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Waris Dirie (nome que significa flor do deserto) tem uma vida dupla - durante o dia, é uma modelo famosa a nível internacional, e a porta-voz das Nações Unidas para
os direitos da mulheres em África. À noite, os seus sonhos levam-na de volta a casa, na Somália.

Waris nasceu numa família tradicional de doze filhos, numa tribo de nómadas do deserto Africano. Recorda-se da sua infância despreocupada - as brincadeiras com os
irmãos, as corridas de camelos, as mudanças da família para os novos locais de pastagem... Até ao dia em que chegou a sua vez de conhecer a anciã que lhe iria aplicar
o antigo costume imposto à maioria das raparigas Somalis: a mutilação genital. Waris sofreu esta tortura quando tinha apenas cinco anos de idade. Quando, já com
doze anos, o seu pai tentou negociar o seu casamento com um desconhecido de 60 anos, em troca de cinco camelos, Waris desapareceu. Após uma extraordinária fuga pelo
deserto, conseguiu chegar a Londres, onde trabalhou como empregada do embaixador da Somália, até ao regresso deste a África.

Sem dinheiro e com poucos conhecimentos da língua Inglesa, empregou-se então como porteira do MacDonalds onde viria a ser descoberta por um fotógrafo de moda. A
sua história é uma fonte de inspiração e um extraordinário auto-retrato de uma mulher memorável, cuja personalidade é tão arrebatadora com a sua beleza.

Waris Dirie é uma modelo famosa e a imagem dos produtos de beleza da Revlon. Em 1997, foi nomeada pelas nações unidas embaixadora para os direitos das mulheres,
na luta pela eliminação da prática da mutilação genital feminina. Vive actualmente em Nova Iorque com o namorado e o filho de ambos. Os direitos cinematográfico
do seu livro foram vendidos à Rocket Pictures, a empresa de cinema de Elton John.


WARIS DIRIE e CATHLEEN MILLER
FLOR DO DESERTO
A EXTRAORDINÁRIA ODISSEIA DE UMA NÓMADA DO DESERTO
TRADUÇÃO - TOMÁS PA Z DA SILVA
ASA
LITERATURA
Título Original : DESERT FLOWER C 1998, Waris Dirie
1: edição: Maio de 2000
4, edição: Maio de 2002

Depósito legal nº 177443102
ISBN 972-41-2301-4
Reservados todos os direitos
ASA Editores 11 S.A.
SEDE
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DELEGAÇÃO EM LISBOA
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1900-663 LISBOA - PORTUGAL

