesquisas feitas em institutos e
universidades, publicadas em revistas científicas. Quem
financia essas pesquisas? Quem dá suporte financeiro às
publicações e influencia nas suas comissões editoriais? Os
grandes laboratórios! Então, fica claro o pouco espaço, no
mercado e no ambiente científico, para se discutir assuntos
contrários aos interesses dessas empresas, geralmente
poderosas multinacionais. Se alguém surge com novas idéias,
que possam significar perda de dinheiro para elas, as pedras
em seu caminho são tantas que as pesquisas geralmente não
decolam, e o pesquisador desiste do feito, joga a toalha. Foi o
que aconteceu com o próprio Dr. Lee, que ficou sem espaço
nas universidades e nas revistas científicas, e acabou
publicando suas idéias em meios leigos. Como confiar numa
ciência que é distorcida de acordo com os interesses do
capital? E mais: como fazer para impedir que o capital a
influencie dessa forma?
Realmente, parece impossível se confiar nela. Só através da
conscientização do médico e da ampliação de sua visão nos
livraremos dessa ditadura. Uma inverdade não se sustenta
eternamente e o combustível dos homens é a esperança, a fé
nas mudanças e na melhora da vida de todos. O Dr. Sérgio
Xavier tem essa visão do problema, e comenta que os
grandes congressos internacionais, como o Congresso
Mundial de Cardiologia, no Rio de Janeiro (realizado em
2000), acontecem sob os auspícios das indústrias
farmacêuticas. "Até os nossos heróis são patrocinados por
elas, como o Braunwald, que veio para uma palestra no
simpósio satélite e foi logo embora, sem participar de outras
atividades do congresso ou trocar figurinhas com os colegas
brasileiros. No dia seguinte, tinha uma mesa-redonda, mas
ele nem apareceu, já que isso não fazia parte do acordo
firmado com a empresa que patrocinara sua viagem. Deixou
a impressão de que só veio interessado mesmo em embolsar
o dinheiro do cachê. Essas são as pessoas que escrevem os
livros que lemos, onde estão condutas que aplicamos. E o
que percebemos é que a indústria farmacêutica está por trás
deles. Por isso, acho difícil acreditar que haja isenção no que
essas pessoas dizem e fazem. Não se trata, apenas, de uma
questão moral e ética. Acontece, às vezes, de uma pesquisa
médica apresentar resultados insatisfatórios, ou dados pouco
confiáveis, do ponto de vista científico, e por pressão das
indústrias passa a verdade científica."
Contrabalançar o poder dos grandes laboratórios exige
questionar a ciência atual, destronar heróis e muitas outras
atitudes que só vão acontecer lentamente. Mas não restam
dúvidas de que uma medicina com a qualidade que o novo
milênio exige ainda não tem espaço no atual sistema
econômico.

A Nova Droga

Por influência da indústria farmacêutica, o médico pode
prescrever medicamentos pouco conhecidos por ele. Com
isso, maneja drogas sem suficiente domínio de doses,
potencial de toxicidade e interação com outras substâncias,
que podem prejudicar o paciente. Além do risco maior ao se
optar por novas drogas, seu preço é sempre muito mais caro.
E o que mostra o caso de Maria Olviedo, que procurou o Dr.
E devido a uma tosse renitente às medidas terapêuticas
caseiras.
O sintoma surgira após uma gripe forte, e um mês depois
ainda não melhorara. O Dr. L, respeitado médico do Rio de
Janeiro, que lhe foi indicado como uma ''sumidade",
diagnosticou, corretamente, uma traqueíte pós-viral.
Baseado nesse diagnóstico, prescreveu notfloxacina, uma
quinolona de segunda geração, antibiótico novo no
mercado, na época. Maria começou a sentir dor no
estômago e, no terceiro dia de tratamento, ligou para o
médico. Este insistiu na manutenção da medicação e
solicitou que ela a ingerisse com leite. A intensidade da dor
aumentou e Maria a comunicou a seu médico, recebendo
dele a orientação de tomar um antiácido e retornar para a
consulta no dia seguinte. Foi quando ela teve uma dor de
fortíssima intensidade e procurou-me em meu consultório.
Ao exame físico, suspeitei de sangramento digestivo e a
encaminhei a uma endoscopia de urgência, que mostrou
esofagite de segundo grau, gastrite erosiva e bulbite aguda.
O tratamento foi extremamente difícil. Ela não melhorara da
tosse com o antibiótico e cada vez que tossia tinha dor no
estômago. Foi necessário um acompanhamento por três
meses, até que os sintomas fossem contornados.
Nesse caso, o doutor medalhão, preocupado em adotar as
novidades do mercado, para se mostrar atualizado, optou por
um antibiótico de última geração para tratar um problema
simples, como uma traqueíte pós-viral, que pedia apenas um
expectorante. Ele também parecia desconhecer os efeitos
colaterais do medicamento, retardando sua supressão. Em
conseqüência disso, a paciente acabou com um problema
muito mais sério.

Os Fabricantes de Equipamentos

É um setor mais pulverizado, que produz equipamentos
diversos, e que, por isso, é regido por interesses também
múltiplos. Quem fabrica, por exemplo, kits de laboratório,
atua, no mercado, de forma diferente daquele que faz
equipamentos para endoscopia. Sua influência na medicina
não produz efeitos tão marcantes quanto a dos laboratórios.
Mesmo assim, não pode ser menosprezada, pois tem força
para pressionar, significativamente, os custos da saúde e
atuar de outras formas, Fabricantes de equipamentos
médicos querem que os profissionais os utilizem cada vez
mais, não importando se isso irá comprometer orçamentos
do governo ou dos pacientes. Eles estão sempre financiando
pesquisas para mostrar como seus aparelhos são
indispensáveis para a prática de uma medicina avançada e
altamente tecnológica. Sob a pressão desse lobby, o
profissional é induzido a substituir a clínica por uma pilha de
exames complementares, feitos naqueles belos e modernos
aparelhos.
O marketing da tecnologia, nessa área, é pesado. As
empresas conseguem estender seus conceitos à mídia,
fazendo com que os próprios pacientes pressionem seus
médicos para que solicitem exames desnecessários. No final
dos anos 90, preocupada com seus custos, que não paravam
de subir, a Golden Cross associou-se a um grande laboratório
do Rio de Janeiro num estudo para avaliar, entre os exames
solicitados, em determinado período, qual a proporção entre
os que apresentaram resultados normais e anormais: 96%
foram normais. A Golden, então, procurou entrevistar os
médicos que os solicitaram, para saber a razão dos pedidos.
A resposta freqüente foi que o exame fora prescrito sob
pressão do paciente. O marketing do check-up, como
instrumento de saúde, é resultado da estratégia adotada pelos
fabricantes de equipamentos. O acompanhamento de um
paciente, através de exames, é uma forma importante de
diagnóstico precoce de doenças. Mas deve ser feito após
exame clínico minucioso e avaliação médica, e não sob
pressão de leigos influenciados pelo marketing das empresas,
dispostos a usufruir os serviços oferecidos por seus planos de
saúde, pelos quais pagam tão caro. Entretanto, o que eles
talvez não saibam, porque nunca lhes foi suficientemente
esclarecido, é que a conta desse desperdício irá para seus
próprios bolsos.
É possível compreender melhor como age o lobby dos
equipamentos médicos nos detendo na forma de atuação da
indústria de próteses nome técnico para artefatos não-
orgânicos feitos para substituir órgãos ou panes do corpo
humano. Sua colocação exige procedimentos cirúrgicos, e
quem define o fabricante do material é o médico. Isso
significa que, para o fabricante, bajulá-lo e produzir literatura
"científica" que o impressione é um ponto básico para
vender suas próteses. F. o que ocorre, com freqüência, em
ortopedia: as empresas gastam muito dinheiro patrocinando
congressos, pesquisas e convencendo os médicos a optarem
por seus produtos. Na área de cirurgia cardíaca, a pressão
também é grande. Na última década, por exemplo, foi
introduzida uma nova prótese, chamada stent, para evitar a
obstrução dos vasos após a angioplastia. Até hoje sua
indicação e possíveis efeitos nocivos ainda são objeto de
discussão, mas nada disso impede que seja adotado, de forma
indiscriminada, nas cirurgias cardíacas.
Novamente, o Dr. Xavier se manifesta: "As pessoas indicam
coronariografia, angioplastia e colocação de stent, sem
suficientes critérios. Vários editoriais da literatura médica,
no Brasil e no exterior, questionam esse tipo de conduta. O
stent é um procedimento novo e incorporado de forma
muito rápida pela cirurgia cardíaca, e é preocupante que
esteja sendo colocado, com tanta freqüência, tanto aqui
quanto nos Estados Unidos, simplesmente porque
representa um lucro enorme para a indústria."
Não podemos permitir que a medicina seja conduzida ao
sabor dos ventos do mercado, ao bel-prazer de uma fábrica
de próteses, ou de uma empresa de medicamentos, sem
aplicar ao sistema uma lógica de economia e de melhor
distribuição de recursos.

Conclusões

Misturar lucro e interesses capitalistas à prática médica e
uma questão delicada. Não é humano, nem ético, negar
assistência a qualquer pessoa doente, nem pretender lucrar
com o sofrimento alheio.
Não existem mecanismos para o controle da influência do
mercado sobre o sistema de saúde. Essa força está
concentrada em três áreas: nas administradoras de planos de
saúde, nos fabricantes de equipamentos médicos e na
indústria farmacêutica.
As administradoras de planos de saúde pressionam o
mercado para se manterem lucrativas e acabam por reduzir a
remuneração do médico, contribuindo, dessa forma, para a
queda da qualidade da medicina e, em última instância,
prejudicando os pacientes.
A indústria farmacêutica é o lobby mais poderoso e
influencia a ciência médica financiando revistas médicas,
pesquisas e congressos. O médico conivente com essa
situação poderá receitar medicamentos que ainda não
conhece bem, podendo trazer prejuízos ao paciente.
A indústria de equipamentos tem interesses pulverizados em
vários segmentos de produtos e procura influenciar o
médico, para que este os utilize cada vez mais, elevando o
custo da medicina. O profissional que se submete a essa
pressão torna-se um mercenário, utilizando-se de seu ofício
apenas para ganhar dinheiro.

Capítulo 9
A Formação Limitada

Quando se discute a qualidade da medicina, surge sempre a
questão: ela está piorando porque a qualidade da formação
piorou, ou será que é o contrário? Estamos diante do eterno
dilema do surgimento primeiro do ovo ou da galinha.
Encontrar a resposta é difícil, mas o certo é que, quando
uma coisa piora, a outra sofre logo as conseqüências, e com
isso estabelece-se aquele ciclo vicioso. Para quebrá-lo, é
preciso, sem dúvida, começar por melhorar o nível dos
profissionais, formando gente com uma visão mais completa
de seu ofício, médicos eficientes, humanos e capacitados
para promover as reformas necessárias. O ponto de partida é
a escola, o ensino nas universidades. E é disso que vamos
tratar, analisando como estão os currículos, quais são suas
deficiências e como resolvê-las.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina vem fazendo
constantes alertas ao Ministério da Saúde, com relação à
abertura de escolas de medicina sem infra-estrutura
adequada para formar novos profissionais. Mesmo nas mais
tradicionais e conhecidas, vemos que a formação médica
deixa muito a desejar. Há um movimento saudável no
sentido de melhorar o ensino médico, com a implantação do
"provão", pelo ministério, mas, no meu entender, essa ação
ainda é tímida para garantir um padrão de formação à altura
das demandas de uma grande nação do terceiro milênio,
como o país quer ser visto. Seria interessante que o médico
recém-formado passasse por uma avaliação seletiva do
governo, nos moldes do board certificate americano, ou do
teste do Ministério da Saúde na Alemanha desde que,
evidentemente, fosse feita com idoneidade e coerência.
Contudo, não é apenas a formação técnica que preocupa. O
equilíbrio mental do médico é uma questão fundamental
para se garantir a melhora da prática médica. Dentro de um
hospital, ele detém um imenso poder. E, com isso, um
maníaco munido de um diploma pode torturar e até matar
pessoas fora da mira da lei. Essa questão ficou muito clara,
para a sociedade brasileira, em 1999, quando um estudante
de medicina, com uma metralhadora nas mãos, entrou num
cinema de um shopping paulistano e atirou em quem viu
pela frente. Nas investigações, via-se que tinha um sério
desvio de caráter, problemas emocionais e personalidade
perturbada, com obsessões assassinas. E, vejam só, estava no
último ano de medicina, há poucos meses de obter o
diploma! Imagine se, em vez de atirar a esmo com uma
metralhadora, ele resolvesse usar sua profissão para dar
vazão aos seus impulsos! Seria muito mais difícil pegá-lo e
suas vítimas poderiam se multiplicar até que, um dia, com
sorte, o psicopata fosse identificado. É uma imagem de dar
arrepios essa de uma pessoa doente procurar inocentemente
um médico e topar com um frio assassino escondido atrás do
jaleco, esperando a melhor hora para atacar. Parece ficção,
mas existem outras evidências de que isso é passível de
ocorrer. De acordo com uma pesquisa coordenada pelo
professor Capisano, da Universidade de São Paulo, na década
de 80, na qual 100 alunos da terceira e sexta séries do curso
de medicina foram avaliados por uma junta de psiquiatras e
neurologistas, o resultado foi assustador: 31% dos estudantes
do terceiro ano e 33% do sexto ano preenchiam critérios de
diagnóstico de neurose. E mais: 1 % do terceiro ano e 3% do
sexto ano foram classificados como psicóticos. Esses dados
foram apresentados num congresso de Psicologia Médica, e
são usados como referência, pelo professor Hélio Luz,
quando este frisa a necessidade de se introduzir mecanismos
de avaliação psicológica nas universidades, para tentar
detectar o problema e solucioná-lo através de atendimento
psicoterápico.
Aproveitando a imagem do nosso "dinossauro branco",
imaginemos esse réptil por aí, ainda entre nós, em plena
mutação de hábitos, chocando seus ovos por menos tempo e
tendo filhotes com cérebros menores que, por isso, teriam
problemas de controle motor! Com aqueles corpanzis e sua
enorme força, quão desajeitados seriam! Pois é exatamente o
que está ocorrendo na formação médica: uma grande rede
de escolas sem recursos suficientes, com currículos
defasados, estudantes com problemas emocionais sérios e
médicos se formando sem passar por exames rigorosos. Sem
uma ação rápida, a medicina vai piorar perigosamente.
Tudo o que foi dito pode levar o leitor a crer que formar um
bom médico é coisa rara, exceção, em nosso país.
Felizmente não é assim. Vemos, aqui, estudantes lutadores,
que fazem uma boa formação, a despeito das dificuldades
que encontram. Mas não há dúvidas de que são colocados
no mercado muitos médicos ruins, despreparados,
incapacitados emocional e intelectualmente para exercer a
profissão e com uma visão deturpada da medicina, encarada,
apenas, como um caminho para ganhar dinheiro.

