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Lançamento Gênesis do Conhecimento - O Milagre - Nicholas Spark


Nicholas Spark

O MILAGRE


Tradução
Elvira Serapicos

AGIR
2010


Para Rhett e Valerie Little, pessoas maravilhosas,
amigos maravilhosos.

Agradecimentos

Como sempre, tenho de agradecer à minha esposa, Cathy,
por seu apoio enquanto escrevia este romance. Tudo o que
consigo fazer devo a ela.
Também tenho de agradecer a meus filhos: Miles, Ryan,
Landon, Lexie e Savannah. O que posso dizer? Fui
abençoado no momento em que cada um de vocês surgiu na
minha vida e tenho muito orgulho de todos vocês.
Theresa Park, minha agente, merece uma grande salva de
palmas por tudo o que faz por mim. Parabéns por sua nova
agência — a Park Literary Group (para todos os aspirantes a
escritor que estão por aí). Sinto orgulho por poder chamada
de amiga.
Jamie Raab, minha editora, merece meu agradecimento, não
apenas pelo modo como ela edita meus romances, mas por
toda a confiança que deposita em mim. Eu não sei o que
teria acontecido com minha carreira se não fosse por você, e
sou muito grato por sua generosidade e atenção.
Larry Kirshbaum e Maureen Egen são amigos e colegas, e
considero um privilégio trabalhar com eles. Eles são
simplesmente os melhores naquilo que fazem.
Denise DiNovi também merece meu agradecimento, não
apenas por causa dos filmes que fez a partir de meus
romances, mas por aqueles telefonemas nas horas certas,
que sempre iluminam meus dias.
Obrigado também a Howie Sanders e Dave Park, meus
agentes na UTA, e também a Richard Green, na CAA.
Lynn Harris e Mark Johnson, que ajudaram a transformar
The notebook naquele filme maravilhoso, também merecem
minha gratidão. Obrigado por nunca terem deixado de
acreditar no romance.
Agradecimentos especiais também para Francis
Greenburger. Ele sabe por quê — e eu lhe devo uma.
E, finalmente, obrigado àquelas pessoas que trabalham tanto
nos bastidores e se tornaram como uma família para mim
com o passar dos anos: Emi Battaglia, Edna Farley e Jennifer
Romanello, no Departamento de Publicidade; Flag, que fez
outro trabalho fantástico com a capa; Scott Schwimer, meu
advogado; Harvey-Jane Kowal, Shannon O'Keefe, Julie
Barer e Peter McGuigan. Eu tenho muita sorte por trabalhar
com pessoas tão maravilhosas.


Capítulo
UM

Jeremy Marsh sentou-se com o resto do público do estúdio
ao vivo, sentindo-se estranhamente visível. Sentado no
meio de apenas meia dúzia de homens presentes no
auditório, naquela tarde de meados de dezembro, estava
vestido de preto, é claro, e com seu cabelo escuro ondulado,
olhos azul-claros e a estilosa barba por fazer, parecia
exatamente o nova-iorquino que era. Enquanto estudava o
convidado que ocupava o palco naquele momento, ele
conseguiu observar sorrateiramente a loira atraente sentada
três fileiras acima. Sua profissão freqüentemente exigia que
fizesse várias coisas ao mesmo tempo. Ele era um jornalista
investigativo em busca de uma história, e a loira era apenas
mais uma pessoa no auditório; ainda assim, o observador
profissional que havia dentro dele não poderia deixar de
notar o quanto ela ficava atraente com aquele top frente
única e jeans. Jornalisticamente falando, é claro.
Desviando o pensamento, ele tentou voltar sua atenção de
novo para o convidado. Aquele cara era mais do que
ridículo. Ofuscado pelas luzes da televisão, Jeremy tinha a
impressão de que o guia espírita parecia estar com prisão de
ventre, enquanto garantia ouvir vozes do além. Ele havia
assumido uma intimidade falsa, agindo como se fosse o
irmão ou o melhor amigo de todo mundo, e parecia que a
grande maioria do público, apavorada — inclusive a loira
atraente e a mulher com quem o convidado estava falando
—, considerava-o a própria dádiva dos céus. O que fazia
sentido, pensou Jeremy, já que era sempre esse o destino das
pessoas amadas falecidas. Os espíritos do além estavam
sempre cercados por uma luz angelical brilhante e envoltos
em uma aura de paz e tranqüilidade. Jeremy jamais ouvira
falar de um guia espírita que se comunicasse com aquele
outro lugar, mais quente. Os mortos queridos jamais diziam
que estavam sendo assados num espeto ou cozidos num
caldeirão de óleo, por exemplo. Mas Jeremy sabia que estava
sendo cínico. E, além disso, tinha de admitir, era um ótimo
espetáculo. Timothy Clausen era bom — muito melhor do
que a maioria dos charlatães sobre os quais Jeremy tinha
escrito ao longo dos anos.
— Eu sei que é difícil — Clausen disse no microfone —,
mas Frank está lhe dizendo que está na hora de deixar que
ele se vá.
A mulher para quem ele se dirigia com tanta ó-meu-Deus
empatia, parecia que ia desmaiar. Cinqüentona, ela usava
uma blusa verde listrada e seu cabelo vermelho encaracolado
parecia crescer e encaracolar em todas as direções. Suas
mãos estavam tão apertadas na altura do peito que os dedos
estavam esbranquiçados por causa da pressão.
Clausen fez uma pausa e colocou a mão na testa,
aproximando-se do "além", como ele dizia. No silêncio, a
multidão inclinou-se coletivamente para a frente em suas
poltronas. Todos sabiam o que viria em seguida; a mulher
era a terceira pessoa da platéia escolhida por Clausen. Não
era de surpreender que Clausen fosse o único convidado
apresentado pelo popular talk show naquela tarde.
— Você se lembra da carta que ele lhe mandou? — Clausen
perguntou. — Antes de morrer?
A mulher sufocou um grito. A seu lado, o assistente da
produção aproximou o microfone ainda mais para que todos
os que estivessem assistindo à televisão pudessem ouvir
claramente.
— Sim, mas como você poderia saber...? — ela gaguejou.
Clausen não deixou que ela terminasse. — Você se lembra
do que dizia? — ele perguntou.
— Sim — a mulher resmungou.
Clausen acenou com a cabeça, como se ele próprio tivesse
lido a carta. — Ela falava sobre perdão, não é mesmo?
No sofá, a apresentadora do programa, o talk show
vespertino mais popular da América, cravou o olhar em
Clausen e depois na mulher, e depois em Clausen de novo.
Ela parecia ao mesmo tempo surpresa e satisfeita. Guias
espíritas eram sempre bons para os índices de audiência.
Enquanto a mulher da platéia acenava com a cabeça, Jeremy
notou que o rímel começou a escorrer por seu rosto.
Rapidamente, as câmeras se aproximaram para exibir o close.
Isso era a televisão em seu aspecto mais dramático.
— Mas como é que você poderia...? — a mulher voltou a
dizer.
— Ele também estava falando a respeito de sua irmã —
Clausen murmurou. — E não apenas dele.
A mulher encarou Clausen, transfigurada.
— Sua irmã Eilen — Clausen acrescentou, e com aquela
revelação a mulher finalmente soltou um choro convulsivo.
As lágrimas brotavam como num esguicho automático.
Clausen — bronzeado e elegante em seu terno preto sem
um único fio de cabelo fora do lugar — continuava a acenar
com a cabeça como aqueles cachorrinhos que você prende
no retrovisor do carro. A platéia olhava para a mulher em
silêncio profundo.
— Frank deixou outra coisa para você, não é? Uma coisa do
seu passado.
Apesar do calor provocado pelas luzes do estúdio, a mulher
pareceu ter ficado realmente pálida. Em um canto do set,
além da área mais ampla em torno do palco, Jeremy viu o
produtor girando o dedo indicador como se fosse o
movimento de um helicóptero. Estava chegando a hora do
intervalo comercial. Clausen olhara de maneira quase
imperceptível naquela direção. Ninguém, além de Jeremy,
parecia ter notado, e ele sempre se perguntava por que as
pessoas nunca questionavam o fato de a comunicação com o
mundo dos espíritos estar em tão perfeita sincronia com os
intervalos comerciais.
Clausen continuou. — Que ninguém mais poderia saber a
respeito. Uma chave, certo?
Os soluços continuavam, enquanto a mulher concordava
com a cabeça.
— Você nunca pensou que ele tivesse guardado, não é?
O.k., esse é o gancho, Jeremy pensou. Outro verdadeiro
crente a caminho.
— É do hotel em que vocês ficaram em sua lua-de-mel. Ele
a deixou lá para que, quando a achasse, você se lembrasse
dos tempos felizes que passaram juntos. Ele não quer que
você se lembre dele com sofrimento, porque ele a ama.
— Oooooooooohhhhhhhhhhhhhh...! — a mulher
choramingou.
Ou algo parecido. Um gemido talvez. Do lugar em que
estava sentado, Jeremy não poderia dizer com certeza,
porque o choro foi interrompido por aplausos súbitos e
entusiasmados. De repente, o microfone foi retirado. As
câmeras se afastaram. Acabado o seu momento de glória, a
mulher da platéia desabou na poltrona em que estava
sentada. Nesse exato momento, a apresentadora se levantou
do sofá e olhou direto para a câmera.
— Lembrem-se de que isto que vocês estão assistindo é
real. Nenhuma dessas pessoas jamais se encontrou com
Timothy Clausen. — Ela sorriu. — Estaremos de volta com
mais uma comunicação depois dos comerciais.
Mais aplausos quando o programa foi interrompido para os
comerciais, e Jeremy recostou-se em sua poltrona.
Como jornalista investigativo conhecido por seu interesse
pela ciência, ele havia construído uma carreira escrevendo
sobre pessoas como essas. Na maior parte do tempo, gostava
do que fazia e tinha orgulho de seu trabalho, como se fosse
uma espécie de serviço público valioso, numa profissão tão
especial que tinha seus direitos enumerados pela Primeira
Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América.
Em sua coluna habitual na Scientific American, ele havia
entrevistado ganhadores do Prêmio Nobel, explicado as
teorias de Stephen Hawking e de Einstein em termos
acessíveis aos leigos, e uma vez teve seu mérito reconhecido
por ter deflagrado um movimento na opinião pública que
levou a Food and Drug Administration (FDA) a tirar do
mercado um poderoso antidepressivo. Ele escrevera
extensivamente a respeito da missão Cassini, a respeito do
espelho defeituoso nas lentes do telescópio espacial Hubble,
e fora um dos primeiros a condenar publicamente a
experiência da fusão fria realizada em Utah como sendo uma
fraude.
Infelizmente, apesar de toda a repercussão da sua coluna, ela
não dava muito dinheiro. Era o seu trabalho como freelancer
que pagava a maioria das contas, e, como todos os
freelancers, ele estava sempre se movimentando para
descobrir histórias que pudessem interessar aos editores de
revistas e jornais. Seu segmento de atuação tinha se
ampliado de forma a incluir "tudo o que fosse incomum" e,
nos últimos quinze anos, ele havia pesquisado e investigado
videntes, guias espíritas, médicos espirituais e médiuns. Ele
havia revelado fraudes, mistificações e embustes. Visitara ca-
sas assombradas, lançara-se na procura por criaturas místicas
e envolvera-se na busca das origens de lendas urbanas.
Cético por natureza, era dotado da rara capacidade de
explicar conceitos científicos difíceis de uma forma que o
leitor mediano conseguisse entender, e seus artigos haviam
sido publicados por centenas de revistas e jornais ao redor
do mundo. A desmistificação científica, para ele, era tão
nobre quanto importante, mesmo que o público nem
sempre gostasse. Freqüentemente, depois da publicação de
seus artigos como freelancer, seu correio eletrônico ficava
repleto de palavras como "idiota", "retardado" e a sua
favorita, "puxa-saco do governo".
O jornalismo investigativo, ele tinha aprendido, era um
negócio ingrato.
Refletindo sobre isso com o semblante fechado, ele
observou a platéia conversando animadamente, imaginando
quem seria o próximo a ser escolhido. Jeremy lançou outro
olhar furtivo na direção da loira, que examinava o batom em
um espelhinho de mão.
Jeremy já sabia que as pessoas escolhidas por Clausen
oficialmente não faziam parte do número. Porém, como a
presença de Clausen havia sido anunciada com
antecedência, os ingressos para o programa haviam sido
disputados furiosamente. O que significava, é claro, que a
platéia estava cheia de pessoas que acreditavam na vida após
a morte. Para elas, Clausen era autêntico. Como ele saberia
coisas tão pessoais a respeito de estranhos, se não falasse
com os espíritos? Mas como com qualquer bom mágico que
tinha seu repertório muito bem decorado, a ilusão ainda era
uma ilusão; e, pouco antes de começar o programa, Jeremy
não só havia percebido como ele iria agir, como também
havia obtido provas fotográficas para mostrar.
Desmascarar Clausen seria o maior feito de Jeremy até
então, e era exatamente o que merecia o sujeito. Clausen era
um trapaceiro da pior espécie. Ainda assim, o lado
pragmático de Jeremy compreendia que esse era o tipo de
história que raramente fazia sucesso e ele queria tirar o má-
ximo proveito dela. Afinal, Clausen estava no auge de uma
enorme celebridade; e, na América, celebridade era tudo o
que importava. Apesar de saber que era uma possibilidade
absolutamente improvável, ele fantasiou sobre o que
aconteceria se Clausen realmente o escolhesse a seguir. Ele
não esperava que isso acontecesse; ser escolhido seria o
mesmo que ganhar um prêmio acumulado na loteria; mas
mesmo que não acontecesse, Jeremy sabia que tinha uma
excelente história. A diferença entre excelente e
excepcional, entretanto, muitas vezes dependia dos
caprichos do destino, e ao terminar o intervalo comercial ele
sentiu dentro dele um pequeno lampejo de injustificada
esperança para que de alguma forma Clausen dirigisse sua
atenção para ele.
Então, como se Deus também não estivesse muito satisfeito
com o que Clausen estava fazendo, foi exatamente isso o que
aconteceu.