A MINHA MÃE

Quando percorremos o caminho da vida, enfrentando tempestades, desfrutando do sol muitas vezes dando connosco em pleno ciclone, sobrevivemos apenas graças à força
de vontade. Dedico, pois, este livro à mulher que me carregou aos ombros, àquela cuja determinação é inabalável: a minha mãe, Fattuma Ahmed Aderi. Enquanto se defrontava
com uma inimaginável adversidade, sempre deu provas de fé. Dedicou-se de forma igual aos seus doze filhos (um feito notável) e mostrou um discernimento capaz de
tomar humilde o sábio mais perspicaz.
Fez inúmeros sacrifícios, sem se queixar, e nós, os seus filhos e filhas, sabíamos que ela nos deu sem reservas tudo o que possuía. Ela conheceu a dor intolerável
de ver morrer vários dos seus filhos, mas nunca perdeu a coragem e encontrou sempre força para continuar a lutar pelos que lhe restavam. A sua génerosidade, a sua
grandeza de alma, a sua bondade a sua beleza, são lendárias. Mãe, amo-te, respeito-te e lembro-te com carinho; e agradeço Alá Todo-Poderoso ter-me dado uma mãe como
tu. Rezo para que Ele me ajude a honrar-te criando o meu filho como tu fizeste, infatigavelmente, com os teus filhos.
És a saia escocesa que o jovem dândi escolheu.
És o tapete precioso que custou milhões.
Alguma vez encontrarei alguém como tu - tu, que só vi uma vez? Um guarda-chuva parte-se; tu és forte como o ferro forjado.
És como o oiro de Nairobi, finamente moldado.
És o sol que se levanta, os primeiros raios da aurora,
Alguma vez encontrarei alguém como tu - tu, que só vi uma vez?
Poema tradicional somali
NOTA DOS AUTORES
Flor do Deserto é o relato verídico da vida de Waris Dirie, e todos os eventos apresentados são factuais, baseados nas suas memórias. Com o intuito de respeitar
a vida privada das pessoas retratadas nesta obra, utilizámos pseudónimos para a maioria delas.
A FUGA
Arrancada ao meu sono por um ligeiro ruído, entreabri os olhos e vi apenas uma coisa, a cabeça de um leão! Totalmente desperta e fascinada, senti os meus olhos abrirem-se
desmesuradamente como se quisessem conter o animal inteiro que estava diante de mim. Tentei levantar-me, mas as minhas pernas fracas recusaram-se a obedecer-me pois
não comia há vários dias. Deixei-me cair contra a árvore debaixo da qual me abrigara para me proteger daquele sol implacável em pleno meio-dia no deserto africano.
Fechei os olhos e encostei suavemente a cabeça contra a casca rugosa da árvore. O leão estava tão próximo que sentia o seu cheiro almiscarado no ar quente. Dirigi-me
a Alá: - É o meu fim, meu Deus. Leva-me, peço-te.
A minha longa viagem através do deserto chegara ao fim. Não tinha nada para proteger, nenhuma arma. Nem forças para correr. Mesmo na melhor das hipóteses, sabia
não conseguiria escapar ao leão subindo à árvore porque, como todos os felinos, era certamente um excelente trepador e, com as suas garras poderosas, seria muito
mais rápido que eu. Quando eu tivesse atingido apenas meia altura - ZÁS -, uma patada e seria o meu fim. Não sentindo qualquer espécie de medo, voltei a abrir os
olhos e disse-lhe: - Vês eestou pronta. Era um belo macho, com uma juba dourada e uma longa cauda que abanava incessantemente para repelir as moscas. Tinha uns cinco
ou seis anos, era jovem e saudável. Eu sabia que podia esmagar-me num abrir e fechar de olhos - ele era o rei. Durante toda a minha vida tinha visto aquelas patas
atacarem zebras e algumas centenas de quilos mais pesados que eu.
O leão observou-me com os seus olhos cor de mel piscando suavemente. Fixei os seus olhos castanhos, e ele desviou o olhar. - Vamos, acaba comigo. - Ele observou-me
novo antes de desviar o olhar. Lambeu as mandíbulas e sentou-se. Depois levantou-se de novo, caminhou diante de mim, para a frente e para trás, com um andar sensual,
elegante. Acabou por se virar e afastar-se, certamente convicto de que os meus ossos tinham tão pouca carne que não valia a pena comer-me. Vi-o afastar-se com grandes
passadas através do deserto, até a sua pele dourada se confundir com a areia.
Não me senti aliviada quando compreendi que o leão não me mataria, porque não tinha tido medo. Estava pronta para morrer. Mas Deus, que sempre foi o meu melhor amigo,
tinha outros planos para mim, e uma razão para me manter viva. Perguntei-lhe: - Qual? Toma a minha mão, conduz-me! - e levantei-me penosamente.
Tinha iniciado esta viagem de pesadelo para fugir ao meu pai. Naquela altura, eu devia ter treze anos e vivia com a minha família, uma tribo nómada no deserto da
Somália. O meu pai anunciara o meu casamento próximo com um homem mais velho. Sabendo que tinha de agir com rapidez, antes que o meu novo marido me viesse buscar,
dissera à minha mãe que queria fugir. O meu plano era encontrar a minha tia materna que vivia em Mogadíscio, a capital da Somália. Claro que eu nunca tinha ido a
Mogadíscio, nem de resto a nenhuma outra cidade do género. E também nunca tinha conhecido a minha tia. Mas com o optimismo de uma criança, sentia que de uma forma
ou de outra, como que por encanto, as coisas correriam de feição.
Enquanto o meu pai e o resto da família ainda dormiam, a minha mãe acordou-me e disse-me: - Chegou a hora. Vai! - Eu olhei em volta para ver se havia alguma coisa
que pudesse agarrar para levar comigo, mas não havia nada, nem uma garrafa de água, nem um jarro de leite, nem um cesto de comida. Por isso, descalça, apenas com
um longo lenço envolvendo-me o corpo, precipitei-me na noite escura do deserto.
Não sabia que direcção tomar para Mogadíscio, por isso limitei-me a seguir em frente. Lentamente a princípio, porque não via nada; avançava escorregando e tropeçando
nas raízes. Finalmente, decidi sentar-me enquanto esperava que o dia nascesse, porque em África as serpentes abundam, e eu tinha pavor a esses animais. Imaginava
que cada raiz onde punha o pé era uma cobra venenosa. Observei o céu iluminar-se progressivamente e, mesmo antes de o sol se levantar, ooops!, já tinha saltado como
uma gazela. Corri, corri, corri durante horas.
Por volta do meio-dia, estava perdida muito longe na areia vermelha, e muito longe também nos meus pensamentos. Perguntei-me aonde diabo ia. Não sabia que direcção
tomar. A paisagem estendia-se até ao infinito; apenas uma acácia ou um arbusto espinhoso quebrava por vezes a uniformidade da areia. Esfomeada, sedenta e cansada,
abrandei o
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passo e avancei lentamente numa espécie de transe, pensando aonde me levaria a minha nova vida, no que iria acontecer-me a seguir.
Enquanto me punha todas estas questões, pareceu-me ouvir alguém chamar: W-A-R-I-S!... W-A-R-I-S!... - Era a voz do meu pai. Mas não vi ninguém. Pensei que era a
minha imaginação a fazer-me das suas. - W-A-R-I-S!... W-A-R-I-S!... - O grito ecoava por toda a parte. O tom era suplicante, mas eu tinha muito medo. Se o meu pai
me apanhasse, levar-me-ia certamente de volta para casa e obrigar-me-ia a casar com o tal homem. E provavelmente bater-me-ia ainda por cima. A voz era bastante real
e estava cada vez mais próxima. Desatei a correr, tão depressa quanto podia. Apesar do meu avanço de várias horas, ele havia-me quase alcançado. Mais tarde, compreendi
que ele me encontrara seguindo as minhas pegadas na areia.
Pensei que ele era demasiado velho para me apanhar; eu era jovem e ágil. Para a minha mente infantil, ele era um velho. Hoje, lembro-me, rindo, que ele devia ter
cerca de uns trinta anos. Toda a minha família estava em plena forma física, porque andávamos sempre a correr por toda a parte; não tínhamos carro, nem qualquer
tipo de transporte público. Eu corria sempre muito depressa: para caçar animais, para ir buscar água, para não me deixar surpreender pela escuridão e voltar a casa
antes do cair da noite. Ao fim de um bocado, tendo deixado de ouvir a voz do meu pai, abrandei o passo. Achei que, se continuasse assim, ele cansar-se-ia e voltaria
para casa. De repente voltei-me e vi-o avançar na minha direcção. Ele também me tinha visto. Aterrorizada, corri mais depressa. E mais depressa ainda. Era um pouco
como se estivéssemos a fazer surf em ondas de areia. Eu lançava-me para o alto de uma duna enquanto ele descia deslizando pela que se encontrava atrás de mim. Continuámos
assim durante horas até que finalmente compreendi que ele já desaparecera há algum tempo. Já não ouvia gritar o meu nome.
Com o coração a bater desordenadamente, parei e olhei em volta, escondida atrás de um arbusto. Nada. Escutei com muita atenção. Nem um som. Atravessei um pequeno
leito rochoso e parei para descansar. O meu erro da noite anterior servira-me de lição. Quando retomei a marcha, andei por entre as rochas onde o chão era duro e
depois mudei de direcção para que o meu pai não pudesse seguir as minhas pegadas.
Ele tinha provavelmente feito meia volta tentando voltar para casa, uma vez que o sol estava a pôr-se. No entanto, não conseguiria chegar antes do anoitecer. Teria
de correr na escuridão, tentando ouvir os sons nocturnos produzidos pela nossa família até encontrar caminho graças às vozes das crianças que gritavam e riam e aos
ruídos dos rebanhos que baliam e mugiam. No deserto, o vento transporta os sons para muito longe e servem-nos de ponto de referência quando nos perdemos à noite.
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Depois de ter andado sobre as rochas, mudei de direcção. Não importava que direcção escolhesse uma vez que, fosse como fosse, eu ignorava o caminho a tomar para
chegar a Mogadíscio. Continuei a correr até o sol se pôr, até a luz desaparecer e a noite ser tão escura que não conseguia ver nada. Nessa altura, tinha tanta fome
que já não conseguia pensar senão em comer. Os meus pés sangravam. Sentei-me debaixo de uma árvore para descansar e adormeci.
De manhã, o calor do sol no meu rosto acordou-me. Abri os olhos e vi a folhagem de um belo eucalipto que se estendia para o céu. Pouco a pouco, lembrei-me da situação
em que me encontrava. Meu Deus, estou completamente só, não sei o que hei-de fazer.
Levantei-me e retomei a minha corrida. Consegui continuar assim durante vários dias, não sei ao certo quantos. Sei apenas que o tempo já não existia para mim. Restava-me
apenas a fome, a sede, o medo e a dor. Quando estava demasiado escuro para ver, parava para descansar. Ao meio-dia, quando o sol estava mais quente, sentava-me debaixo
de uma árvore para fazer uma curta sesta.
Foi durante uma dessas sestas que o leão me acordou. Nessa altura, já não queria saber da minha liberdade; a única coisa que queria era voltar para junto da minha
mãe. Mais do que comida ou bebida, sentia falta dela. Apesar de ser normal para nós passarmos um ou dois dias sem comer nem beber, eu sabia que não poderia sobreviver
durante muito mais tempo assim. Sentia-me fraca e mal conseguia mexer-me; os meus pés estavam tão gretados e tão doridos que cada passo era um verdadeiro suplício.
Quando o leão se sentou diante de mim a lamber as mandíbulas, eu já tinha desistido. Aceitei aquela morte rápida como uma forma de pôr termo ao meu sofrimento.
Mas ao ver os meus ossos salientes sob a pele, as minhas faces chupadas e os meus olhos inchados, o leão afastou-se. Não sei se teve pena de um ser tão miserável,
se decidiu, pragmaticamente, que eu nem sequer daria um aperitivo de jeito, ou se Deus intercedeu em meu favor. Pensei que, se Deus me tinha salvo a vida, não seria
tão impiedoso que me deixasse morrer em seguida de uma forma mais cruel ainda, de fome, por exemplo. Tinha certamente outros planos para mim e implorei-lhe ajuda:
- Toma a minha mão, guia-me.
- Agarrei-me ao tronco e consegui levantar-me. Retomei a minha caminhada e, alguns minutos mais tarde, deparei com um rebanho de camelos. Havia-os por toda a parte.
Escolhi o animal que parecia ter mais leite e precipitei-me para ele. Comecei a mamar como um bebé. O pastor do rebanho deu pela minha presença e gritou: - Sai daí,
sua cabrinha!
Ouvi o estalido de um longo chicote, mas tinha tanta fome que continuei a mamar engolindo todo o leite que podia. O pastor precipitou-se para mim aos gritos pois
sabia que:
se não me amedrontasse, quando chegasse ao pé de mim já não teria mais leite. Mas eu tinha bebido o suficiente, por isso comecei a correr. Ele perseguiu-me e atingiu-me
por duas vezes com o chicote antes de eu conseguir afastar-me. Eu era mais rápida do que ele, e ele deteve-se amaldiçoando-me sob o sol do meio-dia.
Agora que já tinha enchido o estômago, sentia-me cheia de energia. Continuei a correr, e corri mais ainda, até chegar a uma aldeia. Nunca tinha visto um lugar semelhante,
com edifícios e ruas de terra batida. Eu andava em plena rua, convencida de que era isso que devia fazer, e olhava em todas as direcções, boquiaberta diante daquele
estranho cenário. Uma mulher passou ao meu lado, olhou-me da cabeça aos pés e disse:
- És completamente idiota! Onde julgas que estás? - Depois dirigiu-se a outros aldeãos que desciam a rua: - Meu Deus! Olhem-me para aquilo.
Ela apontava para os meus pés gretados e cobertos de sangue seco.
- Deve ser uma dessas pobres campónias.
Acertara em cheio. Depois gritou-me:
- Menina, se queres continuar a viver, sai do meio da rua! Sai daí! Fez-me sinal para ir para o passeio, e depois desatou a rir.
Todos tinham ouvido e eu senti-me extremamente embaraçada. Baixei a cabeça e saí da aldeia continuando a andar pelo meio da estrada, porque não tinha compreendido
o que mulher quisera dizer. Pouco depois apareceu um camião. BEEP! BEEP! Tive de saltar para berma a fim de o evitar. Voltei-me, de frente para o trânsito e, ao
ver os carros e camiões que avançavam na minha direcção, estendi a mão esperando que alguém parasse e me ajudasse. Não posso dizer que estava a pedir boleia; nem
sequer sabia o que essa palavra significava. Limitei-me a permanecer no meio da estrada com a mão levantada. Um carro passou a derrapar e quase me arrancava o braço.
Pulei para a berma e continuei a avançar, estendendo a mão com mais cuidado desta vez. Olhava para os condutores dos carros que passavam, rezando silenciosamente
para que um deles parasse e me ajudasse.
Finalmente um camião parou. Não estou orgulhosa do que se passou em seguida, do que me aconteceu, e que posso eu fazer senão dizer a verdade? Ainda hoje, quando
penso naquele camião, lamento não ter seguido o meu instinto e continuado o meu caminho.
O camião transportava um carregamento de pedras de construção, todas lascadas e de tamanho de bolas de softball. Havia dois homens na cabina; o motorista abriu a
porta disse-me em somali:
- Sobe, querida.
Eu sentia-me impotente e morta de medo. Eu vou para Mogadíscio - expliquei.
[ Levo-te aonde quiseres - disse o homem sorrindo.
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Os seus dentes eram avermelhados. Eu sabia que aquela cor castanho-avermelhada não era causada pelo tabaco, mas pelo khat; tinha visto o meu pai mastigá-lo uma vez.
Esta planta narcótica que os homens mastigam é semelhante à cocaína. As mulheres não têm o direito de lhe tocar, e ainda bem, porque torna as pessoas loucas, sobreexcitadas,
agressivas, e destruiu inúmeras vidas.
Eu sabia que estava em maus lençóis, mas não sabia que outra coisa podia fazer, por isso aceitei. O motorista disse-me para saltar para a traseira. A ideia de ficar
separada daqueles dois homens reconfortou-me. Por isso, instalei-me no reboque, a um canto, sobre o monte de pedras. Nesse momento já estava escuro e fresco no deserto.
Quando o camião retomou a sua marcha, senti frio e estendi-me para me proteger do vento.
Em seguida, lembro-me apenas de que o homem que acompanhava,, o motorista se encontrava subitamente ao meu lado, ajoelhado sobre as pedras. Tinha cara de quarenta
anos e era feio, muito feio. Tão feio que estava a ficar sem cabelo; era praticamente careca. Compensava este facto deixando crescer um bigodinho. Os seus dentes
eram ratados e faltavam alguns; os que lhe restavam estavam manchados de um castanho-avermelhado horrível mas apesar disso ele sorria-me, exibindo-os orgulhosamente.
Por mais que eu viva, jamais esquecerei a expressão lúbrica do seu rosto.
Ainda por cima era gordo, como descobri quando baixou as calças. O seu pénis em erecção estendeu-se na minha direcção enquanto ele me segurava nas pernas tentando
afastá-las.
- Oh não! Por favor, não! - supliquei-lhe.
Enrolei as minhas pernas magrizelas como uma corda entrançada e mantive-as bem apertadas. Lutámos durante um momento e depois, como aquilo não levava a lado nenhum,
ele levantou a mão e esbofeteou-me com força na cara. Deixei escapar um grito agudo que se perdeu no ar enquanto o camião rolava a toda a velocidade.
- ABRE AS PUTAS DAS PERNAS!
Lutámos, ele com todo o peso do seu corpo em cima de mim enquanto as pedras lascadas me laceravam as costas. Levantou a mão de novo e bateu-me ainda com mais força.
Nesse momento compreendi que tinha de adoptar uma nova táctica; ele era demasiado forte para mim. Era evidente que aquele homem sabia o que estava a fazer. Ao contrário
de mim, experiência não lhe faltava e provavelmente violara inúmeras mulheres; eu estava simplesmente prestes a tornar-me a sua próxima vítima. Quis desesperadamente
matá-lo, mas não tinha nenhuma arma.
Então fingi que o desejava. Disse-lhe suavemente:
- Está bem, está bem. Mas primeiro tenho de fazer chichi.
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Percebi que a sua excitação aumentava - eh, aquela miúda desejava-o! - e deixou-me levantar. Fui para o canto oposto e, agachando-me, fingi fazer chichi. Isto deu-me
alguns minutos para reflectir. Quando terminei a minha pequena farsa, já tinha um plano. Agarrei na pedra maior que pude encontrar, voltei para junto dele e deitei-me
a seu lado.
Ele saltou para cima de mim e eu apertei a pedra na mão.
Levantei-a e, com todas as minhas forças, desferi-lhe um golpe em plena fronte. Ele ficou atordoado. Atingi-o outra vez, e vi-o tombar. Como um guerreiro, eu tinha
subitamente uma força tremenda, uma força que ignorava possuir. Quando alguém tenta atacar-nos, matar-nos, tornamo-nos bastante fortes. Não sabemos mesmo até que
ponto podemos sê-lo antes desse momento. Quando já estava estendido, atingi-o de novo e o sangue jorrou-lhe da orelha.
O seu amigo, o motorista, viu o que se passava da cabina. Começou a gritar:
- Que merda é essa aí atrás?
Procurou um lugar para estacionar entre os arbustos. Eu sabia que se ele me apanhasse seria o meu fim. Quando o camião abrandou, saltei para a parte de trás do reboque,
equilibrei-me nas pedras e saltei para o chão como um gato. Depois desatei a correr para salvar a vida.
O motorista do camião era um velho. Desceu da cabina e começou a gritar:
- Mataste o meu amigo! Volta aqui! Mataste-o!
Perseguiu-me por entre os arbustos espinhosos durante um momento, e depois desistiu; pelo menos foi o que me pareceu.
Mas na realidade ele voltou para o camião, subiu para a cabina, acendeu os faróis e lançou-se em minha perseguição através do deserto. Os faróis iluminavam o chão
à minha volta e eu ouvia o rugido do motor. Corri tão depressa quanto pude, mas claro que o camião ia ganhando terreno. Então comecei a correr em ziguezague no escuro.
Era-lhe impossível seguir-me, e acabou por desistir retomando a estrada.
Continuei a correr através do deserto como um animal perseguido, sem fazer a menor ideia do sítio onde me encontrava. O sol levantou-se e continuei a correr. Finalmente
fui dar a outra estrada. Apesar de estar morta de medo com a ideia do que poderia acontecer, decidi pedir de novo boleia para me afastar o mais rapidamente possível
do motorista do camião e do seu amigo. Não sabia o que tinha acontecido ao meu agressor, e nunca o soube, mas acima de tudo não voltar a encontrar aqueles dois homens.
De pé na beira da estrada, à luz do sol matinal, devia estar numa linda figura. O lenço que me envolvia era apenas um trapo sujo; tinha corrido pela areia durante
vários dias e tinha a pele e os cabelos cobertos de poeira; os meus braços e as minhas pernas pareciam ramos frágeis que um sopro de vento poderia quebrar; tinha
os pés cobertos de feridas que poderiam rivalizar com as de um leproso. Estendi a mão, e fiz sinal ao Mercedes para parar.
15Um homem elegantemente vestido estacionou na berma da estrada. Deslizei para o assento de couro a seu lado, e fiquei deslumbrada diante de tanto luxo.
- Para onde vais? - perguntou-me o condutor.
- Naquela direcção - disse eu apontando em frente na direcção em que o carro seguia.
O homem abriu a boca, mostrando uns belos dentes brancos, e desatou a rir.
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CRESCENDO COM OS ANIMAIS
Antes de eu ter fugido de casa, a minha vida girava em volta da natureza, da minha família e dos animais que nos permitiam viver e aos quais estávamos ligados por
laços muito fortes. Desde que me lembro, sempre partilhei esta característica comum a todas as crianças: o amor pelos animais. Na verdade, a minha memória mais longínqua
diz respeito ao meu bode Billy. Billy era o meu tesouro pessoal, representava tudo para mim, e se o amei tanto foi talvez por ele ser, tal como eu, um bebé. Eu levava-lhe
tudo o que encontrava de bom para comer, e ele era o mais feliz e o mais rechonchudo do rebanho. A minha mãe estava sempre a perguntar: - Por que é que aquele bode
é tão gordo enquanto os outros são tão escanzelados? - Eu cuidava bem dele, tratava-lhe do pêlo, acariciava-o e falava com ele durante horas.
A minha relação com Billy simbolizava o nosso modo de vida na Somália. O nosso destino estava intimamente ligado ao dos rebanhos que guardávamos. Depender dos animais
obrigava-nos a um grande respeito por eles, e esse sentimento estava presente em tudo o que fazíamos. Todas as crianças da nossa família cuidavam dos animais, tarefa
que desempenhávamos desde que aprendíamos a andar. Crescíamos com os animais, prosperando quando eles Prosperavam, sofrendo quando eles sofriam, morrendo quando
eles morriam. Criávamos vacas, ovelhas e cabras, mas se eu amava ternamente o meu pequeno Billy, os camelos eram sem sombra de dúvida os animais mais importantes
que possuíamos.
O camelo é um animal lendário entre nós; a Somália orgulha-se de ter mais camelos do que qualquer outro país do mundo; na Somália, há mais camelos do que habitantes.
Temos uma longa tradição oral e a maioria dos nossos poemas servem para transmitir, de uma geração a outra, informações sobre o camelo, a fim de sublinhar a sua
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capital para a nossa cultura. Lembro-me de a minha mãe cantar uma canção que dizia mais
ou menos:
O
meu camelo fugiu para ir ter com um homem mau que o matará ou roubará. Por isso, suplico-te: por
favor, traz de volta o meu camelo.
Desde muito pequena conheci a enorme importância destes animais que valem ouro na nossa sociedade. É impossível viver no deserto sem eles.
Até a vida de um homem é mensurável em camelos: cem camelos por um homem morto, é o preço a pagar pelo clã do assassino à família da vítima, senão o clã do homem
morto reclamará o castigo do assassino. O preço a pagar por uma esposa conta-se também em camelos. Mas, no dia-a-dia, os camelos permitem-nos viver, pois nenhum
outro animal se adapta melhor à vida no deserto. Um camelo necessita apenas de beber uma vez por semana, mas pode aguentar no máximo um mês sem água. Entretanto,
o leite da camela alimenta-nos e mata a nossa sede, uma enorme vantagem quando nos encontramos longe da água. Mesmo nas temperaturas mais elevadas, os camelos conseguem
sobreviver armazenando água. Comem arbustos secos que encontramos nas nossas regiões áridas, deixando a erva para o gado.
Também servem para nos deslocarmos pelo deserto, para transportarmos os nossos parcos haveres e para pagarmos as nossas dívidas. Noutros países, podemos saltar para
dentro de um carro e partir, mas o nosso único transporte, para além de andar a pé, é o camelo.
A personalidade do camelo é muito semelhante à de um cavalo; a longo prazo, estabelece-se uma relação estreita entre o animal e o seu dono, e o camelo fará por este
último o que não faria por mais ninguém. Os homens "quebram" os jovens camelos - uma prática perigosa -, treinam-nos para serem montados e ensinam-lhes a seguirem-se
uns aos outros. É muito importante ser-se firme com eles porque, quando sentem que o condutor é fraco, fazem-no tombar ou dão-lhe coices.
Como a maioria dos somalis, nós levávamos uma existência de pastores nómadas. Apesar de lutarmos constantemente pela sobrevivência, segundo os padrões do nosso país,
o valor do gado que possuíamos fazia de nós pessoas ricas. Seguindo a tradição, os rapazes guardavam os animais maiores, bovinos e camelos, e as raparigas os outros.
Nunca permanecíamos no mesmo lugar mais do que três ou quatro semanas. Estas deslocações constantes eram-nos impostas pela necessidade de tomar conta dos nossos
animais. Procurávamos água e comida para os manter vivos, o que, no clima seco da Somália, não era nada fácil. A nossa casa era uma cabana de erva entrançada. Utilizávamo-la
como uma tenda. Construíamos uma base com ramos, depois a minha mãe fazia estruturas de erva entrançada que colocávamos sobre os ramos vergados para formar uma cúpula
com cerca de dois metros de diâmetro. Quando chegava a altura de partir, desmontávamos a tenda e atávamos os ramos e as esteiras, com os nossos outros pertences,
ao dorso dos camelos; são uns animais inacreditavelmente fortes. Instalávamos os bebés e as crianças mais pequenas no topo e o resto da família seguia a pé, conduzindo
os rebanhos. Quando encontrávamos um local com água e folhagem para pastagem, montávamos de novo o acampamento.
A tenda oferecia abrigo para os bebés, sombra para o sol do meio-dia, e um lugar onde guardar o leite fresco. À noite dormíamos ao relento, e as crianças apertavam-se
umas contra as outras sobre uma esteira. Quando o sol se punha, fazia frio; como não havia cobertores suficientes para todas as crianças e não tínhamos muita roupa,
usávamos o calor dos nossos corpos para nos aquecermos. O meu pai dormia à parte; era o nosso guarda, o protector da família.
Levantávamo-nos com o nascer do dia. A nossa primeira tarefa consistia em dirigirmos-nos para a cerca onde os animais estavam guardados e tratar deles. Onde quer
que estivéssemos, cortávamos arbustos para construir as cercas nas quais os enclausurávamos para os impedir de deambular à noite. Separávamos as crias das mães para
que não mamassem o leite todo. Eu estava encarregada de tratar das vacas, de guardar uma parte da ordenha para fazer manteiga, mas deixava leite suficiente para
as crias. Após a ordenha, deixávamos as crias entrarem na cerca das mães para se alimentarem.
Depois tomávamos o nosso pequeno-almoço: leite de camelo, bastante mais nutritivo do que os outros porque contém vitamina C. A nossa região era demasiado seca para
medrar culturas, e não tínhamos legumes nem cereais. Por vezes seguíamos os javalis africanos que conseguem farejar as raízes comestíveis e desenterrá-las com os
cascos e o focinho para obterem um belo repasto. Roubávamos-lhes uma parte do seu manjar para melhorar o nosso regime.
O abate de animais por causa da carne era considerado um desperdício e apenas recorríamos a isso em caso de urgência ou em ocasiões excepcionais como um casamento.
Os nossos animais eram demasiado valiosos para os matarmos ou comermos. Criávamo-los pelo seu leite e para os trocarmos por outras mercadorias de que tínhamos necessidade.
Como base de alimentação quotidiana, tínhamos apenas leite de camelo de manhã e ao fim do dia. Por vezes nem sequer chegava para todos, e dávamos em primeiro lugar
às crianças mais novas, depois às mais velhas, e assim sucessivamente. A minha mãe nunca comia uma migalha do que fosse antes de todos se terem servido. Na verdade,
não me lembro de a ver comer, apesar de saber que certamente também comia. Se não tínhamos nada para jantar, não fazíamos disso um drama, não havia razão para entrar
em pânico, nem necessidade de
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chorarmos ou de nos queixarmos. As crianças mais novas podiam fazê-lo, mas as mais velhas conheciam as regras: íamos simplesmente deitar-nos. Fazíamos tudo para
permanecer alegres, manter a calma e a serenidade; no dia seguinte, se Deus quisesse, encontraríamos uma solução. A nossa filosofia resumia-se à seguinte fórmula:
Inch'Allah, "Se Deus quiser". Sabíamos que as nossas vidas dependiam das forças da natureza, e só Deus controlava essas forças.
Quando o meu pai trazia um saco de arroz, era um verdadeiro acontecimento, o que os habitantes de outras partes do mundo consideram uma festa. Nessas ocasiões, utilizávamos
a manteiga que fazíamos batendo leite de vaca num cesto que a minha mãe cerzira. Por vezes, trocávamos uma cabra por milho que crescia nas regiões mais húmidas da
Somália. Reduzíamo-lo a farinha para o transformar em papa de aveia, ou fazíamo-lo estalar num recipiente sobre o fogo. Quando outras famílias se encontravam por
perto, partilhávamos sempre o que tínhamos. Se algum de nós tinha tâmaras, raízes ou matara um animal, preparávamos tudo e cada um comia a sua parte. Aproveitávamos
todos esses momentos afortunados porque, embora estivéssemos isolados a maior parte do tempo, deslocando-nos apenas na companhia de uma ou duas outras famílias,
fazíamos parte de uma comunidade bastante maior. De um ponto de vista prático, como não tínhamos frigorífico, a carne e outros alimentos frescos deviam ser consumidos
o mais rapidamente possível.
Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, tínhamos de obrigar os animais a sair da cerca. Desde os seis anos de idade fiquei encarregada de cuidar de rebanhos com
sessenta ou setenta ovelhas e cabras. Levava um cajado comprido e partia sozinha com os meus animais, cantando uma pequena canção para os guiar. Se algum deles se
afastava do rebanho, utilizava o cajado para o reconduzir ao caminho certo. Eles estavam impacientes porque sabiam que sair da cerca significava que chegara o momento
de comer. Era muito importante partir cedo, a fim de encontrar o melhor lugar com água fresca e erva abundante. Todos os dias tentava ganhar avanço sobre os outros
pastores, para evitar que os seus animais bebessem a pouca água disponível. Além disso, temia que o terreno seco absorvesse tudo à medida que o sol se tornava mais
quente. Certificava-me de que os animais bebiam a maior quantidade de água possível, porque talvez só a encontrássemos dali a uma semana, ou duas, ou mesmo três.
Na época da seca, o mais triste era ver os animais morrerem. Cada dia nos deslocávamos mais longe à procura de água. O rebanho tentava seguir-nos, mas acabava por
desistir. Quando os animais se iam abaixo, experimentávamos um terrível sentimento de impotência, porque sabíamos que era o fim e não havia nada que pudéssemos fazer.
Na Somália, ninguém possui uma pastagem; por isso, eu tinha de ser esperta e descobrir os locais onde cresciam plantas em abundância para as minhas ovelhas e cabras.
Por instinto de sobrevivência, aprendera a reconhecer os sinais indicadores de chuva,
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perscrutava o céu à procura de nuvens. Os meus outros sentidos também desempenhavam um
papel importante porque determinado cheiro ou uma certa impressão no ar podiam fazer prever chuva.
Enquanto os animais pastavam, eu vigiava os predadores; há-os por toda a parte em África. As hienas aproximavam-se furtivamente e saltavam sobre um cordeiro ou um
cabrito tresmalhado do rebanho. Eu também tinha medo dos leões e dos cães selvagens, que se deslocavam em grupo, mas eu estava sozinha.
Observando o céu, calculava quando tinha de partir para estar de volta ao acampamento antes do cair da noite.. Mas muitas vezes enganava-me, e tive bastantes aborrecimentos.
Enquanto tropeçava no escuro, as hienas atacavam o rebanho porque sabiam que eu não as podia ver. Quando conseguia apanhar uma, havia outra que conseguia deslizar
por detrás de mim; e se eu a perseguia, uma terceira precipitava-se enquanto eu estava de costas voltadas. As hienas são os piores predadores porque são obstinadas.
Nunca desistem antes de terem obtido algo. Todas as noites, ao chegar ao acampamento e antes de encerrar os animais na cerca, contava-os várias vezes para ter a
certeza de que não faltava nenhum. Uma noite contei as minhas cabras e compreendi que faltava uma. Voltei a contar, e contei ainda uma vez mais. Subitamente, compreendi
que não tinha visto Billy e precipitei-me por entre as cabras para o procurar. Em seguida corri para a minha mãe, a gritar:
- Mãe, Billy não está aqui! Que hei-de fazer?
Mas claro que já era demasiado tarde, e ela limitou-se a acariciar-me a cabeça enquanto eu chorava, compreendendo que as hienas tinham comido o meu animal favorito,
tão rechonchudo.
Acontecesse o que acontecesse, tínhamos de continuar a tomar conta do gado: continuava a ser a nossa prioridade, apesar da seca, da doença ou da guerra. Na Somália,
os constantes problemas políticos causavam vários problemas nas cidades, mas nós estávamos tão isolados que a maior parte do tempo ninguém nos vinha perturbar. Um
dia, quando eu tinha cerca de nove anos, um grande exército instalou o seu acampamento próximo do nosso. Tínhamos ouvido contar histórias sobre soldados que violavam
as raparigas sós, e eu conhecia uma a quem isso acontecera. Que o exército fosse composto por somalis ou por marcianos, Pouco nos importava, aqueles soldados não
faziam parte do nosso povo, não eram nómadas, e evitávamo-los a todo o custo.
Uma manhã o meu pai ordenou-me que fosse dar de beber aos camelos e afastei-me com o meu rebanho. Durante a noite, o exército montara o acampamento à beira da estrada;
as tendas e os camiões estendiam-se a perder de vista. Escondida atrás de uma árvore,
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observei os soldados que abundavam, vestidos com os seus uniformes. Pensava no que tinha acontecido à outra rapariga e estava aterrorizada. Não havia ninguém nas
redondezas para me defender, e aqueles homens poderiam fazer-me o que lhes apetecesse. Detestei-os à primeira vista. Detestei os seus uniformes, os seus camiões,
as suas armas. Nem sequer sabia o que eles tinham vindo fazer; no que me dizia respeito, que eles estivessem ali para salvar a Somália não mudava rigorosamente nada.
Contudo, os meus camelos precisavam de água. O único caminho que me teria permitido evitar o acampamento militar era demasiado comprido e fazia demasiados desvios
para que eu o percorresse com o meu rebanho. Por isso, decidi desatar os camelos e deixá-los atravessar o acampamento sozinhos: passaram pelo meio dos soldados e
dirigiram-se directamente para a água, como eu esperava. Contornei o acampamento a toda a velocidade, escondendo-me atrás dos arbustos e das árvores, e fui ter com
os meus animais ao outro lado do oásis. Depois, quando o céu escureceu, repetimos a nossa pequena manobra e voltámos ao acampamento sãos e salvos.
Todas as noites, depois de ter voltado ao pôr-do-sol e de ter encerrado os animais na cerca, havia que tratar deles de novo. Pendurávamos chocalhos de madeira ao
pescoço deles.
O som desses chocalhos é verdadeira música para os nómadas que, ao crepúsculo, ouvem aqueles sons côncavos e surdos quando a ordenha começa. Esta música serve de
ponto de referência aos viajantes que regressam a casa ao anoitecer. Durante os trabalhos a esta hora, a grande curva do céu escurece, e surge então uma estrela
brilhante, sinal de que chegou a hora de fechar as ovelhas na sua cerca. Noutros países, este planeta é conhecido como Vénus, o planeta do amor, mas no meu país
chamamos-lhe maqa1 hidhid, o que significa que chegou a hora de "esconder os cordeiros".
Era normalmente por esta altura que os meus aborrecimentos começavam porque, após ter trabalhado desde o nascer-do-sol, já não conseguia manter os olhos abertos.
Caminhando ao crepúsculo, acontecia-me adormecer no meio das cabras que me pisavam; ou então, quando me agachava para as mungir, a minha cabeça começava a tombar.
Se o meu pai me surpreendia nessas alturas, meu Deus! Eu gosto do meu pai, mas ele podia mostrar-se verdadeiramente duro. Quando me apanhava assim a dormitar, batia-me
para me obrigar a levar o meu trabalho a sério e a aplicar-me ainda mais. Quando terminávamos as nossas tarefas, jantávamos leite de camelo, depois apanhávamos madeira
para fazer uma fogueira e sentávamo-nos a sentir o seu calor, conversando e rindo até ao momento em que nos íamos deitar.
Essas noites são, entre as minhas memórias da Somália, as minhas preferidas: aqueles momentos em que me sentava com a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos e irmãs
em
volta do fogo, quando toda a gente estava saciada e ria. Esforçávamo-nos sempre por ser optimistas. Ninguém se queixava, ninguém choramingava ou dizia: "E se conversássemos
sobre a morte?".
A vida era muito dura; precisávamos de todas as nossas forças para sobreviver e mostrar-nos negativos teria acabado com a nossa energia vital.
Estávamos longe de qualquer aldeia, e no entanto eu nunca estava só porque brincava com os meus irmãos e irmãs. Tinha um irmão e duas irmãs mais velhas, e vários
irmãos e irmãs mais novos. Passávamos o tempo a correr uns atrás dos outros, a trepar às árvores como macacos, a jogar à macaca traçando linhas na areia, a apanhar
pedras e a cavar buracos para um jogo africano chamado mancala. Tínhamos mesmo a nossa própria versão do jogo das cinco pedrinhas: atirávamos ao ar um pau enquanto
tentávamos apanhar pauzinhos em vez de pedras. Este jogo era o meu favorito porque eu era muito boa nele, e esforçava-me sempre por convencer o meu irmão mais novo,
Ali, a jogar comigo.
No entanto, o nosso maior prazer provinha do facto de sermos crianças que viviam em plena natureza, livres de fazer parte dela e de desfrutar da sua vista, dos seus
ruídos e dos seus odores. Observávamos grupos de leões estendidos ao comprido, aquecendo-se ao sol, rolando de patas para o ar ou rugindo. Os leõezinhos corriam
uns atrás dos outros e brincavam exactamente como nós. Corríamos com as girafas, as zebras e as raposas. O hírax, animal do tamanho de um coelho que é um pequeno
primo do elefante, era o nosso preferido. Esperávamo-los pacientemente no exterior das suas tocas à espera de ver aparecer as suas cabecinhas e perseguíamo-los pela
areia.
Uma vez descobri um ovo de avestruz. Decidi levá-lo para casa porque queria ver o bebé avestruz nascer e depois guardá-lo como animal de estimação. O ovo tinha mais
ou menos o tamanho de uma bola de bowling; retirei-o do seu buraco e dirigia-me para o acampamento quando a mãe apareceu. Lançou-se em minha perseguição e, acreditem,
era bastante rápida: as avestruzes podem atingir a velocidade de sessenta e cinco quilómetros por hora. Alcançou-me e começou a picar-me a cabeça com o bico, ka-ka-ka.
Pensei que ia quebrar-me o crânio como um ovo. Pousei o seu futuro bebé no chão e desatei a correr para salvar a vida.
Raramente nos encontrávamos na proximidade de áreas florestais mas, quando isso acontecia, gostávamos muito de observar os elefantes. Ouvíamos os seus possantes
rugidos à distância e trepávamos às árvores para os ver. Como os leões, os macacos e os humanos, os elefantes vivem em comunidade. Se há uma cria entre eles, todos
os adultos - o primo, o tio, a tia, a irmã, a mãe e os avós - tomam conta dela para que ninguém lhe faça mal. Nós, as crianças, penduradas numa árvore, ríamos durante
horas observando os elefantes.
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Mas pouco a pouco, todos estes momentos felizes passados com a minha família foram-se transformando em memórias. Uma das minhas irmãs mais velhas fugiu; o meu irmão
partiu para a escola, na cidade. Eu aprendi coisas tristes sobre a minha família e sobre a vida. Deixou de chover, e tomar conta dos nossos animais tornava-se cada
dia mais difícil. A vida era cada vez mais dura, e eu também endurecia com ela.
Uma parte dessa dureza vinha-me de ver os meus irmãos e irmãs morrerem. Éramos doze crianças na família, agora não passávamos de seis. A minha mãe teve gémeos que
morreram à nascença. Depois teve outra bela rapariga, que aos seis meses era um bebé forte e saudável. Mas um dia a minha mãe chamou-me; corri para ela e vi-a ajoelhada
junto do bebé. Eu era apenas uma rapariguinha, mas compreendi que as coisas estavam verdadeiramente complicadas porque o bebé não parecia nada bem. A minha mãe ordenou-me:
- Waris, vai depressa buscar um pouco de leite de camelo! Mas eu fui incapaz de me mexer.
Despacha-te! Eu continuava a olhar fixamente para a minha irmã, em transe, aterrorizada.
- Que se passa contigo? - gritou a minha mãe.
Finalmente consegui partir a correr, mas sabia o que me esperava no meu regresso. Quando voltei com o leite, o bebé estava completamente imóvel e compreendi que
estava morto. Enquanto olhava para a minha irmã, a minha mãe esbofeteou-me com toda a força. Durante algum tempo, acusou-me da morte da sua filha e acreditava que
eu possuía poderes de feiticeira. Acreditava que eu causara a morte da criança ao pousar o meu olhar sobre ela enquanto estava em transe.
Eu não possuo tais poderes, mas um dos meus irmãos mais novos tinha dons sobrenaturais. Todos estavam de acordo em reconhecer que ele não era uma criança normal.
Chamávamos-lhe Velho Homem porque, quando tinha apenas seis anos, os seus cabelos já se tinham tornado completamente grisalhos. Era extremamente inteligente, e todos
os homens vinham pedir-lhe conselho. Cada um à vez, sentavam o rapaz dos cabelos grisalhos nos joelhos e perguntavam-lhe:
- Que tens a dizer sobre a chuva para este ano?
Era uma criança, e no entanto nunca se comportou como tal. Pensava, falava e comportava-se como um velho sábio. Todos o respeitavam, mas também o temiam porque era
evidente que ele não era um dos nossos. Ainda não passava de um rapaz novo quando Velho Homem morreu como se tivesse queimado a sua vida inteira em apenas alguns
breves anos. Ninguém soube a causa da sua morte, mas todos acharam que fazia sentido porque "ele não pertencia de forma alguma a este mundo".
Como em qualquer família numerosa, cada um de nós desempenhava um papel. Eu era rebelde, reputação que adquirira comportando-me de uma forma que julgava perfeitamente
lógica e justificada, mas que parecia chocante aos olhos dos meus pais, sobretudo do meu pai. Um dia, estava eu sentada com o meu jovem irmão Ali debaixo de uma
árvore a comer arroz misturado com leite de camelo, quando ele engole tudo rapidamente, com sofreguidão. Como era um acontecimento raro termos arroz, eu comia bastante
lentamente. Nunca tínhamos a certeza de termos comida suficiente, e sempre saboreei cada alimento com prazer. Restava apenas um pouco de arroz e leite na minha taça
quando, subitamente, Ali mergulhou a colher e comeu tudo até ao último grão. Sem reflectir, agarrei numa faca que se encontrava pousada ao meu lado e espetei a lâmina
na coxa dele. Ele gritou, mas arrancou a faca e espetou-a na minha coxa, exactamente no mesmo sítio. Ficámos os dois feridos, mas como tinha sido eu a primeira a
agir, as culpas recaíram todas sobre mim. Hoje, ainda temos duas cicatrizes idênticas, memória daquela refeição.
Uma das primeiras manifestações desse comportamento rebelde foi provocada pela minha vontade de possuir um par de sapatos. Toda a vida fui obcecada por sapatos.
Hoje sou modelo e, no entanto, possuo pouca roupa: um par de jeans, duas T-shirts, mas tenho um armário cheio de sapatos de salto alto, sandálias e botas, apesar
de curiosamente não ter nada para acompanhar tudo isso. Quando era pequena, desejava desesperadamente um par de sapatos. Nem todas as crianças da minha família tinham
roupas, e não havia dinheiro suficiente para comprarmos sapatos. No entanto, eu sonhava possuir belas sandálias de couro como as da minha mãe. Desejava ardentemente
calçar um bom par de sapatos confortáveis para ir guardar os animais sem ter de me preocupar com as pedras e os espinhos, as cobras e os escorpiões. Os meus pés
estavam sempre feridos e marcados, e ainda hoje tenho cicatrizes negras. Uma vez, um espinho atravessou-me o pé; outras vezes quebravam-se na minha carne. Não havia
médicos no deserto, nem medicamentos para tratar as feridas. No entanto, devíamos continuar a andar porque tínhamos de cuidar dos animais. Ninguém dizia: "Não posso
mais". Limitávamo-nos a fazê-lo; todas as manhãs partíamos e avançávamos a coxear, da melhor forma que podíamos.
Um dos irmãos do meu pai era um homem muito rico. O tio Ahmed vivia na cidade, em Galcaio, mas nós tratávamos dos seus camelos e do resto dos seus rebanhos. Eu era
preferida para tomar conta das suas cabras porque fazia o meu trabalho de uma forma muito conscienciosa, certificando-me de que os animais estavam bem alimentados
e bebidos, defendendo-os o melhor possível dos predadores. Um dia, teria eu cerca de sete anos, o tio Ahmed visitou-nos e eu disse-lhe: - Gostaria que me comprasses
um par de sapatos.
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Ele olhou para mim e desatou a rir: - Está bem, está bem. Vou comprar-te um par de sapatos.
Eu sabia que ele ficara surpreendido porque era pouco habitual uma rapariga pedir alguma coisa, sobretudo algo tão extravagante como um par de sapatos.
Quando o tio Ahmed voltou a visitar-nos, eu estava bastante excitada porque chegara o dia em que ia finalmente ter o meu primeiro par de sapatos. Na primeira ocasião,
perguntei-lhe, impaciente: - Então, trouxeste-os?
- Sim, aqui estão.
Estendeu-me um embrulho. Tirei os sapatos e observei-os: eram umas sandálias de borracha, umas chinelas! Não as belas sandálias de couro iguais às da minha mãe,
mas umas chinelas amarelas, de má qualidade. Não quis acreditar.
- São estes os meus sapatos?! - gritei.
E atirei-lhos à cara. Quando atingiram o tio, o meu pai tentou parecer aborrecido, mas não conseguiu resistir e desatou a rir.
O meu tio disse-lhe: - Não acredito! É assim que educas esta criança?
Atirei-me a ele e comecei a bater-lhe de tão desiludida que estava. Depois gritei: - Trabalhei tanto e a recompensa é isto? Um par de sandálias de borracha? Bah!
Prefiro andar descalça; andarei descalça até sangrar em vez de usar esta porcaria!
O tio Ahmed olhou para mim, depois levantou os olhos para o céu e gemeu: - Oh, Alá. - Baixou-se com um suspiro, apanhou as suas chinelas e levou-as de volta.
No entanto, eu não queria desistir tão facilmente. A partir desse dia, encarreguei cada parente, amigo ou estranho que viajasse para Galcaio, de uma mensagem para
o meu tio: "Waris quer um par de sapatos!". Mas tive de esperar vários anos antes de o meu sonho se realizar. Entretanto, continuei a criar as cabras do tio Ahmed
e a ajudar a sua família a tomar conta dos rebanhos, percorrendo milhares de quilómetros descalça.
Muitos anos antes deste episódio dos sapatos com o tio Ahmed, quando eu não passava de uma rapariguinha com cerca de quatro anos, recebemos a visita de Guban, um
amigo do meu pai que nos visitava com alguma frequência. Ao anoitecer, costumava conversar com os meus pais quando, olhando para o céu e vendo surgir a brilhante
maqa1 hihid, o meu pai disse que chegara a hora de recolher as ovelhas.
Guban respondeu: - Oh, deixa-me fazer isso por ti. Waris poderá ajudar-me.
Senti-me uma pessoa importante: um amigo do meu pai escolhera-me em vez dos rapazes para ajudá-lo a guardar os animais. Deu-me a mão, afastámo-nos da tenda e começámos
a juntar o rebanho. Normalmente, eu teria de correr em todas as direcções como um animal
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selvagem, mas começava a escurecer e, como estava um pouco receosa, permaneci junto de Guban. De repente, ele tirou o blusão, estendeu-o na areia e sentou-se em
cima dele. E olhei para ele, confusa, e protestei: - Por que te estás a sentar? Vai escurecer e temos de apanhar os animais.
- Temos tempo. Faremos isso num minuto.
Estendeu-se sobre um dos lados do seu blusão e bateu com a mão no lugar vazio junto dele. - Vem sentar-te.
Aproximei-me com relutância. Sempre gostei de histórias, e pensei que talvez fosse uma boa ocasião para ouvir uma. - Vais contar-me uma história?
Guban bateu de novo no casaco: - Sim, se vieres sentar-te junto a mim.
Assim que me sentei junto dele, ele tentou embrulhar-me no blusão. Eu insisti obstinadamente, erguendo-me: - Eu não quero deitar-me. Quero que me contes uma história.
- Vem, vem. - A sua mão puxava firmemente o meu ombro. - Deita-te e observa as estrelas. Vou contar-te uma história.
Estendi-me, com a cabeça sobre o blusão e os calcanhares na areia fria e observei a Via Láctea. À medida que o céu passava de índigo a preto, as ovelhas corriam
em círculo nossa volta, balindo no escuro, e eu esperava ansiosamente que a história começasse. De repente, o rosto de Guban interpôs-se entre mim e a Via Láctea.
Ajoelhou-se entre as minhas pernas e levantou secamente o pequeno pedaço de tecido que eu tinha enrolado em volta da cintura. Depois senti algo duro e húmido pressionar
contra o meu sexo. A princípio fiquei imóvel, não compreendendo o que se passava, mas sabia que era algo de muito mau. A pressão aumentou até se tornar numa dor
aguda.
- Quero a minha mãe!
Subitamente fui inundada por um líquido quente, e um cheiro acre e nauseabundo espalhou-se no ar da noite. Horrorizada, gritei: - Fizeste chichi em cima de mim!
Levantei-me de um salto e esfreguei o meu lenço nas pernas limpando o líquido nauseabundo. Ele segurou-me no braço e murmurou-me num tom apaziguador: - Calma calma.
Não há problema. Tentava apenas contar-te uma história.
Libertei-me bruscamente e corri para a tenda, com Guban. atrás de mim, esforçando-se por alcançar-me. Quando vi a minha mãe, que se encontrava junto ao fogo com
o rosto iluminado pela luz cor de laranja, precipitei-me para ela e lancei os meus braços em volta das suas pernas.
Ela perguntou-me, inquieta: - Que se passa, Waris?
Guban chegou, ofegante, e a minha mãe olhou para ele. - Que se passa com ela? Ele riu com desenvoltura e estendeu o braço para mim: - Oh, queria apenas contar-lhe
uma história e ela teve medo.
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Agarrei-me à minha mãe com todas as minhas forças. Queria contar-lhe o que o amigo do meu pai acabara de me fazer, mas não encontrava palavras - nem sequer sabia
o que ele me tinha feito. Observei o seu rosto sorrindo à luz do fogo, um rosto que veria ainda muitas vezes ao longo dos anos, e soube que o odiaria para sempre.
A minha mãe acariciou-me a cabeça e eu encostei a minha cara ao seu colo: - Acalma-te, Waris. Pronto, pronto. Era apenas uma história, meu bebé. Não é verdadeira.
- Depois voltou-se para Guban: - Onde estão as ovelhas?
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UMA VIDA DE NÓMADA
Tendo crescido em África, eu não possuía o sentido da História que parece tão importante noutras partes do mundo. A nossa língua, o somali, só se tornou língua escrita
partir de 1973, e nunca aprendemos a ler, nem a escrever. O conhecimento era-nos transmitido oralmente - através de poesias ou contos - e os nossos pais ensinavam-nos
tudo que era necessário saber para sobreviver. A minha mãe, por exemplo, ensinou-me a tecer recipientes com erva seca tão comprimida que podiam conter leite; o meu
pai ensinou-me a tomar conta dos animais para que se mantivessem saudáveis. Não falávamos muito do passado, não tínhamos tempo para isso. Só o presente nos preocupava:
"Que vamos fazer hoje as crianças estão cá todas? Os animais estão todos na cerca? Como é que vamos comer? Onde poderemos encontrar água?".
Na Somália, vivíamos como os nossos antepassados desde há milhares de anos; nada mudara verdadeiramente. Sendo nómadas, não tínhamos electricidade, nem telefone,
nem carro, e claro que nunca ouvíramos falar em computadores, televisão ou na conquista espacial. Dado o nosso modo de vida e a nossa tendência para nos preocuparmos
apenas com o presente, tínhamos uma concepção do tempo muito diferente daquela que prevalece nos países ocidentais.
Como todos os membros da minha família, não sei ao certo a minha idade; no meu país, um bebé que nasce tem poucas hipóteses de sobreviver até ao ano seguinte, pelo
que a noção de aniversário não tem a mesma importância para nós. Quando eu era criança, vivíamos sem emprego do tempo, sem relógio ou calendário. Seguíamos as estações
e o curso do sol, organizando as nossas deslocações em função das necessidades de água, e as nossas jornadas segundo a duração do dia. Sabíamos as horas pela posição
do sol; se a minha sombra se estendia para oeste, era manhã; se se encontrava exactamente debaixo de mim, e
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ao meio-dia. Próximo do final do dia, a minha sombra tornava-se mais comprida, advertindo-me de que era altura de partir para o acampamento antes do
anoitecer.
Quando nos levantávamos de manhã, decidíamos o que faríamos nesse dia, depois cumpríamos as nossas tarefas o melhor que podíamos até termos terminado, ou até ser
demasiado escuro para ver. Quando nos levantávamos, o nosso dia não estava planeado com antecedência. Desde que vivo em Nova Iorque, é frequente as pessoas tirarem
a agenda e perguntarem: "Quer almoçar no dia 14 ou no dia 15?". E eu respondo sempre: "Por que não me telefona na véspera do dia em que me quer ver?". Por mais que
aponte os meus compromissos, não consigo habituar-me a essa ideia. Quando cheguei a Londres, ficava surpreendida quando via as pessoas olharem para o pulso e gritarem:
"Tenho de ir! ". Tinha a impressão de que toda a gente corria em todos os sentidos, que tudo era cronometrado. Em África, não conhecemos a pressa, o stress. O nosso
tempo é muito diferente, o nosso ritmo é extremamente lento e calmo. Quando se diz a alguém: "Encontramo-nos amanhã ao meio-dia ... ", isso significa por volta das
quatro ou cinco horas da tarde. Ainda hoje me recuso a usar relógio.
Quando eu era pequena, nunca me aconteceu projectar no futuro nem vasculhar o suficiente no passado para perguntar à minha mãe como se tinha desenrolado a sua infância.
Consequentemente, sei muito pouco sobre a história da minha família, tanto mais que parti de casa muito nova. Queria poder voltar atrás e colocar todas estas questões,
saber como vivia a minha mãe quando era pequena, de onde vinha a sua própria mãe, como morrera o seu pai. A ideia de que posso nunca vir a conhecer toda esta história
entristece-me bastante.
No entanto, sei uma coisa sobre a minha mãe: era muito bonita. Posso dar a impressão de ser a típica filha que adora a sua mãe, mas ela era realmente de uma beleza
excepcional.
O seu rosto parecia uma escultura de Modigliani; tinha a pele tão escura e tão macia que parecia esculpida a mármore preto. A cor da sua pele era de um negro tão
intenso que quando sorria à noite viam-se os seus dentes de uma brancura estonteante cintilarem no ar. Tinha cabelos compridos e lisos, muito macios, que alisava
com os dedos; nunca a vi servir-se de uma escova. Era alta e elegante, características que todas as suas filhas herdaram dela.
O seu temperamento era calmo e pouco falador. Mas quando começava a falar, tornava-se irresistivelmente engraçada e ria muito. Contava piadas, algumas delas divertidas,
outras bastante grosseiras; havia ainda outras que não passavam de asneiras para nos fazer rir. Por exemplo, ela olhava para mim e dizia: - Por que é que os teus
olhos desaparecem na tua cara?
Mas a brincadeira mais estúpida, a sua preferida, era chamar-me Abdohol, que significa "boca pequena". Ela observava-me e depois dizia: - Eh, Abdohol, por que é
que a tua boca é tão pequena?
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o meu pai era muito bonito e, acreditem, sabia-o; media mais de um metro e oitenta, era magro e tinha a pele mais clara do que a da minha mãe. Os seus cabelos eram
castanhos e os seus olhos de um castanho claro. Tendo consciência da sua beleza, era bastante vaidoso. Costumava provocar a minha mãe: "Um dia destes vou procurar
outra mulher se tu não ... ". E anunciava o que desejava. Ou então dizia: "Começo a aborrecer-me aqui, vou-me embora procurar outra mulher". E a minha mãe respondia-lhe
no mesmo tom: "Veremos o que consegues arranjar". Amavam-se verdadeiramente, muito, mas um dia, infelizmente, as suas ameaças concretizaram-se.
A minha mãe crescera em Mogadíscio. O meu pai era um nómada e sempre vivera percorrendo o deserto. Quando se conheceram, a minha mãe achara que o meu pai era muito
bonito e que passar a vida com ele de um lado para o outro era uma ideia bastante romântica. Rapidamente haviam decidido casar-se. O meu avô tinha morrido, por isso
o meu pai foi ter com a minha avó e pediu-lhe permissão para casar com a sua filha. A minha avó respondera: - Não, não, não! De maneira nenhuma! - E acrescentara,
dirigindo-se à sua filha: - Ele não passa de um playboy!
A minha avó não estava disposta a deixar a sua bela filha estragar a vida criando camelos com este homem, um nómada do deserto! Mas quando a minha mãe tinha cerca
de dezasseis anos, fugiu de casa e casou com o meu pai.
Tinham partido para a outra ponta do país e haviam vivido no deserto com a família do meu pai, o que causara bastantes problemas. A minha família materna tinha algum
poder e dinheiro e a minha mãe ignorava tudo acerca da rude vida dos nómadas. Mais grave ainda, o meu pai pertencia à tribo Da arood, e a minha mãe à tribo Hawiye.
Como os ameríndios, os somalis encontram-se divididos em tribos, e cada um dá provas de uma lealdade fanática para com o seu próprio grupo. Este orgulho tribal tem
sido a origem de bastantes guerras ao longo da nossa História.
Uma rivalidade particular opõe os Daaroods aos Hawiyes e a família do meu pai sempre tratou muito mal a minha mãe, sob o pretexto de que, pertencendo a uma tribo
diferente, ela era um ser inferior. A minha mãe sentiu-se muito só durante muito tempo, mas teve de se adaptar. Quando eu fugi e me vi separada da minha família,
compreendi o que deve ter sido a sua vida, sozinha entre os Daaroods.
A minha mãe começou a ter crianças, e deu-lhes todo o amor de que se vira privada vivendo longe do seu povo. Agora que sou adulta, compreendo melhor o que representou
para ela trazer doze crianças ao mundo. Lembro-me dos períodos em que ela estava grávida. Subitamente desaparecia e não a víamos durante vários dias. Depois voltava,
com um bebé nos braços. Partia sozinha para o deserto, levando consigo um objecto bastante agudo para Cortar o cordão umbilical. Uma vez, quando acabara de desaparecer,
tivemos de levantar o
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acampamento, como sempre em busca de água. Ela teve de caminhar quatro dias pelo deserto, carregando o recém-nascido, antes de encontrar o seu marido.
De todos os filhos, eu tinha a impressão de ser a sua favorita. Entendíamo-nos na perfeição, e penso nela em cada dia da minha vida, pedindo a Deus que tome conta
dela até que eu própria possa fazê-lo. Quando era pequena, queria estar sempre junto dela, e ansiava por chegar a casa para ir sentar-me ao seu lado e senti-la acariciar-me
a cabeça.
A minha mãe tecia uns cestos muito bonitos, uma técnica que leva anos de prática a aperfeiçoar. Passávamos muitas horas juntas, e ela ensinava-me a fazer pequenas
chávenas onde podia beber leite, mas quando eu tentava fazer objectos maiores, nunca conseguia igualá-la: os meus cestos eram irregulares e cheios de buracos.
Um dia, o meu desejo de estar junto dela e a minha natural curiosidade infantil impeliram-me a segui-la secretamente. Uma vez por mês, ela abandonava o acampamento
e partia sozinha durante a tarde. Um dia, eu disse-lhe: - Queria tanto saber o que tu fazes, mãe, onde vais todos os meses.
Ela respondeu-me que me metesse na minha vida; em África uma criança não tem o direito de se imiscuir nos assuntos dos seus pais. E, como habitualmente, disse-me
para ficar em casa e tomar conta dos meus irmãos e irmãs. Mas, quando ela se afastou, segui-a à distância escondendo-me atrás dos arbustos. Ela encontrou-se com
outras cinco mulheres, que, como ela, haviam percorrido longas distâncias. Ficaram sentadas durante várias horas, debaixo de uma grande árvore muito bonita. Era
o momento da sesta. E como o sol estava demasiado quente para fazer outra coisa, animais e pessoas descansavam, e as mulheres podiam ter um pouco de tempo para si.
As suas cabeças estavam juntas, e ao longe faziam lembrar formigas. Vi-as comer pipocas e beberem chá. Não faço a menor ideia do que diziam porque me encontrava
demasiado longe para ouvi-las. Como tinha muita vontade de comer milho, decidi finalmente mostrar-me. Avançando suavemente, fui colocar-me ao lado da minha mãe.
Quando me viu, ela gritou: - De onde vens tu?
- Vim atrás de ti.
- És uma rapariga muito má!
Mas as outras mulheres desataram a rir e começaram a mimar-me: - Oh, como é bonita. Anda cá, minha querida...
A minha mãe deixou-se enternecer, e eu pude comer pipocas.
Naquela idade, não sabia que existia um mundo diferente daquele em que nós vivíamos com os nossos camelos e as nossas cabras. Nunca tendo viajado para países estrangeiros;
não conhecendo livros, televisão ou cinema, o meu universo limitava-se ao que ouvia à minha volta. Não compreendi que durante a sua juventude a minha mãe poderia
ter tido uma vida diferente. Antes da independência da Somália, em 1960, a região sul do país fora uma
colónia italiana. Em Mogadíscio, a cultura, a arquitectura e a sociedade tinham, por isso, sofrido a influência italiana, e a minha mãe falava italiano. De vez em
quando, quando estava zangada, vociferava uma torrente de palavrões em italiano. Eu olhava para ela, inquieta:
- o que é que estás a dizer, mãe?
- Oh, é italiano.
- italiano? O que é isso?
- Nada, mete-te na tua vida.
E fazia-me sinal para me afastar. Mais tarde, descobri que a Itália fazia parte do vasto inundo que se estendia para além da nossa tenda.
Muitas vezes, interrogámos a minha mãe sobre as razões que a tinham levado a casar com o meu pai.
- Por que o seguiste? Olha onde vives agora, ao passo que os teus irmãos e irmãs vivem um pouco por toda a parte no mundo. Um dos nossos tios até é embaixador em
Londres. Por que é que fugiste com este falhado?
Ela explicava-nos que se tinha apaixonado pelo meu pai e que decidira fugir com ele ,para poderem ficar juntos.
A minha mãe é uma mulher forte, muito forte. Apesar de tudo o que a vi suportar, nunca a ouvi queixar-se. Nunca a ouvi dizer: "Estou farta!" ou "Não quero mais viver
assim!". Permanecia silenciosa e dura como o aço. Depois, sem que nada o fizesse prever, fazia-nos rir com uma das suas graças idiotas. O meu objectivo é um dia
vir a ser tão forte como ela; poderei então dizer que triunfei na vida.
As ocupações da minha família eram as mesmas que as de muitos somalis, uma vez que sessenta por cento destes são pastores nómadas. O meu pai aventurava-se periodicamente
até a uma aldeia onde vendia um animal para comprar um saco de arroz, tecido para as nossas roupas ou cobertores. Por vezes, enviava o que tinha para vender por
alguém que ia à cidade e também fazia a lista de tudo o que queria comprar em troca.
Também ganhávamos algum dinheiro colhendo incenso, um dos presentes dos reis magos ao Menino Jesus. Hoje em dia, ainda é um produto tão precioso como nos tempos
anti-
gos. O incenso provém da Boswellia, um arbusto muito bonito que mede cerca de um metro e cinquenta, cujos ramos se abrem vergados fazendo lembrar um guarda-chuva
aberto. Com um machado, eu dava golpes ligeiros na árvore, sem a ferir, mas o suficiente para retirar a casca. Então escorria um líquido leitoso. Depois esperava
que esse sumo branco se solidificasse até adquirir a consistência da pastilha elástica - por vezes mastigávamo-lo porque gostávamos do seu gosto amargo. Em seguida
metíamo-lo, em cestos e o meu pai ia vendê-lo.
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Queimávamos incenso à noite, nos nossos fogos de campo. Hoje, quando sinto aquele cheiro, sou transportada para anos atrás. Por vezes vendem em Manhattan incenso
tido por verdadeiro. Compro-o, desesperada por reviver algumas memórias do meu país, mas o seu cheiro não passa de uma pálida imitação que não iguala em nada o rico
perfume exótico dos fogos que ardiam à noite no deserto.
A nossa numerosa família não constituía excepção; na Somália, as mulheres têm em média sete filhos. As crianças são de algum modo a futura pensão das pessoas mais
velhas, pois tomarão conta dos seus pais quando estes se tornarem velhos. As crianças somalis tratam dos seus pais e avós com respeito e jamais teriam a audácia
de contestar a sua autoridade. Todos os mais velhos, incluindo irmãos e irmãs, têm direito a esse respeito e há que obedecer aos seus desejos. Era aliás por isto
que os meus actos de rebelião eram considerados tão escandalosos.
Uma das razões desta grande natalidade - para além da ausência do controlo de nascimentos - tem a ver com o facto de que a vida se torna mais fácil quanto mais pessoas
há para assegurarem o trabalho. Por exemplo, ter água - não água em abundância nem água suficiente, mas simplesmente ter água - requeria um trabalho extenuante.
Quando toda a região onde nos encontrávamos estava seca, o meu pai partia em busca de água. Atava uns enormes odres ao dorso dos camelos, que a minha mãe tecera
com erva, e deixava o acampamento. Permanecia ausente vários dias, o tempo de descobrir água, encher os odres e fazer o caminho de regresso. Enquanto esperávamos,
permanecíamos no mesmo lugar enquanto era possível, mas tornava-se cada dia mais difícil porque tínhamos de percorrer quilómetros sem fim para dar de beber aos rebanhos.
Por vezes partíamos antes do seu regresso, e no entanto ele encontrava-nos sempre sem a ajuda de estradas, sinais indicadores ou mapas. Quando o meu pai estava ausente
ou tinha ido comprar comida, um de nós encarregava-se de encontrar água porque a minha mãe tinha de permanecer no acampamento para tratar de tudo.
Por vezes esta tarefa cabia-me a mim. Eu caminhava durante dias e dias, tão longamente quanto necessário, porque era impensável voltar sem água. Nunca teríamos voltado
de mãos a abanar, porque então não haveria esperança. Ninguém queria ouvir dizer: "Não consegui". A minha mãe tinha-me pedido que encontrasse água, e eu devia fazê-lo.
Quando cheguei ao mundo ocidental, ficava espantada quando ouvia as pessoas queixarem-se: "Não posso trabalhar, dói-me a cabeça".
Eu tinha vontade de lhes dizer: "Deixem-me dar-vos trabalho a sério. Depois, nunca mais se queixarão do vosso emprego".
e Um dos meios que permitiam dispor de mais mão-de-obra para executar as tarefas consistia em aumentar o número de mulheres e de crianças; ter várias mulheres
é uma prática corrente em África. Os meus pais, enquanto casal, eram pouco comuns pelo facto de estarem juntos há vários anos. Mas, depois de terem tido doze crianças,
um dia a minha mãe disse ao meu pai: - Estou demasiado velha... Arranja outra mulher e deixa-me sossegada.
Não sei se ela acreditava no que dizia; provavelmente não acreditava que o meu pai a levasse a sério.
Mas um dia ele desapareceu. A princípio pensámos que tinha ido procurar água ou comida e a minha mãe encarregou-se de tudo. Após dois dias de ausência, pensamos
que tinha morrido. E depois, uma noite, tão subitamente como tinha partido, voltou. Eu estava sentada com os meus irmãos e irmãs diante da tenda. Ele avançou descontraidamente
para nós e disse: - Onde está a vossa mãe?
Respondemos-lhe que ela ainda estava a tratar dos animais. Ele dirigiu-nos um grande sorriso: - Bem, ouçam todos! Quero apresentar-vos a minha nova mulher.
Empurrou na nossa direcção uma rapariga de dezassete anos - pouco mais velha do que eu. Limitámo-nos a olhar para ela porque não nos teria sido permitido pronunciar
uma palavra que fosse; além disso, não saberíamos o que dizer.
Quando a minha mãe chegou, ficámos todos tensos, na expectativa do que iria passar-se. Ela olhou para o meu pai, sem reparar na rapariga que estava no escuro, e
disse-lhe:
- Oh, decidiste voltar?
O meu pai balançava-se num pé e noutro olhando em volta.
- Sim, aaahhh... sim. A propósito, apresento-te a minha mulher.
E passou os braços em volta dos ombros da sua nova esposa. Nunca esquecerei a expressão do rosto da minha mãe à luz do fogo: parecia ter-se desmoronado. Foi então
que ela compreendeu: - Meu Deus! Perdi-o! Trocou-me por esta criança! - Ela estava morta de ciúmes, mas tentava corajosamente não o mostrar.
Não fazíamos ideia de onde vinha a nova mulher do meu pai nem sabíamos nada acerca dela. Mas isso não a impediu de começar imediatamente a dar-nos ordens. Depois,
esta rapariga de dezassete anos começou a mandar na minha mãe, ordenando-lhe que fizesse isto, que lhe trouxesse aquilo, que lhe cozinhasse tal prato. O ambiente
já estava bastante tenso quando um dia ela cometeu um erro fatal: esbofeteou o meu irmão Velho Homem. No dia em que isto aconteceu, eu encontrava-me com os meus
irmãos e irmãs no nosso esconderijo (sempre que nos deslocávamos, procurávamos uma árvore, perto da tenda, junto da qual
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gostávamos de nos reunir; servia-nos de "quarto das crianças".) Ouvi Velho Homem gritar, levantei-me e vi-o vir na minha direcção a chorar.
- O que foi?
Inclinei-me para ele e limpei-lhe a cara.
- Ela bateu-me, bateu-me com muita força!
Nem sequer precisei de perguntar quem, porque na nossa família nunca ninguém levantara a mão para Velho Homem. Nem a minha mãe, nem nenhuma das crianças, nem o meu
pai, que batia em todos nós regularmente. Não havia necessidade de corrigir Velho Homem porque ele era o mais sábio de todos nós, e comportava-se sempre de forma.
exemplar. Ao bater no meu irmão, aquela idiota ultrapassara os limites, era mais do que eu podia suportar, e fui ter com ela:
Por que bateste no meu irmão? Ele bebeu o meu leite.
Disse estas palavras num tom altivo, como se fosse a rainha do palácio e possuísse todo o nosso leite e todos os nossos rebanhos.
- O teu leite? Fui eu que pus esse leite na tenda e se o meu irmão o quer, se tem sede, pode bebê-lo. Tu não tens nada que lhe bater!
- Oh, cala a boca e desaparece daqui! - Ela gritava e fez-me sinal para me afastar com um gesto. Olhei-a abanando a cabeça. Eu tinha apenas treze anos, mas sabia
que ela acabara de cometer um erro fatal.
Os meus irmãos e irmãs esperavam-me, sentados debaixo da árvore, estendendo o ouvido para apanhar partes da nossa discussão. Aproximei-me deles, e ao ver as suas
expressões inquisidoras, disse simplesmente: - Amanhã.
Eles acenaram.
No dia seguinte, a sorte sorriu-nos porque o meu pai partiu por dois dias. À hora da sesta, eu levei os animais para o acampamento e fui ter com a minha irmã e dois