Os Grandes Problemas

A preparação do material para este livro me permitiu
identificar sérios problemas na formação do médico.
Vejamos os principais.

A Compartimentalização

Já vimos que é grande a influencia cartesiana na ciência
médica. Os conhecimentos oferecidos pelos currículos não
propiciam uma visão global das questões. No ciclo básico,
eles são dados isoladamente, em matérias estanques, como
anatomia, bioquímica, biofísica, farmacologia etc. O
estudante, desde o início, portanto, é introduzido às áreas
que já o preparam para as especialidades clínicas pediatria,
ginecologia/obstetrícia, ortopedia, otorrinolaringologia,
cirurgia etc. Nessa formação, na qual se prioriza a visão
fragmentada da doença e do doente, não é abordada, com
profundidade, a importância de se lidar com essas questões
de forma holística. O ideal seria fundir as matérias em
grandes blocos, nos quais as relações das partes com o rodo
pudessem ser ressaltadas.

A Especialização Prematura

Como resultado da formação compartimentada e das
pressões de mercado, muitos estudantes, logo no início,
elegem uma especialidade. Com isso, passam todo o curso
dedicados a um tema especifico, sem dar suficiente atenção
às outras matérias. O resultado é um médico com visão
limitada e uma prática tecnicista e pobre. A Dra. Adriana
Aquino, mestranda em dermatologia do Hospital
Universitário Clementino Fraga, da UFRJ, enfatiza o
problema, que percebe claramente por estar em contato
direto com estudantes dessa escola — considerada a melhor
do Brasil pelo Ministério da Saúde no ano de 2000.
Para combater o problema, é preciso reduzir a
compartimentalização no estudo básico, aumentar o período
de prática generalista e modificar os tipos de graduação em
medicina. O terceiro item é o que exige maiores
considerações. A criação de dois estágios de graduação é
uma necessidade urgente. O primeiro exigiria menos tempo
de prática clínica e de créditos escolares, e uma formação
semelhante à atual, com seis anos de duração, licenciando o
médico apenas para fazer procedimentos específicos, como
endoscopia ou radioterapia, dar pareceres ou atuar em
atividades técnicas, como radiologia e outros exames de
imagem. O segundo estágio corresponderia a uma graduação
que exigiria, no mínimo, oito anos de estudos, sendo quatro
de experiência clínica e treinamento no gerenciamento de
pacientes. Essa opção daria ao profissional licença para
praticar clínica médica generalista ou em especialidades.
Teríamos no mercado, portanto, o profissional autorizado a
clinicar e um outro, apto, apenas, às atividades específicas e
procedimentos que não envolveriam clínica, cirurgia ou
prescrição. O resultado desse novo modelo resultaria,
certamente, na valorização do trabalho clínico, com a
conseqüente melhora na remuneração desses médicos e do
nível de gerenciamento do paciente.

A Carência de Vivência Clínica

O curso médico e teórico em excesso. A infra-estrutura para
o ensino prático adequado, sob supervisão, é um dos itens
que mais custa às universidades e por isso vem encolhendo
nos currículos, em qualidade e quantidade, e os jovens
médicos são cada vez menos treinados em prática clínica.
Do que podemos deduzir que só surgirão profissionais
habilitados a gerenciar pacientes com problemas complexos
de saúde quando receberem bom treinamento clínico nas
universidades. Quando me formei, quem queria fazer um
bom curso procurava estágios suplementares. Fiz vários, em
serviços de emergência e em unidades de terapia intensiva.
Isso mostra que, mesmo naquela época, o currículo da
faculdade apresentava deficiências de atividades clínicas.
Hoje, vem diminuindo a procura por experiências
generalistas fora das escolas, ao mesmo tempo em que os
currículos privilegiam o conhecimento técnico e teórico.


A Falta de Foco em Problemas Comuns de saúde

Os currículos das faculdades geralmente incluem o estudo
de doenças clássicas pouco freqüentes no dia-a-dia. E
importante, evidentemente, que o médico conheça um
vasto número delas para saber diagnosticá-las. Mas a imensa
maioria dos pacientes procura atendimento por problemas
corriqueiros: são dores de cabeça, nas costas, constipação,
gases, gastrites, sinusites, alergias respiratórias, aumento dos
lipídios no sangue, varizes, pressão alta etc. que representam
95% dos casos atendidos em qualquer unidade de saúde. Se
o estudante não é bem treinado para lidar de forma adequada
com esses problemas, provavelmente será incapaz de obter
bons resultados nesses casos, apelando para excessivos
exames e propondo tratamentos pouco eficientes. A
conseqüência final desse processo são pacientes insatisfeitos
e o aumento do custo da medicina.
Para atacar o problema, bastaria valorizar, no currículo
universitário, o leque de doenças comuns à população.
Outro ponto importante seria a incorporação de medicinas
tradicionais, que geralmente apresentam bons resultados no
tratamento desses quadros.

O Bitolamento Nocivo

Bitola é o sistema de trilhos e dormentes sobre os quais o
trem trafega. Pois a formação em medicina deixa o
profissional exatamente assim, atrelado ao raciocínio que
aprendeu a desenvolver na escola, incapaz de questioná-lo e
de construir um outro, diferente.
O tema gerou profundas discussões com o Dr. Ricardo
Caimont e Antunes e o Dr. Alcio Comes, ambos sócios
meus na fundação do Instituto de Acupuntura do Rio de
Janeiro. Para ensinar medicina chinesa a nossos alunos, foi
necessário criarmos uma estratégia que fosse capaz de
quebrar os conceitos bitolados que traziam da faculdade,
para então colocar outros temas em discussão. Para abrir
mentes e corações, boa alternativa é buscar conceitos
reformadores nas medicinas tradicionais, que vêm sendo
exercidas há milênios e, portanto, têm muita informação
técnica acumulada e suporte cultural e prático, encarados,
por alguns pesquisadores, como um tipo de comprovação.
As principais correntes são a homeopatia, a acupuntura, as
medicinas antroposófica e ayurvédica, o xamanismo, a
quiroprática e a osteopatia. Em comum, elas têm algumas
vantagens, como o baixo custo, a simplicidade de
procedimentos e a aplicação em problemas comuns, o que
levou a Organização Mundial da Saúde a aconselhar sua
aplicação em sistemas básicos de saúde. Algumas dessas
terapias têm uma base de investigação científica e, onde
foram aplicadas, apresentaram melhora nos indicadores de
saúde da população. Porém, a maior vantagem na
incorporação desses modelos é que eles auxiliam o médico a
resgatar a visão do todo e aspectos vitalistas e humanos da
medicina.
A fisiatra Sioni Fraga, pós-graduada no Hospital Pedro
Ernesto, da UERJ, um dos melhores centros de medicina do
país, frisa a importância da prática de terapias tradicionais na
qualidade de seu trabalho. "Minha visão mudou inteiramente
com o estudo da acupuntura. Incomodava-me, na medicina
ocidental, especialmente no acompanhamento do paciente
com dor, a falta de um sistema que me ajudasse a
compreender uma série de queixas que não se enquadravam
em nenhum diagnóstico, essas que levam o médico a pensar
que têm origem psicológica. Já na chinesa, é possível
encaixar os sintomas num diagnóstico, conseguindo-se bons
resultados e melhorando a vida dos pacientes, o que é muito
satisfatório na prática diária. Tenho tido sucesso com a
acupuntura, nos sintomas subjetivos e objetivos e ela me
ajudou a ter uma visão global do paciente."
Seria um enorme ganho para a qualidade da medicina se os
universitários passassem por essa experiência. Contudo,
sabemos que a maior parte das escolas não tem setores
voltados para pesquisas em medicina tradicional, e que seus
conhecimentos não entram no currículo. É pena. Ignorá-los
é, na verdade, falta de visão, já que eles conquistam, mais e
mais, credibilidade e espaço no mercado de trabalho. As
faculdades poderiam começar por criar setores de
atendimento que adotassem procedimentos "alternativos",
desde que desenvolvessem pesquisas nesse campo. Em
seguida, criariam módulos opcionais em cursos para os
interessados e um programa de atualização no tema para
professores de outras áreas. Por fim, num terceiro momento,
os módulos ser tornariam créditos obrigatórios.


A Priorização da Técnica em Detrimento da
Formação Humana

Se de um lado as universidades priorizam o ensino técnico,
de outro, para compreender melhor os pacientes, o médico
precisa ampliar sua formação nas ciências que estudam o
homem, como a antropologia e a psicologia. A primeira é
fundamental para o conhecimento dos aspectos primitivos
da medicina na sociedade e do papel da magia na medicina.
A segunda também, já que o médico lida, o tempo todo,
com o simbolismo dos pacientes, e precisa estar preparado
para saber usar esse material no processo de cura. A filosofia,
com certeza, ofereceria suporte ao médico, que precisa ter
uma cabeça aberta e desenvolvida, pois trata de questões
ligadas ao significado da vida e da morte, e sua missão inclui
acompanhar o doente em sua difícil trajetória, muitas vezes
preparando-o para a morte. Essas áreas representam amplos
campos de estudo, e o ideal seria a criação de um curso
sintético voltado às questões essenciais que mobilizam o
médico.
É fundamental, portanto, reivindicarmos a inclusão de
matérias como antropologia e filosofia no currículo da
faculdade de medicina. O curso de psicologia médica precisa
ser ampliado e valorizado.


A Medicina sem História

Não há, nos currículos, uma matéria sobre a história da
medicina. Os profissionais saem das escolas sem a menor
idéia de como a ciência evoluiu, de que bases conceituais
emergiram os conhecimentos hoje utilizados, quais os
grande equívocos do passado, as principais correntes de
pensamento que nortearam os procedimentos terápicos nas
diversas épocas etc. Médicos que se formam praticando uma
profissão sem história desconhecem seus aspectos humanos.
Conhecendo o passado, aprendemos mais sobre o presente e
nos preparamos melhor para o futuro, compreendendo, por
exemplo, a origem de preconceitos e dogmas que
permearam a prática médica. Sobrevivem idéias machistas
como a de que a histeria é uma doença causada por um
hormônio secretado pelo útero. Persiste o conservadorismo
retrógrado que motivou, por exemplo, uma vida de
humilhações a Horace Wells, o descobridor da anestesia. E
topa-se ainda com atitudes insensatas que levaram médicos a
obrigarem nutrizes a desprezarem o colostro antes de
amamentarem seus bebês. Se isso acontece, deve-se ao
desconhecimento da fantástica história da ciência médica,
com seus percalços, descobertas, personagens, mitos,
implicações culturais, sociais, econômicas, religiosas etc.
Uma medicina só poderá ligar-se no futuro se revisar o
passado, e isso precisa ser feito na universidade, como não
acontece, é necessário buscar esses conhecimentos fora dali.
Vejo, no meio médico, grandes profissionais conscientes da
importância de resgatá-los, o que só lhes confere respeito e
admiração. Imagino que quase ninguém tenha dúvidas de
como é fácil e adequado incorporá-los aos currículos
universitários.

O Materialismo

Como conseqüência da formação tecnicista e da falta de
conhecimento humano, os jovens médicos são
excessivamente materialistas, só acreditando nas verdades
"científicas". E claro que eles devem colocar a ciência em
primeiro lugar, mas, ao mesmo tempo, não podem negar
fenômenos simplesmente por não saber explicá-los, como as
curas feitas através das mãos, pelos curandeiros. O
conhecimento científico é limitado e acontecimentos desse
tipo devem ser tratados com respeito, para que possam, um
dia, ser compreendidos aos olhos da ciência.