Três semanas depois, o inverno castigava Manhattan sem
compaixão. Uma frente fria vinda do Canadá tinha feito as
temperaturas despencarem até quase zero, nuvens de vapor
saíam das grades dos esgotos antes de pousar sobre as
calçadas escorregadias. Não que alguém parecesse se im-
portar. Os intrépidos cidadãos nova-iorquinos exibiam sua
habitual indiferença a tudo o que dissesse respeito às
condições meteorológicas, e as noites de sexta-feira não
poderiam ser desperdiçadas de maneira alguma. As pessoas
davam um duro danado durante a semana e não iriam deixar
de sair uma noite, principalmente quando havia motivos
para celebrar. Nate Johnson e Alvin Bernstein já estavam
celebrando fazia uma hora, assim como uma dúzia de amigos
e jornalistas — alguns da Scientific American — que tinham
se reunido para homenagear Jeremy. Muitos já estavam na
fase mais animada da noite e se divertiam bastante,
principalmente porque os jornalistas costumam ter uma
grande preocupação com o orçamento, e aquela noite era
por conta de Nate.
Nate era o agente de Jeremy. Alvin, que trabalhava como
cameraman freelancer, era o melhor amigo de Jeremy, e eles
haviam se reunido naquele bar modernoso do Upper West
Side para celebrar a presença de Jeremy no Primetime Live
da rede ABS. As chamadas do Primetime Live tinham ido ao
ar naquela semana — a maioria delas mostrando Jeremy de
frente e no centro, e prometendo uma grande revelação —
e pedidos para entrevistas em todos os cantos do país
estavam chovendo no escritório de Nate. No início daquela
tarde, a revista People telefonara e eles haviam marcado uma
entrevista para a segunda-feira pela manhã.
Não fora possível organizar um espaço reservado para o
encontro, mas ninguém parecia se importar. Com seu
imenso bar de granito e uma iluminação teatral, o lugar
superlotado era o próprio reino dos yuppies. Enquanto os
jornalistas da Scientific American usavam jaquetas esportivas
de tweed com protetores de bolso e se amontoavam num
canto do salão, conversando sobre fótons, a maioria dos
outros clientes parecia ter vindo direto do trabalho, na Wall
Street ou na Madison Avenue: paletós de ternos italianos
pendurados nas costas das cadeiras, gravatas Hermes com o
nó frouxo, homens que pareciam não querer fazer outra
coisa além de examinar as mulheres que freqüentavam o
lugar, enquanto mantinham o olho grudado no Rolex.
Mulheres que trabalhavam em editoras ou agências de
publicidade vestiam roupas de griffe e usavam saltos
absurdamente altos, bebericando Martinis aromatizados,
enquanto fingiam ignorar os homens. Jeremy estava de olho
numa ruiva alta do outro lado do bar que, aparentemente,
estava olhando em sua direção. Ele se perguntou se ela o
teria reconhecido das chamadas da televisão, ou se queria
companhia apenas. Ela virou o rosto, aparentemente
desinteressada, mas depois olhou de novo para ele. Diante
do olhar que se demorou um pouco mais desta vez, Jeremy
ergueu o copo.
— Vem cá, Jeremy, presta atenção — disse Nate,
cutucando-o com o cotovelo. — Você está na TV! Você não
quer ver como foi?
Jeremy desviou sua atenção da ruiva. Erguendo o olhar na
direção da tela, ele se viu sentado diante de Diane Sawyer.
Estranho, ele pensou; era como estar em dois lugares ao
mesmo tempo. Ainda parecia que não tinha acontecido de
verdade. Nada naquelas três últimas semanas parecia ter
acontecido de verdade, apesar de todos os seus anos na
mídia.
Na tela, Diane o estava descrevendo como "o jornalista
científico mais respeitado dos Estados Unidos". A história
não só acabara por se transformar em tudo o que ele queria,
como Nate estava negociando com o Prime-time Live uma
colaboração regular de Jeremy, com a possibilidade de
matérias adicionais para o Good Morning America. Apesar
de muitos jornalistas acharem que a televisão era um veículo
menos importante do que outros, mais sérios, para
reportagens, isso não impedia que a maioria deles
alimentasse intimamente a idéia da televisão como o Santo
Graal, o que no fundo queria dizer muito dinheiro. Apesar
dos cumprimentos, havia inveja no ar, uma sensação tão
estranha para Jeremy quanto uma viagem espacial. Afinal,
jornalistas da sua espécie não estavam exatamente no topo
da hierarquia social da mídia — até hoje.
— Ela falou que você é respeitado? — Alvin perguntou. —
Você escreve a respeito do Pé Grande e da lenda de
Atlantis?
— Sshhh! — Nate soprou, os olhos grudados na televisão.
— Estou tentando ouvir. Pode ser importante para a carreira
de Jeremy.
Como agente de Jeremy, Nate estava eternamente
promovendo eventos que "poderiam ser importantes para a
carreira de Jeremy", pela simples razão de que o trabalho
como freelancer não era assim tão lucrativo. Alguns anos
antes, quando Nate estava começando, Jeremy havia
aceitado a proposta para fazer um livro, e eles estavam
trabalhando juntos desde então, simplesmente porque
tinham se tornado amigos.
— Tudo bem — disse Alvin, ignorando a rabugice.
Enquanto isso, brilhando na tela atrás de Diane Sawyer e de
Jeremy, estavam os momentos finais da performance de
Jeremy no programa vespertino da televisão, quando Jeremy
havia fingido que era um homem lamentando a morte do
irmão que perdera na infância. Esse menino, segundo
Clausen, estava querendo entrar em contato com Jeremy.
— Ele está comigo — Clausen estava anunciando. — Ele
quer que você o deixe ir, Thad.
A imagem então mudou para mostrar a interpretação que
Jeremy fazia de alguém angustiado, o rosto contorcido. Ao
fundo, Clausen acenava com a cabeça, exalando compaixão
ou revelando a prisão de ventre, conforme a perspectiva.
— Sua mãe nunca mexeu no quarto dele — o quarto que
você dividia com ele. — Ela insistia para que fosse mantido
do mesmo jeito, e você ainda tinha de dormir ali — Clausen
prosseguiu.
— Sim — Jeremy soluçou.
— Mas você tinha medo de ficar lá e, de raiva, você pegou
uma coisa dele, uma coisa muito pessoal, e a enterrou no
quintal dos fundos.
— Sim — Jeremy conseguiu dizer de novo, como se
estivesse muito emocionado para falar mais do que isso.
— O aparelho que ele usava para corrigir os dentes.
— Ooooooohhhhhhhhhh! — Jeremy gemeu, cobrindo o
rosto com as mãos.
— Ele o ama, mas você precisa entender que ele está em paz
agora. Ele não sente raiva de você...
— Oooooohhhhhhhhh! — Jeremy choramingou de novo,
contorcendo ainda mais o rosto.
No bar, Nate observava os bacanas em concentração
silenciosa. Alvin, ao contrário, estava gargalhando quando
ergueu bem alto o seu copo de cerveja.
— Esse cara merece um Oscar! — ele gritou.
— Foi bastante impressionante, não foi? —Jeremy
perguntou, com um sorriso cínico.
— Eu já avisei vocês dois... — Nate falou, sem esconder sua
irritação. — Esperem para falar durante os comerciais.
— Tudo bem — Alvin disse novamente. "Tudo bem" sempre
fora a expressão favorita de Alvin.
No Primetime Live, a fita de vídeo sumiu numa tela preta e
a câmera enfocou Diane Sawyer e Jeremy sentados um de
frente para o outro novamente.
— Então, nada do que o Timothy Clausen disse era verdade?
— Diane perguntou.
— Nem uma palavra — disse Jeremy. — Como você já sabe,
meu nome não é Thad, e embora eu realmente tenha cinco
irmãos, todos estão vivos e bem.
Diane segurava uma caneta sobre um bloco de papel, como
se estivesse prestes a fazer alguma anotação. — Então como
é que o Clausen fazia essas coisas?
— Bem, Diane — Jeremy começou.
No bar, Alvin ergueu a sobrancelha que tinha um piercing.
Inclinando-se na direção de Jeremy, ele perguntou: — Você
a chamou de Diane? Como se vocês fossem amigos!
— Por favor! — disse Nate, a exasperação aumentando
naquele instante.
Na tela, Jeremy continuou a falar: — O que Clausen faz é
simplesmente uma variação do que as pessoas têm feito há
centenas de anos. Em primeiro lugar, ele é bom na leitura
das pessoas, e é um especialista em fazer associações
extremamente vagas mas com grande carga emocional,
respondendo ao que as pessoas da platéia deixam escapar.
— Sim, mas ele foi tão específico. Não só com você, mas
com os outros convidados. Ele tinha nomes. Como ele
consegue?
Jeremy encolheu os ombros. — Ele me ouviu falar de meu
irmão Marcus antes de começar o programa. Eu
simplesmente inventei uma vida imaginária e a divulguei em
alto e bom som.
— E como isso chegou aos ouvidos de Clausen?
— Trapaceiros como Clausen são conhecidos por usar uma
infinidade de truques, incluindo microfones e "ouvintes"
pagos que circulam pela área de espera antes do programa.
Antes de me sentar, eu dei algumas voltas e conversei com
muita gente da platéia, prestando atenção para ver se alguém
demonstrava algum interesse especial pela minha história. E
não tenha dúvida, eu me deparei com um homem
especialmente interessado.
Atrás deles, a fita de vídeo foi substituída por uma foto
ampliada que Jeremy havia tirado com uma pequena câmera
escondida em seu relógio, um brinquedinho de espionagem
de alta tecnologia que ele já havia lançado como despesa na
Scientific American. Jeremy adorava brinquedos de alta
tecnologia, tanto quanto adorava lançá-los na conta dos
outros.
— O que estamos vendo aqui? — Diane perguntou.
Jeremy mostrou. — Este homem estava se misturando com
as pessoas no estúdio, fazendo-se passar por um visitante de
outra cidade. Eu tirei essa foto enquanto conversávamos,
pouco antes de começar o programa. Por favor, alguém dê
um zoom aqui.
Na tela, a foto foi ampliada e Jeremy fez um gesto para se
aproximar dela.
— Está vendo o pequeno broche dos EUA na lapela? Isso
não é apenas um enfeite. Na verdade, é um
microtransmissor conectado a um gravador nos bastidores.
Diane franziu a testa. — Como você sabe disso?
— Porque — Jeremy falou, erguendo uma sobrancelha —
eu por acaso tenho um igual a esse.
Dito isso, Jeremy colocou a mão no bolso do paletó e tirou
dali o que parecia ser o mesmo broche dos EUA, ligado por
um fio comprido como um arame a um transmissor.
— Este modelo em especial é fabricado em Israel — a voz
de Jeremy podia ser ouvida ao fundo, enquanto a câmera
mostrava um close da engenhoca — e é bastante sofisticado.
Ouvi dizer que é usado pela CIA, mas, é claro, não tenho
como confirmar essa informação. O que eu posso lhe dizer é
que a tecnologia é bastante avançada — este pequeno
microfone é capaz de captar conversas em uma sala lotada,
barulhenta e, com os sistemas de filtro apropriados, também
é capaz de isolá-las.
Diane examinou o broche com evidente fascinação. — E
você tem certeza de que isto era realmente um microfone e
não apenas um broche?
— Bem, como você sabe, eu já estava de olho em Clausen
há algum tempo, e uma semana depois do programa eu
consegui obter mais algumas fotos.
Uma nova fotografia apareceu na tela. Apesar de um pouco
granulosa, era uma foto do mesmo homem que estava
usando o broche dos EUA.
— Esta foto foi tirada na Flórida, diante do escritório de
Clausen. Como você pode ver, o homem está entrando no
escritório. O nome dele é Rex Moore, e ele é realmente um
funcionário de Clausen. Ele trabalha para Clausen há dois
anos.
— Uuuuuuhhhhh! — Alvin berrou, e o resto da transmissão,
que já estava terminando, foi abafada quando os outros,
invejosos ou não, se juntaram com vaias e gritos. A boca-
livre tinha feito sua mágica, e Jeremy foi sufocado por
cumprimentos quando o programa acabou.
— Você estava fantástico — disse Nate. Aos quarenta e três
anos, baixo e ficando careca, Nate tinha o costume de usar
paletós muito apertados na cintura. Mas isso não importava.
O homem era a encarnação da energia e, como a maioria dos
agentes, ele realmente se movimentava com intenso
otimismo.
— Obrigado — disse Jeremy, tomando o que restava de sua
cerveja.
— Isso vai ser muito bom para sua carreira — continuou
Nate. — É sua passagem para uma apresentação permanente
na televisão. Você não mais vai ter de batalhar por trabalhos
ruins como freelancer para uma revista qualquer, não mais
vai ter de procurar histórias de OVNIS. Eu sempre disse que
com esse visual você foi feito para a TV.
— Você sempre disse isso — Jeremy concordou, com um
virar de olhos típico de alguém que ouve um sermão
repetido muitas vezes.
— Estou falando sério. Os produtores do Primetime Live e
do Good Morning America não param de telefonar, falando
que poderiam aproveitar você como colaborador
permanente dos programas. Você sabe, "o que essas últimas
notícias científicas significam para você" e coisas do gênero.
Um salto e tanto para um repórter de ciências.
— Eu sou jornalista — Jeremy disse, torcendo o nariz —,
não um repórter.
— Tudo bem — disse Nate, gesticulando como se estivesse
tentando se livrar de um mosquito. — Como eu sempre
disse, seu visual é perfeito para a televisão.
— Eu sou obrigado a concordar com Nate — Alvin
acrescentou, piscando o olho. — Quer dizer, de que outra
forma você conseguiria fazer mais sucesso do que eu com as
mulheres, apesar de ter personalidade zero? — havia anos
que Alvin e Jeremy andavam juntos pelos bares, atrás de
garotas.
Jeremy soltou uma risada. Alvin Bernstein, cujo nome
evocava um contador bem-apessoado, de óculos — um
daqueles inúmeros profissionais que usavam sapatos
Florsheim e levavam uma valise para o trabalho — não
parecia um Alvin Bernstein. Quando era adolescente, ele
tinha assistido Eddie Murphy em Delirious e decidira então
fazer do couro-total seu próprio estilo, para horror de
Melvin, seu pai, que usava sapatos Flörsheim e carregava
uma valise quando ia para o trabalho. Felizmente, o couro
parecia combinar com suas tatuagens. Alvin achava que as
tatuagens eram um reflexo de sua estética singular, e ele era
singularmente estético em ambos os braços, até os
espaldares dos ombros. Tudo isso complementava os
múltiplos Piercings nas orelhas de Alvin.
— Então, você ainda está pensando em fazer aquela viagem
para o Sul, para investigar aquela história de fantasma? —
Nate apertou o cerco. Jeremy podia sentir claramente a
corda puxando e apertando dentro de sua cabeça. — Quer
dizer, depois da sua entrevista para a People.
Jeremy tirou os cabelos escuros da frente dos olhos e fez um
sinal pedindo outra cerveja para o barman. — Claro, acho
que sim. Com Primetime ou sem Primetime, eu ainda tenho
contas para pagar, e acho que poderia usar isso em minha
coluna.
— Mas você vai manter contato, certo? Não vai fazer como
daquela vez em que se infiltrou entre os "Justos e Sagrados"?
— Ele estava se referindo a uma matéria de seis mil palavras
que Jeremy havia feito para a Vanity Fair a respeito de um
culto religioso; naquela ocasião, Jeremy tinha cortado
basicamente toda a comunicação por um período de três
meses.
— Eu manterei contato — Jeremy disse. — Essa história não
é tudo isso. Talvez eu saia de lá em menos de uma semana.
"Luzes misteriosas no cemitério" não é grande coisa.
— Ei, por acaso você não vai precisar de um cameraman! —
Alvin sugeriu.
Jeremy olhou para ele. — Por quê? Você está querendo ir
junto?
— Claro. Pegar o inverno no Sul, talvez encontrar uma bela
sulista simpática, enquanto você estiver concentrado no
trabalho. Ouvi dizer que as mulheres daquelas bandas
deixam um homem louco, no bom sentido. Vai ser como
tirar umas férias exóticas.
— Você não deveria estar filmando alguma coisa para Law
& Order na semana que vem?
Por mais estranho que Alvin parecesse, sua reputação era
impecável e seus serviços eram sempre muito requisitados.
— Claro, mas vou estar livre lá pro fim de semana — Alvin
disse. — E olha só, se você está levando a sério esse negócio
de televisão, do jeito que Nate disse que você deveria levar,
seria bom ter imagens decentes dessas luzes misteriosas.
— Isso se acreditarmos que há alguma luz para filmar.
— Você vai começando o trabalho e me mantém informado.
Eu vou deixar minha agenda em aberto.
— Mesmo que haja alguma luz, não é uma grande história —
Jeremy avisou. — Ninguém da televisão vai se interessar por
ela.
— Até o mês passado, talvez — disse Alvin. — Mas depois
de terem visto você esta noite, eles vão se interessar. Você
sabe como são as coisas na televisão — todos aqueles
produtores correndo atrás do próprio rabo, tentando
descobrir qual vai ser o próximo grande acontecimento. Se o
Good Morning America ficar de repente muito em
evidência, então você sabe que o Today não vai demorar a
telefonar e o Dateline vai bater na sua porta. Nenhum
produtor quer ficar de fora. É assim que eles perdem o em-
prego. A última coisa que eles querem é ter de explicar para
os executivos porque é que perderam o barco. Acredite —
eu trabalho na televisão. Conheço essa gente.
— Ele tem razão — Nate falou, interrompendo a conversa.
— Você nunca sabe o que vai acontecer, e talvez seja uma
boa idéia planejar alguma coisa. Você definitivamente
marcou presença esta noite. Não se faça de bobo. E se você
puder conseguir alguma imagem dessas luzes, talvez seja
exatamente o que o GMA ou o Primetime estão esperando
para tomar uma decisão.
Jeremy lançou um olhar enviesado para seu agente. — Você
está falando sério? Essa história não é nada. Eu só aceitei
fazer porque precisava de uma folga depois do Clausen. Essa
história, sim, tomou quatro meses da minha vida.
— E veja o que você conseguiu com ela — disse Nate,
colocando a mão no ombro de Jeremy. — Talvez essa não
seja uma grande matéria, mas com imagens sensacionais e
um bom pano de fundo, quem sabe o que a televisão vai
achar?
Jeremy ficou em silêncio por um instante, antes de sacudir
os ombros e dizer finalmente: — Está certo. — Ele olhou
para Alvin. — Eu saio na terça. Veja se consegue estar lá na
sexta. Eu telefono antes disso para passar os detalhes.
Alvin pegou sua cerveja e tomou um gole. — Por Deus! —
ele disse, imitando um comediante bonachão. — Eu vou pra
terra do torresmo e da polenta. E prometo que não vou
cobrar caro.
Jeremy riu. — Você já esteve no Sul alguma vez?
— Não. E você?
— Eu já estive em Nova Orleans e em Atlanta — Jeremy
admitiu. — Mas são cidades grandes, e cidades assim são
praticamente iguais em qualquer parte. Para fazer esta
matéria, vamos ter de ir para o Sul de verdade. Para uma
cidadezinha da Carolina do Norte, um lugar chamado Boone
Creek. Você devia ver o website da cidade. Fala das azaléias
e cornisos que florescem em abril, e exibe com orgulho uma
foto do cidadão mais importante da cidade. Um cara
chamado Norwood Jefferson.
— Quem?
— Um político. Ele fez parte do Senado Estadual da Carolina
do Norte, de 1907 a 1916.
— Quem liga?
— Exatamente — Jeremy disse, com um aceno da cabeça.
Olhando para o outro lado do bar, ele percebeu,
desapontado, que a ruiva tinha sumido.
— Onde fica esse lugar exatamente?
— Entre o "meio do nada" e "onde é que nós estamos?". Eu
vou ficar num lugar chamado Greenleaf Cottages, que a
Câmara do Comércio descreve como um lugar pitoresco e
rústico, embora moderno. Sabe lá o que isso quer dizer.
Alvin riu. — Isso está com cara de aventura.
— Não se preocupe com isso. Tenho certeza de que você vai
se adaptar muito bem por lá.
— Você acha?
— Com certeza — Jeremy disse. — Eles provavelmente vão
querer adotar você.