dos meus irmãos.
- A nova mulher do pai está a ir longe de mais. Isto parecia evidente a todos.
- Temos de fazer alguma coisa.
- Sim, mas o quê? - respondeu Ali.
- Já vão ver. Venham ajudar-me e verão.
Agarrei numa espessa corda rugosa que normalmente usávamos para atar as nossas coisas ao dorso dos camelos quando nos deslocávamos, depois levámos a amedrontada
[mulher do meu pai para longe do acampamento, para o mato, e obrigámo-la a despir-se corretamente. Lancei então uma das extremidades da corda por cima do ramo de
uma grande árvore e atei-lha aos tornozelos. Enquanto a içávamos do solo, ela insultava-nos, gritava e soluçava, tudo ao mesmo tempo. Com a ajuda dos meus irmãos,
puxei a corda para que a cabeça dela ficasse suspensa a dois metros e meio do solo, certificando-me assim de que nenhum animal selvagem a devoraria. Depois atámos
a um arbusto a extremidade livre da corda e voltámos ao acampamento, deixando a esposa do meu pai a torcer-se e a gritar no deserto.
o meu pai voltou no dia seguinte à tarde, mais cedo do que previsto. Perguntou-nos onde estava a sua mulherzinha. Encolhemos todos os ombros respondendo que não
a tínhamos visto. Felizmente, tínhamo-la levado suficientemente longe para que os seus gritos não pudessem ser ouvidos. O olhar do meu pai era desconfiado. Ao escurecer,
ainda não tinha encontrado vestígios dela. Sabia que algo se passara e interrogou-nos:
- Quando é que a viram pela última vez? E hoje, viram-na? E ontem? Dissemos-lhe que ela não voltara na noite anterior, o que, de resto, era verdade.
O meu pai entrou em pânico e começou a procurar por toda a parte freneticamente. Mas só a encontrou na manhã seguinte. A sua jovem esposa tinha ficado durante quase
dois dias pendurada de cabeça para baixo quando finalmente ele a soltou; e não estava em muito bom estado. Ao voltar ao acampamento, ele estava furioso e perguntou:
- Quem foi o responsável por isto?
Entreolhámo-nos em silêncio. Mas claro que ela disse: - Foi Waris quem teve a iniciativa.
O meu pai atirou-se a mim e começou a bater-me, mas todos os meus irmãos se precipitaram em minha defesa. Sabíamos que era errado bater no próprio pai, mas não podíamos
continuar a suportar aquela situação.
Depois disto, a jovem esposa do meu pai tornou-se uma pessoa diferente. Tínhamos-lhe dado uma lição, e ela compreendera-a bem. Tendo sentido o sangue afluir-lhe
à cabeça durante dois dias, penso que as suas ideias estavam agora mais claras; passou a mostrar-se doce e disponível. A partir desse momento, beijava os pés da
minha mãe e servia-a com mil cuidados, como uma escrava. "O que é que eu te posso trazer? O que é que posso fazer por ti? Não te mexas, descansa".
E eu pensei: "Ora aí está! Devias ter-te comportado assim desde o inicio, cabrinha. Ter-nos-ias poupado uma dor inútil". Mas a vida de nómada é dura, e embora ela
tivesse menos vinte anos do que a minha mãe, a nova esposa do meu pai não era tão robusta como ela. Finalmente, a minha mãe compreendeu que não tinha nada a temer
daquela adolescente.
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A vida de nómada é dura, mas também é muito bela, de tal forma ligada à natureza que as duas são inseparáveis. O nome que a minha mãe me deu é justamente um desses
milagres da natureza: Waris significa "Flor do Deserto". A flor do deserto floresce onde poucas coisas conseguem sobreviver. No meu país, por vezes não chove durante
um ano inteiro. Quando finalmente a água cai, purificando a paisagem poeirenta, as flores surgem como por milagre. São de um amarelo-alaranjado brilhante, e é por
esta razão que o amarelo sempre foi a minha cor preferida.
Quando uma rapariga se casa, as mulheres da tribo vão apanhar essas flores no deserto. Secam-nas e misturam-nas com água para obterem uma pasta que espalham na cara
da futura esposa, dando-lhe um brilho dourado. Coloram-lhe as mãos e os pés com hena e realçam os olhos com khol, para o seu olhar parecer profundo e sensual. Todos
estes cosméticos, à base de plantas e ervas, são totalmente naturais. As mulheres envolvem-na em seguida em tecidos coloridos, vermelho, rosa, laranja e amarelo,
até cobrirem o corpo todo. Quanto mais tecidos, melhor. Por vezes não têm muitos, algumas famílias são extremamente pobres, mas não há vergonha alguma nisso; a futura
esposa levará simplesmente o que a mãe, irmãs e amigas tiverem encontrado de melhor, e o seu porte será sempre altivo, característica comum a todas as somalis. No
dia do casamento, ela estará de uma beleza deslumbrante para receber o seu futuro esposo. Mas os homens não o merecem.
Nesse dia, os membros da tribo trazem presentes; mas não se sentem obrigados a comprar isto ou aquilo e não se preocupam por não poderem oferecer nada de valor.
Cada um dá o que tem: uma esteira onde o casal dormira, ou uma taça, e quando não se tem nenhuma destas coisas, leva-se comida para a festa que se segue à cerimónia.
Na minha cultura, não existe nada de semelhante a uma lua-de-mel, e o dia a seguir ao casamento é um dia de trabalho normal para os recém-casados; nessa altura,
precisam de todos os seus presentes para iniciarem a vida em comum.
Após meses e meses de seca, o desespero apoderava-se de nós. Reuníamo-nos então para implorar a Deus que nos enviasse chuva. Por vezes isto resultava, outras vezes
não. Houve um ano em que não caíra ainda uma gota, apesar de ser a estação das chuvas. Metade dos nossos animais tinham sucumbido e os outros agonizavam de sede.
A minha mãe decidiu que devíamos reunir-nos e rezar por chuva. As pessoas saíram literalmente de toda a parte. Todos rezámos, cantámos e dançámos, tentando ser felizes
e manter o espírito positivo.
No dia seguinte, as nuvens juntaram-se e a chuva começou a cair. Então, como sempre que chovia, o verdadeiro regozijo começou: toda a gente se despia e corria à
chuva, lavando-se pela primeira vez em muitos meses. Festejámos o acontecimento com as nossas danças tradicionais: as mulheres batiam palmas e cantavam, as suas
vozes doces e graves ressoavam pela noite do deserto, e os homens davam grandes saltos no ar. Toda a gente tinha trazido comida, e comemos como reis para festejar
a dádiva da vida.
Nos dias que se seguiam à chuva, a savana cobre-se de flores douradas e as pastagens tornam-se verdes. Os animais podem finalmente comer e beber até se saciarem,
proporcionando-nos a oportunidade de nos descontrairmos e gozarmos a vida. Nessas ocasiões vamos até aos lagos recém-formados pela chuva para tomar banho e nadar.
No ar fresco, os pássaros começam a cantar e o deserto torna-se um paraíso.
Para além dos casamentos, temos poucas festas. Não há dias inscritos arbitrariamente no calendário. A chuva que esperamos durante muito tempo é uma das causas principais
desse regozijo. No meu país, a água é muito escassa, e no entanto é a própria essência da vida. Os nómadas do deserto têm um enorme respeito pela água, e cada gota
é para eles algo de precioso. Ainda hoje amo a água. O simples facto de olhar para ela enche-me de alegria.
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TORNAR-SE MULHER
Chegara o momento de Aman, a minha irmã mais velha, ser excisada. Como todas as irmãs mais novas, eu invejava-a, tinha ciúmes de a ver entrar naquele mundo dos
adultos que ainda me estava vedado. Aman era uma jovem adolescente que ultrapassara há muito a idade normal da excisão, mas até então não surgira a ocasião. Como
a minha família se deslocava incessantemente, por uma razão ou por outra tínhamo-nos sempre desencontrado da cigana que praticava esse ritual antigo. Um dia o meu
pai encontrou-a finalmente e pediu-lhe que viesse excisar as minhas duas irmãs mais velhas, Aman e Halemo. Quando a mulher chegou ao acampamento, Aman havia partido
em busca de água e ela excisara apenas Halemo.
O meu pai mostrava-se cada vez mais inquieto porque Aman atingiria em breve a idade de se casar, mas não era possível qualquer união enquanto a sua filha não tivesse
sido devidamente "preparada". Na Somália, existe uma crença segundo a qual as raparigas têm entre as pernas coisas muito más, partes do corpo com as quais nasceram
e que não obstante são sujas e devem ser suprimidas. O clitóris, os pequenos lábios e a maior parte dos grandes lábios são cortados e depois a ferida é cosida, deixando
apenas uma cicatriz no lugar dos órgãos genitais. Mas os detalhes deste ritual permanecem um mistério para as raparigas, nada lhes é explicado antes da cerimónia.
Sabem apenas que algo de especial lhes acontecerá quando chegar a sua vez.
Consequentemente, todas as jovens na Somália aguardam com impaciência esta cerimónia que lhes permite tornarem-se mulheres. Originariamente, isto passava-se quando
uma rapariga atingia a idade da puberdade, e o ritual tinha então um determinado significado, porque doravante a jovem tornava-se fértil e capaz de gerar. Mas, com
o tempo, a excisão começou a ser praticada em raparigas cada vez mais novas, em parte porque elas mesmas
esperavam con, impaciência aquele "momento especial", como uma criança do mundo ocidental espera o seu aniversario ou a vinda do Pai Natal. Quando soube que a velha
cigana vinha excisar Aman, quis que ela me fizesse o mesmo. Aman era a minha bela irmã mais velha, o meu ídolo, e tudo o que ela desejava ou tinha, eu também desejava.
Na véspera do grande acontecimento, supliquei à minha mãe puxando-a pelo braço: - Mãe, deixa-nos fazer as duas ao mesmo tempo. Mãe, por favor, aduas!
A minha mãe afastou-me: - Cala-te, filhinha.
No entanto, Aman não me parecia demasiado impaciente. Lembro-me de a ter ouvido murmurar: - Só espero que não suceda o mesmo que com Halemo. Mas naquela altura eu
era demasiado jovem para compreender o que isto queria dizer, quando pedi a Aman que me explicasse, ela não me respondeu.
Muito cedo no dia seguinte, a minha mãe e uma das suas amigas vieram procurar minha irmã para a levarem à mulher que deveria praticar a excisão. Eu insisti para
as acompanhar, mas a minha mãe disse-me para ficar onde estava e tomar conta das crianças. Uma vez mais, segui-a tal como fizera no dia em que ela fora reunir-se
com as suas amigas, escondendo-me nos arbustos e atrás das árvores, permanecendo a uma distância prudente.
A cigana chegou. Na nossa comunidade, é considerada uma pessoa importante, não apenas porque possui um saber especializado, mas também porque ganha muito dinheiro
praticando a excisão. O preço a pagar por esta cerimónia representa, uma grande despesa para a família, mas é considerado um bom investimento, uma vez que as raparigas
não-excisadas não podem ser colocadas no "mercado" do casamento. Com os órgãos genitais intactos, são consideradas impróprias para o casamento, e passam por raparigas
fáceis e sujas que nenhum homem quereria para esposa. A cigana, como alguns lhe chamam, é por isso um membro importante na nossa sociedade; mas eu chamo-lhe a "Assassina"
por causa de todas as raparigas que morreram por sua culpa.
Escondida atrás de uma árvore, eu observava Aman sentada no chão. Depois a minha mãe e a sua amiga agarraram-na pelos ombros e obrigaram-na a deitar-se. A cigana
meteu as mãos entre as pernas da minha irmã, e eu vi uma expressão de dor perpassar pelo rosto de Aman. A minha irmã era grande e tinha muita força e de repente
- pum!, deu um pontapé no peito da cigana, fazendo-a cair de costas; depois libertou-se da mulher e da minha mãe que a Mantinham no chão, e conseguiu levantar-se.
Horrorizada, vi sangue escorrer pelas suas pernas e deixar um rasto na areia enquanto ela fugia a correr. As duas precipitaram-se atrás dela, mas a minha irmã já
estava a uma grande distância delas quando caiu desmaiada. viraram-na de costas, no próprio sítio onde ela caíra, e continuaram o seu trabalho. Eu já não Podia olhar,
sentia-me doente, e voltei para o acampamento.
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Agora sabia algo que teria preferido ignorar. Não compreendia o que se passara, mas estava aterrorizada com a ideia de eu própria passar por aquilo. Não podia interrogar
a minha mãe porque sabia que não deveria ter assistido àquela cena. Quando as feridas cicatrizaram, Aman ficou separada das outras crianças. Quando voltei a vê-la,
perguntei-lhe:
-Que tal foi?
-Foi horrível...
Depois calou-se. Suponho que preferiu não me dizer a verdade sabendo que chegaria a minha vez de ser excisada, e que teria então muito medo em vez de esperar o momento
com impaciência.
- Seja como for, em breve chegará a tua vez e vai ser bastante em breve. Não me disse mais nada.
A partir desse momento, temi aquele ritual ao qual teria de submeter-me e que faria de mim uma mulher. Esforcei-me por afastar do meu espírito aquelas imagens horríveis
e, com o passar do tempo, a memória da dor que lera na cara de Aman. foi-se desvanecendo. Acabei por me convencer estupidamente de que também queria tornar-me mulher,
juntando-me assim às minhas irmãs mais velhas.
Naquela época, deslocávamo-nos sempre na companhia de um amigo do meu pai e da sua família. Era um homem velho e resmungão. Quando a minha irmã mais nova ou eu o
aborrecíamos, afastava-nos agitando a mão, como se estivesse a afastar moscas, e ria-se de nós dizendo: - Afastem-se de mim, não passam de duas raparigas sujas e
impuras. Ainda nem sequer foram excisadas! - Cuspia estas palavras como se fossemos seres tão repelentes que nem sequer suportava ver-nos pela frente. Aqueles insultos
perturbavam-me, e jurei encontrar uma forma de lhe calar a boca.
Este homem tinha um filho, um jovem adolescente chamado Jamali por quem eu estava apaixonada. Jamali ignorava-me e só Aman lhe interessava. Acabei por lhe dizer
que ele preferia a minha irmã porque ela tinha sido excisada. Como o seu pai, Jamali certamente não queria ter nada a ver com as rapariguinhas "sujas". Quando eu
tinha cerca de cinco anos, provoquei a minha mãe:
- Mãe, encontra-me essa mulher. Quando é que vamos tratar do assunto?
Eu pensava: É preciso acabar com isto fazer com que esta coisa misteriosa aconteça de vez. E quis o acaso que a cigana passasse de novo pelas redondezas alguns dias
mais tarde.
'Uma noite, a minha mãe disse-me: - Olha, o teu pai encontrou a cigana. Aguarda-mo-la um destes dias.
Na noite anterior à minha excisão, a minha mãe aconselhou-me a não beber muita água nem leite, de forma a não ter muita vontade de fazer chichi. Não sabia por que
me dizia aquilo, mas não fiz perguntas e limitei-me a abanar a cabeça. Estava nervosa, mas impaciente por acabar com aquela história. Nessa noite, toda a família
se encheu de cuidados comigo e, como mandava a tradição, tive direito a mais comida do que os outros: era uma das razões que me tinham feito invejar as minhas irmãs
mais velhas. Mesmo antes de ir dormir, a minha mãe disse-me: - Acordar-te-ei amanhã de manhã, quando tiver chegado o momento.
- Não faço a menor ideia de como adivinhara ela a vinda daquela mulher. Ela sentia sempre intuitivamente quando algo estava para vir ou quando ia passar-se algo.
Terrivelmente excitada, mal consegui dormir nessa noite até ver a minha mãe inclinada sobre mim. O céu ainda estava escuro; era mesmo antes da aurora, quando o negro
se torna imperceptivelmente cinzento. Ela fez-me sinal para não falar e deu-me a mão. Agarrei no meu cobertor e, semiadormecida, segui-a aos tropeções. Agora sei
por que preferem levar as raparigas logo cedo pela manhã - assim podem ser excisadas antes que as outras pessoas estejam acordadas, para ninguém ouvir os seus gritos.
Afastámo-nos da tenda e penetrámos nos arbustos. A minha mãe disse:
- Esperaremos aqui.
Sentámo-nos no chão frio. O sol levantava-se lentamente e as formas à nossa volta mal se distinguiam. Em breve ouvi o clic-clic das sandálias da cigana. A minha
mãe chamou-a:
- És tu?
Uma voz respondeu: - Sim, estou aqui...
Mas eu não via ninguém. Depois, surgiu subitamente ao meu lado. Apontou para uma rocha plana: - Senta-te ali.
Não me disse mais nada, nem "Bom dia", nem "Como estás", nem "O que te vou fazer hoje é bastante doloroso e tens de ser corajosa". Nada disso. A Assassina era totalmente
profissional.
A minha mãe arrancou um pedaço de raiz de uma árvore velha e depois instalou-me sobre a rocha. Sentou-se atrás de mim, puxou-me a cabeça sobre o seu peito e apertou-me
o corpo com as pernas. Eu passei os braços em volta das suas coxas. Ela meteu o pedaço de raiz entre os meus dentes: - Morde isto.
Eu estava paralisada de medo à medida que a memória do rosto torturado de Aman ressurgia diante de mim. Mordendo a raiz, murmurei: - Vai doer muito?
A minha mãe inclinou-se para mim e murmurou: - Sabes, sozinha não consigo segurar-te. Tenta ser uma menina bem comportada, meu bebé. Sê corajosa pela mãe e isto
passará depressa.
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Espreitei entre as minhas pernas e vi a mulher Preparar-se. Era idêntica a qualquer outra mulher Somali; tinha um lenço colorido enrolado em volta da cabeça,
um vestido de algodão de C0% vivas, mas não sorria. Fitou-me duramente antes de mergulhar a mão num velho saco de Pano. Eu não tirava os olhos dela porque queria
saber o que ia usar para me cortar. Estava à espera de uma grande faca, mas em vez disso retirou do saco um pequeno embrulho envolvido num estojo de algodão. Com
uns dedos compridos, extraiu do seu interior uma lâmina de barbear partida e examinou-a de ambos os lados. O sol estava agora bastante alto e havia luz suficiente
para ver as cores, mas não os detalhes. Apesar disso, vi sangue seco nas extremidades usadas da lâmina. Ela cuspiu na lâmina e limpou-a com o vestido. Foi na altura
que tudo se tornou escuro, porque a minha mãe me pôs um lenço em volta dos olhos.
Em seguida senti que me cortavam a carne, os órgãos genitais. Ouvia o ruído da lâmina que ia e vinha. Honestamente, quando penso nisso, custa-me verdadeiramente
a crer que não tenha enlouquecido. Sinto-me como se estivesse a falar de outra pessoa. É-me praticamente impossível explicar o que senti. É como se nos cortassem
a sangue-frio a carne da coxa ou do braço, excepto que se trata da parte mais sensível do nosso corpo. Contudo, não me movi um centímetro; lembrei-me de Aman e sabia
que não havia hipótese alguma de escapar. E queria que a minha mãe se orgulhasse de mim. Permaneci deitada como se fosse feita de pedra, dizendo para comigo que
quanto menos me mexesse menos duraria aquela tortura. Infelizmente, as minhas pernas começaram a tremer sozinhas sem que eu pudesse fazer nada contra isso. E rezei:
Meu Deus, por
favor, faz com que isto acabe depressa. Depois não senti mais nada porque desmaiei.
Quando voltei a mim, pensei que tinha terminado, mas o pior ainda estava por vir. Tinham-me retirado a venda, e vi que a Assassina tinha a seu lado uma pilha de
espinhos de acácia. Utilizou-os para fazer buracos na minha pele, após o que passou um fio branco sólido e me coseu. Eu tinha as pernas completamente dormentes mas
a dor que eu sentia naquele sítio era tão terrível que desejei morrer. Senti-me flutuar acima do chão, deixando o meu sofrimento atrás de mim, e planei alguns metros
acima da cena observando a mulher que cosia o meu corpo enquanto a minha pobre mãe me segurava os braços. Naquele momento, senti uma paz total; já não estava nem
inquieta nem assustada.
A partir desse instante, não me lembro de mais nada; quando recuperei a consciência, a mulher já tinha partido. Tinham-me mudado de sítio: estava estendida no chão
junto à rocha. As minhas pernas estavam atadas juntas com pedaços de tecido, dos tornozelos até às ancas, para que não me pudesse mexer. Procurei a minha mãe com
o olhar, mas ela também tinha Partido. Fiquei estendida, completamente só, perguntando-me o que iria acontecer-me em
seguida. Virei a cabeça para o rochedo: estava coberto de sangue, como se um animal tivesse sido abatido ali. Pedaços da minha carne, do meu sexo, secavam ao sol.
Assim estendida, observei o sol subir acima da minha cabeça. Já não havia sombra à minha volta e o calor queimava-me a cara quando a minha mãe e a minha irmã voltaram.
Arrastaram-me e colocaram-me à sombra de um arbusto enquanto acabavam de preparar "a minha árvore". Era a tradição: uma pequena tenda especial era armada debaixo
de uma árvore e seria aí que eu repousaria e me recuperaria, sozinha durante algumas semanas, até ficar boa. Quando terminaram o seu trabalho, a minha mãe e Aman
transportaram-me para o interior da tenda.
Eu pensava que o suplício tinha terminado até que senti vontade de fazer chichi; foi então que compreendi por que razão a minha mãe me aconselhara a não beber leite
nem água. Depois de ter esperado várias horas, eu estava a morrer de vontade de urinar, mas as
minhas pernas estavam atadas uma à outra, mal me conseguia mexer. A minha mãe pedira-me para não andar porque a ferida poderia voltar a abrir e então teria de ser
cosida de novo. E, podem crer, essa era a última coisa que eu queria.
Chamei a minha irmã: - Tenho de fazer chichi.
A sua expressão fez-me pensar que não se tratava de uma boa notícia. Aproximou-se de mim, fez-me deitar de lado e escavou um buraco na areia.
- Podes fazer.
A primeira gota de urina queimou-me como se a minha pele tivesse sido comida por um ácido. Quando a cigana me cosera, deixara para a urina e para o sangue menstrual
apenas um minúsculo orifício com o diâmetro de um fósforo. Ficava assim garantido que me seria impossível ter relações sexuais antes do casamento, e o meu marido
teria a certeza de ter uma mulher virgem. Enquanto a urina, retida na minha ferida em carne viva, escorria gota a gota ao longo das minhas pernas e depois para a
areia, comecei a soluçar. Não chorara quando a Assassina me cortara em pedaços, mas agora o ardor era tão horrível que não consegui suportar mais.
À medida que a noite caía, Aman e a minha mãe voltaram ao acampamento para junto da família e eu fiquei sozinha na tenda. Permaneci deitada e impotente, incapaz
de fugir, mas desta vez não tinha medo, nem do escuro, nem dos leões, nem das serpentes. Desde o momento em que me tinha visto pairar acima do meu corpo e vira aquela
velha coser o meu sexo, já nada me podia amedrontar. Estendida no chão duro, rígida como uma pedra, ignorando o medo, era-me indiferente se iria viver ou morrer.
Tão-pouco me importava saber que o resto da família estava em casa a conversar e a rir à lareira enquanto eu permanecia sozinha no escuro.
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À medida que os dias passavam e eu continuava estendida na minha tenda, a minha ferida começou a infectar e a febre subiu. Eu estava cada vez mais fraca, e por vezes
perdia a consciência. Temendo a dor provocada pela micção, esforçava-me por não urinar, mas a minha mãe disse-me:
- Meu bebé, se não fizeres chichi acabas por morrer.
E eu esforcei-me por lhe obedecer. Quando estava só, deslocava-me alguns centímetros e, rebolando até ficar de lado, preparava-me para a dor lancinante que ia seguir-se.
A dado momento, a minha ferida estava de tal forma infectada que eu era incapaz de urinar. Durante duas semanas a minha mãe trouxe-me de comer e de beber; durante
o resto do tempo eu estava só, com as pernas sempre atadas. E esperava que a minha ferida sarasse. Febril, morta de aborrecimento e apática, não podia fazer mais
nada a não ser pensar: Porquê? Qual a utilidade de tudo aquilo? Com a idade que eu tinha, não compreendia nada acerca de sexo. A única coisa que sabia é que tinha
sido mutilada com o consentimento da minha mãe, e não conseguia entender a razão.
Finalmente, a minha mãe veio procurar-me e eu arrastei-me até ao acampamento, com as pernas sempre atadas. Nessa mesma noite, na tenda famíliar, o meu pai perguntou-me:
- Como te sentes?
Suponho que ele se referia ao meu novo estado de mulher, mas eu só conseguia pensar na dor que sentia entre as pernas. Eu tinha cinco anos; limitei-me a sorrir,
sem responder nada. Que podia eu saber acerca de ser mulher? Apesar de não perceber na altura, eu sabia uma série de coisas sobre o facto de se ser uma mulher africana:
sabia como viver sem dar nas vistas, sofrendo à maneira passiva e impotente de uma criança.
Durante mais de um mês, as minhas, pernas permaneceram ligadas uma à outra para que a minha ferida sarasse. A minha mãe lembrava-me frequentemente para não correr
nem saltar, e eu arrastava suavemente os pés. Sempre fora muito activa e cheia de energia, correndo como um leopardo, trepando às árvores ou saltando por cima das
rochas, e conhecia agora uma outra forma de suplício para uma rapariga: permanecer sentada enquanto os seus irmãos e irmãs brincavam. Mas, totalmente aterrorizada
de voltar a passar por todo aquele tormento, mal me movia. A minha mãe certificava-se todas as semanas de que a ferida cicatrizava convenientemente. Quando retiraram
os pedaços de pano que me ligavam as pernas, pude ver pela primeira vez o que me tinham feito: vi, entre as minhas coxas, pele completamente lisa, à excepção de
uma espécie de fecho eclair praticamente fechado - os meus órgãos genitais estavam tão fechados como uma parede de tijolos. Assim, nenhum homem poderia penetrar-me
antes da noite de núpcias, altura em que o meu marido me abriria com uma faca ou entraria à força dentro de mim.
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Assim que pude recomeçar a andar, cumpri uma missão. Tinha pensado nela desde o dia em que aquela mulher me mutilara e durante as longas semanas em que permanecera
estendida. Consistia em ir até junto do rochedo em que tinha sido sacrificada para ver se os meus órgãos genitais ainda lá estavam. Mas tinham desaparecido, sem
dúvida comidos por um abutre ou uma hiena, predadores que participam no ciclo da vida e da morte em África. o seu papel é o de fazer desaparecer os cadáveres, a
prova mórbida da dureza da nossa vida no deserto.
A minha excisão fizera-me sofrer bastante, e no entanto tive sorte, as coisas podiam ter sido bem piores, como sucedia frequentemente com outras raparigas. Quando
nos deslocavámos através da Somália, encontrávamos várias outras famílias e eu costumava brincar com as suas filhas. Mais tarde, quando voltávamos a encontrar-nos,
algumas dessas raparigas já não existiam. Ninguém dizia a verdade sobre a sua ausência: morriam em consequência destas mutilações, das hemorragias, choques, infecções
ou tétano. Dadas as condições em que é praticada esta ablação, não é de forma alguma surpreendente. O que é surpreendente é que algumas de nós sobrevivam a tudo
isto.
Pouco me lembro da minha irmã Halemo. Eu devia ter três anos quando subitamente ela desapareceu; não compreendi o que lhe aconteceu. Mais tarde, soube que a cigana
a tinha excisado quando o "momento especial" chegara, e Halemo sangrara até morrer.
Quando eu tinha cerca de dez anos, soube a história de uma das minhas jovens primas, excisada aos seis anos de idade. Foi um dos seus irmãos, que veio viver connosco,
quem nos contou o que se passara. Uma mulher excisara a sua irmã e depois deitara-a na tenda para que ela recuperasse. Mas a sua "coisa", como lhe chamava o meu
primo, começara a inchar; o cheiro que saía da tenda era insuportável. Na altura em que me contara esta história, eu não tinha acreditado. Por que teria a minha
prima cheirado mal se isso não se passara com Aman nem comigo? Agora compreendo que ele dizia a verdade: dadas as condições repugnantes em que a excisão era praticada,
a ferida tinha infectado, e o cheiro nauseabundo era um dos sintomas da gangrena. Segundo a tradição, a minha prima passara as suas noites sozinha na tenda, e uma
manhã, quando a sua mãe fora vê-la, encontrara-a morta, o corpo já frio. Mas antes que os abutres tivessem tempo para fazer desaparecer aquela prova mórbida a família
enterrara a rapariga.
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O CONTRATO DE CASAMENTO
U ma manhã fui acordada ao som de vozes. Levantei-me da minha esteira mas, como não vi ninguém, decidi investigar. Seguindo o som das vozes na calma matinal, corri
quase um quilómetro antes de ir ter com o meu pai e a minha mãe, que acenavam em despedida a umas pessoas que se afastavam. Perguntei, apontando para as costas de
uma mulher
magra cuja cabeça estava envolta num lenço: - Quem é, mãe?
- Oh, é a tua amiga Shulcrim.
- A família dela vai-se embora?
- Não, Shukrim vai casar-se.
Estupefacta, vi as silhuetas desaparecerem. Eu tinha cerca de treze anos e Shukrim devia ter catorze. Não podia acreditar que ela ia casar-se. Perguntei: - Com quem?
- Ninguém me respondeu, porque consideram que eu não tinha nada com isso. Repeti a pergunta, que uma vez mais obteve o silêncio como resposta.
- Ela vai viver com a família do seu marido?
Esta prática era comum e eu tinha medo de não voltar a ver a minha amiga. O meu pai disse asperamente: - Não te preocupes com isso. Tu serás a próxima!
Os meus pais deram meia volta e regressaram à tenda enquanto eu permanecia no mesmo sítio, debatendo-me com aquelas questões. Shukrim ia casar-se! Casar-se! Eu ouvira
muitas vezes aquela palavra, mas até então nunca me perguntara o que significava.
Nunca tinha pensado no casamento ou em sexo. Na minha família, e na nossa cultura, ninguém falava dessas coisas. Não me viera à ideia falar disso. No que dizia respeito
aos rapazes, só pensava em competir com eles para saber quem é que tratava melhor dos animais, quem corria mais depressa, quem era o mais forte. A única coisa que
aprendíamos acerca de sexo era: "Certifiquem-se que ninguém vos toca. Têm de estar virgens no dia
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do vosso casamento". As raparigas sabiam que se casariam virgens, e apenas com um homem; nisso consistia todo o seu futuro. O meu pai dizia-nos muitas vezes, às
minhas irmãs e a mim: - Vós sois as minhas rainhas. - Sentia-se feliz por as suas filhas serem consideradas das mais belas nas redondezas. - Vós sois as minhas rainhas
e nenhum homem vos tocará. Se algum tentar fazê-lo, digam-me. Eu estou aqui para vos proteger. Por vós, morrerei se for preciso. - E por mais de uma vez surgira-lhe
a ocasião de proteger as suas "rainhas". Aman, a minha irmã mais velha, guardava um dia os seus animais quando un homem se aproximou dela. Não cessava de a perseguir,
e ela repetia-lhe: - Deixa-me em paz. Não estou interessada em ti!
Como o seu charme não resultava, ele quis usar a força e atirou-se para cima dela. Foi um grande erro, porque a minha irmã era uma amazona: media quase um metro
e oitenta e cinco e era tão forte como qualquer homem. Bateu-lhe e depois voltou para o acampamento e contou ao meu pai o que se passara. O meu pai foi procurar
o pobre idiota, e então o Papá sovou-o. Homem algum tocaria nas suas filhas.
Uma noite fui acordada pelos gritos agudos de Fauziya, outra das minhas irmãs. Dormíamos como habitualmente ao relento, mas Fauziya estava deitada um pouco afastada
de nós. No escuro, vislumbrei a silhueta de um homem que fugia do acampamento. A minha irmã continuava a gritar enquanto o meu pai se lançara já na perseguição do
intruso. Quando chegámos junto dela, Fauziya limpava as pernas abertas de esperma branco e pegajoso. O homem escapou ao meu pai, mas de manhã reparámos nas marcas
das suas sandálias junto do sítio onde a minha irmã dormira. O meu pai chegou saber quem era o culpado, mas não
tinha a certeza.
Um pouco mais tarde, durante um período negocialmente seco, o meu pai dirigiu-se a um poço das redondezas para buscar água. Enquanto estava no fundo, com os pés
na terra húmida, um homem aproximou-se. Esperava pacientemente pela sua vez e acabou por gritar: - Então! Despacha-te! Eu também tenho de tirar água.
Na Somália, os poços são buracos cavados da terreno descoberto, bastante profundos, por vezes com cerca de trinta metros, de modo a atingir a água no subsolo. Quando
a água se tornava mais escassa, o espírito de competição apoderava-se de todos, e cada um tentava retirar água suficiente para o seu gado. O meu pai respondeu ao
tal homem que fizesse favor de descer e servir-se da água de que precisava.
- Sim, é isso que vou fazer.
O homem não perdera tempo e descera para o buraco. Enchia os seus odres quando meu pai reparou nas marcas deixadas pelas suas ssandálias na lama.
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Segurou-o pelos ombros, sacudiu-o e gritou: - Então eras tu! Porco sujo! Ousaste tocar na minha filha!
O meu pai começou a bater-lhe, mas o homem sacou de uma faca, uma faca grande de assassino africano, talhada e decorada com motivos como um punhal cerimonial. Atingiu
o meu pai quatro ou cinco vezes entre as costelas antes de ele conseguir afastar a arma e atingi-lo por sua vez com uma faca. Ficaram os dois gravemente feridos.
O meu pai conseguiu sair do poço a custo e voltar para a tenda, sangrando e sem forças. Esteve muito tempo doente mas recuperou; mais tarde compreendi que ele dissera
a verdade: estava realmente disposto a morrer para defender a honra da minha irmã.
O meu pai costumava dizer-nos, a brincar: - Sois as minhas rainhas, os meus tesouros, e guardo-vos fechadas à chave. E tenho a chave comigo!
Um dia eu disse-lhe: - Mas, pai, onde está a chave? Rindo como um louco, ele respondeu: - Deitei-a fora!
- E como faremos para sair?
Toda a gente desatou a rir.
- Tu não sairás, minha querida, até eu decidir que estás pronta.
Todas fomos vítimas deste tipo de brincadeiras, desde Aman, a mais velha, até à mais nova das minhas irmãs. Só que não eram verdadeiramente brincadeiras: sem a permissão
do meu pai, ninguém teria acesso às suas filhas. Para ele, não se tratava simplesmente de nos proteger de avanços indesejáveis. Em África, as virgens são muito procuradas
no mercado do casamento e essa é uma das principais razões, não confessa, do recurso à excisão. O meu pai podia esperar obter um bom preço pelas suas filhas virgens,
mas tinha poucas hipóteses de conseguir livrar-se de uma filha que tivesse sido conspurcada por ter tido relações sexuais com outro homem.
Contudo, nada disto me dizia respeito pois eu não passava de uma criança, e não pensava nem em sexo nem em casamento. E foi assim até que soube que a minha amiga
Sli-uIain se ia casar.
Alguns dias mais tarde, quando o meu pai voltou para casa ao fim do dia, ouvi-o gritar:
- Eh, onde está Waris?
- Aqui, pai!
- Vem cá!
A sua voz era doce e não severa e agressiva como habitualmente. Compreendi imediatamente que se passava algo de especial e a princípio pensei que ele queria pedir-me
um
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favor como ir buscar-lhe água, comida ou outra tarefa semelhante. Não me movi, observando-o atentamente e tentando adivinhar o que quereria de mim. Ele impacientou-se:
- Vem cá, vem cá, depressa!
Avancei dois passos, olhando-o desconfiada mas sem dizer nada. Ele agarrou em mim e sentou-me nos seus joelhos.
- Sabes, Waris, sempre te portaste muito bem.
Agora, eu sabia que algo de grave estava para acontecer.
- Mesmo muito bem, como um rapaz, como um dos meus filhos. - Vindo dele, era o melhor dos cumprimentos.
- Hmmm - limitei-me a responder, perguntando-me o porquê de todos aqueles elogios.
- Tens sido como um filho para mim, trabalhando tão duramente como um homem e tomando bem conta dos animais. Queria dizer-te que vou sentir muito a tua falta.
Nessa altura pensei que o meu pai temia que eu fugisse como a minha irmã Aman fizera quando o meu pai tentara casá-la. Ele temia sem dúvida que eu fizesse o mesmo,
deixando-lhe, bem como à minha mãe, todo o trabalho. Um acesso de ternura impeliu-me para ele e abracei-o, sentindo-me culpada por ter sido tão desconfiada:
- Oh! Pai, eu não vou partir para lado nenhum.
Ele afastou-se de mim, olhou-me e disse-me numa voz doce: - Sim, minha querida, vais partir.
- Para onde? Não me vou embora, não vos vou deixar, à mãe e a ti. -
, . Vais sim, Waris. Encontrei um marido para ti.
- Não, pai, não! Eu não quero ir-me embora! Não quero partir! Quero ficar contigo e com a mãe.
Levantei-me de um salto. Ele deteve-me agarrando-me pelo braço.
- Sht, sht... Vai correr tudo bem, encontrei um bom marido para ti.
Agora eu estava curiosa: - Quem?
- Vais conhecê-lo.
Eu tentava parecer forte, mas os meus olhos encheram-se de lágrimas. Quis bater-lhe e gritei: - Não quero casar-me!
- Está bem Waris, ouve...
Ele baixou-se, apanhou uma pedra e, colocando as mãos atrás das costas, fê-la passar de uma para a outra e depois estendeu-me os punhos fechados.
- Escolhe a mão onde está a pedra: a direita ou a esquerda? Se acertares, farás o que eu te digo, e terás sorte para o resto da vida. Se escolheres a mão errada,
a tua existência será cheia de mágoa porque serás banida da família.
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Olhei para ele, perguntando-me o que me aconteceria se escolhesse a mão errada. Morreria? Toquei-lhe na mão esquerda. Ele abriu-a, mostrando a palma vazia. Eu murmurei
tristemente: - Acho que não vou fazer o que me dizes.
- Podemos voltar a jogar.
Eu sacudi lentamente a cabeça: - Não, pai, não, eu não vou casar-me.
o meu pai gritou: - Ele é um homem bom. Deves acreditar em mim. Eu sei reconhecer um homem de bem quando o encontro. E tu farás aquilo que eu te digo para fazeres!
Eu permaneci ali, com os ombros caídos, doente e morta de medo; abanei a cabeça. Ele lançou no escuro a pedra que tinha na mão direita e gritou: - Então, o azar
perseguir-te-á toda a vida.
- Bem, mas serei eu que terei de viver com isso, não é verdade?
Esbofeteou-me com força na cara porque ninguém tinha o direito de lhe responder. Compreendo agora que ele tinha de me casar muito rapidamente, tanto por causa do
meu comportamento como por uma questão de tradição. Eu tornara-me rebelde, insolente e ousada, uma maria-rapaz, e estava a adquirir má reputação. O meu pai tinha
de me encontrar um marido enquanto eu ainda era uma mercadoria de valor porque, em África, nenhum homem queria ser desafiado pela sua mulher.
No dia seguinte de manhã, levantei-me e levei os animais a pastar como habitualmente. Enquanto os vigiava, reflectia naquela nova ideia de casamento. Tentava pensar
no que poderia persuadir o meu pai a deixar-me permanecer junto dele, mas no meu íntimo sabia que isso não era possível. Perguntei-me então quem poderia ser o meu
futuro marido. Até a esse dia, sentira apenas uma infantil atracção romântica por Jamali, o'filho do amigo do meu pai. Tinha-o visto várias vezes porque as nossas
famílias se deslocavam muitas vezes juntas. Jamah era muito mais velho do que eu, eu achava-o bonito e ainda não era casado. O meu pai amava-o como a um filho e
achava que ele era um bom filho para com o seu pai. A certa altura, Jamali estivera apaixonado por Aman, e parecera então ignorar totalmente a minha existência.
Provavelmente fora isso que me atraíra nele. Aos seus olhos, eu não passava de uma rapariguinha, enquanto Aman era uma mulher desejável. Enquanto eu lhe segredava
que Janiali a amava, a minha irmã agitava a mão dizendo: "Pff". Nunca olhara para ele duas vezes porque estava farta da vida de nómada e não queria casar-se com
ninguém semelhante ao nosso pai. Estava sempre a falar em ir viver para a cidade e casar-se com um homem que teria muito dinheiro. Quando o meu pai quisera casá-la
com um dos seus amigos nómadas, ela fugira, em busca dos seus sonhos. Nunca mais ouvimos falar dela.
Enquanto tomava conta dos animais, tentei convencer-me durante todo o dia de que o casamento talvez não fosse uma coisa tão má quanto isso, e imaginei-me a viver
com Jamali como viviam o meu pai e a minha mãe. Quando o sol começou a descer, voltei ao acampamento com o meu rebanho. A minha irmã mais nova correu ao meu encontro
para me anunciar:
- Está alguém com o pai. Acho que estão à tua espera.
Ela estava intrigada com o interesse súbito de que eu era alvo, pensando talvez que a mantinham alheada de algo importante. Mas eu encolhi os ombros, sabendo que
o meu pai prosseguiria com o seu plano apesar dos meus protestos.
- Onde estão eles?
Ela indicou-me o caminho. Dei meia volta e dirigi-me na direcção oposta. A minha irmã protestou: - Waris, eles estão à tua espera!
- Oh, cala-te! Deixa-me em paz!
Depois de ter fechado as cabras na cerca, comecei a mungi-las. Ainda estava a meio da minha tarefa quando ouvi o meu pai chamar-me.
- Sim, pai, vou já.
Estava cheia de medo, mas sabia que não havia nenhuma forma de adiar o inevitável. Alimentava uma pequena esperança: talvez o meu pai me esperasse em companhia de
Jamali, e imaginei o seu rosto bonito e suave. Fui ter com eles de olhos fechados. A tremer, murmurava: "Por favor, faz com que seja Jamali ... ". Ele tornara-se
o homem que me salvaria da ideia detestável de deixar a minha família para ir viver com um estranho.
Quando finalmente abri os olhos, olhei para o céu avermelhado. O sol desaparecia no horizonte, e vi duas silhuetas à minha frente. O meu pai disse:
- Ah, aqui estás. Vem cá, minha querida. Apresento-te o senhor...
Eu já não ouvia nada do que ele me dizia. Os meus olhos estavam cravados num homem sentado, apoiado numa bengala. Tinha pelo menos sessenta anos e uma longa barba
branca.
- Waris!
Finalmente compreendi que o meu pai falava comigo.
- Cumprimenta o senhor Galool.
- Como vai?
Falei com a voz mais glacial que pude. Devia mostrar respeito, mas não tinha de ser entusiasta. O velho idiota ficou ali a sorrir para mim, apoiado à bengala com
todo o seu peso, mas não me respondeu. Provavelmente não sabia o que dizer na presença daquela rapariga com quem ia casar, que o observava horrorizada. Para esconder
o meu olhar, baixei a cabeça e fitei o chão.
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O meu pai disse-me: - Então, Waris, não sejas tímida!
Olhei para ele e, ao ver a expressão do meu rosto, compreendeu que seria melhor mandar-me embora se não queria que eu assustasse o meu futuro marido.
- Bem, agora podes ir acabar o teu trabalho.
Então voltou-se para o senhor Galool e explicou-lhe:
- Não passa de uma rapariga tímida e pouco faladora.
Não perdi nem mais um segundo e corri para junto das minhas cabras.
Nessa noite, pensei no que seria a minha vida se casasse com o senhor Galool. Nunca estivera separada dos meus pais e tentava imaginar-me vivendo sem eles, junto
de uma pessoa estranha. Felizmente, não me passou pela cabeça a ideia de que teria de ter relações sexuais com aquele velho repelente. Eu tinha apenas treze anos,
era ingénua, e essa cláusula do casamento escapara-me. Para tentar esquecer o dilema do meu casamento, bati no meu irmão mais novo.
No dia seguinte de manhã cedo, o meu pai chamou-me: - Sabes quem era aquele homem que viste ontem à noite?
- Imagino.
- Era o teu futuro marido.
- Mas, pai, ele é tão velho!
Ainda não podia acreditar que o meu pai fizesse tão pouco caso da minha opinião e quisesse obrigar-me a viver com um velho daqueles.
- Este tipo de homens são os melhores maridos, minha querida; são demasiado velhos para andarem atrás de outras mulheres e passar a vida a trazer novas esposas para
casa. Galool nunca te abandonará e tomará conta de ti.
Nessa altura abriu-se num grande sorriso: - Além do mais, sabes quanto está disposto a pagar por ti?
- Quanto?
- CINCO camelos! Vai-me dar CINCO camelos!
Bateu-me no braço: - Estou tão orgulhoso de ti!
Olhei para os raios dourados do sol matinal que traziam vida ao deserto. Fechei os olhos e senti o seu calor na minha cara. Voltei a pensar na noite anterior; não
tinha conseguido dormir. Deitada, bem resguardada entre os membros da minha família, contemplando as estrelas que se iam deslocando acima de mim, tomei a minha decisão.
Sabia que, se insistisse na minha recusa em casar com aquele velho, as coisas não ficariam por aí, que o meu pai me encontraria outro marido, e outro ainda, porque
estava decidido a livrar-se de mim... e a ter os seus camelos. Abanei a cabeça:
- Bom, pai, agora tenho de ir levar os animais a pastar.
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o meu pai observou-me, visivelmente satisfeito, e eu adivinhei-lhe os pensamentos: Está a ser mais fácil do que pensei. Observando as cabras brincarem naquele dia,
compreendi que era a última vez que tomava conta do rebanho do meu pai. Imaginei a minha vida com aquele velho, os dois perdidos num lugar isolado e deserto, eu
a fazer todo o trabalho, e ele a coxear apoiado na sua bengala. Vi-me a viver só, quando ele morresse de um ataque cardíaco; ou, pior ainda, imaginei-me a criar
quatro ou cinco crianças após a sua morte, completamente só, porque na Somália as viúvas não voltam a casar-se. A minha decisão estava tomada: não era essa a vida
que eu queria. Quando voltei ao acampamento nessa noite, a minha mãe perguntou-me o que se passava. Respondi-lhe bruscamente:
- Viste aquele homem?
Ela não me perguntou a quem me referia.
- Sim, conheci-o no outro dia.
Fora de mim, consegui murmurar, para que o meu pai não me ouvisse: - Mãe, eu não quero casar-me com aquele homem!
Ela encolheu os ombros: - Minha querida, isso não depende de mim, eu não posso fazer nada. O teu pai decidiu que seria assim.
Eu sabia que, no dia seguinte ou daí a dois dias, o meu futuro marido viria buscar-me e deixaria em troca os seus cinco camelos. Decidi então fugir antes que fosse
demasiado tarde. Nessa noite, quando toda a gente já estava deitada, ouvi o famíliar ressonar do meu pai e aproximei-me da minha mãe, que estava sentada junto
ao fogo. Então murmurei:
- Mãe, não posso casar-me com aquele homem... Vou fugir. Chiu ... Chiu... E para onde é que vais?
- Vou ter com a minha tia em Mogadiscio.
- Nem sequer sabes onde ela vive. E eu também não, para todos os efeitos.
-Não te preocupes, encontrá-la-ei.
Como se isso pudesse alterar a minha decisão, ela acrescentou: - Bem, mas agora ja é noite.
- Eu não quero partir já, só amanhã de manhã. Desperta-me antes do nascer-do-sol.
Eu precisava da ajuda dela. Tinha de descansar antes da minha longa viagem, mas também tinha de partir muito cedo, antes que o meu pai despertasse.
A minha mãe sacudiu a cabeça: - Não, é demasiado perigoso!
- Oh, mãe, por favor. Não posso casar-me com aquele homem, sair daqui e ir viver com ele. Por favor, peço-te! Voltarei para te ver. Sabes que o farei.
- Vai deitar-te.
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Ela estava com aquele olhar severo que significava discussão encerrada. Estava com um ar bastante fatigado. Deixei-a junto ao fogo e enfiei-me entre os meus irmãos
e irmãs para ter calor,
Ainda estava a dormir quando senti uma ligeira pancada no braço. A minha mãe estava de joelhos a meu lado. - Chegou a hora, tens de partir!
Senti-me imediatamente bem desperta e fui invadida por um sentimento de angústia perante a ideia do que tinha de fazer. Depois de me ter libertado suavemente dos
corpos quentes dos meus irmãos e irmãs, certifiquei-me de que o meu pai ainda dormia. Ressonava como habitualmente. A minha mãe e eu afastámo-nos da tenda. Eu tremia:
- Obrigada por me teres acompanhado.
Ainda estava escuro, mas tentei ver a cara da minha mãe, gravar os seus traços na minha memória, porque sabia que não voltaria a vê-la durante muito tempo. Quis
ser corajosa, mas os soluços sofocavam-me e abracei-a fortemente contra mim. Ela disse-me docemente ao ouvido: - Vai, despacha-te antes que ele acorde.
Senti os braços dela envolverem-me: - Tudo correrá bem, não te preocupes. Mas tem cuidado. Sê prudente, muito prudente.
Afastou-se um pouco de mim: - Waris... Por favor, não me esqueças.
- Não, mãe ...
E, voltando-lhe as costas, corri para a noite.
EM VIA GEM
Tínhamos percorrido alguns quilómetros quando o homem elegantemente vestido estacionou o Mercedes na berma e disse: - Lamento não poder levar-te mais longe. Vou
deixar-te aqui, certamente encontrarás outra boleia. Era para mim uma notícia decepcionante; depois de ter atravessado o deserto, jejuando durante vários dias, quase
sendo devorada por um leão, chicoteada por um pastor e agredida pelo motorista de um camião, aquela viagem de carro tinha sido a melhor coisa que me acontecera desde
que fugira de casa.
O homem gritou-me pela porta aberta, exibindo uma vez mais os seus dentes brancos: Boa sorte para a tua viagem!
E acenou com a mão. Fiquei sentada na beira da estrada poeirenta, à luz do sol, e respondi-lhe ao aceno, mas sem grande entusiasmo. Observei o carro acelerar e desaparecer
no cintilar das ondas de calor; depois retomei a minha caminhada, perguntando-me se algum dia chegaria a Mogadíscio.
Vários carros pararam para me dar boleia mas todos apenas durante curtos trajectos. Entretanto, eu continuava a caminhar. De repente, um grande camião estacionou
na berma. Lembrando-me da minha recente experiência, fiquei paralisada de medo e fascinada pelas luzes vermelhas de stop. Vi o motorista na cabina voltar-se para
mim. Se eu não me decidisse, sabia que ele retomaria a sua marcha, e por isso corri para ele. O camião era um enorme semi-reboque; quando o homem abriu a porta,
subi rapidamente para dentro da cabina.
- Para onde vais? Eu vou só até Galcaio.
Quando o motorista pronunciou aquele nome, uma ideia atravessou-me o espírito comum relâmpago. Eu não tinha consciência de que estava tão próxima daquela cidade
onde vivia o meu tio. Em vez de errar por toda a Somália em busca de Mogadíscio, podia ficar com o ti
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Ahmed. Aliás, tínhamos um negócio por encerrar, porque eu nunca recebera o par de sapatos que ele me prometera por ter cuidado do seu rebanho. Imaginei-me sentada
diante de um copioso jantar e dormindo na bela casa do meu tio e não debaixo de uma árvore. Sim, era mesmo para lá que eu ia! Sorrindo daquele pensamento, respondi
ao motorista: - Eu também vou para Galcaio!
O camião ia carregado com fardos de milho, sacos de arroz e de açúcar. Ao ver toda aquela comida, lembrei-me de que estava esfomeada.
O motorista tinha cerca de quarenta anos e um certo encanto. Esforçava-se por manter uma conversa; eu queria mostrar-me simpática, mas tinha um medo terrível. Sobretudo,
não queria que ele pensasse que eu o deixaria ludibriar-me. Olhando pela porta, tentava saber qual seria a melhor forma de encontrar a casa do meu tio, porque não
fazia a menor ideia do sítio onde ele habitava. Um comentário do motorista chamou a minha atenção e sobressaltou-me: - Fugiste de casa, não é verdade?
- Por que diz isso?
- Digo-o porque sei. Vou levar-te à próxima esquadra.
- O quê? NÃO! Por favor, não... Eu tenho de continuar. Quero apenas que me leve... a Galcaio. Tenho de ir para casa do meu tio, ele está à minha espera...
Compreendi pela expressão do seu rosto que não acreditava em mim, mas continuou o seu trajecto. Os meus pensamentos giravam a toda a velocidade. Onde pedir ao motorista
que parasse para me deixar descer? Agora que lhe tinha dito que o meu tio me esperava, não podia confessar-lhe que não sabia onde ele vivia. Quando entrámos em Galcaio,
observei à minha volta todas aquelas ruas repletas de edifícios, carros e pessoas; aquela cidade era bem maior do que a aldeia que eu atravessara anteriormente e,
pela primeira vez, compreendi que não ia ser fácil encontrar o meu tio.
Observava nervosamente aquela confusão da cabina do semi-reboque. Tinha a sensação de um enorme caos, e estava dividida entre a vontade de ficar dentro do camião
e o sentimento de dever sair o mais rapidamente possível antes que o motorista me entregasse à polícia. Quando o camião parou junto a um mercado ao ar livre e eu
vi todas aquelas bancas, decidi descer ali: - Eh, eu fico aqui! O meu tio vive ali.
Saltei antes que o motorista tivesse tempo de me impedir e, batendo com a porta, gritei:
- Obrigada pela boleia!
Atravessei o mercado, completamente fascinada. Nunca na minha vida vira tanta comida. Tudo me parecia magnífico: pilhas de batatas, montanhas de milho, caixotes
repletos de massas... E aquelas cores! Grandes cachos de bananas de um amarelo brilhante, melões verdes e dourados, e centenas e centenas de tomates encarnados.
Nunca até então vira nada semelhante, e fiquei ali plantada a olhar. O meu amor pelos deliciosos tomates
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maduros data dessa altura, e desde esse dia nunca me fartei. Enquanto olhava para aquela quantidade de comida, todas as pessoas que atravessavam o mercado observavam-me.
A proprietária da banca diante da qual eu me encontrava aproximou-se de mim, de sobrolho franzido. Era uma verdadeira mama. (Em África, mama é um termo respeitoso;
designa as mulheres de idade madura e, para merecer este título, tem de se ser mãe.) O seu vestido e os seus lenços de cores múltiplas resplandeciam.
- Que queres? - perguntou-me ela. Eu apontei para os tomates: - Posso tirar alguns? - Tens dinheiro?
- - Não, mas tenho tanta fome! - Sai daqui! VAI!
E gritava, fazendo sinal com a mão para me afastar da sua banca.
Andei até à banca seguinte, e olhei de novo para os tomates. A vendedora disse-me:
- Não quero mendigos aqui a rondar-me a banca! Isto aqui é um negócio! Vai-te, vai-te! Contei-lhe a minha história, explicando-lhe que procurava o meu tio Ahmed,
e pergun-
tei-lhe se sabia onde ele vivia. Parti do princípio de que, sendo o meu tio um homem muito rico, toda a gente em Galcaio devia conhecê-lo.
- Ouve, e cala-te! Não podes chegar aqui vinda do mato e pôr-te a gritar dessa maneira! Ssshhh. Um pouco de respeito, minha filha. Tem calma. Calma. Não se grita
o nome da família em público!
Observando-a, pensei: Oh, Meu Deus, de que é que esta mulher fala? E como conseguirei alguma vez comunicar com estas pessoas? Ali próximo estava um homem encostado
a uma parede. Chamou-me; dirigi-me a ele, muito enervada, e tentei explicar-lhe a minha situação. Devia ter cerca de trinta anos, um físico bastante vulgar, sem
nada de especial, mas sua cara tinha uma expressão amigável. Voltou-se para mim e disse-me suavemente:
- Calma. Eu posso ajudar-te, mas tens de ser mais prudente. Agora, diz-me a que tribo pertences.
Eu contei-lhe tudo o que sabia da minha família e do meu tio Ahmed.
, - Bom, acho que sei onde ele vive. Segue-me, vou ajudar-te a encontrá-lo. - Oh, pode levar-me a casa dele?
Sim, vem comigo. , Tínhamo-nos afastado do mercado e entrámos numa rua secundária mergulhada na penumbra. - Tens fome?
Isto parecia penosamente evidente para qualquer um que não fosse cego.
- sim!
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- Bom, chegámos a minha casa. Entra, vou dar-te de comer e depois tentaremos en-
contrar o teu tio.
Aceitei a sua oferta, reconhecida.
Entrámos na casa e fui invadida por um cheiro estranho que nunca sentira antes. Ele fez-me sentar e trouxe-me de comer. Mal acabei de engolir a última garfada, disse-me:
Por que não te vens deitar ao meu lado para fazermos uma pequena sesta? uma sesta?
Sim, para descansares
Não, obrigada. Só quero encontrar o meu tio.
Eu sei, eu sei. Mas primeiro vem dormir um pouco. É a hora da sesta. Não te preocupes, depois procuraremos o teu tio.
- Pode dormir a sua sesta, eu não me importo de esperar.
Não tinha a menor intenção de me deitar ao lado daquele estranho. Compreendo agora que havia algo de errado, mas, pobre ingénua que era, não sabia o que fazer.
Ele pareceu zangado: - Ouve, pequena, se queres que eu te leve a casa do teu tio, é melhor deitares-te e dormires um pouco.
Eu precisava dele para me ajudar a encontrar o tio Ahmed. Começava a ter muito medo, porque ele tornava-se cada vez mais agressivo e insistente, e acabei por fazer
a pior das coisas possíveis: deitei-me ao lado dele. Claro que, no próprio minuto em que me estendi, compreendi que a sesta era a última coisa que ele tinha em mente.
Ao fim de dois segundos, aquele tipo sujo quis saltar-me em cima. Debati-me e tentei afastar-me, mas ele bateu-me na nuca. Então pensei: "Não digas uma única palavra".
Mas, aproveitando a primeira oportunidade, libertei-me dos seus braços, pus-me de pé e fugi espavorida do quarto. Ele chamou-me:
- Eh, rapariga, vem cá... Depois ouvi-o rir baixinho.
Saltei para a rua gritando como uma louca, e fugi para o mercado para me refugiar no meio da multidão. Uma velha mama aproximou-se de mim; devia ter cerca de sessenta
anos:
- O que é que te aconteceu, minha menina?
Agarrou-me firmemente pelo braço e fez-me sentar.
- Vamos, vamos. Conta-me, diz-me o que é que se passa.
Eu sentia-me demasiado embaraçada e envergonhada para contar o que acabava de acontecer. Sentia-me bastante estúpida; tudo isto porque seguira aquele homem até sua
casa como uma pequena imbecil. Entre dois soluços, expliquei-lhe que procurava o meu tio.
- Quem é o teu tio? Como se chama ele?
- Ahmed Dirie.
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A velha mama estendeu o seu dedo magro na direcção de uma casa azul brilhante e disse-me: - É ali mesmo em frente. Estás a ver aquela casa? É a que procuras.
Ali estava ela, do outro lado da praça, quando eu tinha suplicado àquele porco para me levar a casa do meu tio. Mais tarde compreendi que, enquanto lhe contava a
minha história, ele sabia exactamente quem eu era, e quem era o meu tio. A velha perguntou-me se eu queria que ela me acompanhasse. Olhei-a com desconfiança porque
agora já não confiava em ninguém, mas vi na sua cara que ela era uma verdadeira mama. Respondi-lhe baixinho:
- Sim, por favor.
Atravessámos a praça e bati à porta da casa azul. A minha tia abriu a porta, e quando me viu ficou estupefacta. - Que fazes aqui?
A velha virou as costas e afastou-se. Eu respondi estupidamente: - Estou aqui, tia!
- Por Alá! Fugiste de casa, não é verdade?
- Bem...
Com um ar decidido, ela disse: - Vou levar-te para casa da tua família.
O tio Ahmed não ficou menos espantado ao ver-me, mas pareceu sobretudo surpreendido por eu ter conseguido encontrar a sua casa. Quando lhe contei a minha história,
omiti que tinha aniquilado um motorista de camião à pedrada, e que um dos seus amigos quase me violara. Apesar de bastante impressionado com o facto de eu ter conseguido
atravessar o deserto e ter conseguido encontrá-lo, o tio Ahmed não tinha a menor intenção de me deixar permanecer em casa dele. Estava antes do mais preocupado em
saber quem ia tomar conta dos seus animais, tarefa que eu desempenhava desde há anos e pela qual ele me oferecera um par de chinelas. Os meus irmãos e irmãs mais
velhas tinham todos partido. Eu era actualmente a mais velha, e também a mais robusta, aquela em quem se podia confiar.
- Tens de voltar para casa; há muito trabalho a fazer. Quem ajudará o teu pai e a tua mãe? Se ficares aqui, o que é que vais fazer? Passar os dias em casa?
Infelizmente, eu não tinha respostas para estas perguntas. Era-me impossível contar ao tio Ahmed que fugira porque o meu pai queria casar-me com um velho de barba
branca. Elter-me-ia olhado como se eu fosse louca e ter-me-ia dito: "E então? Tu tens de te casar Waris. O teu pai precisa desses camelos...".
Eu não podia explicar-lhe que era diferente dos outros membros da família; gostava dos meus pais, mas o que eles desejavam para mim não era suficiente. Estava convencida
de que havia mais coisas na vida, apesar de não saber exactamente quais. Alguns dias mais tarde soube que o tio Ahmed enviara alguém para prevenir a minha família
e que o meu pai estava a caminho para me vir buscar.
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Eu conhecia bem os dois filhos do tio Ahmed porque eles costumavam vir passar as férias connosco. Ajudavam-nos a tomar conta dos animais deles e ensinavam-nos a
escrever algumas palavras de somali. Naquela época, era a tradição: as crianças que frequentavam a escola na cidade iam para o deserto durante as férias para instruírem
as crianças nómadas. Quando cheguei a Galcaio, os meus primos disseram-me que sabiam onde se encontrava Aman, a minha irmã mais velha: quando fugira de casa, tinha
ido para Mogadíscio, onde se casara. Esta notícia encheu-me de alegria porque nunca mais ouvira falar dela desde que nos deixara. Tanto quanto sabia, podia estar
morta. Em conversa Com os meus primos, compreendi que os meus pais sempre souberam onde ela estava, mas como fora banida da família, nunca falavam nela.
Quando soube que o meu pai vinha buscar-me para me levar para casa, os meus primos e eu concebemos um plano. Explicaram-me como encontrar a minha irmã quando chegasse
à capital. Uma manhã conduziram-me até à estrada, fora da cidade, e deram-me algum dinheiro que possuíam:
- Toma, Waris! Para Mogadiscio, é naquela direcção.
- Prometem não dizer a ninguém para onde eu fui? Quando o meu pai chegar, lembrem-se: vocês não sabem o que me aconteceu. Viram-me pela última vez esta manhã, em
casa, está bem?
Eles abanaram a cabeça e, quando comecei a andar, acenaram para me dizer adeus.
Foram-me necessários quatro dias para chegar a Mogadíscio, mas pelo menos tinha dinheiro suficiente para comprar alguns alimentos. As minhas boleias eram esporádicas,
e entre cada uma delas andei durante quilómetros. Frustrada pelai lentidão do meu progresso, acabei por pagar por um lugar num táxi de mato africano, um grande camião
com capacidade para transportar cerca de quarenta pessoas, um meio de transporte bastante comum em África. Após a entrega dos seus carregamentos de cereais ou de?
cana-de-açúcar, os camiões voltam com os passageiros, que ocupam o reboque vazio: tem a toda a volta uma espécie de grade em madeira e as pessoas, sentadas ou de
pé, parecem estar enclausuradas num gigantesco parque de bebé. Adultos, crianças, bagagens, tapetes, móveis, cabras e galinhas engaioladas amontoam-se no camião
pois o motorista aceita todos os passageiros que possam pagar pela sua viagem. Seja como for, após as minhas recentes experiências, aceitava de bom grado aquela
companhia. Quando chegámos aos arredores de Mogadíscio, o camião deteve-se e deixou-nos junto a um poço onde as pessoas iam dar de beber aos animais. Enchi de água
as minhas mãos em concha, bebi e salpiquei a cara - Em seguida aproximei-me
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de dois nómadas que se encontravam junto dos seus camelos, perguntei-lhes como chegar ao centro da capital e tomei a direcção que eles me indicaram.
Mogadíscio é um porto situado à beira do oceano índico; era na altura uma cidade muito bonita que contava com cerca de setecentos mil habitantes. Enquanto caminhava,
estendia o pescoço para admirar os extraordinários edifícios brancos rodeados de palmeiras e flores de cores brilhantes. A maioria das construções era obra dos italianos,
do tempo em que a Somália era uma colónia italiana, e a cidade tinha um certo ar mediterrânico. As mulheres com quem me cruzava usavam em volta da cara lenços maravilhosos
de desenhos amarelos, encarnados e azuis; atavam-nos debaixo do queixo e o vento fazia voar as pontas. os tecidos vaporosos flutuavam graciosamente atrás delas e
os seus corpos pareciam ondular enquanto desciam a rua. Vi várias mulheres muçulmanas com véus escuros na cabeça que lhes escondiam a cara e perguntei-me como faziam
para ver o caminho. A cidade brilhava ao sol e todas as cores pareciam electrificadas.
Parei muitas vezes para perguntar o caminho até ao bairro onde habitava a minha irmã. Não conhecia o nome da rua, e pensava chegar lá da mesma forma que utilizara
para localizar o tio Ahmed, mas sem me mostrar tão crédula a ponto de seguir eventuais estranhos que se oferecessem para me ajudar.
Quando finalmente cheguei ao bairro onde vivia Aman, descobri um mercado onde me passeei por entre as bancas, procurando o que poderia comprar com os meus últimos
preciosos xelins somalis. Acabei por me decidir por um pouco de leite que duas mulheres vendiam numa banca. Era o mais barato do mercado mas, logo ao primeiro golo,
achei que tinha um gosto estranho.
O que é que este leite tem? - perguntei-lhes. Nada!
Oh, por favor... Se há coisa que eu conheça bem é o leite, e o vosso não tem um gosto normal. Juntaram-lhe água ou qualquer outra coisa.
Finalmente acabaram por reconhecer que haviam adicionado água a fim de poderem vendê-lo mais barato. Os seus clientes não se importavam. Continuámos a conversar
e eu disse-lhes que viera da capital à procura da minha irmã Aman. Uma das mulheres gritou:
- Eu bem sabia que me fazias lembrar alguém!
Eu ri-me, porque quando éramos pequenas eu era o retrato chapado da minha irmã. A vendedora conhecia-a porque Aman vinha todos os dias ao mercado. Então chamou o
seu filho:
- Leva-a a casa de Aman e volta imediatamente!
Percorremos ruas tranquilas; era hora da sesta e as pessoas protegiam-se do calor. O rapaz indicou-me uma casa minúscula. Quando entrei, a minha irmã dormia. Sacudi-lhe
o
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braço e ela acordou. Olhou-me como se eu não passasse de um sonho e disse-me ainda sonolenta: - Que fazes aqui?
Sentei-me na cama dela e contei-lhe a minha história; disse-lhe que tinha fugido tal como ela o fizera há vários anos atrás. Finalmente falava com alguém que era
capaz de me compreender, que sabia que aos treze anos eu não podia resignar-me a casar com um velho estúpido para agradar ao meu pai.
Aman explicou-me como chegara a Mogadíscio e conhecera o seu marido, um homem bom, tranquilo e bastante trabalhador. Esperava a sua primeira criança, cujo nascimento
seria para daí a um mês, mas quando se levantou, custava a crer que estivesse prestes a dar à luz. Aman media um metro e oitenta e cinco, era grande e elegante,
e com o seu amplo vestido africano não se percebia sequer que estava grávida. Lembro-me de ter achado que ela era muito bonita, e de ter desejado carregar o meu
bebé tão bem como ela quando estivesse à espera do primeiro.
Falámos ainda um pouco mais, e finalmente arranjei coragem para lhe perguntar:
- Aman, por favor. Eu não quero voltar para casa, posso ficar aqui contigo?
- Tu fugiste e deixaste a mãe com todo o trabalho para fazer...
Aman parecia triste, mas disse-me que eu podia viver com ela enquanto precisasse. Na pequena casa havia dois quartos: um minúsculo, onde eu dormia, e outro maior,
que Aman partilhava com o marido. Eu raramente o via: de manhã ele saía para trabalhar, voltava para o almoço, dormia uma pequena sesta, voltava para o trabalho
e regressava à noite, já tarde. Quando estava em casa falava tão pouco que não sei quase nada acerca dele; nem sequer me lembro do seu nome nem do que fazia para
viver.
Aman deu à luz uma bela rapariga e eu ajudei-a a tomar conta da bebé. Também cuidava da casa e tratava de lavar e estender a roupa de todos. Além disso fazia as
compras, iniciando-me na subtil arte do regateio. Imitando os habitantes locais, dirigia-me a uma das bancas e perguntava à vendedora: "Quanto custa?". O ritual
que se seguia poderia ser retirado de um argumento escrito porque se desenrolava todos os dias de forma idêntica: a vendedora punha diante de mim três tomates, um
grande e dois mais pequenos, e anunciava-me um preço equivalente ao de três camelos. Eu respondia com um ar agastado, fazendo um gesto com a mão:
- Oh! É demasiado caro!
- Bem! Vejamos, vejamos, quanto queres pagar?
- Dois e cinquenta!
- Não, não e não! Deves estar a brincar!
Nesse momento eu fazia um grande número, afastando-me para falar com outras vendedoras com um interesse estudado, sem perder de vista o meu objectivo. Depois voltava
e retomava a discussão no ponto em que a deixara, discutindo o preço até uma das duas cansada, desistir e ceder. A minha irmã falava constantemente da sua preocupação
com a nossa mãe, dizendo que desde a minha partida ela devia estar sozinha com todo o trabalho a seu cargo. Cada vez que ela falava nesta situação, eu parecia ser
a única responsável. Claro que eu me preocupava com a nossa mãe tanto quanto ela, mas Aman nunca fazia alusão ao facto de que também ela fugira. Recordações esquecidas
da nossa infância voltavam-me agora à memória. Muitas coisas haviam mudado durante os cinco anos em que eu não a vira, mas para Aman eu continuava a ser a irmãzinha
um pouco tonta que ela deixara quando partira; ela seria sempre sempre a mais velha, e a mais sensata. Parecia-me evidente que, apesar de nos parecermomuito fisicamente,
as nossas personalidades eram muito diferentes. O seu autoritarismprovocou em mim um ressentimento que não cessou de crescer. Quando o meu pai tentara obrigar-me
a casar com aquele velho, eu fugira pois pensava que havia outras coisas na vida. Cozinhar, lavar a loiça ou tomar conta de um bebé - tarefa que eu já desempenhara
o suficiente tomando conta dos meus irmãos e irmãs mais novos - não era o que eu ambicionava para o meu futuro.
Um dia, deixei Aman para descobrir o que o destino me reservava. Não discuti com ela, nem a preveni da minha partida. Saí simplesmente numa manhã e não voltei. Na
altura pareceu-me uma boa ideia, mas não sabia que não voltaria a vê-la.
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MOGADISCIO
Enquanto vivi com Aman, visitámos alguns dos nossos parentes que viviam em Mogadíscio. Conheci, pela primeira vez, uma parte da minha família pelo lado mater-
no. A minha mãe passara a sua infância e adolescência na capital em companhia da sua mãe e dos seus quatro irmãos e quatro irmãs.
Eu estava sobretudo muito feliz por conhecer a minha avó. Tem actualmente cerca de noventa anos, mas na altura devia ter setenta. A minha avó era uma verdadeira
mama. A sua tez é mais clara e os traços do seu rosto indicam que ela é dura de roer, uma mulher de carácter e muito voluntariosa. Observando as suas mãos, tem-se
a impressão de que, de tanto escavarem a terra, se cobriram de uma pele de crocodilo.
A minha avó foi educada num país árabe, mas não sei qual. É uma muçulmana devota que reza Cinco vezes por dia, voltada para Meca, e usa um véu escuro a cobrir a
cara quando sai de casa; está sempre coberta da cabeça aos pés. Eu costumava provocá-la:
- Avó, estás bem? Tens a certeza de que sabes onde metes os pés? Consegues ver alguma Coisa através disso?
Ela rosnava: - Ora, ora, estás a exagerar! Este véu é completamente transparente.
- Bem... tens a certeza de que consegues respirar e tudo?
Então eu desatava a rir.
Durante a minha estada em casa dela, compreendi de onde vinha a força de carácter da minha mãe. O meu avô morrera há muitos anos atrás, pelo que a minha avó vivia
só e tratava de tudo. Quando eu ia passar alguns dias com ela, ficava exausta. De manhã, mal se levantava, já estava pronta para sair. Começava logo a apressar-me:
- Vamos, Waris, despacha-te, temos de ir!
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o bairro de Mogadíscio onde ela habitava ficava bastante longe do mercado. Todos os dias íamos fazer as compras, e eu dizia-lhe invariavelmente: - Avó, para quê
cansarmo-nos? Devíamos apanhar o autocarro. Está calor e o mercado é muito longe...
- O quê?! O autocarro?! Ora, ora, põe-te lá a andar! Uma jovem como tu, querer ir de autocarro! De que te queixas tu? Estás a tornar-te preguiçosa, Waris. Ah, as