Síndrome da "Fosforilação"

No jargão dos estudantes, quando algum médico cogita
diagnósticos mirabolantes, diz-se que está "fosforilando". O
termo deriva de "fosforilação oxidativa", processo que
transforma a glicose em gás carbônico, água e radicais fosfato
de alta energia, para serem utilizados no metabolismo
celular. Esse jargão significa que o cara está consumindo
muita energia para manter uma atividade mental intensa,
através de idéias fantasiosas. Médicos excessivamente
influenciados pelo meio acadêmico gostam de fazer
diagnósticos difíceis, "fosforilam" em demasia. O paciente
pode ser prejudicado nessas situações, pois há tanta
preocupação com o diagnóstico raro que esses médicos se
esquecem do óbvio. Há uma tendência a essa deturpação em
formandos saídos de cursos onde impera o tecnicismo.
Durante meus estágios como universitário, tive
oportunidade de observar o quanto esse problema influencia
os estudantes. Nessa época, trabalhei na emergência do
Hospital do Andaraí, onde recebíamos muitos casos de
hemorragia digestiva, ataques de asma, traumatismos, lesões
por projétil de arma de fogo, infarto e acidente vascular
cerebral. Lembro-me bem de como meus colegas se
esmeravam em examinar a mucosa da boca à procura de
telangiectasias, ou de manchas castanhas, que caracterizam,
respectivamente, a doença de Rendu- Weber-Osler e a de
Gardner, duas enfermidades raríssimas. Até hoje, com 19
anos de prática, só vi um caso da segunda e nenhum da
primeira. Mas ninguém se preocupava em saber qual era a
dieta do paciente, se ele estava passando por problemas
difíceis, ou se estava usando alguma medicação causadora de
úlcera. O grande barato era fazer um "diagnóstico difícil".
Telangiectasias — Aranhas vasculares, ou seja, dilatações de
pequenos vasos em forma de uma aranha.
A doença de Rendu-Weber-Osler é hereditária e o paciente
tem múltiplas telangiectasias no trajeto do tubo digestivo, o
que gera maior chance de apresentar episódios de
sangramento digestivo.
Foi o que ocorreu no caso de Manuel Roberto da Silva, que
em 1981, aos 62 anos, foi internado devido a um sopro no
coração. O objetivo era fazer uma avaliação de sua função
cardíaca, já que o sintoma era indicativo de insuficiência
aórtica. Nesse tipo de lesão valvular, quando há insuficiência
cardíaca, a função do órgão se deteriora rapidamente. A
estratégia, portanto, era operar logo, colocando-se uma valva
protética se a lesão fosse grave. Contudo, o caso do Sr. Silva
não parecia ter maior gravidade pela avaliação clínica e pelo
ecocardiograma. Os residentes e internos do hospital
acharam que ele deveria receber alta e passar a ser
acompanhado no ambulatório. Mas o cardiologista
responsável pelo paciente afirmava que havia escutado um
sopro de Austin-Flinr, o que denotava a gravidade da lesão,
indicando a cirurgia. Depois de muita discussão, a equipe
concordou em enviá-lo para um cateterismo. Este mostrou
que, em termos funcionais, a lesão valvular realmente não
era significativa e que a cirurgia para trocar a válvula não
seria necessária. Sem dar o braço a torcer, o cardiologista
continuou insistindo em sua tese, garantindo que, em breve,
o paciente precisaria ser operado o que não se confirmou.
Nesse caso, ficou claro que, no afã de fazer um diagnóstico
raro, o médico esqueceu-se de outras evidências e começou
a torcer para que sua idéia fosse comprovada pelos exames,
exibindo, com todas as suas tintas, uma grande vaidade. Esse
defeito está de tal forma impregnado na personalidade de
certos médicos que estes acabam por distorcer a realidade,
em prejuízo do paciente. Como vários médicos
compartilharam o diagnóstico do problema do Sr. Silva, este
escapou da faca, que fatalmente enfrentaria,
desnecessariamente e correndo riscos, se estivesse nas mãos
apenas do brilhante especialista.
Síndrome do último Artigo Publicado

É relativamente comum, entre os universitários, acharem
que alguém, em seu círculo de relações, sofre da doença que
acabaram de estudar. Isso faz parte do amadurecimento
profissional. O problema é que alguns conservam a mania ao
longo da carreira. E preciso estar atento para se evitar que
essa influência distorça a visão do quadro apresentado pelo
paciente. A freqüência com que acontece é verificado no
número de pacientes com determinado diagnóstico
relacionado com uma doença muito veiculada em meios
médicos e leigos, em determinada época. Um exemplo
recente foi a epidemia de diagnósticos de fibromialgia, que
surgiu por ocasião da grande divulgação de informações
sobre essa doença, na segunda metade dos anos 80, início
dos 90. Subitamente, todo paciente com alguma dor sem
explicação aparente estava com fibromialgia. A pessoa nem
sequer era acompanhada por algum tempo, para que outros
sintomas confirmassem o diagnóstico. A síndrome do "vai-
com-os-outros", como poderíamos também chamar essa
comportamento, pode ser resumida assim: se muitos colegas
falam sobre determinada doença e as publicações discutem o
assunto, quando surge um paciente com sintomas
sugestivos, seu diagnóstico será, provavelmente, a tal doença
da moda.
"Até parece que ele estudou esse assunto ontem!", é o
comentário brincalhão que alguns médicos fazem quando
percebem alguém excessivamente focado num determinado
diagnóstico. Na verdade, todos nós, médicos, sofremos um
pouco dessa síndrome, mas precisamos estar atentos para
que ela não prejudique nossa prática diária. Estudar rodo dia
é ótimo, mas não ficar vendo a doença onde ela não existe.

Aprendendo e Ensinando

"Doutor" vem do latim, docere, e significa ensinar, como
gosta de lembrar o médico Ronaldo Azem, coordenador do
Programa de Medicinas Tradicionais da Secretaria de Saúde
do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Ele ressalta que a
prática médica envolve ensinar muitas coisas ao paciente, e
quem está nessa função também deve estar sempre
aprendendo. Médicos, de maneira geral, estão sempre se
reciclando, se atualizando, já que a grande universidade é
mesmo a vivência profissional. Aquele que veste o jaleco.
empunha o estetoscópio e um diploma deve estar preparado
para seguir vivenciando, aprendendo e ensinando. Só assim
será um grande médico. Mas o que tenho aprendido, em
meu caminho profissional, é que os conhecimentos
amealhados pela medicina só nos conscientizam da
dimensão de nossa ignorância e de como há ainda muito a
aprender. Sejamos, então, humildes, e vamos receber as
idéias novas com alegria, pois elas são as sementes do nosso
futuro.

Conclusões

A formação médica deve ser vista como uma questão
estratégica na melhora da qualidade da medicina: se uma
piora, a outra sofrerá as conseqüências e este é um ciclo
vicioso que precisa ser interrompido.
A formação médica tem vários problemas: é muito
compartimentada, excessivamente teórica, favorece a
especialização precoce e dá pouco foco aos problemas
comuns de saúde.
Faltam, nos currículos, várias matérias que poderiam
oferecer informações importantes na prática médica, como
psicologia e antropologia. A história da medicina precisa ser
estudada e compreendida, pelos médicos; os conceitos éticos
deverão ser mais bem consolidados.
Outro ponto a ser revisto é a ausência, nos currículos, das
medicinas tradicionais. A inclusão desses conhecimentos
aumentará o senso de humanidade do profissional, alargará
sua visão, agregará conceitos inovadores e ainda lhe dará
mais recursos para lidar com problemas simples de saúde.
A prática médica, nas universidades, precisa ser ampliada,
especialmente para aqueles que pretendem fazer clínica. K
importante que se instituam dois tipos de graduação: um,
habilitando o médico à clínica e, o outro, exigindo menos
prática e menor tempo de formação, habilitando-o apenas a
procedimentos, exames e pareceres específicos.
Médicos que não perdem suas manias de estudante podem
comprometer seu desempenho profissional. Uma delas é a
síndrome da "fosforilação", quando ficam tão preocupados
em fazer um "diagnóstico difícil" que se esquecem de
problemas reais do paciente; outra, é a "síndrome do último
artigo científico", quando diagnosticam, nos pacientes, as
doenças que estudaram na véspera.
CAPÍTULO 10
A Medicina Despedaçada

Quem teve o privilegio de assistir às aulas do Dr. Hélio Luz,
professor de clínica médica da UFRJ, e coordenador de um
dos melhores cursos de especialização na área, sabe de sua
aversão à excessiva compartimentalização da medicina. Seu
argumento é original: diz que o paciente não deve ser visto
apenas como um organismo, ou seja, o conjunto de órgãos,
tecidos e estruturas que formam o corpo humano, mas
também segundo o conceito de indivíduo e pessoa.
"Indivíduo é esse organismo provido de sensações,
sentimentos e espírito, e pessoa é esse indivíduo, com sua
história de vida, no seu contexto social e familiar."
Esses aspectos correspondem aos três níveis de bem-estar
que a OMS conceitua como saúde: o organismo funcionando
de forma harmônica, gerando o bem-estar físico; o
indivíduo, com suas sensações, relacionando-se ao bem-
estar mental e espiritual; e a pessoa, com sua história e suas
relações, correspondendo ao bem-estar social. Segundo o
Dr. Luz, nenhum desses aspectos pode ser dissociado. Os
órgãos, como sabemos, são interdependentes. Indivíduo,
como bem diz a palavra, é o ser indivisível. Como separá-lo
de suas sensações e percepções do mundo? E, ainda, como
isolar cada uma de suas sensações? Só podemos percebê-lo
como pessoa, integrado ao seu meio social e familiar.
Portanto, conclui o Dr. Luz, qualquer abordagem propondo
separar um ser humano em partes não pode ser eficiente,
por proporcionar uma visão incompleta do ser como
organismo, indivíduo e pessoa, e, portanto, não estar focada
na recuperação do seu bem-estar, em todos os níveis.
Ao longo do livro, tenho me preocupado em mostrar a
excessiva compartimentalização da medicina
contemporânea como um de seus principais problemas
estratégicos. Essa distorção do modelo ocidental gera uma
série infinita de problemas secundários, entre eles a falta de
visão global do paciente e da doença e, conseqüentemente, a
deterioração da relação médico-paciente —, o excesso de
consultas e de exames com pacientes, a desvalorização da
profissão e o conflito de condutas. Sem falar, do ponto de
vista da ciência médica, na miopia científica da qual já
tratamos, e que impede o médico, como cientista, de
discutir novos modelos, introduzir idéias e rever dogmas.
Hoje, a visão do médico é estreita, sua preocupação com o
indivíduo reduzida, a capacidade de julgamento clínico
deficiente, o potencial de fazer diagnósticos limitados e,
portanto, a atenção ao paciente é restrita, resultando na
grande queixa dos usuários sobre o desinteresse dos médicos
por seus quadros de saúde. Essa é a terceira queixa dos
entrevistados (24,2%) na pesquisa desenvolvida para este
livro (ver em "O Enigma da Qualidade", Capítulo 2). Vimos
que a abordagem reducionista permitiu um avanço
expressivo da medicina e o desenvolvimento de muitas
técnicas de tratamento. Mas já dissemos que de nada adianta
muita capacidade de análise sem a de síntese, e o resultado é
uma deficiência no tratamento das questões globais do ser
humano.
Adeus à Clínica

A clínica é a essência do trabalho médico, e sem ela a
medicina se fragmenta, perde a alma e a identidade. A
ênfase no tecnicismo em detrimento do trabalho clínico faz
com que os jovens médicos dêem mais importância aos
exames complementares e procedimentos, como frisou a
Dra. Adriana de Aquino no capítulo anterior. O problema
também é detectado pelo Dr. Tomas Pinheiro da Costa,
ginecologista e professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, um dos poucos obstetras que ainda prefere partos
normais às cesarianas, por sua postura humanista e de
valorização da clínica. "As empresas de medicina de grupo
anunciam seus fantásticos aparelhos de exames, com
tecnologia de ponta, e não valorizam o trabalho clínico, que
é a essência da medicina. Os currículos privilegiam a técnica
em detrimento da clínica, seja porque estão surgindo muitas
novas escolas de medicina, com currículos moldados nessa
visão compartimentada, ou porque o aluno exige uma
formação cada vez mais direcionada para o mercado."
No Capítulo 8, "A Opressão do Capital", entendemos que
devemos creditar ao mercado o lamentável e completo
desaparecimento do clínico geral, aquela sólida figura que
resolvia os problemas de saúde de toda a família, conhecia
seu histórico e era acionado para tratar tanto de um resfriado
quanto de uma doença mais séria. Hoje, ele é mal
remunerado e luta para manter seu consultório.
Influenciados pelo lobby em torno das especialidades, os
pacientes acreditam que estarão mais bem assistidos por um
super especialista. A verdade é que não vale mais a pena ser
clínico! O bom é dominar um procedimento cuja
remuneração seja melhor. A Dra. Minan Andrade, chefe da
UTI neonatal do Hospital Barra D'Or, com forte formação
clínica, vem se ressentindo do problema, parando com suas
atividades no consultório. Para ela, a estratégia atual, de
supervalorizar procedimentos, especialidades e super
especialidades, em detrimento das consultas, é o fator
determinante da queda da qualidade da medicina.
Em seu interessante livro O Nascimento da Clínica, o
filósofo francês Michel Foucault mostra como os avanços da
ciência médica se fundamentaram no fortalecimento da
clínica assinalado nos séculos XVIII e XIX. A identificação e
classificação da maior parte das doenças foi possível através
do trabalho de observação acurada de grandes clínicos como
o francês Claude Bernard e o inglês Thomas Sydeham. O
modelo da medicina clínica desenvolvido nessa época
incluía grande atenção ao paciente, com exames físicos
detalhados, valorização do todo e preocupação com sua
subjetividade.
"Esse é um problema com muitas causas se
retroalimentando, como num ciclo vicioso. O convênio
paga mal a consulta do médico, que deixa a clínica para focar
sua ação num determinado procedimento. O pneumologista
faz broncoscopia, o cardiologista faz eco, o gastro faz
endoscopia, e assim por diante. E existem outros fatores
influenciando o médico, como o isolamento. Nessa situação,
ele não se atualiza, fica com uma visão cada vez mais
limitada da medicina, e não se interessa pela clínica. Outro
fator é a falta de tempo para conversar com o paciente, nessa
correria da vida moderna. Tudo isso o afasta da clínica",
reforça o Dr. Luis Felipe Mascarenhas, do Hospital dos
Servidores do Estado.

A Falta de Gerenciamento ou um Maestro, por
Favor!