Capítulo
DOIS

Na terça-feira, um dia depois de sua entrevista para a revista
People, Jeremy chegou na Carolina do Norte. Passava um
pouco do meio-dia; quando saiu, Nova Iorque estava cinza,
coberta de neve e chuva, e a meteorologia anunciava mais
neve ainda. Ali, com um imenso céu azul se estendendo
sobre sua cabeça, o inverno parecia muito distante.
De acordo com o mapa que ele havia adquirido na lojinha de
presentes do aeroporto, Boone Creek ficava no Condado de
Pamlico, quase duzentos quilômetros a sudeste de Raleigh e
— se a estrada pudesse ser considerada indicativo de alguma
coisa — a zilhões de quilômetros do que ele considerava
civilização. Em ambos os lados, a paisagem era plana e
esparsa, e tão excitante quanto uma chapa de fazer
panquecas. As fazendas eram separadas por estreitas fileiras
de pinheiros, e levando em consideração o tráfego esparso,
não havia muita coisa para impedir que Jeremy pisasse no
acelerador por puro tédio.
Mas não era tão ruim, ele tinha de admitir. Bem, pelo menos
a parte que dizia respeito a ter de dirigir. Estava provado que
a leve vibração do volante, o barulho do motor e a sensação
causada pela aceleração aumentavam a produção de
adrenalina, principalmente nos homens (ele já publicara
uma matéria a respeito disso). Mas a vida na cidade tornava
supérflua a posse de um carro, e ele jamais teria como
justificar tal despesa. Em vez disso, ia de um lugar a outro
em trens de metrô superlotados, ou correndo o risco de
fraturar o pescoço dentro de um táxi. A locomoção na
cidade era barulhenta, febril e, dependendo do motorista do
táxi, bastante arriscada. Porém, tendo nascido e crescido em
Nova Iorque, há muito tempo ele havia aceitado o fato de
que esse era apenas mais um aspecto excitante da vida no
lugar que ele chamava de lar.
Seus pensamentos se voltaram para sua ex-mulher. Maria,
ele pensou, teria adorado um passeio desses. Nos primeiros
anos de seu casamento, eles de vez em quando alugavam um
carro e iam até as montanhas ou até a praia, passando às
vezes muitas horas na estrada. Ela trabalhava na publicidade
da revista Elle quando se conheceram numa festa da revista.
Ao perguntar se ela gostaria de ir com ele até um café das
redondezas, ele não fazia a menor idéia de que ela acabaria
sendo a única mulher que ele amaria na vida. A princípio,
ele pensou que tinha cometido um erro convidando-a para
sair, simplesmente porque eles pareciam não ter nada em
comum. Ela era irascível e emotiva, mas depois, quando a
beijou na porta de seu apartamento, ficou encantado.
Ele acabou gostando de sua forte personalidade, de suas
intuições infalíveis a respeito das pessoas, e do modo como
ela parecia aceitá-lo inteiramente sem julgamento, bom ou
mau. Um ano depois, eles se casaram na igreja, cercados por
amigos e pela família. Ele estava com vinte e seis anos, ainda
não era um colunista da Scientific American, mas estava
decididamente construindo sua reputação, e eles mal podiam
pagar o pequeno apartamento que tinham alugado no
Brooklyn. Na cabeça dele, era o êxtase conjugal de batalha e
juventude. Na cabeça dela, ele acabaria por suspeitar depois,
o casamento deles era forte na teoria, mas sua base de
sustentação não era muito firme. No começo, o problema
era simples: por causa do trabalho, ela tinha de ficar na
cidade, enquanto Jeremy viajava em busca da grande
história, onde quer que ela estivesse. Freqüentemente, ele
ficava fora durante semanas seguidas, e apesar de garantir a
ele que conseguia lidar com a situação, ela deve ter
percebido, durante suas ausências, que não conseguia. Logo
depois de seu segundo aniversário de casamento, quando ele
se preparava para outra viagem, Maria sentou na cama ao
lado dele. Com as mãos entrelaçadas, ela ergueu os olhos
castanhos para olhar nos olhos dele.
— Isso não está dando certo — ela disse apenas, deixando as
palavras soltas no ar por um instante. — Você não pára mais
em casa e isso não é justo comigo. Não é justo conosco.
— Você quer que eu desista? — ele perguntou, sentindo uma
pequena onda de pânico crescer dentro dele.
— Não, desistir não. Mas talvez você pudesse encontrar
alguma coisa na cidade. No Times, por exemplo. Ou no Post.
Ou no Daily News.
— Isso não será assim para sempre — ele argumentou. — E
só por algum tempo.
— Foi o que você disse seis meses atrás — ela falou. — Não
vai mudar nunca.
Fazendo esse retrospecto, Jeremy percebeu que devia ter
prestado atenção naquele aviso. Mas, na época, ele tinha
uma matéria para escrever, sobre Los Álamos. Ela
apresentava um sorriso vago no rosto quando ele lhe deu um
beijo de adeus, e ele pensou brevemente na expressão dela
ao ocupar seu lugar no avião, mas quando voltou para casa
ela parecia ter voltado ao normal e eles passaram o fim de
semana enfiados na cama. Maria começou a falar em ter um
bebê, e apesar do nervosismo que sentiu, ficou emocionado
com a idéia. Ele deduziu que tinha sido perdoado, mas o es-
cudo protetor de seu amor havia sido arranhado, e ranhuras
imperceptíveis iam aparecendo cada vez que ele se
ausentava. A rachadura final ocorreu um ano mais tarde, um
mês depois de uma visita a um médico no Upper East Side,
que lhes apresentou um futuro que nenhum dos dois jamais
tinha imaginado. Muito mais que suas viagens, a visita
prenunciou o fim do seu relacionamento, e Jeremy
percebeu isso.
— Eu não posso ficar — ela disse a ele depois. — Eu quero,
e uma parte de mim vai te amar para sempre, mas eu não
posso.
Ela não precisou dizer mais nada, e nos momentos
silenciosos, de auto-comiseração, depois do divórcio, ele às
vezes se perguntava se ela realmente o amara. Podia ter dado
certo, ele disse a si mesmo. Mas, no final, ele entendeu
intuitivamente porque ela havia ido embora — e não guar-
dava nenhum rancor. Ele até conversava com ela pelo
telefone de vez em quando, apesar de não ter conseguido ir
ao casamento dela com um advogado de Chappaqua três
anos depois.
O processo do divórcio fora encerrado sete anos atrás e, para
ser franco, isso foi a única coisa realmente triste que lhe
aconteceu em toda a sua vida. Poucas pessoas poderiam
dizer uma coisa dessas, ele sabia. Nunca tinha se ferido
gravemente, tinha uma vida social ativa, e tinha deixado a
infância sem aquele tipo de trauma psicológico que parecia
afligir tantas pessoas da sua idade. Seus irmãos com suas
respectivas esposas, seus pais e até seus avós — todos os
quatro na faixa dos noventa anos — eram saudáveis. Eles
também eram chegados uns aos outros: em alguns fins de se-
mana todo o clã se reunia na casa de seus pais, que ainda
moravam na mesma casa em que Jeremy havia crescido, no
Queens. Ele tinha dezessete sobrinhos e sobrinhas, e apesar
de, às vezes, se sentir um peixe fora d'água nessas reuniões
familiares, já que ele estava solteiro de novo numa família de
pessoas muito bem casadas, seus irmãos o respeitavam
bastante e não questionavam os motivos que provocaram o
divórcio.
E ele já havia superado. A maior parte, pelo menos. Às
vezes, em passeios como esse ele sentia uma dor lancinante,
imaginando o que poderia ter acontecido, mas agora esses
momentos eram raros, e o divórcio não azedara suas
relações com as mulheres em geral.
Alguns anos atrás, Jeremy havia acompanhado um estudo
que pretendia verificar se a percepção da beleza era produto
de regras culturais ou da genética. Para a realização desse
estudo, mulheres atraentes e mulheres menos atraentes
foram convidadas a segurar crianças, e a distância do contato
dos olhos entre as mulheres e as crianças foi comparada. O
estudo havia mostrado a existência de uma correlação direta
entre beleza e contato do olhar: as crianças olhavam mais
demoradamente para as mulheres atraentes, sugerindo que a
percepção que as pessoas têm da beleza é instintiva. O
estudo ganhou destaque na Newsweek e no Time.
Ele teve vontade de escrever uma matéria criticando o
estudo, em parte porque omitia o que ele achava que eram
requisitos importantes. A beleza exterior poderia atrair
rapidamente o olhar de alguém — ele sabia que era tão
suscetível a uma supermodelo quanto o cara do lado —, mas
ele sempre acreditara que a inteligência e a paixão eram
muito mais atraentes e determinantes com o passar do
tempo. Essas características demoravam um pouco mais para
ser decifradas, e beleza não tinha nada a ver com isso. A
beleza poderia prevalecer a curto prazo, mas a médio e
longo prazo, as normas culturais — basicamente aqueles
valores e normas influenciadas pela família — eram mais
importantes. O seu editor, entretanto, engavetou a idéia por
considerá-la "muito subjetiva" e sugeriu que ele escrevesse
alguma coisa a respeito do uso excessivo de antibióticos na
alimentação das galinhas, fato com potencial para
transformar o streptococus na próxima peste bubônica. Isso
fazia sentido, Jeremy observou contrariado: o editor era
vegetariano, e sua esposa era tão linda e quase tão radiante
quanto o céu do Alaska no inverno.
Editores. Havia muito tempo que Jeremy chegara à
conclusão de que a maioria deles era hipócrita. Mas, como
em quase todas as profissões, imaginava ele, os hipócritas
costumam ser tão apaixonados quanto sábios politicamente
— em outras palavras, sobreviventes corporativos —, o que
significava que eram eles os que não apenas distribuíam as
tarefas, como também os que acabavam pagando as contas.
Mas, como havia sugerido Nate, talvez ele caísse fora logo.
Bom, não totalmente fora. Alvin provavelmente estava certo
quando dizia que os produtores de televisão não eram
diferentes dos editores, mas a televisão pagava o bastante
para tocar a vida, o que significava que ele teria condições de
escolher seus projetos, em vez de estar agitando o tempo
todo. Maria estava certa quando reclamara de sua carga de
trabalho tanto tempo atrás. Em quinze anos, essa carga de
trabalho não tinha mudado absolutamente nada. Está certo
que as histórias podiam agora ter outro perfil, ou talvez ele
tivesse mais tempo para fazer seus trabalhos como
freelancer, por causa das relações que construíra ao longo
dos anos, mas nada disso tinha alterado o desafio essencial
de ter sempre de aparecer com alguma coisa nova e original.
Ele ainda tinha de produzir dezenas de matérias para a
Scientific American, pelo menos uma ou duas grandes
matérias investigativas, e mais uns quinze artigos pequenos
por ano, alguns ligados aos assuntos da estação. Está
chegando o Natal? Escreva uma matéria sobre o verdadeiro
São Nicolau, que nasceu na Turquia, tornou-se bispo de
Myra, e ficou conhecido por sua generosidade, amor pelas
crianças e preocupação com os marinheiros. É verão? Que
tal uma matéria sobre (a) o aquecimento global e o inegável
aumento de 0.8 graus na temperatura no decorrer do último
século, que antevê conseqüências como um cenário tipo
Saara por todo os Estados Unidos, ou (b) como o
aquecimento global pode provocar a próxima era do gelo e
transformar os Estados Unidos em uma tundra gelada. O Dia
de Ação de Graças, por outro lado, era bom para contar a
verdade a respeito da vida dos Pilgrims, que não era feita
apenas de jantares amigáveis com os americanos nativos,
mas também incluía a caça às bruxas de Salém, epidemias de
varíola e uma grave tendência ao incesto.
Entrevistas com cientistas famosos e artigos sobre inúmeros
satélites ou projetos da NASA eram sempre respeitados e
fáceis de publicar, não importava a época do ano, assim
como revelações a respeito de drogas (legais e ilegais), sexo,
prostituição, jogo, bebida, casos envolvendo ações coletivas
nos tribunais e qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa,
a respeito do sobrenatural, a maioria com pouca ou
nenhuma ligação com a ciência, e mais com embusteiros
como Clausen.
Ele tinha de admitir que o processo não fora nada do que ele
havia imaginado que seria a carreira no jornalismo. Em
Columbia — ele fora o único dos irmãos a entrar para a
faculdade e tornara-se o primeiro na história da família a
tirar um diploma universitário, fato que sua mãe jamais
deixara de contar às pessoas de fora —, ele se formara em
física e em química, com a intenção de se tornar professor.
Mas uma namorada que trabalhava no jornal da universidade
convenceu-o a escrever uma matéria — construída com o
uso abundante de dados estatísticos — sobre os resultados
tendenciosos dos exames de SAT usados para a admissão no
ensino superior. Seu artigo acabou sendo o estopim de uma
série de manifestações estudantis, e Jeremy percebeu que
tinha jeito para escrever. Ainda assim, sua opção profissional
não mudaria até seu pai ser lesado em quarenta mil dólares
por um consultor financeiro desonesto, pouco antes de
Jeremy se formar. Com a casa da família em perigo — seu
pai era motorista de ônibus e trabalhara para a Port
Authority de Nova Iorque até se aposentar —, Jeremy
deixou de lado a cerimônia de formatura para ir atrás do
vigarista. Como um possesso, ele pesquisou registros
públicos e judiciais, entrevistou colegas do vigarista e
produziu um dossiê minucioso.
Como se fosse obra do destino, a promotoria pública de
Nova Iorque estava atrás de peixes mais graúdos do que um
artista da fraude sem importância, de forma que Jeremy
voltou a checar todas as informações com suas fontes,
condensou o dossiê e redigiu a primeira peça de jornalismo
investigativo de sua vida. No final, a casa foi salva e a revista
New York publicou a matéria. O editor da revista o
convenceu de que a vida acadêmica não o levaria a nada e,
com uma sutil mistura de adulação e discurso sobre a busca
do grande sonho, sugeriu que Jeremy escrevesse uma
matéria sobre o Leffertex, um antidepressivo que, na época,
já estava na fase número III dos testes clínicos e era tema de
intensa especulação por parte da mídia.
Jeremy aceitou a sugestão, trabalhando durante dois meses
na história por sua própria conta. Ao final, seu artigo levou o
fabricante a retirar o remédio do exame da FDA. Depois
disso, em vez de seguir para o MIT e fazer seu mestrado, ele
viajou para a Escócia, a fim de acompanhar um grupo de
cientistas que iriam investigar o monstro do lago Ness, a
primeira de suas matérias de entretenimento. Aí, ele
presenciou a confissão no leito de morte de um
proeminente cirurgião que admitiu ter forjado, junto com
um amigo, a fotografia que ele havia tirado do monstro em
1933 — foto que havia tornado pública a lenda —, em um
domingo à tarde, com a idéia de passar um trote. O resto,
como dizem, faz parte da história.
Não obstante, quinze anos correndo atrás de histórias eram
quinze anos correndo atrás de histórias, e o que ele havia
recebido em troca? Estava com trinta e sete anos, solteiro e
vivendo em um sombrio apartamento de um quarto no
Upper West Side, a caminho de Boone Creek, Carolina do
Norte, para explicar um caso de luzes misteriosas em um ce-
mitério.
Ele sacudiu a cabeça, sentindo a mesma perplexidade de
sempre com os rumos que sua vida havia tomado. O grande
sonho. Estava por aí em algum lugar, e ele ainda sentia na
alma a paixão para buscá-lo. Só que agora ele começava a
refletir se a televisão não seria o instrumento para alcançá-
lo.

A história das luzes misteriosas havia começado com uma
carta que Jeremy recebera um mês antes. Assim que
terminou de ler, sua primeira idéia foi a de que daria uma
boa história para o Halloween. Dependendo da abordagem
da história, talvez despertasse o interesse da Southern Living
ou mesmo do Reader's Digest para a edição de outubro; se
acabasse ficando mais literária e narrativa, talvez interessasse
a Harper's ou mesmo a New Yorker. Por outro lado, se a
cidade estivesse tentando faturar um pouco como Roswell,
no Novo México, com os OVNIS, a história talvez fosse
mais adequada para um dos grandes jornais do Sul, que
poderia talvez revendê-la depois. Se ficasse pequena, ele
poderia usá-la em sua coluna. Seu editor na Scientific
American, apesar da seriedade com que encarava o
conteúdo da revista, também estava extremamente
interessado em aumentar o número de assinantes, e estava
sempre falando a respeito disso. Ele sabia muito bem que o
público adorava uma boa história de fantasmas. Podia
mostrar alguma hesitação enquanto lançava um olhar para a
foto de sua esposa, fingindo que avaliava a qualidade, mas
nunca deixaria passar uma história dessas. Os editores
gostavam de entretenimento tanto quanto uma pessoa
comum, pois os assinantes eram a força vital do negócio. E o
entretenimento, infelizmente, estava se tornando a matéria-
prima da mídia.
No passado, Jeremy havia investigado sete aparições
fantasmagóricas; quatro delas tinham ido parar em sua
coluna do mês de outubro. Algumas eram decididamente
banais — visões de espectros que ninguém poderia
documentar cientificamente —, mas três delas envolviam
fantasmas, teoricamente espíritos malignos que conseguiam
efetivamente movimentar objetos e causar estragos.
Segundo pesquisadores paranormais — um oximoro, no
entendimento de Jeremy —, os fantasmas em geral eram
atraídos para uma determinada pessoa em vez de um lugar.
Em cada um dos casos investigados por Jeremy, inclusive
aqueles muito bem documentados pela mídia, a fraude havia
sido a causa dos acontecimentos misteriosos.
As luzes de Boone Creek, entretanto, pareciam ser algo
diferente; aparentemente, eram tão previsíveis que haviam
levado a cidade a patrocinar um "Passeio pelo Cemitério
Assombrado e pelas Casas Históricas", durante o qual,
segundo o folheto, as pessoas poderiam ver não apenas casas
construídas nos anos de 1700, mas também, se as condições
meteorológicas permitissem, "os aflitos ancestrais da nossa
cidade em sua marcha noturna no mundo dos mortos".
O folheto, cheio de fotos da ordeira cidade e declarações
melodramáticas, lhe havia sido enviado junto com a carta.
Enquanto dirigia, Jeremy recordava as palavras da carta.

Prezado Sr. March:
Eu me chamo Dóris McCllelan, e dois anos atrás eu li a
história que o senhor escreveu para a Scientific American
sobre o fantasma que estava assombrando Brenton Manor
em Newport, Rhode lsland. Na época eu pensei em lhe
escrever, mas não sei por que, não escrevi. Acho que
simplesmente esqueci, mas com as coisas que estão
acontecendo agora em minha cidade, reconheço que já está
mais do que na hora de lhe falar a respeito.
Eu não sei se já ouviu falar do cemitério de Boone Creek,
Carolina do Norte, mas diz a lenda que o cemitério é
assombrado por espíritos de antigos escravos. No inverno —
de janeiro até o início de fevereiro — tem-se a impressão de
que há luzes azuis dançando sobre as lápides das sepulturas
quando cai a neblina. Alguns dizem que elas parecem luzes
estroboscópicas, outros juram que têm o tamanho de bolas
de basquete. Eu também as vi; para mim, parecem aquelas
bolas que ficam girando e refletindo as luzes nas danceterias.
De qualquer modo, no ano passado, algumas pessoas da
Universidade Duke estiveram aqui investigando; acho que
eram meteorologistas ou geólogos ou algo assim. Eles
também viram as luzes, mas não conseguiram dar uma
explicação, e o jornal local publicou uma grande matéria
sobre esse mistério todo. Se viesse até aqui, o senhor talvez
conseguisse explicar o que são realmente essas luzes.
Se precisar de mais informações, ligue pra mim no Herbs,
um restaurante aqui da cidade.

O resto da carta oferecia mais informações sobre possíveis
contatos; depois ele examinou o folheto da Sociedade
Histórica local. Leu as legendas que descreviam as várias
casas visitadas durante o passeio, passou os olhos pelas
informações relativas à parada e ao baile do celeiro na sexta-
feira à noite, e viu-se erguendo uma sobrancelha diante do
anúncio de que, pela primeira vez, uma visita ao cemitério
seria incluída no passeio de sábado à noite. No verso do
folheto — cercados pelo que pareciam ser alguns desenhos
feitos à mão pelo próprio Gasparzinho — havia testemunhos
de pessoas que haviam visto as luzes e um trecho que
parecia ter sido retirado de um artigo do jornal local. No
centro, havia uma foto granulada de uma luz brilhante em
um lugar que poderia, ou não, ter sido o cemitério (a legenda
dizia que era).
O seu interesse havia sido despertado, apesar de aquilo não
ser exatamente a Borley Rectory, uma construção "mal-
assombrada" da era Vitoriana, que fica ao norte do rio Stour,
no condado de Essex, na Inglaterra, a casa mal-assombrada
mais famosa da história, onde o "roteiro turístico" incluía
cavaleiros sem cabeça, músicas de órgãos e tilintar de sinos
sobrenaturais.
Depois de tentar encontrar sem sucesso o artigo
mencionado na carta — não havia arquivos no website do
jornal local —, ele fez contato com vários departamentos da
Universidade Duke e acabou encontrando o projeto de
pesquisa original. Ele havia sido escrito por três estudantes
da graduação e, apesar de ter seus nomes e telefones, ele
duvidava que houvesse alguma razão para telefonar. O
relatório da pesquisa não tinha nenhum dos detalhes que ele
esperava encontrar. Ao contrário, o estudo tinha apenas
documentado a existência das luzes e o fato de o equipa-
mento dos estudantes estar funcionando adequadamente, o
que não significava absolutamente nada diante das
informações de que ele precisava. Além disso, se existia uma
coisa que ele tinha aprendido nos últimos quinze anos, era
que não devia confiar no trabalho de ninguém além do seu.
Na verdade, esse era o grande segredo desse ramo de
trabalho. Apesar de todos os jornalistas alegar que faziam sua
própria pesquisa, e a maioria realmente fazia uma parte, eles
ainda confiavam muito nas opiniões e meias-verdades que já
tinham sido publicadas. Assim, muitas vezes cometiam
erros, normalmente pequenos, às vezes colossais. Todos os
artigos de todas as revistas tinham erros, e, dois anos atrás,
Jeremy tinha escrito uma matéria a esse respeito, expondo
os hábitos menos louváveis de seus colegas de profissão. Seu
editor, contudo, vetou a publicação. E nenhuma outra
revista mostrou qualquer entusiasmo pela história.
Ele via os carvalhos passarem pela janela, pensando que
talvez precisasse de uma mudança em sua carreira, e de
repente sentiu vontade de investigar a história dos fantasmas
a fundo. E se não existissem as tais luzes? E se a pessoa que
escreveu a carta fosse uma impostora? E se não houvesse
sequer uma lenda que justificasse a redação de um artigo?
Ele sacudiu a cabeça. Sua preocupação era inútil e, além
disso, agora era tarde demais. Ele já estava ali, e Nate estava
ocupado, administrando os telefonemas em Nova Iorque.
No porta-malas, Jeremy tinha todos os itens necessários para
a caça aos fantasmas (de acordo com o que tinha sido
publicado no livro Ghost busters for real!, que ele tinha
comprado de brincadeira depois de uma noite de bebedeira).
Ele tinha uma câmera Polaroid, uma câmera de 35mm,
quatro filmadoras e tripés, gravadores de áudio e microfones,
detector de radiação de microondas, detectores
eletromagnéticos, bússola, óculos para visão noturna, laptop
e uma porção de bugigangas.
Tinha de fazer a coisa direito, afinal de contas. A caça a
fantasmas não era coisa para amadores.
Como era de se esperar, seu editor havia reclamado dos
custos das engenhocas mais modernas que ele tinha
comprado, e que pareciam absolutamente necessárias em
investigações desse tipo. A tecnologia avançava com
rapidez, e as engenhocas de ontem eram o equivalente a
ferramentas da idade da pedra, Jeremy havia explicado ao
editor, fantasiando sobre a compra de uma mochila com o
raio laser que Bill Murray e Harold Ramis tinham usado em
Caça-fantasmas. Ele adoraria ter visto a expressão de seu
editor ao ouvir isso pelo telefone. Como era de se esperar, o
cara havia ficado alterado como um coelho cheio de
anfetaminas antes de finalmente autorizar a compra desses
itens. Ele certamente ficaria muito bravo se a história
acabasse na televisão e não na coluna.
Sorrindo ao lembrar da expressão de seu editor, Jeremy
passeou por várias estações de rádio — rock, hip-hop,
country, gospel — antes de parar em um programa local que
estava entrevistando dois pescadores de linguado que
defendiam apaixonadamente a necessidade de reduzir o peso
permitido para a pesca. O apresentador, que parecia
excessivamente interessado no assunto, falava com sotaque
carregado. Os comerciais anunciaram a exibição de armas e
moedas na Loja Maçónica de Grifton e as últimas mudanças
nas equipes da NASCAR.
O tráfego ficou mais complicado perto de Greenville, e ele
fez um desvio em torno da cidade, perto do campus da
Universidade da Carolina do Leste. Ele atravessou o largo
curso de águas salobras do rio Pamlico e pegou uma estrada
rural. O asfalto parecia mais estreito à medida que
serpenteava pelo campo, espremido em ambos os lados por
terras não cultivadas por causa do inverno, densos bosques
de árvores e, eventualmente, uma sede de fazenda. Cerca de
trinta minutos depois, ele viu que estava chegando em
Boone Creek.
Depois do primeiro e único semáforo, o limite de velocidade
caía para quarenta quilômetros por hora, e ele reduziu a
velocidade, observando o cenário desanimador. Além da
meia dúzia de casas pré-fabricadas, amontoadas
indiscriminadamente na beira da estrada, e algumas ruas
cruzando o asfalto, a paisagem era dominada por dois postos
de gasolina e uma borracharia caindo aos pedaços. O
luminoso que anunciava a borracharia de Leroy fora
colocado no alto de uma pilha de pneus usados que, em
qualquer outro lugar do mundo, seria visto como um
estopim em potencial para um incêndio. Jeremy chegou no
outro lado da cidade em um minuto, e a partir desse ponto o
limite de velocidade subia de novo. Ele estacionou o carro
no acostamento.
Ou a Câmara do Comércio tinha usado fotografias de outra
cidade em seu website ou ele tinha feito alguma coisa errada.
Verificou o mapa novamente, e de acordo com aquela
versão do guia Rand McNally, estava em Boone Creek. Ele
deu uma olhada pelo espelho retrovisor, perguntando-se
onde diabos ficava aquilo. As ruas tranqüilas e arborizadas.
As azaléias em flor. As lindas mulheres usando vestidos.
Enquanto tentava entender, ele viu a torre de uma igrejinha
branca despontando acima da linha das árvores e decidiu ir
até lá pegando uma das ruas que tinha cruzado. Depois de
uma curva em S, a paisagem mudou abruptamente, e então
ele começou a atravessar uma cidade que talvez tivesse sido
graciosa e pitoresca, mas agora parecia estar morrendo de
velhice. Varandas fechadas, decoradas com plantas que
caíam dos vasos pendurados, e bandeiras americanas não
conseguiam esconder a pintura descascada e o bolor sob os
beirais dos telhados. Os quintais eram protegidos por árvores
maciças de magnólias, mas os arbustos de rododendros,
cuidadosamente podados, escondiam apenas parcialmente as
fundações em ruínas. Ainda assim, tudo parecia bem
amigável. Alguns casais mais idosos, protegidos por suéteres,
descansavam nas cadeiras de balanço de suas varandas, e
acenavam quando ele passava.
Foram necessários muitos acenos para que ele percebesse
que eles estavam acenando não porque pensassem que o
tinham reconhecido, mas porque as pessoas aqui acenavam
para todo mundo que passava de carro. Serpenteando de
uma estrada para outra, ele acabou chegando na zona ri-
beirinha, o que o lembrou de que a cidade havia se
desenvolvido na confluência do córrego Boone e do rio
Pamlico. Atravessando a área central, que sem dúvida
alguma já havia sido uma região comercial movimentada, ele
percebeu como a cidade parecia estar definhando. Perdidas
entre espaços desocupados e janelas cobertas com tábuas,
havia duas casas antigas, uma lanchonete antiquada, um bar
chamado Lukilu e uma barbearia. A maioria dos
estabelecimentos tinha nomes típicos do lugar e parecia que
funcionavam há décadas, mas estavam travando uma batalha
inglória contra a extinção. Os únicos sinais de vida moderna
eram as camisetas com cores berrantes, enfeitadas com
slogans do tipo Eu sobrevivi aos fantasmas de Boone Creek!,
penduradas na janela do que deveria ser a versão rural e
sulista de uma loja de departamentos.
O Herbs, onde trabalhava Dóris McClellan, foi bem fácil de
achar. Ele ficava perto do final do quarteirão, em uma casa
vitoriana da virada do século que fora restaurada, cor de
pêssego. Havia carros estacionados na frente e no pequeno
estacionamento com piso de cascalho que ficava do lado. Era
possível ver as mesas através das cortinas das janelas e
também na varanda fechada. Ao constatar que todas as
mesas estavam ocupadas, Jeremy decidiu que talvez fosse
melhor voltar para falar com Dóris depois que a multidão
tivesse se dispersado.
Ele localizou a Câmara do Comércio, um pequeno edifício
de tijolos, indefinível e localizado na beira da cidade, e
voltou para a estrada. Impulsivamente, entrou em um posto
de gasolina.
Depois de tirar os óculos de sol, Jeremy abaixou o vidro. O
proprietário tinha cabelos grisalhos e usava um macacão
encardido e um boné de Dale Earnhardt. Ele se levantou
lentamente e começou a andar na direção do carro,
mastigando o que Jeremy supôs ser uma espécie de fumo.
— Posso ajuda? — o sotaque era inconfundivelmente sulista
e seus dentes eram amarelados. Seu nome era Tully.
Jeremy pediu uma orientação para chegar até o cemitério,
mas em vez de responder, o proprietário ficou olhando para
Jeremy longamente.
— Quem morreu? — ele perguntou finalmente.
Jeremy piscou. — Desculpe?
— Tá indo prum enterro, né? — perguntou o proprietário.
— Não. Eu só queria ver o cemitério.
O homem acenou com a cabeça. — Bom, parece que o
senhor tá indo prum enterro.
Jeremy olhou para suas roupas: blazer preto sobre uma blusa
preta de gola alta, calça jeans preta, sapatos pretos Bruno
Magli. O homem realmente tinha razão.
— Acho que eu simplesmente gosto de me vestir de preto.
Quanto à direção...
O proprietário ergueu a aba do boné e falou lentamente. —
Eu num gosto de enterro. Me faz pensa que eu devia ir mais
na igreja pra acerta as coisas antes que seja tarde demais. Já
aconteceu isso pro senhor?
Jeremy não estava muito certo sobre o que responder. Não
era uma pergunta que ele estivesse habituado a ouvir,
principalmente como resposta a uma pergunta sobre qual
direção seguir. — Eu acho que não — ele arriscou
finalmente.
O proprietário tirou um farrapo do bolso e começou a limpar
a graxa das mãos. — Tô vendo que o senhor não é daqui. O
senhor fala engraçado.
— Nova Iorque — Jeremy revelou.
— Já ouvi falá, mas nunca tive lá — ele disse. Então olhou
para o Taurus: — Esse carro é seu?
— Não, é alugado.
Ele acenou com a cabeça, sem dizer nada.
— Bem, quanto ao cemitério — Jeremy lembrou. — Pode
me dizer como chegar lá?
— Acho que sim. Qual que o senhor tá procurando?
— O nome é Cedar Creek?
O homem olhou-o com curiosidade. — Purque que o
senhor quer ir até lá? Num tem nada lá pra ninguém vê.
Tem uma porção de cemitério mais bonito no outro lado da
cidade.
— Para ser franco, estou interessado apenas neste.
O homem não parecia ter escutado. — O senhor tem algum
parente enterrado lá?
— Não.
— O senhor é um daqueles manda-chuva cheio de dinheiro
lá do Norte? Deve tá pensando em fazê uns apartamentos ou
um daqueles shopping que vocês têm por lá?
Jeremy negou com a cabeça. — Não. Na verdade, eu sou
jornalista.
— Minha mulher gosta de shopping. De apartamento
também. Pode ser uma boa idéia.
— Ah! — disse Jeremy, imaginando quanto tempo ainda
aquilo iria demorar. — Eu gostaria de ajudar, mas essa não é
minha área de trabalho.
— Precisa de gasolina? — o homem perguntou, caminhando
para a traseira do carro.
— Não, obrigado.
Ele já estava tirando a tampa do tanque. — Premium ou
comum? Jeremy endireitou-se no banco, concluindo que o
homem tinha todo o direito de trabalhar de vez em quando.
— Comum, eu acho.
Depois de ligar a bomba, o homem tirou o boné e passou a
mão pelo cabelo, enquanto caminhava de volta para o lado
da janela do carro.
— Se tiver qualquer problema com o carro, não tenha dúvida
em me procurar. Eu sei conserta os dois tipos de carro, e por
um preço justo, também.
— Os dois?
— Os de fora e os daqui — ele disse. — Que que o senhor
achou que eu tava falando? — Sem esperar por uma
resposta, o homem sacudiu a cabeça, como se Jeremy fosse
idiota. — A propósito, o nome é Tully. E o seu é?
— Jeremy Marsh.
— E o senhor é urologista?
— Jornalista.
— Não tem nenhum urologista na cidade. Mas tem alguns
em Greenville.
— Certo — disse Jeremy, sem se preocupar em corrigi-lo. —
Mas, afinal de contas, sobre o caminho para Cedar Creek...
Tully coçou o nariz e ergueu os olhos na direção da estrada,
antes de olhar novamente para Jeremy. — Bom, o senhor
não vai ver nada agora. Os fantasmas só aparecem de noite,
se é pra isso que veio.
— Perdão?
— Os fantasmas. Se o senhor não tem parente enterrado no
cemitério, então o senhor veio por causa dos fantasmas,
certo?
— O senhor ouviu falar dos fantasmas?
— É claro que ouvi. Eu vi eles com meus próprios olhos. Mas
se o senhor quiser ingresso, vai ter de ir até a Câmara do
Comércio.
— Precisa ter ingresso?
— Bom, o senhor não pode simplesmente ir entrando na
casa dos outros, pode?
Demorou um pouco para Jeremy acompanhar a linha de
pensamento.
— Claro, está certo — Jeremy falou. — "O Passeio pelo
Cemitério Assombrado e as Casas Históricas", certo?
Tully encarou Jeremy como se ele fosse a pessoa mais
estúpida sobre a face da terra. — Bom, é claro, nós num
tamo falando do passeio? — ele disse. — Do que é que o
senhor achou que eu tava falando?
— Eu não tenho muita certeza — Jeremy falou. — Mas a
direção...
Tully sacudiu a cabeça.
— Tá bem, tá bem — ele disse, como se tivesse ficado
aborrecido de repente. Ele apontou na direção da cidade.
— O que tem a fazer é voltar para o centro da cidade, aí
seguir pela estrada principal para o norte até chegar no
desvio que fica uns seis quilômetro longe de onde a estrada
acabava antes. Aí tem que virar para oeste e continuar em
frente até onde tem a bifurcação, e aí seguir pela estrada que
passa pela propriedade do Wilson Tanner. Aí é só virar pro
norte de novo onde ficava o ferro-velho, aí tem que ir reto
um pedaço, e o cemitério vai estar bem ali.
Jeremy assentiu com a cabeça. — O.K.
— Tem certeza que entendeu?
— Bifurcação, propriedade de Wilson Tanner, ferro-velho —
ele repetiu mecanicamente. — Obrigado por sua ajuda.
— Não tem de quê. Fico feliz em ajuda. Deu sete dólares e
quarenta e nove centavos.
— O senhor aceita cartão de crédito?
— Não. Nunca gostei dessas coisas. Não gosto do governo
sabendo tudo que eu ando fazendo. Não é da conta de
ninguém.
— Bem — disse Jeremy, procurando pela carteira —, isso é
um problema. Ouvi dizer que o governo tem espiões em
toda a parte.
Tully fez que sabia com a cabeça. — Aposto que isso é pior
pra vocês, médicos. O que me lembra...