crianças de hoje! Não sei o que se passa convosco! Quando eu tinha a tua idade, percorri quilómetros e quilómetros... Então, vens comigo ou não?
E eu seguia-a porque, se me mostrasse preguiçosa, ela obviamente partiria sem mim. No regresso, eu arrastava os pés atrás dela, carregando os sacos.
Depois de eu ter deixado Mogadíscio, uma das irmãs da minha, mãe morreu, deixando nove órfãos. A minha avó tratou deles e criou-os como seus próprios filhos. É uma
mama, e fez o seu dever.
Também conheci Wolde'ab, um irmão da minha, mãe. Um dia, ao regressar do mercado aonde fora sozinha, encontrei-o sentado ao lado da minha avó, com um dos meus primos
ao colo. Apesar de nunca o ter visto, corri para ele porque subitamente tinha diante de mim um homem que era o retrato vivo da minha mãe - e eu procurava desesperadamente
tudo o que me fizesse lembrá-la. Como eu também me parecia bastante com a minha mãe, vivemos um momento maravilhoso mas estranho; um pouco como se estivéssemos a
ver-nos num divertido espelho deformador. O meu tio tinha ouvido dizer que eu fugira de casa e que vivia em Mogadíscio. Quando me aproximei dele, disse-me: - Tu
és quem eu penso?
Nessa tarde, ri como não o fazia desde que partira de casa; não só o meu tio se parecia com a minha mãe, como também possuía o seu sentido de humor. Os dois irmãos
devem ter formado uma bela parelha, fazendo rir até à exaustão todos os membros da família; como eu gostaria de tê-los visto juntos!
Na manhã em que abandonei a casa de Aman, fui para casa da tia L'uul. Tínhamos ido visitá-la pouco depois da minha chegada a Mogadíscio. Decidi então perguntar-lhe
se podia albergar-me. Era uma tia por afinidade: tinha casado com o tio Sayyid, irmão da minha mãe. Criava sozinha os seus três filhos porque o marido vivia na Arábia
Saudita. Como a situação económica na Somália não era famosa, ele trabalhava lá e enviava dinheiro por forma a assegurar o sustento da sua família. Infelizmente,
ficou na Arábia Saudita durante todo o tempo em que eu estive em Mogadíscio e nunca cheguei a conhecê-lo.
Ao ver-me, a tia L'uu1 pareceu surpreendida, mas genuinamente contente.
- Tia, as coisas não correram muito bem entre Aman e eu. Será que posso ficar em tua casa?
- Sim, claro. Sabes que eu estou sozinha com as crianças, Sayyid está ausente a maior parte do tempo e um pouco de ajuda vem-me a calhar.
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E Senti um súbito alívio. Aman aceitara acolher-me contrariada, e eu sabia que aquela situação não lhe agradava muito. A sua casa era demasiado pequena, e casara
recentemente. Além disso, no fundo desejava que eu voltasse para junto da nossa mãe, o que aliviaria a sua consciência por tê-la abandonado há alguns anos atrás.
Em virtude de ter habitado com Aman, e depois com a tia L'uul, habituei-me a viver dentro de casa. A princípio, achava muito estranho sentir-me confinada entre quatro
paredes, ter o céu escondido por um tecto e cheirar os esgotos e o monóxido de carbono de uma cidade sobrepovoada, em vez do cheiro dos animais e do deserto. A
casa da minha tia era maior que a de Aman, mas não era de forma alguma espaçosa. E apesar de me oferecer algumas vantagens, como ter calor à noite ou estar ao
abrigo da chuva, era bastante primitiva pelos padrões modernos ocidentais. A água continuava a ser um bem precioso, e o meu respeito por ela permanecia inalterado.
Comprávamo-la a um homem que a trazia para o bairro no dorso de um burro e conservávamo-la no exterior, dentro de um tonel. Todos os membros da
família a usavam com parcimónia para beber, tomar banho, fazer a limpeza da casa, preparar o
chá e cozer os alimentos. A minha tia preparava as refeições numa pequena cozinha, num camping-gás. À noite sentávamo-nos no exterior a conversar à luz de candeeiros
a querosene,
pois não havia electricidade. As latrinas eram características daquela parte do mundo: um buraco no chão, pelo qual os excrementos caíam numa fossa onde se amontoavam,
libertando um cheiro nauseabundo quando estava calor. Para tomarmos banho, era preciso trazer um balde de água do tonel e molhar o corpo com uma esponja, deixando
a água excedente escorrer pelo buraco para as latrinas.
pouco depois da minha chegada a casa da tia Utuil, compreendi que encontrara mais do que um abrigo: tinha também arranjado um trabalho a tempo inteiro como ama-seca
de três crianças mimadas. Suponho que era difícil classificar o bebé na categoria de criança mimada, mas causava-me tantos aborrecimentos como os outros dois.
A minha tia levantava-se todas as manhãs cerca das nove horas e, depois de ter tomado o pequeno-almoço, saía alegremente de casa para ir visitar as suas amigas.
Passava o dia inteiro com elas, numa infindável má-língua sobre amigos, inimigos, conhecidos e vizinhos, e regressava tranquilamente ao final do dia. Durante a
sua ausência, o bebé de três meses não parava de gritar porque tinha fome. Quando eu lhe pegava ao colo, ele tentava mamar. Todos os dias, eu dizia à minha tia:
- Ouve, pelo amor de Deus, faz qualquer coisa. Sempre que pego nele ao colo, ele quer mamar em mim, e eu não tenho leite. Nem sequer tenho seios !
Ela respondia-me sempre a rir: - Não te preocupes, dá-lhe apenas um pouco de leite!
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Para além da limpeza da casa e de cuidar do bebé, eu devia vigiar as outras duas crianças, de seis e nove anos. E estes dois eram verdadeiros animais selvagens.
Comportavam-se muito mal porque, obviamente, a sua mãe nunca lhes ensinara nada. Eu tentava rectificar esta situação dando-lhes umas palmadas sempre que podia. Mas
depois de terem vivido livres como hienas durante anos, não iam transformar-se em anjos de um dia para o outro.
À medida que os dias passavam, sentia-me cada vez mais frustrada. Perguntava-me quantas situações desesperantes teria ainda de enfrentar antes que algo de positivo
me acontecesse. Tentava sempre encontrar um meio de melhorar a minha vida, de me obrigar a seguir em frente para encontrar finalmente aquela misteriosa oportunidade
que eu sabia estar à minha espera. Todos os dias pensava: "Quando acontecerá? Hoje? Amanhã? Para onde irei? O que farei?". Não sei por que pensava nisto. Creio que
na altura pensei que toda a gente ouvia este tipo de vozes no seu interior. Mas, tanto quanto me lembro, sempre soube que a minha vida seria diferente da das pessoas
que me rodeavam, apesar de não saber em que consistia essa diferença.
Ao fim de um mês a viver com a tia Uinil, rebentou uma crise. Uma tarde, ao fim do dia, quando a minha tia fazia o seu giro da má-língua, a sua filha de nove anos
desapareceu. Eu saí, chamei-a e, não obtendo resposta, comecei a procurá-la por todo o bairro. Acabei por encontrá-la dentro de um tonel com um rapaz. Era uma criança
que sabia o que queria e tinha um espírito curioso; no momento em que a descobri, mostrava-se muito interessada na anatomia do seu pequeno
companheiro. Agarrando-a pelo braço, obriguei-a bruscamente a pôr-se de pé; o rapaz fugiu como uma galinha assustada. Durante todo o caminho de regresso a casa,
bati na minha prima com um pau, porque nunca tinha ficado tão chocada com o comportamento de uma criança.
À noite, quando a minha tia voltou, a sua filha queixou-se de ter apanhado. A tia Utuil ficou furiosa.
- Por que bateste nela? Proíbo-te de lhe levantares a mão!
Começou a gritar avançando na minha direcção com um ar ameaçador: - Eu também vou dar-te uma lição para ver se gostas!
- Nem sequer me perguntas o que é que se passou? Talvez prefiras não saber. Se tivesses visto o comportamento da tua filha hoje, dirias que não era tua filha. Esta
criança está descontrolada, comporta-se como um animal!
A minha tentativa de explicação não melhorou as coisas. Depois de me ter deixado a mim, uma rapariga de treze anos, tomar conta das suas três crianças, de repente
a minha tia preocupava-se com o bem-estar da sua filha. Avançou para mim, agitando o punho e ameaçando bater-me pelo que eu tinha feito ao seu anjinho. Mas eu estava
farta, não só dela mas de toda a gente.
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- Se tentares tocar-me sequer, arranco-te todos os cabelos! - gritei.
Isto encerrou a discussão, mas eu sabia que tinha de partir. Mas para onde iria desta vez?
No momento em que batia à porta da minha tia Salim, pensei: Recomeça tudo de novo, Waris! Quando ela me abriu a porta, cumprimentei-a timidamente. A tia Saliru era
irmã da minha mãe. Tinha cinco crianças, o que não me pareceu um bom augúrio. Mas não tinha alternativa a não ser tornar-me salteadora ou mendigar nas ruas. Sem
entrar em detalhes sobre a minha partida de casa da tia Utitil, perguntei-lhe se podia ficar em casa dela durante algum tempo. Para minha grande surpresa, ela respondeu-me:
- Bateste à porta de uma amiga. Podes ficar connosco enquanto o desejares. Se precisares de falar sobre o que quer que seja, eu estou aqui.
As coisas começavam melhor do que eu imaginara. Tal como esperara, tive de ajudar na limpeza, mas Fatima, a filha mais velha da minha tia, de dezanove anos, assumia
a maior parte das tarefas domésticas.
A minha pobre prima trabalhava como uma escrava. Levantava-se cedo todas as manhãs para ir para o colégio, voltava a casa por volta do meio-dia e meia e preparava
o almoço, depois voltava para a escola antes de regressar às seis horas para tratar do jantar. Depois do jantar, tinha de limpar a cozinha, e estudava à noite até
tarde. Por uma razão que ignoro, a sua mãe exigia muito mais dela do que dos seus irmãos e irmãs. Mas Fatima era muito boa para mim; tratava-me como uma amiga e,
naquela altura da minha vida, isso era certamente aquilo de que eu mais precisava. A forma como a sua mãe se comportava com ela parecia-me injusta, e tentava ajudá-la
a preparar o jantar. Eu não sabia cozinhar, mas esforçava-me por aprender observando-a. As primeiras massas que eu comi foram preparadas por Fatima, e achei-as deliciosas.
- A maior parte da manutenção da casa estava a meu cargo, e ainda hoje a tia Saliru afirma que eu fora a melhor empregada doméstica que ela já teve. Esfregar e polir
a casa não eram tarefas fáceis, mas eu preferia-as a tomar conta de crianças, sobretudo depois das minhas aventuras dos últimos meses.
Tal como Aman, a tia Salim preocupava-se com o facto de a minha mãe não ter as suas filhas mais velhas para a ajudarem no trabalho. O meu pai podia ajudá-la com
os animais, mas jamais levantaria um dedo que fosse para cozinhar, coser a roupa, tecer cestos ou tratar das crianças. Eram tarefas femininas, e diziam respeito
apenas à minha mãe. Bem vistas as
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coisas, não cumprira ele a sua parte trazendo para casa uma nova esposa para ajudar a minha mãe? Sim, efectivamente fizera-o. Eu também me preocupava desde aquela
manhã escurem que vira a minha mãe pela última vez. Quando pensava nela, via o seu rosto iluminado pela luz do fogo, na véspera da minha partida, e lembrava-me como
ela parecera fatigada Enquanto eu corria através do deserto, tentando chegar a Mogadíscio, não conseguia afastar aquela imagem do meu espírito. Aquela travessia
do deserto parecera-me sem saída, ta como o dilema com que me defrontara. Como escolher entre o meu desejo de tomar conta da minha mãe e livrar-me do velho? Lembro-me
de me ter deixado cair para o chão sob uma árvore, ao crepúsculo, a pensar: Quem tomará conta da minha mãe agora? Tomou sempre conta de todos, mas quem cuidará dela?
Contudo, era-me impossível voltar atrás. Isso significaria que eu enfrentara todas aquelas dificuldades para nada. Se eu voltasse para casa, antes de decorrido um
mês o meu pai começaria a trazer todos os velhos decrépitos das redondezas, todos os idiotas que possuíssem um camelo, na esperança de me casar. E ver-me-ia não
só com um marido à perna como não poderia ficar com a minha mãe para tomar conta dela.
Um dia, pareceu-me encontrar uma solução parcial para o meu problema: se ganhasse algum dinheiro, enviá-lo-ia à minha mãe e ela poderia comprar algumas coisas de
que minha família precisava sem ter de trabalhar tão arduamente.
Parti à procura de um trabalho. Uma manhã, em que a minha tia me enviara a fazer compras ao mercado, passei diante de umas obras. Deteve-me a observar os trabalhadores
que colocavam tijolos e preparavam cimento juntando mãos-cheias de areia ao pó e depois misturando tudo com água.
- Eh, aqui há trabalho? - perguntei a um deles. O tipo que colocava os tijolos interrompeu o seu trabalho e olhou para mim a rir. - Quem é que te pediu para saber
se há trabalho?
- Ninguém, sou eu que preciso de trabalhar.
-Não, não há nada para uma rapariga assim lingrinhas como tu! Não me parece que sejas um pedreiro.
Desatou de novo a rir,
- Eh, enganas-te, eu sou muito forte. A sério! Os trabalhadores que preparavam o cimento observavam-me, com as calças descaídas nas nádegas. Apontando com o dedo,
eu disse: - Eu poderia ajudar a transportar areia, sou capaz de misturar aquilo tudo tão bem como eles!
- Está bem, está bem. Quando queres começar?
- Amanhã de manhã.
- Bem, quero-te aqui às seis horas e veremos o que se pode arranjar.
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No regresso a casa da tia Saliru, eu tinha a impressão de pairar acima do chão. Tinha um emprego, ia ganhar dinheiro! Pouparia todos os tostões para os enviar à
minha mãe. Ela ficaria tão surpreendida!
Quando cheguei a casa, contei a novidade à minha tia.
- Arranjaste trabalho onde?
Ela não acreditava em mim. Era-lhe impossível imaginar que uma rapariga tivesse vontade de fazer aquele género de trabalho.
- E o que fazes exactamente?
Custava-lhe a admitir que o encarregado da obra quisesse contratar uma criança, sobretudo alguém com um ar tão faminto como eu. Mas insisti tanto que ela acabou
por acreditar em mim.
Mas ficou zangada porque, estando a viver em casa dela, eu preferia trabalhar no exterior a ajudar nas tarefas domésticas.
- Tia, eu tenho de enviar algum dinheiro à minha mãe, e para isso tenho de ter um trabalho. Por isso, este ou outro, é igual. Tenho de o fazer. Está bem?
- Está bem.
A minha carreira como operária da construção civil começou no dia seguinte de manhã. E de uma forma horrível. Carreguei baldes de areia todo o dia; estava exausta
e, como não tinha luvas, a pega dos baldes cortava-me as mãos. Enormes bolhas apareceram-me nas palmas; no dia seguinte rebentaram e as minhas mãos começaram a sangrar.
Toda a gente pensou que eu me ficava por ali, mas estava decidida a voltar na manhã seguinte.
Aguentei durante um mês inteiro, até as minhas mãos estarem tão maltratadas e doridas que mal conseguia dobrar os dedos. Quando acabei, tinha ganho o equivalente
a sessenta dólares. Anunciei orgulhosamente à minha tia que ia enviar todo aquele dinheiro à minha mãe. Um homem que a tia Saliru conhecia viera visitar-nos recentemente,
e em breve partiria de novo para o deserto com a sua família. Ofereceu-se para levar aquele dinheiro à minha mãe. A minha tia disse-me:
- Eu conheço a sua família; são pessoas de bem, podes confiar neles. Mais tarde, vim a saber que a minha mãe nunca recebera um único tostão.
Quando renunciei ao meu trabalho na construção, retomei as tarefas domésticas em casa da tia Saliru. Algum tempo depois, quando trabalhava como habitualmente, um
hóspede muito distinto apresentou-se em nossa casa: Mohammed Chama Farah, o embaixador da Somália em Londres. Era casado com Maruim, mais uma irmã da minha mãe.
Enquanto limpava o pó aos móveis do quarto contíguo, ouvi o embaixador conversar com a tia Saliru. Tinha vindo a Mogadíscio para arranjar uma empregada doméstica
antes de assumir as suas
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funções em Londres por um período de quatro anos. Soube imediatamente que chegara enfim a oportunidade que eu esperava há tanto tempo.
Irrompendo pelo quarto, chamei a tia Saliru: - Tia, preciso absolutamente de te falar. Ela observou-me com um ar exasperado: - Que foi, Waris?
- Por favor, chega aqui!
Quando ela atravessou a porta, ficando fora do alcance da vista do seu visitante, agarrei-a bruscamente pelo braço.
- Peço-te, por favor: diz-lhe para me levar. Eu posso ser a sua empregada.
Ela pareceu magoada. Eu não passava de uma criança voluntariosa, que só pensava no que me convinha, esquecendo tudo o que ela fizera por mim.
- Tu? Mas tu não sabes nada de nada. O que é que tu poderias fazer em Londres?
- Posso fazer a limpeza! Diz-lhe para me levar para Londres, tia! Eu quero partir!
- Não me parece que seja uma boa ideia. Agora, pára de me aborrecer e volta ao trabalho.
Voltou para junto do cunhado e sentou-se ao seu lado. Ouvi-a dizer suavemente:
- Por que não a levas? Sabes, ela é muito boa. É uma excelente empregada doméstica. A tia Saliru chamou-me, e eu pulei para dentro da sala. Fiquei ali especada,
com o espanador na mão, a mastigar pastilha elástica.
- O meu nome é Waris. O senhor é casado com a minha tia, não é verdade?
O embaixador franziu-me o sobrolho: - Não te importas de tirar essa pastilha elástica
da boca?
Cuspi-a para um canto. O meu tio voltou-se para a tia Saliru: - É esta a rapariga? Oh, não, não e não!
- Eu sou muito boa! Posso fazer a limpeza e cozinhar e tomo conta de crianças na perfeição!
- Oh, não duvido!
Voltei-me para a tia Saliru: - Diz-lhe... ; - Waris, chega. Volta ao teu trabalho.
. - Diz-lhe que eu sou a melhor!
Ela acrescentou: - Ainda é muito jovem, mas é uma excelente trabalhadora. Acredita, ela servirá na perfeição
O tio Mohammed observou-me durante um momento com um ar desgostoso, e depois disse: - Está bem, virei buscar-te amanhã. Estarei aqui à tarde com o teu passaporte
e partiremos para Londres.
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DE PARTIDA PARA LONDRES
Londres! Eu ignorava tudo sobre esta cidade, mas a sonoridade do nome agradava-me. Nem sequer sabia onde se situava. Sabia apenas que era muito longe; e isso, muito
longe, era exactamente para onde eu queria ir. Parecia a resposta às minhas preces, mas ao mesmo tempo era demasiado bom para ser verdade. Perguntei à minha tia
num tom lamuriento:
- Vou mesmo partir?
Ela respondeu-me com um ar severo: - Oh, lá estás tu! Cala-te! Não comeces!
Mas quando viu a expressão de pânico que assomava ao meu rosto, sorriu: - Sim! Sim, vais mesmo para Londres.
Terrivelmente excitada, corri para anunciar a novidade à minha prima Fatima que preparava o jantar: - Vou para Londres! Vou para Londres!
Eu gritava e comecei a dançar às voltas pela cozinha.
- O quê? Londres?
Agarrando-me pelo braço, Fatima obrigou-me a contar-lhe tudo e depois declarou num tom neutro: - Vais tornar-te branca!
- O que é que estás a dizer?
- Vais tornar-te branca, sabes... Branca.
Não, eu não sabia. Não fazia ideia do que ela estava a falar, uma vez que nunca conhecera nenhum branco; nem sequer sabia que existia tal coisa. No entanto, o seu
comentário não me perturbou minimamente, e disse-lhe num tom superior:
- Oh, cala-te, por favor. Tu tens é inveja de ser eu a ir para Londres e não tu! Recomecei a dançar e a bater palmas, como se celebrasse a vinda da chuva, e depois
pus-me a cantar: - Vou para Londres! Ohhh-ayeee! Vou para Londres!
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WARIS! - A tia Sahru chamava-me e o tom da sua voz era ameaçador.
Nessa noite equipou-me para a viagem e recebi finalmente o meu primeiro par de sapatos, umas bonitas sandálias de couro. Para a viagem de avião, ofereceu-me um
vestido de cores berrantes que eu devia levar por debaixo de uma ampla túnica africana.
No dia seguinte, quando o tio Mohammed me veio buscar, eu não tinha bagagem, i não fazia diferença, porque não tinha nada para levar. Antes de partir para o aeroporto,
abracei e beijei a tia Sahru e a minha querida Fatima, e despedi-me de todos os meus pequenos primos. Fatima tinha sido tão boa comigo que gostaria de a ter levado
para Londres; sabia que só havia trabalho para uma pessoa e sentia-me feliz por ser eu a escolhida. Mohammed entregou-me o meu passaporte e examinei-o com curiosidade
- o meu primeiro documento oficial - porque nunca tivera uma certidão de nascimento nem qualquer outro papel com o meu nome escrito. Ao subir para o carro, senti-me
muito importante acenei para dizer adeus a toda a família.
Eu já tinha observado aviões no ar; de vez em quando alguns sobrevoavam o céu enquanto eu guardava as minhas cabras. Por isso, sabia que existiam, mas nunca vira
nenhum tão próximo de mim antes daquela tarde. Atravessei o aeroporto com o tio Mohammed depois detivemo-nos diante de uma porta que dava para o exterior. Na pista,
um jacto britânico cintilava ao sol, aguardando o momento da descolagem. Foi então que o meu tio murmurar algo:
- ... e a tua tia Maruim espera-te em Londres. Eu irei ter convosco dentro de alguns dias, tenho ainda uns assuntos a tratar antes de partir.
Olhei para ele, boquiaberta. Ele enfiou-me o bilhete de avião na mão.
- E não o percas, nem o teu passaporte. São papéis muito importantes, Waris. Toma bem conta deles.
Eu consegui murmurar, sentindo um nó na garganta: - Não vem comigo?
Ele respondeu num tom impaciente: - Não, eu tenho de ficar durante mais alguns dias.
Comecei a chorar, assustada com a ideia de partir só. No momento de abandonar a Somália, já nem estava certa de que afinal fosse uma boa ideia. Apesar de todos os
problemas que tivera, a minha casa era aqui, e o que me esperava parecia tão misterioso...
- Vai, tudo correrá bem. Alguém te esperará no aeroporto em Londres. Explicar-te-ão o que fazer no aeroporto à chegada.
Funguei, suspirei e o meu tio empurrou-me suavemente para a porta: - Agora tens de ir, o avião vai partir.
ENTRA PARA O AVIÃO, WARIS!
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Morta de medo, avancei sobre a pista escaldante. Observei o pessoal de terra atarefado em volta do jacto, preparando-se para a descolagem. Perguntei-me então como
é que entrava naquela coisa e levantei os olhos para as escadas. Decidindo-me finalmente, comecei a subir os degraus. Como não estava habituada a andar de sapatos,
tive de ter muito cuidado para não tropeçar nem prender um pé no vestido. Uma vez a bordo, não fazia ideia para onde ir e devia parecer uma perfeita idiota. Todos
os passageiros se encontravam já nos seus lugares e olharam-me intrigados. Eu podia ler nos seus olhos: "Mas quem diabo será esta saloia que parece nunca ter posto
os pés num avião?". Sentei-me rapidamente numa cadeira vazia junto da porta.
Foi então que, pela primeira vez na minha vida, vi um homem branco. Estava sentado ao meu lado e disse-me: - Esse não é o seu lugar.
Pelo menos foi o que pensei que ele tinha dito, uma vez que eu não falava uma palavra e inglês. Observei-o, assustada, e pensei: Meu Deus, que estará este homem
a dizer-me? E porque será ele tão pálido? O homem repetiu o que dissera e eu estava cada vez mais assustada. Nesse momento, felizmente, a hospedeira chegou e tirou-me
o bilhete das mãos. Vendo que eu estava completamente perdida, agarrou-me pelo braço e acompanhou-me até ) meu lugar - que obviamente não era em primeira classe,
onde eu me tinha sentado. Todos os passageiros se voltaram à minha passagem para me encarar. A hospedeira sorriu, apontando para o meu lugar. Deixei-me cair, contente
por me esconder de todas aquelas pessoas e, com um sorriso idiota, abanei a cabeça para lhe agradecer.
Pouco depois da descolagem, a hospedeira voltou com uma pequena bandeja cheia de rebuçados que me estendeu gentilmente. Eu tirei um, depois levantei a ponta do vestido
para fazer uma bolsa como se fosse colher frutos e tirei uma mão-cheia de guloseimas. Estava esfomeada e decidida a guardar provisões. Ignorava quando poderia comer.
Quando estendi a mão para Me Servir de novo, a hospedeira tentou retirar a bandeja do meu alcance, mas eu tivera tempo de a alcançar. A expressão da sua cara dizia
claramente: "Meu Deus! Que hei-de fazer com esta?".
Enquanto desembrulhava bombons e os devorava, observava algumas pessoas brancas que me rodeavam. Pareciam-me doentias e frias. Se eu soubesse falar inglês, ter-lhes-ia
dito: "Vocês precisam de sol". Pensava que aquela cor era apenas provisória. Aquelas pessoas
podiam ficar assim! Deviam ter-se tornado brancas porque não tinham apanhado sol durante muito tempo. Eu queria tocar num deles porque pensava que talvez o branco
se pudesse apagar. Talvez por baixo fossem pretos?
Após nove ou dez horas de voo, senti uma vontade terrível de fazer chichi. Estava quase a rebentar, mas não sabia aonde ir. Depois pensei: Waris, podes descobrir
isso sozinha! Por isso, observei atentamente todas as pessoas que me rodeavam e que abandonavam por momentos os seus lugares para desaparecerem por detrás de uma
porta. Concluí: só pode ser ali. Levantei-me e, no preciso momento em que cheguei diante da porta, alguém saía. uma vez lá dentro, fechei-me cuidadosamente e olhei
em volta. Estava seguramente no lugar certo, mas onde se encontrava o sítio exacto? Estudei o lavatório, mas sem me demorar, depois examinei-o assento, espirrei
e concluí que era aquele o sítio que me convinha. Toda contente, sentei-me e... uf !!
Senti-me terrivelmente aliviada até compreender que a minha urina não corria. Bem, e agora, que deveria fazer? Não queria sair dali deixando aquilo ali para quem
entrasse depois. Mas como fazê-lo desaparecer? Não sabia falar nem ler inglês, e a palavra AUTOCLISMO imprimida por cima do botão não significava nada para mim.
E mesmo partindo do princípio de que compreendesse aquela palavra, nunca tinha visto um autoclismo na minha vida. Estudei cada alavanca, cada fecho e cada parafuso,
tentando descobrir aquele que me permitiria fazer desaparecer os vestígios, mas voltava sempre ao botão do autoclismo, que me parecia ser o certo. Mas tinha medo
que ao carregar nele fizesse explodir o avião. Em Mogadíscio, ouvira dizer que por vezes sucediam coisas dessas; vivíamos constantemente rodeados por lutas políticas,
e as pessoas falavam incessantemente em bombas e explosões, neste ou naquele edifício que tinham explodido. Se tocasse naquele botão, talvez morrêssemos todos.
O que estava escrito por cima talvez quisesse dizer: NÃO PRESSIONAR. PERIGO DEXPLOSÃO! Era melhor não, correr semelhante risco por um pequeno chichi. Entretanto,
não queria deixar vestígios atrás de mim porque saberiam forçosamente a quem os atribuir, uma vez que agora havia várias pessoas a bater à porta.
Num momento de inspiração, agarrei num copo de plástico usado e enchi-o na torneira do lavatório que pingava. Esvaziando-o na retrete, pensava que diluiria suficientemente
o que lá se encontrava, e a pessoa seguinte pensaria que o depósito estava cheio de água. Comecei a trabalhar arduamente, a encher e esvaziar, a encher e a esvaziar.
Nessa altura, as pessoas não só batiam na porta como começavam a gritar. E eu não podia responder-lhes "É só um minuto", por isso continuei a trabalhar em silêncio,
enchendo o copo até transbordar na torneira que corria gota a gota.. Finalmente, parei quando o nível de água atingia borda da retrete. Mais uma gota e transbordaria.
Agora parecia verdadeiramente água Levantei-me e alisei o vestido antes de abrir a porta. Com os olhos baixos, abri caminho por entre as pessoas, contente por só
ter tido vontade de fazer chichi.
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Quando aterrámos em Heathrow, o meu medo de enfrentar aquele país novo foi largamente recompensado pelo alívio que sentia com a ideia de deixar o avião. A minha
tia vinha buscar-me, e eu estava-lhe reconhecida. Quando o aparelho iniciou a descida, as nuvens brancas e espumosas transformaram-se numa massa confusa e cinzenta.
Quando vi os outros passageiros levantarem-se, fiz o mesmo e deixei-me levar pela maré de corpos que saíam do avião. Não fazia a menor ideia do lugar para onde devia
ir nem o que devia fazer. A multidão conduziu-me até que chegámos ao fundo de uma escadas. Havia apenas um problema: as escadas moviam-se. Fiquei paralisada. A maré
humana contornava-me, passando à minha direita ou à minha esquerda, e eu via as pessoas entrarem suavemente "as escadas que se moviam e subirem lentamente. Imitei-as,
e perdi uma das minhas sandálias novas que ficou no início das escadas. Gritei em somali: "A minha sandália! A minha sandália!". E precipitei-me para a recuperar,
mas não consegui atravessar a fila compacta de pessoas que me seguiam.
Quando chegámos ao cimo das escadas, coxeei por entre a multidão, e chegámos à alfândega. Vi uns homens brancos nos seus impecáveis uniformes britânicos, mas não
fazia ideia nenhuma quem eram. Um deles dirigiu-se a mim em inglês e eu aproveitei a oportunidade esperando que ele me ajudasse. Apontando para as escadas, disse-lhe
em somali: "A minha sandália! ".
Ele observou-me com uma expressão aborrecida e infinitamente paciente e repetiu a sua pergunta; senti-me assaltada por um riso histérico que me fez esquecer momentaneamente
os meus problemas. O homem estendeu o dedo para o meu passaporte e eu entreguei-lho. Depois de o ter examinado cuidadosamente, carimbou-o e fez-me sinal para passar.
Passada a alfândega, um homem fardado de motorista dirigiu-se a mim e perguntou-me em somali: - Veio trabalhar para o senhor Farah?
Senti-me de tal maneira aliviada por ouvir alguém falar na minha língua que gritei:
- Sim! Sim! Sou eu! Eu sou a Waris!
O motorista preparava-se para deixar o aeroporto quando eu o detive.
- A minha sandália! Temos de voltar a descer as escadas para ir buscar a minha sandália!
A sua sandália?
Sim, sim, está ali. Onde?
Junto às escadas rolantes! Perdi-a ao subir.
Ele olhou para os meus pés, um calçado com uma sandália e o outro descalço. Felizmente falava inglês e tivemos autorização para passar pela porta para ir buscar
a minha sandália. Mas quando chegámos junto das escadas, já não estava lá. Eu não queria
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acreditar em tamanho azar. Descalcei-me e, enquanto voltávamos a subir, olhei bem em volta.
Agora tínhamos de voltar a passar pela alfândega. O mesmo homem fez as mesmas perguntas servindo-se do motorista como intérprete.
- Quanto tempo tenciona permanecer? ?? Eu encolhi os ombros.
- Para onde vai? Eu respondi orgulhosamente: - Para casa do meu tio, o embaixador. - Segundo o seu passaporte, tem dezoito anos. Confirma?
O quê? Eu não tenho dezoito anos! - Protestei vivamente e o motorista traduziu. Não compreendi aquela pergunta e o motorista explicou-me: - Traz algo que queira
fazer entrar no país?
Mostrei-lhe a minha única sandália. O homem observou-a por um minuto, depois sacudiu ligeiramente a cabeça e fez-me sinal para passar.
Enquanto atravessávamos a bicha do aeroporto, o motorista disse-me: - O seu passaporte diz que tem dezoito anos e foi isso que confirmei àquele homem. Se alguém
lhe fizer essa pergunta, terá de responder que tem dezoito anos.
- Mas eu não tenho dezoito anos! - disse eu furiosa. - Não sou tão velha. Que idade tem então? .
- Não sei... talvez catorze... mas não sou assim tão velha!
- Ouça, é o que está escrito no seu passaporte, por isso agora é a idade que tem. - Que história é essa? Não me importa o que está escrito no meu passaporte...
e por que é que está escrito isso se não é verdade?
- Mas foi isso que o senhor Farah lhes disse.
- Então ele é doido! Não faz ideia nenhuma!
Quando chegámos à saída, estávamos praticamente a gritar e uma verdadeira antipatia declarara-se entre o motorista e eu. À medida que me dirigia descalça para o
carro, nevava sobre Londres. Calcei de novo a minha sandália e, a tremer, apertei contra mim o fino vestido de algodão que me cobria. Claro que nunca tinha visto
neve antes. Oh, meu Deus! Faz tanto frio aqui!
- Acabamos por nos habituar.
À medida que o carro se afastava do aeroporto embrenhando-se no tráfico matinal de Londres, um sentimento de tristeza e solidão invadiu-me; sentia-me perdida naquele
país completamente estranho, rodeada de todas aquelas caras pálidas. Alá! Oh, meu Deus! Onde estou eu? Naquele momento, sentia terrivelmente a falta da minha mãe.
O motorista do tio
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Mohammed, a única outra pessoa da minha cor, não me trazia qualquer conforto; era evidente que ele me considerava como uma inferior.
Enquanto conduzia, achou por bem informar-me sobre a casa para onde eu ia. Viveria com o meu tio, a minha tia, a mãe do tio Mohammed, outro dos meus tios - um irmão
da minha mãe e da tia Maruini que eu não conhecia - e os meus sete primos. Em seguida, informou-me sobre a hora a que deveria levantar-me e deitar-me, esgotada após
um dia de trabalho. Depois confiou-me num tom neutro:
- Sabe, a patroa da casa, a sua tia, comanda toda a gente com punho de ferro. Aviso-a, ela faz-nos a todos a vida dura.
- Talvez faça a sua vida dura, mas ela é a minha tia.
Eu pensava para comigo que, apesar de tudo, ela era uma mulher, e irmã da minha mãe. Pensava a que ponto sentia a falta da minha mãe e como a tia Saliru e Fatima
tinham sido boas para mim. Até Aman se comportara bem comigo, mas não fôramos feitas para nos entendermos. As mulheres da família apoiavam-se sempre umas às outras.
Recostei-me no assento, subitamente exausta da viagem.
Ia observando o céu pela janela, tentando ver de onde vinham todos aqueles flocos. A neve tornava os passeios brancos à medida que circulávamos lentamente pela zona
residencial de Harley Street. Quando nos detivemos diante da casa do meu tio, esbugalhei os olhos ao compreender que ia viver ali. Nunca tinha visto lugar semelhante.
A residência do embaixador era uma mansão privada de quatro andares; era amarela, a minha cor preferida. Dirigimo-nos para uma impressionante porta de entrada encimada
por um lampião. No vestíbulo, um enorme espelho de moldura dourada reflectia os inúmeros livros da biblioteca que ficava defronte.
A tia Maruim veio receber-me. Era um pouco mais nova do que a minha mãe, vestida à moda ocidental. Eu gritei:
- Tia!
- Entra - disse ela friamente - e fecha a porta.
Eu pensara precipitar-me para ela e apertá-la nos braços, mas a forma como ela se comportava, com as mãos apertadas uma contra a outra, gelou-me.
- Vou mostrar-te a casa e explicar-te o que tens a fazer. Senti a última centelha de energia apagar-se em mim.
- Oh, tia, estou tão cansada. Só queria deitar-me. Posso ir dormir agora?
- Sim, vem comigo.
Atravessou a sala de estar e, enquanto subíamos as escadas, reparei no elegante mobiliário, o lustre, o sofá branco coberto de dezenas de almofadas, as pinturas
abstractas penduradas na parede, os troncos que ardiam na lareira. A tia Maruira levou-me para o seu
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quarto e disse-me que eu poderia dormir na sua cama. A cama de dossel tinha mais ou menos as dimensões da nossa tenda familiar. Senti um enorme prazer ao passar
as mãos pelo tecido sedoso que cobria o belo edredão de penas.
- Quando acordares, mostrar-te-ei a casa. Acorda-me?
- Não, acordarás por ti própria. Dorme o tempo que quiseres.
Enfiei-me debaixo dos cobertores e pensei que nunca sentira nada tão macio e delicioso em toda a minha vida. A minha tia fechou a porta suavemente, e eu senti-me
adormecer com a sensação de cair num túnel, num longo túnel escuro.
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A EMPREGADA DOMESTICA
Quando abri os olhos, pensei que ainda estava a sonhar, um sonho lindo. Não podia acreditar que me encontrava naquela enorme cama, no meio daquele belo quarto. A
tia Maruim tinha dormido com um dos seus filhos porque eu só acordara no dia seguinte de manhã. Mas assim que pus os pés no chão, retomei contacto com a realidade.
Saí do quarto, situado no primeiro andar, e deambulava pela casa quando encontrei a minha tia.
- Bem, já estás acordada. Vamos para a cozinha, vou mostrar-te o que terás de fazer. Ligeiramente atordoada, segui-a para a divisão a que ela chamava cozinha. Não
se parecia em nada com a da minha tia em Mogadíscio. Estava mobilada com armários brancos creme e decorada com azulejos de cerâmica azul; ao centro, dominava um
monstruoso fogão de seis bocas. A minha tia abria e fechava as gavetas enquanto me explicava:
- . . aqui estão os utensílios, além os talheres e os panos...
Eu não estava a compreender palavra do que ela me dizia, não fazia ideia da utilidade de todos aqueles objectos e menos ainda de como os utilizar.
- Todas as manhãs servirás o pequeno-almoço do teu tio às seis e meia. Ele vai para a embaixada muito cedo. É diabético, por isso terás de ter muita atenção com
a sua dieta. Ele toma sempre o mesmo: chá e dois ovos quentes. Eu quero ter o meu pequeno-almoço no quarto às sete horas. Depois, farás panquecas para as crianças.
Eles comem às oito horas porque têm de estar na escola às nove. Depois do pequeno-almoço...
- Tia, eu não sei fazer todas essas coisas. Quem vai ensinar-me? Não sei preparar ... como se chamam... panquecas. O que são panquecas?
Antes de eu a interromper, a tia Maruim acabara justamente de inspirar profundamente estender o braço para a porta. Susteve a respiração por um momento, com o braço
ainda
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estendido e depois observou-me, com um ar apavorado. Expirou lentamente baixando o braço e juntou as mãos uma contra a outra como da primeira vez em que me vira.
- Eu fá-lo-ei diante de ti, Waris, mas terás de prestar muita atenção. Observa com muito cuidado, escuta e aprende.
Acenei com a cabeça; ela inspirou de novo e continuou a dar-me as suas instruções.
No final da primeira semana e após alguns desastres menores, tudo aquilo não passava para mim de uma rotina que eu observava quotidianamente, trezentos e sessenta
e cinco dias por ano, durante quatro anos consecutivos. Para alguém que nunca tivera a noção do tempo, tive de aprender depressa a ver as horas e a respeitar um
horário. Levantar às seis horas; pequeno-almoço do tio às seis e meia; café da tia às sete horas; panquecas das crianças às oito horas. Em seguida, limpava a cozinha.
Depois de ter conduzido o meu tio à embaixada, o motorista vinha buscar as crianças para as levar à escola. Nessa altura eu limpava o quarto da minha tia e as casas
de banho, depois fazia a limpeza de cada divisão dos quatro andares da casa, limpando, varrendo, esfregando e encerando. E, podem crer, se o meu trabalho não agradava
a alguém na família, faziam-me sabê-lo:
- Não limpaste bem a casa de banho, Waris. Vê se da próxima vez fica mais limpa. Aqueles azulejos brancos têm de estar impecáveis, a brilhar!
Para além do motorista e do cozinheiro, eu era a única empregada doméstica. A minha tia achava que não era necessário contratar pessoal suplementar para uma casa
tão pequena.
O cozinheiro trabalhava apenas seis dias por semana e ao domingo, o seu dia de folga, cabia-me a mim preparar as refeições. Em quatro anos, não tive um único dia
de descanso. As raras vezes em que ousei abordar o assunto, a minha tia ficou tão zangada que desisti. Não comia com o resto da família. Engolia qualquer coisa
à pressa, quando tinha oportunidade, e continuava a trabalhar até ao momento em que caía na cama, exausta, por volta da meia-noite. Não me importava de não participar
das refeições familiares porque, na minha opinião, o cozinheiro era bastante mau. Era somali, mas de uma tribo diferente da minha. Arrogante, mesquinho e preguiçoso,
adorava atormentar-me. Cada vez que a minha tia entrava na cozinha, ele começava com a sua lengalenga habitual:
- Waris, quando cheguei na segunda-feira de manhã encontrei a cozinha num estado lastimoso, e levei horas a limpá-la.
Obviamente, isto não passava de uma grande mentira. Ele tentava fazer-se valer aos olhos da minha tia e do meu tio, e sabia que não conseguiria fazê-lo com os seus
dotes culinários. Quando eu disse à tia Maruim que não queria comer o que o seu cozinheiro preparava, ela respondeu-me:
- - Muito bem, faz o que quiseres.
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Foi então que me senti verdadeiramente feliz por ter observado a minha prima Fatima cozinhar em Mogadíscio. Eu tinha um talento inato para a cozinha e comecei a
fazer massas e a inventar todo o tipo de pratos, dando livre curso à minha imaginação. Quando os outros membros da família viram o que eu comia, todos quiseram provar.
Pouco depois, perguntaram-me o que eu gostaria de fazer, quais os ingredientes de que necessitaria... Mas isto não melhorou as minhas relações com o cozinheiro.
No final da minha primeira semana em Londres, compreendi que os meus tios tinham uma ideia muito diferente da minha sobre o lugar que eu ocupava nas suas vidas.
É comum, em todos os países de África, os membros mais influentes de uma família tomarem a seu cargo as crianças dos parentes mais pobres, e em troca essas crianças
tornam-se úteis na lida doméstica. Por vezes, a família de acolhimento educa e trata dessas crianças como se fossem suas. Obviamente que não era esse o meu caso,
e depressa compreendi que os meus tios tinham mais que fazer do que tomarem conta de uma criança ignorante, vinda do deserto, que supostamente devia servir-lhes
de empregada doméstica. O meu tio estava muito absorvido pelo seu trabalho e não se preocupava minimamente com o que se passava em casa. Mas a minha tia, que eu
sonhara que fosse uma segunda mãe para mim, não tinha a menor vontade de me considerar como sua terceira filha. Eu não passava de uma empregada. Esta brutal tomada
de consciência - juntamente com as longas jornadas de trabalho - rapidamente fez diminuir a minha alegria de viver em Londres. Descobri que a minha tia era obcecada
por regras e regulamentos; cada dia, tudo devia ser feito exactamente como ela dissera, na hora exacta que ela fixara, sem nenhuma excepção. Talvez ela tivesse necessidade
de se mostrar rígida para conseguir integrar-se numa cultura tão diferente da sua. Felizmente, encontrara uma amiga naquela casa: a minha prima Basma.
Basma era a filha mais velha dos meus tios e tínhamos a mesma idade. Era de uma beleza deslumbrante e todos os rapazes andavam atrás dela, mas ela não lhes ligava
nenhuma. Ia para a escola e à noite, quando regressava, só lhe interessava uma coisa: ler. Subia para o quarto, estendia-se na cama e lia durante horas a fio. Muitas
vezes, estava de tal forma absorvida na sua leitura que se esquecia de comer, por vezes durante um dia inteiro, e nessas alturas alguém tinha de a obrigar a descer.
Eu aborrecia-me bastante e sentia-me muito só. Por vezes, ia visitar Basma ao quarto, sentava-me num canto da sua cama e perguntava: - O que é que estás a ler?
Sem sequer olhar para mim, ela murmurava: - Deixa-me em paz!
- Não posso falar contigo?
Sempre com os olhos fixos no livro, ela respondia-me com uma voz monocórdica, quase sem articular as palavras, como se estivesse adormecida: - Sobre que queres falar?
- O que é que estás a ler?
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- Hum?
- O que é que estás a ler? Qual é o assunto?
Quando finalmente conseguia captar a sua atenção, ela explicava-me o assunto do livro. Lia quase sempre romances sentimentais onde, após uma série de rupturas e
mal-entendidos, um homem e uma mulher acabavam por se beijar. Uma vez que durante toda a minha vida eu adorara histórias, sentia um grande prazer naquelas ocasiões;
ficava sentada e fascinada enquanto ela me narrava detalhadamente toda a intriga, com grandes gestos e um brilho nos olhos. Enquanto escutava, sentia uma enorme
vontade de aprender a ler para poder desfrutar daquelas histórias quando quisesse.
o tio Abdullah, um irmão da minha mãe e da tia Maruim que vivia connosco, tinha vindo para Londres para frequentar a universidade. Um dia perguntou-me se eu queria
ir à escola.
- Sabes, Waris, tens de aprender a ler. Se quiseres, posso ajudar-te. Informou-me sobre a localização da escola, os horários das aulas e, acima de tudo, que era
gratuito. A ideia de que poderia estudar nunca me viera à cabeça. O meu tio dava-me todos os meses algum dinheiro, mas certamente não o suficiente para pagar a escola.
Terrivelmente excitada com aquela perspectiva, fui ter com a tia Maruim. e disse-lhe que gostaria de aprender a ler, escrever e falar inglês.
Eu vivia em Londres, mas em casa falávamos apenas somali e, não tendo qualquer contacto com o mundo exterior, conhecia apenas algumas palavras de inglês. A tia Maruim
respondeu-me: - Bem, vou pensar no assunto. - Mas quando falo nisso com o tio Mohammed, ele recusou. Eu não parava de a pressionar, mas ela não queria fazer nada
contra a vontade do marido. Finalmente, decidi ir, mesmo sem autorização. As aulas decorriam à noite, três vezes por semana, das nove às onze horas. O tio Abdulla
aceitou acompanhar-me à primeira aula. Nessa altura eu tinha quinze anos e nunca entrara numa sala de aulas. Havia pessoas de todas as idades e de todas as partes
do mundo. Depois um velho senhor italiano passou a vir buscar-me todas as noites; eu escapulia-me de casa do meu tio e ele acompanhava-me às aulas. Eu estava tão
ávida de aprender que o meu professor me disse:
- Waris, és uma boa aluna mas tens de ter calma. Aprendi o alfabeto e começava a conhecer os rudimentos da língua inglesa quando meu tio se inteirou das minhas
escapadelas nocturnas. Ficou furioso por lhe ter desobedecido e proibiu-me de voltar à escola, após apenas duas semanas de aulas.
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Decidi então pedir emprestados os livros da minha prima para tentar aprender a ler sozinha. Não tinha autorização para ver televisão com o resto da família, mas
por vezes ficava atrás da porta para apanhar duas ou três palavras de inglês e familiarizar-me com a língua. Tudo continuou como antes, até ao dia em que a tia Maruim
me chamou quando eu fazia a limpeza: - Waris, desce assim que acabares. Tenho algo a dizer-te.
Fiz as camas e, quando o meu trabalho terminou, fui ter com a minha tia, que se encontrava na sala de estar, junto à lareira.
- sim?
- Recebi hoje um telefonema de Mogadíscio. Ah... Como se chama o teu irmãozinho?
- Ali?
Não, o mais novo, o dos cabelos grisalhos. Velho Homem? Refere-se a Velho Homem?
Sim, Velho Homem e Aman, a tua irmã mais velha. Lamento. Morreram ambos.
Eu não podia acreditar no que acabava de ouvir. Observei a cara da tia Maruim pensando que ela estava a brincar, ou que talvez estivesse zangada comigo e tentasse
castigar-me contando-me aquela história horrível. Mas o seu rosto estava totalmente inexpressivo, não deixando transparecer nada que me pudesse dar um indício. Deve
estar a falar a sério, senão por que me diria isto? Mas como acreditar em semelhante coisa? Fiquei paralisada, incapaz de esboçar o menor movimento, até que as minhas
pernas cederam e fui obrigada a sentar-me no sofá branco. Nem me passou pela cabeça perguntar o que se passara. A minha tia deve ter-me explicado como se deu aquela
tragédia, mas eu não ouvia nada, à excepção de um terrível zumbido nos ouvidos. Dormente e andando como uma zombi, subi para o meu quarto.
Passei o resto do dia transtornada, estendida na cama no minúsculo quarto das águas-furtadas que partilhava com a minha prima. Velho Homem e Aman, ambos mortos!
Era impossível! Eu fugira, perdendo a oportunidade de passar algum tempo com eles, e agora nunca mais os veria, nem um nem outro. Aman, a mais forte de nós; Velho
Homem, o mais sábio. Como podiam ter morrido? E, se era verdade, que significado teria isso para nós, que não possuíamos nem a força dela nem a sabedoria dele?
Nessa noite, decidi que não queria sofrer mais. Desde a manhã em que fugira ao meu pai, nada na minha vida se passara como eu esperara. Agora, passados dois anos,
sentia terrivelmente a falta da minha família e não suportava a ideia de que o meu irmão e a minha irmã tivessem desaparecido para sempre. Desci para a cozinha,
abri uma gaveta para tirar uma faca bem afiada e voltei para o meu quarto. Mas enquanto estava deitada, tentando ganhar coragem para abrir as veias, não cessava
de pensar na minha mãe. Pobre mãe... Eu
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acabava de perder dois entes queridos, ela arriscava-se a perder três. Parecia-me injusto para com ela. Pousei a faca na mesa de cabeceira, junto à cama. Já a esquecera
quando, um pouco mais tarde, Basma veio ver-me. Chocada, disse-me:
- Que vais tu fazer com isso?
Nem sequer tentei responder, e Basma saiu levando consigo a faca. Alguns dias mais tarde, a minha tia chamou-me: - Waris, desce! Deixei-me ficar estendida, fingindo
não ter ouvido. Ela gritou:
- WARIS! DESCE JÁ!
Desci e vi-a à minha espera junto às escadas.
- Despacha-te, está alguém ao telefone para ti. Aquela notícia espantou-me porque nunca ninguém me telefonara. Na verdade nunca me servira de um telefone.
- Para mim? - murmurei.
- Sim, despacha-te, agarra no telefone! Segurei o auscultador e observei-o como se fosse morder-me. Mantendo-o centímetros do ouvido, murmurei: - Sim?
- Fala! Fala para o telefone!
Levantando os olhos para o tecto, ela colocou o auscultador na posição correcta, encostado ao meu ouvido.
- Estou?...
Então ouvi algo de extraordinário: a voz da minha mãe.
-Mãe! Mãe? Oh, meu Deus, és mesmo tu?
Um sorriso iluminou-me o rosto, o primeiro desde há muito tempo. - Mãe, está tudo bem?
- Não, eu estive bastante mal... - Então contou-me que após a morte de Amam e de Velho Homem quase enlouquecera. Senti-me contente por não ter contribuído para a
sua dor matando-me. Ela havia fugido para o deserto para estar só, para não ver nem falar a ninguém. Depois fora para Mogadíscio, sempre só, para junto da sua família.
Encontrava-se, naquele momento em casa da tia Saliru, de onde me estava a telefonar.
Tentou explicar-me o que se passara, mas eu continuava sem conseguir compreender. Velho Homem adoecera. Claro que, como era natural numa existência nómada no deserto,
não tinha sido possível obter assistência médica. Ninguém sabia do que padecia Velho Homem, ninguém sabia o que fazer. Naquela sociedade, existem apenas duas alternativas:
viver ou morrer, nada mais. Enquanto se vive, tudo corre bem, ninguém se preocupa muito com a doença uma vez que, sem médicos nem medicamentos, não há grande coisa
a fazer. Quando alguém morre, também está tudo bem porque a vida continua para os outros. Obedecemos
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sempre à filosofia do Inch'Allah: "Se Deus quiser". Aceitamos a vida como uma dádiva, e a morte como a incontestável vontade de Deus.
Mas quando Velho Homem adoeceu, os meus pais tinham-se assustado deveras porque ele era uma criança especial. Impotente, a minha mãe tinha feito chegar uma mensagem
a Aman pedindo-lhe ajuda. A minha irmã sempre fora a mais forte de nós, saberia o que fazer. E a minha mãe tivera razão porque Aman. viera a pé de Mogadíscio para
ir buscar Velho Homem e levá-lo ao médico. Ignoro onde a minha família estava acampada naquele momento e a que distância se encontrava da capital. Mas quando enviou
a sua mensagem, a minha mãe não podia saber que Aman estava grávida de oito meses. Velho Homem morreu nos seus braços enquanto ela o levava para o hospital. Em estado
de choque, Aman morrera alguns dias mais tarde, bem como o seu bebé., Nunca soube verdadeiramente onde se encontravam naquele momento mas, ao saber da notícia, a
minha mãe, cuja resistência sempre fora inigualável, fora-se abaixo. Ela era o elo que mantinha a nossa família unida, e custou-me bastante pensar no que seria a
vida dos que restavam. Acima de tudo, sentia-me desesperada por me encontrar bloqueada em Londres e incapaz de ajudar a minha mãe no momento em que ela mais precisava.
No entanto, a vida continuava para todos nós, e em Londres eu tentava aproveitar o máximo possível. Cumpria os meus deveres domésticos e brincava com os meus primos
e os amigos que vinham visitá-los. Uma noite, pedi a Basma que me ajudasse no meu primeiro desfile de moda. Desde que chegara a Londres, a minha paixão por roupas
não cessara de crescer. Não me interessava particularmente possuí-las, mas gostava de as experimentar. Era um pouco como representar, podia fingir ser outra pessoa.
Enquanto toda a família estava a ver televisão, fui até ao quarto do tio Mohammed e fechei a porta. Tirei do armário um dos seus fatos mais bonitos, de lã, às riscas
azul-marinho. Estendi-o sobre a cama, bem como uma camisa branca, uma gravata de seda, meias escuras elegantes, sapatos ingleses pretos e um chapéu de feltro. Em
seguida vesti tudo, esforçando-me por apertar a gravata como vira o meu tio fazer e depois puxei o chapéu sobre os olhos. Assim vestida, fui ter com Basma. Ela torceu-se
a rir.
- Vai dizer ao teu pai que está aqui um senhor que deseja vê-lo.
- Essas roupas são dele? Oh, meu Deus, ele vai matar-te...
- Vai lá, anda!
Segui-a e fiquei no vestíbulo, de ouvido apurado à espera do momento certo para fazer a minha entrada triunfal.
- Pai, está aqui um senhor que deseja ver-te.
- A esta hora?
, O tio Mohammed não parecia muito contente. - Quem é? Conhece-lo? Que quer ele?
Basma balbuciou: - Eu, alin... não sei... Acho... acho que o conheces. - Bem, diz-lhe...
,, - Por que não o recebes? Ele está mesmo aqui, do outro lado daquela porta. É - Está bem...
, Cansado, o meu tio acabou por aceder:
Era a deixa que eu esperava. Puxei o chapéu sobre os olhos, enfiei as mãos nos bolsos e entrei na sala com um andar decidido dizendo numa voz de barítono:
Boa noite! Não se lembra de mim?
É O meu tio abriu muito os olhos e baixou-se para ver o rosto que se escondia debaixo daquele chapéu. Quando me reconheceu, desatou a rir. A minha tia e todos os
outros membros da família também riram a bandeiras despregadas. O tio Mohammed agitou o dedo na minha direcção: - Não me lembro de te ter dado autorização para...
- Oh, eu tinha de experimentar, tio. Foi engraçado, não foi? Oh, Alá!
Repeti várias vezes a peripécia, introduzindo um suficiente intervalo entre as minhas aparições para evitar que o meu tio desconfiasse. Ele dizia-me invariavelmente:
- Agora chega, Waris. Não quero que vistas mais as minhas roupas, está bem? Não voltes a tocar-lhes.
Eu sabia que ele falava a sério, mas apesar disso achava aquilo engraçado. Mais tarde ouvi-o contar aos amigos, rindo: - Ela entrou no meu quarto e vestiu as minhas
roupas. Depois Basma veio dizer-me: "Pai, está aqui um senhor que deseja ver-te". Então ela entrou, vestida com as minhas roupas dos pés à cabeça. Deviam ter visto...
A minha tia disse que as suas amigas pensavam que eu devia tentar ser modelo, mas ela respondera-lhes: - Nós não fazemos esse tipo de coisa. Nós somos somalis e
muçulmanas, sabem como é...
No entanto, parecia não desaprovar a carreira de modelo de Iman, a filha da sua velhamiga. A minha tia conhecia a mãe de Iman há vários anos, e cada vez que ela
ou a filha vinham a Londres, a tia Maruim insistia para que ficassem em nossa casa. Foi surpreendendas conversas de Iman com o meu tio ou com a minha tia que ouvi
pela primeira vez falar na profissão de modelo. Eu recortara várias fotos de Iman de revistas que a minha prima me dava e colara-as na parede do meu quartinho. Uma
vez que ela era somali e tinha aquela profissão, por que não eu?
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Sempre que Iman vinha lá a casa, eu tentava desesperadamente encontrar o momento oportuno para lhe falar. Queria perguntar-lhe o que devia fazer para ser modelo.
Para além de quase não saber o que isso significava, ignorava por completo como fazer para vir a sê-lo. Mas, em cada uma das suas visitas, Iman passava a noite a
conversar com os meus tios, que certamente não teriam gostado que eu interrompesse a conversa para fazer uma pergunta daquelas. Uma noite, finalmente, surgiu a ocasião:
Iman lia no quarto e fui bater-lhe à porta: Queres que te traga alguma coisa antes de dormir?
- Sim, pode ser um chá de ervas.
Desci rapidamente para a cozinha. Quando subi de novo, pousei o tabuleiro na mesa de cabeceira e disparei: - Sabes, tenho muitas fotografias tuas no meu quarto.
Ouvia o tiquetaque do despertador e senti-me uma perfeita idiota.
- Gostaria bastante de ser modelo também... Achas que é difícil? Como é que começaste?
Ela continuou a folhear a revista, ignorando-me. Não sei o que esperava que ela me respondesse, talvez que me transformasse em Cinderela com um toque de varinha
mágica. Mas o meu sonho de me tornar modelo era tão abstracto, e toda aquela ideia me parecia tão disparatada, que não pensava muito nisso. Depois dessa noite, voltei
às minhas tarefas, concentrando-me no meu trabalho quotidiano: pequeno-almoço, louça e limpeza.
Vivia em Londres já há dois anos e devia ter cerca de dezasseis anos. Estava suficientemente adaptada à vida ocidental para saber que estávamos em 1983.
Nesse Verão, uma irmã do tio Mohammed morreu na Alemanha, deixando uma filha pequena. Sophie veio viver connosco, e o meu tio inscreveu-a na All Souls Church School.
Todas as manhãs, para além do meu trabalho quotidiano, eu acompanhava Sophie à escola que ficava a alguns quarteirões de distância de nossa casa.
Um dia, dirigíamo-nos calmamente para o velho edifício de tijolo quando reparei que um homem estranho me observava. Era um branco que aparentava cerca de quarenta
anos, com um rabo-de-cavalo. Observava-me ostensivamente e tinha um ar bastante seguro de si. Depois de eu ter deixado Sophie à porta da escola, dirigiu-se a mim
e começou a falar. Eu não compreendia inglês e não fazia a menor ideia do que me estava a dizer. Assustada, e sem olhar para ele, corri para casa. A mesma história
repetiu-se várias vezes: eu deixava Sophie, o homem do rabo-de-cavalo esperava-me, tentava falar comigo, e eu fugia.
À tarde, quando ia buscar Sophie, ela falava-me muitas vezes de uma nova amiga, uma rapariga da sua turma, mas eu não estava nada interessada. Um dia em que cheguei
um pouco atrasada, Sophie esperava-me diante da escola acompanhada por outra rapariga. Disse-me orgulhosamente: - Waris, esta é a minha amiga.
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- Junto delas encontrava-se o homem do rabo-de-cavalo, aquele que me perseguia obstinadamente há cerca de um ano.
Sem deixar de o fitar, disse vivamente a Sophie: - Vamos embora!
Mas o homem inclinou-se para ela e murmurou-lhe algo ao ouvido. Sophie compreendia inglês, alemão e somali. Eu agarrei-lhe na mão:
- Vamos, Sophie. Afasta-te desse homem.
Ela voltou-se para mim e respondeu-me, rindo: - Ele quer saber se tu falas inglês!
Ela abanou a cabeça observando-o, e ele disse algumas palavras que Sophie me traduziu: - Ele quer perguntar-te uma coisa.
Eu respondi, altiva: - Diz-lhe que me recuso a falar-lhe. Ele pode ir-se embora. Pode ir...
Preferi não terminar a frase porque a rapariga estava a ouvir-nos e Sophie teria traduzido imediatamente as minhas palavras.
- Esquece tudo isto. Vamos embora.
E, agarrando-a pela mão, arrastei-a comigo.
Uma manhã, pouco tempo depois daquele encontro, acompanhei Sophie à escola como habitualmente e voltei para casa; encontrava-me no primeiro andar a fazer a limpeza
quando tocaram à porta. Eu já estava a descer as escadas quando a tia Maruim foi abrir. Escondida atrás do corrimão, mal podia crer no que via: diante da porta estava,
nada mais nada menos, que o senhor Rabo-de-cavalo. Devia ter-me seguido. Pensei imediatamente que tinha vindo contar histórias à minha tia, por exemplo, que eu fizera
algo de errado: que roubara, namorara ou mesmo que me teria deitado com ele.
- Quem é o senhor? - perguntou a minha tia no seu inglês fluente.
- Chamo-me Malcolm Fairchild. Desculpe incomodar, mas podemos falar por um momento?
- Sobre que deseja falar-me?
Compreendi que a minha tia estava com um ar zangado.
Ao subir as escadas, sentia-me nervosa e perguntava-me o que ele lhe teria dito, mas rapidamente ouvi a porta bater. Precipitei-me para a minha tia, que se dirigia
como uma flecha na direcção da cozinha.
- Quem era aquele homem?
- Não sei. Disse-me que te tinha seguido e contou-me uma história absurda... Queria tirar-te uma fotografia.
Ela observou-me atentamente.
- Tia, eu não lhe disse para ele fazer isso. Nunca falei com ele...
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- EU SEI! E foi por isso que ele veio até aqui. Volta ao teu trabalho e não te preocupes mais. Já tratei dele.
Ela afastou-se, recusando-se a contar-me mais detalhes da sua conversa, mas o facto de a ver tão zangada fez-me pensar que aquele homem tinha más intenções. Fiquei
horrorizada e nunca mais voltei a mencionar o incidente.
A partir desse momento, o tipo do rabo-de-cavalo nunca mais me dirigiu a palavra. Quando o encontrava diante da escola, limitava-se a sorrir-me educadamente e afastava-se.
No entanto, um dia, quando eu vinha buscar Sophie, ele assustou-me aparecendo de repente ao meu lado e estendendo-me um cartão. Sem cessar de o fitar, enfiei aquele
pedaço de papel no fundo do meu bolso. Vi-o dar meia volta, e depois insultei-o em somali:
- Afasta-te de mim, espécie de canalha!
Quando cheguei a casa, subi as escadas a correr e precipitei-me para o último andar. Todas as crianças dormiam ali, era o nosso santuário, longe dos adultos. Dirigi-me
ao quarto de Basma, interrompendo, como habitualmente, a sua leitura, e disse-lhe, tirando o cartão do bolso: - Lembras-te do homem de quem te falei, aquele que
estava sempre a importunar-me e que me seguiu até aqui? Hoje deu-me este cartão. O que é que está aí escrito?
- Diz que ele é fotógrafo.
- Fotógrafo?
- Tira fotografias.
- Sim, mas que tipo de fotografias?
- No cartão diz: "Fotógrafo de Moda".
- Fotógrafo de moda! Queres dizer que ele fotografa roupas? Ele queria tirar-me fotografias vestida com roupas?
- Não sei, Waris, não faço ideia.
Compreendi que a aborrecia e que ela gostaria de voltar à sua leitura. Quando a deixei, escondi o cartão no meu quarto. Uma vozinha dizia-me para o guardar cuidadosamente.
A minha prima Basma era a minha única conselheira, e estava sempre presente quando eu tinha necessidade dela. Nunca lhe fiquei tão reconhecida como quando ela me
ajudou a resolver o problema com o seu irmão Haji.
Haji, o segundo filho mais velho do meu tio, tinha vinte e quatro anos. Todos o consideravam muito inteligente e, tal como o tio Abdullah, frequentava a universidade
em Dridres. Sempre se mostrara muito amistoso comigo. Quando eu fazia a limpeza, costumava dizer-me:
- Eh, Waris, já acabaste de limpar a casa de banho?
~_ Não, mas se quiseres podes usá-la, limpá-la-ei mais tarde.
- Oh, não... Queria apenas saber se precisas de ajuda.
Ou então perguntava-me: - Vou à rua comprar algo para beber. Queres alguma coisa? Eu gostava muito que ele se mostrasse gentil para comigo. Conversávamos e brincávamos
muitas vezes juntos.
Por vezes, quando eu saía da casa de banho, ele barrava-me a passagem, eu baixava-me ele fazia o mesmo. Quando eu o empurrava e gritava: "Sai do meu caminho, seu
palerma!", ele desatava a rir. Estes pequenos jogos repetiam-se e, apesar de eu me esforçar por encará-los como brincadeiras inofensivas, sentia-me incomodada. Algo
no seu comportamento me deixava nervosa. Ele olhava para mim de uma forma estranha, sonhadora, ou aproximava-se um pouco demasiado da minha pessoa. Quando me sentia
pouco à vontade na sua presença, pensava para comigo: Então, Waris, Haji é como um irmão para ti, o que tu estás a imaginar é obsceno. Um dia, quando saía da casa
de banho com o meu balde e o1 meus esfregões, encontrei-o à porta. Ele agarrou-me no braço e colou-se a mim, com a cara poucos milímetros da minha. Eu comecei
a rir nervosamente:
- O que é que te deu?
- Oh, nada, nada!
Largou-me imediatamente. Eu afastei-me com o meu balde, muito naturalmente, mas meu espírito corria a toda a velocidade e, a partir desse momento, não me interroguei
mais a mim própria: soube que se passava algo entre nós que não me parecia muito saudável.
Na noite seguinte, eu estava a comer no meu quarto e a minha prima Sliukree, a irmmais nova de Basma, estava deitada ao meu lado na sua cama. Tenho o sono muito
leve e, por volta das três da manhã, ouvi alguém subir as escadas. Pensei que devia ser Haji, uma vez que o seu quarto ficava do outro lado do corredor. Ele acabava
de entrar em casa e, pela forma como tropeçava, compreendi que tinha bebido. O meu tio não suportava aquele tipo de comportamento em sua casa; ninguém voltava àquela
hora, muito menos bêbado. Como a nossa família era muçulmana, o consumo de álcool era estritamente interdito. Suponho que Haji sentia que já tinha idade suficiente
para ser um homem livre e fazer as suas próprias experiências.
A porta do quarto abriu-se suavemente e senti o meu corpo tornar-se rígido. As nossas duas camas estavam assentes numa pequena plataforma, e era preciso subir dois
degraus para chegar até elas. Vi Haji avançar em bicos dos pés para não acordar a minha prima cuja cama ficava mais próxima da porta. Falhou um degrau, tropeçou
e depois rastejou o resto do caminho até à minha cama. Vi-o estender o pescoço para tentar ver no escuro. Nessa altura murmurou:
- Eh, Waris... Waris.
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O seu hálito tresandava a álcool, confirmando a minha impressão. Permaneci totalmente imóvel no escuro, fingindo dormir. Ele estendeu a mão e passeou-a sobre a minha
almofada. Pensei: Oh, meu Deus, faz com que isto não aconteça! Voltei-me de lado resmungando HA YYUH como se sonhasse, esperando fazer suficiente barulho para acordar
Shukree. Então Haji desencorajou-se e voltou silenciosamente para o seu quarto.
No dia seguinte, fui ter com Basma.
- Preciso de te falar.
Ao ver a minha expressão de pânico, ela compreendeu imediatamente que não se tratava de uma visita habitual, para passar o tempo.
- Entra e fecha a porta
- É sobre o teu irmão Haji...
Eu não sabia como dizer-lhe e rezei para que ela acreditasse em mim. Ela pareceu alarmada: - Que se passa com ele?
A noite passada veio até ao meu quarto às três da manhã.
O que é que ele fez?
Tentou acariciar-me a cara e murmurava o meu nome.
Oh, não! Tens a certeza? Não sonhaste?
Eu bem vejo a forma como ele me olha quando estou a sós com ele. Não sei o que fazer.
- Merda! MERDA! Já sei: agarra na porra de um bastão de críquete e esconde-o debaixo da tua cama. Ou numa vassoura. Não... arranja antes um rolo da massa na cozinha,
esconde-o debaixo da cama e quando ele vier dá-lhe com ele na cabeça. E depois desata a gritar. Grita com todas as tuas forças para que todos te oiçam.
Graças a Deus, ela estava verdadeiramente do meu lado.
Durante todo o dia, rezei para comigo: "Não me obrigues a fazer semelhante coisa. Por favor, faz com que ele não venha ... ".
Eu não queria arranjar problemas. Temia que Haji contasse mentiras aos pais para justificar o seu comportamento e que eles me pusessem na rua. Queria apenas que
tudo aquilo terminasse, que cessassem as brincadeiras, as visitas nocturnas, as carícias furtivas, pois sabia aonde aquilo nos levaria. No entanto, o meu instinto
dizia-me para estar preparada para a batalha caso as minhas preces não resultassem.
Nessa noite, desci à cozinha, agarrei num rolo da massa e, já no meu quarto, escondi-o debaixo da cama. Mais tarde, quando a minha prima estava a dormir, pu-lo junto
a mim e mantive a mão crispada. Repetindo as suas proezas da véspera, Haji entrou no quarto por volta das três da manhã. Deteve-se no umbral da porta e as luzes
do corredor fizeram brilhar os seus óculos. Eu estava deitada, com um olho aberto, e vigiava-o. Ele aproximou-se da
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minha cama, inclinou-se sobre a almofada e deu-me uma pancada no braço. O seu hálito tresandava de tal forma a whisky que eu quase não conseguia respirar, mas não
me movi um centímetro. Em seguida ele ajoelhou-se às apalpadelas e deslizou a mão sob os cobertores, tocou-me na perna e subiu ao longo da coxa até às cuecas.
Tenho de lhe partir os óculos, pensei. eu, para que haja uma prova de que ele esteve aqui. Segurei firmemente o rolo da massa e desferi-lhe um golpe com força na
cara. Ouvi um barulho horrível e depois comecei a gritar: - SAI DO MEU QUARTO, SEU FILHO DA PUTA DE...
Shukree sentou-se na cama, a gritar: - Que se passa?
Alguns segundos mais tarde, ouvi pessoas correrem por toda a casa. Eu tinha-lhe partido os óculos e Haji não conseguia ver um palmo diante do nariz; teve de sair
do quarto de gatas. Deitou-se completamente vestido e fingiu dormir.
Basma chegou e acendeu a luz. Era cúmplice mas fingiu ignorar o que se passava:
- Que se passa aqui?
Shukree explicou-lhe: - Haji esteve aqui, a passear-se de gatas.
Quando a tia Maruim. entrou no quarto apertando o roupão contra si, eu desatei a gritar: Ele esteve aqui! Ele esteve no meu quarto e ontem também! E eu bati-lhe!
Mostrei os óculos em pedaços junto à minha cama.
A minha tia disse secamente: - Shhh... Não quero ouvir nada agora. Voltem para os vossos quartos; vão para a cama.
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FINALMENTE LIVRE
Depois da noite em que eu atingira Haji na cara com o rolo da massa, ninguém lá em casa voltou a mencionar o incidente. Eu poderia pensar que aquelas visitas nocturnas
não haviam passado de um sonho mau, se não tivesse havido aquela enorme mudança: quando me cruzava com Haji no corredor, o seu olhar já não estava carregado de desejo
mas de ódio em estado puro. Graças a Deus, as minhas preces iam ser atendidas, e aquele desagradável período da minha vida chegava ao fim; mas em breve teria outras
razões de preocupação.
O tio Mohammed anunciara-nos que algumas semanas mais tarde tínhamos de voltar para a Somália. Os seus quatro anos na embaixada haviam terminado, íamos voltar
para casa. Quando chegáramos, eu tivera a impressão de que aqueles quatro anos durariam uma eternidade, mas agora não podia acreditar que o tempo passara tão depressa.
Não estava feliz com a ideia de voltar para a Somália. Como todos os africanos que vivem num país rico como a Inglaterra, eu sonhara voltar para a minha terra com
fortuna feita. Num país tão pobre como o meu, as pessoas procuram constantemente uma porta de saída, uma forma de emigrar para a Arábia Saudita, para a Europa ou
para os Estados Unidos, de forma a poderem ganhar algum dinheiro para ajudarem as suas famílias desprovidas de recursos.
E aqui estava eu prestes a voltar para casa sem nada, após quase quatro anos no estrangeiro. Que diria à minha mãe quando chegasse? Que aprendem a cozinhar massas?
Na Somália, enquanto guardasse o meu rebanho de camelos, provavelmente nunca mais veria massas. Que diria ao meu pai: que sabia limpar casas de banho? Ele responder-me-ia:
"O quê? O que é isso de casas de banho?". Ao passo que o dinheiro - a linguagem universal
- era algo que ele poderia compreender; e a minha família nunca tivera muito.
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NOTA DOS DIGITALIZADORES:

Seguem-se 8 páginas com fotografias, que estão devidamente legendadas; optou-se por manter as legendas, como forma de ser fiel ao conteúdo do livro, e permitir saber
o que tais fotos revelam.

Em cima: Waris numa sessão fotográfica no Mali, 1994.
Em baixo: Waris e a mãe, encontro em Galadi, na Etiópia ( junto à fronteira somali), 1995. Foto de Geny PomeroyWaris numa

sessão fotográfica nas Ilhas Virgens Britânicas, 1995. ( 2 fotos )

Em cima: Waris e Herb Ritts numa sessão fotográfica no deserto do Arizona, 1995.
À direita: Waris numa sessão fotográfica na selva mexicana, 1996

À esquerda em cima: Waris em férias no Gabão, África, 1996
Em cima à direita e em baixo : Waris e Dana em férias no Gabão, 1996

direita: Waris em férias em St. John, Ilhas Virgens, Natal de 1997.
Em baixo: Waris fotografada por Koto Bolofo para a edição italiana da Marie Claire, Primavera de 1997.
( Gentilmente cedida pela Marie Claire italiana)

Waris grávida de nove meses, do seu filho Aleeke, fotos de Sharon Schuster ( 2 páginas = 8 fotografias )

À esquerda : Dana e Aleeke em casa, Brooklyn, Janeiro de 1998
Em baixo : Waris numa sessão fotográfica, Primavera de 1998. Fotos de Joe Grant.


Na altura em que os meus tios estavam prontos para regressar à Somália, as minhas economias não passavam de uma insignificância, ganha a custo, considerando o meu
ridículo salário de doméstica. Eu sonhara juntar dinheiro suficiente com o intuito de comprar uma casa para a minha mãe, um lugar onde ela poderia viver sem ter
de se deslocar constantemente, sem ter de trabalhar tão duramente para sobreviver. Não era uma ideia tão disparatada quanto isso: considerando a taxa de câmbio,
era possível comprar uma casa na Somália por dois mil dólares. A fim de concretizar o meu objectivo, queria permanecer em Inglaterra e ganhar mais algum dinheiro.
Se partisse, certamente nunca mais poderia regressar. Mas como conseguir ficar, não fazia ideia. Estava convencida de que as coisas se arranjariam desde que não
fosse obrigada a trabalhar como uma escrava para os meus tios. Claro eles não estavam de acordo.
- Que poderias tu fazer aqui? - exclamou a minha tia. - Uma rapariga de dezoito anos, sem um tecto, sem dinheiro, sem trabalho, sem autorização laboral e que não
fala inglês, é ridículo! Tu voltas connosco.
O tio Mohammed prevenira-nos há muito tempo da data e da hora do avião para Mogadíscio e pedira-nos para nos certificarmos de que os nossos passaportes estavam em
ordem. Assim fiz; desci à cozinha e embrulhei o meu num saco de plástico antes de o enterrar no jardim.
Esperei pela véspera da partida para anunciar que não conseguia encontrar o meu passaporte. O meu plano era simples: sem passaporte, não poderiam levar-me consigo.
Pressentindo algo de errado, o meu tio perguntou-me:
- Bem, Waris, onde poderá estar o teu passaporte? Por onde andaste tu? Onde podes tê-lo esquecido? - Era óbvio que ele conhecia a resposta a estas perguntas na medida
que eu praticamente não saíra de casa durante aqueles quatro anos.
- Não faço ideia. Talvez o tenha deitado ao lixo enquanto limpava.
Eu tentava manter uma aparência séria. Ele ainda era o embaixador e poderia ajudar se quisesse. Eu esperava que ele compreendesse até que ponto tinha vontade de
ficar, não me obrigasse a voltar, mas que, pelo contrário, me ajudasse a obter um visto.
- Então, Waris, que havemos de fazer agora? Não podemos pura e simplesmente deixar-te aqui! - Ele estava furioso por eu o ter colocado naquela situação.
Durante as vinte e quatro horas que se seguiram, jogámos uma guerra de nervos, na espectativa de quem seria o primeiro a ceder. Eu insistia que perdera o meu passaporte,
continuava a afirmar que nada podia fazer por mim.
A tia Maruim teve uma das suas ideias: - Vamos embrulhar-te, meter-te num saco, fazer-te passar clandestinamente! Há muitas pessoas que o fazem!
97
FINALMENTE LIVRE
A sua ameaça alarmou-me. Eu disse simplesmente: - Se fizerem isso, nunca vos perdoarei. Por favor, deixem-me ficar, eu desenvencilhar-me-ei.
- Sim, sim, desenvencilhar-te-ás - respondeu ela num tom sarcástico. - NÃO, NÃO vais desenvencilhar-te.
Vi na sua cara que ela estava muito preocupada, mas faria o necessário para me ajudar? Ela tinha muitos amigos em Londres e o meu tio tinha todas as suas relações
da embaixada. Bastava-lhes um telefonema para me arranjarem um meio de sobrevivência; mas enquanto pensassem ter uma hipótese de me convencer a regressar à Somália,
eu sabia que não se dariam a esse trabalho.
No dia seguinte de manhã, os quatro andares da casa estavam num verdadeiro pandemónio. Todos andavam atarefados a fazer as malas, o telefone tocava e uma multidão
de gente não cessava de entrar e sair precipitadamente. No último andar, eu preparava-me para deixar o meu quartinho nas águas-furtadas, enfiando num saco barato
as poucas coisas que adquirira durante a minha estadia em Inglaterra. Acabei por deitar ao lixo a maioria das minhas roupas de ocasião, decidindo que eram demasiado
feias e que estavam fora de moda. Para quê arrastar atrás de mim um monte de tralha? Eu ainda era uma nómada, viajaria ligeira.
Às onze horas, reunimo-nos todos na sala enquanto o motorista carregava as bagagens no carro. Tudo aquilo me fazia lembrar o dia da minha chegada há tanto tempo
atrás: o motorista, o carro; eu entrara naquela mesma sala, vira o sofá branco e a lareira e conhecera a minha tia. Naquela manhã cinzenta, vira nevar pela primeira
vez. Tudo neste país me parecera então verdadeiramente bizarro.
Acompanhei a minha tia Maruim até ao carro. Ela murmurou, aflita: - O que é que eu vou dizer à tua mãe?
- Diz-lhe que eu estou bem e que em breve terá notícias minhas.
Ela abanou a cabeça antes de subir para o carro. Eu fiquei no passeio, acenando-lhes adeus com a mão, e depois avancei até ao meio da rua para ver o carro afastar-se
e desaparecer.
Não vou mentir: eu estava assustada. Até àquele momento, não pensara que eles me deixariam assim, entregue a mim própria. Mas ali, em plena Harley Street, senti-me
verdadeiramente só. Apesar de tudo, não guardo ressentimentos em relação aos meus tios e continuo a considerá-los como minha família. Eles deram-me a minha oportunidade
levando-me para Londres, e ser-lhes-ei eternamente reconhecida. Quando eles partiram, julgo que pensaram: "Se queres ficar, é agora ou nunca. Vai em frente, faz
o que queres. Mas nós não
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vamos facilitar-te as coisas, porque pensamos que devias voltar connosco". Na perspectiva deles, era uma vergonha para uma jovem viver sozinha em Inglaterra. Fosse
como fosse, eu tomara a minha decisão e, uma vez que escolhera ficar, tinha de o assumir.
Lutando contra o avassalador sentimento de pânico que se apoderava de mim, entrei em casa. Fechei a porta e dirigi-me à cozinha para falar com a única pessoa que
ainda lá estava: o meu velho amigo, o cozinheiro. Ele acolheu-me com bastante frieza:
- Tens de partir hoje, sem falta. Eu sou o único que fica. Tens de ir-te embora acrescentou ele apontando para a porta.
O meu tio acabava de partir e ele já iniciava a sua vingança. O seu ar convencido mostrava bem o enorme prazer que sentia em dar-me ordens. Fiquei encostada ao umbral
da porta por um momento, dizendo para comigo que a casa estava realmente calma agora que toda a gente se fora.
- Waris, agora tens de partir. Quero que desapareças...
- Oh, cala-te! Eu vou. Está bem? Só voltei para buscar o meu saco.
O seu tom era odioso, e começou a uivar como um cão. - Despacha-te então. Depressa. Põe-te a andar. Tens de...
Eu já estava a subir as escadas, sem ligar a menor importância aos seus latidos. O patrão fora-se embora e, até à chegada do novo embaixador, ele era o senhor da
casa. Andei pelas divisões vazias, pensando nos bons e nos maus momentos que ali passara, perguntando-me aonde ia habitar doravante.
Agarrei no meu saco e, depois de ter posto o duffle coat aos ombros, desci os quatro andares e cheguei à porta de entrada. Ao contrário do dia da minha chegada,
estava um tempo magnífico, o sol brilhava e o ar estava fresco como na Primavera. No minúsculo jardim, servi-me de uma pedra para desenterrar o meu passaporte; tirei-o
do saco de plástico e meti-o num bolso do duffle coat. Alisei de novo a terra com as mãos para apagar os vestígios e dirigi-me para a rua. Não pude deixar de sorrir
enquanto caminhava: finalmente estava livre. Tinha toda a vida diante de mim, não tinha para onde ir nem ninguém a quem prestar contas. E sabia que as coisas iam
correr bem.
A embaixada da Somália ficava a dois passos de casa do meu tio. Bati à porta. O porteiro que veio abrir conhecia muito bem a minha família. Tinha mesmo servido por
vezes de motorista ao meu tio.
- Olá, menina. Que faz aqui? O senhor Farah ainda está em Londres?
- Não, partiu. Gostaria de falar com Anna, para saber se poderei trabalhar na embaixada.
Ele desatou a rir antes de voltar a sentar-se na sua cadeira. Pôs as mãos atrás da cabeça e inclinou-se para trás até se encostar à parede.
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Eu estava plantada no meio do hall, e era evidente que ele não tinha a menor intenção de se mover. Como sempre fora muito educado comigo, a sua atitude intrigava-me.
Depois compreendi que o seu comportamento subitamente mudara. Com a partida do meu tio, eu já não era ninguém; era menos que nada e ele sentia um enorme prazer em
fazer-mo sentir.
- Anna está demasiado ocupada para recebê-la - sorriu ele.
- Olhe - disse eu com firmeza -, preciso de falar com ela.
Anna era a secretária do meu tio, e sempre fora muito gentil comigo. Felizmente ouvira-me e saíra do seu gabinete para averiguar o que se passava.
- Waris! Que faz aqui?
- Eu não queria nada voltar para a Somália com o meu tio. Não tinha a menor intenção de regressar. Já não posso viver lá em casa, e perguntava-me se conhecerá alguém
que talvez possa... alguém para quem eu possa trabalhar. Seja no que for. Não tenho exigências. Estou disposta a fazer qualquer coisa.
Bem, minha querida, apanha-me um pouco desprevenida. Onde vai viver? Oh, não sei, mas não se preocupe.
Dê-me um número de telefone para onde eu possa contactá-la.
Ainda não sei onde vou instalar-me. Para esta noite, vou procurar um hotel que não seja muito caro.
Eu sabia que ela me teria convidado para sua casa se o seu apartamento não fosse tão pequeno.
- Mas voltarei para lhe dar o meu número de telefone mais tarde, a fim de poder prevenir-me se souber de alguma coisa.
Está bem, Waris. Tem a certeza de que vai correr tudo bem? Sim, cá me arranjarei.
Pelo canto do olho, vi o porteiro rir como um louco.
- Obrigada. Voltarei mais tarde.
Saí e reencontrei o sol com alívio. Decidi então ir às compras. Até encontrar trabalho, teria de sobreviver com o pouco que economizara a custo com o meu salário
de doméstica. Agora que era uma verdadeira citadina, tinha de procurar algo decente para comprar, um vestido novo para me animar. Fui da embaixada até Oxford Circus,
o bairro dos grandes armazéns. Já lá estivera uma vez com a minha prima Basma, quando chegara a Londres. A tia Maruim mandara-me comprar algumas coisas pois eu não
tinha vestidos de Inverno. Na verdade, possuía apenas um vestido e uma das sandálias de couro que levara para apanhar o avião.
100
Enquanto me passeava por entre as roupas, a quantidade e a variedade de escolha fasci navam-me. A ideia de que poderia ficar ali enquanto quisesse, e experimentar
todos aquele vestidos de todas as cores, estilos e tamanhos, punha-me a cabeça a andar à roda. A ideia de que, pela primeira vez na vida, era responsável pela minha
existência, sufocava-me. Agora não havia ninguém que me gritasse para tratar das cabras, alimentar as crianças, fazer o chá esfregar o chão ou limpar as casas de
banho.
Passei as horas seguintes numa cabina de provas a experimentar toda a espécie de vestidos com a ajuda de duas vendedoras. Utilizando as minhas poucas palavras de
inglês, linguagem gestual, fiz-lhes compreender que queria algo mais comprido, mais curto, mais apertado, mais brilhante. No final da minha maratona, os vestidos
empilhavam-se às dúzia diante da cabina. Uma das vendedoras perguntou-me a sorrir:
- Bem, querida, o que é que decidiu?
Eu era incapaz de escolher, e a ideia de que poderia haver algo de bastante melhor na loja ao lado tornava-me ainda mais hesitante. Antes de me separar de algumas
das minhas preciosas libras, tinha de ter a certeza do que queria. Disse com um ar afável:
- Hoje não comprarei nada, obrigada.
Com os braços cheios de vestidos, as duas pobres vendedoras fitaram-me, incrédulas, depois entreolharam-se desoladas. Passei por elas com um passo majestoso e prossegui
minha missão que consistia em explorar Oxford Street centímetro por centímetro.
Depois de ter percorrido várias lojas, não tinha ainda comprado nenhum vestido, pois, meu prazer consistia apenas em experimentá-los. Ao sair de uma loja, dei-me
conta de que o belo dia primaveril estava a transformar-se num fim de dia de Inverno, e tive consciência de que ainda não sabia aonde iria passar a noite. Entrei
na loja seguinte com aquela ideia na cabeça. Vi uma grande e bela jovem africana que observava uns pulóveres empilhados em cima de um balcão. Tinha ar de ser somali.
Observando-a mais de perto, perguntei-me como deveria abordá-la. Desdobrando um dos pulóveres, sorri-lhe e disse em somali:
- Gostaria de comprar algo, mas não consigo decidir-me; e, no entanto, acredite-me hoje já vi montanhas de roupa.
Começámos a conversar e ela disse-me que se chamava Halwu. Era simpática e ria-se muito.
- Onde vives, Waris? O que fazes na vida?
- Oh, vais-te rir. Vais pensar que sou doida, mas não vivo em parte nenhuma. Não tenho casa desde que a minha família me abandonou esta manhã. Voltaram para a Somália
- Li simpatia no seu olhar. Como vim a saber mais tarde, ela também passara por dificuldades.
- Não queres voltar para a Somália, é isso?
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E Compreendemo-nos sem serem necessárias palavras. Tínhamos saudades do nosso país e das nossas famílias, mas que poderíamos fazer lá? Ser trocadas por camelos?
Tornarmo-nos propriedade de um homem qualquer? Lutar quotidianamente simplesmente para sobreviver?
- É isso. Só que também não sei para onde ir. O meu tio era embaixador, mas acaba de partir e aguardam a pessoa que o virá substituir. Por isso, esta manhã puseram-me
fora, e neste momento não faço ideia onde vou dormir.
Ri-me. Ela fez um gesto como se o movimento da sua mão pudesse varrer os meus problemas.
- Ouve, vivo a dois passos daqui, no lar da YMCA !. É pequena, mas podes lá ficar esta noite. Tenho apenas um quarto, se quiseres cozinhar terás de ir para outro
andar.
- Ooohh, isso seria maravilhoso, tens a certeza?
- Sim, tenho a certeza. Vamos! Senão, que irás fazer?
Fomos até ao quarto dela. O lar da YMCA ficava situado num grande edifício moderno em tijolo. Destinados aos estudantes, os quartos eram simplesmente mobilados com
duas camas individuais e um espaço para os livros. Halwu tinha um enorme e magnífico televisor.
- Oh! Posso ver televisão?
Ela olhou-me como se eu fosse uma extraterrestre.
- Sim, claro. Liga-a.
Deixei-me cair para o chão e olhei para o aparelho avidamente. Ao fim de quatro horas, ninguém me tinha expulsado do quarto como um gato vadio. Curiosa, I-1a1wu
perguntou-me:
- Não vias televisão em casa do teu tio?
- Estás a brincar? Por vezes conseguia dar uma espreitada às escondidas, mas era sempre apanhada: "Outra vez a ver televisão, Waris?". Imitando a voz arrogante da
minha tia, estalei os dedos: "Vamos, volta imediatamente ao teu trabalho. Não te trouxemos para cá para passares o tempo a ver televisão".
Tornámo-nos amigas íntimas, e Halwu começou a tratar da minha educação iniciando-me na vida londrina. Passei a primeira noite no seu quarto, e a seguinte, e ainda
a outra. Depois ela sugeriu-me: - Por que não arranjas um quarto aqui?