A anamnese do médico muito especializado é, portanto,
limitada, com seu exame físico voltado unicamente para o
órgão focado. Ele deixa de observar sinais e sintomas
importantes e não participa do gerenciamento de problemas
que o paciente possa apresentar, encaminhando-o a outros
especialistas. Sente-se incapaz de acompanhar enfermidades
que assumem um comportamento sistêmico, afetando vários
órgãos, como é o caso da diabetes em endocrinologia, da
hipertensão em cardiologia, do lúpus critematoso em
reumatologia, da cirrose do fígado em gastroenterologia, das
glomerulonefrites em nefrologia. Para compreender esses
quadros complexos, é preciso conhecer muito bem clínica
médica. Ainda na opinião do Dr. Mascarenhas, seria
necessário dar ao especialista um treinamento nessa área,
para que pudesse conduzir seu paciente. "Ou convencer esse
médico a limitar-se a dar um parecer técnico ou a
desenvolver, apenas, determinados procedimentos. No meu
caso, faço clínica pneumológica, e se meu paciente com
DPOC estiver constipado, com artrose, ou tem uma
sobrecarga do coração direito, vou tratá-lo. Mas se
apresentar uma complicação que não posso resolver, indico-
lhe um especialista, ficando com a palavra final da conduta."
Com a facilidade com que muitos médicos, hoje, despacham
seus pacientes para outros especialistas, vemos a triste
peregrinação desses infelizes, batendo de porta em porta
para tentar resolver cada um de seus problemas de saúde, ou
na basca de um diagnóstico. Com tantos profissionais à mão,
acabam sem ninguém que gerencie a conduta de
investigação ou de tratamento. Sem falar que perdem tempo
e dinheiro nessa via crucis, entre consultas e exames, sem
que consigam resolver sua carência de atenção e de
informação sobre a doença. Isso tudo é reflexo do vácuo
deixado pelo clínico geral ou especialista que faz clínica,
pois este tende a estabelecer uma boa relação com os
pacientes, ganhando sua confiança e participando
naturalmente das decisões importantes.
A falta da figura de um gerenciador confiável os leva a
consultar vários especialistas da mesma área atrás de
confirmações de diagnósticos ou de procedimentos,
principalmente no caso de indicações que envolvem riscos,
como cirurgias, quimioterapias e transplantes de medula. Em
alguns casos, isso representa o agravamento de suas
condições emocionais, já que esse estresse desnecessário
muitas vezes potencializa os sintomas e piora a doença. Não
é raro optarem por condutas inadequadas por tomarem
decisões sem suficiente informação técnica ou acabarem
vítimas de um conflito de condutas.
Este problema ocorre quando o médico prescreve drogas
que apresentam interação tóxica ou geram problemas em
outros órgãos fragilizados, por desconhecer o que o colega já
prescreveu ou diagnosticou. Tive oportunidade de observar
pelo menos cinco casos desse tipo, nos últimos anos, no Rio
de Janeiro. Mas se médicos que nem se falam tratam do
mesmo paciente, cada um focado no órgão no qual se
especializou, como não prever esses equívocos? Portanto,
sem um gerenciador, um profissional capacitado a fazer
clínica, que coordene todas as fases do tratamento, será
difícil devolver ao paciente a saúde e o bem-estar que tanto
busca.
Sem um maestro, uma orquestra não seria capaz de manter a
harmonia e o compasso na execução de uma peça. Ora, é
isso o que reivindicamos para a medicina! O administrador
de empresas e maestro paulista Walter Lourenção
especializou-se em dar consultoria a empresas utilizando-se
de sua orquestra. Sua metodologia, já divulgada num
documentário apresentado pelo canal a cabo Globonews, é
traduzir em sons a distorção gerencial percebida nas
empresas. Utilizando o conceito de que "uma empresa tem
que ser afinada como uma orquestra", Lourenção mostra que
um grupo de trabalho deve funcionar de forma harmônica e
que, para tanto, é fundamental aprender a operar em equipe,
sob um comando coerente. E que sensibilidade, sintonia
com o trabalho alheio, motivação e domínio do método são
essenciais no processo. Ou seja, para se chegar a uma
interpretação perfeita de As Quatro Estações, de Vivaldi, ou
para se atingir metas empresariais, tem-se que contar com
todos esses atributos.
O papel do maestro, nesse processo, é vital. Para prová-lo,
Lourenção pede aos músicos que interpretem a peça de
Vivaldi, cada um à sua maneira, apenas mantendo o mesmo
ritmo. O resultado é absolutamente desastroso e cacofônico.
Num segundo momento, pede que tentem prestar atenção
aos colegas. Com isso, o resultado melhora, a música torna-
se mais tolerável. Por fim, o maestro segura a batuta e a
orquestra trabalha sob sua regência, produzindo o belo som
que se espera dela.
Este trabalho nos mostra que, da mesma forma, médicos de
diversas especialidades, que operam instrumentais
diferentes, necessitam de um bom regente. Dessa forma,
seria promovida uma melhora da medicina, incluindo a de
seu potencial de humanidade, e uma racionalização mais
eficiente do uso dos recursos financeiros destinados ao
sistema de saúde, evitando-se uma sobrecarga desnecessária.
Afinal, quando o desperdício é evitado, sobra dinheiro para
se promover uma medicina de mais qualidade para os setores
menos favorecidos da população.
Veja quanto desperdício de tempo e dinheiro, e por quantos
dissabores passou, por exemplo, Rachel Ramalho Quick,
justamente por não poder contar com um clínico eficiente.
Aos 39 anos, ela procurou a fitoterapia para se livrar da
cirurgia de um bócio mergulhante. Já estava em uso de
hormônio da tireóide, que deveria diminuir o tamanho da
glândula, mas isso só ocorreu, de forma significativa, com o
novo tratamento, que também melhorou a sensação de
desconforto local. Isso tudo gerou confiança na equipe
médica, que atualmente a acompanha. A doença de Rachel
foi diagnosticada por sua mãe, que conhecia alguns dos
sintomas, pois na família já haviam aparecido outros casos.
Rachel começara a senti-los há cerca de oito anos, após
perdas afetivas e graves problemas pessoais. A maior parte
deles era subjetiva, especialmente palpitações e opressão no
tórax. Procurou um clínico, que lhe disse que eram de
origem psíquica, prescrevendo sedativos. Insatisfeita com a
recomendação, voltou ao consultório, sendo encaminhada a
um cardiologista que, por sua vez, solicitou um
eletrocardiograma com resultado normal. O especialista
confirmou a opinião do clínico: de que seu problema era de
ordem emocional. Rachel tentou, então, o uso de sedativos,
mas seus sintomas pioraram.
Ao comentar o assunto com a mãe, esta apontou para o fato
de que havia notado aumento da base de seu pescoço, e que
alguns sintomas poderiam ser da tireóide, sugerindo-lhe que
fosse a um endocrinologista. Este, após uma consulta rápida,
disse-lhe que os sintomas não eram de doença endócrina,
indicando outro cardiologista, que fez um detalhado exame
semiológico de seu aparelho cardiovascular e solicitou mais
alguns exames, como ecocardiograma e uma prova de
esforço que, novamente, foram normais. Rachel foi, então,
encaminhada a um gastro, pois apresentava dificuldade de
engolir. Nova consulta, novo exame sumário, mais exames
complementares, e nenhum diagnóstico. Aconselhada pelo
cardiologista, procurou um clínico de renome, que ouviu
sua história, olhou os exames e pediu mais alguns, como
hemograma e lipidograma. Os resultados foram normais, e o
médico voltou a insistir que a paciente utilizasse um
calmante. Passados nove meses, desde que iniciara sua
peregrinação, os sintomas haviam piorado, surgindo,
inclusive, novas queixas. Até então, nenhum dos colegas
tinha palpado sua tireóide! A mãe de Rachel, vendo sua
angústia, propôs uma estratégia para resolver, de vez, a
questão. Convencida de que a doença estava relacionada à
tireóide, instruiu-a a chegar a um novo endocrinologista e
dizer, textualmente: "Doutor, tenho um problema de
tireóide, mas não me lembro o nome. Meu pescoço está
aumentando de tamanho." Este examinou sua glândula,
solicitou um ultra-som e a dosagem dos hormônios da
tireóide, e o diagnóstico foi confirmado.
É uma história incrível! A paciente teve que passar por sete
especialistas, incluindo dois endocrinologistas, para ter um
diagnóstico de bócio mergulhante. Na ausência de um
gerenciador formalmente treinado e designado, os médicos a
passaram de mão em mão, sem que nenhum assumisse o
acompanhamento de seu caso. A incompetência para
diagnosticar o problema foi tanta que sua mãe, leiga em
medicina, mas pessoa de bom-senso, teve que assumir a
situação. A ausência de um protagonista realmente capaz à
frente de todas as etapas de um tratamento gera o
aparecimento do "falso gerenciador" dentro de um modelo
perverso implantado nos Estados Unidos e, também, no
Brasil.

O Falso Gerenciador ou o "Espantalho de
Branco"

A partir de dados analisados pelos planos de saúde
americanos, que mostraram o excesso de consultas médicas
e de exames complementares, e precisando reduzir custos,
os administradores criaram um sistema chamado Manage
Care ao qual já nos referimos rapidamente no Capítulo 8,"A
Opressão do Capital". Segundo suas normas, qualquer pessoa
que busque atendimento deve se consultar, primeiramente,
com um médico "generalista". Mas o tal profissional é
simplesmente um "pau-mandado": seu treinamento não está
voltado para gerenciar a saúde dos pacientes de forma segura
e verdadeira, mas sim para criar obstáculos que os impeçam
de utilizar os serviços pelos quais pagam, assim evitando a
geração de custos para a empresa. Esse médico é chamado
gate keeper, que significa "aquele que cuida do portão", ou
"leão-de-chácara", como chamamos aqui. Para essa função,
são escolhidos os que ficaram de fora dos sistemas de pós-
graduação cm suas especialidades residência ou mestrado, ou
seja, os piores alunos das universidades.
Nos hospitais, apareceram os hospitalistas, médicos também
mal treinados que atuam como uma segunda barreira para
tentar reduzir os custos da internação, avaliando os
pacientes e decidindo quais casos necessitam do
acompanhamento de especialistas e que exames poderão ser
solicitados. A esses profissionais chamo de "espantalhos de
branco", pois se parecem com aqueles feitos de palha e
vestidos como gente, usados para espantar pássaros numa
plantação. Apenas carregam a indumentária e a aparelhagem
de médico, mas perderam todas as suas qualidades essenciais:
a visão global do paciente, a humanidade, o conhecimento
profundo e a responsabilidade de seu ofício.
E claro que um modelo unicamente focado nos custos, ao
invés de atacar o grande problema operacional, que é a
compartimentalização excessiva da medicina, não pode dar
certo. Os custos podem até cair, no início do programa, mas
é certo que, em seguida, a qualidade dos serviços também
vai despencar, e os custos acabam aumentando, num
terceiro momento. São as críticas mais freqüentes de muitos
médicos. O Dr. Alexandre Carvalho, por exemplo, meu
amigo pneumologista de Dallas, garante que, nos Estados
Unidos, existem relatos de problemas surgidos com essa
prática.
0 conluio do Anonimato ou "Muitos Mandam, mas Nenhum
Assume os Erros"
Michael Balint foi uma das primeiras vozes a se levantar
contra o atual modelo da medicina. Em seu livro O Médico,
seu Paciente e a Doença, ele descreveu o que considera a
principal distorção da prática gerada pelo reducionismo, que
chamou de "conluio do anonimato". A expressão é forte e
traduz uma situação cruel: a ausência de um responsável por
decisões na conduta de pacientes internados e vistos
simultaneamente por vários médicos, quando são feitos
procedimentos invasivos e drogas são prescritas, sem que
fique claro quem são os responsáveis pelas indicações.
O "conluio do anonimato" não fica evidente se o resultado
das condutas for bom. Mas se resultarem em iatrogenia,
percebe-se o quão desastroso pode ser, pois a procura por
um responsável leva a um vácuo total: nunca aparece quem
prescreveu tal procedimento, ou tal medicação. A equipe
procura se esquivar da responsabilidade, e essa conivência
entre os profissionais levou Balint a cunhar a feliz expressão.
Sem um responsável formal pela decisão da conduta médica,
ou se esta é decidida num processo pouco claro no qual
alguém sugere um tratamento ou procedimento, outro o
solicita sem discuti-lo e ainda outro aplica o que foi
recomendado instala-se uma situação que pode vir a ser
incontrolável. Se, na avaliação posterior, ficar evidente que a
conduta foi equivocada, potencialmente lesiva, ou gerou
iatrogenia, quem poderá ser responsabilizado? O que ocorre,
nesses casos, é que o profissional que propõe a conduta não
conhece, como deveria, os dados do paciente, e o
encaminha a outro, que está desatualizado naquela
especialidade e que, por sua vez, manda-o para um colega
que, simplesmente, limita-se a aplicar uma técnica, sem
pesquisar se sua indicação está correta. Se esse conluio é
mais uma distorção decorrente do excesso de
compartimentalização, identifiquei outras, como a do
paciente-gerenciador.