Tully continuou a falar sem qualquer intervalo durante
quinze minutos. Jeremy ficou sabendo das excentricidades
do tempo, dos ridículos atos governamentais e como Wyatt
— o proprietário do outro posto de gasolina — seria capaz
de esfolar Jeremy se algum dia ele parasse lá para abastecer,
pois Wyatt adulterava a calibragem das bombas assim que o
caminhão da Unocal ia embora. Mas o que Jeremy mais teve
de ouvir foi o relato de Tully sobre seus problemas com a
próstata, que o obrigavam a levantar-se pelo menos umas
cinco vezes todas as noites para ir ao banheiro. Ele pediu a
opinião de Jeremy a respeito disso, já que ele era urologista.
E também fez perguntas sobre o Viagra.
Depois de ele ter recomeçado a mastigar umas duas vezes,
parou outro carro do lado contrário da bomba,
interrompendo a conversa. O motorista levantou o capo, e
Tully abaixou a cabeça para dar uma olhada, antes de mexer
uns fios e dar uma cuspida no chão. Tully garantiu que
poderia fazer o conserto, mas já que ele estava muito
ocupado, o homem teria de deixar o carro ali por pelo
menos uma semana. Parecia que o estranho já esperava uma
resposta desse tipo, e pouco depois eles estavam falando a
respeito da sra. Dungeness e do gambá que havia invadido
sua cozinha na noite anterior e comido as frutas de sua
fruteira.
Jeremy aproveitou a oportunidade para escapar. Ele parou na
loja de departamentos para comprar um mapa e um jogo de
cartões-postais que mostravam os pontos mais importantes
de Boone Creek, e em pouco tempo já estava na estrada
sinuosa que o levaria para fora da cidade. Como que por
mágica, ele encontrou tanto o desvio quanto a bifurcação,
mas infelizmente deixou passar a propriedade de Wilson
Tanner. Refazendo um pedaço do caminho no sentido
contrário, ele acabou chegando em um estreito caminho
coberto por cascalho, quase escondido sob árvores exage-
radamente grandes de ambos os lados.
Ele então virou e foi sacudindo pelo caminho cheio de
buracos até a floresta começar a ficar menos densa. No lado
direito havia uma placa indicando que ele estava chegando
em Riker's Hill — local onde havia ocorrido um dos
conflitos da Guerra Civil —, e alguns minutos depois ele
parou o carro diante do portão principal do Cemitério Cedar
Creek. Ao fundo, elevava-se a colina de Riker's Hill.
Naturalmente, "elevava-se" era um modo de dizer, pois
parecia que era a única colina naquela parte do estado.
Qualquer coisa pareceria elevada por aquelas bandas, pois o
lugar era tão plano quanto os peixes pescados na região.
Cercado por colunas de tijolos e rodeado por uma cerca de
ferro batido enferrujado, o Cemitério de Cedar Creek ficava
em um pequeno vale, de forma que parecia estar afundando
aos poucos. A superfície estava coberta pelas marcas da
sombra dos carvalhos carregados de bromélias, mas a maciça
árvore de magnólia que ficava no centro dominava tudo. As
raízes se espalhavam desde o tronco e despontavam sobre a
terra como se fossem dedos atacados pela artrite.
Embora o cemitério pudesse ter sido algum dia um lugar de
descanso ordeiro e pacífico, agora estava abandonado. O
caminho cheio de sujeira que vinha do portão principal
estava tomado por sulcos causados pelas águas das chuvas e
coberto de folhas. Os poucos caminhos com grama en-
coberta pareciam fora do lugar. Havia galhos caídos aqui e
ali, e o terreno ondulado fez Jeremy se lembrar das ondas
correndo para a praia. Havia muito mato em torno das
lápides, e quase todas pareciam estar quebradas.
Tully estava certo. Não havia muito o que olhar. Mas, para
um cemitério mal-assombrado, estava perfeito.
Especialmente para um que poderia acabar aparecendo na
televisão. Jeremy sorriu. O lugar parecia ter sido produzido
em Hollywood.
Jeremy saiu do carro e esticou as pernas antes de tirar a
câmera do porta-malas. A brisa estava fresca, mas não
lembrava em nada o ar gelado de Nova Iorque, e ele respirou
profundamente, aproveitando o cheiro de pinho e capim-
do-campo. Acima dele, nuvens brancas passeavam pelo céu
e um falcão solitário rodava em círculos a distância. Riker's
Hill era salpicada de pinheiros, e nos campos que se
estendiam à sua frente ele viu um imenso barracão
abandonado. Coberto por trepadeiras, com metade do
telhado de zinco faltando e uma das paredes desmoronando,
ele estava caindo para o lado, como se o sopro de uma brisa
mais forte pudesse ser suficiente para derrubá-lo. Fora isso,
não havia qualquer outro sinal de civilização.
Jeremy ouviu o ranger da dobradiça quando empurrou o
portão enferrujado e caminhou pela trilha coberta de sujeira.
Olhou de relance para as lápides em ambos os lados,
perplexo pela ausência de palavras, até compreender que as
linhas escritas originalmente deviam ter sido apagadas pelo
tempo e pelo passar dos anos. As poucas que ele conseguiu
identificar datavam do final dos anos de 1700. Mais à frente,
uma cripta tinha o aspecto de que havia sido invadida. A
cobertura e as paredes estavam caindo, e, pouco mais
adiante, outro monumento desabara no caminho. Ele viu
outras criptas danificadas e monumentos destruídos. Jeremy
não encontrou sinais de vandalismo proposital, apenas a
decadência natural, ainda que séria. Também não viu sinais
de que alguém tivesse sido enterrado ali nos últimos trinta
anos, o que explicaria por que o lugar parecia tão
abandonado.
A sombra da magnólia, ele parou, imaginando o aspecto
daquele lugar em uma noite nebulosa. Provavelmente
fantasmagórico, o que poderia dar asas à imaginação de
qualquer pessoa. Mas se havia luzes inexplicáveis, de onde
estariam vindo? Imaginou que os "fantasmas" seriam apenas
luzes refletidas, transformadas em prismas pelas gotas de
água da névoa, mas não havia postes de luz ali e o cemitério
não era iluminado. Ele também não viu qualquer sinal de
moradia em Riker's Hill que, talvez, pudesse ter sido
responsável por isso. Ele imaginou que elas talvez pudessem
vir das luzes de carros que estivessem passando, apesar de
ter visto apenas uma estrada estreita, e as pessoas já teriam
percebido essa ligação há muito tempo.
Ele teria de conseguir um bom mapa topográfico da região,
além do mapa de ruas que havia trazido. Talvez a biblioteca
local tivesse um. De qualquer forma, ele teria de dar uma
parada na biblioteca para pesquisar a história do cemitério e
da própria cidade. Ele precisava saber quando é que as luzes
tinham sido vistas pela primeira vez; talvez isso lhe desse
alguma idéia do que poderia explicá-las. Naturalmente, ele
também teria de passar algumas noites na cidade dos
fantasmas, se o tempo enevoado estivesse disposto a
cooperar.
Caminhou algum tempo pelo cemitério, tirando algumas
fotos. Essas não seriam publicadas; serviriam como pontos
de comparação, caso ele encontrasse fotos mais antigas do
cemitério. Ele queria ver quais tinham sido as mudanças
ocorridas com o passar dos anos, e talvez pudesse lhe ser útil
saber quando — ou por que — os estragos tinham ocorrido.
E também tirou uma foto da árvore de magnólias. Era sem
dúvida a maior que ele já havia visto. Seu tronco negro
estava enrugado, e seus galhos baixos teriam mantido a ele e
seus irmãos ocupados durante horas quando eram meninos.
Quer dizer, se não estivesse cercada pelos mortos.
Enquanto estava revendo as fotos digitais, para ter certeza de
que eram suficientes, com o canto do olho ele viu alguma
coisa se mexer ali perto.
Erguendo os olhos, viu que era uma mulher caminhando em
sua direção. Usando jeans, botas e um suéter azul-claro, que
combinava com a bolsa de lona que ela carregava, tinha
cabelos castanhos que batiam levemente nos ombros. Sua
pele, com um leve toque de oliva, dispensava o uso de
maquilagem, mas foi a cor de seus olhos que atraiu sua
atenção: à distância, pareciam quase violeta. Quem quer que
fosse, tinha estacionado seu carro bem atrás do dele.
Por um momento, ele ficou imaginando se ela estava se
aproximando para pedir-lhe que fosse embora. Talvez o
cemitério estivesse condenado e a entrada fosse proibida.
Mas talvez aquela visita fosse apenas uma coincidência.
Ela continuava a caminhar em sua direção.
O que o levou a pensar que aquela era uma coincidência
bastante atraente. Jeremy endireitou o corpo enquanto
colocava a câmera de volta no estojo. Ele abiu um sorriso
largo quando ela se aproximou.
— Muito bem, olá pra você — ele disse.
Ao ouvir isso, ela diminuiu ligeiramente o passo, como se
não tivesse notado sua presença. A expressão da moça era
quase divertida, e ele achou que ela fosse parar. Em vez
disso, passou por ele, embora ele fosse capaz de jurar que
tinha ouvido uma risada.
Com as sobrancelhas erguidas em sinal de avaliação, Jeremy
ficou olhando para ela. Ela não olhou para trás. Antes de
poder pensar em algo, ele saiu atrás dela.
—; Ei! — ele chamou.
Em vez de parar, ela simplesmente se virou e continuou a
andar de costas, a cabeça erguida com curiosidade. Mais uma
vez Jeremy viu a expressão de divertimento.
— Sabe, você não deveria ficar encarando desse jeito — ela
falou com a voz alta. — As mulheres gostam de homens que
sabem ser sutis.
Ela se virou de novo, ajeitou a bolsa de lona no ombro e
continuou andando. De longe, ele ouviu a risada de novo.
Jeremy ficou de boca aberta, sem saber o que responder
dessa vez.
Tudo bem, ela não estava interessada. Nada demais. Mesmo
assim, a maioria das pessoas teria dado pelo menos um olá
como resposta. Talvez fosse coisa típica do Sul. Talvez os
caras estivessem sempre dando em cima e ela estivesse
cansada. Ou talvez ela simplesmente não quisesse ser inter-
rompida enquanto estivesse... estivesse...
Estivesse o quê?
Está vendo? Esse era o problema do jornalismo, ele suspirou.
Tinha feito dele um sujeito muito curioso. Na verdade, não
era da sua conta. Além disso, ele lembrou a si mesmo, aquilo
era um cemitério. Ela provavelmente estava ali para visitar
alguém que havia morrido. As pessoas faziam isso o tempo
todo, não é?
Ele franziu a testa. A única diferença era que, na maioria dos
cemitérios, tinha-se a impressão de que, de vez em quando,
alguém aparava a grama, enquanto este se parecia com São
Francisco depois do terremoto de 1906. Ele calculou que
poderia ter ido atrás dela para descobrir o que tinha vindo
fazer ali, mas ele já havia conversado com um número
suficiente de mulheres para saber que bisbilhotar poderia
gerar conseqüências muito mais horripilantes do que
encarar.
Jeremy procurou seriamente desviar o olhar enquanto ela
desaparecia atrás de um dos carvalhos, a bolsa de lona
balançando no compasso de cada uma de suas passadas
graciosas.
Somente depois que ela desapareceu é que ele conseguiu se
lembrar de que garotas bonitas não tinham importância
agora. Ele tinha um trabalho para fazer e o que estava em
jogo era o seu futuro. Dinheiro, fama, televisão etc., etc.,
etc. Está certo, e agora? Ele tinha visto o cemitério... talvez
fosse bom dar uma olhada na área ao redor. Meio que sentir
o lugar.
Voltou para seu carro e pulou para dentro, feliz por não ter
feito nada além de dirigir um rápido olhar, a fim de ver se
ela estava olhando para ele. Dois poderiam jogar um jogo.
Mas é claro que isso pressupunha que ela ao menos se
preocupasse com o que ele estava fazendo, e ele tinha cer-
teza de que não era o caso.
Um olhar rápido do banco do motorista mostrou que ele
estava certo.
Ele ligou o motor e foi saindo devagar; enquanto se afastava
do cemitério, descobriu que não teria dificuldade em tirar a
imagem da mulher de sua cabeça e concentrar-se na tarefa
que deveria executar. Ele avançou pela estrada para verificar
se havia outras — cobertas com cascalho ou asfalto — que a
cruzassem, e ficou atento para ver se localizava algum
moinho ou qualquer construção com teto de zinco, mas sem
sucesso. Também não encontrou sequer uma simples casa de
fazenda.
Fazendo a volta com o carro, ele começou a retornar pelo
caminho que tinha seguido, à procura de uma estrada que o
levasse até o alto de Riker's Hill, mas acabou desistindo e
sentindo-se frustrado. Enquanto se aproximava do cemitério
novamente, ele se perguntava quem seria o proprietário
daquelas terras e se Riker's Hill seria propriedade pública ou
privada. Ele certamente poderia obter essa informação na
prefeitura. O jornalista atento que havia dentro dele não
pôde deixar de observar que o carro da mulher havia
desaparecido, o que o fez sentir uma leve, embora inespera-
da, sensação de contrariedade, que passou tão depressa
quanto surgiu.
Ele olhou o relógio, passava das duas; calculou que a correria
do almoço no Herbs provavelmente já estaria acabando.
Poderia aproveitar para falar com Dóris. Talvez ela pudesse
lançar alguma luz sobre o assunto.
Ele sorriu para si mesmo, imaginando se a mulher que tinha
visto no cemitério teria achado graça nessa observação.