1 Young Men's CkIstian Association (Associação dos Jovens Cristãos). Existe uma Associação análoga para as raparigas, mais à frente referida como YWCA (Young Women's
Christian Association). - Os lares de ambas as associações eram, na época, mistos.

- Porque não tenho dinheiro para isso e, como preciso de ir à escola, não teria muito tempo para trabalhar.
Depois perguntei-lhe timidamente: - Tu sabes ler e escrever?
Sim - E falas inglês?
sim. - Eu não sei fazer nenhuma dessas coisas. Tenho de aprender. Essa é a minha primeira prioridade. E se começar a trabalhar, não terei tempo.
- Por que não trabalhas a meio tempo? Poderias estudar o resto do dia. Arranja emprego enquanto vais aprendendo a falar inglês.
- Ajudas-me?
- Claro que sim.
Tentei arranjar um quarto na YMCA. Mas o lar estava completo e havia uma lista de espera. Todos os jovens queriam viver ali pois era barato e muito animado. Havia
uma piscina na olímpica e um ginásio. Acrescentei o meu nome ao fim da lista; mas enquanto esperava, não podia continuar em cima da pobre Halwu. Do outro lado da
rua, havia o lar da YWCA. As residentes eram principalmente pessoas de idade e o ambiente era um pouco deprimente, mas consegui um quarto provisoriamente e pus-me
à procura de trabalho. A minha nova amiga disse-me:
- Por que não começas por procurar aqui?
- Aqui? Que queres dizer?
Ela fez um gesto com a mão. - Há um McDonald's aqui mesmo ao lado.
- Não posso trabalhar lá. Não poderia servir as pessoas. Esqueces-te que não sei falar inglês e que não sei ler. Além do mais, não tenho autorização laboral.
Halwu conhecia todos os meandros. Segui os seus conselhos e fui contratada para limpar a cozinha. Compreendi imediatamente que ela tinha razão. Todos os que ali
trabalhavam tinham os mesmos problemas que eu. A direcção aproveitava-se da nossa situação irregular para nos pagar miseravelmente e não nos concedia os mesmos benefícios
a que os outros tinham direito. Sabiam que, enquanto estrangeiros sem autorização laboral, devíamos passar despercebidos aos olhos das autoridades e que não faríamos
queixa contra eles por infracção à legislação salarial. Desde que se trabalhasse arduamente, pouco lhes importava quem éramos ou de onde vínhamos; tudo se passava
na mais estrita ilegalidade.
No meu novo emprego como ajudante de cozinha no McDonald's, eu podia tirar partido do que aprendera como doméstica: lavava a louça, limpava balcões, esfregava grelhadores,
passava lixívia no chão num esforço permanente para fazer desaparecer todos os vestígios da gordura dos hamburgers. Quando voltava para casa, ao fim do dia, estava
gordurosa
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dos pés à cabeça e tresandava a fritos. Na cozinha, nunca éramos suficientes, mas eu não ousava queixar-me. Nada daquilo tinha importância; pelo menos ganhava a
vida. Sentia-me contente por ter um trabalho e sabia que não estaria ali por muito tempo. Enquanto esperava algo melhor, estava disposta a fazer o que fosse necessário
para sobreviver. Comecei por frequentar os cursos de língua gratuitos para estrangeiros, melhorando o meu inglês e aprendendo a ler e a escrever. Era a primeira
vez desde há anos que a minha vida não era inteiramente dedicada ao trabalho. Por vezes, Halwu levava-me aos clubes nocturnos onde todos pareciam conhecer-se. Ela
falava, ria, era irresistivelmente engraçada e tão cheia de vida que todos queriam estar perto dela. Uma noite, tínhamos saído e dançáramos durante horas, até que
subitamente me apercebi de que estávamos rodeadas de homens. Murmurei ao ouvido de Halwu:
- Caramba! São todos admiradores nossos?
- Oh, sim - riu ela -, agradamos-lhes muito.
Aquilo espantou-me. Perscrutei os seus rostos e deduzi que ela tinha razão. Eu ainda não tivera nenhum namorado, simplesmente atraíra a atenção de alguns tipos bizarros
do género do meu primo Haji - o que não era muito lisonjeiro para mim.
Nos últimos quatro anos, eu considerara-me simplesmente como uma Senhora Ninguém, a criada. E agora todos aqueles homens faziam fila para dançar connosco. Pensei:
Waris, minha filha, finalmente conseguiste!
Curiosamente, enquanto eu me sentia atraída por negros, eram os brancos que se mostravam mais interessados em mim. Esquecendo a minha rígida educação africana, estava
a tornar-me faladora, obrigando-me a conversar com toda a gente: pretos e brancos, homens e mulheres. Se queria desenvencilhar-me sozinha, pensava para comigo, tinha
de aprender as técnicas de sobrevivência próprias daquele novo mundo, que eram necessariamente diferentes das que aprendera no deserto. Precisava de aprender a ler
inglês e a comunicar com todo o tipo de pessoas. Os meus conhecimentos relativos a camelos e cabras não me ajudariam a manter-me viva em Londres.
No dia seguinte, Halwu completou as suas lições nocturnas com comentários. Passava em revista a lista de pessoas que encontráramos na noite anterior, explicando
os seus motivos, as suas personalidades, dando-me um curso intensivo sobre a natureza humana. Falava-me de sexo, dizia-me o que ia na cabeça daqueles homens, aquilo
com que eu devia ser cautelosa, e os problemas específicos com que se defrontavam as jovens africanas. Nunca ninguém me falara naquelas coisas.
- Diverte-te, Waris, fala, ri e dança com esses tipos, e depois volta para casa. Não os deixes convencer-te a fazer amor com eles. Eles não sabem que és diferente
de uma jovem inglesa; ignoram que foste excisada.
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Após vários meses de espera para obter um quarto na YMCA, soube que uma jovem queria partilhar o dela. ]Era estudante e não tinha meios para pagar a totalidade da
renda. Para mim, que tinha os mesmos problemas financeiros, era perfeito, porque o quarto era suficientemente espaçoso para as duas. Halwu ficou minha grande amiga
e fiz outras amigas entre as jovens que habitavam o lar, frequentava a escola, progredia nos meus conhecimentos de inglês e continuava a trabalhar no McDonald's.
A minha vida decorria de uma forma tranquila e regular, e não podia imaginar que estava prestes a mudar de uma forma tão radical.
Uma tarde, após _o meu trabalho no McDonald's e ainda coberta de gordura, decidi sair pelo balcão onde os clientes faziam as suas encomendas. À cabeça de uma das
filas, esperando pelo seu Big Mac, vi o tipo do rabo-de-cavalo, o da All SouIs Church School, acompanhado da sua filha. Cumprimentei-os de passagem.
- Eh, é mesmo você!
Eu era claramente a última pessoa que ele esperava encontrar no McDonald's. Depois acrescentou apressadamente: - Como está?
- óptima, óptima.
inclinei-me para a pequena amiga de Sophie?- E tu, como vais? Eu gostava de mostrar o meu Inglês.
O pai respondeu por ela: - Ela está óptima.
- Está a crescer depressa, não é verdade? Bem, tenho de ir andando. Adeus.
-Espere! Onde vive?
- Adeus.
Sorri-lhe. Não queria falar-lhe. Ainda não confiava nele - sabia que ele me apareceria logo à porta de casa,
No regresso ao lar da YMCA, decidi consultar Halwu-a-sabichona. a propósito daquele homem misterioso. Tirei o meu passaporte de uma gaveta e retirei de entre as
páginas o cartão de visita de Malcolm Fairchild. Depois desci para ver Halwu e perguntei-lhe:
- Diz-me, o que faz este homem? Tenho o seu cartão de visita há muito tempo. Sei que aqui diz fotógrafo de moda, mas que significa isso ao certo?
Halwu tirou-me o cartão das mãos.
- É um fotógrafo que trabalha com modelos. Sabes, eu gostaria bastante de ser modelo. Quem é este tipo? Como obtiveste o seu cartão?
105
- Oh, é um tipo que encontrei, mas que não me inspira confiança. Um dia deu-me o seu cartão e seguiu-me até casa do meu tio. Falou com a minha tia, mas ela ficou
furiosa com ele. Não compreendi exactamente o que ele pretendia.
- Por que não lhe telefonas a perguntar?
- Tens a certeza? Achas que devo fazê-lo? Por que não vens comigo? Poderias falar-lhe e ver de que se trata. O meu inglês está longe de ser perfeito.
- Está bem, vamos telefonar-lhe.
Precisei de vinte e quatro horas para arranjar coragem e tomar a decisão. Enquanto descíamos à cabina telefónica, o meu coração batia desordenadamente, fazendo ressoar
os meus tímpanos como tambores. Halwu meteu uma moeda na ranhura e ouvi um sinal. Segurando o cartão de visita numa mão, ela marcou o número com a outra. Tinha dificuldade
em ler pois o hall estava escuro. Depois fez-se um momento de silêncio.
- Posso falar com o senhor Malcolm Fairchild? - Após algumas palavras de introdução, Halwu foi direita ao assunto: - Como podemos saber que o senhor não é um tarado
sexual? Que não tenciona matar a minha amiga?... Sim, mas nós não sabemos nada a seu respeito. Onde vive?... Sim, hm hm... Sim. - Halwu escrevinhava num pedaço de
papel e eu tentava ler por cima do seu ombro.
- O que é que ele diz?
Ela fez-me sinal para me calar. - Muito bem, de acordo. Está bem... Assim faremos. Desligou e inspirou profundamente. - Ele disse: "Se não confiam em mim, por que
não vêm ambas até ao meu estúdio? Verão onde eu trabalho. Se não querem, não posso obrigar-vos".
Levei os dois punhos à boca. - E então? Vamos lá?
- Parece que sim!
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A MODELO
No dia seguinte, fomos inspeccionar o estúdio de Malcoln Fairchild. Eu não fazia ideia do que iria descobrir mas, quando a porta se abriu, tive a impressão de penetrar
num outro mundo. As paredes estavam repletas de posters e cartazes com mulheres bonitas. Dei uma volta pela sala observando todas aquelas caras sofisticadas, com
murmúrios de assombro. Compreendi imediatamente, como naquele dia em Mogadíscio em que ouvira o tio Mohammed dizer à tia Saliru que queria levar uma jovem consigo
para Londres - é agora ou nunca. Esta é a minha oportunidade, é aqui que eu pertenço, é isto o que eu quero fazer.
Malcolm surgiu e cumprimentou-nos. Serviu-nos chá e sugeriu-nos que nos descontraíssemos. Já sentado, dirigiu-se a Halwu: - Quero que saiba que pretendo apenas fotografá-la.
Apontou para mim com o dedo. - Segui esta jovem durante mais de dois anos e nunca enfrentei tantas dificuldades apenas para tirar uma fotografia.
Eu olhei-o boquiaberta. - É só isso? Quer apenas fotografar-me? Tirar uma fotografia como estas aqui? - Apontei para os posters e para os cartazes.
Ele voltou-se para mim. - Sim, pode acreditar em mim, é apenas isso.
Com o indicador, ele desenhou uma linha pelo centro do seu nariz. - Quero apenas metade do seu rosto.
Depois disse a Halwu: - Ela tem um perfil lindo.
Todo este tempo perdido!, pensei. Ele seguiu-me durante dois anos e bastavam-lhe dois segundos para me dizer que queria simplesmente fotografar-me.
- Por mim, não me importo de fazer isso.
Subitamente, lembrei-me do que me acontecera quando ficara a sós com certos homens. - Mas quero que Halwu esteja presente!
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Pousei a mão no seu braço, e ela aprovou com um aceno de cabeça.
- Quero que ela esteja presente quando me tirar a fotografia.
Ele olhou para mim, perplexo. - Bem, de acordo. Ela também pode vir...
Eu estava de tal forma excitada que tinha a impressão de já não estar a tocar no sofá onde me sentava.
- Venha depois de amanhã, às dez horas, teremos alguém para a maquilhar.
Voltámos ao estúdio de Malcoln Fairchild dois dias depois. A maquilhadora fez-me sentar e começou a trabalhar-me com algodão, escovas, esponjas, cremes, pinturas
e pós, massajando-me o rosto com as pontas dos dedos e puxando-me a pele. Eu ignorava o que ela estava a fazer, mas permaneci sentada sem me mover e observava-a
enquanto ela fazia o seu estranho trabalho com os seus materiais também estranhos. Recostada no seu sofá, Halwu ria. De vez em quando eu olhava para ela e encolhia
os ombros ou respondia aos seus sorrisos, mas a maquilhadora repreendia-me pedindo-me para não me mover.
Ao fim de um bocado, ela recuou um passo e, com as mãos nas ancas, contemplou a sua obra com evidente satisfação.
- Veja-se ao espelho.
Levantei-me para me ver. Uma metade da minha cara, transformada pela maquilhagem, estava dourada, sedosa e clara. Do outro lado, era a Waris de sempre.
- Uau! Vejam-me só! Mas por que fez apenas num dos lados?
- Porque ele quer fotografá-la apenas de perfil.
- Ali...
Conduziu-me- ao estúdio, onde Malcolm me instalou num tamborete. Rodei no assento para estudar o quarto escuro repleto de objectos que nunca vira antes: a máquina
fotográfica, os projectores, as baterias e os fios que se arrastavam por toda a parte parecendo cobras. Malcolm fez-me girar até eu ter a face direita voltada para
a máquina, a que estava maquilhada.
- Muito bem, Waris. Feche a boca e olhe a direito em frente. Levante o queixo. Isso... Esplêndido...
Ouvi um clique seguido de um estrondo que me fez sobressaltar. Durante uma fracção de segundo, a luz dos flashes confundiu-me, dando-me a impressão de ser outra
pessoa. Subitamente, imaginei ser uma dessas estrelas de cinema que vira na televisão, sorrindo para as câmaras ao sair de uma limusina numa noite de estreia. Malcolm
retirou um rectângulo de papel da máquina e olhou para o relógio.
- Que está a fazer?
108
Estou a cronometrar o tempo de revelação.
Ele avançou para mim, sob as luzes, e retirou suavemente o rectângulo de papel. Vi o rosto de uma mulher aparecer gradualmente. Quando ele me estendeu a polaróide,
tive dificuldade em reconhecer-me. Já não parecia Waris a empregada, mas sim Waris a modelo. Maquilhadora e fotógrafo haviam-me transformado numa criatura fascinante,
parecida com as que se viam nos posters e nos cartazes da sala de entrada de Malcolm.
Mais tarde nessa semana, quando o rolo foi revelado, Malcolm mostrou-me o produto acabado. Dispôs os diapositivos sobre uma mesa luminosa; achei-os muito bonitos.
Perguntei-lhe se poderia tirar-me mais fotografias, mas ele respondeu-me que isso seria demasiado caro e que infelizmente não poderia fazê-lo. Em compensação, propôs-se
oferecer-me exemplares da melhor fotografia que tivesse tirado.
Dois meses mais tarde, Malcolm telefonou-me para o lar da YMCA: - Não sei se está interessada em tornar-se modelo, mas sei de pessoas que gostariam de a conhecer.
Os responsáveis de uma agência viram a sua fotografia no meu catálogo e gostariam que você lhes telefonasse. Se quiser, pode assinar um contrato e eles arranjam-lhe
trabalho.
- Está bem... Mas tem de vir comigo... Senão, não tenho coragem de ir sozinha. Vai comigo?
- Não, não é possível. Vou dar-lhe o endereço deles.
Escolhi cuidadosamente o que vestiria para ir a esse importante encontro na Agência de Modelos Crawford. Como era Verão e estava calor, escolhi um vestido de mangas
curtas com decote em bico. Nem curto nem comprido, chegava-me a meio da perna e era terrivelmente feio.
Entrei na agência com o meu vestido vermelho barato e os meus ténis brancos, e pensei: Desta vez é que é. Estou a conseguir! Na verdade, eu estava com um ar absolutamente
miserável. Mas apesar de ter vontade de me enfiar pelo chão abaixo cada vez que me lembro daquele dia, o melhor é não pensar até que ponto o meu ar era pindérico,
porque na altura era o meu vestido mais bonito e, fosse como fosse, não teria meios para comprar outro.
A recepcionista perguntou-me se eu tinha fotografias, e eu respondi-lhe que tinha apenas uma. Apresentou-me a uma mulher de uma beleza clássica, elegantemente vestida.
Veronica fez-me entrar no seu escritório e pediu-me que me sentasse em frente dela.
- Que idade tem, Waris?
- Sou nova!
Foram as primeiras palavras que me vieram à cabeça e deixei-as sair. - A sério, sou nova. Estas rugas - apontei para o canto dos meus olhos - são de nascença.
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Ela sorriu. - Não faz mal.
Veronica começou a preencher formulários anotando todas as minhas respostas. - Onde vive?
- Oh, vivo na Y.
Ela franziu o sobrolho. - Onde?
- No lar da YMCA.
, - Está empregada?
- sim.
- Onde?
- McDonald's.
- Muito bem... Tem alguma experiência como modelo? ,- Sim.
- Qual?... Uma longa experiência?
- Não. Sei que é o que quero fazer.
Repeti esta frase várias vezes para deixá-la bem clara.
- Muito bem. Tem algum álbum?... Fotografias?
- Não.
Tem família em Inglaterra? Não.
Onde está a sua família? Em África.
Foi lá que nasceu? Sim, na Somália.
Muito bem. Portanto não tem ninguém aqui, em Inglaterra?
- Não, ninguém da minha família.
- Bem, há um casting a decorrer neste preciso momento e é necessário que vá lá.
Eu tinha dificuldade em compreendê-la. Levei algum tempo a tentar compreender o sentido da sua última frase, em vão. - Desculpe, não compreendi.
- Um c-a-s-t-i-n-g - disse ela lentamente.
- O que é um casting ?
- É uma entrevista. Quando se concorre a um emprego e nos fazem uma entrevista... Está bem? Uma entrevista? Compreende?
Respondi que sim, mas estava a mentir. Não fazia a menor ideia do que aquilo queria dizer. Deu-me o endereço e pediu-me que fosse imediatamente para lá.
- Vou telefonar-lhes a dizer que vai a caminho. Tem dinheiro para o táxi?
- Não, mas posso ir a pé.
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Não, não. É demasiado longe. Muito longe. Tem de apanhar um táxi. Táxi. Está bem? Tome, aqui tem dez libras. Telefone-me quando tiver acabado. Está bem?
Já no táxi que me conduzia ao outro lado da cidade, eu sentia-me totalmente eufórica. Oh, oh, oh, finalmente vou conseguir! Vou ser modelo! E depois, compreendi
que me esquecera de uma coisa: não tinha perguntado a Veronica em que consistia o trabalho. Oh, mas não tinha importância. Eu sair-me-ia bem porque era sem dúvida
uma mulheraça bonita!
Quando cheguei à morada indicada, deparei com um estúdio fotográfico. Abri a porta; o local estava apinhado de modelos profissionais. Todas as divisões estavam repletas
de mulheres de pernas gigantescas. Pavoneavam-se como leoas preparando-se para o ataque, faziam-se bonitas diante dos espelhos, inclinavam-se para a frente para
abanarem melhor as cabeleiras, enchiam as pernas de maquilhagem para parecerem bronzeadas. Deixei-me cair numa cadeira, cumprimentei a rapariga que estava sentada
ao meu lado e murmurei:
-...Hmm, qual é o trabalho?
- O calendário Pirelli.
- Hmm - abanei a cabeça com ar de entendida. - O calendário Prulli. Obrigada.
Que raio era isso... o calendário Prulli? Tinha os nervos em franja, era incapaz de me sentar tranquila, cruzava e descruzava as pernas e torcia-me na cadeira, até
ao momento em que uma assistente veio informar-me de que chegara a minha vez. Fiquei paralisada durante alguns segundos.
Depois, voltando-me para a minha vizinha, disse-lhe: - Pode ir. Estou à espera de uma amiga.
Repeti esta cena cada vez que a assistente vinha chamar as candidatas, até já não haver nenhuma na sala. Tinham-se todas ido embora. Finalmente, a assistente encostou-se
à parede e disse-me: - Vamos, chegou a sua vez.
Eu encarei-a e pensei: Agora chega, Waris. Afinal decides-te ou não? Vamos, levanta-te e vai lá.
Segui a assistente até ao estúdio. Um homem cuja cabeça estava escondida sob o pano preto de uma máquina fotográfica agitou uma mão e gritou: - Ali. Onde está aquela
marca.
- Marca?
- Sim, ponha-se junto da marca.
Finalmente compreendi o que ele queria.
- Muito bem. Fique aí... Muito bem. Levante a camisola.
Pensei: Devo estar a ouvir mal. Senti vontade de vomitar. - A camisola?
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O fotógrafo tirou a cabeça de debaixo do pano preto, fitou-me como se eu fosse completamente idiota e disse, irritado: - Sim. Tire a camisola. É para isso que cá
está, não?
- Mas eu não tenho soutien.
- óptimo, assim poderemos ver-lhe os seios.
- Não! - Mas que história era aquela? Os meus seios! Fosse como fosse, eu não tinha camisola para tirar, a única coisa que tinha a cobrir-me era o meu vestido vermelho.
Que julga este imbecil que eu ia fazer? Tirá-lo e ficar apenas com o raio das cuecas e ténis?
- Não? Não? Elas morrem todas de inveja para participarem neste casting e a sua resposta é não?
- Não, não, lamento. Um erro, um erro. Enganei-me - e, apavorada, corri para a porta. Quando passei por uma série de polaróides espalhadas pelo chão, baixei-me para
as examinar.
O fotógrafo ficou boquiaberto durante alguns segundos. Depois virou-se e chamou por sobre o ombro: - Oh, meu Deus, nunca vi nada assim! Terence, temos aqui um pequeno
problema.
Um homem corpulento e espadaúdo, de cabelos espessos e grisalhos e faces rosadas, entrou no estúdio, observou-me com curiosidade e sorriu. - Ah sim? Que se passa?
Levantei-me muito direita e as lágrimas vieram-me aos olhos. - Não. Isso é coisa que
não posso fazer. Não faço isso. - Apontei para a foto de uma mulher nua da cintura para cima.
Primeiro senti-me desapontada. Lá se ia o meu entusiasmo, o meu sonho de ser modelo. O primeiro trabalho que me propõem, e querem logo que eu me dispa! Depois comecei
a ficar zangada, furiosa, e comecei a insultá-los em somali: - Vocês não passam de uns filhos da puta nojentos! Uns merdas! Uns porcos! Fiquem com a vossa merda
de trabalho!
- Que estás pr'aí a dizer? Ouve, não tenho tempo para isso agora...
Mas eu já estava a correr para a porta e fechei-a com tal estrondo que quase saltou nos gonzos. Chorei durante todo o caminho de regresso a casa, enquanto pensava:
Eu sabia que havia algo de profundamente horrível nisto de ser modelo.
Nessa noite, estava eu deitada na minha cama, exausta de infelicidade, quando a minha companheira de quarto me veio dizer que me chamavam ao telefone. Era Veronica,
da Agência Crawford. Peguei no auscultador e vociferei:
- Você de novo! Não quero falar com vocês. Vocês... vocês embra... imbra...
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estava a tentar pronunciar embaraçaram-me, mas nem sequer conseguia expeli-la. terrível! Foi muito mau! Eu não quero fazer isso! Não quero voltar a vê-los!
- Está bem, Waris, agora acalme-se. Sabe quem era o fotógrafo que esteve consigo hoje?
- Não...
- O nome Terence Donovan diz-lhe alguma coisa?
- Não.
- Bem, tem algum amigo inglês?
- Sim.
- Todos os ingleses sabem quem é Terence Donovan. É o fotógrafo da família real, da princesa Diana e de todas as top-models. Ele quer voltar a vê-la, gostaria de
a fotografar.
- Ele pediu-me para me despir!
- Você não me disse nada disso!
- Eu sei. Bem, estávamos muito apressados. Pensei apenas que era um trabalho.
Expliquei a Donovan que você não fala muito bem inglês e que a sua cultura lhe proíbe este tipo de coisa. Mas trata-se do calendário Pirelli, Waris. Uma vez publicado,
não faltarão propostas de trabalho. Costuma comprar revistas de moda como a Vogue ou a Elle ?
- Não, são demasiado caras. Vejo-as nas bancas de jornais mas volto a pô-las no sítio.
- Está bem, mas já as viu? É esse o tipo de trabalho que irá fazer. Terence Donovan é o melhor. Se quer ser modelo, tem de aceitar este trabalho. Depois disto, fará
o que entender e ganhará muitíssimo dinheiro.
- Não me vou despir.
Ouvi-a suspirar. - Waris, onde é que já trabalhou?
- No McDonald's.
- Quanto é que eles lhe pagam?
Eu disse-lhe.
- Bem, por este trabalho o Donovan pagar-lhe-á mil e quinhentas libras por dia.
- Tudo isso para mim? Para mim?
- Sim. E além disso, dar-lhe-á oportunidade de viajar. As sessões de trabalho serão em Bath. Não sei se já alguma vez lá foi, mas é um lugar de sonho. Ficará instalada
no Royalton. - acrescentou ela, como se eu soubesse o que aquilo era. - Então, vai aceitar ou não?
Ela tinha-me convencido. Se ia ganhar assim tanto dinheiro, em breve economizaria suficiente para ajudar a minha mãe.
- Está bem. Quando é que ele quer ver-me?
- Que tal amanhã de manhã?
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- E só tenho de tirar a camisola, apenas isso? Isto é, tem a certeza de que por mil e quinhentas libras não terei de dormir com o tal senhor?
- Não, não. Não há nenhuma armadilha. Nada disso.
- Ou... você sabe, querer que eu afaste as pernas ou porcarias desse tipo? Se é isso, diga-me já.
- Tem apenas de tirar a camisola. Mas lembre-se: amanhã ele fará apenas uma polaróide. Depois dir-lhe-á se foi ou não escolhida para o trabalho. Portanto, seja simpática...
No dia seguinte de manhã, quando cheguei ao estúdio, Terence Donovan olhou para mim e desatou a rir. - Oh, você de novo. Venha por aqui. Como se chama?
Terence mostrou-se extremamente paciente comigo. Era pai de família e compreendera que eu não passava de uma criança assustada que precisava de ajuda. Ofereceu-me
chá e mostrou-me algumas das fotografias que fizera com algumas das mulheres mais bonitas do mundo.
- Siga-me. Vou mostrar-lhe mais fotografias.
Passámos à divisão contígua, repleta de estantes e de armários com gavetas. Sobre uma mesa estava um calendário. Terence folheou-o. Cada página tinha a fotografia
de uma mulher diferente de uma beleza deslumbrante.
- É o calendário Pirelli do ano passado. Faço-os todos os anos, mas este ano será diferente: apresentará apenas mulheres africanas. Em algumas das fotografias as
modelos estarão vestidas, noutras não.
Falou-me de tudo, explicando-me como se desenrolava o trabalho do princípio ao fim. E compreendi que não estava perante um tipo doente ou um velho tarado.
- óptimo. Agora, vamos tirar essa polaróide. Está preparada?
Desde que Veronica me informara da quantia que iria receber, eu estava preparada. Mas, naquele momento, também me sentia descontraída. - Sim, estou pronta.
A partir desse momento, tornei-me uma verdadeira modelo profissional. Coloquei-me em cima da marca - whoosh - e lá se foi a camisola; olhei a direito para a objectiva
com absoluta confiança. Perfeito! Quando Terence me mostrou a polaróide, tive a impressão de estar de novo em África. A fotografia era a preto e branco, muito sóbria
e honesta, nada vulgar ou pirosa, e de forma alguma pornográfica. Era a Waris que crescera no deserto, uma jovem expondo os seus pequenos seios ao sol.
Quando voltei ao lar nessa noite, tinha uma mensagem da agência dizendo-me que fora escolhida e que partia para Bath na semana seguinte. Veronica deixara-me o seu
número pessoal. Telefonei-lhe para lhe dizer que não podia deixar o meu emprego no McDonald's,
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uma vez que não sabia quando Terence Donovan me pagaria. Ela salvou-me a vida respondendo-me que, se eu precisava de dinheiro, a agência poderia dar-me um avanço.
Desde esse dia, nunca mais voltei a pôr os pés num McDonald's. Após a minha conversa com Veronica, andei por todo o lar a falar do meu novo emprego, não só com os
meus amigos, mas também com todos os que me quisessem ouvir. Halwu disse-me:
- Oh, pára! Pelo amor de Deus, pára de te gabares! Vais mostrar as maminhas, não é?
- Sim, mas por mil e quinhentas libras!
Por essas coisinhas insignificantes? Devias ter vergonha! - riu ela.
- Não se trata disso. É mesmo maravilhoso! Não há nada de sujo nisto... e vamos para Bath e ficaremos num grande hotel.
- Bem, não quero ouvir falar mais no assunto, pára de contar a toda a gente, está bem?
Na noite anterior à nossa partida, não consegui pregar olho. Queria que o dia nascesse mais depressa. Preparara o meu saco e o meu duffle coat antes de me deitar
e pusera-os diante da porta. Terence Donovan previra uma limusina para me conduzir a Victoria Station. Era lá que a equipa - fotógrafos, assistentes, director artístico,
quatro outros modelos, a maquilhadora, o cabeleireiro e eu - se reuniria antes de apanharmos o comboio para Bath. Eu fui a primeira a chegar à estação. A segunda
foi Naomi Campbel.
Quando chegámos a Bath, fomos directamente para o Royalton e fiquei estupefacta ao constatar que tinha um enorme quarto só para mim. Mas na primeira noite Naomi
veio perguntar-me se poderia dormir comigo. Ela era muito jovem - tinha cerca de dezasseis ou dezassete anos - e adorável, e estava com medo de ficar sozinha. Eu
respondi-lhe que sim, porque gostava de ter companhia.
- Não lhes digas nada, está bem? Se eles souberem que estão a desperdiçar dinheiro pagando por um quarto onde não durmo, ficarão furiosos.
- Não te preocupes, podes ficar aqui. - A minha experiência pessoal levou-me naturalmente a desempenhar o meu papel de mãe. Na verdade, as minhas amigas chamavam-me
mama, porque eu agia como uma mãe em relação a todos. - Eu não direi a ninguém, Naomi.
Quando começámos a trabalhar na manhã seguinte, duas raparigas começavam pela maquilhagem e pelo cabeleireiro, e depois, enquanto lhes tiravam fotografias, outras
duas tomavam o seu lugar. Da primeira vez pedi ao cabeleireiro para me cortar os cabelos muito curtos. Naquela altura, eu era ligeiramente rechonchuda para modelo
porque me alimentava desde há vários meses com a suculenta carne do McDonald's. Por isso queria ter os cabelos curtos para parecer mais à moda. O cabeleireiro cortou,
cortou, até me restarem apenas dois ou três centímetros. Então alguém disse: - Ooohh, estás tão diferente!
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Eu queria mesmo chocar as pessoas. Por isso, disse ao cabeleireiro: - Sabe que mais? Quero que fique loiro.
- Meu Deus! Bem, não sou eu que o vou fazer! Ficaria com um ar malvado ou louco. Naomi Campbel riu. - Waris, sabes que mais? Um dia serás famosa. E nesse dia não
me esqueças, está bem?
Claro que foi o inverso que aconteceu, ela é que se tornou famosa.
Trabalhámos assim durante seis dias e eu não podia acreditar que estivesse a ser paga por aquilo. Todas as noites, depois do trabalho, perguntavam-me o que eu gostaria
de fazer, e eu respondia invariavelmente: ir às compras. Punham a limusina à minha disposição e o motorista conduzia-me aonde eu queria; depois voltava para me buscar.
Finalmente, foi uma das minhas fotografias a escolhida para a capa do calendário, e essa honra surpreendente valeu-me um acréscimo de publicidade.
Quando regressei a Londres, saltei para a limusina que me esperava na estação e pedi ao motorista para me levar à Agência Crawford. Quando entrei pela porta do seu
gabinete, Veronica disse-me:
- Imagine! Há outro casting para si e é mesmo aqui na esquina ao fim da rua! Mas despache-se, tem de ir já.
Eu protestei, argumentando que estava cansada. - Irei amanhã.
- Não, não. Amanhã será demasiado tarde. Procuram Bond Giris para um novo filme de James Bond, Risco Imediato, com Timothy Dalton. Deixe aqui a sua bagagem e vá
lá. Alguém irá acompanhá-la.
Um dos rapazes da agência acompanhou-me até à esquina da rua vizinha e mostrou-me um edifício: - Está a ver aquela porta ali, onde estão muitas pessoas? É aí.
Tratava-se de uma réplica do casting com Terence Donovan, mas em pior. No interior do edifício havia um exército de raparigas de pé, inclinadas, sentadas, a conversar,
entreolhando-se ou fazendo poses.
Uma assistente anunciou-me: - Pedimos a todas as candidatas para dizerem algumas palavras.
Aquela má notícia teve em mim o efeito de uma bomba, mas disse para comigo que agora eu era uma modelo profissional, que acabava de fazer o calendário Pirelli com
Terence Donovan, e que por isso estava apta a enfrentar qualquer situação. Quando chegou a minha vez, a assistente fez-me entrar num estúdio onde me pediram para
me postar sobre uma marca.
- Devo dizer-vos desde já que não falo muito bem inglês - comecei por dizer.
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Alguém me estendeu um cartão com deixas. - Não faz mal, leia apenas algumas linhas.
Oh, meu Deus, e agora! Tenho de lhes confessar que não sei ler? Não, é de mais, é demasiado humilhante. Não consigo. - Desculpem-me, tenho de sair... Volto já.
Saí do estúdio e fui à agência buscar o meu saco. Só Deus sabe quanto tempo os responsáveis pelo casting de James Bond me esperaram antes de compreenderem que eu
não voltaria. Expliquei a Veronica que ainda não tinha feito o casting, mas que vinha buscar as minhas coisas porque a sessão ameaçava prolongar-se. Nessa altura
eram treze ou catorze horas. Voltei a casa para deixar o saco, e em seguida pus-me à procura de um cabeleireiro. Encontrei um próximo do lar da YMCA. À entrada,
fui recebida por um cavalheiro que me perguntou o que podia fazer por mim.
- Uma descoloração.
O cabeleireiro franziu o sobrolho. - Bem, é possível, mas demora tempo e nós fechamos às oito.
- óptimo, então temos até às oito.
- Sim, mas temos outros clientes antes de si.
Supliquei-lhe até ele ceder, mas quando me aplicou a água oxigenada, arrependi-me no mesmo instante de ter insistido. Tinha os cabelos tão curtos que os produtos
químicos me queimavam o couro cabeludo. Tive a impressão de que a pele do meu crânio se desfazia em lascas, mas cerrei os dentes e esperei que tudo terminasse. Quando
o cabeleireiro me lavou os cabelos, tornaram-se cor de laranja. Foi necessário repetir a operação várias vezes. À segunda, os meus cabelos ficaram amarelos; à terceira,
tornei-me finalmente loura. Gostei bastante do resultado, mas quando saí para a rua dois rapazes pequenos agarraram-se à mão da mãe a gritar:
- Mãe, mãe! Mãe, o que é aquilo? É um homem ou uma mulher? Ora esta!, pensei. Terei cometido um erro? Estou a assustar as crianças. Quando cheguei ao lar, decidi
que me estava nas tintas, pois o meu cabelo não era para agradar às criancinhas. Há muito tempo que tinha vontade de ser loura e achava o resultado absolutamente
fabuloso.
Quando cheguei a casa, tinha uma série de mensagens da agência no gravador: Onde está? Estão todos à sua espera no casting! Vai voltar? Eles continuam interessados
em vê-la, estão à sua espera... Como a agência estava fechada, telefonei para casa de Veronica.
- Waris! Onde diabo se enfiou? Eles pensaram que tinha ido à casa de banho! Prometa-me que volta lá amanhã de manhã.
Obrigou-me a aceitar que voltaria lá na manhã seguinte.
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Claro que aquilo que eu omiti a Veronica já as pessoas no casting tinham reparado logo: que ontem eu era uma jovem negra como as outras, mas que hoje era uma somali
loura. Toda a gente da produção parou para me observar.
- Uau! É espantoso! Fizeste isso ontem à noite?
- Sim.
- Caramba! Adoro. Adoro. Não mudes outra vez, está bem?
- Acredita, não quero passar por essa tortura outra vez tão cedo. O meu couro cabeludo é agora louro.
Retomámos o teste onde o deixáramos na véspera.
- Está preocupada por causa do seu inglês, é esse o problema?
- Sim. - Ainda não conseguia confessar-lhes que não sabia ler.
- Muito bem. Ponha-se ali, olhe para a direita, depois para a esquerda, diga o seu nome, o seu país de origem, o nome do seu agente e é tudo.
Aquilo eu podia fazer.
Ao sair, como estava a dois passos da agência, pensei que seria engraçado ir mostrar-lhes o meu novo cabelo. Ficaram furiosos.
- Que raio fez você ao cabelo?
- Está bonito, não acham?
- Oh, meu Deus, não, não está nada bonito! Nunca mais poderemos arranjar-lhe contratos! Waris, devia ter-nos consultado antes de alterar a sua aparência a esse ponto.
O cliente tem de saber com o que conta. Já não lhe cabe só a si decidir o que fazer com os seus cabelos.
No entanto, o produtor e o realizador de James Bond adoraram os meus cabelos louros, e fui escolhida para ser uma das Bond Girls. A partir desse dia, as pessoas
da agência puseram-me uma alcunha: Guinness. Porque eu era escura com a parte de cima branca.
Sentia-me terrivelmente excitada com a ideia da minha estreia no cinema, até ao dia em que Veronica me anunciou: - Waris, tenho uma boa notícia para si. Risco Imediato
vai ser rodado em Marrocos.
Fiquei gelada. - Sabe, tenho algo a dizer-lhe. Teria preferido nunca ter de o fazer, mas infelizmente... Recorda-se do dia em que me contratou, quando me perguntou
se eu tinha passaporte? Na verdade, tenho passaporte, mas o meu visto perdeu a validade, e se eu sair de Inglaterra, não poderei regressar.
- Waris, você mentiu-me! Para ser modelo, precisa de um passaporte em ordem, senão não poderemos arranjar-lhe trabalho. Faz parte desta profissão andar permanentemente
em viagem. Temos de cancelar o nosso contrato.
- Não, não, não faça isso! Eu vou pensar numa solução.
Veronica lançou-me um olhar incrédulo, mas disse que me cabia a mim decidir. Durante os dois ou três dias que se seguiram, fiquei no meu quarto, pensando e repensando
tudo aquilo. Pedi conselho a todos os meus amigos, que encontraram apenas uma solução: teria de me casar; mas não conhecia ninguém com quem pudesse fazê-lo. Estava
infelicíssima, não só por a minha carreira estar prestes a ir por água abaixo, mas também por mentido a Veronica e ter deixado mal a agência.
Uma noite, embrenhada neste dilema, desci à piscina da Y. A minha amiga Marilyn, uma negra que nascera em Londres, trabalhava lá como nadadora-salvadora. Nas semanas
que se haviam seguido à minha instalação no lar da YMCA, eu descera frequentemente à piscina, mas limitava-me a sentar-me junto da água que contemplava com prazer.
Um dia, Marilyn perguntou-me finalmente por que não me banhava e tive de lhe confessar que não sabia nadar.
- Eu posso ensinar-te.
- Está bem.
Fui para a extremidade da piscina onde a água era mais profunda e, sustendo o fôlego, mergulhei. Pensava para comigo que, como ela era nadadora-salvadora, me salvaria.
Mas, vejam lá, uma vez debaixo de água comecei a nadar como um peixe até à outra ponta da piscina. Vim à superfície com um grande sorriso no rosto. - Consegui! Nem
acredito! Consegui!
Mas ela estava zangada. - Por que me disseste que não sabias nadar?
- Eu nunca tinha nadado na minha vida!
Depois deste episódio, tornámo-nos boas amigas. Vivia com a mãe na outra ponta de Londres e por vezes, quando trabalhava até tarde à noite, estava demasiado cansada
para voltar para sua casa e dormia no meu quarto.
Marilyn era generosa e muito simpática e enquanto eu nadava na piscina nessa tarde para tentar esquecer as minhas preocupações, ocorreu-me subitamente a solução.
Vim à superficie, tirei os óculos e disse, ofegante: - Marilyn, preciso do teu passaporte.
- O quê? De que é que estás a falar ? Expliquei-lhe o meu problema.
- Waris, és completamente doida! Sabes o que sucederá? Serás apanhada, expulsa e proibida de voltar a pôr os pés em Inglaterra, e eu irei parar à prisão. E vou arriscar
tanto para quê? Para apareceres num estúpido filme de James Bond? Nem pensar.
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- Oh, Marilyn, vá lá. É engraçado correr riscos. É isso a aventura. Peço um passaporte em teu nome, colo uma fotografia minha e imitarei a tua assinatura. Já não
tenho muito tempo, mas posso obter um passaporte provisório.
- Por favor, Marilyn! É a minha oportunidade de fazer cinema!
Supliquei horas a fio e ela acabou por ceder na véspera da minha partida para Marrocos. Arranjei a fotografia e fomos preencher o formulário; uma hora depois, eu
tinha o meu passaporte britânico. Como Marilyn estava doente de inquietação, esforcei-me por a acalmar durante o regresso ao lar.
- Anima-te, Marilyn. Verás, correrá tudo bem. Tens que ter fé.
- Fé uma ova! Tenho fé é que essa estúpida ideia me vai estragar a vida.
Decidimos passar essa noite em casa da sua mãe. Sugeri que alugássemos cassetes de vídeo e encomendássemos comida chinesa, e aconselhei-a a descontrair. Mas quando
chegámos ao nosso destino, ela disse:
- Waris, não posso fazer isto. É demasiado arriscado. Dá-me o passaporte.
Estendi-lho com pena, vendo a minha carreira cinematográfica desvanecer-se no reino das fantasias perdidas.
- Espera por mim aqui, vou escondê-lo no meu quarto - disse ela. Levou-o para o seu quarto.
- Está bem, rapariga - disse-lhe eu. Se ficas nesse estado, não vale a pena sofreres. Se achas que algo vai correr mal, é melhor não o fazermos.
Mas nessa noite, mal ela foi dormir, comecei a revistar-lhe o quarto. Ela tinha centenas de livros ali, e eu estava convencida de que o passaporte estaria escondido
por ali. Abri-os um a um e sacudi-os. Tinha de o fazer depressa, porque o carro que devia conduzir-me ao aeroporto passaria a buscar-me de manhã. De repente, o passaporte
caiu-me aos pés. Agarrei-o suavemente, enfiei-o num bolso do meu duffle coat e voltei a deitar-me. Acordei de manhã antes de o motorista tocar à campainha e acordar
toda a gente. Estava frio lá fora, mas permaneci no passeio a tiritar até o carro chegar às sete, e seguirmos para Heathrow.
Sair de Inglaterra não constituiu qualquer problema. Em Marrocos, a minha carreira cinematográfica reduziu-se a um par de cenas em que eu devia ser aquilo a que
o argumento chamava "uma rapariga bonita deitada junto a uma piscina". Também entrei noutra cena em que estávamos sentados numa casa fantástica em Casablanca a beber
chá e, por uma razão qualquer, todas as mulheres apareciam nuas. James Bond voava através do raio do tecto e todas nós devíamos tapar a cara e gritar: Aahh!, oh
meu Deus! Mas eu pensava: Bem, não me queixo.
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Passávamos o resto do tempo passeando-nos pela casa e pelo jardim, sentávamo-nos junto à piscina, comíamos e comíamos, e não fazíamos nada. Eu estava sempre a apanhar
sol, excitadíssima por voltar a vê-lo após todos aqueles anos de nevoeiros londrinos. Não sabendo muito bem como me comportar com as pessoas do cinema, andava quase
sempre só; eram todos demasiado bonitos e intimidadores, falavam um inglês perfeito, pareciaam conhecer-se todos e coscuvilhavam, sobre os últimos filmes em que
haviam participado. Estava radiante por me encontrar de novo em África. Ao fim da tarde, saía e ia sentar-me na companhia das mulheres marroquinas que no exterior
de suas casas preparavam uma refeição familiar sempre muito colorida. Eu não falava a sua língua, mas trocávamos sorrisos, ( dizia-lhes duas palavras em árabe, elas
respondiam-me com duas palavras em inglês e todos ríamos muito.
Um dia,. a equipa de rodagem apareceu e alguém disse: - Alguém quer vir às corridas de camelos? - Vá lá, vamos todos em grupo.
Após ter assistido a várias corridas, aproximei-me de um dos jóqueis para lhe perguntar se poderia participar na competição. Tínhamos conseguido comunicar num misto
de árabe inglês, e ele fez-me compreender que as mulheres não estavam autorizadas a montar camelos.
- Aposto que sou capaz de vos ganhar. Venha, vou mostrar-lhe. Vocês não me deixam montar porque têm medo que eu ganhe.
Ele estava furioso por uma rapariga ousar desafiá-lo.
Foi o que o levou a decidir dar-me a oportunidade. Espalhou-se o rumor entre os membros da equipa de que Waris ia participar na corrida seguinte; juntaram-se todos
à minha volta e alguns tentaram dissuadir-me. Respondi-lhes que preparassem o respectivo dinheiro e apostassem em mim porque eu ia dar uma bela lição àqueles marroquinos.
Havia cerca dez árabes montados nos seus camelos na linha de partida, e eu. Quando a corrida começou corremos a toda a velocidade. A corrida foi aterrorizadora,
eu não estava familiarizada com o camelo que montava e não sabia como fazê-lo "dar ao pé". Não só os camelos são rápidos mas, quando correm, saltam e balançam-se
da direita para a esquerda; por isso segurava-me com todas as forças. Sabia que, se caísse, seria pisada até à morte.
Quando a corrida acabou, fiquei em segundo lugar. Os membros da equipa estavam bastante espantados, e compreendi que tinha subido na sua consideração - sobretudo
à medida que recolhiam os respectivos lucros -, apesar de ainda lhes parecer um pouco estranho. Uma rapariga perguntou-me: - Como aprendeste a fazer isso?
Eu ri. - É fácil. Quando se nasce em cima de um camelo, sabe-se como montá-lo.
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Contudo, a corrida de camelos não exigia nenhuma coragem comparada com o que me esperava no meu regresso a Heathrow. Ao sair do avião, formámos uma fila para passar
pelo controlo dos passaportes. Os oficiais não cessavam de gritar: O SEGUINTE!, e para mim era uma tortura ouvir aquelas duas palavras, porque significavam que eu
dava mais um passo na direcção da prisão.
Os funcionários britânicos são sempre bastante duros com as pessoas que tentam entrar em Inglaterra, mas quando se é africano e negro, a coisa piora: é certo que
examinarão o nosso passaporte minuciosamente. Sentia-me tão mal que estava prestes a desmaiar, e pensei deitar-me no chão e deixar-me morrer para me livrar daquela
angústia. Rezei: Deus, ajuda-me, por favor. Se eu sobreviver a tudo isto, prometo não voltar a agir deforma tão idiota.
Desde que as minhas pernas não vacilassem, em breve chegaria a minha vez. Foi então que Geofirey, um dos modelos, me arrancou o passaporte das mãos. Geoffrey era
um sacana espertinho que gostava de martirizar os outros, e daquela vez não podia ter escolhido alvo mais vulnerável.
- Oh, por favor, por favor...
Tentei recuperar o meu passaporte, mas Geofirey era bastante maior que eu e segurava-o ao alto com o braço estendido, fora do meu alcance.
Durante a rodagem, todos me haviam tratado por Waris; todos me conheciam pelo nome de Waris Dirie. Abrindo o meu passaporte, Geofirey deu um grito: - Meu Deus! Ouçam
isto! Ouçam todos! Vocês não imaginam como ela se chama: MARILYN MONROE!
- Por favor, devolve-me isso... - Eu tremia por todos os lados.
Ele começou a correr às voltas, torcendo-se a rir e mostrando o meu passaporte a toda a gente. - Ela chama-se Marilyn Monroe! Vejam só esta merda! Mas que porra
vem a ser esta? Que vem a ser isto, rapariga? Não admira que tenhas descolorado o cabelo!
Eu não fazia ideia de que existia outra Marilyn Monroe. Para mim, havia apenas uma: a minha amiga que era salva-vidas no lar da YMCA. Felizmente para mim, eu não
sabia que tinha corrido ainda mais riscos ao viajar com um passaporte que tinha a fotografia e o nome de uma célebre estrela de cinema. Naquele momento, eu estava
apenas preocupada com o facto de o meu passaporte dizer que eu era Marilyn Monroe, nascida em Londres, e no entanto eu mal falava uma palavra de inglês. Transpirava
abundantemente e as palavras Acabou-se... Estou tramada. Acabou-se... Estou tramada... ressoavam-me na cabeça.
Toda a equipa de filmagens entrou no jogo.
- Mas afinal, qual é o teu verdadeiro nome?
- De onde vens tu realmente?
- Eu não sabia que os londrinos não falavam inglês!
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Não pensavam senão em rir-se de mim. Finalmente, Geoffrey devolveu-me o passaporte. Coloquei-me na ponta da fila, deixando-os todos passarem à minha frente e esperamdo
que já se tivessem ido embora quando chegasse a minha vez.
- O SEGUINTE!
Em vez de me esquecerem e de se apressarem a ir buscar os seus carros depois de terem passado a alfândega, os membros da equipa esperaram para ver como eu me ia
sair daquela.
Acalma-te, Waris, minha filha. Tu és capaz de resolver isto.
Avancei e estendi o meu passaporte ao funcionário, com um sorriso encantador.
- Olá! - Sustive a respiração, preferindo não proferir nem mais uma palavra com medo que ele se apercebesse de como o meu inglês não passava de uma anedota.
- Belo dia, não é verdade?
- Hm. - Fiz que sim com a cabeça e sorri de novo. Ele devolveu-me o passaporte e passei pelo o controlo. Os membros da equipa estavam ali a olharem-me com estupefacção.
Sentia vontade de ir abaixo, exangue, de me abater no chão, mas passei por eles num ápice sabendo que não estaria em segurança enquanto não saísse do aeroporto.
Continua a andar Waris. Tens de sair viva de Heathrow.
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OS MÉDICOS
Enquanto eu vivia no lar da YMCA, um dia passei uma tarde inteira na piscina a nadar em comprimento. À saída dos balneários, quando me dirigia para as escadas, alguém
me chamou da cafetaria. Era William, um rapaz que eu conhecia. Fez-me sinal para eu me aproximar.
- Senta-te, Waris. Queres comer algo?
Ele estava a comer uma sanduíche de queijo.
- Sim, obrigada, também quero uma dessas.
O meu inglês ainda era um pouco fraco, mas conseguia compreender o essencial do que os outros me diziam. Enquanto comíamos, ele perguntou-me se eu gostaria de ir
ao cinema com ele. Não era a primeira vez que me convidava para sair. William era branco, jovem, bonito e sempre muito doce. Continuou a falar comigo, mas eu já
não ouvia o que ele me dizia. Pus-me a olhá-lo fixamente, observava os seus lábios que se moviam, e o meu cérebro começou a funcionar à velocidade de um computador:
Ir ao cinema com ele
Se ao menos ele soubesse quem eu sou Oh, como será ter um namorado
Deve ser bom
Alguém com quem falar Alguém que me amasse Mas se eu for ao cinema Vai querer beijar-me Depois vai querer sexo
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E se eu aceitar
Descobrirá que não sou como as outras Que sou estropiada
E se eu recusar? Ficará zangado e discutiremos
Não vás
Não vale a dor do coração quebrado Diz não
Se ao menos ele soubesse quem sou, compreenderia que não tinha nada a ver com ele.
Sorri e sacudi a cabeça. - Não, obrigada. Tenho muito trabalho.
Já esperava o seu olhar magoado, que acabou por surgir. Encolhi os ombros, dizendo a nós os dois: Não posso fazer nada.
Este problema começara desde que me instalara no lar da YMCA. Quando eu vivia com a minha família na Somália, ou com os meus tios em Londres, nunca estivera a sós
com um homem estranho à família. Os homens que conhecia nessa altura sabiam os nossos costumes e não lhes passaria pela cabeça convidar-me para um encontro, senão
teriam de se haver com o meu pai ou com o meu tio. Mas, desde que eu deixara a casa de Harley Street, estava só e, pela primeira vez na minha vida, tinha de enfrentar
este tipo de situação sozinha.
O lar da YMCA estava repleto de jovens solteiros. Quando frequentei os clubes nocturnos com Halwu, conheci outros, e outros ainda na minha vida de modelo.
Mas nunca me sentira atraída por nenhum deles. Jamais me passara pela cabeça fazer amor com um homem, mas as minhas experiências mais cruéis haviam-me ensinado que
o inverso não era verdadeiro. Por mais que pense nisso, não consigo imaginar o que teria sido a minha vida se não tivesse sido excisada. Gosto de homens e sou uma
mulher sensível e afectuosa. Naquela altura, há já seis anos que fugira ao meu pai, e a solidão pesava-me bastante. Tinha saudades da minha família e esperava um
dia poder ter um marido e a minha própria família; mas, na medida em que era excisada, não me passava pela cabeça ter uma relação; fechava-me em mim mesma. Era como
se os pontos de sutura impedissem os homens de me penetrarem - tanto a nível físico como afectivo.
O outro problema que me impedia de me relacionar com qualquer homem surgiu quando tive consciência de que era diferente das outras mulheres, especialmente das inglesas.
Após a minha chegada a Londres, descobrira pouco a pouco que nem todas as raparigas tinham sofrido o mesmo que eu. Quando vivera com as minhas primas em casa do
tio Mohammed, às vezes via-me na casa de banho com as outras raparigas. Ficava estupefacta ao ouvi-las
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urinar num único jorro espesso, enquanto eu precisava de uns dez minutos para urinar.
O minúsculo orifício que a mulher me deixara só permitia que a urina escapasse gota a gota.
- Waris, por que fazes chichi assim? Qual é o teu problema?
Eu acreditava que elas também seriam excisadas quando voltassem para a Somália, e por isso não lhes dizia a verdade e esforçava-me por transformar aquilo numa brincadeira.
Os meus períodos, pelo contrário, não tinham nada de engraçado. Desde o início, tinha eu onze ou doze anos, eram um verdadeiro pesadelo. Haviam começado num dia
em que me encontrava a sós com o meu rebanho de cabras e carneiros. Naquele dia o calor estava insuportável; sentei-me à sombra de uma árvore, sem energia e com
dores de barriga e pensei: Porquê esta dor? Estarei grávida? Vou ter um bebé? Mas não estive com nenhum homem, como posso estar grávida? A pressão ia aumentando,
e os meus receios também. Uma hora mais tarde, quis fazer chichi e vi sangue correr. Pensei que ia morrer.
Deixei os animais a pastarem e corri para o acampamento, precipitando-me para a minha mãe a gritar: - Vou morrer! Oh, mãe, vou morrer!
- O que é que estás para aí a dizer?
- Estou a sangrar, mãe, vou morrer!
Ela olhou-me directamente nos olhos. - Não, não vais morrer. Não te preocupes, estás apenas com o período.
Eu nunca ouvira falar em semelhante coisa. - Por favor, podes dizer-me o que é isso? Enquanto eu me contorcia com dores, segurando a barriga com as duas mãos, ela
explicou-me todo o processo.
- Mas como fazer cessar a dor? Sabes, tenho mesmo a impressão de que vou morrer.
- Waris, não há nada que possas fazer. Tens de esperar que passe.
Eu não tencionava resignar-me. Voltei para junto do rebanho e comecei a escavar um buraco à sombra de uma árvore. O exercício físico fez-me bem e ajudou-me a esquecer
momentaneamente a dor. Escavei até conseguir um buraco suficientemente profundo para caber a metade inferior do meu corpo. Saltei lá para dentro e voltei a pôr areia
à minha volta; a terra que eu extraíra do fundo do buraco era relativamente fresca e produziu em mim um efeito semelhante ao de um bloco de gelo. Fiquei ali durante
as horas quentes do dia.
Todos os meses, a fim de suportar mais facilmente a dor do período, eu escavava um buraco. Mais tarde, descobri que a minha irmã Aman fazia o mesmo. Mas este remédio
tinha os seus inconvenientes. Um dia, o meu pai vinha a passar e deu comigo semienterrada debaixo de uma árvore. Vista de longe, era como se me tivessem cortado
em dois pela cintura e tivessem colocado a metade superior sobre a areia.
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Que raio estás a fazer?
< Ao ouvir a voz dele, tentei sair do meu buraco, mas como a areia tinha endurecido, tinha enorme dificuldade em conseguir libertar-me. Enquanto escavava para
conseguir libertar as pernas, o meu pai começou a rir nervosamente. Eu era demasiado tímida para explicar por que fizera aquilo e ele continuou a rir-se de mim.
- Se queres enterrar-te viva, fá-lo como deve ser. Continua, não deixes as coisas meio! - Naquela noite falou à minha mãe do meu estranho comportamento. Temia que
sua filha estivesse a transformar-se numa espécie de animal roedor, uma toupeira que pensava senão em escavar túneis, mas a minha mãe explicou-lhe o que se passava.
Tal como a minha mãe previra, não havia nada que eu pudesse fazer para cessar a dor. Apesar de eu ser incapaz de compreender isso na altura, o sangue menstrual ficava
retido no interior do meu corpo tal como a urina, e como o corrimento era contínuo durante vários dias, a pressão era horrível. Tal como a urina, o sangue menstrual
era evacuado gota a gota e os meus períodos duravam pelo menos dez dias.
Este problema atingiu o climax quando eu vivia em casa do tio Mohammed. Todas manhãs cedo eu preparava o pequeno-almoço dele. Um dia, quando levava o seu prato da
cozinha para a casa de jantar, onde ele esperava ser servido, senti-me mal, e a louça estilhaçou-se no chão. O meu tio precipitou-se para me ajudar e esbofeteou-me
para tentar fazer com que eu voltasse a mim. Quando comecei a recuperar os sentidos, ouvi-o gritar como de muito longe: - Maruim! Maruim! Ela desmaiou!
Quando voltei a abrir os olhos, a tia Maruim perguntou-me o que se passava e respondi-lhe que tinha tido o meu período naquela manhã.
- Bem, isto não é normal, temos de levar-te ao médico. Vou marcar-te uma consulta para esta tarde com o meu médico.
Eu expliquei ao médico da minha tia que os meus períodos eram sempre dolorosos, que desmaiava com frequência. A dor paralisava-me e eu não sabia o que fazer. - Pode
ajudar-me? Por favor... pode fazer algo por mim? Porque já não consigo suportar mais. Não lhe disse que fora excisada. Não sabia como abordar o assunto. Naquela
altura, eu ainda era uma rapariga e, na minha cabeça, tudo o que dizia respeito às funções do organismo estava envolto em ignorância, confusão mental e vergonha.
Na medida em que eu pensava que a excisão era o destino de todas as raparigas, nem sequer estava certa de que fosse essa a causa dos meus problemas. Como a minha
mãe não conhecia senão mulheres excisadas que sofriam o mesmo calvário - considerado como parte do fardo de se ser mulher -, encarava o meu sofrimento como algo
de anormal.
Uma vez que o médico não me examinou, não descobriu o meu segredo.
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- A única coisa que posso dar-lhe para a dor são pílulas contraceptivas. Isso parará a dor porque acaba com os períodos.
Aleluia! Comecei a tomar as pílulas, embora a ideia não me agradasse muito. Tinha ouvido a minha prima Basma dizer que eram nocivas para a saúde. Mas no mês seguinte
as hemorragias e as dores habituais cessaram. Como o medicamento fazia crer ao meu corpo que eu estava grávida, o tratamento teve efeitos inesperados: as minhas
nádegas e os meus seios aumentaram, a minha cara inchou e engordei bastante. Estas alterações radicais pareceram-me tão pouco naturais e tão inquietantes que decidi
cessar de tomar as pílulas, preferindo enfrentar a dor. E tive mesmo de enfrentar a dor, porque voltou tudo de novo com uma intensidade maior do que nunca.
Mais tarde, consultei outro médico, mas esta nova experiência foi uma repetição da primeira: também ele me queria receitar pílulas contraceptivas. Expliquei-lhe
que já experimentara essa opção e que não suportava os efeitos secundários. Infelizmente, quando parava de tomar essas pílulas, ficava inoperacional durante vários
dias; ficava de cama e desejava morrer para acabar com o sofrimento. Perguntei-lhe se existia outra solução e ele respondeu-me: - Bem, o que é que esperava? A maioria
das mulheres que tomam pílulas contraceptivas deixam de ter o período. Quanto às que continuam a tê-lo, também têm dores. A escolha é sua.
Depois de ter ouvido a mesma coisa da boca de um terceiro médico, compreendi que tinha necessidade de fazer outra coisa e falei no assunto com a minha tia: - Talvez
eu deva marcar consulta num especialista?
Ela fulminou-me com o olhar. - Não, de forma alguma. A propósito, o que é que tu tens dito aos médicos?
- Nada. Apenas que gostaria que as dores cessassem, nada mais.
Eu compreendera perfeitamente o que ela quisera insinuar ao fazer-me aquela pergunta: a excisão é um dos nossos costumes africanos, e é impensável discutir o assunto
com homens brancos. Contudo, pensei que era o que devia fazer se queria acabar com o sofrimento e deixar de estar inválida a maior parte do tempo. Também sabia que
esta atitude nunca seria aceite pela minha família. Por isso, teria de ir em segredo a um dos três médicos e explicar-lhe que fora excisada. Talvez então ele me
pudesse ajudar.
Escolhi o primeiro, o Dr. Macrae, porque dava consultas num grande hospital, mas a sua agenda estava sempre muito preenchida, pelo que tive de esperar durante um
mês de agonia. Quando chegou o dia, arranjei uma desculpa para justificar a minha ausência e dirigi-me ao hospital. Quando me encontrei na presença do Dr. Macrae,
disse-lhe: - Há uma coisa que não lhe contei. Vim da Somália e eu... eu... - Era terrível ter de lhe revelar
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aquele segredo horrível servindo-me das poucas palavras de inglês que conhecia -) ... fui excisada.
Ele nem sequer me deixou acabar a frase. - Dispa-se, tenho de a examinar. - Ele leu o terror nos meus olhos. - Não tenha medo. - Chamou a enfermeira para que ela
me mostrasse onde me devia despir e como vestir a bata branca aberta atrás.
Quando voltámos ao consultório, perguntei-me verdadeiramente n o que me havia metido desta vez. A ideia de que uma rapariga do meu país pudesse deixar-se deitar
naquele lugar estranho, afastar as pernas e deixar um homem branco examinar aquela parte do seu corpo, era a coisa mais vergonhosa que eu podia imaginar.
o médico tentou afastar-me os joelhos. - Descontraia-se. Não lhe acontecerá nada... eu sou médico. A enfermeira está aqui... está mesmo aqui ao lado.
Estendi o pescoço para olhar na direcção que ele me apontava com a mão estendida. A enfermeira sorriu para me confortar, e acabei por ceder, obrigando-me a pensar
noutra coisa, fazendo como se não estivesse ali, como se tivesse voltado a África e caminhasse pelo deserto na companhia das minhas cabras num belo dia de sol.
Após ter-me examinado, o Dr. Macrae perguntou à enfermeira se havia alguém no hospital que falasse a minha língua, e ela respondeu que havia uma somali que trabalhava
no piso inferior. Mas quando voltou, vinha acompanhada por um homem uma vez que a tal mulher não se encontrava de serviço. Maravilha!, pensei eu. Que raio de sorte
a minha ter de falar desta coisa horrível com um somali a traduzir. Não podia ser pior.
O Dr. Macrae disse-lhe: - Explique-lhe que ela está demasiado fechada. Não compreendo sequer como é que ela conseguiu aguentar até agora. Temos de a operar o mais
rápido possível.
Compreendi imediatamente que o somali não estava nada satisfeito. Cerrava os lábios em sinal de desaprovação e lançava olhares "bundos ao médico. Vendo a sua atitude
e compreendendo algumas palavras de inglês, senti que algo não estava bem.
- Ele disse-me: Bem, se é realmente o que queres, eles podem abrir-te. - Limitei-me a olhar para ele. - Mas sabes que isso é contra a tua cultura? A tua família,
sabe que vais fazer isto?
Não. Para te falar a verdade, não. .? - Com quem vives?
- Com os meus tios.
, - Eles sabem que vais fazer isto?
- Não.
, - Bem, o que eu faria era primeiro discutir o assunto com eles.
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Eu acenei com a cabeça, pensando: Eis a resposta típica de um africano. Obrigada pelo teu conselho, irmão. Isso
põe um pontofinal em todo este assunto.
O Dr. Macrae acrescentou que não podia operar-me imediatamente. Eu tinha de marcar consulta. Sabia que era impossível, que a minha tia acabaria por ser informada,
mas respondi-lhe apesar de tudo: - Sim, é o que vou fazer: telefonarei para marcar consulta.
Decorreu um ano e não telefonei. Logo após a partida dos meus tios, decidi finalmente fazê-lo, mas a primeira data possível foi para dois meses mais tarde. Durante
esses dois meses, tive pouco tempo para reflectir e para me lembrar do horror que tinha sido a minha excisão. Pensei que a operação seria a repetição do mesmo processo,
e quanto mais pensava nisso, mais acreditava que não suportaria passar pelo mesmo uma segunda vez. Quando chegou o dia, não fui ao hospital nem telefonei.
Nessa altura eu vivia no lar da YMCA e trabalhava no McDonald's. Os meus problemas com o período não se haviam atenuado, mas eu tinha de ganhar a vida e não podia
esperar manter o emprego se me ausentava uma semana todos os meses. Tinha de me desenvencilhar fosse como fosse, e só os meus amigos reparavam que eu não estava
em forma. Nessas ocasiões, Marilyn não cessava de me perguntar o que se passava, e eu acabei por lhe explicar que fora excisada quando era pequena na Somália.
Mas Marilyn nascera e fora educada em Londres, por isso não podia compreender o que eu lhe dizia. - Por que não me mostras, Waris? Não sei mesmo do que se trata.
Eles cortaram-te aqui? Isto? Aquilo? Que te fizeram eles?
Finalmente, um dia tirei as cuecas e mostrei-lhe. Nunca esquecerei a expressão do seu rosto. Escorreram-lhe lágrimas pelas faces e desviou o olhar. Desesperada,
eu pensava: Oh, meu Deus, será realmente assim tão terrível? As primeiras palavras de Marilyn foram: Waris, tu sentes alguma coisa?
- De que estás a falar?
Ela limitou-se a abanar a cabeça. - Bem, lembras-te de como eras quando eras pequena, antes de te terem feito isto?
- sim.
- Bem, eu continuo assim. Tu já não estás na mesma.
Agora eu tinha a certeza. Já não tinha de me colocar a questão nem de fingir acreditar que todas as mulheres eram mutiladas como eu. Agora tinha a certeza de que
era diferente. Não podia desejar a ninguém sofrer como eu sofrera, mas não queria ser a única.
- Então isto não se passou contigo, nem com a tua mãe?
Ela abanou a cabeça e recomeçou a chorar. - É horrível, Waris. Não posso acreditar que alguém te tenha feito isto.
- Oh, não me faças ficar triste, por favor.
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- Mas eu estou triste. Triste e furiosa. Choro porque não pensava que existissem no mundo pessoas capazes de fazerem isto a uma criança.
Permanecemos sentadas em silêncio durante um momento. Marilyn continuava a soluçar, e eu não era capaz de olhar para ela. Depois decidi que chegava. - Bem, que se
dane! Vou fazer essa operação. Amanhã vou telefonar ao tal médico. Pelo menos, terei prazer em ir à casa de banho. É a única coisa que posso esperar, mas é melhor
do que nada.
- Eu acompanhar-te-ei, Waris. Estarei contigo. Prometo-te.
Marilyn telefonou para o consultório do Dr. Macrae e marcou-me uma consulta. Desta vez tive de esperar um mês, durante o qual não cessei de perguntar a Marilyn:
- Tens a certeza que virás comigo?
- Não te preocupes. Eu vou. Estarei contigo.
Na manhã do dia previsto para a minha operação, ela acordou-me cedo e fomos juntas para o hospital. A enfermeira conduziu-nos até à sala de operações. Quando vi
a marquesa, por pouco não dei meia volta e fugi. Apesar de tudo, era melhor do que um rochedo no mato, mas tinha poucas esperanças de que fosse mais agradável. O
Dr. Macrae injectou-me um analgésico - algo que me teria sido bastante útil quando a Assassina me decepara - e Marilyn segurou-me a mão enquanto eu adormecia.
Quando acordei, tinham-me instalado num quarto de duas camas com uma mulher que acabara de dar à luz, e a primeira pergunta que ela me fez (bem como todas as pessoas
que conheci na cafetaria à hora do almoço) foi: - Por que estás aqui?
Que resposta poderia dar? "Oh, vim para ser operada à vagina. A minha passarinha era demasiado estreita". Nunca revelei a verdade a ninguém. Preferi dizer que tinha
um bicho qualquer no estômago. Apesar de a minha recuperação ter sido bastante mais rápida do que quando fora excisada, revivi algumas das minhas piores recordações
dessa altura. Cada vez que tinha de fazer chichi, era o mesmo pesadelo: tinha a impressão de que um ácido me queimava a ferida. Pelo menos, as enfermeiras autorizaram-me
a tomar banho, e mergulhei com prazer na água quente. Alilili. Também me deram analgésicos para que não fosse tão difícil, mas senti-me bastante feliz quando tudo
terminou.
O Dr. Macrae fez um bom trabalho, e estou-lhe muito reconhecida. No final disse-me:
- Sabe, você não é a única. Posso mesmo dizer-lhe que tratei muitas mulheres que tiveram um problema idêntico ao seu. São originárias do Egipto, do Sudão, da Somália.
Algumas estão grávidas e aterrorizadas, porque é perigoso dar à luz quando se está cosida. Pode implicar uma série de complicações: o bebé pode sufocar ao tentar
sair por um orificio
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demasiado estreito, ou a mãe pode ter uma hemorragia fatal. Por isso, sem a permissão dos maridos ou das famílias, elas procuram-me e eu tento fazer o melhor que
posso.
Em duas ou três semanas, voltei à normalidade. Bem, não exactamente à normalidade, mas mais como uma mulher que não foi excisada. Waris era uma nova mulher. Podia
sentar-me na retrete e fazer chichi - whoosh! É difícil explicar o sentimento de liberdade que isso me dava.
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O DILEMA DO PASSAPORTE
Quando regressei da minha iniciação no cinema como uma Bond Girl, pedi ao motorista que me conduzisse directamente a casa de Marilyn Monroe. Cobardemente, não lhe
telefonara depois de ter saído de Marrocos, pois decidira deixá-la serenar até eu regressar. Especada diante da porta de casa dela com um saco cheio de presentes
na mão, carreguei nervosamente no botão da campainha. Ela veio abrir, fez-me um sorriso de orelha a orelha e precipitou-se para me beijar.
- Conseguiste! Sua louca! Conseguiste!
Perdoou-me imediatamente ter-lhe roubado o passaporte fraudulento. Estava tão impressionada por eu ter tido a audácia de conseguir realizar o meu golpe que não foi
capaz de ficar zangada comigo. Prometi-lhe que nunca mais utilizaria o seu passaporte para nos expor a riscos desnecessários, especialmente depois da minha tortura
ao passar na alfândega do aeroporto.
Estava contente por Marilyn me perdoar, porque ela era verdadeiramente a minha melhor amiga. De resto, eu não ia tardar a contar de novo com a sua amizade. Quando
regressei a Londres, pensava que a minha carreira como modelo estava apenas a começar sobretudo depois dos sucessos consecutivos de trabalhar com Terence Donovan
e entrar num filme do James Bond. Mas, como se por magia, a minha carreira de modelo esfumou-se de um dia para o outro, desaparecendo tão brusca e misteriosamente
como começara. Nada de voltar a trabalhar no McDonald's, mas também fim da minha vida na YMCA. Sem trabalho nem dinheiro, já não tinha forma de manter o meu quarto
aí e fui obrigada a instalar-me em casa de Marilyn e da sua mãe. Esta solução agradava-me muito por várias razões viver num verdadeiro lar e fazer parte daquela
família. Acabei por ficar sete meses e, apesar de elas nunca se terem queixado, temi abusar da sua hospitalidade. Tinha conseguido
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encontrar pequenos trabalhos como modelo, mas não o suficiente para conseguir manter-me. Por isso, aceitei o convite de um amigo do meu cabeleireiro, um chinês chamado
Frankie que tinha uma casa muito grande - bem, para mim era grande porque tinha dois quartos que se ofereceu generosamente para me albergar enquanto esperava que
a minha carreira recomeçasse.
Em 1987, pouco depois de ter ido viver com Frankie, Risco Imediato foi posto em exibição. Duas semanas mais tarde saí com um outro amigo na véspera do Natal. Londres
estava em festa e, contagiada pelo ambiente, voltei para casa muito tarde. Mal a minha cabeça tocou na almofada, adormeci. Mas acordei pouco depois porque alguém
batia insistentemente na janela do meu quarto. Levantei-me e vi o amigo com o qual jantara e passara parte dessa noite. Ele agitava um jornal e tentava dizer-me
algo. Como não ouvia nada, fui abrir a janela.
Waris! Estás na capa do The Sunday Times! Oh... - esfreguei os olhos. - A sério?
Sim! Olha... - Desdobrou o jornal e lá estava uma fotografia da minha cara a três quartos ocupando toda a primeira página. Era maior que o meu rosto real, os meus
cabelos louros resplandeciam e eu tinha um olhar decidido.
- Que bom... Agora vou voltar para a cama... dormir... - E voltei para a cama aos tropeções. Só quando me levantei, por volta do meio-dia, é que compreendi o efeito
que aquela publicidade poderia produzir. Estar na primeira página do The Sunday Times de Londres só poderia fazer avançar as coisas. Decidi forçar a sorte: percorri
Londres inteira, participei em todos os castings, insisti com a minha agência, acabei mesmo por mudar de agência, mas a situação não melhorou.
Os responsáveis da minha nova agência explicaram-me que não havia muito trabalho em Londres para uma modelo negra. - Tem de ir participar em castings no estrangeiro:
Paris, Milão, Nova Iorque.
Por mim, não me importava nada de viajar, mas continuava com o mesmo problema: o meu passaporte. Eles responderam-me que tinham ouvido falar de um advogado chamado
Harold Wheeler que ajudara vários imigrantes a regularizar a sua situação. Por que não ir vê-lo?
Fui ao escritório deste Harold Wheeler e descobri que ele exigia uma soma exorbitante
- duas mil libras - para me ajudar. Apesar disso reflecti: se eu tivesse a possibilidade de viajar, encontraria trabalho no estrangeiro e não teria dificuldade em
amortizar aquele investimento; por outro lado, a minha situação actual rapidamente levaria a um impasse. Reunindo todo o dinheiro de que dispunha, acabei por juntar
a soma necessária, mas temia confiar todas as minhas economias àquele advogado pois poderia tratar-se de um vigarista.
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Deixei o dinheiro em casa e fiz-lhe uma segunda visita em companhia de Marilyn, para que ela me desse a sua opinião sobre o advogado e o negócio que ele me propunha.
Premi botão do intercomunicador; a secretária de Wheeler abriu-nos a porta. Marilyn esperou no exterior enquanto Wheeler me recebia no seu gabinete.
Fui directa ao assunto: - Diga-me a verdade: quero saber se o passaporte que me propõe vale as duas mil libras que me pede. Poderei viajar pelo mundo inteiro legalmente?
Não quero ficar retida nalgum país longínquo, nem ser extraditada. E a propósito, como fará para obtê-lo?
- Não, não, não, lamento não poder revelar-lhe as minhas fontes. Terá de confiar em mim. Se quer um passaporte, eu posso arranjar-lho. E pode crer, será perfeitamente
legal. O decurso de todo o processo levará duas semanas. Quando o seu passaporte estiver pronto, minha secretária telefonar-lhe-á.
Magnífico! Isso quer dizer que dentro de duas semanas posso ir para onde quiser quando quiser.
- Bom, de acordo, parece-me bem. E agora, que fazemos?
Wheeler explicou-me então que deveria casar-me com um cidadão irlandês, e por acaso ele até conhecia a pessoa indicada. A quase totalidade das duas- mil libras iria
para esse irlandês, e Wheeler receberia apenas uma insignificância a título de honorários. Eu encontrar-me-ia com o meu futuro marido nas instalações do Registo
Civil e teria de levar cento cinquenta libras para despesas extra. Anotou num papel a data e a hora do meu casamento.
- Irá encontrar-se com um tal Mr. O'Sullivan - disse ele no seu sotaque muito britânico. Continuou a escrever enquanto falava. - É o cavalheiro com quem vai casar.
Oh, propósito, as minhas felicitações. - Levantou os olhos e deu-me um ligeiro sorriso.
Um pouco mais tarde, perguntei a Marilyn se achava que eu podia ter confiança naquele tipo. Ela respondeu-me: - Bem, tem um bom escritório, num bom edifício de um