O Paciente "por-conta-própria" ou Síndrome do
Labirinto

Movido pelo desespero, por não encontrar um médico que
tome conta dele, aparece em cena o paciente que resolve
assumir seu processo, tomando decisões e, evidentemente,
muitas vezes, incorrendo em sérios erros. Ele é, geralmente,
pessoa de personalidade forte, desconfiada e controladora,
que ouve a opinião de diferentes médicos e decide quais
acatar. Procura especialistas, às vezes de uma mesma área, e
migra de um tratamento a outro, de forma caótica. A menos
que seja médico, geralmente não tem informação técnica
suficiente, nem experiência, para tomar decisões
importantes sobre sua saúde. E é comum que a salada
resultante de suas interferências não traga o benefício
esperado. Seu caminho se torna penoso, labiríntico, a luz no
fim do túnel cada vez mais distante. A cada nova tentativa,
percebe, frustrado, que o problema continua lá. Sem falar
que consultas e exames, que faz e refaz, resultam,
evidentemente, na elevação do custo do sistema de saúde.
Essas distorções ficaram muito evidentes no caso de Rosa
Acioly.
Ela é uma profissional requisitada, que trabalha muitas horas
por dia. No início dessa história, ela voltava de uma viagem
ao exterior, na qual carregou malas e andou muito. Chegou
com uma dor lombar, irradiando para a face anterior da
perna esquerda, que piorou depois de uma aula de ginástica.
Procurou, então, o Dr. V., que lhe aplicou uma sessão de
acupuntura, e solicitou uma ressonância magnética. Como
não melhorasse, Rosa buscou outro acupunturista, o Dr. B.,
melhorando, desta vez. A ressonância magnética mostrou
uma pequena protusão do disco, entre a terceira e quarta
vértebras lombares. Após a terceira sessão de acupuntura, a
dor voltou forte. Rosa procurou um neurologista, o Dr. N.,
que lhe recomendou parar com o tratamento e tomar um
anti-inflamatório, fazer repouso e colocar gelo no local,
atribuindo a dor à compressão feita pelo disco. O
medicamento lhe causou gastrite, o gelo piorou a dor e ela
abandonou o neurologista, voltando para outra sessão com o
Dr. B. A melhora foi pequena e passageira, e o médico lhe
indicou fisioterapia em piscina aquecida. Rosa achou que os
resultados viriam a longo prazo e buscou o conselho de
outro neurologista, o Dr. C., que lhe propôs um
medicamento para aliviar a dor, mas que causava sonolência
e diminuição de raciocínio. Ela passou a usá-lo de forma
irregular, e decidiu partir para um reumatologista, o Dr. G.,
que lhe prescreveu fisioterapia e um anti-inflamatório de
nova geração, mais tolerável ao estômago. A dor piorou com
a troca do medicamento e Rosa achou que a fisioterapia não
estava resolvendo, retomando o tratamento do Dr. C.
Quando precisou viajar novamente, com o esforço de
carregar malas e as muitas horas sentada em reuniões e no
avião, a dor piorou. De volta ao Brasil, resolveu tentar
novamente a acupuntura, com o Dr. B., piorando no dia
seguinte à sessão e interrompendo o tratamento pela terceira
vez. Voltou ao Dr. C., que lhe recomendou ouvir a opinião
de um fisiatra, e manter o medicamento que já estava
tomando. Mas Rosa preferiu escutar um ortopedista, o Dr.
H., que por sua vez insistiu para que tentasse a fisioterapia
convencional. Rosa fez três sessões, sem melhora, e
resolveu procurar a RPG, sem persistir no tratamento, por
não sentir melhora. Nessa longa via crucis, sempre sentindo
dores, buscou outro ortopedista, o Dr. G., que não lhe
ofereceu novas alternativas. Por meses, a história prosseguiu,
e o que poderia ser uma simples dor irradiada tornou-se um
suplício sem fim.

Só, Entre Tantos

O gerenciamento inadequado de um quadro de saúde pode
ser desastroso, seja porque é feito pelo próprio paciente, ou
por um médico incapaz de associar tratamentos e drogas
prescritos por colegas.
Quando há acúmulo de condutas, há riscos de interação
tóxica, como ocorreu com uma senhora que, usando
anticoagulante devido a uma trombose venosa, procurou um
ortopedista devido a uma dor lombar e saiu com uma receita
de anti-inflamatório. O especialista não se deu ao trabalho de
perguntar qual a medicação que ela estava usando e, nesse
caso, as conseqüências poderiam ser graves, já que anti-
inflamatórios reduzem a adesividade das plaquetas do sangue
e, numa pessoa que toma anticoagulantes, pode causar
hemorragia e levar à morte. Felizmente, fui procurado a
tempo de cancelar a indicação.
Nas indicações de reposição hormonal para mulheres na
menopausa, também assistimos a essa grande confusão de
diagnósticos e procedimentos disparatados feitos por
médicos que tratam de uma mesma paciente. Na matéria,
existem três correntes de pensamento: a que recomenda a
reposição quando há uma indicação formal bem definida, a
que defende o modelo tradicional de prescrição e uma nova
corrente, que a sugere com uma indução de ciclos, que
mimetizem os menstruais. Há muitos médicos que dizem à
paciente o que ela deve fazer, quando o correto seria
explicar as condutas, suas vantagens e desvantagens, e
ambos optarem por uma delas.
Compreendemos, enfim, por todas essas situações, que as
distorções causadas pela compartimentalização exagerada faz
com que o paciente se sinta só, abandonado, esquartejado
entre cantos especialistas e desiludido da medicina, por não
poder contar com um apoio efetivo de alguém competente e
humano que o siga durante a dura jornada pelo mundo das
doenças.


Conclusões

O modelo da medicina atual, centrado nas especialidades, é
excessivamente reducionista e compartimentado. Isso
resulta de três fatores: a mentalidade cartesiana, o
tecnicismo exagerado e a política de remuneração da saúde,
que privilegia os especialistas e os procedimentos, em
detrimento da clínica.
A compartimentalização excessiva causa aumento do custo
da medicina, compromete a relação médico-paciente,
desvaloriza a clínica, estreita a visão do médico e impede o
desenvolvimento da ciência.
A falta de visão estratégica leva à implantação de sistemas
equivocados, nos quais trabalhos clínicos de baixa qualidade
são desenvolvidos por médicos com formação precárias,
"espantalhos de branco".
A falta de gerenciamento provoca uma série de distorções
na medicina, como o "conluio do anonimato", como
chamou Baunt. A falta de um gerenciador leva a outras
situações, como a do paciente que assume seu tratamento,
ouve vários médicos e se perde no complexo mundo da
medicina.
O médico capaz de gerenciar a saúde de seu paciente
contribui tanto para a melhora da qualidade da vida dessa
pessoa como também a da própria medicina.


PARTE IV
A Medicina do Futuro

O choque de idéias não é um desastre.
É uma oportunidade para ser aproveitada.
Ilia Prigogine

Capítulo 11
A Medicina e o Caos ou
Receber uma Flor Pode Curar um câncer

Compreender um pouco como funcionam os sistemas
caóticos pode ser uma boa forma de encontrar novos rumos
para a pesquisa médica. As doenças costumam aparecer e se
comportar de forma tão singular e imprevisível que um
médico experiente pode deduzir suas afinidades como esses
sistemas. Por exemplo, no caso de uma gripe, as evidências
muitas vezes apontam para uma questão simples, que se
resolverá em dois ou três dias, com uma medicação
sintomática, mas o problema evolui de forma complicada,
colocando em risco a vida de uma pessoa. Em outras
situações, quadros aparentemente sem solução resolvem-se
como por milagre. Para explicar esse universo
surpreendente, precisamos buscar novos modelos
científicos, mais ajustados às características peculiares da
vida.
Em A Nova Aliança, Prigogine e Stengers afirmam que a
ciência, no século XXI, caminha para um novo sistema de
inter-relação entre suas várias vertentes. Lideradas pela física
e pela matemática, eles mergulham num novo universo,
muito mais complexo e rico do que se poderia imaginar no
fim do século XIX. No atual momento, a filosofia precisará
se reaproximar da ciência, para que, juntas, possam
encontrar melhores caminhos entre as infinitas
possibilidades abertas pelo conhecimento. Novos modelos
de investigação, como a Teoria dos Sistemas Complexos e a
Teoria do Caos, precisarão ser incorporados às diversas áreas
— a medicina é uma delas — para melhor compreensão dos
sistemas complexos e caóticos, como o do organismo
humano.
Meu objetivo, neste capítulo, é sugerir em que áreas a Teoria
do Caos tem potencial para auxiliar a medicina. Ela será um
valioso suporte, por exemplo, na definição de prognósticos,
tornando possível evitar complicações e agravamento de
doenças e, com isso, possibilitará a instituição mais rápida e
eficaz de medidas terapêuticas. Poderá, também, contribuir
para o melhor entendimento da fisiopatologia de doenças
crônicas, que evoluem com períodos de recorrência dos
sintomas, e de melhora, possibilitando novas estratégias de
tratamento para impedir os surtos de atividade patológica.
Por que, atualmente, é tão difícil fazer um prognóstico
preciso para uma doença? Sua evolução depende de uma
complexa interação de fatores que atuam com intensidade
variável, às vezes somando-se a intercorrências
imprevisíveis. A teoria do Caos propõe uma metodologia
para se lidar com sistemas desse tipo, e possibilita a
formulação de uma previsão, de acordo com a quantidade e
a qualidade de informações que se tenha sobre eles. Ela
mostra que os sistemas caóticos, apesar de aparentemente
ilógicos, comportam-se segundo algumas regras. A aplicação
de seus princípios no modelo patológico de doenças
crônicas permitirá conhecer a razão de suas flutuações
clínicas, e ajudará na definição da estratégia que manterá seu
curso estável, sob controle.

A Caracterização do Caos

Essa teoria foi desenvolvida por diversos autores, dois deles
especialmente importantes: Edward Lorenz, professor de
metereologia do Massachusetts Institute of Technology
(MIL), em Boston, que procurava modelos para explicar o
comportamento dos fenômenos atmosféricos; e David
Ruelle, matemático e físico belga, radicado na França, que
estudava o fenômeno da turbulência no fluxo dos fluidos.
Este, em seu livro O Acaso e o Caos, comenta que sua
formação nas duas áreas capacitou-o a desenvolver suas
teorias, pois através da aplicação de modelos matemáticos
chegou a resultados significativos. Utilizou-se, por exemplo,
de alguns propostos pelo matemático francês Henri
Poincarré, que já se preocupara com questões semelhantes,
entre elas o sistema do fluxo turbulento de fluidos e gases.
Também Lorenz foi influenciado por Poincarré.
A imagem clássica da Teoria do Caos, mencionada pelo
meteorologista num ciclo de conferências da Universidade
de Washington, em 1990, é a de que o bater de asas de uma
borboleta, sobre o oceano Atlântico, pode causar uma
tempestade no Pacífico. Isso parece assustador, mas seu
objetivo era apenas o de mostrar que, num sistema caótico,
uma pequena interferência pode gerar grandes
conseqüências. Para Lorenz e Ruelle, o caos é caracterizado
por uma dependência hipersensível das condições iniciais.
Isso significa que uma mudança mínima nessas condições
pode gerar uma modificação de grandes proporções no
sistema. Outro exemplo citado por eles e o da rampa de
esquis. Esses equipamentos, soltos, numa mesma rampa, e
na mesma velocidade, com 10 cm de espaço entre eles,
atingem, ao final da rampa, uma distância de muitos metros
um do outro, após terem seguido trajetórias absolutamente
diferentes.
O segundo aspecto passível de ocorrer no caos relaciona-se
aos "atratores estranhos", eixos em torno dos quais os
sistemas caóticos circulam, com comportamentos
imprevisíveis, ou seja, o "coração" desse sistema. É possível
haver mais de um atrator, fazendo com que o caos varie, ora
em torno de um, ora de outro.
Outro conceito interessante a se observar nesses sistemas,
especialmente nos que envolvem movimentos de fluidos ou
gases, é a Teoria dos Modos, segundo a qual, quando um
líquido recebe uma forte pressão e o atrito aumenta, muitos
modos são excitados, formando-se um fluxo turbulento. A
turbulência, por sua vez, gera um tipo de comportamento
caótico, que ocorre porque os modos apresentam interação
variável, criando um sistema dependente das condições
iniciais, com atratores estranhos.
Podemos comparar os modos às notas musicais: se
pensarmos no mi, por exemplo, sabemos que há "mis" mais
agudos e mais graves. A cada oitava, a onda musical que é
uma vibração dobrada tem sua freqüência dividida ao meio.
Assim são os modos, sendo que estes guardam uma relação
matemática entre si. Cada fluido tem um perfil específico de
modos, de acordo com sua viscosidade, composição e nível
de atrito.
Por fim, há a questão da complexidade e da multifatoriedade,
que deve ser considerada quando falamos em medicina do
futuro. Quanto mais multifatorial e complexo é um sistema,
mais chances ele tem de assumir um comportamento
caótico. O que significa que nem todo sistema multifatorial é
caótico, nem que os mais simples não possam sê-lo. A
multifatoriedade aumenta sua complexidade, mas não
determina, necessariamente, o caos. Inicialmente, os físicos
estudaram os sistemas caóticos simples, como o da rampa de
esquis. Sua representação gráfica permite uma melhor
análise dos resultados.
Falta, ainda, discutir o conceito da aleatoriedade palavra
originária do latim alea, que significa "sorte". São
considerados aleatórios os fenômenos que apresentam um
número limitado de comportamentos, e que, a despeito de
sua irregularidade, podem, numa análise estatística,
apresentar regularidade. Por exemplo, num jogo de cara e
coroa. São apenas duas as possibilidades apresentadas,
independente da força, velocidade e da altura com que a
moeda é lançada: ou ela cai com a cara para cima, ou com a
coroa. Numa amostragem de dez jogadas, é possível caírem
sete caras e três coroas. E, numa segunda vez, seis coroas e
quatro caras. O sistema, portanto, parece ter um
comportamento irregular e imprevisível, mas se a
amostragem for de um milhão de jogadas, e a compararmos
com outra, de igual número, será grande a chance de haver
equiparação na freqüência dos lados. Já nos sistemas
caóticos, em que o número de comportamentos possíveis é
imenso, não é possível determinar um padrão de resposta
por meio de estatísticas.
O fenômeno da aleatoriedade e do caos são distintos,
embora profundamente inter-relacionados. No exemplo da
moeda, o que determina o comportamento aleatório e
imprevisível é o caos se considerarmos a trajetória da
moeda, no ar, quantas voltas ela dá, e o ponto exato onde
cai. E quase impossível reproduzir a mesma trajetória e
comportamento espacial, pois há uma dependência sensível
das condições iniciais. Ou seja, é praticamente improvável se
jogar duas vezes uma moeda exatamente da mesma maneira.
A aleatoriedade pode influenciar os sistemas caóticos por
introduzir modificações em parâmetros antes constantes,
ocasionando o fenômeno da "bifurcação", quando um valor
constante se modifica, alterando o comportamento de um
sistema periódico, que assim se torna caótico, favorecendo o
surgimento ou desaparecimento de um atrator estranho.
Tomemos por base o nosso sistema atmosférico, caótico e
complexo, porém o mais bem estudado até o momento. A
aleatoriedade pode determinar mudanças na atmosfera. Por
exemplo, se houver uma erupção vulcânica de grandes
proporções, a atmosfera ficará impregnada por cinzas em
suspensão que influirão na quantidade de luz que chega à
Terra, de forma a modificar o clima. Já num exemplo mais
radical, se um meteorito de grandes proporções se chocar
com o planeta, trazendo uma quantidade enorme de micro-
partículas e vapor d'água, vai alterar completamente as
constantes, causando uma bifurcação no sistema. Nesse caso,
o sistema caótico assumirá um comportamento diferente,
com outros atratores e um nível de caos provavelmente
maior. As conseqüências seriam tão grandes sobre o clima
que poderiam significar o fim da vida sobre o planeta.