Capítulo
TRÊS

Apenas algumas mesas na varanda ainda estavam ocupadas
quando Jeremy chegou ao Herbs. Enquanto subia as escadas
na direção da porta da frente, as conversas silenciaram e os
olhares se viraram para ele. Só a mastigação continuou, e
Jeremy se lembrou da maneira curiosa com que as vacas
olhavam quando alguém se aproximava da cerca do pasto.
Jeremy mexeu a cabeça e acenou, fazendo o mesmo gesto
que havia visto quando passara pelas varandas.
Ele tirou os óculos de sol e empurrou a porta. As mesas
pequenas, quadradas, estavam espalhadas por dois grandes
salões, separados no meio por uma escada. Um remate
branco dava um certo equilíbrio às paredes cor de pêssego,
deixando o lugar com um aspecto caseiro, interiorano; na
parte de trás da construção, ele viu a cozinha de relance.
Mais uma vez, as mesmas expressões bovinas dos clientes
enquanto ele passava. As conversas foram interrompidas. Os
olhares o acompanharam. Quando ele mexeu a cabeça e
acenou, os olhos baixaram e o murmúrio das conversas
aumentou de novo. Essa coisa de acenar, ele pensou, era
uma espécie de varinha mágica.
Jeremy ficou parado, rodando os óculos com os dedos,
esperando que Dóris estivesse ali, quando uma das
garçonetes saiu da cozinha. Beirando os trinta anos, era alta
e extremamente magra, com um rosto corado e franco.
— Pode pegar qualquer lugar, bem — ela disse, com a voz
aguda. — Volto num instante.
Depois de se instalar confortavelmente perto de uma janela,
ele ficou observando a garçonete enquanto ela se
aproximava. Seu crachá dizia RACHEL. Jeremy pensou no
fenômeno dos crachás na cidade. Será que todos os
trabalhadores tinham um? Calculou que talvez fosse uma
espécie de regra. Como mexer a cabeça e acenar.
— Posso lhe trazer algo para beber, querido?
— Vocês têm capuccino? — ele arriscou.
— Não, sinto muito. Mas temos café.
Jeremy sorriu. — Café seria ótimo.
— Já vem. O cardápio está na mesa, se quiser comer alguma
coisa.
— Para falar a verdade, eu estava pensando se a Dóris
McClellan estaria por aqui.
— Ah, ela está lá atrás — Rachel disse, e seu rosto se
iluminou. Quer que a chame?
— Se você não se importar.
Ela sorriu. — Não tem problema nenhum, querido.
Ele a viu caminhar na direção da cozinha e empurrar a porta
vaivém. Pouco depois, uma mulher que ele imaginou ser
Dóris apareceu. Era o oposto de Rachel: baixa e robusta,
ralos cabelos brancos que um dia haviam sido louros, ela
usava um avental, mas sem crachá, sobre uma blusa florida.
Parecia ter uns sessenta anos. Parando junto à mesa, ela
colocou as mãos nos quadris antes de exibir um sorriso.
— Bom — ela disse, dividindo a palavra em duas sílabas —,
você deve ser Jeremy Marsh.
Jeremy piscou. — Você me conhece?
— É claro. Vi você no Primetime Live na sexta. Deduzo
que recebeu minha carta.
— Recebi, obrigado.
— E você está aqui para escrever uma história sobre os
fantasmas? Ele levantou as mãos. — Parece que sim.
— Bom, é isso. — Seu sotaque dava a impressão de que ela
terminara a palavra nos esses. — Por que não me avisou que
estava vindo?
— Eu gosto de surpreender as pessoas. Às vezes é mais fácil
obter informações exatas desse modo.
— Isso — ela disse de novo. Depois que passou a surpresa,
ela puxou uma cadeira. — Se importa se eu sentar? Acho
que está aqui pra falar comigo.
— Eu não quero lhe criar problemas com a chefia, se estiver
trabalhando.
Ela olhou por cima do ombro e gritou. — Ei, Rachel, você
acha que a chefia vai se importar se eu sentar? Esse homem
aqui quer conversar comigo.
Rachel esticou a cabeça por detrás da porta vaivém. Jeremy
pôde ver que estava segurando um bule.
— Não, eu não acho que a chefia vai se importar — Rachel
respondeu. — A chefia adora conversar. Principalmente
com um cara tão bonito.
Dóris se virou. — Viu? — ela disse, e acenou com a cabeça.
— Sem problemas.
Jeremy sorriu. — Parece um bom lugar para trabalhar.
— É.
— Pelo que vejo, você é quem manda.
— Culpada, pode apostar — Dóris respondeu. Os olhos
brilhando de satisfação.
— Há quanto tempo está neste ramo?
— Quase trinta anos. Agora, aberto pro café e pro almoço.
Fazíamos comida saudável bem antes de virar moda, e temos
as melhores omeletes neste lado de Raleigh. — Ela se
inclinou para a frente. — Está com fome? Devia
experimentar um dos nossos sanduíches de almoço. É tudo
fresco — até o pão nós fazemos todo dia. Você está com
cara de quem precisa fazer uma boquinha, e com a sua
aparência... — ela parou, fazendo uma avaliação. — Aposto
que você iria adorar o sanduíche de pesto de frango. Vem
com brotos, tomate, pepino, e sou eu mesma quem faz a
receita do pesto.
— Eu realmente não estou com fome.
Rachel se aproximou com duas xícaras de café.
— Bom, só pra você saber... se vou contar uma história,
gosto de contar com uma boa refeição na mesa. E costumo
levar o tempo que for preciso.
Jeremy se rendeu. — O sanduíche de pesto de frango parece
uma boa idéia.
Dóris sorriu. — Você pode trazer pra gente uns
"Albermales", Rachel?
— Claro — Rachel respondeu. Ela o examinou com um olhar
inquiridor. — A propósito, quem é o seu amigo? Nunca vi
por aqui antes.
— Este é Jeremy Marsh — Dóris respondeu. — É um
jornalista famoso que veio até aqui pra escrever uma história
sobre a nossa hospitaleira cidade.
— Verdade? — Rachel perguntou com interesse.
— Sim — respondeu Jeremy.
— Graças a Deus — disse Rachel, com uma piscadela. — Por
um momento, achei que você tivesse acabado de vir de um
enterro.
Jeremy piscou os olhos, enquanto Rachel se afastava.
Dóris achou graça de sua expressão. — Tully passou por aqui
depois que você parou para pedir informações — ela
explicou. — Acho que ele deduziu que eu podia ter algo a
ver com sua vinda, e queria ter certeza. De qualquer modo,
ele relatou toda a conversa de vocês, e Rachel provavel-
mente não deve ter conseguido resistir. Ninguém deu a
mínima para esse comentário dele.
— Sei — Jeremy disse.
Dóris se inclinou para a frente de novo. — Aposto que ele
ficou buzinando um tempão na sua orelha.
— Um pouco.
— Ele sempre falou demais. Ele seria capaz de conversar
com uma caixa de sapatos se não tivesse ninguém por perto,
e eu juro que não sei como foi que a mulher dele, a Bonnie,
conseguiu agüentar tanto tempo. Mas já tem uns doze anos
que ela ficou surda, e ele agora conversa com os clientes. É
tudo o que uma pessoa pode fazer para sair de lá em menos
tempo do que um cubo de gelo leva pra derreter no inverno.
Eu tive de enxotá-lo daqui hoje quando ele deu uma passada.
Não se consegue trabalhar se ele estiver por perto.
Jeremy pegou seu café. — A mulher dele ficou surda?
— Acho que o Bom Deus percebeu que ela já tinha sofrido
muito. Abençoado seja seu coração.
Jeremy sorriu antes de tomar um gole do café. — Por que
ele pensaria que foi você quem fez o contato comigo?
— Toda vez que acontece alguma coisa diferente, eu sou
sempre a culpada. É o preço que se paga, eu acho, por ser a
médium da cidade.
Jeremy ficou apenas olhando para ela e Dóris sorriu.
— Pelo que sei, você não acredita em médiuns — ela
observou.
— Não, para ser sincero, não — Jeremy admitiu.
Dóris tirou o avental. — Bom, na maior parte deles, eu
também não. A maioria é biruta. Mas algumas pessoas têm
mesmo o dom.
— Então... você consegue ler a minha mente?
— Não, não é nada disso — Dóris falou, balançando a
cabeça. — Pelo menos na maior parte do tempo. Eu tenho
uma intuição muito boa a respeito das pessoas, mas ler a
mente dos outros é coisa que a minha mãe fazia. Ninguém
conseguia esconder nada dela. Ela sabia até o que eu estava
planejando comprar para lhe dar de presente de aniversário,
o que fazia as coisas perder a graça. O meu dom é diferente.
Sou uma vidente. E também sei dizer qual é o sexo de um
bebê antes mesmo de ele nascer.
— Sei.
Dóris olhou-o com atenção. — Você não acredita em mim.
— Bem, vamos apenas dizer que você é uma vidente. Isso
quer dizer que você sabe onde encontrar água e me dizer
onde é que eu deveria cavar o poço.
— É claro.
— E se eu lhe pedisse para fazer um teste, cientificamente
controlado, sob supervisão estrita...
— Você até poderia ser o supervisor, e se tiver de me
amarrar como uma árvore de Natal para ter certeza de que
eu não vou trapacear, não teria problema algum.
— Sei — disse Jeremy, pensando em Uri Geller. Geller tinha
tanta confiança em seus poderes telecinéticos que procurou
a televisão britânica em 1973, onde apareceu diante de
cientistas e uma platéia no estúdio. Quando balançou uma
colher no dedo, ambos os lados começaram a se curvar para
baixo diante de observadores estupefatos. Só mais tarde é
que se descobriu que ele tinha dobrado a colher várias vezes
antes do programa, produzindo uma fadiga no metal.
Dóris parecia saber exatamente o que ele estava pensando.
— Vou lhe dizer uma coisa... pode me testar a qualquer hora,
da maneira como quiser. Mas não é por causa disso que veio.
Você quer que eu fale a respeito dos fantasmas, certo?
— Claro — disse Jeremy, aliviado por irem direto ao assunto.
— Importa-se se eu gravar nossa conversa?
— De modo algum.
Jeremy enfiou a mão no bolso do blazer e tirou um pequeno
gravador. Colocou-o entre eles e apertou o botão correto.
Dóris tomou um gole de café antes de começar.
— Bem, a história remonta aos anos de 1890 ou por volta
disso. Nessa época, nesta cidade ainda havia a segregação
racial, e a maioria dos negros vivia nos arredores, num lugar
chamado Watts Landing. Não existe mais nada desse vilarejo
atualmente, por causa do Hazel, mas naquela época...
— Desculpe... Hazel?
— O furacão. Mil novecentos e cinqüenta e quatro. Atingiu a
costa perto da divisa da Carolina do Norte. Deixou
praticamente toda a cidade de Boone Creek debaixo d'água,
e o que tinha sobrado de Watts Landing desapareceu.
— Está certo. Desculpe. Pode continuar.
— De qualquer forma, como eu estava dizendo, você não vai
encontrar mais o vilarejo, mas, perto da virada do século,
acho que moravam ali umas trezentas pessoas. A maioria era
descendente dos escravos que tinham vindo da Carolina do
Sul durante a Guerra da Agressão Setentrional, ou o que
vocês ianques chamam de Guerra Civil.
Ela piscou e Jeremy sorriu.
— Então, a Union Pacific apareceu trazendo as estradas de
ferro, o que, naturalmente, esperava-se que transformasse
este lugar em uma grande área cosmopolita. Ou pelo menos
era isso o que eles prometiam. E a estrada que eles
propunham construir passava bem no meio do cemitério dos
negros. A líder da cidade na época era uma mulher chamada
Hettie Doubilet. Ela era do Caribe — eu não sei dizer de que
ilha —, mas quando descobriu que eles iriam ter de cavar e
transferir todos os corpos para outro lugar, ficou
transtornada e tentou fazer com que o condado tomasse
alguma atitude para mudar o traçado. Mas os camaradas que
administravam o condado nem tomaram conhecimento.
Não lhe deram nem uma oportunidade para apresentar sua
causa.
Nesse instante, Rachel chegou com os sanduíches. Ela
colocou os dois pratos sobre a mesa.
— Experimente — Dóris falou. — Seja como for, você está
que é só pele e osso.
Jeremy pegou seu sanduíche e deu uma mordida. Ele ergueu
as sobrancelhas e Dóris sorriu.
— Melhor do que qualquer coisa que você consegue achar
em Nova Iorque, não é?
— Sem dúvida. Meus cumprimentos para a chef.
Ela olhou para ele de um modo quase coquete. — Você é
encantador, sr. Marsh — ela disse, e subitamente ocorreu a
Jeremy a idéia de que, na juventude, ela devia ter partido
alguns corações. Ela continuou com a história, como se
nunca tivesse parado.
— Naquela época, havia muitos camaradas racistas. Pessoas
assim ainda existem, mas agora são minoria. Como você é do
Norte, provavelmente acha que eu estou mentindo, mas não
estou.
— Acredito em você.
— Não, não acredita. Ninguém do Norte acredita, mas isso
não tem importância. Mas, continuando com a história,
Hettie Doubilet ficou furiosa com os camaradas do condado,
e diz a lenda que quando eles se recusaram a deixá-la entrar
no escritório do prefeito, ela lançou uma maldição sobre
nós, os camaradas brancos. Ela disse que se os túmulos de
seus ancestrais fossem profanados, então os dos nossos
também seriam. Os ancestrais de seu povo iriam vagar por
Cedar Creek em sua jornada, e no final todo o cemitério
seria tragado inteiro. É claro que ninguém prestou atenção
ao que ela disse naquele dia.
Dóris deu uma mordida em seu sanduíche. — E, bom, para
encurtar a história, os negros mudaram os corpos um por
um para outro cemitério, a estrada de ferro seguiu em frente
e, depois disso, exatamente como Hettie tinha dito, o
Cemitério de Cedar Creek começou a ir mal. No começo,
coisas pequenas. Algumas lápides quebradas, coisas assim,
como se vândalos fossem os responsáveis. Os camaradas do
condado, achando que o povo de Hettie era o responsável,
colocaram guardas. Mas as coisas continuaram a acontecer,
não importava quantos guardas fossem colocados lá. E com o
passar dos anos, foi ficando pior. Você esteve lá, certo?
Jeremy assentiu com a cabeça.
— Então viu o que está acontecendo. Parece que o lugar
está afundando, certo? Exatamente como Hettie disse que
afundaria. De qualquer forma, alguns anos depois as luzes
começaram a aparecer. E, desde então, as pessoas acreditam
que são os espíritos dos escravos vagando por aí.
— Então eles não usam mais o cemitério?
— Não, o lugar foi abandonado definitivamente no final dos
anos setenta, mas mesmo antes dessa época as pessoas já
estavam preferindo ser enterradas em outros cemitérios ao
redor da cidade, por causa do que estava acontecendo com
Cedar Creek. Ele agora é propriedade do município, mas eles
não tomam conta, não têm dado a mínima há pelo menos
vinte anos.
— Alguém já tentou verificar por que o cemitério parece
estar afundando?
— Eu não tenho certeza absoluta, mas estou quase certa que
sim. Muitas pessoas poderosas têm ancestrais enterrados no
cemitério, e a última coisa que eles iriam querer ver seria o
esfacelamento do túmulo do avô. Tenho certeza de que eles
tentaram encontrar uma explicação, e eu já ouvi umas
histórias de gente de Raleigh que veio pra cá tentar
descobrir o que estava acontecendo.
— Você está falando dos estudantes da Duke?
— Ah, não, eles não, querido. Eles eram apenas um bando
de garotos, e estiveram aqui no ano passado. Não, estou
falando de muito tempo atrás. Talvez da época em que os
estragos começaram.
— Mas você não sabe o que foi que descobriram.
— Não. Sinto muito. — Ela fez uma pausa, e seus olhos
adquiriram um brilho malicioso. — Mas acho que tenho
uma idéia muito boa.
Jeremy ergueu as sobrancelhas. — E qual é?
— Água — ela disse simplesmente.
— Água?
— Eu sou uma vidente, lembra? Eu sei onde tem água. E
vou lhe dizer uma coisa, francamente: aquela terra está
afundando por causa da água que corre por baixo. Tenho
certeza disso.
— Sei.
Dóris riu. — Você é tão gracinha, sr. Marsh. Sabia que seu
rosto fica muito sério quando alguém lhe conta alguma coisa
em que você não quer acreditar?
— Não. Nunca ninguém me disse isso.
— Bom, fica. E acho que é uma graça. Minha mãe teria tido
um dia e tanto com você. Você é tão fácil de ler.
— Então, o que é que eu estou pensando?
Dóris hesitou. — Bom, como eu disse, meus dons são
diferentes dos de minha mãe. Ela poderia ler você como se
fosse um livro. Além disso, eu não quero assustá-lo.
— Vá em frente. Veja se me assusta.
— Tudo bem — ela disse, e o examinou longamente. —
Pense em algo que eu não poderia saber de jeito nenhum. E
lembre-se de que meu dom não é ler a mente das pessoas.
Eu apenas capto... sinais, aqui e ali, e apenas se eles forem
sentimentos realmente fortes.
— Tudo bem — Jeremy falou, tentando cooperar. — Mas
você percebe que está apenas tergiversando.
— Vamos lá. — Dóris pegou as mãos dele. — Deixe-me
segurá-las, o.k.!
Jeremy assentiu com a cabeça. — Claro.
— Agora pense em algo pessoal que eu não teria como saber.
— Está certo.
Ela apertou a mão dele. — Sério. Até agora você está apenas
brincando comigo.
— Está bem. Vou pensar em algo.
Jeremy fechou os olhos. Ele pensou no porquê de Maria tê-
lo deixado, e por um longo momento Dóris não disse
absolutamente nada. Ao contrário, ela simplesmente olhou
para ele, como se tentasse fazer com que ele falasse alguma
coisa.
Ele já havia passado por isso antes. Inúmeras vezes. Ele sabia
o bastante para ficar calado, e quando ela continuou em
silêncio, ele sabia que a tinha na mão. Subitamente, ela
estremeceu — não era de surpreender, Jeremy pensou, já
que fazia parte do show — e imediatamente soltou as mãos
dele.
Jeremy abriu os olhos e olhou para ela.
— E?
Dóris estava olhando para ele de maneira estranha. — Nada
— ela disse.
— Ah — Jeremy acrescentou: — Acho que não está nas
cartas hoje, certo?
— Como eu lhe disse, sou vidente. — Ela sorriu, quase como
se estivesse pedindo desculpas. — Mas posso lhe dizer com
certeza que você não está grávido.
Ele riu. — E eu teria de lhe dizer que você está certa a
respeito disso.
Ela sorriu para ele antes de lançar o olhar sobre a mesa. Ela
ergueu os olhos de novo para ele. — Desculpe. Eu não
deveria ter feito o que fiz. Foi inadequado.
— Não tem problema — ele disse, com sinceridade.
— Não — ela insistiu. Seus olhos se encontraram e ela
pegou a mão dele de novo. Ela a apertou levemente. — Eu
sinto muito.
Jeremy não teve muita certeza sobre como reagir quando ela
pegou na mão dele de novo, mas ficou comovido com a
expressão de compaixão em seu rosto.
E Jeremy teve a preocupante sensação de que Dóris havia
adivinhado mais coisas sobre sua história pessoal do que ela
talvez soubesse.