bom bairro. Tem uma placa com o nome na porta. Tem uma secretária profissional. Parece-me bastante legítimo.
No dia do meu casamento, Marilyn acompanhou-me para me servir de testemunha. Enquanto esperávamos diante do edifício do Registo Civil, vimos um velho de cara chupada
e encarnada, de cabelos desgrenhados, que descia a rua aos ziguezagues. Rimo-nos dele até ao momento em que se deteve junto de nós e fez menção de subir as escadas
do Registo Civil. Nessa altura entreolhámo-nos, aterrorizadas, e depois perguntei-lhe. - É MO'Sullivan?
- Em carne e osso. É o meu nome. - E baixou a voz: - Você é a tal?
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Fiz que sim com a cabeça.
- Trouxe o dinheiro, moça... trouxe o dinheiro?
- Sim.
- Cento e cinquenta libras? :?, - Sim.
- Linda menina. Bem, então, toca a andar, toca a andar. Vamos. O tempo passa.
O meu futuro marido tresandava a whisky e estava obviamente bastante bêbado. Enquanto o seguia pelas escadas, murmurei para Marilyn: - Será que aguenta até eu ter
o meu passaporte?
A funcionária do Registo Civil começou a celebrar a cerimónia, mas eu tinha dificuldade em concentrar-me. Estava sempre distraída porque Mr. O'Sullivan não cessava
de cambalear perigosamente. No momento em que a funcionária pronunciava as palavras: "Waris, aceita este homem ... ", o velho caiu ao chão com grande estrondo. A
principio, pensei que estava morto, mas depois compreendi que respirava pesadamente, de boca aberta. Ajoelhei-me, sacudi-o e comecei a gritar:
- Mr. O'Sullivan, acorde!
Mas ele recusava-se. Olhei para Marilyn e gritei: - Oh, que rico dia de casamento! Marilyn deixou-se cair contra a parede a rir, agarrando-se à barriga com ambas
as mãos.
- Que raio de azar! O meu querido marido vai-se abaixo diante do altar.
Perante o ridículo da situação, achei melhor rir. Com as mãos nos joelhos, a funcionária inclinou-se para examinar o meu noivo por cima das suas pequenas meias lunetas.
- Ele está bem?
Tive vontade de lhe responder: "Como raio quer que eu saiba?", mas isso seria trair o nosso jogo.
- Acorde! Vamos, acorde! - Comecei a esbofeteá-lo ruidosamente.
- Por favor, tragam-me água. Façam qualquer coisa! - supliquei com uma gargalhada. A funcionária trouxe um copo de água que eu atirei à cara do velho.
- Ugh! - Ele fungou, resfolegou ruidosamente e finalmente abriu os olhos. Empurrando e puxando com todas as nossas forças, conseguimos pô-lo de pé.
Temendo que ele voltasse a cair de novo, murmurei:
- Meu Deus, continuemos lá com isto.
Agarrei-me ferreamente ao braço do meu amado até ao final da cerimónia. Quando saímos de novo para a rua, Mr. O'Sullivan exigiu as suas cento e cinquenta libras,
e eu anotei o seu endereço para o caso de haver algum problema. Depois ele afastou-se trauteando uma melodia, levando as minhas últimas economias no bolso.
136
Uma semana mais tarde, Harold Wheeler telefonou-me pessoalmente para me dizer que o meu passaporte estava pronto, e eu precipitei-me para o seu escritório. Tratava-se
de um passaporte irlandês emitido em nome de Waris O'Sullivan. Eu não era perita em passaportes, mas achei que tinha um ar estranho; pensando melhor, muito estranho
mesmo: tão estranho que dir-se-ia ter sido fabricado por alguém numa cave.
É isto? Quer dizer, é um passaporte verdadeiro? Posso viajar com isto?
Oh, sim. - Wheeler abanou a cabeça enfaticamente. - Irlandês, vê. É um passaporte irlandês.
- Hum. - Voltei-o e folheei-o. - Bem, desde que sirva para o fim a que se destina, pouco importa a aparência.
Não tive de esperar muito tempo até saber com o que contava. A minha nova agencia marcou-me compromissos em Paris e Milão, e preparámos cuidadosamente a minha viagem
para a Europa; mas dois dias mais tarde recebi uma convocatória do Serviço de Imigração. Senti-me mal e imaginei o pior, mas não tinha outro remédio senão ir até
lá, sabendo perfeitamente que poderia ser extraditada ou encarcerada. Adeus Londres, Paris, Milão. Adeus, carreira de manequim. Olá, camelos.
No dia seguinte, dirigi-me ao serviço de Imigração de metro. Ao percorrer os intermináveis corredores do gigantesco edifício administrativo, tive a impressão de
penetrar numa tumba. Entrando no gabinete que me haviam indicado, deparei com as caras mais mortalmente sérias que jamais vira. Um dos homens de máscara de pedra
ordenou-me que me sentasse e o meu interrogatório começou:
- Como se chama? Qual é o seu nome de solteira? Onde nasceu? Como obteve este passaporte? Como se chama a pessoa que lho forneceu? Quanto pagou por ele?
Eles anotavam tudo o que eu lhes dizia, e eu sabia que uma resposta errada poderia valer-me umas algemas nos pulsos. Decidi, pois, dizer o menos possível. Quando
precisava de ganhar tempo e reflectir no que deveria responder-lhes, socorria-me dos meus dotes de actriz, refugiava-me na barreira linguística.
Eles retiveram-me o passaporte explicando-me que mo devolveriam quando eu voltasse a visitá-los acompanhada do meu marido. Era seguramente a última coisa que eu
quereria ter ouvido, mas pelo menos tinha conseguido não lhes falar de Harold Wheeler. Tinha absolutamente de encontrar aquele ladrão e recuperar o meu dinheiro
antes que a polícia lhe deitasse a mão, senão poderia dizer adeus às minhas duas mil libras.
Quando saí do Serviço de Imigração, fui direita ao seu escritório e premi o botão do intercomunicador. Fiz-me anunciar, dizendo que precisava de ver Mr. Wheeler
com
137
urgência, mas a sua secretária respondeu-me que ele se encontrava ausente e recusou-se a abrir-me a porta. Voltei todos os dias e telefonei várias vezes por dia,
para ouvir sempre a mesma resposta. Brincando aos detectives privados, passei um dia inteiro a vigiar o prédio, mas o tipo desaparecera.
Entretanto, tinha de apresentar Mr. O' Sullivan aos tipos do Serviço de Imigração. Ele vivia em Croydon, nos subúrbios a sul de Londres onde os imigrantes eram numerosos
e onde vivia uma numerosa colónia somali. Apanhei um táxi ao sair da estação porque o comboio não ia até onde ele vivia. Ao descer a rua sozinha, não cessava de
olhar por cima do ombro. Não me sentia muito segura naquele lugar. O seu endereço correspondia a um edifício degradado e ocupava um apartamento no rés-do-chão. Bati
à porta. Não obtive resposta. Contornei o edificio para olhar pela janela, mas não vi nada. Onde poderia ele estar àquela hora do dia senão num bar? Dirigi-me ao
bar mais próximo e encontrei-o sentado ao balcão.
- Lembra-se de mim?
O velho voltou a cabeça para me observar, depois retomou a sua posição inicial, mergulhando de novo na contemplação das garrafas alinhadas atrás do bar. Pensa depressa,
Waris. Tinha de lhe dar a má notícia e pedir-lhe que me acompanhasse ao Serviço de Imigração, sabendo perfeitamente que ele não estaria de acordo.
- A história é a seguinte, Mr. O'Sullivan. Os tipos do Serviço de Imigração retiraram-me o passaporte. Eles querem falar consigo, fazer-lhe duas ou três pequenas
perguntas antes de mo devolverem. Querem certificar-se de que somos realmente casados. Não consegui encontrar aquele maldito advogado. Desapareceu e não tenho ninguém
que me possa ajudar.
Ele bebeu um golo de whisky e abanou a cabeça.
- Olhe lá, dei-lhe duas mil libras para me ajudar a obter o meu passaporte!
Esta última frase despertou-lhe a atenção. Voltou-se para me encarar, boquiaberto.
- Tu deste-me cento e cinquenta libras, querida. Nunca na minha vida possuí duas mil libras, senão não estaria aqui em Croydon.
- Eu entreguei duas mil libras a Harold Wheeler para você casar comigo!
- Bem, ele não mas deu. Se foste suficientemente palerma para dar duas mil balas a esse tipo, o problema é teu, não meu.
Supliquei-lhe que me ajudasse, mas ele não parecia interessado. Prometi-lhe ir buscá-lo de táxi para que ele não tivesse de apanhar o comboio, mas ele não se moveu
do seu tamborete.
Procurando o argumento que conseguisse convencê-lo, ofereci-me para lhe pagar: Estou disposta a dar-lhe dinheiro. Quando sairmos do Serviço de Imigração, iremos
a um bar e poderá beber tudo o que quiser.
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A minha oferta despertou nele um interesse céptico. Virou-se para mim e franziu o sobrolho. Nesse momento, pensei: Waris, aproveita a tua oportunidade.
- Whisky, muitos copos alinhados ao longo de um balcão. Está bem? Irei a sua casa amanhã de manhã, de onde tomaremos um táxi para nos deslocarmos a Londres. Levar-lhe-á
apenas alguns minutos. Duas ou três pequenas perguntas e depois iremos directos ao bar mais próximo. De acordo?
Ele fez que sim com a cabeça antes de voltar às garrafas alinhadas atrás do balcão.
Na manhã seguinte, voltei a Croydon e bati à porta do velho. Não obtive resposta. Percorri as ruas desertas até ao bar da véspera, mas deparei apenas com o empregado
do bar, vestido com o seu avental branco, a beber um café e a ler o jornal.
Viu Mr. O'Sullivan hoje? k', Ele abanou a cabeça.
- Não, querida, é demasiado cedo para ele.
Voltei rapidamente àquele edifício imundo e bati à porta, sempre sem resultado. Sentei-me no degrau do patamar e tive de tapar o nariz, de tal maneira aquilo tresandava
a urina. Enquanto reflectia no que devia fazer, dois jovens rufias de cerca de vinte anos aproximaram-se e detiveram-se diante de mim: - Quem és tu? Que fazes diante
da porta do meu velho?
Respondi o mais polidamente possível: - Oh, olá! Não sei se sabem, mas eu casei com o vosso pai.
Eles esbugalharam os olhos, e o mais corpulento dos dois gritou: - O quê! Que idiotice é essa?
- Estou metida num verdadeiro sarilho e preciso da ajuda do vosso pai. Quero apenas que ele me acompanhe ao Serviço de Imigração para responder a duas ou três perguntas.
Eles retiveram-me o passaporte e tenho de recuperá-lo. Por isso, por favor...
- Desaparece, cadela imunda! .
- Ei, oiçam lá, eu dei todo o meu dinheiro ao vosso pai - disse eu apontando para a porta - e não sairei daqui sem o ter recuperado.
No entanto, o filho não era da mesma opinião. Tirou um bastão do blusão e brandiu-o ameaçadoramente, como se fosse partir-me o crânio.
- Ah, sim? Muito bem, vamos foder-te o canastro. Vamos dar-te uma lição que te fará passar a vontade de voltares a este bairro para contar as tuas mentiras.
O seu irmão riu; faltavam-lhe alguns dentes. Eu vira o suficiente. Aqueles tipos não tinham nada a perder. Eram capazes de me espancar até à morte no umbral daquela
porta, e ninguém interviria. Levantei-me de um salto e corri. Eles perseguiram-me durante cerca de cem metros e, satisfeitos por me terem assustado, deixaram-me
fugir.
Quando voltei para casa de Frankie nesse dia, decidi voltar a Croydon até encontrar o velho O'Sullivan. Não tinha alternativa. Frankie oferecia-me alojamento e desde
há algum tempo era ele que me pagava a comida, e tive de pedir dinheiro emprestado a outros amigos. Aquela situação não podia prolongar-se. Eu confiara tudo o que
possuía àquele escroque que se dizia especialista em assuntos de Imigração, e sem passaporte eu não podia trabalhar. Não tinha grande coisa a perder, a não ser alguns
dentes se deparasse de novo com os dois rufias. Tinha de ser prudente e mais esperta do que eles, o que não devia ser muito difícil.
No dia seguinte à tarde voltei ao ataque, mas evitando aproximar-me demasiado do edifício onde habitava Mr. O'Sullivan. Encontrei um pequeno largo ali próximo e
sentei-me num banco. Por sorte, vi-o alguns instantes mais tarde. Por alguma razão que desconheço, ele estava de bom humor e pareceu contente por me ver. Não se
fez rogado para me acompanhar a Londres.
- Pagar-me-ás por isto, hein? Eu fiz que sim com a cabeça.
- E depois oferecer-me-ás um copo, miúda?
- Quando tudo estiver terminado, pagar-lhe-ei tudo o que você consiga ingurgitar. Mas, antes do mais, tem de ter um ar mais ou menos normal diante daqueles senhores
da Imigração. Eles são uns verdadeiros sacanas. Depois, iremos até ao bar mais próximo.
Fomos recebidos pelos funcionários que já me tinham interrogado. Após terem observado Mr. O'SuIlivan, disseram-me com um ar severo: - É o seu marido?
- Sim.
- Muito bem, Mrs. O'Sullivan, acabemos com este jogo e conte-nos a história toda. Compreendendo que a brincadeira já se prolongara demasiado, suspirei e comecei
a desabafar, contando-lhes tudo desde o início: a minha carreira de modelo, o meu encontro com Harold Wheeler, o meu suposto casamento. Eles interessaram-se bastante
por Mr. Wheeler e forneci-lhes todas as informações que possuía a seu respeito, incluindo o respectivo endereço.
- Quanto ao seu passaporte, voltaremos a contactá-la dentro de alguns dias.
Quando nos encontrámos de novo na rua, Mr. O'Sullivan recordou-me a minha promessa de lhe oferecer uma bebida.
- Quer dinheiro? Aqui tem... - Vasculhei na minha carteira e retirei duas notas de dez libras que lhe estendi. - E agora, desapareça da minha vista! Não aguento
olhar mais para si!
- Só isto? - Agitou as duas notas no ar. - É só isto que me vais dar?
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Voltei-lhe as costas, deixando-o ali plantado.
Ele gritou: - PUTA! - Depois inclinou-se para gritar ainda com mais força: - PUTA DE MERDA!
Os transeuntes voltaram-se para me observar, provavelmente pensando por que razão lhe teria eu dado dinheiro se a puta era eu.
Alguns dias mais tarde, recebi nova convocatória do Serviço de Imigração. Explicaram-me que haviam aberto um inquérito sobre Harold Wheeler, mas ainda não tinham
podido interrogá-lo. A secretária informara que ele partira para a índia, e que ignorava a data do seu regresso. Enquanto esperavam, concederam-me um passaporte
provisório, válido por dois meses. Era a primeira boa notícia desde há muito tempo, e jurei aproveitar ao máximo aqueles dois meses.
Decidi ir em primeiro lugar para Itália porque, tendo vivido numa antiga colónia italiana, a língua era-me algo familiar. Na verdade, conhecia sobretudo as palavras
de calão que a minha mãe utilizava, mas que podiam revelar-se úteis para a ocasião. Comecei por ir até Milão, uma cidade pela qual me apaixonei à primeira vista.
Participei em desfiles de moda e conheci uma modelo chamada Julie. Julie era alta, tinha um corpo perfeito e cabelos louros que lhe davam pelos ombros. Fazia muitos
desfiles e fotografias com lingerie. Divertimo-nos tanto a visitar Milão juntas que decidimos ir tentar a nossa sorte em Paris.
Aqueles dois meses foram para mim um período fabuloso durante o qual tive oportunidade de visitar novos países, conhecer novas pessoas e descobrir outras comidas.
E apesar de não ter ganho muito dinheiro, tinha o suficiente para fazer aquela volta pela Europa. No final da época das colecções, voltei a Londres na companhia
de Julie.
Pouco depois do meu regresso, conheci um agente em Nova Iorque que andava à procura de novos talentos e que me encorajou a ir viver para os Estados Unidos, garantindo-me
que poderia arranjar-me bastante trabalho. Toda a gente pensava que Nova Iorque era efectivamente o mercado mais interessante, sobretudo para uma modelo negra. A
minha agência fez pois um contrato com o referido agente e desloquei-me à embaixada dos Estados Unidos para solicitar um visto.
A embaixada estudou o meu dossier, e entrou em contacto com as autoridades britânicas. Posteriormente a essa troca de informações, recebi uma carta do Serviço de
Imigração informando-me que ia ser expulsa de Inglaterra e enviada para a Somália num prazo de trinta dias. A minha amiga Julie estava em casa do seu irmão em Cheltenham.
Eu telefonei-lhe desfeita em lágrimas: - Estou metida num sarilho, e dos grandes. Acabou tudo para mim. Tenho de voltar para a Somália.
141
- Oh, não! Waris, por que não vens até cá passar alguns dias e descontrair? Cheltenliam fica a duas horas de comboio de Londres, numa região magnífica. Alguns dias
no campo far-te-ão bem e talvez encontremos uma solução.
Julie veio buscar-me à estação e conduziu-me até a casa do irmão através de paisagens que pareciam feitas de veludo verde. Sentámo-nos na sala e Nigel, o irmão dela,
veio ter connosco. Era alto, tinha a pele muito branca e cabelos louros, compridos e finos, mas os seus dentes da frente e as pontas dos seus dedos estavam manchados
de nicotina. Serviu-nos chá e depois sentou-se, fumando cigarros sucessivos enquanto eu lhe contava a lamentável história dos meus problemas de passaporte e o seu
próximo e triste desfecho.
Recostado na sua cadeira, de braços cruzados, Nigel disse subitamente: - Não te preocupes, eu ajudar-te-ei.
Surpreendida com aquela declaração vinda de alguém que conhecia apenas há cerca de meia hora, perguntei-lhe: - Como poderias ajudar-me?
- Casarei contigo.
Abanei a cabeça. - Oh, não! Já fiz essa asneira; foi isso que me meteu neste sarilho. Não vou recomeçar tudo de novo. Chega. Não suportaria passar por tudo outra
vez. Quero voltar para África e ser feliz. É lá que se encontra a minha família e tudo o que eu amo. Não compreendo nada deste país bizarro. Tudo aqui é louco e
confuso. Vou voltar para o meu país.
Nigel precipitou-se para o andar de cima. Quando desceu, trazia na mão um número do The Sunday Times com a minha fotografia na primeira página; um jornal velho com
mais de um ano, muito anterior à data em que eu conhecera Julie.
- Onde arranjaste isso?
- Guardei-o porque sabia que um dia te conheceria.
Apontou para um dos meus olhos na fotografia. - No dia em que vi esta fotografia, descobri aqui uma lágrima, no canto do olho, que rolava pela tua face. Quando olhei
para o teu rosto, vi-te chorar e soube que necessitavas de ajuda. Então Alá disse-me que era meu dever salvar-te.
Oh, merda. Abri desmesuradamente os olhos, fitei-o e pensei: Quem é este louco filho da mãe? Ele é que precisa de ajuda! Mas durante todo o fim de semana, Julie
e o irmão não pararam de me convencer: uma vez que Nigel estava disposto a ajudar-me, por que não tentar? Que futuro teria eu na Somália? Quem teria lá à minha espera?
As minhas cabras e os meus camelos? Fiz a Nigel as perguntas que não me saíam da cabeça:
- Que ganharás tu com isso? Por que queres casar-te comigo e expor-te a uma série de aborrecimentos?
- Já te disse. Não espero nada de ti. Foi Alá que me enviou ao teu encontro.
142
Lembrei-lhe que não bastava uma simples visita ao cartório do Registo Civil; eu já era casada.
- Muito bem, podes pedir o divórcio, e explicaremos aos tipos da Imigração que pretendemos casar-nos. Assim já não poderão expulsar-te. Iremos visitá-los juntos.
Eu sou um cidadão britânico, não poderão recusar. Eu partilho os teus problemas e estou aqui para te ajudar. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
- Não sei como agradecer-te...
Julie acrescentou: - Waris, se ele pode ajudar-te, por que não correr o risco? Não tens nada a perder, e não vejo outra solução.
Após tê-los ouvido durante vários dias, cheguei à conclusão de que, sendo Nigel irmão da minha amiga, eu podia confiar nele. Julie tinha razão: apesar de tudo, por
que não tentar a minha sorte?
Elaborámos então um plano: Nigel acompanhar-me-ia a casa de Mr. O'Sullivan para tratar do divorcio, pois eu não queria arriscar-me a encontrar-me a sós com os seus
filhos. Tendo em conta o que se passara entre nós anteriormente, Mr. O'Sullivan exigiria dinheiro antes de consentir fosse no que fosse. O simples facto de repensar
em tudo isto desencorajou-me, mas Julie e o irmão animaram-me de novo e garantiram-me que o nosso plano resultaria. Nigel precipitou as coisas:
- Anda daí. Metemo-nos no meu carro e vamos até Croydon.
Quando chegámos aos arredores sul de Londres, indiquei a Nigel onde vivia Mr. O'Sullivan, e preveni-o: - Tem cuidado. Esses tipos, os seus filhos, são loucos. Não
sei mesmo se ousarei sair do carro. - Nigel riu-se. - Não estou a brincar. Tentaram bater-me e perseguir-me. São loucos, garanto-te. Temos mesmo de ser cautelosos.
- Waris, vamos apenas dizer a esse velhinho que tu queres o divórcio. Apenas isso. Não é nenhuma coisa do outro mundo. .
Nigel estacionou diante do prédio de Mr. O'Sullivan. Enquanto batia à porta do apartamento do rés-do-chão, eu não cessava de vigiar a rua. Como não obtínhamos resposta,
sugeri irmos indagar no bar, mas Nigel respondeu-me: - Espera, vamos dar a volta ao edifício e tentar ver se ele estará em casa.
Ele era maior que eu e podia facilmente chegar às janelas. Depois de ter espreitado através de várias, voltou-se para mim com um ar estranho. - Tenho a impressão
de que se passa algo de errado ali dentro.
Pensei: Pois é, estás a ver como é: tenho sempre essa sensação quando tenho de lidar
com esse sacana.
- O que queres dizer com isso de "algo de estranho"?
- Não sei... É apenas uma impressão... Se eu pudesse entrar... - Enquanto dizia isto, começou a bater e a puxar uma das janelas para tentar abri-la.
O ruído atraiu uma vizinha que abriu a porta e gritou:
- Se procuram Mr. O'Sullivan, não o vimos nas últimas semanas.
Enquanto ela permanecia especada com os braços cruzados sobre o avental, Nigel conseguiu entreabrir a janela e um cheiro nauseabundo atingiu-nos em cheio. Tapei
o nariz e a boca com as mãos, e desviei a cara. Nigel espreitou pela fresta.
- Está estendido no chão. Está morto.
Depois de termos pedido à vizinha para chamar a polícia e uma ambulância, voltámos ao carro e regressámos a Cheltenham. Tenho vergonha de o confessar, mas senti-me
aliviada.
Pouco depois da descoberta do cadáver em decomposição de Mr. O'Sullivan, casei-me com Nigel. Os funcionários do Serviço de Imigração que tratavam do meu dossier
suspenderam o meu processo de expulsão, mas não esconderam a sua convicção de que este novo casamento também não passava de uma fraude. Nigel e eu concordámos que
seria preferível eu viver em Cheltenham, no coração de Cotswold Hills, enquanto esperava obter o meu passaporte.
Depois de ter vivido em Mogadíscio, e em seguida em Londres durante os últimos sete anos, eu esquecera até que ponto amava a natureza. Apesar de o campo inglês,
verde e salpicado de lagos e quintas, ser totalmente diferente do deserto da Somália, senti um enorme prazer em viver longe da cidade, dos edifícios de vários andares
e dos estúdios sem janelas. Em Cheltenham, podia fazer de novo algumas das minhas actividades predilectas dos meus tempos de nómada: andar, correr, colher flores
e plantas selvagens, fazer chichi ao ar livre
- uma vez ou outra, fui surpreendida de rabo ao léu no meio dos arbustos.
Nigel e eu tínhamos quartos separados e vivíamos como amigos, não como marido e mulher. Eu dissera-lhe que o ajudaria financeiramente assim que começasse a trabalhar,
mas ele insistira no facto de não esperar nada em troca da sua ajuda. Afirmava satisfazer-se com a alegria que lhe dava o facto de ter seguido o conselho de Alá
ajudando alguém num momento de necessidade. Uma manhã, levantei-me mais cedo do que o habitual - por volta das seis horas - porque tinha de ir a Londres participar
num casting. Nigel ainda dormia e desci ao rés-do-chão para preparar o café. Tinha acabado de enfiar umas luvas de borracha amarelas e começara a lavar a louça quando
soou a campainha da porta.
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Sem tirar as luvas que pingavam espuma, fui abrir. No patamar encontravam-se homens cujos rostos eram tão cinzentos quanto os seus fatos; cada um deles segurava
na mão uma pasta preta.
- Mrs. Richards?
- Sim.
- O seu marido está?
- Sim, lá em cima.
- Deixe-nos entrar, por favor. Somos do Serviço de Imigração. Como se não o tivessem escrito na testa!
- Entrem, entrem! Desejam café? Sentem-se, vou chamar o meu marido. Sentaram-se no confortável sofá da sala, mas tomando cuidado para não se encostar às almofadas.
Eu chamei suavemente: - Querido! Desce, por favor. Temos visitas
Nigel veio ter connosco, ainda ensonado, com os cabelos louros em desalinho. - Bom dia.
Compreendeu imediatamente a situação. - Sim? Em que posso ser-vos útil?
- Bem, gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas. Para começar, queremos certificar-nos de que a sua esposa e o senhor vivem mesmo juntos nesta casa. Vivem juntos,
aqui ? Ao ver o olhar de desprezo na cara de Nigel, compreendi que as coisas iam tornar-se interessantes, e por isso encostei-me à parede para observar o desenrolar
dos acontecimentos. Nigel perguntou-lhes: - Qual é a vossa opinião?
Os dois funcionários percorreram a divisão com os olhos. Estavam nervosos. - Hm... Sim, acreditamos na sua palavra mas, não obstante, temos de inspeccionar a casa.
A cara de Nigel tornou-se sombria e ameaçadora como um céu de tempestade. - Um momento. Não vão revistar a minha casa. Estou-me nas tintas para quem os senhores
são. Esta é a minha mulher, nós vivemos juntos, e podem constatá-lo. Os senhores apareceram sem aviso prévio, nem sequer nos deram tempo de nos vestirmos, por isso
agora façam o favor de sair da minha casa.
- Mr. Richards, não precisa de ficar tão zangado. A lei obriga-nos a...
- OS SENHORES ENOJAM-ME!
Ponham-se daqui para fora, rapazes, antes que seja demasiado tarde! Em vez de partirem, eles permaneceram sentados como se estivessem colados ao sofá. As suas caras
balofas exprimiam perplexidade.
- SAIAM DA MINHA CASA! Se voltarem aqui, abater-vos-ei como cães e... e morrerei por ela - acrescentou, apontando para mim.
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Eu limitei-me a abanar a cabeça, pensando para comigo: Este tipo é completamente louco, e está mesmo apaixonado por mim. Vou ter problemas. Que raiofaço eu aqui?
Devia ir-me embora, devia ter voltado para África.
Ao fim de dois meses naquela casa, eu disse a Nigel: - Põe-te bonito, compra uns sapatos decentes e arranja uma namorada. Eu ajudo-te.
Mas ele respondia-me: - Uma namorada? Não quero namorada nenhuma. Graças a Deus tenho uma mulher, para que quereria eu uma namorada?
Quando ele dizia isto, eu ficava completamente transtornada. - Mete a cabeça na retrete e puxa o autoclismo, seu psicopata! Acorda e sai da minha vida! Eu não te
amo! Tu querias ajudar-me e fizemos simplesmente um acordo. Eu nunca serei o que tu gostarias que eu fosse. Não posso fingir amar-te só para te tornar feliz.
Embora tivéssemos feito um pacto, Nigel já não o respeitava. Quando ele gritara até ficar escarlate com os tipos da Imigração, não estava a mentir. Para ele, tudo
o que lhes dissera era a mais pura verdade. E as coisas eram tanto mais complicadas quanto eu precisava dele. Eu gostava dele, como amiga, estava-lhe reconhecida
por me ter ajudado, mas recusava-me a qualquer relação amorosa e tinha vontade de o matar quando ele se comportava como se eu fosse a sua querida mulher, uma coisa
sua. Senti muito rapidamente que tinha de me pôr ao fresco, e que quanto mais cedo melhor, se não queria tornar-me tão louca quanto ele.
Mas o meu dilema do passaporte perpetuava-se, e quanto mais dependia de Nigel, mais exigente ele se tornava. Eu tornara-me uma obsessão para ele. Queria sempre saber
onde eu estava, o que fazia, com quem estava. Suplicava-me que o amasse, e quanto mais me implorava, mais eu o detestava. Felizmente, de vez em quando eu arranjava
trabalhos em Londres ou ia visitar amigos. Não perdia uma oportunidade para me afastar dele, numa tentativa de permanecer sã de espírito.
Vivendo com aquele homem que era obviamente louco, era-me bastante difícil não ficar eu própria também louca. Acabei por desesperar de obter o passaporte - o meu
bilhete para a liberdade - e um dia, quando estava em Londres à espera na plataforma da gare, quase me atirei para debaixo de um comboio que chegava. Durante alguns
segundos deixei o seu rugido invadir-me, imaginando o que sentiria quando aquelas toneladas de aço me esmagassem os ossos. A tentação de acabar com todos os meus
problemas foi muito forte, mas pensei: Para quê estragar a minha vida por causa deste homem patético?
Após um ano de espera, Nigel foi ao Serviço de Imigração fazer um escândalo que finalmente me permitiu obter um passaporte provisório. Quando lá chegou, desatou
a gritar:
- A minha mulher é uma modelo internacional. Precisa de passaporte, porque tem de viajar Para o estrangeiro devido à sua profissão. - BAM!, deixou cair o catálogo
com todas as
146
minhas fotografias em cima da secretária. - Raios parta, sou um cidadão britânico, e tenho vergonha do meu país! Estou revoltado pela forma como tratam a minha mulher!
Exijo que lhe arranjem um passaporte. JÁ!
Pouco tempo depois, as autoridades britânicas apreenderam o meu passaporte somali e emitiram um documento provisório que me permitia sair do Reino Unido mas que
tinha de ser renovado periodicamente. Numa das páginas estavam carimbadas as palavras: "Válido para todos os países, à excepção da Somália". Eram as palavras mais
tristes que eu podia imaginar. A Somália estava em guerra, e os ingleses não queriam que eu corresse riscos enquanto me encontrasse sob a sua protecção. Na medida
em que me tornara residente, eles eram responsáveis pela minha segurança. Quando li aquelas palavras, murmurei: - Meu Deus, que fiz eu? Já nem sequer posso voltar
ao meu país!
Doravante, eu era uma estranha. Se alguém me tivesse explicado as opções que me eram oferecidas, eu teria respondido: esqueçam tudo. e devolvam-me o meu passaporte
somali. Mas ninguém me perguntara a minha opinião, e agora era demasiado tarde para voltar atrás. Uma vez que não podia fazê-lo, restava-me apenas uma coisa: ir
em frente. Voltei pois à Embaixada dos Estados Unidos para apresentar um novo pedido de visto e marquei voo para Nova Iorque - sozinha.
O CLUBE DOS GRANDES
Nigel insistira em acompanhar-me a Nova Iorque. Nunca lá fora e, no entanto, parecia conhecer perfeitamente a cidade.
É um sítio completamente louco! Tu nem sequer sabes aonde ir, e sentir-te-ás completamente perdida sem mim. Além do mais, seria perigoso ires sozinha. Eu proteger-te-ei.
Talvez, mas quem me protegeria dele? Era impossível fazer-lhe entender a razão, dis-
sesse eu o que dissesse, fizesse o que fizesse. Quando tentava discutir com ele, ele não cessava de repetir os mesmos argumentos rebuscados, como um papagaio louco,
até eu acabar por ceder; mas desta vez não tencionava fazê-lo. Eu considerava aquela viagem sozinha como um novo começo para a minha carreira, uma oportunidade de
refazer a minha vida, longe de Inglaterra, longe de Nigel e da nossa relação doentia.
Em 1991, desembarquei sozinha em Nova Iorque e o meu agente foi instalar-se provisoriamente em casa de um amigo para me ceder o seu apartamento situado em Greenwich
Village, em pleno coração da parte mais excitante de Manhattan. À excepção de uma grande mina, o apartamento encontrava-se praticamente vazio, mas aquela simplicidade
convinha-me na perfeição.
Prevendo a minha chegada, a agência arranjara-me um grande número de compromissos. Nunca o meu tempo fora tão preenchido, e nunca ganhara tanto dinheiro. Na primeira
semana trabalhei todos os dias; e, após quatro anos durante os quais a inactividade me pesara, não me passava pela cabeça lamentar-me.
Tudo corria bem, até a uma tarde em que eu estava numa sessão de fotografias num estúdio. Durante uma pausa, telefonei para a minha agência com o intuito de saber
o que estava, previsto para o dia seguinte. A pessoa que tratava da minha agenda acrescentou no
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final: - E também telefonou o seu marido. Estará em Nova Iorque hoje, e encontrar-se-á consigo logo à noite em casa.
- O meu marido! Deu-lhe a minha morada?
- Uh-huh. Ele disse que você estava tão assustada antes de partir que se esqueceu de o fazer. O seu marido é muito simpático, disse-me: "Quero apenas certificar-me
de que ela
está bem. Sabe, é a sua primeira viagem a Nova Iorque".
Desliguei bruscamente e permaneci imóvel durante um minuto, tentando recuperar o fôlego. Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Sim, acreditava, mas desta
vez Nigel ultrapassara todos os limites. Eu não culpava o pobre tipo da agência, ele não podia saber que o meu marido não era um verdadeiro marido. E como poderia
eu explicar-lho? Compreende, nós somos casados, é verdade, mas ele é completamente louco; só casei com ele para obter o passaporte e não ser extraditada para a Somália.
Agora, em relação a essas entrevistas para amanhã..-. O pior era que aquele louco era na verdade legalmente o meu marido.
Quando voltei a casa nessa noite, estava decidida a resolver o problema de uma vez por todas. Nigel chegou conforme previsto. Deixei-o entrar e, sem lhe dar tempo
de tirar o casaco, disse-lhe num tom firme e glacial: - Vem, convido-te para jantar.
Quando já estávamos sentados no restaurante, desabafei finalmente: - Nigel, ouve-me. Já não te suporto ver. Não te suporto. Pões-me doente! Quando estás perto de
mim, não consigo trabalhar, nem reflectir. Fico enervada, tensa, e só penso numa coisa: que tu te vás embora.
Tinha perfeita consciência de estar a dizer coisas horríveis, e não sentia o menor prazer naquilo, mas estava desesperada. Se me mostrasse suficientemente cruel
e má, talvez conseguisse fazê-lo compreender o que sentia.
Ele ficou com um ar tão triste e desgraçado que me senti culpada. - Está bem, já compreendi. Não devia ter vindo. Amanhã tomo o primeiro avião de volta para Londres.
- óptimo. Vai-te embora! Não quero voltar a ver-te quando regressar a casa amanhã à noite. Vim aqui para trabalhar, não de férias. Não tenho tempo a perder com as
tuas ideias loucas.
No dia seguinte ao final da tarde, lá estava ele, sentado no escuro, junto à janela, a olhar para o exterior. Apático, solitário e infeliz, mas ainda ali. Quando
comecei a gritar, ele prometeu-me partir no dia seguinte, mas só tomou o avião para Londres dois dias depois. Obrigada, meu Deus. Finalmente vou ter um pouco de
paz. A minha estadia em Nova Iorque prolongou-se porque os contratos não cessavam de surgir. Contudo, Nigel não me deixou tranquila. Utilizando o número do meu cartão
de crédito, que conseguira anotar subrepticiamente, comprou passagens de avião e voltou mais três vezes, sem prevenir.
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Apesar da minha relação absurda com o meu segundo marido, a minha vida decorria maravilhosamente. Conhecia muitas pessoas interessantes e a minha carreira recomeçara
em pleno. Trabalhava para a Benetton e para a Levis, e participara, vestida com túnicas africanas brancas, numa série de anúncios publicitários para Pomellato, um
joalheiro. Fiz fotos para a Revlon, e em seguida fui contratada para ser a imagem do seu novo perfume chamado Ajee, cuja publicidade afirmava tratar-se de um cheiro
"vindo do coração de África para conquistar o coração de todas as mulheres". Todas estas marcas tiraram partido da minha diferença: a minha aparência africana e
exótica - a mesma que me impedira de arranjar trabalho em Londres. Com vista aos Prêmios da Academia, a Revlon filmara um anúncio especial no qual eu aparecia ao
lado de Cindy Crawford, Claudia Schiffer e Laurene Hutton. A cada uma de nós era feita a mesma pergunta: "O que é que torna uma mulher revolucionária?". E cada uma
respondia à sua maneira. A minha resposta resumia a história da minha vida: "O facto de ser uma nómada da Somália que se tornou numa modelo da Revlon.
Um pouco mais tarde, tornei-me a primeira modelo negra a fazer publicidade para Oil of Olay, e participei em clips vídeo para Robert Palmer e Meat Loaf. Todos estes
sucessos fizeram bola de neve, o que me valeu ser contratada logo de seguida pelas mais famosas revistas de moda: Elle, Allure, Glamour, a Vogue italiana e a Vogue
francesa. Tive, pois, oportunidade de trabalhar com os maiores fotógrafos, incluindo o legendário Richard Avdon. Apesar de ser mais famoso do que as modelos que
fotografa, adoro Richard pelo seu lado terra-a-terra e pelo seu humor. E apesar de ele trabalhar nesta profissão há décadas, perguntava-me constantemente a minha
opinião sobre o seu trabalho: "Waris, que achas desta perspectiva?". Eu sentia-me extremamente sensibilizada por ver que ele levava em conta a minha opinião. Richard
e Terence Donovan são dois homens que eu respeito.
Ao longo dos anos, elaborei a lista dos meus fotógrafos preferidos. Com a experiência, descobri até que ponto podia ser diferente, em termos de qualidade, posar
para um ou para outro. Para mim, um grande fotógrafo de moda é aquele que é capaz de revelar a verdadeira personalidade do modelo com quem trabalha, mais do que
impor-lhe uma imagem pré-concebida. É verdade que, à medida que envelheço, tenho cada vez mais consciência de quem sou, e da minha diferença. Ser-se negra nesta
profissão, em que a maior parte das manequins têm a pele branca como porcelana, e longos cabelos sedosos que lhes dão pelo joelho, é ser uma excepção. Aconteceu-me
trabalhar com fotógrafos que se serviam da luz, da maquilhagem e do penteado para me fazerem parecer aquilo que eu não era. Não tive prazer em colaborar com eles
e não gostei do resultado do seu trabalho. Se precisam de Cindy Crawford, deviam mesmo contratar Cindy Crawford, em vez de escolherem uma modelo
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negra e colarem-lhe uma peruca e encherem-lhe a cara de uma base clara para tentar fazer dela uma sósia negra e bizarra de Cindy Crawford. Os fotógrafos com os quais
gosto de trabalhar apreciam a beleza natural e esforçam-se por realçá-la. No meu caso, não têm a tarefa facilitada, mas eu respeito o seu esforço.
O número dos meus contratos crescia ao ritmo da minha popularidade. A minha agenda transbordava de castings, de desfiles de moda e de sessões fotográficas, mas a
minha concepção do tempo e a minha resistência a usar calendários e relógios não me facilitavam as coisas. No meio dos arranha-céus de Manhattan, eu já não podia
viver pela hora solar baseando-me no comprimento da minha sombra, e comecei a ter problemas por causa dos meus constantes atrasos. Também descobri que era disléxica.
Quando tinha uma entrevista na Broadway 725, ia ter ao 527, e quando lá chegava espantava-me por não haver ninguém. isto já acontecera em Londres, mas como o meu
tempo em Nova Iorque era bastante mais preenchido, o problema tornava-se mais grave.
À medida que adquiria experiência e me tornava mais segura de mim mesma, descobri que preferia acima de tudo os desfiles de moda. Os grandes costureiros apresentam
as suas novas colecções duas vezes por ano. O circuito de apresentações começa em Milão, durante duas semanas, depois continua em Paris e em Londres antes de terminar
em Nova Iorque. Os meus tempos de nómada haviam-me preparado para esta existência itinerante que obriga viajar com um mínimo de bagagem, a deslocar-me em função
do trabalho, a viver o dia-a-dia aproveitando ao máximo o que o momento presente oferece. Quando a abertura da estação se aproxima, todas as modelos profissionais
e todas aquelas que sonham sê-lo estão em Milão. A cidade é subitamente invadida por uma multidão de mulheres mutantes altas que correm em todos os sentidos como
formigas. Vêem-se em todas as esquinas, em todas as paragens de autocarro, em todos os cafés. Não é possível confundi-las com o resto da população feminina. Algumas
são amistosas, outras olham-se dos pés à cabeça, outras ainda têm um medo terrível pois estão ali pela primeira vez e não conhecem ninguém. Algumas entendem-se bem,
outras detestam-se. Encontra-se de todos os géneros de todos os tipos, e estaria a faltar à verdade se dissesse que não existe ciúme entre elas, poio ciúme faz parte
integrante desta profissão.
A agência encarrega-se dos compromissos e resta apenas percorrer Milão inteira para tentar arranjar um lugar nos desfiles. É nessa altura que compreendemos que a
profissão modelo não tem apenas lados bons. Longe disso. Por vezes temos oito, dez ou mesmo doze entrevistas num só dia, o que nos obriga a correr de manhã à noite
sem termos tempo para comer, porque estamos sempre atrasadas em relação aos horários. Muitas vezes, quando
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chegamos a um casting, há já trinta raparigas numa fila, e temos de esperar pacientemente a nossa vez antes de podermos mostrar o nosso perfil.
Se o eventual cliente está interessado, pede-nos para darmos alguns passos e fazer meia volta. Se gosta mesmo de nós, pede-nos que experimentemos passar uma das
suas peças; e é tudo. "Obrigado. A seguinte!".
Nunca sabemos se tivemos ou não sorte, mas não temos tempo para nos preocuparmos com isso, porque já estamos a caminho do compromisso seguinte. Se os costureiros
estão interessados, contactam a nossa agência e contratam-nos. Entretanto, aprendemos a não nos preocuparmos com os trabalhos em que estávamos verdadeiramente interessadas
e que perdemos, a não nos sentirmos magoadas quando os nossos costureiros preferidos nos desdenham. Se começássemos a pensar: Será que vou ser escolhida? Por que
não me terão querido?, rapidamente ficaríamos loucas. Quando começamos a ficar preocupadas por termos perdido um trabalho, rapidamente começamos a desesperar. Ao
princípio, eu ficava aborrecida. Por que não terei conseguido desta vez? Caramba, eu queria mesmo este trabalho! Mas depois aprendi a adoptar por divisa a expressão
francesa: Cest la vie! Tanto pior, não resultou, paciência. Não gostaram de mim, é tão simples quanto isso. Não tenho culpa nenhuma. Se eles estavam à procura de
uma rapariga com dois metros e quarenta quilos, bem, é porque não estavam interessados em Waris. Há que ir em frente, rapariga.
Quando um cliente nos escolhe, temos de participar nas provas de roupa. Os desfiles ainda não começaram e já nos sentimos vazias, exaustas; não temos sequer tempo
de dormir nem de comer convenientemente. Ficamos com um ar cansado e abatido, e as coisas não melhoram quando devíamos estar na nossa melhor forma, e beleza porque
a nossa carreira depende disso. A tal ponto que acabamos por pensar: Por que estarei afazer isto? Que raio faço eu aqui?
Quando os desfiles começam, continuamos a participar em castings porque tudo se passa em duas semanas. No dia do show, temos de estar no local bem antes do início
do desfile. As raparigas estão todas encafuadas num espaço exíguo. Passamos em primeiro lugar pela maquilhagem, depois sentamo-nos onde podemos, enquanto esperamos
que nos penteiem, e depois ainda esperamos algum tempo antes de vestirmos a primeira peça que apresentaremos no desfile. A partir desse momento, permanecemos de
pé para não amarrotarmos as roupas. Depois, o desfile tem início e subitamente é o caos, a loucura: "Eh! O que estás a fazer? Onde está Waris? Onde está Naomi? Vem
cá! Põe-te à frente! Despacha-te! Tu és o número nove. Vais ser a próxima". Temos de mudar de roupa diante de todos. "Já vou, já vou. Calma!". Toda a gente se empurra.
"O que estás a fazer? Sai da minha frente! Agora é a minha vez! ".
Depois de todo este trabalho preliminar, chega finalmente o melhor momento: é a tua vez; és a próxima a desfilar e aguardas a tua vez nos bastidores. E depois, BOOM!
Avanças
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sobre o palco, as luzes brilham, a música soa a jorros pelos altifalantes, toda a gente está de olhos postos em ti, e esforças-te por parecer descontraída; tens
vontade de gritar: ISTO SOEU. TODOS VÓS - OLHEM PARA MIM. Estamos maquilhadas e penteadas pelos grandes nomes desta profissão, envergamos roupas tão caras que nem
sequer podemos sonhar um dia possuí-las, mas por alguns segundos são nossas, e sabemos que estamos deslumbrantes. O nosso sangue circula a uma velocidade vertiginosa,
e quando abandonamos o palco só pensamos numa coisa: ir trocar de roupa e voltar novamente. O desfile propriamente dito dura apenas vinte ou trinta minutos, mas
sucede participarmos em três, quatro, cinco passagens de modelos no mesmo dia; nesse caso, temos de partir a correr para a seguinte mal acabamos uma.
Quando as duas semanas de loucura terminam, a colónia de maquilhadores, cabeleireiros e manequins deixam Milão como um bando de ciganos. E depois o mesmo processo
repete-se em Paris, Londres e Nova Iorque. No final da época, mal nos aguentamos de pé precisamos desesperadamente de férias. O melhor é refugiarmo-nos numa pequena
ilha longínqua, longe do telefone, para tentarmos descontrair. Se não o fazemos, se insistimos em trabalhar, a fadiga acaba por nos aniquilar completamente. Apesar
de a profissão de modelo ser agradável, apesar de gostar do seu lado fascinante brilhante, pode ser cruel e destruidora para uma jovem vulnerável. Aconteceu-me ouvir
estilistas ou fotógrafos exclamarem horrorizados: "Meu Deus! O que é que tem nos pés? Que são todas essas horríveis marcas negras?". Que resposta poderia eu dar?
Que são as cicatrizes deixadas pelas feridas quando eu caminhava sobre centenas de espinhos e pedra no deserto somali, uma recordação dos treze anos durante os quais
vivi descalça? Como explicar isto a um costureiro parisiense?
Quando me pediram para vestir uma mini-saia pela primeira vez, senti-me pouco à-vontade. Comecei a apoiar-me num pé e no outro esperando que ninguém se apercebesse
do meu problema. Eu tinha as pernas arqueadas, consequência da vida nómada e da má nutrição, e essa limitação fez-me perder alguns trabalhos.
Tinha tanta vergonha das minhas pernas que fui consultar um médico para ver se ele mas poderia endireitar. - Opere-me, faça o necessário para eu deixar de me sentir
humilhada. - Graças a Deus, ele respondeu-me que eu já ultrapassara a idade e que não resultaria À medida que envelheço, dou comigo a pensar: Apesar de tudo, são
as minhas pernas, e são símbolo do que eu sou e de onde venho. Aprendendo a conhecer melhor o meu corpo, acabei por gostar das minhas pernas. Se tivesse sido operada
para participar em mais alguns desfiles e valorizar as criações de um grande costureiro, ter-me-ia arrependido bastante. Hoje, sinto-me muito orgulhosa porque elas
têm uma história, a da minha vida. As minh153
pernas arqueadas percorreram milhares de quilómetros no deserto, e o meu andar lento e ondulante é o de uma mulher africana, faz parte da minha herança.
Como todos os outros meios, o da moda também tem a sua percentagem de pessoas desagradáveis. Talvez devido ao facto de algumas decisões terem consequências muito
fortes, alguns deixam-se atingir pelo stress. Lembro-me de ter trabalhado para Uma grande revista de moda cuja directora artística - uma verdadeira cabra - tinha
um Comportamento agressivo, capaz de transformar uma pausa de trabalho num autêntico pesadelo. Estávamos a fazer fotografias de exterior numa magnífica ilhazinha
das Caraíbas. A paisagem era paradisíaca e devíamos estar todos muito felizes por nos pagarem para estarmos num sítio onde outros tinham de pagar fortunas para passarem
alguns dias de férias. Só que também já estava essa tal mulher. Perseguiu-me desde o primeiro minuto: - Waris, tem mesmo de se abanar. Levante-se e mexa-se. Você
é bastante preguiçosa. Não se pode trabalhar com pessoas como você.
Telefonou para a minha agência de Nova Iorque para se queixar, dizendo que eu era uma idiota e que me recusava a trabalhar. Eles ficaram tão surpreendidos quanto
eu.
Esta mulher era triste de fazer dó e nitidamente frustrada; não tinha um homem na sua vida, nem amigos, ninguém a quem amar. O trabalho era tudo para ela, e investia
nele toda a paixão, amor e ódio que tinha dentro de si. Vingava-se de todas as suas frustrações em mim, e eu não era certamente a primeira nem a última a servir-lhe
de bode expiatório. Ao fim de alguns dias, contudo, perdi qualquer simpatia por ela. Pensei: Há apenas duas soluções com esta mulher: esbofeteá-la em público, ou
não lhe responder e contentar-me em olhar para ela sorrindo. E concluí: É melhor não responder.
A ideia de que raparigas muito jovens, que dão os primeiros passos nesta profissão, possam deparar com uma mulher destas, entristece-me. Por vezes são praticamente
umas crianças que deixaram o seu Oklahoma, a sua Georgia ou o seu Dakota para irem até Nova Iorque, Paris, Londres ou Milão, tentar a sua sorte na profissão. A maior
parte nunca saíram dos Estados Unidos, e não falam francês nem italiano. São ingénuas, e as pessoas aproveitam-se disso. Não suportam a ideia de se sentirem rejeitadas
e postas de parte. Não possuem nem a experiência nem a sabedoria, nem a força de carácter necessárias para compreender que não têm nada de que recriminar-se, e muitas
retomam o caminho de regresso desfeitas em lágrimas, e amargas.
Este meio também está cheio de escroques de todas as espécies. Muitas jovens que procuram desesperadamente tornar-se modelos caem nas mãos de supostas agências que
lhes pedem uma pequena fortuna para lhes organizarem um portfolio. Tendo sido pessoalmente vítima de Harold Wheeler, sinto-me particularmente sensibilizada para
este género de intrujice. Não andamos nesta profissão para gastar dinheiro, mas para ganhá-lo. Se uma
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pessoa quer tornar-se modelo, bastam-lhe alguns bilhetes de autocarro ou de metro para visitar as agências sérias de Milão, Paris, Londres ou Nova Iorque. Pode consultar
as páginas amarelas e telefonar para marcar uma entrevista. Se a pessoa que a atender lhe falar em direitos de inscrição, o melhor é esquecer. Se uma agência séria
pensa que alguém tem a aparência que lhe convém, ajudará essa pessoa a organizar o seu porffolio, arranjar-lhe-á entrevistas, enviá-la-á a castings, e em breve essa
pessoa terá trabalho.
Não só algumas pessoas são muito desagradáveis como as condições de trabalho nem sempre são ideais. Aconteceu-me aceitar um projecto sabendo apenas que havia um
touro envolvido. Apanhei o avião de Nova Iorque para Los Angeles, e depois um helicópetro conduziu-me pelo deserto da Califórnia. Encontrei o fotógrafo, a sua equipa,
e um enorme touro com uns longos chifres pontiagudos. Entrei numa pequena caravana para ser maquilhada e penteada, e depois o fotógrafo conduziu-me até junto do
animal cujo proprietário o segurava por uma amarra.
- Diz olá a Satan - diz-me o fotógrafo.
- Oh! Olá, Satan. É maravilhoso. Fantástico. Mas, é inofensivo?
Oh, sim, claro. Este é o dono - o fotógrafo apontou para um homem que segurava Satan. - Ele sabe como lidar com ele.
O fotógrafo explicou-me então em que consistia o trabalho. A fotografia destinava-se a ilustrar o rótulo de uma garrafa de licor, e eu tinha de cavalgar aquele touro,
nua. A notícia causou-me um choque, porque ninguém me tinha prevenido, mas, não querendo fazer figuras tristes, decidi aceitar as regras do jogo.
Tinha pena do touro porque o calor era insuportável e as suas narinas pingavam. Estava atado de forma a não poder mover-se, mas comportava-se com grande dignidade.
O fotógrafo juntou as mãos em degrau para me ajudar a montar no dorso do enorme animal.
- Deite-se de barriga para baixo. Estenda-se. Estenda as pernas.
Enquanto me esforçava por ter um ar descontraído, divertido e sexy, pensava para comigo: Se esta coisa desata aos coices, estou tramada. De repente, senti o seu
couro peludo dobrar-se sob o meu ventre nu, depois levantar-se com violência, e vi o horizonte do deserto do Mejave oscilar enquanto fazia um voo picado e aterrava
na areia escaldante com um ruído surdo.
- Está bem?
- Sim, sim... - Estava a armar em dura, tentando não dar parte fraca. Não queria que me tratassem como uma cobarde, que pudessem dizer que Waris Dirie tinha medo
de um velho touro. - Vamos. Ajude-me a montar de novo.
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A equipa levantou-me e ajudou-me a montar; mas o touro, aparentemente, não suportava o calor e desembaraçou-se de mim por mais duas vezes. À terceira aterragem,
torci o tornozelo, que começou imediatamente a inchar. Estendida na areia, perguntei ao fotógrafo:
- Conseguiu o que queria?
- Oh, seria perfeito se pudéssemos fazer mais um rolo...
Felizmente, por uma razão que ignoro, a fotografia com o touro nunca chegou a ser utilizada, o que para mim constituiu um alívio. A ideia de um grupo de velhos a
bebericar licor enquanto contemplavam as minhas nádegas não me alegrava nada. Após este episódio, decidi nunca mais voltar a aceitar Posar nua; muito simplesmente
porque não me agradava, Dinheiro algum justifica sentirmo-nos assim vulneráveis, incomodadas e impotentes perante todas aquelas pessoas, enquanto esperamos ardentemente
por uma pausa para nós enrolarmos num roupão.
A história do touro felizmente não passou de uma excepção. Quase sempre gostei do que a profissão de modelo exigiu de mim. É certamente a carreira mais agradável
que se pode ter. E desde o dia em que Terence Donovan me instalou diante de uma câmara fotográfica, e depois me levou a Bath, nunca consegui habituar-me à ideia
de que poderiam pagar-me muito simplesmente pela minha aparência. Nunca pensei que poderia ganhar a vida exercendo uma actividade que se parece tanto com uma brincadeira
e tão pouco com um trabalho, e sinto-me feliz por ter perseverado. Estou reconhecida à divina providência por me ter permitido triunfar nesta profissão, porque não
somos Muitas a conseguir beneficiar desse privilégio. Tantas jovens procuram desesperadamente um lugar ao sol.
Lembro-me do tempo em que era uma empregada em casa do tio Mohammed, e em que sonhava tornar-me modelo, E daquela noite em que finalmente arranjei coragem para perguntar
a Iman o que devia fazer para o conseguir. Dez anos mais tarde, estava a fazer fotografias para a Revlon num estúdio em Nova Iorque quando o maquilhador me veio
dizer que Iman estava a trabalhar ali mesmo ao lado para a sua nova linha de produtos de beleza. Precipitei-me para ir vê-la.
- Oh, vejo que já tens a tua própria linha de produtos. Por que não me convidaste para posar para a tua linha de maquilhagem?
Ela olhou para mim, .,defensivamente, e murmurou: - Tu estás acima das minhas possibilidades.
Respondi-lhe em somali: -Por ti, teriafeito isso gratuitamente.
É curioso que ela nunca teria compreendido que eu continuava a ser a mesma rapariga, a empregada que lhe tinha levado o seu chá.
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O mais curioso é que não procurei ser modelo, aconteceu por acaso; e talvez seja por isso que nunca me levei demasiado a sério. Para mim, o importante não é ser
uma "supermodelo" ou uma "estrela", porque ainda continuo sem compreender por que é que algumas de nós se tornaram subitamente tão famosas. A cada dia que passa,
o mundo da moda está um pouco mais louco, criam-se novas revistas e novos programas de televisão consagrados às supermodelos; pergunto-me: Tanto barulho para quê?
Porque somos modelos, algumas pessoas tratam-nos como deusas, outras como idiotas. Aconteceu-me muitas vezes ser confundida com esta segunda categoria de pessoas.
Uma vez que ganho a vida com a minha cara, devo ser estúpida. Com ares superiores, as pessoas dizem-me: - É modelo? Ah, que pena... Cérebros de galinha. Basta-lhe
ser bonita e posar para uma câmara fotográfica. -
Conheci todos os tipos de manequins, e é verdade que algumas não eram muito dotadas; mas a maioria são inteligentes e cultas, viajaram muito e sabem tanto sobre
muitos assuntos como qualquer outra pessoa. São verdadeiras profissionais que gerem bem os seus negócios e sabem como comportar-se em todas as circunstâncias. Certas
pessoas inseguras e más, como aquela directora artística que referi atrás, têm dificuldade em habituarem-se à ideia de que algumas mulheres possam ser bonitas e
inteligentes. Sentem necessidade de nos colocarem no nosso lugar falando-nos com condescendência, tratando-nos como se não passássemos de um bando de pobres idiotas
aperaltadas.
As implicações morais da moda e da publicidade são incrivelmente complexas. Apesar de as minhas prioridades serem o amor pela natureza, a bondade, a família e a
amizade, ganho a vida a dizer: "Comprem isto, é maravilhoso! ". Vendo muitas coisas com um grande sorriso. Podia adoptar uma atitude crítica e dizer: "Por que faço
isto? Estou a contribuir para a destruição do mundo". Mas penso que muitas pessoas podiam dizer o mesmo do seu trabalho, em determinados momentos das suas carreiras.
O lado bom da minha profissão é que me permitiu conhecer pessoas maravilhosas, visitar sítios magníficos e contactar com outras culturas, tudo coisas que me levaram
a querer proteger o mundo em vez de o destruir. E acontece que em vez de ser mais uma somali atingida pela pobreza, tenho a oportunidade de fazer algo nesse sentido.
O que mais apreciei na profissão de modelo não foi a celebridade, mas o facto de me sentir cidadã do mundo. Muitas vezes, quando viajava devido ao meu trabalho,
deslocávamo-nos a ilhas magníficas e aproveitava os meus momentos de lazer para dar uma escapadela até à praia mais próxima e simplesmente correr sobre a areia.
Era maravilhoso sentir-me de novo livre em plena natureza e ao sol. Depois, enfiando-me entre as árvores157
sentava-me tranquilamente a ouvir o canto dos Pássaros. Fechava os olhos e, sentindo o perfume adocicado das flores e o sol no rosto, imaginava-me de novo em África.
Tentava reencontrar aquela sensação de paz e tranquilidade que me lembrava a Somália, e tinha a sensação de me encontrar de novo em casa.
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REGRESSO A SOMÁLIA
Em 1995, após uma longa série de sessões fotográficas e de desfiles de moda, decidi tirar umas férias em Trindad. Era a época do carnaval, e toda a gente andava
disfarça-
da, dançando, divertindo-se e gozando a alegria de viver. Eu estava em casa de uma família que conhecia. Estava lá apenas há dois dias quando um homem se apresentou
à porta. A mãe de família, uma senhora de idade a quem nós chamávamos tia Monica, levantou-se para ir ver o que ele queria. O sol do fim da tarde ainda estava quente,
mas a divisão onde nos encontrávamos estava escura e fresca. A silhueta do homem no umbral da porta recortava-se na luz crua do exterior; eu não podia ver-lhe a
cara, mas ouvi-o dizer que procurava alguém, uma pessoa chamada Waris. Então a tia Monica chamou-me:
Waris, um telefonema para ti.
Um telefonema? Onde é que há um telefone? Segue este senhor, ele mostrar-te-á.
Era um vizinho da tia Monica, a única pessoa que possuía um telefone. Acompanhei-o a sua casa. À entrada, ele apontou-me o telefone com o auscultador fora do descanso.
- Estou?
Era da minha agência de Londres. - Oh, olá, Waris. Desculpa incomodar-te, mas fomos contactados pela BBC. Tens de entrar em contacto com eles com urgência. Querem
falar-te sobre um projecto para um documentário.
- Um documentário? Sobre quê?
- As tuas origens e o teu percurso. A tua nova vida de top-model e o que pensas de tudo isso.
- Não existe matéria suficiente para fazer uma história. Quer dizer, por amor de Deus não podiam encontrar algo de mais original?
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- Seja como for, é melhor conversares com eles sobre isso. Quando pensas poder telefonar-lhes?
- Ouve, não tenciono telefonar seja a quem for.
- Eles precisam mesmo de te falar com urgência
- Diz-lhes simplesmente que conversarei com eles quando voltar a Londres. A partir daqui, passarei de novo por Nova Iorque e depois apanharei o avião para Londres.
Telefonar-lhes-ei quando chegar.
- Bom, de acordo.
No dia seguinte, enquanto eu andava a passear-me pela cidade, o vizinho da tia Mónica veio dizer-lhe que havia um segundo telefonema para mim, o que eu não soube
na altura. No dia seguinte houve um terceiro telefonema. Segui o vizinho até sua casa; ele estava a ficar visivelmente farto de vir chamar-me. Claro que era de novo
da minha agencia.
- Sim, que se passa?
- Waris, recebemos outro telefonema da BBC. Dizem que é muito urgente, que precisam absolutamente de te falar. Devem telefonar-te amanhã, por esta hora.
- Será que não compreendem que estou de férias? Não quero falar com ninguém. Fugi a tudo isso por alguns dias, por isso deixem-me em paz e parem de incomodar este
pobre homem.
- Eles querem apenas fazer-te duas ou três perguntas...
- Pelo amor de Deus... - Suspirei. - De acordo. Diz-lhes que podem telefonar-me amanhã para este número.
No dia seguinte, falei com Gerry Porneroy, que trabalha para a BBC. Começou a fazer-me perguntas sobre a minha vida, mas interrompi-o num tom cortante. - Em primeiro
lugar, não tenciono falar sobre isso agora. Não sei se sabe, mas estou de férias. Poderíamos conversar noutra altura?
- Lamento, mas temos de tomar uma decisão, e preciso de saber um pouco mais...
De pé no hall daquela casa estranha, em Trindad, desatei a contar a minha vida a um desconhecido que se encontrava em Londres.
- Está bem, Waris, óptimo. Voltaremos a contactá-la.
Dois dias mais tarde, o vizinho da tia Mónica voltou para anunciar que me chamavam ao telefone. Encolhi os ombros e, sacudindo a cabeça, segui-o pela rua. Era de
novo Gerry:
- Waris, queremos mesmo fazer um documentário sobre a sua vida. Tratar-se-á de uma curta metragem de trinta minutos que será emitida num programa intitulado O Dia
Que Mudou a Minha Vida.
Entretanto, desde que a minha agência me telefonara pela primeira vez, eu tivera tempo para reflectir sobre aquela história do documentário. - Bom. Gerry, tenho
uma proposta a
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fazer-lhe. Concordo em fazer esse documentário, com uma condição: vocês levam-me até à Somália e ajudam-me a encontrar a minha mãe.
Ele aceitou, achando que o meu regresso a África daria uma excelente conclusão à sua
história. Antes de desligar, pediu-me para o contactar assim que chegasse a Londres. Teríamos então tempo para nos sentarmos a uma mesa a planear todo o projecto.
Desde que eu deixara Mogadíscio, era verdadeiramente a primeira oportunidade que tinha de voltar à minha terra. Até então, os meus infindáveis problemas de passaporte,
as ?incessantes guerras tribais na Somália e a minha incapacidade de localizar a minha família haviam tornado a coisa impensável. Mesmo que eu tivesse arranjado
forma de viajar até Mogadíscio, não saberia como entrar em contacto com a minha mãe. Desde que Gerry prometera ajudar-me, eu não pensava noutra coisa. De regresso
a Inglaterra, tive várias reuniões com ele e com Colin, o seu assistente, a fim de elaborar a história da minha vida.
Começámos imediatamente as filmagens em Londres. Voltei a todos os lugares que frequentara, começando pela casa do meu tio Mohammed, a residência do embaixador da
Somália, onde a BBC obtivera autorização para filmar, e a All Souis Church School, onde eu fora descoberta por Malcolm. Fairchild. Em seguida, entrevistaram Malcolm
- perguntando-lhe o que realmente o atraíra em mim -, bem como a minha grande amiga Sarah Doukas, a directora da agência Stonn em Londres; filmaram-me ainda numa
sessão de fotos com Terence Donovan.
Entretanto, o produtor americano Don Comelius convidara-me para ser por uma noite a apresentadora do seu programa de televisão Soul Train que mostra o que de melhor
se faz no domínio da música negra. Como nunca tinha participado neste género de programa, tinha os nervos em franja e a pressão atingiu o máximo quando Gerry e a
sua equipa da BBC decidiram acompanhar-me a Los Angeles. Ainda por cima, apanhara uma constipação tremenda e mal conseguia falar. Gerry e a sua equipa seguiram-me
como uma sombra durante toda a viagem de avião - enquanto eu lia o meu texto, preparando-me para o meu papel de apresentadora, e não cessava de espirrar e de me
assoar - e depois na limusina através de Los Angeles. No dia seguinte, no estúdio de televisão, as coisas tornaram-se ainda piores quando os técnicos da BBC começaram
a filmar a equipa de Soul Train que por sua vez também estava a filmar-me! E se havia coisa que eu não queria que ficasse registada, era aquela filmagem. Fui certamente
a pior apresentadora em toda a história de Soul Train, maDon Comelius e a sua equipa mostraram-se muito pacientes comigo. Começámos às dez horas da manhã e acabámos
às nove da noite. Penso que eles nunca tinham tido um dia de trabalho tão longo. Tal como quando me estreara no filme de James Bond, voltei a ter problemas de leitura.
Apesar de ter feito grandes progressos, continuava a ter dificuldade em ler,
,. em voz alta. Além disso, decifrar os painéis que serviam de ponto diante de duas equipas d161
rodagem, dezenas de bailarinos e alguns cantores internacionalmente famosos, diante de luzes que me ofuscavam, foi superior às minhas forças. Eu ouvia-os gritar:
"Take 26... Corta! Take 26... Corta! ". A música começava a tocar, as duas equipas começavam a filmar, os bailarinos começavam a dançar, e eu enganava-me no meu
texto! "Take 96... Corta!". Os bailarinos, gelados, deixavam cair os braços e olhavam-me furiosos, como se dissessem: "Quem, é esta cabra estúpida? Oh, pelo amor
de Deus, onde a desencantaram eles? Só queremos voltar para casa".
Entre os meus deveres de anfitriã, incumbia-me receber Dona Summer, o que era uma grande honra para mim, pois era uma das minhas cantoras preferidas de sempre. -
Senhoras e senhores, juntem as mãos e dêem as boas-vindas à dama da soul, Dona Summer!
- CORTA!!
- QUE FOI DESTA VEZ?
- Waris, olhe para o ponto, esqueceu-se de anunciar a sua editora discográfica.
- Ohhhh, que grande merda! Alguém é capaz de subir esta merda, subir esta merda? Não vejo. E não baixem tudo. Ponham-no direito. Tenho as luzes em cheio nos olhos,
não vejo nada.
Don Comelius chamou-me a um canto e disse-me: - Respire fundo. Diga-me como se sente.
Expliquei-lhe que aqueles textos não eram feitos para mim. Que não os sentia e que não correspondiam à minha forma de me exprimir.
- Como quer então fazer? Diga-nos. Tome conta da situação.
Todos foram extraordinariamente calmos e pacientes. Don e a sua equipa deixaram-me agir à minha maneira, fazer uma enorme confusão e transformar tudo. Foi uma experiência
apaixonante trabalhar com eles e com Dona Summer, que me deu um CD dos seus greatest hits autografado.
Em seguida voltei a Nova Iorque com Gerry e a sua equipa da BBC. Como tinha um trabalho a fazer num cenário natural, filmaram-me enquanto me fotografavam nas ruas
de Manhattan, passeando-me à chuva, vestida com uma combinação preta e um impermeável e empunhando um guarda-chuva. Noutra noite, em Harlem, o cameraman sentou-se
tranquilamente num canto da cozinha do apartamento onde eu preparava uma refeição com amigos.
O ambiente estava de tal forma divertido que acabámos por esquecer a sua presença.
A última fase do filme tinha por cenário África e a ideia era mostrar o meu reencontro com a minha família. Enquanto filmávamos em Londres, Los Angeles e Nova Iorque,
uma outra equipa da BBC começara a procurar activamente a minha mãe. Eu tentara mostrar-lhes
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nos mapas os lugares que nós frequentávamos habitualmente, depois explicara-lhes a tribos e a que clãs pertenciam os meus pais - uma série de noções completamente
estranho para ocidentais. As pesquisas duravam há já três meses, sem sucesso. Decidimos então que eu permaneceria em Nova Iorque até que a BBC conseguisse localizar
a minha família. Algum tempo mais tarde, Gerry telefonou-me para me dizer que haviam encontrado minha mãe.
- É maravilhoso!
- Bem, julgamos que é ela.
- Que quer isso dizer?
Esta mulher afirma ter uma filha chamada Waris que vive em Londres. Mas não dá muitos detalhes, e a nossa equipa no terreno pergunta se não se tratará de uma outra
Waris Era pouco provável, porque eu nunca ouvira falar de alguém que tivesse o mesmo nome que eu. Após nova entrevista com a tal mulher, a BBC abandonou essa pista.
A busca começava de novo. Dir-se-ia que o deserto somali estava subitamente repleto de mulheres que afirmavam ser a minha mãe. Expliquei a Gerry o que se passava:
- Estas pessoas são muito pobres e estão desesperadas. Pensam que, fingindo-se meus pais, conseguirão obter algum dinheiro ou comida. Não sei como pensam levar avante
esta mentira, mas tentam o golpe.
Infelizmente, eu não tinha fotografias da minha mãe. Então, Gerry teve uma ideia: - Precisamos de um detalhe a teu respeito que só a tua mãe conheça.
- Bem, ela costumava tratar-me por uma alcunha, Avdohol, que significa "boca pequena".
- Pensas que ela se lembrará disso?
- Seguramente.
Avdohol passou a ser a secreta palavra de passe. Quando a BBC fazia as entrevistas a estas mulheres conseguiam responder às primeiras questões, mas acabavam por
chumbar quando se tratava da alcunha. Adeusinho. Até ao dia em que Gerry me chamou para me dizer: - Encontrámos uma mulher que não se lembra da tua alcunha, mas
que afirma ter uma filha chamada Waris que trabalhava em casa do embaixador da Somália em Inglaterra. No dia seguinte, meti-me no primeiro avião para Londres. Viajaríamos
até Addis Abeba, capital da Etiópia, de onde tomaríamos um pequeno avião até à fronteira com a Somália. A viagem ameaçava ser bastante perigosa. Não podíamos entrar
na Somália por causa da guerra, e teríamos de aterrar em pleno deserto, onde havia apenas areia e pedras. Enquanto a BBC tratava dos últimos preparativos e eu estava
no hotel, Nigel veio visitar-me. Dada a precaridade da minha situação, eu esforçava-me por manter uma boa relação com ele. Naquela altura, eu pagava a hipoteca da
sua casa de Cheltenham porque ele já 163
não tinha emprego e recusava-se a procurar um. Eu recomendara-o a uma pessoa do Greenpeace que conhecia, mas ele andava tão tresloucado que o haviam despedido ao
fim de três semanas.
Desde que soubera do projecto do documentário da BBC, insistira em acompanhar-me a África.
- Quero ir contigo. Quero ter a certeza de que tudo correrá bem.
- NãO, não vens. Como é que eu vou explicar à minha mãe quem tu és? Serias supostamente quem?
- Bem, sou o teu marido!
- Não, não és! Esquece. Está bem? Esquece essa história.
Uma coisa era certa: Nigel não era o tipo de pessoa que eu quereria apresentar à minha mãe. Sobretudo na condição de meu marido.
Quando eu me deslocara a Londres pela primeira vez para trabalhar com Gerry, Nigel metera na cabeça seguir-me por toda a parte. Gerry perdera rapidamente a paciência.
Eu jantava frequentemente com ele, e ele telefonava-me no final do dia: - Ele não vai contigo esta noite, pois não? Por favor, Waris, deixemo-lo fora de tudo isto.
Quando voltei a Londres pela segunda vez e Nigel me foi visitar ao hotel, continuava decidido a acompanhar-me a África. Quando recusei, roubou-me o passaporte. Claro
que ele sabia que dentro de dias devia deixar o país. Nada do que eu pudesse dizer-lhe o convenceu a devolver-mo. Finalmente, em desespero, uma noite, fui ter com
Gerry: - Gerry, não vais acreditar, mas Nigel roubou-me o passaporte e recusa-se a devolver-mo.
Gerry passou a mão pela fronte e fechou os olhos. - Oh, meu Deus! Estou realmente farto de tudo isto, Waris! Estou pelos cabelos com esse tipo!
Gerry e outros tipos da BBC tentaram chamar Nigel à razão: - Então comporte-se como um adulto, seja um homem. Estamos quase a acabar as filmagens, não pode fazer-nos
isto. Precisamos que esta história termine em África e, consequentemente, que Waris possa viajar até à Etiópia. Por isso, pelo amor de Deus... - Mas Nigel fez ouvidos
de mercador e voltou a Cheltenham, levando o meu passaporte consigo.
Eu fui ter com ele para lhe implorar. Mas ele recusava-se sempre, a não ser que pudesse ir connosco para África. A situação era sem saída. Há quinze anos que eu
rezava por uma oportunidade de rever a minha mãe. Com Nigel intrometendo-se, tudo isso ficaria arruinado. Não restavam dúvidas - ele assegurar-se-ia de que assim
fosse. Se eu não o levasse, não poderia ver a minha mãe, pois não podia viajar sem o meu passaporte. - Nigel, é a primeira vez em quinze anos que tenho a oportunidade
de voltar a ver a minha mãe, e se eu te deixar vir, vais aborrecer toda a gente.
Ele estava amargo por se sentir excluído e exaltou-se: - Juro-te que és injusta comigo! Acabei por convencê-lo a devolver-me o passaporte, prometendo-lhe que proximamente
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---iríamos os dois a África, sós. A mentira era grosseira, e não me sentia orgulhosa porque sabia que não tencionava cumprir a minha promessa, mas infelizmente não
servia de nada mostrar-me razoável e honesta com Nigel.
O bimotor levou-nos a Galadi, Etiópia, uma pequena aldeia em redor da qual se havi agrupado alguns refugiados somalis que tinham atingido a fronteira para fugir
aos combatentes. Quando pousou sobre a areia vermelha cheia de pedregulhos, o avião oscilou perigosamente, e a nuvem de poeira que se formou devia ser visível a
quilómetros de distância. Habitantes de Galadi e refugiados somalis nunca tinham visto nada de semelhante e precipitaram-se ao nosso encontro. Eu tentei falar-lhes,
mas não conseguia fazer-me entender porque não conhecia uma palavra de etiope, e a maioria dos somalis falavam um dialecto diferente do meu. Desisti em poucos minutos.
Ao cheirar o ar quente e o odor da areia, de repente reencontrei a minha infância perdida. Tudo voltou à minha memória, até ao mais pequeno detalhe, e desatei a
correr. A equipa gritou-me: - Waris! Aonde vais?
- Continuem... vão aonde têm de ir... Eu volto.
Corri por um momento, depois detive-me para apanhar punhados de areia e deixá-la correr por entre os dedos. Acariciei as árvores. Estavam secas e poeirentas, mas
eu sabia a estação das chuvas não tardaria e que tudo desabrocharia então em flor. Inspirei o ar a nos pulmões - transportava os odores das minhas memórias de infância,
da época em eu vivera ao ar livre e em que aquela areia vermelha e aquela vegetação desértica faz parte do meu quotidiano. Oh, meu Deus, eu estava em minha casa.