O Caos e os Sistemas Biológicos

Alguns autores já sugeriram a aplicação da Teoria do Caos
aos sistemas biológicos, como vimos no Capítulo 3, "A
Ciência Médica".
Pye e Chance fizeram experiências nas quais controlaram
algumas variáveis bioquímicas de animais, em relação ao
ciclo circadiano, e concluíram que o comportamento das
variáveis era caótico. A própria análise da cinética de
algumas reações bioquímicas revelou a presença de um
comportamento instável, com bifurcações que, na presença
de atratores, evoluíam para sistemas caóticos. Ao
considerarmos que nosso organismo está imerso em água, e
que esta, por sua vez, sofre pressões que afetam seus fluxos,
podemos associá-lo a um sistema desse tipo. Existe, ainda, a
influência do movimento browniano das partículas em
suspensão aquosa, as trocas osmóticas através de membranas
e a interação complexa entre as diferentes substâncias
orgânicas, encontradas nos sistemas biológicos. Tudo isso
afetando a interação entre substratos bioquímicos e enzimas,
e entre substâncias ativas e receptores, concorrendo para
que esses sistemas se comportem de forma caótica.
David Ruelle afirma não ter dúvida de que, nos organismos
vivos, há um grande campo de aplicação da teoria, mas
queixa-se da falta de qualidade e de quantidade de trabalhos
voltados para essa área, apostando que ainda levará tempo
até que se consiga utilizá-la na biologia. Penso, como Ruelle,
que o maior problema, hoje, é formar pesquisadores que
conheçam matemática, física e biologia, capazes de
desenvolver modelos adequados para essas análises. Seria
interessante, por exemplo, juntar cientistas de diversas áreas
num mesmo centro de pesquisa.
A meu ver, há várias questões que devem ser discutidas de
imediato. A primeira diz respeito à complexidade e à
multifatoriedade dos organismos vivos, com milhares de
variáveis, mesmo se considerarmos um simples protozoário
ou uma bactéria o que exigiria uma estratégia bem definida,
talvez semelhante à idealizada por Lorenz para os sistemas
atmosféricos, partindo de esquemas simples.
Outro ponto a ser considerado é que, nos sistemas
biológicos, encontramos o fenômeno da homeostase,
significando que eles reagem ativamente para manter seus
parâmetros estáveis. Vejamos o que acontece, por exemplo,
no caso da temperatura: a vida necessita de água em estado
líquido; congelada, os seres vivos morrem ou têm seu
metabolismo paralisado; por outro lado, a vida também não
suporta temperaturas muito elevadas porque a água, em
estado líquido, pode chegar à ebulição, e nesse processo a
agitação de suas moléculas afeta substâncias vitais, como as
proteínas. Por isso, a maioria dos seres vivos procura manter
estáveis suas temperaturas, entre 4 e 60°C. Já os sistemas
físicos admirem temperaturas que variam entre 272 a +
5.000°C. Uma questão interessante a considerar é com
relação ao pH índice de íons de hidrogênio em solução. Os
sistemas biológicos não suportam pH muito ácidos ou
alcalinos, incompatíveis com seu metabolismo, e possuem
um mecanismo que os mantém numa faixa constante.
Sistemas biológicos podem se "rebelar" contra as leis da
física, procurando as suas próprias. Eles têm uma
"inteligência" peculiar, e ainda enzimas que lhes permitem
adaptar-se às variações físicas e químicas do meio ambiente,
mantendo suas condições internas constantes. Essa
"inteligência" significa que, apesar de caóticos, esses sistemas
têm formas próprias de "controlar" o caos. Poderíamos dizer
que, neles, se estabelece "um caos comportado", ou "um
caos sob controle". É provável que os mecanismos
homeostáticos funcionem como atratores do sistema
caótico, mas seria necessário experimentação e aplicação de
modelos matemáticos para esclarecer esses aspectos.
Quando se propõe modelos para o estudo dos sistemas
biológicos, não podemos nos esquecer de outro aspecto: a
variável tempo tem importância fundamental na concepção
do caos. Os seres vivos evoluem em ciclos regulados pelos
mecanismos homeostáticos, que os mantêm dentro de
margens estritas. Nesse aspecto, não se assemelham aos
modelos clássicos de caos, como a rampa de esquis, ou o
modelo meteorológico. Aqui, a questão principal a ser
abordada é com relação à variável espaço: "Qual a trajetória
do esqui?", "Qual a mudança climática observada nesse
determinado local?" etc. E provável que a discussão espacial
ganhe importância, na medicina, frente a questões como
"Por que essa doença acometeu essa região do corpo?" Mas,
no momento, a grande preocupação é com relação a como
as variáveis do corpo se comportam no tempo, não no
espaço. Penso que a principal questão a ser respondida é:
"Estabelecendo-se o tempo zero, num determinado
momento, poderei saber como as variáveis do sistema vão
evoluir até o tempo X?" Considerando que disponho de um
modelo capaz de estudar o comportamento dessas variáveis,
serei capaz de prever o que estará ocorrendo no momento
X?

O Caos e o Homem

A Teoria do Caos já foi empregada no estudo da fisiologia do
corpo humano, especialmente no estudo das ondas
eletroencefalográficas e da freqüência de batimentos
cardíacos. Contudo, os resultados não foram precisos, como
comenta Ruelle. Do ponto de vista da qualidade, alegou ele
que os estudos foram precários, e que os dados publicados
não exploraram, suficientemente, o enorme potencial do
assunto. Mas insiste na necessidade das pesquisas, frisando a
importância de se discutir aspectos peculiares dos sistemas
biológicos.
Comparado a outros seres vivos, o homem tem um sistema
enzimático6 mais sofisticado e complexo, além de maior
capacidade de manter sua homeostasia em faixas bastante
estreitas. Por exemplo, um vegetal ou um animal menos
evoluído, como o sapo, não controla sua temperatura
corporal. Já o homem, em condições normais, consegue
mantê-la entre 35,5 a 37°C. A faixa de variação de pH é
ainda mais estreita, variando entre 7,35 e 7,45. Isso aponta
para um sistema no qual o caos encontra-se bastante
controlado pelos mecanismos homeostáticos. Compreender
como estes influenciam o comportamento do caos no
organismo humano deverá ser objeto de muita
experimentação.
Seria preciso provar, de início, que os sistemas fisiológicos
do homem têm uma dependência hipersensível das
condições iniciais. O processo necessitaria do
acompanhamento de muitas variáveis e de um vasto
tratamento estatístico para cruzar as informações. Um
estudo desse porte, com tais exigências, seria muito
dispendioso, certamente, e só poderá ser realizado com o
patrocínio de entidades de fomento à pesquisa.
A primeira vista, os seres humanos têm sistemas com
comportamento periódico, alguns acompanhando o ritmo
circadiano, como a secreção de cortisol pela glândula supra-
renal. Mas se pretendermos saber, exatamente, qual o nível
secretado no sangue, cinco horas após um determinado
momento, baseando-se no valor mensurado nesse momento
inicial, e na variação observada nas 24 horas anteriores, a
probabilidade de erro é maior que 99%. Se o sistema fosse
periódico, seria possível prever o valor exato, da mesma
forma como astrônomos conseguem calcular a ocorrência de
um eclipse do Sol, ou a passagem de um cometa. Mas a
imprevisibilidade sugere uma situação mais complexa, com a
dependência sensível das condições iniciais.


O caos e a Doença

As doenças são um eterno desafio à medicina. Grandes
médicos do passado descreveram muitas delas, para que
pudéssemos chegar ao atual estágio de desenvolvimento. Os
avanços tecnológicos permitiram o surgimento de métodos
complementara de diagnóstico, mas vemos que quanto mais
informações são acumuladas, mais surgem perguntas sem
resposta. "Por que uma doença começou desse jeito?", "Por
que pacientes com a mesma enfermidade apresentam
sintomas diferentes?", "Por que um deles evolui mal e o
outro responde bem ao tratamento?, "Por que, numa pessoa,
a doença acomete o joelho e em outra, as mãos?" "Uma
forma uma placa de ateroma8 na coronária esquerda e a
outra, na direita?"
Por mais que se procure lógica no comportamento das
enfermidades, às vezes a busca parece vã. Acumulam-se
estatísticas, trabalhos, publicações, mas, na prática, a doença
freqüentemente surpreende o médico. Algo de padrão tão
irregular e de comportamento imprevisível lembra o quê?
Os sistemas caóticos. Por isso, a Teoria do Caos já foi
proposta no estudo das arritmias do coração. Sem dúvida,
este é um campo onde ela poderá ser aplicada com
excelentes resultados. Esse órgão possui células musculares
com propriedade de se contraírem, após um determinado
período, e desencadearem um estímulo elétrico que pode
vir a contrair as células vizinhas. E exibe um "sistema de
condução" distribuição desses estímulos pelas células dos
feixes cardíacos. Quando o coração está com problemas,
uma das células pode se contrair antes do tempo, gerando o
que se conhece como extra-sístole. Outras vezes, dispara
estímulos elétricos muito rápidos, provocando uma
taquiarritmia. Por fim, a organização de células pode entrar
em pane, cada uma se contraindo num determinado
momento, causando a fibrilação. Quando as arritmias
acometem os átrios, costumam ser benignas, mas, se
atingem o ventrículo, podem ficar mais sérias. O problema é
que, eventualmente, elas têm um comportamento
inesperado, aparentemente ilógico. A Teoria do Caos
poderia nos ajudar a entender melhor o funcionamento
desse sistema e, com isso, poderíamos prever complicações
e uma evolução para a melhora grandes passos, sem dúvida,
para o manejo dessas doenças.
Nesse aspecto, a teoria poderia ser útil na compreensão de
muitas outras. Analisemos, por exemplo, um caso de
infecção por retrovírus vírus do mesmo gênero do HIV, o
da AIDS -, assim chamados por possuírem uma enzima, a
transcriptase reversa, que consegue sintetizar DNA9 a partir
de RNA, e com isso, na célula, transformar seu RNA em
DNA. Este pode se unir aos cromossomos da célula invadida
e sofrer uma mutação, tornando-a cancerosa. Alguns
retrovírus causam leucemia, mas, na grande maioria das
vezes, são destruídos pelo sistema imunológico, sem causar
danos. Vamos, então, imaginar dois cenários para um
retrovírus que infectou uma pessoa. No primeiro,
suponhamos que ele agrediu a pessoa num determinado
momento em que ela estava bem de saúde, alojando-se,
inicialmente, nas células linfáticas da garganta. Nelas,
conseguiu sintetizar DNA, que se incorporou ao
cromossoma de uma, sofreu mutação e a transformou em
cancerosa; nas outras, o vírus se reproduziu, causando uma
infecção. No dia seguinte, essa pessoa recebeu uma notícia
trágica, da morte de sua mãe, por exemplo, caiu em
depressão e seu sistema imunológico também se deprimiu.
Em função disso, a célula cancerosa encontrou facilidade de
crescer e se multiplicar, e a infecção pelo retrovírus
prosseguiu. O paciente se contamina também por um
adenovírus, bloqueado pelo interferon liberado com a
infecção retroviral -, e acredita que teve uma gripe leve. As
células cancerosas caem na circulação e chegam aos gânglios
linfáticos, onde começam a se multiplicar. Nosso paciente
ainda está deprimido e o corpo não reage à presença de
células anormais, e algum tempo depois adoece, com
leucemia.
Vamos propor um segundo cenário, no qual nosso paciente,
após ter sabido da morte da mãe e ter se deprimido
profundamente, contraiu uma gripe por um adenovírus que,
como vimos, causa a liberação de uma grande quantidade de
interferon. Dois dias depois, o retrovírus entrou em contato
com a pessoa (se relacionarmos essas 48 horas com o tempo
de vida médio de um ser humano, de aproximadamente 70
anos cerca de 615.000 horas -, correspondem a 0,0078% do
período, ou seja, representam uma discretíssima modificação
na variável tempo). O retrovírus se alojou numa célula da
garganta e sintetizou DNA a partir de seu RNA, que se
incorporou ao cromossoma da célula, modificando-a e
tornando-a doente. Seguindo com nossa suposição, esta não
conseguiu reproduzir-se porque estava bloqueada pelo
interferon, que, por sua vez, também impediu o
alastramento da infecção retroviral. O adenovírus, além
disso, provocou uma reação forte nos folículos linfáticos da
garganta. Com isso, as células de defesa foram atraídas e
acabaram identificando a que foi alterada, destruindo-a.
Conclusão, nosso paciente se queixa de uma gripe horrível,
que quase o matou, mas foi salvo da leucemia.
Em dois contextos quase idênticos, com uma discreta
modificação de fatores, a pessoa teve uma evolução
completamente diferente: numa possibilidade, uma
leucemia, na outra, uma forte gripe. Isso caracteriza uma
dependência sensível das condições iniciais básicas para que
o caos se estabeleça. A idéia da doença, como sistema
caótico, pode ser reforçada se a encararmos como uma
bifurcação do caos, que caracteriza os sistemas fisiológicos.
Nesse caso, o sistema mudou sua forma de operar
influenciado por um novo atrator. Isto fez com que as
funções do organismo afetado passassem a funcionar numa
faixa anormal — caracterizando a doença.
Tomemos por referência a hipertensão arterial. Os
mecanismos homeostáticos estão ajustados pela nossa
herança genética e mantêm os níveis de pressão nos vasos
sangüíneos entre 10 e 13 milímetros de mercúrio, para a
pressão sistólica, e 7 e 8,5mm/Hg para a diastólica. Isso pode
variar, por exemplo, durante os exercícios, quando o
coração é estimulado e ejeta mais sangue na aorta, e com
maior força, fazendo a tensão sistólica subir um pouco. Mas,
assim que terminam, ela volta ao normal. Em certos
indivíduos, por algum motivo mal compreendido até o
momento, a pressão arterial se eleva. Ou seja, alguma coisa
interfere com o sistema e faz o atrator modificar-se o que
caracteriza uma bifurcação -, e o sistema passa a operar de
forma patológica, como se fosse a correta. Ao identificar a
hipertensão, o médico prescreve um medicamento para
abaixar a pressão, mas o sistema, com o atrator alterado, ou
seja, com uma homeostasia errada, às vezes reage, elevando-
a novamente a níveis patológicos, como se o patamar fosse o
normal. Nesses casos, é preciso introduzir novo
medicamento ou aumentar a dose do que foi adotado
inicialmente.