Mediunidade, premonição e intuição são simplesmente um
produto da interação entre experiência, bom senso e
conhecimento acumulado. A maioria das pessoas subestima
a quantidade de informações que adquire ao longo da vida,
mas o cérebro humano tem a capacidade de fazer a cor-
relação imediata das informações de um modo que nenhuma
outra espécie — ou máquina — é capaz de fazer.
O cérebro, porém, aprende a descartar a grande maioria das
informações que recebe porque, por motivos óbvios, não é
essencial que ele se lembre de absolutamente tudo. É claro
que algumas pessoas têm memória melhor do que outras,
fato revelado freqüentemente em situações de teste, e a
capacidade de treinar a memória está muito bem
documentada. Porém, até o pior dos estudantes se lembra de
99,99 por cento de tudo o que lhe acontece durante a vida.
Assim, é esse 0,01 por cento que na maioria das vezes
distingue uma pessoa da outra. Para algumas pessoas, isso se
manifesta na capacidade de memorizar trivialidades, ou para
se destacar como médicos, ou para interpretar com exatidão
dados financeiros e tornar-se um bilionário de fundos de
investimento. Para outras pessoas, é uma capacidade de ler
seus semelhantes; e essas pessoas — com uma habilidade
inata para despertar lembranças, com senso comum e
experiência, e também capacidade para codificar tudo isso de
modo rápido e exato — manifestam uma habilidade que
impressiona, como se fossem sobrenaturais.
Mas o que Dóris tinha feito estava... de algum modo acima
disso, Jeremy pensou. Ela sabia. Ou, pelo menos, essa era a
primeira impressão de Jeremy, até que ele encontrasse a
explicação lógica para o que tinha acontecido.
E o fato é que não havia acontecido nada de verdade, ele
lembrou a si mesmo. Dóris não tinha dito nada; foi só o jeito
como ela olhou para ele que o fez pensar que ela havia
compreendido aquelas coisas indevassáveis. E essa era uma
sensação dele e não de Dóris.
A ciência tinha as verdadeiras respostas; mesmo assim, ela
parecia uma boa pessoa. E se ela acreditasse em suas
habilidades, qual o problema? Para ela, provavelmente
pareciam sobrenaturais.
Mais uma vez, parecia que ela havia lido sua mente.
— Bom, acho que acabei de confirmar que sou maluca,
certo?
— Não, é claro que não — Jeremy falou.
Ela pegou seu sanduíche. — Bom, de qualquer forma, já que
deveríamos estar apreciando esta ótima refeição, talvez fosse
melhor comer um pouco. Quer que eu lhe conte alguma
coisa?
— Quero que me fale a respeito da cidade de Boone Creek —
ele disse.
— Falar o quê?
— Qualquer coisa. Já que vou ficar aqui por alguns dias, seria
bom saber alguma coisa a respeito do lugar.
Eles passaram a meia-hora seguinte conversando... bem, no
que dizia respeito a Jeremy, não havia muito o que
conversar. Dóris parecia saber tudo o que se passava na
cidade. Muito mais do que Tully. E não por causa de suas
supostas habilidades — ela admitia isso —, mas porque as
informações atravessavam as pequenas cidades mais depressa
do que o efeito do suco de ameixa em um bebê.
Dóris falou praticamente sem parar. Ele ficou sabendo sobre
quem estava saindo com quem, com quem era difícil
trabalhar e por que, e o fato de o ministro da igreja
pentecostal da cidade estar tendo um caso com uma de suas
paroquianas. O mais importante, pelo menos para Dóris, era
que ele soubesse que, se por acaso acontecesse qualquer
coisa com seu carro, ele jamais deveria chamar o Guincho
do Trevor, porque o Trevor provavelmente estaria bêbado,
qualquer que fosse a hora do dia.
— O homem é uma ameaça para as estradas — Dóris
afirmou. — Todo mundo sabe, mas como o pai dele é o
xerife, ninguém faz nada a respeito disso. Mas acho que isso
não o surpreende. O xerife Wanner tem seus próprios
problemas, como as dívidas de jogo.
— Ah — Jeremy falou como resposta, como se estivesse à
par de tudo o que estava acontecendo na cidade. — Faz
sentido.
Por alguns instantes, nenhum dos dois falou qualquer coisa.
No silêncio, ele deu uma olhada no relógio.
— Acho que você precisa ir embora — Dóris falou.
Ele alcançou o gravador e o desligou, antes de colocá-lo
novamente no bolso do blazer. — Certamente. Eu queria
dar uma passada na biblioteca antes que feche, para ver o
que ela tem a oferecer.
— Bom, o almoço foi por minha conta. Não é sempre que
recebemos um visitante famoso.
— Uma breve participação no Primetime não torna uma
pessoa famosa.
— Eu sei disso. Eu estava falando de sua coluna.
— Você a lê?
— Todos os meses. Meu marido, que Deus o tenha, fazia
consertos na garagem e adorava a revista. Depois que ele
morreu, eu simplesmente não tive coragem de cancelar a
assinatura. Eu praticamente continuei de onde ele havia
parado. Você é um camarada muito inteligente.
— Obrigado — ele disse.
Ela ficou em pé e pôs-se a acompanhá-lo até a saída do
restaurante. Os clientes, apenas alguns a essa hora, erguiam
os olhos para eles quando passavam. Foi sem dizer nada que
eles ouviram cada palavra, e assim que Jeremy e Dóris
puseram os pés pra fora, começaram a sussurrar entre eles.
Isso, todo mundo decidiu imediatamente, era um assunto
excitante.
— Ela falou que ele apareceu na televisão? — perguntou um.
— Acho que eu vi ele em um daqueles programas de
entrevistas.
— Definitivamente, ele não é médico — acrescentou outro.
— Ele falou de um artigo de revista.
— Como será que a Dóris conhece ele? Você ouviu alguma
coisa?
— Bom, ele parece boa gente.
— Eu acho que ele é simplesmente maravilhoso — disse
Rachel.
Enquanto isso, parados na varanda, Dóris e Jeremy não
tinham idéia da agitação que tinham causado lá dentro.
— Presumo que você vai ficar no Greenleaf? — Dóris
perguntou. Quando Jeremy fez que sim com a cabeça, ela
prosseguiu. — Você sabe onde fica? Eles estão numa área
mais afastada, um tipo de zona rural.
— Eu tenho um mapa — Jeremy respondeu, tentando
parecer que havia se preparado para tudo. — Tenho certeza
de que conseguirei achar. Mas que tal me indicar como
chego até a biblioteca?
— Claro — falou Dóris. — Ela fica logo depois da curva. —
Ela apontou para a estrada. — Está vendo aquele prédio de
tijolinhos? Aquele com o toldo azul?
Jeremy mostrou que sim com um sinal da cabeça.
— Vire à esquerda e vá até o próximo semáforo. Na primeira
rua depois do semáforo, vire à direita. A biblioteca fica na
esquina seguindo esse caminho. É um prédio grande branco.
Antigamente era chamado de Casa Middleton, pois
pertencia a Horace Middleton, antes de ser comprada pela
prefeitura.
— Eles não construíram uma biblioteca nova?
— A cidade é pequena, sr. Marsh, mas a biblioteca é bastante
grande. Você vai ver.
Jeremy estendeu a mão. — Obrigado. Você tem sido ótima
comigo. E o almoço estava delicioso.
— Procuro fazer o melhor.
— Você se importa se eu voltar para fazer mais perguntas?
Você parece que sabe lidar muito bem com todas as coisas.
— Sempre que quiser conversar, é só aparecer. Estou sempre
às ordens. Mas vou lhe pedir para não escrever nada que nos
faça parecer um bando de gente grosseira. Há muitas pessoas
— eu, inclusive — que adoram este lugar.
— Tudo o que escrevo é verdade.
— Eu sei — ela disse. — É por isso que o procurei. Você tem
uma cara confiável, e tenho certeza de que vai colocar a
lenda de uma vez por todas exatamente onde deveria estar.
Jeremy ergueu as sobrancelhas. — Você não acredita que
haja fantasmas em Cedar Creek?
— Ó céus, não. Eu sei que não há espíritos por ali. Venho
dizendo isso há anos, mas ninguém me ouve.
Jeremy olhou para ela com curiosidade. — Então por que
me pediu para vir aqui?
— Porque as pessoas não sabem o que está acontecendo, e
vão continuar acreditando até acharem uma explicação.
Sabe, desde aquele artigo no jornal sobre as pessoas da Duke,
o prefeito vem promovendo essa idéia como louco, e vem
gente estranha de todos os lugares na esperança de ver as
luzes. Para ser honesta, isso está criando uma série de
problemas — este lugar já está desmoronando e o estrago
está cada vez pior.
Com essas palavras no ar, ela esperou um momento antes de
continuar. — É claro que o xerife não vai fazer nada com os
estudantes que vivem por ali, ou com os estranhos que
ficam vadiando por lá sem qualquer idéia na cabeça. Ele e o
prefeito estão tentando angariar simpatizantes; além disso,
quase todo mundo por aqui — exceto eu — acha que esse
negócio de promover os fantasmas é uma boa idéia. Desde
que a tecelagem e a mina fecharam, a cidade está acabando,
e eu acho que eles acreditam que essa idéia é uma espécie de
salvação.
Jeremy olhou de relance para seu carro, depois de volta para
Dóris, pensando no que ela acabara de dizer. Fazia todo o
sentido, mas...
— Você percebe que está mudando a história que me
contou na carta?
— Não — ela disse. — Eu não estou. Tudo o que eu disse
foi que havia luzes misteriosas no cemitério e que se
acreditava que elas tinham relação com uma antiga lenda,
que a maioria das pessoas acha que os fantasmas estão
envolvidos, e que os garotos da Duke não conseguiram
descobrir o que são realmente essas luzes. Tudo isso é
verdade. Pode ler a carta de novo se não acredita em mim.
Eu não minto, sr. Marsh. Posso não ser perfeita, mas não
minto.
— Então por que você quer que eu faça a história cair no
descrédito?
— Porque não está certo — ela disse calmamente, como se
a resposta fosse uma questão de bom senso. — Pessoas
vadiando por lá, turistas aparecendo para acampar — isso
não é muito respeitoso com os que se foram, mesmo que o
cemitério esteja abandonado. As pessoas que estão enterra-
das ali merecem descansar em paz. E a combinação dessas
coisas com o tal Passeio pelas Casas Históricas está
simplesmente muito errado. Mas eu sou apenas uma voz no
deserto atualmente.
Jeremy pensou no que ela dissera ao colocar as mãos nos
bolsos. — Posso lhe falar com franqueza? — ele perguntou.
Ela acenou com a cabeça, e Jeremy mudou o peso do corpo
de um pé para outro. — Se você acredita que sua mãe era
médium, e que você tem o poder de achar água ou adivinhar
o sexo dos bebês, parece...
Ao deixar essas palavras no ar, ela olhou para ele fixamente.
— Que eu seria a primeira a acreditar em fantasmas? Jeremy
respondeu afirmativamente com um gesto da cabeça.
— Bom, e eu acredito. Eu só não acredito que eles estejam
lá no cemitério.
— Por que não?
— Porque eu estive lá e não senti a presença de espíritos.
— Então você também tem esse poder?
Ela sacudiu a cabeça sem responder. — Posso ser franca
agora?
— Claro.
— Um dia, você vai aprender uma coisa que não pode ser
explicada pela ciência. E quando isso acontecer, sua vida vai
mudar de uma maneira que você não pode sequer imaginar.
Ele sorriu. — Isso é uma promessa?
— Sim — ela disse —, é.
Ela fez uma pausa, olhando-o nos olhos. — E preciso lhe
dizer que realmente gostei do nosso almoço. Não é sempre
que eu tenho a companhia de um homem jovem tão
charmoso. Quase me fez sentir jovem novamente.
— Eu também adorei.
Ele se virou para sair. O vento havia trazido muitas nuvens
durante o almoço. O céu, embora não fosse ameaçador,
parecia indicar que o inverno queria ficar, e Jeremy ergueu a
gola do colarinho enquanto caminhava na direção do carro.
— Sr. Marsh? — Dóris chamou às suas costas.
Jeremy se virou. — Sim?
— Dê um alô para Lex por mim.
— Lex?
— Sim — ela respondeu. — Na mesa de consulta da
biblioteca. É por ela que o senhor deve procurar.
Jeremy sorriu. — Eu darei.


Capítulo
QUATRO

A biblioteca era uma estrutura gótica maciça,
completamente diferente de todos os outros edifícios da
cidade. Para Jeremy, parecia que ela havia sido arrancada de
uma colina na Romênia e jogada em Boone Creek num gesto
de provocação.
O edifício ocupava praticamente todo o quarteirão, e seus
dois andares exibiam janelas altas e estreitas, um telhado
com um ângulo muito fechado, e uma porta dianteira de
madeira formando um arco, complementada por enormes
argolas para chamar. Edgar Allan Poe teria adorado aquele
lugar, mas apesar da arquitetura de casa mal-assombrada, os
moradores da cidade tinham feito o possível para torná-la
mais convidativa. A fachada de tijolos — sem dúvida
vermelhos até uma determinada época — tinha sido pintada
de branco, haviam sido colocadas venezianas pretas para
emoldurar as janelas, e canteiros de amores-perfeitos
acompanhavam as laterais da passagem que levava até a
entrada e contornavam o ponto em que estava colocada a
bandeira. Uma placa amigável, gravada com uma inscrição
dourada em letra cursiva, dava a todos as boas-vindas à
BIBLIOTECA DE BOONE CREEK. Ainda assim, o aspecto
geral era destoante. Era como visitar a casa elegante de um
menino rico na cidade, pensou Jeremy, e dar de cara com
um mordomo que recebe as pessoas na porta com bexigas e
uma espingarda d'água.
No salão da entrada, pintado de amarelo-pálido e bastante
iluminado — pelo menos o edifício era consistente com sua
falta de consistência —, havia uma mesa em L, com a parte
mais comprida se estendendo para os fundos do edifício,
onde Jeremy viu uma grande sala envidraçada dedicada às
crianças. À esquerda estavam os banheiros, e à direita, atrás
de outra parede de vidro, estava o que parecia ser o espaço
principal. Jeremy acenou com a cabeça e com a mão em
direção à senhora idosa que estava atrás da mesa. Ela sorriu e
acenou de volta, antes de retornar para o livro que estava
lendo. Jeremy empurrou a pesada porta de vidro e entrou no
espaço principal, orgulhoso por estar percebendo a maneira
como as coisas funcionavam por ali.
No espaço principal, entretanto, ele sentiu uma onda de
desapontamento. Sob o brilho intenso das luzes
fluorescentes, havia apenas seis prateleiras de livros,
relativamente próximas umas das outras, numa sala que não
era muito maior do que seu apartamento. Nos cantos mais
próximos havia dois computadores ultrapassados e, no lado
direito, um espaço para leitura que abrigava uma pequena
coleção de periódicos. Quatro mesas pequenas estavam
espalhadas pela sala, e ele viu apenas três pessoas passando
os olhos pelas estantes, inclusive um senhor com aparelho
para surdez que estava empilhando livros nas prateleiras.
Olhando ao redor, Jeremy teve a triste impressão de que a
quantidade de livros da biblioteca era menor do que o
número de livros que ele comprara ao longo da vida.
Ele caminhou até a mesa de consulta, mas, como era de se
esperar, não havia ninguém ali. Parou junto à mesa, à espera
de Lex. Virando-se para se apoiar na mesa, ele imaginou que
Lex deveria ser o senhor de cabelos brancos que estava
colocando os livros nas prateleiras, mas o homem não fez
qualquer movimento em sua direção.
Ele olhou para o relógio. Dois minutos depois, olhou para o
relógio novamente.
Outros dois minutos depois, após Jeremy ter limpado a
garganta, pigarreando sonoramente, o homem finalmente
percebeu sua presença. Jeremy fez um gesto com a cabeça e
acenou com a mão, fazendo com que o homem percebesse
que ele precisava de ajuda, mas em vez de se aproximar dele,
o homem apenas acenou e balançou a cabeça, e então voltou
para os livros empilhados. Sem dúvida, ele estava
procurando manter-se afastado de qualquer movimentação.
Era legendária a eficácia sulista, Jeremy observou. E aquele
lugar era impressionante.
No pequeno e desorganizado escritório do andar superior da
biblioteca, ela olhava fixamente através da janela. Já sabia
que ele estaria vindo. Dóris havia telefonado no momento
em que ele deixara o Herbs e lhe contara sobre o homem de
preto da cidade de Nova Iorque, que estava ali para escrever
sobre os fantasmas do cemitério.
Ela balançou a cabeça. Concluiu que ele deveria ter ouvido
Dóris. Quando ela colocava uma idéia na cabeça, costumava
ser bastante persuasiva, pouco se importando com a possível
repercussão que um artigo como esse poderia ter. Ela já
havia lido as matérias do sr. Marsh e sabia exatamente como
ele trabalhava. Não bastaria provar que não havia fantasmas
envolvidos — e ela não tinha dúvidas quanto a isso —, pois
o sr. Marsh não iria parar por aí. Ele iria entrevistar as
pessoas com seu jeito charmoso, iria fazer com que elas se
abrissem, e então ele selecionaria e escolheria os
depoimentos, antes de torcer a verdade da forma que lhe
aprouvesse. Uma vez concluído o trabalho de difamação que
passaria por um artigo, as pessoas do país inteiro iriam achar
que todos os que viviam ali eram ingênuos, bobos e
supersticiosos.
Ah, não. Ela não gostava do fato de ele estar ali.
Fechou os olhos, enrolando distraidamente alguns fios de
seu cabelo escuro com os dedos. A questão era que ela
também não gostava de gente rondando o cemitério. Dóris
tinha razão: era uma falta de respeito, e desde que aqueles
garotos da Duke tinham aparecido e o artigo tinha sido
publicado no jornal, as coisas realmente estavam fugindo ao
controle. Por que é que tudo não podia ter simplesmente
continuado discretamente? Aquelas luzes apareciam por ali
há décadas, e apesar de todo mundo ter conhecimento delas,
ninguém se importava de verdade. É claro que, de vez em
quando, algumas pessoas decidiam bisbilhotar — a maioria
porque tinha ficado bebendo no Lukilu, ou então
adolescentes —, mas fazer camisetas? Canecas? Cartões-
postais de péssima qualidade? Misturar tudo isso com um
Passeio pelas Casas Históricas?
Ela não conseguia entender as motivações por trás daquele
fenômeno. Por que seria tão importante incrementar o
turismo por ali, afinal de contas? Ê claro que o dinheiro era
uma coisa atraente, mas as pessoas não viviam em Boone
Creek porque queriam ficar ricas. Bom, pelo menos a
maioria delas, de qualquer forma. Havia sempre algumas
pessoas querendo ganhar dinheiro fácil, começando em
primeiríssimo lugar, e antes de todas, pelo prefeito. Mas
sempre acreditara que a maioria das pessoas vivia aqui pelo
mesmo motivo que ela: por causa da admiração que sentia
quando, ao pôr-do-sol, o rio Pamlico se transformava numa
faixa de amarelo dourado; porque conhecia e confiava em
seus vizinhos; porque as pessoas podiam deixar seus filhos
andarem por ali à noite sem ter a preocupação de que algo
ruim pudesse lhes acontecer. Em um mundo que se tornava
cada vez mais agitado, Boone Creek era uma cidade que não
havia feito qualquer tentativa no sentido de acompanhar o
mundo moderno, e era isso o que a tornava especial.
Era por isso que estava aqui, afinal de contas. Ela adorava
cada aspecto da cidade: o cheiro de pinho e sal no
comecinho das manhãs de primavera, o mormaço das noites
de verão, que fazia sua pele brilhar, o avermelhado
resplandecente das folhas no outono. Mas, acima de tudo,
ela amava aquelas pessoas e não conseguia imaginar a vida
em qualquer outro lugar. Confiava nelas, conversava com
elas, gostava delas. É claro que muitos de seus amigos não
sentiam a mesma coisa, e depois de terem deixado a cidade
rumo à faculdade, nunca tinham voltado; ela também havia
se afastado durante algum tempo, mas mesmo nessa época
sempre soube que voltaria; o que acabou se mostrando uma
coisa boa, pois vinha se preocupando com a saúde de Dóris
nos últimos dois anos. E ela também sabia que seria a bi-
bliotecária, como sua mãe havia sido, e tinha a esperança de
fazer da biblioteca algo de que a cidade sentisse orgulho.
Não, é claro que não era um trabalho dos mais glamourosos,
e também não pagava muito. A biblioteca era uma obra em
andamento, mas a primeira impressão fora decepcionante. O
andar de baixo abrigava apenas ficção contemporânea,
enquanto no andar de cima ficavam os livros de não-ficção e
ficção clássica, títulos adicionais de autores contemporâneos
e coleções únicas. Ela duvidava que o sr. Marsh percebesse
que a biblioteca estava espalhada pelos dois andares, uma
vez que o acesso para as escadas ficava nos fundos do
edifício, perto da sala das crianças. Um dos inconvenientes
de ter uma biblioteca instalada em uma residência antiga era
que a arquitetura não havia sido planejada para o trânsito do
público. Mas o lugar a agradava.
Seu escritório no andar de cima era quase sempre tranqüilo,
e ficava perto de sua parte favorita da biblioteca. Uma
pequena sala próxima da sua abrigava os títulos raros, livros
que ela havia adquirido em vendas de espólios e de garagem,
doações, em visitas a livrarias e comerciantes de todo o
estado, projeto que sua mãe havia iniciado. Ela também
tinha uma coleção de mapas e manuscritos históricos em
desenvolvimento, alguns dos quais datavam de antes da
Guerra Revolucionária. Essa era sua paixão. Estava sempre
em busca de algo especial, e era capaz de usar de charme,
malícia ou até implorar para conseguir o que queria. Quando
nada disso funcionava, ela apontava para as possibilidades de
dedução no pagamento de impostos e — por ter trabalhado
muito para desenvolver contatos entre advogados da área
tributária e governamental em todo o Sul do país —
freqüentemente recebia coisas muito antes que as outras
bibliotecas sequer soubessem de sua existência. Apesar de
não ter os recursos da Duke, da Wake Forest ou da
Universidade da Carolina do Norte, sua biblioteca era
considerada uma das melhores entre as bibliotecas pequenas
do estado, senão do país.
E era assim que ela a via agora. Sua biblioteca, como se essa
fosse sua cidade. E neste instante um estranho estava
esperando por ela, um estranho que queria escrever uma
história que talvez não fosse boa para seu povo.
Oh, ela bem que o vira chegar de carro. Vira-o sair do carro
e dar a volta pela frente. Sacudira a cabeça, reconhecendo
quase que imediatamente o sujeito arrogante cheio de
confiança da cidade. Ele era apenas mais um de uma longa
lista de pessoas vindas de algum lugar mais exótico, pessoas
que acreditavam ter uma compreensão mais profunda a
respeito do que era a vida real. Pessoas que diziam que a vida
poderia ser muito mais emocionante, mais gratificante, se
você saísse dali. Alguns anos atrás, ela se apaixonara por
alguém que acreditava nessas coisas, e recusava-se a ser
levada por essas idéias novamente.
Um cardeal pousou no beiral da janela. Ela ficou vendo o
passarinho, desanuviou a cabeça, e então suspirou. Está
certo, ela concluiu, teria de ir falar com o sr. Marsh de Nova
Iorque. Afinal, ele estava esperando por ela.
Ele tinha vindo de longe, e a hospitalidade sulista — assim
como o seu trabalho — exigiam que ela o ajudasse a
encontrar o que precisava. O mais importante, entretanto,
era que pudesse ficar de olho nele. Ela estaria em condições
de filtrar as informações de forma que ele entendesse os
aspectos positivos da vida naquele lugar.
Ela sorriu. Sim, ela conseguiria lidar com o sr. Marsh. Além
disso, tinha de admitir, ele era muito bonito, apesar de não
ser confiável.