Sentei-me debaixo de uma árvore e chorei de alegria. Sentia-me dividida entre a grande alegria de estar de volta à minha terra natal e a profunda tristeza de ter
esperado tanto tempo. Compreendi subitamente até que ponto sentira falta do deserto; era como se acabasse de empurrar uma porta que não ousara abrir durante todos
aqueles anos, e descobrisse atrás dela uma parte de mim mesma que tivesse esquecido. Quando voltei à aldeia, os somalis que falavam o mesmo dialecto que eu vieram
ao meu encontro para me apertar a mão, dizendo-me "Benvinda, irmã".
Em seguida, descobrimos que nada era como esperáramos. A mulher encontrada pela BBC não era a minha mãe, e ninguem parecia conhecer a minha família. Gerry e a sua
equipa estavam desencorajados porque o orçamento de que dispunham não lhes permitia prosseguir as buscas, nem encarar uma segunda viagem à Etiópia. Gerry não cessava
de repetir - Oh, não, sem esta sequência o filme não tem final. E sem este final, o filme não tem verdadeiramente uma história. Que desperdício! Que vamos fazer?
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Passámos a aldeia e os arredores a pente fino. As pessoas estavam verdadeiramente empenhadas em ajudar-nos, e um pouco mais tarde nesse dia um velho veio ao meu
encontro e perguntou-me: - Lembras-te de mim?
- Não.
- Chamo-me Ismail. Pertenço à mesma tribo que o teu pai, e fomos muito amigos. Quando compreendi quem ele era, senti-me envergonhada por não o ter reconhecido, mas
já não o via desde pequena.
- Julgo saber onde está a tua família. Talvez pudesse encontrar a tua mãe, mas preciso de dinheiro para gasolina.
Pensei logo: Oh, não. Como posso confiar neste sujeito? Estas pessoas não estarão todas a tentar enganar-nos? Se lhe der dinheiro, o mais provável é ele desaparecer
e não voltarmos a pôr-lhe a vista em cima. Ele continuou: - Tenho esta carrinha, mas de pouco serve...
Ismail apontou para uma carrinha - o tipo de carrinha que não se encontra em nenhum lado a não ser em África ou nas sucatas dos Estados Unidos. Do lado do passageiro,
o pára-brisas estava estilhaçado; do lado do condutor, faltava pura e simplesmente. Nada protegia pois Ismail da areia e dos insectos quando circulava pelo deserto.
As jantes estavam deformadas e amolgadas por causa dos calhaus, e dir-se-ia que alguém se entretera a martelar a carroçaria. Eu abanei a cabeça:
- Espera um minuto, deixa-me falar com os outros.
Fui ter com Gerry e disse-lhe: - Este homem ali julga saber onde a minha família está. Mas diz que precisa de dinheiro para gasolina e para ir à procura.
- Bem, podemos confiar nele?
- Tens razão, mas é melhor arriscarmos. Não temos alternativa.
Todos concordaram em dar algum dinheiro a Ismail. O homem saltou para a carrinha e arrancou imediatamente, levantando uma nuvem de poeira. Gerry estava com um ar
deprimido e parecia dizer para consigo: "Mais dinheiro desperdiçado". Dei-lhe uma palmadinha nas costas: - Não te preocupes, vamos encontrar a minha mãe, prometo-te.
Daqui a três dias. - A minha profecia não conseguiu animar Gerry nem a sua equipa. Tínhamos oito dias antes que o bimotor viesse buscar-nos, nem mais um dia. Não
podíamos dizer ao piloto: "Ainda não acabámos. Volte na semana que vem". Os nossos lugares estavam reservados para aquela data no avião Addis-Abeba-Londres; teríamos
de partir, e seria o fim de tudo, COM mama ou sem mama.
Passei óptimos momentos na companhia dos refugiados, visitando-os e partilhando as suas refeições, mas os ingleses não se mostravam assim tão satisfeitos com a sua
estadia. Dormiam num edifício de janelas sem vidro, e os seus sacos-cama estavam estendidos no
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chão. Tinham levado livros, mas possuíam apenas uma lanterna como iluminação, e à noite os mosquitos impediam-nos de dormir. Alimentavam-se de feijão enlatado que
os punha doentes e queixavam-se de não terem outra coisa para comer.
Uma tarde, um somali decidiu fazer-lhes uma honra. Veio apresentar-lhes um magnífico cabrito, e todos começaram a acariciá-lo. Um pouco mais tarde, o homem trouxe
o animal degolado e sem vida, e disse-lhes orgulhosamente: - Aqui têm o vosso jantar.
Os ingleses ficaram chocados, mas não deixaram transparecer nada. Arranjei uma panela, fiz uma fogueira e pus o cabrito a cozer com arroz. Quando o somali partiu,
disseram-me: - Achas que vamos comer isso?
- Sim, claro. Por que não? ?"" - Oh, esquece, Waris.
- Bem, por que não disseram nada?
Eles explicaram que não tinham querido vexar aquele homem que se mostrara tão generoso, mas que lhes era impossível comerem o pequeno animal depois de o terem acariciado.
O meu prazo de três dias para encontrar a mama passaram-se sem sinal dela. Gerry estava cada vez mais ansioso. Tentei acalmá-los dizendo-lhes que a minha mãe estava
a caminho, mas eles pensaram que eu estava a ser brincalhona. Disse-lhes: - Ouçam, prometo-vos que a minha a mãe estará aqui amanhã por volta das seis da tarde.
- Não sei porquê, mas aquela ideia ocorrera-me, e estava convencida do que afirmava.
Gerry e os rapazes começaram a meter-se comigo por causa da minha última premonição. - Como sabes? Ah, claro! Waris sabe tudo! Prevê tudo, incluindo a chuva!
Riam-se de mim porque eu lhes anunciara chuva por várias vezes, pela simples razão de que a cheirara.
- E então? Choveu ou não?
- Pára, Waris. Tiveste simplesmente sorte.
- Não tem nada a ver com sorte. Aqui estou no meu elemento. Conheço este país, e o meu instinto de sobrevivência despertou.
Eles entreolharam-se com ares significativos.
- Está bem. Não acreditem em mim. Vão ver: às seis horas.
No dia seguinte, ao final da tarde, estava eu sentada a conversar com uma velha quando Gerry surgiu repentinamente por volta das seis e dez.
- Não vais acreditar!
- Que foi?
- A tua mãe... Acho que a tua mãe está aqui.
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Levantei-me a sorrir. - Não temos a certeza. O velho voltou e trouxe consigo uma mulher. Ele afirma que é a tua mãe. Vamos lá ver.
A notícia espalhou-se pela aldeia como fogo no mato. O nosso pequeno drama era uma diversão benvinda na existência rotineira de todas aquelas pessoas. Queriam saber
se se tratava da minha mãe ou de uma nova impostora. A noite caía e a multidão juntou-se à nossa volta, impedindo-nos praticamente de avançar. Gerry arrastou-me
até a uma ruela lateral, na extremidade da qual se encontrava a carrinha com pára-brisas estilhaçado. Uma mulher encontrava-se junto de Ismail. Eu não podia ver-lhe
a cara, mas pela maneira como usava o lenço compreendi imediatamente que se tratava da minha mãe. Corri para ela e abracei-a: Oh, mama!
Ela disse: - Percorri centenas de quilómetros nesta carrinha. Alá é minha testemunha de que foi uma viagem terrível. Viajámos durante dois dias e duas noites. E
tudo isto porquê?
Eu voltei-me para Gerry a rir. - É mesmo ela!
Pedi a Gerry que nos deixasse a sós durante dois dias, e ele acedeu prontamente. Conversando com a minha mãe, constatei que o meu somali era pobre, ridículo mesmo,
mas sobretudo - o que era mais grave, - tornáramo-nos duas estranhas. A princípio limitámo-nos a trocar banalidades, mas a alegria que eu sentia naquele encontro
acabou por preencher o fosso que nos separava. Eu sentia prazer pelo simples facto de me encontrar junto dela. A viagem de camião esgotara-a, e ela envelhecera muito
durante aqueles últimos anos devido à implacável dureza da sua existência quotidiana no deserto.
Quando Ismail chegara ao acampamento, o meu pai encontrava-se ausente, partira uma vez mais em busca de água. A minha mãe disse-me que ele também envelhecera. Continuava
a correr atrás das nuvens e da chuva, mas precisava de óculos porque a sua visão diminuíra consideravelmente. Quando a minha mãe deixou o acampamento, ele partira
há já oito dias, e ela esperava que ele não se tivesse perdido. Ao recordar a imagem que eu tinha do meu pai, compreendi a que ponto ele devia ter mudado. Na altura
em que eu fugira, ele era capaz de nos encontrar onde quer que fosse, mesmo numa noite sem luar.
Por outro lado, o meu jovem irmão Ali e um dos meus primos, que se encontrava de passagem pelo acampamento à chegada de Ismail, tinham acompanhado a minha mãe. Ali
já não era o meu "pequeno" irmão, media mais de um metro e noventa e era agora bastante maior do que eu, o que lhe dava uma enorme satisfação. Quando quis tomá-lo
nos braços, ele soltou-se gritando: - Deixa-me! Já não sou um bebé. Vou casar-me.
- Casar! Que idade tens?
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KZÇ1RESSO 4 SOMALIA
- Não faço ideia. Seja como for, idade para me casar.
- Não importa, continuas a ser o meu irmãozinho. Anda cá. - Agarrei-o e afaguei-lha cabeça. Como o nosso primo ria enquanto nos observava, disse-lhe: - A ti, dei-te
umas palmadas no rabo!
Era eu que tratava dele quando era pequeno e a sua família nos vinha visitar.
- Ah, sim? Pois bem, experimenta agora! - E começou a correr à minha volta, provocando-me.
- Oh, não, nem penses! - gritei. - Eu ainda podia dar-te uma tareia. - Como, além do mais, ele estava prestes a casar-se, acrescentei: - Se queres estar apresentável
no dia do teu casamento, não te metas comigo!
Nessa noite, a minha mãe foi convidada a passar a noite na tenda de uma das famílias de refugiados, e eu dormi ao relento, na companhia de Ali, tal como nos bons
velhos tempos. Sentia uma grande sensação de paz e alegria ao encontrar-me assim estendida sob o céu nocturno. Observámos as estrelas e conversámos até tarde pela
noite fora. - Lembras-te daquela vez em que pendurámos a jovem esposa do pai? - E ambos ríamos perdidamente.
Ali, que a princípio se mostrara muito reservado, decidiu finalmente confessar-me: Sabes, tive muitas saudades tuas. Partiste há tanto tempo. É estranho pensar que
agora és uma mulher, e que eu sou um homem.
Era maravilhoso encontrar-me no seio da minha família, poder de novo falar, rir e conversar sobre tudo na minha língua natal.
Todos os habitantes da aldeia se mostraram incrivelmente generosos. Todos os dias éramos convidados para almoçar e para jantar, e não se cansavam de ouvir a história
das nossas vidas. - Têm de vir conhecer as minhas crianças... a minha avó... - E arrastavam-nos por toda a parte; e não apenas porque eu era uma top-model, eles
ignoravam totalmente o que isso significava, mas porque era uma deles, uma nómada de regresso a casa.
Deus seja louvado, a minha mãe era incapaz de compreender o que eu fazia na vida, por mais que eu lhe explicasse. - Uma modelo? Que significa exactamente isso? Mas
afinal o que fazes?
Um dia, alguém levara aos meus pais o número do The Sunday Times com a minha fotografia na primeira página. Os somalis são extremamente orgulhosos, e eles tinham
ficado encantados por verem uma compatriota sua na primeira página de um jornal inglês. A minha mãe dissera: - É Waris! É a minha filha! - E conservara o jornal
para o mostrar a toda a gente.
Depois daquela primeira noite, a minha mãe, ultrapassando a sua timidez, adquiriu confiança suficiente para começar a dar-me ordens: - Não é assim que se faz, Waris!
Eu mostro-te como é. Tu não cozinhas onde vives agora?
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O meu irmão começou a fazer-me perguntas, querendo saber o que eu pensava acerca de vários assuntos, e eu provoquei-o: - Oh Ali, por favor, deixa-me em paz. Vocês
não passam de pessoas do deserto, estúpidas e ignorantes. Viveram aqui demasiado tempo, e não sabem do que falam.
- Ah sim? Tu és famosa, por isso voltas ao teu país com grandes ares e começas a dizer as mesmas asneiras que os ocidentais. Achas que sabes tudo só porque vives
no Ocidente?
Discutimos durante horas. Eu não queria ferir as suas susceptibilidades, mas pensava que, se não lhes dissesse certas coisas, ninguém mais o faria. - Eu não sei
tudo, mas descobri e aprendi muitas coisas que ignorava quando andava no deserto.
- O quê, por exemplo?
- Que vocês destroem o ambiente quando cortam árvores jovens sem sequer lhes darem tempo de crescer, e isto apenas para construírem cercas para essas estúpidas cabras!
E apontei para uma cabra que estava ali ao pé. - Não está certo!
- Que queres dizer com isso?
- Este país é um deserto porque nós cortámos todas as árvores.
- Waris, este país é um deserto porque não chove! Há árvores no norte porque lá chove.
- Não, Ali, no norte chove porque lá há florestas. E como todos os dias vocês cortam o mais ínfimo rebento, nunca haverá aqui floresta e também nunca haverá chuva.
Eles não sabiam se deviam acreditar ou não nesta ideia bizarra, mas havia um assunto sobre o qual eu não tinha argumentos a contrapor.
A minha mãe foi a primeira a abordá-lo: - Por que não te casaste?
Após todos aqueles anos, este assunto ainda era para mim uma ferida aberta. Era a razão que me fizera deixar o meu país e a minha família. Eu sabia que o meu pai
pensava estar a agir para o meu bem, mas colocara-me perante uma escolha terrível: ou lhe obedecia e estragava a minha vida casando-me com um velho, ou fugia deixando
tudo o que conhecia e amava. O preço que pagara pela minha liberdade era exorbitante, e espero nunca obrigar os meus filhos a tomarem uma decisão tão dolorosa.
- Mãe, porquê casar-me? Serei obrigada a fazê-lo? Não queres ver-me triunfar na vida, ser forte e independente? Quer dizer, se não sou casada, é simplesmente porque
não encontrei o homem ideal. Se o conhecer um dia, será o momento de me casar.
- Queria ter netos.
Uniam-se todos contra mim. Até o meu primo tomou o partido deles: - Agora és demasiado velha. Quem quereria casar contigo? És demasiado velha. - Abanou a cabeça,
pensando no horror que devia ser casar com uma velha de vinte e oito anos.
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REGRESSO À SOMÁLIA
Alcei as mãos ao ar: - Quem pode querer casar-se obrigado? Por que é que vocês os dois se vão casar? - Apontei para Ali e para o meu primo. - Tenho a certeza que
vos obrigaram.
Eles defenderam-se em coro: - Não, não!
- Bem, de acordo, mas só porque sois rapazes. Como rapariga, eu não tenho uma palavra a dizer. Devo casar-me com quem escolheis para mim, no momento em que assim
decidis. Que merda é essa? Quem determinou que assim seria?
- Oh, cala-te, Waris - resmungou o meu irmão. - Cala-te tu também!
Gerry começou a filmar dois dias antes da nossa partida. Gravou várias sequências com a minha mãe, mas ela detestava a câmara. - Tirem isso da frente da minha cara!
Não quero! - E dava uma palmada ao cameraman. - Waris, diz-lhe para me tirar isto da frente.
Eu respondia-lhe que não se preocupasse. Ele está a olhar para mim ou para ti? Está a olhar para as duas.
, - Bem, diz-lhe que eu não quero olhar para ele. Ele ouve o que lhe digo?
Eu gostaria de lhe explicar o que se passava, mas sabia que era impossível: - Sim, mãe. Ele ouve tudo.
Desatei a rir, e ela imitou-me. O cameraman perguntou-me por que estávamos tão divertidas, e eu respondi-lhe: - Simplesmente pelo absurdo da situação...
No segundo dia, filmaram-me só, no deserto. Vi um rapaz que dava de beber ao seu camelo com a água que retirara de um poço. Aproximei-me dele., e ajudei-o segurando
o balde para que o animal pudesse beber mais facilmente. Durante todo esse dia, tive dificuldade em conter as lágrimas.
Na véspera da nossa partida, uma das aldeãs pintou-me as unhas com hena. Virei as mãos para a câmara; dir-se-ia que tinha mergulhado as pontas dos dedos em dejectos
de vaca, mas sentia-me como uma rainha. Este é um ritual de beleza específico do meu povo, habitualmente reservado às jovens noivas. Nessa noite, os habitantes da
aldeia organizaram uma grande festa em honra da nossa partida. Dançar, bater palmas e cantar com eles relembrou-me os bons momentos da minha infância, quando nos
regozijávamos com a chegada da chuva e experimentávamos um profundo sentimento de liberdade e de alegria.
Na manhã seguinte levantei-me muito cedo para ter tempo de tomar o pequeno-almoço na companhia da minha mãe antes da chegada do avião. Perguntei-lhe se ela gostaria
de vir viver comigo para a Inglaterra ou para os Estados Unidos.
171
FLOR DO DESERTO
Mas que poderia eu lá fazer?
Nada, justamente! Já trabalhaste o suficiente durante toda a vida. Agora é altura de descansares, de te sentares à sombra da bananeira. Quero mimar-te.
- Não, não posso. O teu pai está a ficar velho. Ele precisa de mim, e eu quero ficar com ele. Além disso, tenho de tomar conta das crianças.
- Crianças? Mas nós estamos todos crescidos...
- As crianças do teu pai. Lembras-te daquela rapariga... como se chamava ela... com quem ele casou?
- Sim.
- Bem, ele deu-lhe cinco crianças, mas ela não aguentou. Suponho que a nossa vida era demasiado dura para ela, ou que ela já não suportava o teu pai. Acabou por
fugir... desapareceu.
- Mãe! Estás demasiado velha para isso! Não devias trabalhar tão arduamente. Correr atrás de crianças na tua idade.
- O teu pai também já está a ficar velho, e precisa de mim. Além disso, eu não poderia ficar sentada sem nada para fazer. Se me sentasse, envelheceria rapidamente.
Ficaria louca se me sentasse quieta após todos estes anos. Tenho de manter a actividade. Se queres fazer algo por mim, encontra-me um lugar na Somália para onde
eu possa retirar-me quando estiver verdadeiramente cansada. Este é o meu país, e nunca conheci outra coisa.
Apertei-a com força nos braços. - Amo-te, mãe, e voltarei para te ver. Não te esqueças do que te digo: voltarei para te ver...
Ela sorriu e agitou a mão em sinal de adeus.
Já dentro do avião, fui-me abaixo. Não sabia quando voltaria a ver a minha mãe, nem mesmo se voltaria a vê-la. Enquanto chorava copiosamente observando pela janela
a aldeia que se afastava, o cameraman filmava-me em grande plano.
NOVA IORQUE - THE BIG APPLE
Na Primavera de 1995, terminámos a rodagem do documentário da BBC, que seria emitido com o título: Uma Nómada em Nova Iorque. De facto, eu ainda era uma
nómada dado que ainda não tinha uma verdadeira casa após todos estes anos. Deslocava-me consoante o trabalho: Milão, Londres, Paris, Nova Iorque. Ficava a maioria
das vezes em casa de amigos ou em hotéis. Os meus poucos pertences (algumas fotografias, livros e CDs) encontravam-se em Cheltenham, em casa de Nigel. Como eu trabalhava
principalmente em Nova Iorque, passava lá a maior parte do tempo, e fora lá que alugara, provisoriamente, o meu primeiro apartamento, um estúdio no Solio. Em seguida,
ocupara, também provisoriamente, um apartamento em Greenwich Village e depois uma casa na West Broadway, mas não gostei de nenhum destes três lugares. A casa da
Broadway era um sitio completamente louco que quase me enlouqueceu a mim também. Cada vez que um carro passava na rua dir-se-ia que estava dentro de casa.* Havia
um quartel de bombeiros na esquina da minha rua, e as sirenes acordavam-me durante toda a noite. Como já não conseguia dormir, abandonei a casa ao fim de dez meses
e retomei a minha vida de nómada.
Nesse Outono, participei em desfiles de moda em Paris e depois voltei directamente a Nova Iorque sem passar por Londres. Tinha vontade de encontrar um apartamento
e de assentar um pouco. Eu vivia em Greenwich Village, em casa de George, um dos meus melhores amigos, e aproveitava para percorrer as agências imobiliárias. Uma
noite, uma amiga de George, Lucy, veio convidar-nos para festejar o seu aniversário, mas George respondeu que se sentia demasiado fatigado e que devia levantar-se
no dia seguinte de manhã cedo Para ir trabalhar. Propus a Lucy acompanhá-la.
Saímos sem saber aonde íamos. Quando chegámos à Oitava Avenida, mostrei-lhe onde
173
FLOR DO DESERTO
se encontrava o meu antigo apartamento. - Vivi aqui alguns meses, por cima daquele bar de jazz. Dava sempre boa música, mas nunca lá pus os pés.
Ao passar diante do edifício, ouvi a música que soava pela porta entreaberta. - Queres entrar por um bocadinho?
- Não, prefiro ir ao Nell's.
- Oh, vamos só ver o ambiente. Gosto muito da música que eles tocam. Dá-me vontade de dançar.
Lucy aceitou contrariada. Descemos as escadas e entrámos numa minúscula sala escura. Os músicos encontravam-se no palco, mesmo à nossa frente. Olhei para eles, mas
vi apenas o baterista, o único que estava iluminado. Estava totalmente absorto na música e eu fiquei ali, a olhar para ele. Tinha um ar descontraído e uma cabeleira
afro estilo anos setenta. Quando Lucy me puxou pelo braço, voltei-me para lhe dizer: - Não, não! Vamos ficar. Senta-te e pede qualquer coisa. Só um bocadinho.
A banda ia aquecendo progressivamente e eu comecei a dançar como uma louca. Lucy juntou-se a mim, e pouco depois todos os outros clientes, que até então tinham permanecido
sentados a observar os músicos, fascinados, levantaram-se para dançar connosco.
Morta de calor e de sede, parei para beber um copo. A minha vizinha parecia ser uma cliente habitual e eu disse-lhe: - Excelente música. Quem são eles, afinal?
- Não sei, pois são todos freelancers, mas o meu marido é aquele que está a tocar saxofone.
- Uh-huh. E quem é o baterista?
Ela sorriu devagar. - Lamento, não conheço.
Alguns minutos mais tarde, o conjunto fez uma pausa e quando o baterista passou perto de nós, a minha vizinha agarrou-o pelo braço.
- Desculpa, tenho uma amiga que gostava de conhecer-te.
- Ah sim? Quem é?
- Ela. - E empurrou-me na sua direcção. Senti-me tão embaraçada que não soube o que dizer.
Após um instante em que fiquei paralisada, consegui murmurar: - Olá. - Vai com calma, Waris. - Gosto da música.
Obrigado. Como te chamas?
Dana - disse ele, e olhou em volta timidamente.
Oh. - E deu a volta e afastou-se. Raios! Mas eu não ia deixá-lo ir assim tão facilmente. Segui-o enquanto ele ia ter com os outros músicos. Puxei ruidosamente uma
cadeira
174
--- ~£?UE - THE BIU
e sentei-me ao lado dele. Quando ele se voltou e me viu, teve um sobressalto. Eu disse-lhe em tom de repreensão:
- Parece-me que estava a falar contigo, não? Tu viraste-me as costas. Sabias que isso não é educado?
Ele fitou-me, perplexo, depois desatou a rir e inclinou-se por cima da mesa. - Como te chamas? - perguntou então quando se repôs. Levantei o nariz e, no tom mais
afectado que consegui adoptar, respondi-lhe: - Agora já não importa.
Começámos então a conversar sobre várias coisas, até ele dizer que tinha de voltar para tocar.
- Vais-te embora? Com quem viste? - perguntou ele.
- Com uma amiga. Está por aí entre a multidão.
Na pausa seguinte, anunciou-me que a banda interpretaria apenas mais dois temas. Se eu estivesse de acordo, poderíamos ir tomar um copo a outro sítio. Mas quando
terminou, ficámos sentados a conversar durante horas a fio. Finalmente, eu disse-lhe: - Há aqui demasiado fumo, já não consigo respirar. Não queres sair e tomar
um pouco de ar?
- Está bem. Podemos sentar-nos lá fora nos degraus.
Quando chegámos ao cimo das escadas, ele deteve-se. - Posso pedir-te uma coisa? Posso dar-te um abraço?
Olhei-o como se nos conhecêssemos desde sempre e o seu pedido fosse perfeitamente natural. Dei-lhe um abraço forte e, da mesma forma que soubera que abandonaria
a Somália e depois que seria manequim, compreendi imediatamente que aquele baterista tímido, com o seu ar descontraído e o seu penteado afro, era o homem da minha
vida. Já era demasiado tarde para ir beber um copo a outro sítio, mas dei-lhe o número de telefone de George e pedi-lhe que me telefonasse no dia seguinte.
- Tenho compromissos de manhã. Telefona-me às três horas em ponto, está bem? Queria saber se ele seria pontual.
Mais tarde, ele contou-me que nessa noite, quando tomara o metro para voltar para casa em Harlem, levantara os olhos ao chegar à estação e vira num grande cartaz
a minha cara em grande plano a olhá-lo lá do alto. Nunca tinha reparado naquele cartaz antes e ignorava que eu era modelo.
No dia seguinte, o telefone tocou às três e vinte e eu atendi precipitadamente. -ESTÁS ATRASADO!
- Desculpa. Queres jantar esta noite?
, Encontrámo-nos num pequeno restaurante de Greenwich Village e falámos durante
175
horas. Agora compreendo até que ponto isto não era o género dele, pois era muito reservado com pessoas que não conhecia bem. No final, desatei a rir. Dana pareceu
assustado.
- Estás-te a rir de quê?
- Vais pensar que sou doida...
- Continua. Já estou convencido disso.
- Vou ter um filho teu.
Ele não pareceu muito feliz com a notícia. Pelo contrário, lançou-me um olhar que parecia dizer: Esta mulher é mesmo doida; não do género "Hei, vamos divertir-nos",
mas doida.
- Eu sei que estás a pensar que é estranho, mas queria dizer-te. De qualquer modo, esquece. Vamos esquecer isto.
Ele observou-me em silêncio. Estava chocado, o que não era de admirar: eu nem sequer sabia o seu apelido. Mais tarde, confessou-me ter pensado: Não quero voltar
a vê-la. Tenho de me livrar desta mulher. Faz-me lembrar aquela louca de Atracção Fatal.
Dana acompanhou-me a casa de George, mas emudecera. No dia seguinte, arrependi-me de ter proferido aquela frase tão despropositada. No entanto, na altura pareceu-me
tão banal como dizer: "Vai chover hoje". Não fiquei surpreendida por não ter notícias dele. Ao fim de uma semana, telefonei-lhe e ele perguntou-me onde estava.
- Em casa do meu amigo. Queres encontrar-te comigo?
- Oh, meu Deus. Sim, está bem. Podíamos almoçar juntos. Amo-te.
- Eu também te amo.
Desliguei o telefone. Estava transtornada e horrorizada por ter dito àquele homem que o amava quando tinha acabado de jurar a mim própria mostrar-me mais reservada
e não voltar a falar-lhe em filhos nem em nada do género. Oh, Waris, que se passa contigo? Até então, sempre que algum homem se interessara por mim, eu fugira, desaparecera.
E eis que dava por mim a correr atrás de um tipo que mal conhecia. Na noite em que o conhecera, eu levava um pulóver verde e tinha um penteado afro. Mais tarde,
Dana confessara-me que naquela noite, para onde quer que ele olhasse, só via PULÔVER VERDE E PENTEADO AFRO. Expliquei-lhe que quando eu queria algo, fazia tudo para
o conseguir, e por alguma razão - pela primeira vez na minha vida -, queria muito um homem. Só não conseguia explicar por que tinha a sensação de o conhecer desde
sempre.
Encontrámo-nos para almoçar e conversámos sobre tudo e mais alguma coisa. Duas semanas mais tarde, estava a viver com ele no Harlem. Ao fim de seis semanas, decidimos
que queríamos casar-nos.
Vivíamos juntos há cerca de um ano, quando um dia Dana me disse: - Julgo que estás grávida.
Eu gritei: - Pelo amor de Deus, que história é essa?
- Vamos a uma farmácia.
Eu protestei, mas ele não cedeu. Fomos comprar um teste de gravidez. Deu positivo.
- Não vais confiar numa porcaria destas, pois não? - perguntei, apontando para caixinha.
Ele tirou um segundo teste da caixa. - Faz de novo.
O resultado foi idêntico. É verdade que eu não me sentia muito bem, mas costumava acontecer-me quando se aproximava o período. No entanto, daquela vez era diferente,
pior do que habitualmente, e mais doloroso. Contudo, eu não julgava estar grávida. Pensava que estava muito doente e que ia morrer. Fui procurar um médico. Ele fez-me
uma análise e esperei pelo resultado durante três atrozes dias de angústia. Raios! Que se passa? Terei uma doença horrível e ele não me quer dizer?
Uma tarde, Dana recebeu-me dizendo-me: O médico telefonou.
A minha mão voou até à garganta: - Meu Deus! O que é que ele disse?
- Quer falar contigo.
- Não lhe perguntaste nada?
- Ele disse que te telefonaria amanhã entre as onze e o meio-dia.
Passei a noite mais comprida da minha vida, sem conseguir dormir e perguntando-me o que me reservaria o futuro. No dia seguinte, quando o telefone tocou, precipitei-me
para o atender. - Tenho novidades para si. Você não é a única.
Aí tens - era isso! Não sou a única - cheia de tumores por todo o corpo!
- Oh, não! Que significa isso?
- Está grávida. Está grávida de dois meses.
Ao ouvir estas palavras, senti-me voar para a lua. Dana estava radiante porque sempre sonhara ser pai. Soubemos logo de seguida que era um rapaz, mas eu só pensava
na saúde do bebé. Marquei imediatamente uma consulta no ginecologista e, no momento da ecografia, pedi-lhe que não me revelasse o sexo da criança.
- Por favor, diga-me apenas se o bebé está bem.
- Está óptimo, de perfeita saúde.
Era exactamente o que eu queria ouvir.
177
Claro que restava um obstáculo grande ao meu casamento com Dana: Nigel. Durante o meu quarto mês de gravidez, decidimos ir até Cheltenham e resolver as coisas de
uma vez por todas. Quando chegámos a Londres, eu estava fortemente constipada e começava a ter enjoos. Ficámos em casa de um amigo. Depois de ter recuperado durante
dois dias, arranjei coragem para telefonar a Nigel, mas ele também estava engripado e tivemos de adiar o nosso encontro.
Tivemos de esperar mais de uma semana antes que Nigel se dispusesse a receber-me. Informei-o do horário de chegada do comboio para que ele fosse buscar-me à estação
e acrescentei: - Previno-te que Dana está comigo e que não quero problemas, está bem?
- Mais vale que te diga desde já: não tenciono vê-lo. Este assunto diz-te respeito a ti e a mim.
Nigel...
- Não quero saber... Ele não tem nada que ver com isto
- Pelo contrário, ele tem tudo que ver com isto. É o meu noivo, o homem com quem vou casar-me. Está bem? Tudo o que eu tenho a fazer aqui, ele fá-lo-á comigo.
- Já te disse que não quero vê-lo.
Nigel convencera-se pois de que eu chegaria sozinha a Cheltenham. Quando saí da estação, ele esperava-me no parque de estacionamento encostado a um poste, a fumar
um cigarro, como era seu hábito. Tinha ar de estar ainda pior do que da última vez que o vira. Os seus cabelos estavam mais compridos, e tinha umas olheiras profundas
em volta dos olhos. Voltei-me para Dana e disse-lhe: - É aquele. Peço-te, mantém-te calmo.
Dirigimo-nos para ele e, antes que eu pudesse proferir palavra, ele gritou: - Eu disse-te que não queria vê-lo! Eu disse-te. Fui muito claro: quero ver-te a sós.
Dana posou os nossos sacos de viagem no chão. - Não lhe fales nesse tom, nem a mim. Por que queres vê-la a sós? Que história é essa? Queres vê-la a sós? Pois bem,
eu não quero! E se repetes isso mais uma vez, dou-te um pontapé na porra do cu!
Nigel ficou ainda mais idiota. - Bem... não há lugares suficientes no carro.
- Estou-me nas tintas para o teu carro. Podemos apanhar um táxi. Acabemos com isto de uma vez por todas.
Nigel dirigiu-se para o carro, gritando por cima do ombro: - Não, não, e não! Não é essa a minha forma de proceder. - Saltou para dentro do carro e arrancou precipitadamente,
deixando-nos ali plantados com as bagagens. Decidimos arranjar um lugar onde passar a noite. Havia uma pensão mesmo ao lado da gare - na verdade, uma espelunca deprimente,
mas, dadas as circunstâncias, era a menor das nossas preocupações. Fomos jantar, sem apetite, a um restaurante indiano; após termos contemplado com um ar lúgubre
o que tínhamos nos pratos, decidimos ir deitar-nos.
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No dia seguinte, telefonei de novo a Nigel: - Só quero ir buscar as minhas coisas, está bem? Se não queres resolver a situação, não falemos mais no assunto. Devolve-me
simplesmente as minhas coisas.
Ele não quis ouvir palavra. Como a nossa pensão estava completa para a noite seguinte, tivemos de procurar um hotel. Fosse como fosse, queríamos instalar-nos confortavelmente,
pois Deus sabia quanto tempo seria preciso para convencer Nigel. Telefonei-lhe do hotel. Ouve, por que estás a ser tão parvo? Por que procedes assim? Há quanto tempo
é que isto já dura? Vá lá.
- Está bem. Queres ver-me, óptimo. Mas a sós. Passo a buscar-te no hotel e se ele aparecer, acabou-se, dou meia volta e desapareço.
Eu suspirei e, não vendo outra solução para resolver aquele imbróglio, aceitei. Quando desliguei, expliquei a situação a Dana: - Por favor, deixa-me tentar falar
com ele. Faz isso por mim.
- Está bem, se achas que vai resultar... Não gosto nada disto, mas se é o que queres fazer não posso impedir-te, mas se ele te tocar, terá de se ver comigo.
Pedi-lhe para ficar no hotel, para que eu pudesse localizá-lo caso fosse preciso.
Nigel veio buscar-me e levou-me até ao cottage que havia alugado. Enquanto ele preparava chá, disse-lhe: - Ouve, Nigel, vou casar-me com Dana e estou grávida dele.
Por isso, acaba com as tuas parvoíces e com as tuas fantasias: eu não sou a tua querida e eterna esposa e nós não vivemos juntos. Acabou-se. Está bem? Percebeste?
Agora, acabemos com isto. Eu quero divorciar-me, esta semana. E não voltarei para Nova Iorque até termos este lixo resolvido.
- Em primeiro lugar, recuso divorciar-me enquanto não me tiveres reembolsado de tudo o que me deves.
- Eu devo-te dinheiro? Quanto? Quem é que tem trabalhado e te tem dado dinheiro durante anos?
- Isso foi para pagar a tua alimentação.
- Oh, estou a ver. Quando já não estava a viver contigo. Já que és tão obcecado por dinheiro, quanto é?
- Pelo menos quarenta mil libras.
- Hah!! E onde é que eu vou arranjar todo esse dinheiro? Não o tenho.
- Não quero saber. Não quero saber. Não quero saber. É assim. Tu deves-me dinheiro, e não te concederei o divórcio nem nada. Nunca serás livre, a não ser que me
venhas com o dinheiro que me deves. Tive de vender a casa por tua causa.
- Vendeste a tua casa porque não conseguias pagar a hipoteca e eu estava farta de a pagar por ti. O que devias ter feito era arranjar um emprego, mas nem isso és
capaz de fazer.
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- Emprego? A fazer o quê? Num McDonald's?
- Por que não, se precisavas disso para pagar a tua hipoteca?
- Não tenho jeito para esse tipo de trabalho.
- E para que é que tu tens jeito?
- Eu sou um ambientalista.
- Ah, claro. Eu arranjei-te um emprego no Greenpeace, mas puseram-te na rua. Só te podes recriminar a ti mesmo. Não estou para aturar isto e não te darei um único
centavo. Sabes que mais? Podes agarrar no teu estúpido passaporte e metê-lo num certo sítio! Não vale a pena falar mais contigo. O nosso casamento foi sempre uma
farsa, e nem sequer é legítimo uma vez que nunca chegou a ser consumado.
- Isso não é verdade. Pela lei, somos legitimamente casados, e não te deixarei partir, Waris. O teu filho será um bastardo toda a vida.
A pena que eu pudesse ter sentido por ele transformou-se em ódio. Compreendi a horrível ironia da situação. Decidira casar-me com Nigel, porque ele queria ajudar-me
"a cumprir a vontade de Alá"! Além disso, a sua irmã, Julie, era minha amiga e eu pensara que se houvesse algum problema ela intercederia em meu favor. Infelizmente,
a última vez que a vira ela estava sempre encerrada num asilo onde a fora visitar várias vezes. Estava completamente louca, não cessava de olhar em volta freneticamente
enquanto me contava histórias horríveis sobre pessoas que a perseguiam e a queriam matar. Fiquei muito triste ao vê-la naquele estado. Obviamente, a loucura era
de família.
- Eu conseguirei o divórcio, Nigel. Com ou sem o teu consentimento. Não temos mais nada a falar.
Ele olhou-me com um ar grave por um instante, e depois disse calmamente: - Muito bem. Se eu te perder, não tenho mais nada. Não me resta outra alternativa a não
ser matar-te e suicidar-me.
Senti o sangue gelar e perguntei-me o que devia fazer; finalmente, decidi tentar fazer bluff. - Dana está a caminho para vir buscar-me. Se eu fosse a ti, evitaria
fazer uma asneira.
Tinha de sair dali o mais depressa possível. Desta vez ele ultrapassara todos os limites. Inclinei-me para agarrar no meu saco e ele empurrou-me por trás e bati
com a cara em cheio na aparelhagem sonora. Depois rebolei pelo chão e caí de costas. Oh, meu Deus! O bebé!. Estava paralisada de medo de ter feito mal à criança.
Levantei-me lentamente.
- Oh, merda! Estás bem? - gritou ele.
- Sim. Estou bem - disse num tom sereno. Compreendi até que ponto fora idiota em ter vindo sozinha e queria apenas uma coisa: sair dali inteira. - Estou bem. Estou
bem.
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Ele ajudou-me a pôr-me de pé e, para fingir que estava perfeitamente calma, vesti lentamente o casaco.
- Vou levar-te. Entra na porra do carro.
Estava de novo furioso. Enquanto conduzia, pus-me a pensar: Ele odeia esta criança e nada lhe daria mais prazer do que vê-la morta. Será que ele nos vai fazer cair
por um precipício abaixo? Pus o cinto de segurança. Entretanto, ele gritava, praguejava e chamava-me todos os nomes que lhe passavam pela cabeça. Olhei em frente
e calei-me, com medo que ele me batesse se eu proferisse uma única palavra. Estava tão apática que já nem sequer pensava em mim, mas apenas na criança que carregava.
No entanto, sou uma lutadora, e se não estivesse grávida, ter-lhe-ia arrancado os tomates.
Quando chegámos ao hotel, ele gritou: - É só isso que tens a dizer-me? Depois de tudo o que fiz por ti? - Parou o carro, estendeu o braço para abrir a minha porta
e empurrou-me para fora. Eu caí do banco, um dos meus pés ficou preso e tive de me debater para soltar a perna. Levantei-me de novo, corri para o hotel e subi as
escadas até ao nosso quarto.
Quando Dana me abriu a porta, eu estava num pranto. - Que se passa? Que te fez ele? Se eu tivesse dito a verdade a Dana, ele teria matado Nigel, teria ido parar
à prisão, e eu teria de criar sozinha o nosso filho. - Nada. Simplesmente, continua a portar-se como um idiota. Não quer devolver-me as minhas coisas.
Assoei-me ruidosamente.
- Só isso? Oh, Waris, esquece essas parvoíces. Não vale a pena ficares nesse estado. Voltámos para Londres, de onde apanhámos o primeiro avião para Nova Iorque.
Quando eu estava grávida de oito meses, um fotógrafo africano que soubera que eu esperava uma criança fez-me saber que gostaria de me fotografar. Pediu-me para ir
ter com ele a Espanha onde trabalhava. Como eu estava a sentir-me em plena forma, decidi fazer a viagem. Sabia que não devia viajar de avião a partir do sétimo mês,
mas vesti uma camisola larga, e ninguém reparou. Fizemos fotos magníficas para a Marie Claire.
Tive de viajar grávida de novo. A vinte dias apenas da data prevista para o parto, fui instalar-me em Omalia, Nebraska, em casa dos pais de Dana, para que eles pudessem
ajudar-me após o nascimento do bebé. Dana planeara ir ter comigo na semana seguinte porque tinha espectáculos em vários clubes da região. Uma manhã, pouco depois
da minha chegada, senti o estômago às voltas. Lembrei-me do que comera na véspera, sem encontrar nada que pudesse causar-me uma indigestão. Isto durou todo o dia,
mas não falei no assunto a ninguém. No dia seguinte de manhã, estava mesmo com muitas dores, e ocorreu-me que talvez não fosse uma simples dor de estômago.
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Telefonei para a mãe de Dana, que se encontrava no trabalho: - Tenho violentas dores intermitentes. Começou ontem e está cada vez pior. Não deve ser nada que possa
ter comido, mas é estranho.
- Pelo amor de Deus, Waris, são as contracções!
Oh! Fiquei muito contente porque já ansiava que a criança nascesse. Telefonei para Dana, em Nova Iorque: - Acho que estou prestes a dar à luz!
- Não, não, não! Não podes tê-lo antes que eu chegue. AGUENTA-ME ESSE BEBÉ! Já estou a caminho, vou apanhar o próximo avião.
Anda tu p'ra cá, porra, e aguenta tu! Aguentar? Essa é boa! Como? Meu Deus, como os homens são idiotas! No entanto, eu queria que Dana assistisse ao nascimento do
nosso primeiro filho. Posteriormente à nossa conversa, a mãe de Dana telefonou para o hospital e uma enfermeira ligou-me. Disse-me que se eu queria apressar o nascimento
do bebé, tinha de andar. Deduzi que para não o ter logo, deveria fazer o contrário. Estendi-me e permaneci totalmente imóvel.
Dana só chegou a Omaha no dia seguinte ao anoitecer. Quando o pai o foi buscar ao aeroporto, eu já estava com contracções há três dias, e estava bastante ofegante.
- Oh, oh, oh, EEE! AH! MERDA! MEU DEUS!
A mãe de Dana gritava-me: - Conta, Waris, conta!
Já era altura de eu ir para o hospital, mas tivemos de esperar porque o carro estava com Dana e o pai. Quando eles chegaram, nem lhes demos tempo de entrarem em
casa; saímos a gritar: - Entrem de novo para o carro, vamos para o hospital!
Eram dez horas quando chegámos ao hospital, e às dez da manhã do dia seguinte eu continuava em trabalho de parto. - Quero balançar-me numa árvore, de cabeça para
baixo!
- gritava eu. Tratava-se de um instinto puramente animal; é assim que fazem os macacos; andam às voltas, sentam-se, põem-se de gatas, correm, balançam-se até darem
à luz; não ficam deitados como nós. Desde esse dia, Dana chama-me Macaca, e por vezes imita-me, gritando numa voz de falsete:
- Ahhh! Quero balançar-me numa árvore, de cabeça para baixo! Na sala de partos, o futuro pai dava-me conselhos:
- Respira, querida, respira suavemente.
E eu tinha vontade de lhe responder: FODA-SE! Desaparece-me da vista, caralho, senão mato-te, seu filho da puta! Oh, meu Deus, tinha mesmo vontade de o matar! Queria
morrer, mas antes queria ter a certeza que o matava a ele!
Finalmente, o momento do nascimento chegou por volta do meio-dia. Eu estava verdadeiramente grata ao médico que me operara em Londres, porque não poderia de forma
alguma ter dado à luz se ainda estivesse cosida. Após nove meses de espera e três dias de
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sofrimento, ele chegou enfim, como por magia. Owooli Após todo aquele tempo, eu estava tão feliz em vê-lo, aquela coisinha querida. Era tão bonito, com os seus cabelos
negros e sedosos, uma boca minúscula, uns pés compridos e umas mãos também compridas. Media cinquenta centímetros, mas pesava apenas três quilos. Assim que nasceu,
o meu filho disse "Ah" olhando em volta, muito curioso. Então é isto? É isto? É isto a luz? Deve ter-lhe sabido bem ao fim de nove meses.
Eu pedira à equipa médica para que imediatamente após o parto deitassem o bebé no meu peito, com todo aquele líquido e tudo. No instante em que o apertei nos braços
pela primeira vez, compreendi como é verdade o velho cliché que todas as mães dizem: Quando se segura o bebé nos braços, subitamente esquecem-se todas as dores.
Nesse momento, a dor desaparece, e só resta a alegria.
Chamei ao bebé Aleeke, que em somali significa "Leão Possante"; mas por enquanto, com a sua minúscula boca arqueada, as suas bochechas rechonchudas e a sua auréola
de caracóis, parece-se mais com um Cúpido negro do que com um leão. Tem a testa grande e lisa como a minha, e quando falo com ele morde os lábios; dir-se-ia um pássaro
contente preparando-se para cantar. Desde o nascimento, mostra-se curioso, observando serenamente tudo o que o rodeia e explorando metodicamente todo o universo
à sua volta.
Quando eu era pequena, ansiava pelo final do dia, quando voltava para casa e tratava dos animais e me sentava ao colo da minha mãe; ela acariciava-me a cabeça, e
isso dava-me um profundo sentimento de paz e segurança. Faço o mesmo a Aleeke e ele também gosta muito. Massajo-lhe a cabeça e ele adormece nos meus braços.
Aleeke mudou a minha vida. A felicidade que ele me proporciona é o mais importante para mim agora. Pus de parte todas as pequenas coisas triviais de que costumava
queixar-me que me preocupavam anteriormente. A vida e o dom da vida são as únicas coisas que realmente contam, e foi o nascimento do meu filho que me lembrou essa
evidência.
183
A EMBALVADORA
Na minha cultura, uma mulher conquista o direito ao respeito quando se torna mãe. Ao trazer ao mundo um ser humano, ela contribui para o dom da vida. Quando Aleeke
nasceu, também eu me tornei uma mama, uma mulher que atingira a idade adulta. Depois de ter passado por todas as provas do ciclo da feminilidade - que começou muito
cedo com a minha excisão aos cinco anos e terminou com o nascimento do meu filho quando eu tinha cerca de trinta anos -, senti talvez ainda mais respeito pela minha
própria mãe. Compreendi melhor a incrível força que as mulheres na Somália possuem para carregarem o fardo por simplesmente terem nascido mulheres. Eu própria, enquanto
mulher vivendo no Ocidente, tive de lutar para chegar aonde queria, e por vezes pensei que não conseguiria: esfregando o chão num McDonald's quando o meu período
era tão doloroso que quase me sentia desmaiar; submetendo-me a uma operação para abrir as cicatrizes grosseiras dos meus órgãos genitais de forma a poder urinar
normalmente; bamboleando-me, quando estava grávida de nove meses, para apanhar o metro dos bairros residenciais até Harlem, subir as escadas e fazer as compras no
mercado; suportando as dores de parto durante três dias, convencida de que ia morrer na sala de operações diante de toda a equipa médica.
Mas na realidade tive muita sorte, quando penso na criança da savana que percorre quilómetros sem fim para dar de beber às cabras quando o seu período doloroso quase
a impede de manter-se de pé. Ou na mulher cosida com agulha e fio como uma peça de roupa, quando acaba de dar à luz, para que a sua vagina permaneça estreita para
prazer do marido. Ou na mulher grávida de nove meses que percorre o deserto em busca de comida para as suas onze crianças esfomeadas. Ou ainda na jovem, também suturada,
prestes a dar à luz pela primeira vez. Que sucederá quando ela for para o deserto, como fazia a minha mãe, e tentar dar à luz a sua criança sem ajuda? Infelizmente,
conheço a resposta a esta pergunta.
184
Como muitas outras mulheres, arrisca-se a sangrar até à morte, sozinha no deserto, e se tiver um pouco de sorte, o marido encontrá-la-á antes dos abutres e das hienas.
À medida que me fui tornando mais velha e mais instruída, aprendi que não estava só: os problemas de saúde que enfrentei no seguimento da minha excisão atormentam
igualmente milhões de mulheres e de raparigas por todo o mundo. Por causa de um ritual obscuro, a maioria das mulheres do continente africano vive uma vida de sofrimento.
Quem ajudará uma mulher do deserto, como a minha mãe, que não tem dinheiro nem poder? Alguém tem de falar por estas mulheres sem voz. E, já que comecei por ser uma
nómada tal como elas, pensei que me cabia a mim fazê-lo.
Seria incapaz de explicar por que razão tantas coisas parecem ter surgido na minha vida por acaso. Contudo, não acredito inteiramente no puro acaso; existe mais
do que isso nas nossas vidas. Deus impediu um leão do deserto de me devorar quando fugi de casa, e a partir desse momento eu soube que havia um projecto para mim,
uma razão para me manter viva; mas ignorava qual...
Uma jornalista da revista de moda Marie Claire solicitou-me que lhe concedesse uma entrevista. Antes de nos encontrarmos, reflecti profundamente no que tinha vontade
de dizer no seu artigo. Quando me encontrei com Laura Ziv para almoçar, olhei para a cara dela e senti uma empatia imediata. Por isso disse-lhe: - Não sei o que
espera de mim, mas todas essas coisas sobre top-models já foram feitas milhares de vezes. Se me prometer publicá-la, contar-lhe-ei uma história verdadeira.
- Está bem, farei o que puder.
Ela ligou o gravador e eu comecei a falar da minha infância e da minha excisão. A meio da entrevista, ela desatou a chorar e desligou o aparelho.
- Que foi?
- É horrível... É revoltante. Nunca pensei que essas coisas ainda se passassem actualmente.
- Ora aí está. O problema é exactamente esse; os ocidentais não sabem. Acha que conseguirá publicar este artigo na sua revista, a sua bela e luxuosa revista que
é lida apenas por mulheres?
- Prometo fazer tudo o que puder. Mas a decisão final caberá ao meu director.
No dia a seguir à entrevista, eu sentia-me atordoada e embaraçada com o que fizera. Agora, toda a gente ficaria a saber da minha vida. Eu revelara o meu segredo
mais íntimo. Até os amigos mais próximos ignoravam o que me sucedera quando eu era pequena. Pertencendo a uma cultura bastante peculiar, não era o género de coisa
de que eu pudesse falar
185
facilmente. E eis que desvendara o meu segredo perante milhares de estranhos. Acabei por decidir: Tanto pior; se for preciso, esquece o teu orgulho. E foi exactamente
o que fiz. Despojei-me dele como se estivesse a despir-me. Pu-lo de lado e comecei a viver sem ele. Mas também, me preocupava a reacção dos somalis. Imaginava-me
ouvi-los dizer: Como te atreves a criticar os nossos costumes ancestrais? Imaginava-os a fazer eco às afirmações da minha mãe, do meu irmão e do meu primo, quando
me encontrara com eles na Etiópia: "Julgas que sabes tudo só porque vives no Ocidente?
Após longa reflexão, compreendi que tinha necessidade de falar da minha excisão por duas razões: em primeiro lugar, porque isso me perturbava profundamente. Para
além das razões de saúde que ainda enfrento actualmente, nunca conhecerei o prazer sexual; sinto-me incompleta, mutilada, e mergulhada num profundo desespero com
a ideia de que não se pode fazer nada para alterar tudo isto. Quando conheci Dana, apaixonei-me finalmente e quís experimentar os prazeres do sexo com um homem.
Se hoje me perguntassem: Sabes o que é o prazer sexual? a minha resposta seria não, pelo menos no sentido convencional; sinto simplesmente prazer em estar fisicamente
próxima de Dana porque o amo.
Durante toda a minha vida tentei encontrar uma justificação para a minha excisão. Se existisse uma boa razão, talvez pudesse aceitar o que me fizeram. Mas não descobri
nenhuma. Quanto mais procurava, maior era a minha revolta. Senti necessidade de revelar o meu segredo porque estivera guardado dentro de mim toda a vida. Estando
separada da minha família, longe da minha mãe e das minhas irmãs, não podia partilhar a minha mágoa = ninguém. Detesto o termo "vítima" porque evoca desespero, mas
quando aquela velha me mutilou, foi exactamente assim que me senti. Enquanto mulher adulta, já não era uma vítima e podia agir. Com aquele artigo na Marie Claire,
tive esperanças de que as pessoas que encorajam esta tortura compreendessem o que pelo menos uma mulher sentira, uma vez que todas as mulheres do meu país estão
condenadas ao silêncio.
Depois de terem sabido do meu segredo, certas pessoas olharam-me de forma estranha quando me encontravam na rua. Decidi não me importar, porque a segunda razão desta
emtrevista foi a vontade de fazer as pessoas tomarem consciência de que esta prática ainda existe actualmente. Tinha de o fazer, não apenas por mim, mas por todas
as raparigas espalhadas pelo mundo que teriam de sofrer esta tortura. Não centenas, não milhares, mas milhões de raparigas vivem este suplício e morrem por causa
disto. Era demasiado tarde para mim, o mal já estava feito, mas talvez pudesse ajudar a salvar outras pessoas.
Quando saiu a minha entrevista, intitulada "A Tragédia da Excisão Feminina", as reacções foram dramáticas. Laura fizera um excelente trabalho, e a revista Marie
Claire
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demonstrou grande audácia ao publicar este artigo. A redacção e Equality Now, uma organização que luta pelos direitos das mulheres, foram submergidas por cartas
de apoio. Tal como Laura, as leitoras diziam-se horrorizadas:
Há um mês atrás, no número de Março da Marie Claire, li horrorizada o artigo sobre a excisão, e não consegui deixar de pensar no assunto. Custa-me a crer que quem
quer que seja, homem ou mulher, possa esquecer ou alhear-se de algo tão desumano como este tratamento infligido àquela que Deus criou para ser a amiga e companheira
do homem: a sua esposa. A Bíblia diz que o homem deve amar a sua companheira. Mesmo numa cultura que ignora a existência de Deus, as pessoas devem compreender que
a dor, o trauma, e por vezes a morte que infligem às suas mulheres, é algo MUITO ERRADO! Como podem eles continuar a permitir que isso suceda com as suas esposas,
filhas e irmãs? É impossível que ignorem que, ao agir assim, estão a destruir as suas mulheres.
Que Deus nos ajude, devemos FAZER ALGO. Acordo a pensar nisto; deito-me a pensar nisto; e durante o dia choro quando penso nisto. Graças à World Vision ou a outra
organização similar, estas pessoas poderiam ser educadas, e aprender que o casamento e a vida íntima seriam tão mais agradáveis, para os homens como para as mulheres,
como devia ser; aprenderiam igualmente que existe uma boa razão para que as mulheres nasçam com determinadas partes do seu corpo, tal como os homens!
Outra carta dizia:
Acabo de ler o vosso artigo sobre Waris Dirie e estou horrorizada por saber que ainda há rapariguinhas que sofrem estas torturas e mutilações. Custa-me a crer que
algo de tão sádico se pratica ainda actualmente. Os problemas que daqui advêm, e que estas mulheres enfrentam para o resto da vida, são indescritiveis. Estas atrocidades
infligidas às mulheres do mundo inteiro têm de acabar. Experimentem abrir com uma lâmina os órgãos genitais de um homem e depois voltar a cosê-los e garanto-vos
que este costume desaparecerá. Como se pode ter vontade de estar fisicamente com uma mulher quando a sua dor é tão intensa e infindável? Esta história fez-me chorar,
e vou escrever à organização Equality Now para saber como poderei contribuir com o meu apoio.
187
Outra carta, que me era dirigida, dizia:
Muitas histórias trágicas foram já contadas e muitas sê-lo-ão ainda. Mas, Waris, não creio que possa existir uma quefale de uma cultura inteira, e que seja mais
horrível, do que o relato do sofrimento que essas pessoas causam às suas crianças. Fiquei profundamente sensibilizada com o que li e inclusive chorei. Gostaria de
poder fazer algo para mudar as coisas, mas não sei o que uma pessoa sópoderáfazer.
Senti-me aliviada com estas cartas de apoio; recebi apenas duas cartas de críticas provenientes da Somália, claro está.
Depois, dei outras entrevistas e comecei a discursar em escolas e associações, onde quer que pudesse divulgar este assunto.
Foi então que o destino interveio uma vez mais. Uma maquilhadora que viajava a bordo de um avião que vinha da Europa para Nova Iorque leu a minha entrevista na Marie
Claire e mostrou-a à pessoa para quem trabalhava: - Devias ler isto!
Essa pessoa era nem mais nem menos do que Barbara Walters. Mais tarde, Barbara disse-me que não tinha conseguido acabar o artigo de tal forma ficara perturbada.
Contudo, pensava que era um problema que tinha de ser encarado e por isso decidiu consagrar-lhe o seu programa 20120 utilizando a minha história para fazer os telespectadores
tomarem consciência da realidade da excisão. Ethel Bass Weintraub produziu esse programa intitulado "A RealingJourney"l, que foi premiado.
Enquanto Barbara me entrevistava, eu tinha vontade de chorar; senti-me totalmente despida. O facto de contar a minha história num artigo interpunha de alguma forma
uma distância entre mim e o leitor. Quando falei com Laura, éramos apenas duas mulheres que almoçavam juntas num restaurante. Mas quando me filmaram para o programa
20120, eu sabia que a câmara me captava em grande plano enquanto eu revelava os segredos que escondera durante toda a vida; era um pouco como se me abrissem por
dentro e expusessem a minha alma.
"A Healing Journey" foi emitido durante o Verão de 1997. Pouco tempo depois, a
1 uma viagem curativa. (N. do T.)
188
minha agência informou-me que haviam sido contactados por membros da ONU. Tinham visto o programa 20/20 e queriam que eu os contactasse.
Os acontecimentos tomavam uma vez mais um rumo surpreendente. O Fundo daNações Unidas para a População convidou-me a participar no seu combate contra a excisadas
mulheres. Trabalhando em colaboração com a Organização Mundial de Saúde, tinham estabelecido estatísticas absolutamente aterrorizadoras que permitiam avaliar toda
extensão do problema. Face a esses números, pareceu-me evidente que não se tratava de um problema exclusivamente meu. A excisão, ou mutilação genital da mulher,
como é hoje mais adequadamente designada, pratica-se principalmente em vinte e oito países de África. A ONU estima que esta prática foi aplicada a cento e trinta
milhões de raparigas e mulheres. Todos os anos, pelo menos dois milhões de raparigas correm o risco de serem vítimas, ou seja, cerca de seis mil por dia! As mutilações
são praticadas de forma primitiva por parteiras ou mulheres das aldeias, sem nenhuma anestesia. Para proceder à ablação dos órgãos genitais de uma rapariga, utilizam
qualquer instrumento que lhes venha parar à mão: lâminas de barbear, facas, tesouras, pedaços de vidro, pedras afiadas e, em certas regiões, os próprios dentes.
A gravidade da operação varia segundo as tradições locais. O prejuízo menos grave é a ablação do clitóris, destinada a impedir o prazer sexual. A infibulação é a
pior mutilação. É a que é praticada em oitenta por cento das mulheres da Somália. Foi o que me fizeram a mim. A infibulação implica consequências imediatas: choque
devido à operação, infecções e danos causados na uretra ou no ânus, formação de cicatrizes, tétano, inflamação da bexiga, septicemia, HIV e hepatite B. Entre as
complicações a longo prazo, contam-se: recorrente, infecções crónicas urinárias e pelvianas, podendo provocar a esterilidade, quistos e abcessos, na região da vulva,
neuromas dolorosos, uma micção cada vez mais difícil, menstruações difíceis e dolorosas, retenção do sangue menstrual no abdômen, frigidez, depressão e morte. Quando
penso que este ano mais de dois milhões de raparigas passarão pelo que eu passei, sinto o meu coração despedaçar-se. Sei também que o número de mulheres revoltadas
que, como eu, nunca poderão voltar atrás nem recuperar o que lhes foi retirado, aumenta todos os dias.
O número de raparigas mutiladas não cessa de aumentar. Os africanos que emigraram para a Europa e para os Estados Unidos conservaram este ritual. Os centros federais
de prevenção e Controlo da Doença estimam que vinte e sete mil mulheres que habitam no Estado de Nova Iorque sofreram ou sofrerão esta mutilação. Por este motivo,
muitos Estados votam leis para tornar ilegal a mutilação genital feminina. Os legisladores pensam que leis distintas são necessárias para proteger as crianças em
risco porque as famílias podem evocar que a liberdade religiosa prevista na Constituição lhes dá o direito de mutilar as suas filhas. Muitas vezes, as comunidades
de imigrantes de origem africana recolhem o dinheiro
189
necessário para mandar vir de África uma mulher que pratica a excisão numa série de raparigas de uma só vez. Quando isto não é possível, as famílias encarregam-se
do assunto. Um homem em Nova Iorque aumentou o volume da aparelhagem sonora para que os vizinhos não ouvissem os gritos da filha enquanto lhe cortava os órgãos genitais
com uma faca de trinchar.
Foi com muito orgulho que aceitei o convite da ONU para me tornar numa Embaixadora Especial e participar neste combate. Graças à minha posição, vou ter o privilégio
de trabalhar com mulheres como a doutora Nafis Sadik, directora do Fundo das Nações Unidas para a População. Ela foi uma das primeiras mulheres a insurgir-se contra
a mutilação genital e levantou o problema na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento que decorreu no Cairo em 1994. Em breve regressarei a África
para contar a minha história e dar o meu apoio à ONU.
Durante mais de quatro mil anos, culturas africanas permitiram que as mulheres fossem mutiladas. Esta tradição encontra-se espalhada por muitos países muçulmanos,
pelo que muita gente supõe que o Corão a exige. Contudo, isto não corresponde à verdade. Nem o Corão nem a Bíblia mencionam que se deve mutilar as mulheres para
agradar a Deus. Esta prática só é encorajada e exigida pelos homens - ignorantes e egoístas - que querem assegurar-se da exclusividade dos favores das suas esposas.
As mães aceitam que as respectivas filhas sejam mutiladas temendo que elas não encontrem marido. Uma mulher não-excisada é considerada impura, obcecada por sexo
e imprópria para o casamento. Numa cultura nómada como aquela em que fui criada, não existe lugar para uma mulher solteira, e as mães pensam que é seu dever fazer
tudo para que as filhas tenham o máximo de oportunidades - tal como as famílias ocidentais estão convencidas de que devem enviar as suas filhas para as melhores
escolas. Não há razão para a mutilação de milhões de raparigas todos os anos, a não ser a ignorância e a superstição. Pelo contrário, a dor, o sofrimento e a morte
que daqui resultam são razões mais do que suficientes para que esta prática desapareça.
Nunca ousei sonhar que um dia seria embaixadora da ONU. Apesar de sempre me ter considerado diferente dos outros membros da minha família e dos nómadas entre os
quais cresci, não poderia prever que um dia trabalharia como embaixadora para uma organização que tenta resolver os problemas do mundo inteiro. A ONU desempenha,
a nível internacional, o mesmo papel que uma mãe a nível familiar: reconforta e oferece segurança. É desta forma - talvez um pouco antiquada - que encaro a minha
futura missão. Quando era mais nova, os meus amigos tratavam-me constantemente por mama. Metiam-se comigo porque eu me comportava de uma forma maternal e tomava
conta deles.
190
Muitos desses amigos temem que um fanático religioso tente assassinar-me quando eu regressar a África. Apesar de tudo, estou a tomar partido contra um crime que
muitos fundamentalistas consideram um costume sagrado. Tenho consciência de que a minha missão é perigosa e reconheço ter medo; sinto-me particularmente inquieta
agora que tenho um filho para criar. Mas a minha fé dá-me força para continuar. Deus tem certamente uma boa razão para me ter conduzido para este caminho. Ele tem
uma tarefa a confiar-me; é esta a minha missão. Acredito que, bem antes do meu nascimento, Ele escolheu o dia em que eu deveria morrer, e não posso fazer nada para
alterar isso. Entretanto, mais vale arriscar-me; foi o que fiz toda a minha vida.
191
REFLEXÕES SOBRE O MEU PAÍS
Porque critico duramente a prática da mutilação genital das mulheres, certas pessoas pensam que não aprecio a minha cultura. Enganam-se. Todos os dias agradeço a
Deus
ter nascido em África. Sinto-me orgulhosa do meu país. Certas pessoas poderão achar a minha forma de pensar demasiado africana: esta mania de ser orgulhosa de nada.
Alguns chamar-lhe-iam arrogância.
Para além do problema da excisão, não trocaria com ninguém a forma como fui educada. Em Nova Iorque, onde vivo, toda a gente fala de valores familiares, mas não
os vi em parte nenhuma. Nunca vi uma família reunir-se para cantar, bater palmas e rir como nós o fazíamos. Aqui, as pessoas não têm laços que as liguem umas às
outras e nenhuma consciência de pertencerem a uma comunidade.
Outra vantagem de se ter nascido em África era o facto de fazermos parte da natureza, de uma vida pura. Eu conhecia a vida, não estava divorciada dela. Vivia na
realidade e não num mundo artificial criado pela televisão, onde assistimos aos outros a viverem. Desde muito cedo que o meu instinto de sobrevivência se manifestou;
conheci a alegria e a dor ao mesmo tempo. Também aprendi que a felicidade não consistia em possuir, porque eu não tinha nada e no entanto era extremamente feliz.
Os momentos mais preciosos eram aqueles em que a minha família se encontrava reunida. Lembro-me das noites quando todos nos sentávamos em volta de uma fogueira depois
do jantar, a conversar e a rir. E quando a chuva caía e a vida renascia, celebrávamos o acontecimento.
Na Somália, sabíamos apreciar as coisas simples da vida. Festejávamos a chuva porque isso significava que teríamos água. Quem, em Nova Iorque, se preocupa com isso?
Deixamos a água correr na torneira enquanto fazemos outra coisa na cozinha. Está sempre lá
192
quando precisamos. BOOM, basta abrir a torneira. Só quando nos vemos privados das coisas é que lhes damos valor, e quando não temos nada, damos valor a tudo.
A minha família lutava quotidianamente para ter algo que comer. Comprar um saco de arroz era para nós um grande acontecimento. Aqui, nos Estados unidos, a abundância
e a variedade de comida são perfeitamente surpreendentes para qualquer pessoa vinda do Terceiro Mundo. No entanto, muitos americanos preocupam-se em não comer. De
um lado do mundo, as pessoas lutam para se alimentarem, do outro, pagam para emagrecer. Quando vejo os anúncios na televisão que ensinam a perder peso, tenho vontade
de gritar: - Querem emagrecer? Vão para África! Por que não perdem peso ajudando outras pessoas? Já alguma vez pensaram nisso? Sentir-se-iam melhor e diferentes.
Fariam assim duas coisas importantes ao mesmo tempo. E quando voltassem para casa, teriam aprendido muito, e a vossa mente estaria bem mais clara do que antes.
Hoje em dia, aprecio o valor das coisas simples. Todos os dias conheço pessoas que possuem belas casas (por vezes várias), carros, barcos, jóias, e que no entanto
só pensam em adquirir mais, como se a compra seguinte fosse finalmente trazer-lhes a tranquilidade e a paz de espírito. Eu não preciso de um anel de diamantes para
ser feliz. As pessoas dizem-me que é muito fácil falar assim, agora que, posso comprar o que quero. Mas eu não quero nada. Para mim, o bem mais precioso da vida
- para além da vida em si mesma - é a saúde. Mas as pessoas desperdiçam esse bem inestimável deixando-se invadir por todas as espécies de pequenas contrariedades
fúteis: Hoje é uma conta, amanhã outra, e um monte delas que chovem de todos os lados... Como farei para pagar tudo isto? Os Estados Unidos são o país mais rico
do mundo, e no entanto os seus habitantes sentem-se pobres.
Mais ainda do que falta de dinheiro, toda a gente se queixa de falta de tempo. Ninguém tem tempo para nada. Sem tempo nenhum. "Sai-me da frente, pá, tenho pressa!".
As ruas estão repletas de gente que corre em todas as direcções, sabe Deus atrás de quê.
Sinto-me feliz por ter conhecido dois modos de vida: a vida simples e a das pessoas apressadas. Se não tivesse crescido em África, não sei se teria apreciado uma
existência simples. A minha infância passada na Somália marcou a minha personalidade para sempre e impediu-me de levar a sério coisas triviais como o sucesso e a
celebridade que parecem obcecar tanta gente. Muitas, vezes perguntam-me: "Que se sente quando se é famoso?". Eu limito-me a rir. Famoso? Que significa isso? Nem
sequer sei. A única coisa que sei é que a minha forma de pensar é a de uma africana, e que isso nunca mudará.
Uma das grandes vantagens de que beneficiamos vivendo num país ocidental é a paz. Não tenho a certeza de que muita gente tenha consciência da sorte que tem. ? É
claro que a
193
criminalidade existe, mas não é a mesma coisa do que viver num clima de guerra. Sinto-me reconhecida pelo asilo que encontrei aqui e pela possibilidade que me foi
oferecida de educar o meu filho com toda a segurança. Desde que os rebeldes ocuparam Siad Barre em 1991, a Somália encontra-se em estado de guerra permanente. Tribos
rivais disputam o poder, e ignora-se o número de vítimas. Mogadíscio, a bela cidade de edifícios brancos construída pelos colonizadores italianos, foi destruída.
Quase todos os edifícios têm a marca de sete anos de combates incessantes; os edifícios foram bombardeados e estão repletos de buracos de balas. A ordem já não é
respeitada, já não há governo, polícias, nem escola.
A minha família não saiu incólume destes combates. O meu tio Wolde'ab, irmão da minha mãe, que se parecia tanto com ela e que era tão engraçado, morreu em Mogadíscio.
Encontrava-se perto de uma janela quando a sua casa foi crivada de balas. Uma delas matou-o.
Os próprios nómadas estão actualmente afectados. Quando eu vi o meu irmãozinho Ali na Etiópia, ele contou-me que por pouco escapara à morte. Conduzia sozinho o seu
rebanho de camelos quando lhe fizeram uma emboscada e o atingiram no braço. Ali caiu e fingiu-se morto, e os agressores fugiram com todos os seus animais.
Quando nos encontrámos na Etiópia, a minha mãe contou-me que se viu apanhada entre dois fogos e que foi atingida por uma bala no peito. A minha irmã levou-a para
um hospital na Arábia Saudita, mas os médicos consideraram-na demasiado velha para ser operada; corria o risco de não sobreviver à operação. No entanto, quando a
vi, ela parecia forte como uma camela. Sempre foi assim corajosa, rindo-se da dor. Quando lhe perguntei se ainda tinha a bala alojada no peito, ela respondeu-me:
- Sim, sim, continua aqui, mas não me importo. Aliás, talvez tenha acabado por derreter com o tempo.
Estas guerras tribais, tal como a prática da excisão, são consequência da agressividade e do egoísmo dos homens. Não gosto de o dizer, mas é verdade. Eles agem assim
porque vivem obcecados pelo seu território e pelas suas possessões e as mulheres encontram-se nesta última categoria, tanto a nível cultural como legal. Se capássemos
os homens, talvez o meu país se tornasse um paraíso. Acalmar-se-iam e mostrar-se-iam mais sensíveis ao mundo que os rodeia. Sem estes fluxos regulares de testosterona,
deixaria de haver guerras, massacres, roubos, violações. Se lhes cortássemos os órgãos genitais e os deixássemos entregues à sua sorte, sangrando até à morte ou
sobrevivendo, talvez compreendessem o mal que fazem às mulheres.
O meu objectivo é ajudar as mulheres africanas. Queria vê-las tornarem-se fortes e não fracas, porque a prática da excisão as enfraquece, tanto física como emocionalmente.
As mulheres são a espinha dorsal de África, assumem a maior parte do trabalho, e costumo
194
imaginar o que poderiam fazer se não fossem mutiladas durante a infância e diminuídas para o resto da vida.
Apesar da minha revolta pelo que me fizeram, não condeno os meus pais. Amo a minha mãe e o meu pai. A minha mãe não tinha uma palavra a dizer relativamente à excisão
porque, como mulher, não tinha nenhum poder de decisão. Limitou-se a fazer-me o mesmo que lhe fizeram, que fizeram à sua mãe e à mãe da sua mãe antes dela. O meu
pai não tinha consciência do sofrimento que me infligia. Sabia simplesmente que na nossa sociedade, se queria casar a sua filha, ela tinha de ser excisada, caso
contrário nenhum homem a aceitaria. Os meus pais foram ambos vítimas da sua educação, de práticas culturais imutáveis desde há milénios. Mas, tal como hoje se sabe
que é possível evitar a doença e a morte graças à vacinação, sabe-se que as mulheres não são animais com cio, e que a sua fidelidade se conquista através da confiança
e do afecto, e não por via de rituais bárbaros. Chegou a altura de abandonar as velhas tradições que causam tanto sofrimento.
Acredito que o corpo que Deus me deu à nascença era perfeito. Os homens roubaram-mo, retiraram-me a força e tornaram-me deficiente. Retiraram-me a minha feminilidade.
Se Deus achasse que essas partes do meu corpo eram inúteis, por que as teria criado? Rezo para que um dia mais nenhuma mulher tenha de passar por esta tortura; que
esta prática se torne uma coisa do passado; que as pessoas digam: "Sabes que a mutilação genital das mulheres foi proibida na Somália?". Depois noutro país e ainda
noutro, até que o mundo se torne seguro para todas as mulheres. Esse seria um dia maravilhoso; e é nesse sentido que eu trabalho. Inch'Allah, se Deus quiser, acontecerá.
195
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer às seguintes pessoas que ajudaram a tornar este livro possível, não apenas relativamente à sua feitura, mas também por fazerem parte da minha
vida:
Ao meu querido Leeki-Leek, que felicidade ter-te na minha vida. Agradeço a Deus ter-te colocado no meu caminho. Significas mais para mim do que poderei exprimir
em palavras.
Ao meu querido Dana, obrigada por me iluminares. Foi o destino que fez os nossos caminhos encontrarem-se. Amo-te.
Aos pais de Dana, obrigado por me acolherem como uma de vós. É bom sentir-me de novo parte de uma família. Especialmente à minha avó, que esteve sempre a meu lado
a cada etapa do caminho. Amo-te mais do que poderás imaginar.
A Christy Fletcher.e aos seus sócios da Agência Carol Mann, por serem os agentes mais honestos, leais e dedicados que alguma vez tive.
A todos na William Morrow, e especialmente a Betty Kelly, que realmente compreendeu e acreditou na minha visão e que também encarou este livro como um filho seu.
A Cathy Miller, que enquanto tentava entrar na minha cabeça quase perdeu a sua. Obrigado por todo o intenso trabalho e esforço.
A Tyrone Barington, pela sua constante atenção e apoio durante todo o percurso.
Ao meu braço direito, Sabrina Cervoni - não poderia funcionar sem ti. Obrigada por fazeres parte da minha vida.
Ao meu amigo mais querido, George Speros - que poderei dizer a não ser que a única coisa que sinto por ti é ternura, querido.
197
A Barbara Walters, Ethel Bass e toda a equipa do 20/20, obrigada por me darem a oportunidade de contar a minha história no vosso programa e por todo o apoio que
me deram.
A Laura Ziv, que escreveu o inesquecível artigo que sensibilizou mais pessoas do que eu esperava.
A todos na ONU, por estarem do meu lado e lutarem pelas minhas convicções. Deram-me a mim e a milhares de outras pessoas a esperança de que esta prática cessará.
A toda a minha família e a todos os que se cruzaram comigo e possam não compreender as minhas razões para escrever este livro: não se destina a magoar ninguém, e
não guardo quaisquer ressentimentos, especialmente em relação à minha família. Obrigado por serem quem são, amo-vos muito.
E finalmente, mais importante do que tudo, a Deus, o Criador da Terra. Obrigada por me teres concedido o dom da vida e por me dares a força e a coragem de viajar
através de todos estes rios, serenos ou turbulentos. Criaste um mundo cheio de beleza e amor. Espero que todos aprendam a amar e apreciar este paraíso que é o planeta
em que vivemos.

Digitalização e correcção de

Carla Maria Ferreira dos Mártires
José Alberto Canelas


2003-04-20--
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