A Medicina caótica

Como a medicina lida com sistemas caóticos as doenças -,
ela própria assume, por vezes, um comportamento
semelhante. A seqüência de eventos patológicos, ou
causados por distorções existentes no modelo médico, ou,
ainda, por falhas na infra-estrutura do sistema de saúde —
pode reproduzir aquela imagem da borboleta que bateu as
asas e causou uma tempestade do outro lado do mundo.
Felizmente, no caso que narro a seguir, a paciente foi
milagrosamente salva de uma tragédia no último minuto.
Aconteceu durante minha residência num hospital do Rio
de Janeiro. Estava de plantão, de sexta para sábado, no setor
de clínica médica, quando fui chamado para avaliar uma
paciente internada na otorrinolaringologia. Sua doença
começara há dois meses e meio, com uma gripe forte, que,
15 dias depois de instalada, trouxe-lhe fraqueza nas pernas e,
em seguida, fez com que parasse de caminhar. Ela foi levada
a uma emergência onde chegou com falta de ar, sendo então
internada na UT1. Foi constatada uma doença rara, a
Síndrome de Guillan-Barret — reação que pode ocorrer
depois de uma virose e causa inflamação da raiz dos nervos,
na coluna, com lesão do seu envoltório, feito de uma
gordura chamada mielina. Quando perde o envoltório, o
nervo torna-se incapaz de produzir adequadamente as
correntes elétricas que caracterizam a célula nervosa, não
conseguindo mais conduzir os estímulos nervosos para os
músculos. A pessoa, então, vai perdendo os movimentos,
inclusive os respiratórios, e pode morrer. O procedimento
imediato e colocá-la no respirador por longos períodos, até a
função nervosa se restaurar. Mas, para instalá-la no aparelho,
é preciso colocar-lhe um tubo na traquéia e, se este a
pressionar demais, pode originar tuna fibrose local. O
problema é evitado com o alívio da pressão do tubo, feita
várias vezes ao dia pelos enfermeiros da UTI. No caso dessa
paciente, isso não foi feito como manda o figurino, pois em
hospital público nunca há atendentes em número suficiente.
Por isso, duas semanas após ter alta da UTI, ela voltou a
sentir falta de ar, além de fazer barulho para respirar, em
decorrência da fibrose que aparecera e começara a impedir o
ar de passar para o pulmão, na parte alta da traquéia. Isso
motivou uma nova internação: a paciente precisava de uma
cirurgia para alargar a traquéia.
Mas quem fez sua avaliação não foi suficientemente
criterioso para solicitar uma espirometria exame que avalia a
quantidade de ar respirado e a velocidade com que ele entra
e sai. Do contrário, teria visto que a situação era grave,
necessitando de uma cirurgia de emergência. E houve,
ainda, um agravante: a médica de plantão estava em uso de
medicamentos sedativos e a enfermeira não conseguiu
acordá-la para que assumisse o caso. Aflita, tomou a
iniciativa de ligar para a clínica onde eu fazia plantão.
Quando cheguei, percebi logo que a moça estava em
insuficiência respiratória: respirava 40 vezes por minuto,
suas extremidades estavam azuis, pois o sangue não estava
sendo bem oxigenado, e usando um saco plástico constatei
que a quantidade de ar que conseguia respirar era muito
pequena e por isso estava fatigada. Em questão de horas,
poderia morrer. Solicitei uma bandeja para fazer uma
traqueostomia, uma pequena cirurgia na qual se faz um
orifício na traque ia para permitir a passagem do ar. Mas não
havia esse material no setor de otorrinolaringologia! Não
havia tempo para discutir esse absurdo e solicitei à
enfermeira que corresse à UTI para providenciar a bandeja.
Quando ela estava voltando, por incrível que pareça, ficou
presa no elevador. A paciente piorava e já respirava 60 vezes
por minuto. Desci um andar, indo à clínica médica, e pedi
ao enfermeiro-chefe que me cedesse um auxiliar e o
material para a cirurgia, o tal indivíduo negou-me o pedido!
Tratava-se de um infeliz complexado que, nessa época,
terminava uma faculdade de medicina de segunda categoria,
queria ascender em função no hospital (onde hoje atua
como anestesista) e gostava de criar casos com os residentes.
Mesmo argumentando que a paciente iria morrer, não cedeu
e ainda ironizou-me. Perdi a cabeça, chamei-o de assassino e
de mau-caráter. Ele tentou me agredir, mas voltei correndo
ao andar da otorrino.
Na enfermaria, a paciente já entrara cm coma: estava com
um tipo de respiração chamada "peixe fora d'água", que
antecede a morte em minutos. Corri à enfermaria de
proctologia, ao lado, pois a enfermeira da otorrino ainda
estava no elevador, e consegui uma gilete. Usando-a, fiz uma
traqueostomia de urgência. Inacreditável: deu certo! Apesar
de ter cortado a traquéia, no desespero, com uma gilete sem
esterilização, a tireóide não sofreu lesão, nem houve
infecção. A paciente foi levada ao CTI, colocada uma cânuia
de traqueostomia e depois passou por uma cirurgia de
reconstituição da traquéia. Recentemente, fui a esse hospital,
para fazer uma de minhas entrevistas para o livro, e um
colega, também residente na época, e que conheceu a
paciente, disse-me que ela está viva e passando bem, e que
todos os anos vai à minha procura para agradecer-me,
pessoalmente, por ter salvo sua vida.
Vimos que erros em circunstâncias absurdas podem alterar a
evolução de uma doença. E, juntando falhas de todo tipo, de
pessoas e instituições, as complicações da doença e
problemas inesperados como o de um elevador parado, ou
de um aparelho que não funciona numa emergência os
eventos assumem um comportamento imprevisível. Um
acontecimento corriqueiro, uma gripe, por exemplo, pode
determinar momentos dramáticos. A seqüência de eventos,
no caso narrado, foi vertiginosa: a gripe causou a Síndrome
de GuillanBarret, e com a entubação prolongada poderia
surgir uma infecção, uma pneumonia. Mas não, evoluiu para
outra complicação, mais rara, a estenose de traquéia, que
teve relação com cuidados insuficientes na UTI. O problema
foi subestimado, a paciente ficou sem o atendimento correto
e quase morreu. Foi-lhe feita uma traqueostomia com gilete,
sem assepsia, que deu certo, e a moça se salvou sem infecção
ou seqüelas.
Por todas essas circunstâncias, a medicina exige muito do
médico, especialmente no Brasil, onde há pouca infra-
estrutura operacional no setor público. Ele depara,
constantemente, com situações imprevisíveis, em meio a
uma expectativa enorme para que não cometa falhas. Se
tiver instrumentos para melhor avaliar o caos, certamente se
sentirá mais seguro, fará prognósticos mais corretos e
identificará problemas com maior antecedência. E, com
certeza, todos sairão ganhando.

O Caos e as Medicinas Tradicionais

No período em que amadurecia a idéia do livro, lendo sobre
todos esses fenômenos da física, percebi que a atmosfera,
como sistema caótico, tem semelhanças com os processos
biológicos: água, movimento. Ela é complexa e, de certa
forma, sua relativa estabilidade é uma das responsáveis pela
vida no planeta. Atualmente, os meteorologistas conseguem
prever o tempo com cinco dias de antecedência, utilizando
um esquema de coleta de dados, em diversos pontos do
mundo, e um programa de computador para processar mais
de 13 mil equações complexas. Nessa época, vi uma
reportagem na televisão, sobre um estudo feito por uma
universidade do Nordeste Ceará ou Paraíba, não estou bem
certo no qual foi avaliada a eficiência dos "fazedores de
chuva" da região, que se assemelham aos meteorologistas
tradicionais. Através da observação do comportamento de
plantas e insetos, esses práticos diziam se ia chover ou não
no sertão, com seis meses de antecedência. E qual foi a
surpresa dos pesquisadores ao constatarem um índice de
acerto superior a 85%! Ou seja, os sistemas biológicos têm
uma inteligência intrínseca que pode perceber e avaliar o
caos.
Afinal, a vida está aqui, na Terra, há milhares de anos,
passando pelo processo de seleção natural, e os organismos
mais bem adaptados são os que sobrevivem. Antecipar
dificuldades, através da percepção do caos, pode ser um fator
importante para garantir a sobrevivência. Os "fazedores de
chuva", com sua técnica rudimentar, foram mais eficientes,
em termos de antecedência, do que a tecnologia, com seus
cálculos matemáticos complexos e seus supercomputadores.
Talvez algum dia os meteorologistas aproveitem esses
conhecimentos tradicionais e os incorporem às suas
avaliações.
A reportagem remeteu-me à relação dos modelos
tradicionais da medicina com o caos. Da mesma forma que
os "fazedores de chuva" usam sua percepção da natureza
para prever o tempo, esses modelos podem, de alguma
forma, avaliar a evolução dos sistemas caóticos dos
indivíduos, fazer prognósticos e propor medidas
terapêuticas. Existem poucas confirmações científicas, por
enquanto, sobre essas possibilidades, mas a maioria dos
médicos que trabalha com medicina chinesa, por exemplo,
trabalha com essa percepção.
A Dra. Qi Li, que apresentei no Capítulo 3, tem graduação
na medicina ocidental, é especializada em neurologia e
formou-se em medicina chinesa, animada com os excelentes
resultados obtidos com o uso de acupuntura nos pacientes
neurológicos. A partir daí, passou a observar que, aplicando
o diagnóstico tradicional da medicina chinesa, previa melhor
a evolução de um estado de saúde. Suas experiências foram
descritas num estudo, em 1983, cujo resumo foi publicado
na China, em inglês. Infelizmente, muitos autores não
consideram pesquisas desse tipo, duvidando de sua
metodologia.
Provavelmente, formas tradicionais de medicina têm valor
justamente por perceberem detalhes que ajudam a entender
melhor o comportamento dos sistemas caóticos do
organismo humano. Precisam ser mais bem avaliadas, nesse
sentido, para que possam ser reconhecidas, pelos mais
diversos segmentos científicos, como poderosas armas a
serem somadas ao arsenal de combate às doenças. É preciso
considerar o fato de que essas vertentes trabalham com
conceitos amplos, favorecendo interpretações individuais e
prevendo mudanças de comportamento nos sistemas.
Veja o que dizem alguns textos clássicos da MTC: "Quando o
Qi (ou energia) não circula de forma adequada, e fica
estagnado, a circulação de sangue pode ser afetada. Se o Qi
fica estagnado, por longo tempo, pode se transformar em
fogo." Aqui vemos que não existem parâmetros definidos
para a evolução do estado que chamam de "estagnação de
Qi". Corresponderia, por exemplo, a um quadro de estresse,
que tanto poderia resultar numa "alteração do sangue", ou
seja, num tumor ou formação de trombos, quanto no "fogo",
um pico hipertensivo, por exemplo. O método tradicional
chinês possui uma série de achados clínicos que auxiliam a
percepção do caminho evolutivo da doença.
Muitos colegas duvidam de minhas colocações, julgando que
os sistemas tradicionais de medicina são arcaicos, ou, até,
que invento coisas. Reafirmo que o pior erro é o do
preconceito, que leva a julgamentos sem suficiente
informação. Ao invés de alardear a falta de valor desses
sistemas, no campo do diagnóstico e da terapêutica, a
posição correta do cientista é conhecê-los, estudá-los.
Pensando no encadeamento de eventos, na medicina,
podemos sugerir uma nova imagem para o caos: "Receber
uma flor pode curar um caso de câncer", simbolizando que
um pequeno gesto de afeto é fundamental para que o
sistema caótico migre no sentido da cura.

Conclusões

Há necessidade de se propor novas teorias que expliquem
fenômenos biológicos ainda nebulosos na ciência. Entre
elas, a Teoria do Caos.
O caos se caracteriza pela dependência hipersensível das
condições iniciais. Os sistemas caóticos podem ter muitas
variáveis, pois a complexidade predispõe ao caos.
O caos já foi empregado para descrever o comportamento de
sistemas biológicos — como a variação da glicose ou de
outros parâmetros bioquímicos no sangue de animais.
A proposta de desenvolvimento de um sistema matemático,
para avaliar o acaso, na medicina, exige um vasto trabalho de
pesquisa. O modelo a ser definido deverá ser tão complexo
quanto o montado para avaliações meteorológicas.
No campo médico, o caos foi empregado para explicar o
comportamento de arritmias, mas há um extenso campo de
aplicação.
As medicinas tradicionais podem servir de instrumento para
se lidar com a incerteza do caos. O trabalho da Dra. Qi Li,
em Pequim, mostra que um diagnóstico, pela medicina
chinesa, pode apontar as probabilidades da evolução de
doenças.