Jeremy Marsh parecia quase entediado.
Ele caminhava por um dos corredores, os braços cruzados,
olhando superficialmente os títulos contemporâneos. De
vez em quando franzia a testa, como se perguntasse por que
não havia nada de Dickens, Chaucer ou Austen. Caso ele
perguntasse a respeito, ela ficou imaginando qual seria a
reação dele se respondesse apenas "Quem?". Pelo que
conhecia dele — embora tivesse de admitir que não o
conhecia em absoluto e estava apenas fazendo suposições —
, provavelmente ficaria olhando para ela de boca aberta do
mesmo modo como fizera antes, quando se encontraram no
cemitério. Homens, ela pensou. Sempre previsíveis.
Ela arrumou o suéter, demorando-se um pouco mais antes
de caminhar em direção a ele. Seja profissional, ela ordenou
a si mesma, você está cumprindo uma obrigação.
— Imagino que esteja procurando por mim — ela
anunciou, forçando um sorriso apertado.
Jeremy ergueu os olhos ao ouvir sua voz, e por alguns
instantes pareceu ter congelado no lugar em que estava.
Então, sorriu imediatamente ao reconhecê-la. Ele pareceu
bastante amigável — tinha uma covinha linda —, mas o
sorriso era um pouco estudado e não foi suficiente para
ofuscar a confiança que havia em seus olhos.
— Você é Lex? — ele perguntou.
— É a forma curta de Lexie. Lexie Darnell. É como Dóris me
chama.
— Você é a bibliotecária?
— Quando não estou passeando por cemitérios e evitando
homens que ficam encarando, tento ser.
— Bom, é isso — ele disse, tentando pronunciar as palavras
da maneira como haviam sido ditas por Dóris.
Ela sorriu e passou por ele para arrumar alguns livros na
prateleira que Jeremy havia examinado.
— Seu sotaque não engana, sr. Marsh — ela disse. — Parece
que está tentando encontrar palavras para um jogo de
palavras cruzadas.
Ele sorriu francamente, sem se deixar perturbar pelo
comentário. — Você acha? — ele perguntou.
Definitivamente um sedutor, ela pensou.
— Eu sei — ela continuou arrumando os livros. — Agora,
no que posso ajudá-lo, sr. Marsh? Imagino que esteja
procurando informações sobre o cemitério?
— Minha reputação me precede.
— Dóris telefonou para me avisar que estava a caminho,
— Ah — ele observou. — Eu deveria saber. Ela é uma
mulher interessante.
— Ela é minha avó.
Jeremy ergueu as sobrancelhas. É isso, ele pensou, desta vez
guardando as palavras para si mesmo. Mas que coisa
interessante! — Ela lhe contou a respeito do nosso delicioso
almoço? — ele perguntou.
— Para ser sincera, eu não perguntei. — Ela empurrou o
cabelo para trás da orelha, e não pôde deixar de pensar que
aquela covinha era do tipo que fazia as crianças pequenas
terem desejos de enfiar o dedo para brincar. Não que ela se
importasse, é claro. Ela terminou de arrumar os livros e o
olhou de frente, mantendo o tom de voz firme. — Acredite
ou não, estou bastante ocupada neste momento — ela
afirmou. — Estou sobrecarregada com trabalhos que preciso
terminar de redigir ainda hoje. Que tipo de informação o
senhor estava procurando?
Ele sacudiu os ombros. — Qualquer coisa que pudesse me
ajudar com a história do cemitério e da cidade. Quando as
luzes começaram. Qualquer estudo que tenha sido feito no
passado. Qualquer história que mencione a lenda. Mapas
antigos. Informações sobre Riker's Hill e a topografia.
Registros históricos. Coisas assim. — Ele fez uma pausa,
estudando os olhos violeta novamente. Eles eram realmente
bastante exóticos. E ali estava ela bem perto dele, em vez de
caminhando a distância. Ele achou que isso também era
interessante.
— Devo confessar que é bastante surpreendente, não é? —
ele perguntou, encostando-se na prateleira ao lado dela.
Ela o encarou. — Desculpe?
— Encontrar você no cemitério e agora aqui. A carta de sua
avó, que me trouxe até aqui. É uma coincidência e tanto,
você não acha?
— Não posso dizer que tenha pensado muito nisso.
Jeremy não iria permitir que o desencorajassem. Raramente
conseguiam desencorajá-lo, especialmente quando as coisas
estavam interessantes. — Bem, já que eu não sou daqui,
talvez você pudesse me contar o que é que as pessoas fazem
para relaxar por aqui. Quer dizer, existe algum lugar onde se
possa tomar um café? Ou beliscar alguma coisa? — ele parou.
— Talvez um pouco mais tarde, depois que você sair?
Ela piscou os olhos, pensando se tinha ouvido direito. —
Está me convidando para sair? — ela perguntou.
— Somente se não estiver ocupada.
— Eu acho — ela disse, recompondo-se — que terei de
recusar. Mas muito obrigada por ter convidado.
Ela sustentou o olhar dele, até que Jeremy finalmente
ergueu as mãos em sinal de rendição.
— Está bem — ele disse, com a voz calma. — Mas você não
pode culpar um cara por tentar — ele sorriu, a covinha
aparecendo de novo. — Será que agora podemos começar a
fazer a pesquisa? Isto é, se não estiver muito ocupada com
seu trabalho. Eu posso voltar amanhã se achar que é mais
conveniente.
— Há alguma coisa em especial por onde gostaria de
começar?
— Eu esperava poder ler o artigo publicado no jornal local.
Ainda não tive a oportunidade. Por acaso você teria o artigo
por aqui?
Ela fez que sim com a cabeça. — Provavelmente em um
microfilme. Temos trabalhado com o jornal nos últimos
anos, por isso acho que não teremos problema algum para
encontrá-lo.
— Ótimo — ele disse. — E as informações a respeito da
cidade em geral?
— Estão no mesmo lugar.
Ele olhou rapidamente ao redor, imaginando para onde
poderia ir. Ela começou a andar em direção ao salão.
— Por aqui, sr. Marsh. Vai encontrar o que precisa no andar
de cima.
— Há um andar de cima!
Ela voltou a cabeça, falando sobre os ombros. — Se me
seguir, prometo que lhe mostro.
Jeremy teve de acelerar o passo para acompanhá-la. —
Importa-se se eu lhe fizer uma pergunta?
Ela abriu a porta principal e parou. — Em absoluto — ela
respondeu, com a expressão inalterada.
— Por que estava no cemitério hoje?
Em vez de responder, ela simplesmente o encarou,
mantendo a mesma expressão.
— Quer dizer, eu estava apenas pensando — Jeremy
continuou. — Fiquei com a impressão de que poucas pessoas
vão até lá atualmente.
Ela continuou sem dizer nada, e com o silêncio, Jeremy foi
ficando mais curioso, até finalmente sentir-se
desconfortável.
— Você não vai dizer nada? — ele perguntou.
Ela sorriu e, para sua surpresa, piscou o olho antes de
atravessar a porta aberta. — Eu disse que poderia fazer a
pergunta, sr. Marsh. Eu não disse que iria responder.
Enquanto ela caminhava à sua frente, tudo o que Jeremy
conseguiu fazer foi olhar para ela com os olhos fixos. Nossa,
ela era realmente uma coisa, não era? Confiante e bonita e
charmosa ao mesmo tempo, e tudo isso depois de ter
descartado a idéia de aceitar um convite para sair.
Talvez Alvin estivesse certo, ele pensou. Talvez existisse
alguma coisa nas belezas sulistas capaz de levar um homem à
loucura.

Eles atravessaram o salão, passaram pela sala de leitura das
crianças, e Lexie conduziu-o escadas acima. Fazendo uma
parada no topo, Jeremy olhou ao redor.
É isso, ele pensou de novo.
Havia mais coisas naquele lugar além de algumas prateleiras
raquíticas cheias de livros novos. Muito mais. E também
muito de um sentimento gótico, devido ao cheiro de poeira
e à atmosfera de biblioteca particular. Com paredes cobertas
por painéis de carvalho, piso de mogno e cortinas cor de
vinho, a sala cavernosa era completamente diferente do
espaço no andar de baixo. Cadeiras exageradamente
estofadas e imitações de luminárias Tiffany ocupavam os
cantos. Na longa parede do lado oposto havia uma lareira,
com um quadro pendurado em cima dela, e as janelas,
estreitas como eram, permitiam que entrasse apenas luz
suficiente para dar ao lugar uma sensação de ambiente
confortável.
— Agora eu entendo — Jeremy observou. — O andar de
baixo é apenas um aperitivo. Aqui em cima é que as coisas
realmente acontecem.
Ela assentiu com a cabeça. — A maioria dos nossos
visitantes vem à procura dos títulos mais recentes de autores
que eles conhecem, por isso montei aquela área no andar de
baixo, para que ficasse mais acessível. A sala é pequena
porque a usávamos como escritório antes da transformação.
— E onde fica o escritório agora?
— Bem ali — ela disse, apontando para os fundos, atrás da
última estante. — Ao lado da sala dos livros raros.
— Uau! Estou impressionado.
Ela sorriu. — Vamos, vou lhe mostrar o que temos aqui e
lhe falar deste lugar.
No minuto seguinte, eles já estavam conversando enquanto
passeavam por entre as prateleiras. A casa, ele ficou sabendo,
havia sido construída em 1874 por Horace Middleton,
capitão que tinha feito sua fortuna transportando madeira e
tabaco em seu navio. Ele construíra a casa para sua mulher e
sete filhos, mas, infelizmente, nunca chegou a morar ali.
Pouco antes de terminar a construção, sua mulher faleceu, e
ele decidiu mudar-se com a família para Wilmington. A casa
ficou vazia durante anos, depois foi ocupada por outra
família até os anos cinqüenta, quando foi finalmente
vendida para a Sociedade Histórica, que mais tarde a vendeu
para a prefeitura, a fim de ser usada como biblioteca.
Jeremy ouvia atentamente enquanto ela falava. Eles
caminhavam lentamente, com Lexie interrompendo sua
própria história para apontar alguns de seus livros favoritos.
Ela era, como ele ficou sabendo rapidamente, muito mais
instruída que ele, especialmente nos clássicos, mas fazia
sentido, agora que ele havia pensado sobre isso. Por que
outra razão ela se tornaria bibliotecária, se não amasse os
livros? Como se soubesse o que ele estava pensando, ela
parou e foi até uma prateleira cuja placa apontou com o
dedo.
— Esta seção provavelmente está mais de acordo com sua
área de atuação, sr. Marsh.
Ele olhou para a placa e leu as palavras
SOBRENATURAL/BRUXARIA. Ele diminuiu o passo mas
não parou, dando apenas uma olhada em alguns dos títulos,
incluindo um a respeito das profecias de Michel de
Nostredame. Nostradamus, como é mais conhecido,
divulgou uma centena de previsões extremamente vagas em
1555, em um livro chamado Centúrias, o primeiro de dez
que escreveu ao longo da vida. Das mil profecias de
Nostradamus que chegaram a ser publicadas, somente umas
cinqüenta ainda são citadas atualmente, o que dá meros 5%
de índice de sucesso.
Jeremy enfiou as mãos nos bolsos. — Eu talvez possa lhe dar
algumas boas indicações, se quiser.
— Com certeza. Eu não sou tão orgulhosa que não possa
admitir que preciso de ajuda.
— Você já leu estas coisas?
— Não. Francamente, eu não acho o assunto tão
interessante. Quer dizer, eu folheio esses livros quando
chegam, olho as figuras, dou uma passada de olhos pelas
conclusões para ver se são apropriadas, mas é só isso.
— A idéia é boa — ele disse. — Talvez seja o melhor a
fazer.
— Mas é interessante. Algumas pessoas da cidade não
gostam que eu mantenha qualquer livro a respeito desse
assunto. Especialmente os que falam de bruxaria. Elas acham
que é má influência para os jovens.
— E são. É tudo mentira.
Ela sorriu. — Pode ser que sim, mas não é essa a questão.
Eles querem sumir com esses livros porque acreditam que é
realmente possível conjurar o demônio, e acreditam que as
crianças que lêem esse assunto podem acidentalmente
inspirar Satanás a investir furiosamente sobre nossa cidade.
Jeremy assentiu com a cabeça. — A Juventude
Impressionável do Cinturão da Bíblia. Faz sentido.
— Mas não vá contar a ninguém que eu lhe disse isso. Você
sabe que o que estamos falando aqui é extra-oficial, certo?
Ele levantou a mão. — Palavra de escoteiro.
Por alguns instantes, eles caminharam em silêncio. O sol de
inverno mal conseguia atravessar as nuvens cinzentas, e
Lexie parou diante de algumas luminárias para acender as
luzes. Um brilho amarelado se espalhou pela sala. Nesse
momento, ele conseguiu sentir o leve aroma de flores do
perfume que ela estava usando.
Jeremy caminhou distraidamente em direção ao retrato que
estava sobre a lareira. — Quem é?
Lexie parou, acompanhando seu olhar. — É minha mãe —
ela respondeu.
Jeremy olhou para ela com uma interrogação no rosto, e
Lexie respirou profundamente antes de responder.
— Depois que a biblioteca original foi totalmente destruída
pelo fogo em 1964, minha mãe assumiu como dever pessoal
a tarefa de encontrar um novo lugar e começar tudo de
novo, já que todos na cidade consideravam essa idéia
impossível. Ela tinha apenas vinte e dois anos, e passou
muitos anos ainda fazendo lobby junto a pessoas da
prefeitura e do estado para arrecadar fundos, organizando
bazares, indo de porta em porta na casa dos homens de
negócios da cidade, implorando ajuda, até eles cederem e
lhe entregarem um cheque. Demorou anos, mas ela
finalmente conseguiu.
Enquanto ela falava, os olhos de Jeremy iam de Lexie para o
quadro, e depois voltavam para Lexie. Havia uma
semelhança, ele pensou, algo que ele deveria ter notado
imediatamente. Especialmente os olhos. Apesar de ter sido
arrebatado instantaneamente pelo tom violeta, agora que
estava mais próximo percebia que os olhos de Lexie tinham
um toque de azul-claro ao redor da cor violeta, um azul que
de certa forma lembrava a cor da bondade. Apesar do retrato
ter tentado capturar a cor incomum, não conseguira chegar
perto da verdadeira.
Quando Lexie terminou de contar sua história, prendeu uma
mecha solta de cabelo atrás da orelha. Parecia que ela repetia
esse gesto com freqüência, Jeremy reparou. Provavelmente
um tique nervoso. O que, com certeza, significava que ele a
deixava nervosa. Para ele, isso era um bom sinal.
Jeremy limpou a garganta. — Ela parece ter sido uma
mulher fascinante — ele disse. — Eu adoraria conhecê-la.
O sorriso de Lexie oscilou ligeiramente, como se houvesse
mais coisas a contar, mas, em vez disso, ela sacudiu a cabeça.
— Sinto muito — ela disse. — Acho que já falei demais.
Você está aqui para trabalhar e eu o estou prendendo aqui.
— Ela acenou em direção à sala de livros raros. — Talvez
seja melhor eu lhe mostrar o lugar em que você vai ficar
engaiolado pelos próximos dias.
— Você acha que vai demorar tanto tempo?
— Você queria referências históricas e o artigo, certo? Eu
adoraria lhe dizer que todas as informações foram
catalogadas, mas não foram. Você vai ter pela frente um
bocado de pesquisa bastante cansativa.
— Há tantos livros assim para examinar?
— Não são apenas livros, apesar de termos uma quantidade
razoável de livros que você talvez ache útil. Mas eu acho
que você vai encontrar boa parte das informações que está
procurando nos diários. Eu decidi que iria reunir o máximo
que pudesse entre as pessoas que vivem na região, e temos
uma coleção e tanto atualmente. Tenho alguns, inclusive,
que datam do século XVII.
— Você por acaso não tem o de Hettie Doubilet, tem?
— Não. Mas tenho alguns que pertenciam às pessoas que
viviam em Watts Landing, e tenho até o de alguém que se
considerava historiador amador da região. Mas você não
pode examinar esse material fora do espaço da biblioteca. E
vai levar algum tempo para ver tudo. Alguns são quase
ilegíveis.
— Mal posso esperar — ele disse. — Eu vivo para a pesquisa
cansativa. Ela sorriu. — Eu seria capaz de apostar que você é
muito bom nisso. Ele arqueou as sobrancelhas. — Sou
mesmo. Sou bom em uma porção de coisas.
— Eu não tenho dúvida, sr. Marsh.
— Jeremy — ele disse. — Me chame de Jeremy.
Ela ergueu uma das sobrancelhas. — Eu não tenho certeza
de que essa seja uma boa idéia.
— É claro que é uma boa idéia — ele disse. — Confie em
mim.
Ela riu com desdém. Sempre à espreita da caça, esse aí. — É
uma oferta tentadora — ela disse. — Realmente. E fico
lisonjeada. Mesmo assim, eu não o conheço bem o bastante
para confiar em você, sr. Marsh.
Jeremy ficou olhando-a divertido enquanto ela se virava,
pensando que já havia encontrado esse tipo antes. Mulheres
que usavam a inteligência para manter os homens a
distância, normalmente os tratavam com uma certa rispidez,
mas com ela, isso de certa forma parecia quase... bem,
charmoso e bem-intencionado. Talvez fosse o sotaque. O
modo como parecia cantar as palavras, era bem provável que
ela conseguisse convencer um gato a nadar no rio.
Não, ele se corrigiu, não era apenas o sotaque. Ou a
inteligência, o que ele apreciava. Ou seus olhos
deslumbrantes e sua aparência usando jeans. Está certo, tudo
isso fazia parte, mas havia mais alguma coisa. Era... o quê?
Ele não a conhecia, não sabia nada a respeito dela. Pensando
bem, ela não tinha dito muita coisa a respeito dela mesma.
Tinha falado muito a respeito dos livros e de sua mãe, mas
ele não sabia absolutamente nada a respeito dela.
Ele estava aqui para escrever um artigo, mas, com uma
súbita sensação de desânimo, percebeu que preferiria passar
as próximas horas com Lexie. Gostaria de passear com ela
pela cidade de Boone Creek ou, melhor ainda, jantar com ela
em um restaurante romântico, longe dali, onde os dois
pudessem ficar sozinhos e se conhecer. Ela era misteriosa, e
ele gostava de mistérios. Mistérios sempre levavam a
surpresas, e enquanto a seguia em direção à sala de livros
raros, não pôde deixar de pensar que sua viagem para o Sul
do país tinha começado a ficar muito mais interessante.