Capítulo 12
Um Caminho Mais Humano

Dizem que para ser um bom médico é preciso eleger um
grande profissional como modelo. Ao meu avô, Milton
Weinberger, devo a solidez da minha formação e outras
qualidades essenciais à medicina, agregadas ao longo de
minha vida profissional. Ele clinicou no Rio de Janeiro de
1935 até meados dos anos 80, em hospitais como o antigo
Pronto Socorro (atual Souza Aguiar), o Iaserj e a Santa Casa
da Misericórdia. E quem o conheceu testemunhou sua
forma de praticar a medicina, com dedicação sacerdotal e
singular capacidade de criar soluções inovadoras que
aliviassem o sofrimento do próximo, qualidades que nunca
foram ostentadas, pois sempre preferiu a discrição, até
mesmo a humildade, deixando que outros usassem seus
feitos em benefício próprio.
Esses atributos lhe renderam um batalhão de admiradores,
entre pacientes e colegas que respeitavam sua postura
profissional. Foi eleito Médico do Ano, pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro, em 1984. Hoje me
pergunto se não seria essa medicina com médicos éticos e
dedicados, bons resultados e pacientes satisfeitos a ideal para
o nosso futuro. Minha sensação é a de que, em termos de
eficiência, o modelo praticado por meu avô era mais
avançado do que esse, com toda a tecnologia ostentada.
Tenho absoluta certeza de que Milton avô e Milton filho,
protagonistas marcantes dos acontecimentos de minha
história de vida, e que inspiraram este livro, aprovariam este
meu manifesto. Em qualquer plano cm que estejam, serão
meu aliados nessa luta para que a medicina reencontre seus
antigos valores. A imagem daquela praticada por meu avô,
digna e esquecida, e o sofrimento pela curta vida de meu
filho, fundem-se na indignação que brota de minha alma,
como um grito de desabafo: é preciso mudar!
Não há tema mais atual, neste século que se inicia, do que o
do resgate de qualidades como a ética, a humanidade e a
preocupação com o bem-estar dos indivíduos. Minha
esperança é de que, na medicina, esse passivo seja
compensado, e que meu desabafo contribua para aliviar o
sofrimento de pequenos prematuros internados em LTTIs
neonatais, assim como de todos os seres vivos, cm sua difícil
jornada.

O Caminho

Lao Tsé, chinês que nasceu em 604 a.C., na província de
Hunnan, e, conta-se, viveu até os 160 anos, é considerado
um dos mais importantes filósofos da humanidade. Para o
historiador espanhol Felipe Fernandez Armesto, da
Universidade de Oxford, Inglaterra, suas idéias influenciam
os pensadores modernos. A obra mais importante do sábio,
O Caminho, trata do desenvolvimento do espírito humano e
de sua relação com as escolhas feiras no decorrer da vida.
Usando uma linguagem metafórica, ele cria o conceito do
"caminho do meio", e cita, como exemplo, a água, que
encontra seu percurso seguindo a trajetória de menor
resistência, e as soluções que buscam o equilíbrio entre os
opostos (o yin e o yang, da filosofia taoísta).
Com grande sabedoria, Lao Tsé discute as estratégias de
tomada de decisão, a nível pessoal ou institucional.
Transportar seu pensamento para a civilização atual significa
equilibrar as ciências exatas e humanas, a visão global e a
compartimentada, a tecnologia e a tradição, métodos
invasivos e suaves. E preciso alcançar o "caminho do meio"
movimento que implica a identificação dos obstáculos, a
concentração de qualidades e a libertação dos defeitos,
conseguindo-se, assim, os melhores resultados, por meio do
menor esforço.
Se a ciência médica pretende chegar a um objetivo que
abranja o resgate de suas qualidades nobres, usufruindo os
avanços tecnológicos e da incorporação de novas idéias, é
preciso que a escolha desse caminho seja diferente do que
trilhamos no momento. Encontrar o "caminho do meio"
significa buscar soluções de conciliação, flexibilizando
conceitos, evitando posições radicalizadas e conflitos
infrutíferos. Resumindo, precisamos de um modelo mais
humano, capaz de incorporar conceitos avançados,
conciliando-os com o rico e fantasioso mundo espiritual, ao
qual a humanidade sempre esteve ligada.
Não só a filosofia nos aponta esse caminho: vimos que a
física também.
No livro Física Atômica e Conhecimento Humano, que
reúne uma série de ensaios escritos entre 1932 e 1957, Niels
Bohr traz as experiências da física para auxiliar a
compreensão e desenvolvimento de modelos para o estudo
do complexo universo da biologia, em especial o do ser
humano. Suas conclusões, absolutamente atuais, apontam
para a necessidade de se romper com conceitos estanques
como ocorreu com a própria física para que seja possível
conhecer novos universos de idéias, que possibilitem
avaliações mais completas da realidade do ser humano. Sem
dúvida, a ciência percorre, com rapidez, caminhos
fundamentais ao conhecimento, como o mapeamento
genético e de receptores celulares. Mas vimos que ainda não
existem modelos que possibilitem lidar com essa
complexidade de informações, e que favoreçam grandes
avanços no conhecimento da fisiologia do organismo
humano, contribuindo para melhorar a qualidade da
medicina.

O Desafio do Prognóstico

Na revista Veja, em uma edição de novembro de 1999, li
uma matéria sobre a medicina do futuro. Reproduzindo a
tendência atual da imprensa internacional, de um
entusiasmo exagerado com relação aos avanços técnicos, ela
fazia previsões sobre o controle definitivo da obesidade a
partir dos estudos sobre a leptina, e de correções dos mais
diversos problemas através da terapia genética, possíveis já
nas primeiras décadas do século XXI. Algumas semanas
antes, a publicação dedicara várias páginas a mostrar como
falharam, de forma retumbante, algumas previsões feitas na
virada do milênio, por diversas personalidades, entre elas
cientistas, com relação aos passos da ciência e da
humanidade.
A conclusão óbvia é que prever o futuro é extremamente
difícil. O fabuloso escritor francês Júlio Verne chegou a
vislumbrar alguns avanços da ciência em sua obra, mas no
livro Viagem ao Centro da Terra propôs idéias que se
mostraram infundadas, como a existência de um mundo
subterrâneo. Outro a demonstrar uma incrível capacidade de
antevisão de invenções foi o gênio italiano Leonardo Da
Vinci, que desenhou um pára-quedas, mas com formato
desajeitadamente quadrado. Para cada percepção correta do
futuro, temos uma enormidade de idéias delirantes e um
exército de falsos profetas. Como, então, encontrar subsídios
para prever o que o destino reserva para a ciência médica?
A grande ironia é que um dos maiores desafios da medicina
é justamente fazer previsões sobre a evolução do estado dos
pacientes. Fazer um prognóstico é ter que lidar com o
universo de incertezas que nos cerca e intuir qual caminho
será escolhido por esse sistema caótico. Apesar das
dificuldades, a medicina é experiente o suficiente para fazê-
lo, com uma razoável proporção de acerto. Podemos usar
seus conhecimentos para especular sobre seu futuro,
discutindo prognósticos sobre bases científicas.
Vimos, desde o início do livro, que a medicina está cheia de
problemas, doente, e que precisa de tratamento; que sua
enfermidade se agrava, e não há, ainda, uma consciência
geral sobre a necessidade de se buscar caminhos para tratá-
la. O esperado é, portanto, que a situação piore, antes que se
institua uma terapêutica adequada. Mas há tempo para salvá-
la. A boa medicina nasce do inconsciente humano, e
enquanto estivermos por aqui, no planeta, ela também
sobreviverá, mesmo com surtos e agravamentos esperados
nesse processo tortuoso que a levará à maturidade.

O Dinossauro Inteligente

Os dinossauros tinham cérebros pequenos, que lhes
proporcionavam um nível de inteligência inferior ao de um
cachorro. A medicina também tem essa constituição,
mesmo em sua nova versão tecnológica. O esperado é que,
numa nova versão, ela agregue maior capacidade mental, e
se torne um "dinossauro inteligente", capaz de escolher os
melhores caminhos e empregar sua força com eficiência e
com o cuidado necessário a uma área tão complexa um
bicho grande, mas de olhos bem abertos, que vasculhem em
todas as direções, identificando trilhas que possam implicar
menor sofrimento para os pacientes e maior satisfação com
os tratamentos.
Ao longo do livro foram vistos, exaustivamente, os vários
problemas que a medicina precisa resolver, e algumas
soluções possíveis. Alem de pensar e abrir os olhos, o nosso
"dinossauro inteligente" precisa também escutar seu coração:
atender aos apelos sinceros de milhões de pessoas que, como
eu, sofreram ou sofrem com os equívocos da medicina
doente.
A vocês, que se emocionaram com as histórias que contei,
que se indignaram ou se angustiaram com as distorções
expostas, convido a se lançarem na árdua construção da
medicina do futuro.





---------------------
Edgar Madruga
Salvador/BA





 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento

Sem Anestesia - Alex Botsaris
 
 
links ao final da mensagem
 
 
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
 
 Sinopse:

O que acontece quando um médico passa para o outro lado? Quando sente na própria pele o tratamento que a medicina anda oferecendo? Rápido, frio, compartimentado e algumas vezes invasivo. Foi isso que viveu Alex Botsaris quando perdeu seu filho numa UTI de neonatal. Uma fatalidade? Erro? O que poderia ter sido feito e não foi? Diante de tantas perguntas, Botsaris promoveu uma profunda reflexão sobre o papel da medicina hoje. Sem anestesia é o relato emocionante de um médico diante do seu próprio ofício. Por que a relação médico/paciente se transformou num mero negócio?
 
De forma corajosa Botsaris clínico geral e acupunturista radiografa a atual situação da saúde brasileira. Relata casos de erro médico, discute a formação dos profissionais, a roda-viva dos planos de saúde e compartilha com o leitor angústias e dúvidas de quem vive o dia-a-dia dos hospitais. Para o autor, é preciso que o médico tire sua máscara e dê um basta à síndrome do médico apressadinho. Resgatar a essência de sua profissão que é a arte de curar humanizar o tratamento, aprofundar a relação com o seu paciente e olhar a medicina pelo viés da qualidade de vida.
 
 
 
 
 
 
 
PASTAS LANÇAMENTOS Genesis do Conhecimento:
 
 
http://rapidshare.com/users/KPGYUD 
 
http://www.mediafire.com/?q6ebsi7j6b5cv
 
 
 
 
 
 
Este e-book representa uma contribuição do grupo Genesis do Conhecimento  para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir, direta ou indiretamente, benefícios financeiros.
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2 comentários:

Unknown disse...

Olá, eu quero aproveitar essa oportunidade para compartilhar meu testemunho. Meu nome é monicia blair. Tenho 44 anos de idade. Já enfrento o problema do fibriod há mais de 8 anos, o que diz que um com ele nunca pode dar à luz. o que me deixou preocupado e triste por cerca de 5 meses até um bom dia, expliquei a minha mãe o que estava passando e ela me contou como ela dirigiu pessoas para um herbalista chamado dr.ebosele. E eu fiz com que ela entenda que eu nunca conheceu o herbalist até que ela me tenha jurado com sua vida antes de ser tocado e eu recebi o contato que é o email: dreboselesolutioncenter@hotmail.com ou número do Whatsapp +2348147461232 que contatado para cortar a história curta, ele me enviou um ervas medicinais e me instruiu sobre como levá-lo.2 semanas depois, comecei a sentir dores em torno do meu tommy e fui ao hospital para o teste. O médico me disse que estava grávida. Por favor, entre em contato com dr.ebosele agora para obter seu problema resolva agora, contactando-o em: dreboselesolutioncenter@hotmail.com ou adicione-o no whatsapp +2348147461232 ele também pode ajudá-lo a ficar grávida, mesmo quando você não tem ciclo menstrual, ele pode fazer você voltar para que você possa engravidar e ter seu próprio filho com pressa agora para que você possa compartilhar seu próprio testemunho como um expectante também, ele também me disse que ele também pode curar câncer de mama e outras doenças até mesmo viúvas e feitiços de HIV para trazer o seu ex amante de volta, ele é um grande homem, obrigado pela compreensão

AIB FUNDING. disse...

O ótimo medicamento fitoterápico do Dr. imoloa é a cura perfeita para o vírus HIV, fui diagnosticado com HIV por 8 anos e todos os dias sempre procuro pesquisas para encontrar a maneira perfeita de se livrar dessa doença terrível, porque sempre sei que precisamos porque nossa saúde está na terra. Então, na minha pesquisa na Internet, vi vários testemunhos sobre como o Dr. imoloa pode curar o HIV com medicamentos fitoterápicos poderosos. Decidi entrar em contato com esse homem, entrei em contato com ele para obter medicamentos fitoterápicos que recebi pelo serviço de correio da DHL. E ele me guiou como. Pedi-lhe uma solução para tomar fitoterapia por duas semanas. E então ele me instruiu a ir verificar o que eu estava fazendo. Olhe para mim (HIV NEGATIVO). Agradeço a Deus pelo Dr. Imoloa por usar um poderoso remédio herbal para me curar. ele também tem uma cura para doenças como a doença de Parkison, câncer vaginal, epilepsia, transtornos de ansiedade, doenças auto-imunes, dor nas costas, entorses, transtorno bipolar, tumores cerebrais, malignos, bruxismo, bulimia, doença do disco cervical, doença cardiovascular, doença cardiovascular, entorses, transtorno bipolar, tumores cerebrais, malignos, bruxismo, bulimia, doença do disco cervical, doença cardiovascular, doença cardiovascular, entorses, distúrbio bipolar, tumores cerebrais, maligno, bruxismo, bulimia, doença do disco cervical, doença cardiovascular, doenças respiratórias crônicas, doenças mentais e distúrbios comportamentais, fibrose cística, hipertensão, diabetes, asma, artrite mediada autoimune. Doença renal crônica, artrite, dor nas costas, impotência, espectro do álcool feta, Distúrbios distímicos, Eczema, câncer de pele, tuberculose, Síndrome de fadiga crônica, constipação, doença inflamatória intestinal, câncer ósseo, câncer de pulmão, feridas na boca, câncer bucal, dor no corpo, febre, hepatite ABC, sífilis, diarréia, doença de Huntington, acne nas costas, insuficiência renal crônica, doença de Addison, doença crônica, doença de Crohn, fibrose cística, fibromialgia, doença inflamatória intestinal, doença fúngica das unhas, paralisia, doença de Celia, linfoma, depressão grave Melanoma maligno, mania, melorreostose, doença de Meniere, mucopolissacaridose, esclerose múltipla, distrofia muscular, artrite reumatóide, doença de Alzheimer email- drimolaherbalmademedicine@gmail.com / ou {whatssapp ..... + 2347081986098}

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