A sala de livros raros era pequena, provavelmente um antigo
dormitório, e ainda era dividida por uma parede baixa, de
madeira, que ia de um lado a outro da sala. As paredes
tinham sido pintadas de bege tom de areia, com acabamento
em branco, e o piso de madeira estava gasto, mas não
deformado. Atrás da parede havia prateleiras altas com
livros; em um canto havia uma caixa com tampo de vidro
que parecia uma arca do tesouro, com uma televisão e um
aparelho de videocassete do lado, sem dúvida para a exibição
de fitas referentes à história da Carolina do Norte. Do lado
oposto ao da porta, uma janela, e debaixo dela uma
escrivaninha antiga com tampo corrediço. Uma pequena
mesa com um aparelho para leitura de microfichas estava
bem à direita de Jeremy, e Lexie apontou para ele. Andando
até a escrivaninha, ela abriu a última gaveta e depois voltou
trazendo uma pequena caixa com cartões.
Colocando a caixa na mesa, ela procurou pelos cartões
transparentes e tirou um. Inclinando-se para o lado dele,
ligou o aparelho e colocou a transparência, mexendo-a até
que o artigo estivesse na frente e no centro. Mais uma vez
ele captou um leve traço de seu perfume, e no instante se-
guinte estava diante do artigo.
— Você pode começar com isso — ela disse. — Vou levar
alguns minutos procurando mais alguma coisa que lhe possa
ser útil.
— Este aqui foi rápido — ele falou.
— Esse não foi muito difícil. Eu me lembrava da data do
artigo.
— Impressionante.
— Na verdade, não. Ele foi publicado no dia do meu
aniversário.
— Vinte e seis?
— Por volta disso. Agora, deixe-me ver o que mais posso
encontrar. Ela se virou e caminhou em direção às portas
vaivém de novo.
— Vinte e cinco? — ele falou em voz alta.
— Boa tentativa, sr. Marsh. Mas eu não estou brincando.
Ele riu. Definitivamente, essa seria uma semana interessante.
Jeremy voltou sua atenção para o artigo e começou a ler.
Estava escrito exatamente da forma que ele esperava — com
muito exagero e sensacionalismo, com arrogância suficiente
para sugerir que todos os habitantes de Boone Creek sabiam
desde sempre que o lugar era mais do que especial.
Ele descobriu poucas novidades. O artigo falava da lenda
original, descrevendo-a praticamente da mesma maneira
como Dóris havia feito, com variações mínimas no
conjunto. No artigo, Hettie visitava os vereadores da cidade,
e não o prefeito, e ela era da Luisiana, não do Caribe. O inte-
ressante é que ela aparentemente lançara a maldição diante
das portas do tribunal da cidade, causando um grande
tumulto, e então foi levada para a prisão. Quando os guardas
foram soltá-la na manhã seguinte, descobriram que ela havia
desaparecido, como se tivesse evaporado. Depois disso, o
xerife recusou-se a tentar prendê-la de novo, porque tinha
medo de que ela lançasse uma maldição sobre sua família
também. Mas todas as lendas eram semelhantes: as histórias
foram se espalhando e sendo ligeiramente alteradas para
ficar mais atraentes. E, ele tinha de admitir, a parte do de-
saparecimento era interessante. Ele teria de descobrir se ela
havia sido realmente presa e se tinha realmente escapado.
Jeremy olhou por cima do ombro. Nenhum sinal de Lexie
ainda.
Olhando de volta para a tela, ele calculou que talvez pudesse
acrescentar algo ao que Dóris havia lhe contado a respeito
de Boone Creek, e mexeu o aparelho para ver outras coisas
na microficha transparente. Outros artigos apareceram
diante de seus olhos. Num total de quatro páginas, estavam
todas as notícias da semana — o jornal era publicado toda
terça-feira — e ele descobriu rapidamente o que a cidade
tinha a oferecer. Era uma leitura brilhante, a menos que
você quisesse a cobertura de qualquer outra coisa que
estivesse acontecendo em qualquer outro lugar do mundo,
ou qualquer coisa que pudesse ao menos manter seus olhos
abertos. Ele leu a respeito de um jovem que fez todo o
jardim do prédio dos veteranos de guerra para ter o direito
de ser um comandante dos Escoteiros, sobre uma nova
lavanderia com lavagem a seco que abrira na Main Street, e
um resumo de uma assembléia realizada na cidade, onde o
ponto alto da pauta era decidir se deveriam colocar ou não
um semáforo na Leary Point Road. A primeira página era
dedicada à cobertura realizada durante dois dias sobre um
acidente de automóvel, em que dois homens da região ha-
viam sofrido pequenos ferimentos. Ele se recostou na
cadeira.
Então a cidade era exatamente o que ele esperava. Sonolenta
e tranqüila, e especial daquela forma que todas as
comunidades pequenas proclamam ser, mas nada além disso.
Era o tipo de cidade que continuava a existir mais por causa
do hábito do que em razão de alguma qualidade única, e
acabaria desaparecendo nas décadas seguintes à medida que
a população envelhecesse. Ali não havia futuro, pelo menos,
não a longo prazo.
— Lendo a respeito desta nossa cidade tão excitante? — ela
perguntou. Ele deu um pulo, surpreso por não ter percebido
que ela se aproximara
por trás, e sentindo-se estranhamente triste com o estado
das coisas por ali. — Sim. E é excitante, tenho de admitir.
Aquele comandante dos Escoteiros foi demais. Puxa.
— Jimmie Telson — ela disse. — Ele é realmente um
grande garoto. Só tira nota A e é um ótimo jogador de
basquete. Seu pai morreu no ano passado, mas ele ainda faz
trabalhos voluntários pela cidade, apesar de agora trabalhar
meio período na Pete's Pizza. Temos orgulho dele.
— Estou impressionado com esse garoto.
Ela sorriu, pensando "É claro que está". — Aqui — ela disse,
colocando uma pilha de livros ao lado dele. — Estes devem
ser suficientes para você começar.
Ele passou os olhos pelos títulos. — Pensei que você tinha
dito que seria melhor eu começar pelos diários. Isso aqui é
história geral.
— Eu sei. Mas você não quer entender primeiro o período
em que viviam?
Ele vacilou. — Acho que sim — ele admitiu.
— Bom — ela disse. Distraidamente, ela puxou a manga do
suéter. — E eu descobri um livro com histórias de fantasmas
que talvez possa interessá-lo. Tem um capítulo no livro que
fala de Cedar Creek.
— Que ótimo.
— Bom, vou deixar você começar seu trabalho. Daqui a
pouco eu volto para ver se está precisando de mais alguma
coisa.
— Você não vai ficar?
— Não. Como lhe disse antes, tenho muito trabalho para
fazer. Agora, você pode ficar aqui, ou pode sentar em uma
das mesas do salão principal. Mas agradeceria se não tirasse
os livros deste lugar. Nenhum desses livros, especialmente,
pode sair daqui.
— Eu não me atreveria — ele disse.
— Agora, se me der licença, sr. Marsh, eu realmente
preciso ir. E lembre-se de que, apesar de a biblioteca ficar
aberta até às sete, a sala dos livros raros fecha às cinco.
— Até para os amigos?
— Aí, não. Eu os deixo ficar o tempo que quiserem.
— Então eu a vejo às sete?
— Não, sr. Marsh. Eu o vejo às cinco.
Ele riu. — Talvez amanhã você me deixe ficar até mais
tarde. Ela ergueu as sobrancelhas sem responder, depois
caminhou alguns passos até a porta.
— Lexie?
Ela se virou. — Sim?
— Você ajudou muito até agora. Obrigado.
Ela exibiu um sorriso adorável, genuíno. — Não tem de quê.

Jeremy passou as horas seguintes examinando informações
sobre a cidade. Ele folheou os livros um por um,
demorando-se nas fotografias e lendo as partes que achava
apropriadas.
A maior parte das informações referia-se às histórias dos
primórdios da cidade, e ele anotou o que considerou serem
observações relevantes no bloco de papel que tinha a seu
lado. E claro que ele não tinha muita certeza sobre o que
seria relevante àquela altura, ainda era cedo para dizer; e,
assim, suas anotações encheram algumas páginas.
Ele tinha aprendido com a própria experiência que a melhor
maneira de abordar uma história como aquela era
começando pelo que ele sabia. Assim... o que ele sabia com
certeza? Que o cemitério tinha sido usado por
aproximadamente um século, sem que se tivesse visto
qualquer luz misteriosa. Que as luzes apareceram pela
primeira vez há cerca de um século e que apareciam
regularmente, mas apenas quando o tempo estava nebuloso.
Que muitas pessoas haviam visto, o que significava que era
pouco provável que as luzes fossem mero fruto da
imaginação. E, é claro, que o cemitério estava afundando.
Assim, mesmo depois de algumas horas, ele não sabia muito
mais do que quando começara. Como a maioria dos
mistérios, era um quebra-cabeça com muitas peças
discrepantes. A lenda, tivesse Hettie amaldiçoado ou não a
cidade, era essencialmente uma tentativa de unir algumas
peças de maneira compreensível. Mas como a lenda tinha
em sua base uma coisa falsa, significava que algumas peças
— quaisquer que fossem — ou estavam sendo
superestimadas ou ignoradas. E isso significava, é claro, que
Lexie estava certa. Ele tinha de ler tudo para não deixar
passar nada.
Sem problemas. Na verdade, essa era a parte agradável. A
busca da verdade era sempre mais divertida do que ficar
escrevendo a verdadeira conclusão, e ele se viu mergulhado
no assunto. Descobriu que Boone Creek havia sido fundada
em 1729, o que a tornava uma das cidades mais velhas do
estado, e durante muito tempo não fora nada além de um
pequeno vilarejo às margens do rio Pamlico e do córrego
Boone. Mais tarde, ainda no mesmo século, tornou-se um
pequeno porto do sistema hidroviário do interior do estado;
o crescimento da cidade foi acelerado pelo uso de barcos a
vapor em meados dos anos 1800. Perto do final do século
XIX, o boom ferroviário atingiu a Carolina do Norte; as
florestas foram arrasadas enquanto os animais de caça
sumiram. A cidade foi mais uma vez afetada, devido à sua
localização como porta de saída para as ilhotas do Outer
Banks. Depois disso, a tendência da cidade foi acompanhar
os picos de desenvolvimento da economia no resto do
estado, apesar de a população ter se mantido estável até
aproximadamente 1930. De acordo com o censo mais
recente, a população da cidade tinha, na verdade, sofrido
uma queda, o que não o surpreendia nem um pouco.
Ele também leu a respeito do cemitério no livro de histórias
de fantasmas. Nessa versão, Hettie tinha amaldiçoado a
cidade, não porque os corpos do cemitério haviam sido
removidos, mas porque ela havia se recusado a sair do
caminho e seguir pela estrada, quando a mulher de um dos
políticos se aproximou dela, vindo em sentido contrário.
Contudo, por ser considerada quase uma figura espiritual em
Watts Landing, ela acabou escapando da prisão; então,
alguns dos maiores racistas da cidade decidiram resolver esse
assunto com as próprias mãos e causaram enormes estragos
ao cemitério dos negros. Num acesso de cólera, Hettie
amaldiçoou o Cemitério de Cedar Creek e jurou que seus
ancestrais iriam vagar pela área do cemitério, até que ele
fosse completamente engolido pela terra.
Jeremy recostou-se na cadeira, pensando. Três versões
completamente diferentes de uma lenda essencialmente
idêntica. Ficou imaginando o que significaria aquilo.
O interessante era que o autor do livro — A. J. Morrisson —
havia acrescentado um pósfacio, em itálico, afirmando que o
cemitério de Cedar Creek tinha realmente começado a
afundar. De acordo com pesquisas, as bases do cemitério
haviam afundado cerca de meio metro; o autor não dava
qualquer explicação.
Jeremy verificou a data da publicação. O livro tinha sido
escrito em 1954, e pelo estado do cemitério atualmente, ele
deduzia que afundara pelo menos mais um metro desde
então. Ele fez uma anotação para lembrar de verificar se
havia pesquisas relativas àquele período, assim como
qualquer outra, feita mais recentemente.
Todavia, enquanto absorvia as informações, ele não
conseguia deixar de olhar por cima do ombro vez por outra,
contando com a possibilidade remota de Lexie ter voltado.

No outro lado da cidade, na passagem para o décimo quarto
buraco e com o celular colado na orelha, o prefeito
procurava entender, através do barulho dos sinais
provocados pela estática, o que estavam falando do outro
lado da linha. A recepção era ruim nesse lado da cidade, e o
prefeito ficou imaginando se levantar seu taco de média
distância acima da cabeça poderia ajudar a entender melhor
o que estava sendo dito.
— Ele esteve no Herbs? Hoje no almoço? Você falou
Primetime Live!
Ele assentiu com a cabeça, fingindo que não tinha percebido
que seu companheiro de golfe, que por sua vez estava
fingindo que procurava a bolinha de sua última tacada, tinha
acabado de tirar a bola de trás de uma árvore para deixá-la
numa posição melhor.
— Encontrei! — gritou o amigo, começando a se preparar
para a tacada seguinte.
O amigo do prefeito fazia coisas iguais àquela o tempo todo,
o que francamente não incomodava em nada o prefeito, já
que ele também fazia coisas assim. Seria impossível manter
sua desvantagem de três pontos de outra forma.
Entrementes, enquanto a pessoa que havia feito a chamada
concluía a conversa, seu amigo arremessou a bola na direção
das árvores novamente.
— Maldição! — ele gritou. O prefeito o ignorou.
— Bom, isso é realmente interessante — disse o prefeito, sua
mente fervilhando com as possibilidades — e fico muito
feliz por você ter ligado. Agora, tome cuidado. Tchau.
Ele fechou o celular no instante em que seu amigo se
aproximava.
— Espero que você invente uma boa mentira agora.
— Eu não ficaria tão preocupado — disse o prefeito,
avaliando os repentinos acontecimentos na cidade. —
Tenho certeza de que vai acabar exatamente onde você
quer.
— E quem era no telefone?
— O destino — ele anunciou. — E se jogarmos direito, pode
ser nossa salvação.

Duas horas depois, quando o sol se punha atrás das copas das
árvores e as sombras começavam a se estender pelas janelas,
Lexie enfiou a cabeça na entrada da sala de livros raros.
— Como está indo?
Olhando por cima do ombro, Jeremy sorriu. Afastando-se da
mesa, ele passou a mão pelo cabelo. — Bem — ele disse. —
Descobri muitas coisas.
— Você já tem a resposta mágica?
— Não, mas estou chegando perto. Dá pra sentir.
Ela entrou na sala. — Que bom. Mas, como eu já lhe disse,
normalmente fecho este lugar às cinco, para poder me
dedicar às pessoas que passam por aqui depois do trabalho.
Ele ficou em pé ao lado da mesa. — Sem problemas. Estou
ficando um pouco cansado, de qualquer forma. Foi um
longo dia.
— Você vai voltar amanhã de manhã, certo?
— É o que eu estava planejando. Por quê?
- Bem, normalmente eu coloco tudo de volta nas prateleiras
diariamente.
— Será que pode deixar a pilha de livros exatamente do jeito
que está, por enquanto? Tenho certeza de que vou precisar
rever a maioria deles.
Ela pensou um pouco. — Acho que não tem problema. Mas
tenho de avisá-lo de que se não aparecer logo cedinho, vou
achar que me enganei com você.
Ele assentiu com a cabeça, parecendo solene. — Eu prometo
que não vou deixar você esperando. Eu não sou esse tipo de
cara.
Ela girou os olhos, pensando "Meu Deus!". Como ele era
persistente. Isso ela tinha de admitir. — Tenho certeza de
que diz isso para todas as garotas, sr. Marsh.
— Não — ele disse, apoiando-se na mesa. — Para falar a
verdade, eu sou muito tímido. Quase um eremita... Sério. Eu
quase não saio.
Eia deu de ombros. — Apenas mostra o que eu já sei.
Considerando que você é um jornalista da cidade grande, eu
já o tinha imaginado como um sedutor.
— E isso a incomoda?
— Não.
— Ótimo. Porque, como você sabe, a primeira impressão
pode enganar.
— Ah, eu percebi isso imediatamente.
— É mesmo?
— Claro — ela disse. — Quando o encontrei pela primeira
vez no cemitério, achei que estivesse lá por causa de algum
funeral.



Capítulo
CINCO

Quinze minutos mais tarde, depois de andar por uma estrada
de asfalto que levava a outra estrada de cascalho — eles
certamente adoravam cascalho por ali —, Jeremy estacionou
o carro no meio de um pântano, exatamente na frente de
uma placa pintada à mão que dizia Greenleaf Cottages. O que
o lembrou de que nunca deveria confiar nas promessas da
Câmara de Comércio local.
Moderno, definitivamente não era. Não deveria ter sido
moderno nem trinta anos atrás. Ao todo, havia seis
pequenos chalés dispostos ao longo do rio. Com a pintura
descascando, as paredes feitas de tábuas de madeira e teto de
zinco, o acesso a eles se dava através de pequenas trilhas
cheias de sujeira que saíam de um chalé localizado no
centro, e que ele imaginou ser o escritório central. Era
pitoresco, ele tinha de admitir, mas o aspecto rústico
certamente devia ser creditado aos mosquitos e jacarés,
nenhum dos quais despertava nele muito entusiasmo para
permanecer ali.
Enquanto estava pensando se devia sequer se dar ao trabalho
de registrar-se — ele havia passado por alguns hotéis de
redes hoteleiras de Washington, há cerca de quarenta e
cinco minutos de distância de Boone Creek —, ele ouviu o
barulho de um motor vindo pela estrada e viu quando um
Cadillac marrom veio em sua direção, chacoalhando
violentamente nos buracos. Para sua surpresa, o carro parou
diretamente ao lado do seu, levantando pedras na freada.
Um homem gordo e careca abriu a porta do carro com
violência, parecendo agitado. Vestindo calça de poliéster
verde e um suéter de gola alta azul, o homem parecia ter
escolhido as roupas no escuro.
— Sr. Marsh?
Jeremy foi pego de surpresa: — Sim?
Com uma corridinha, o homem deu a volta em torno do
carro. Tudo nele parecia mover-se rapidamente.
— Bom, que bom que eu o alcancei antes de se registrar no
hotel! Queria ter a chance de conversar com o senhor! Nem
sei como lhe dizer o quanto estamos entusiasmados com a
sua visita!
Ele parecia sem fôlego ao estender a mão e sacudir a de
Jeremy vigorosamente.
— Eu o conheço? — Jeremy perguntou.
— Não, não, é claro que não. — O homem riu. — Sou o
prefeito Tom Gherkin. Pode me chamar de Tom — ele riu
de novo. — Eu só queria passar por aqui para lhe dar as
boas-vindas à nossa pacata cidade. Desculpe por aparecer
assim. Eu o teria recebido no escritório lá na cidade, mas
vim direto do campo de golfe, assim que soube que estava
aqui.
Jeremy examinou-o novamente, ainda em estado de choque.
Pelo menos isso explicava a roupa.
— O senhor é o prefeito?
— Tenho sido desde 1994. É uma espécie de tradição na
família. Meu pai, Owen Gherkin, foi o prefeito daqui
durante vinte e quatro anos. Interessava-se muito pela
cidade, o meu pai. Sabia tudo o que era preciso saber a
respeito deste lugar. É claro que ser prefeito é apenas um
trabalho de meio período por aqui. É mais uma posição
honorária. Eu sou mais uma espécie de homem de negócios,
se quer saber a verdade. Sou o dono da loja de
departamentos e da estação de rádio da cidade. Velha-
guarda. O senhor gosta da velha-guarda?
— Claro — disse Jeremy.
— Bom, bom. Percebi isso assim que pus os olhos no
senhor. Disse para mim mesmo "Aí está um homem que
aprecia a boa música". Eu não agüento a maior parte desse
negócio novo que todo mundo chama de música
atualmente. Me dá dor de cabeça. A música deveria
confortar a alma. Entende o que eu quero dizer?
— Claro — Jeremy repetiu, tentando acompanhar.
Ele riu. — Eu sabia que sim. Bom, como eu disse, nem sei
como lhe dizer como estamos emocionados por estar aqui
para escrever uma história sobre a nossa tranqüila cidade. É
exatamente o que esta cidade precisa. Quer dizer, quem não
gosta de uma boa história de fantasmas, certo? Deixa o
pessoal bem animado por aqui, isso é certo. Primeiro os
camaradas da Duke, depois o jornal da região. E agora um
jornalista da cidade grande. A notícia está se espalhando, e
isso é bom. Puxa, na semana passada ligou um grupo do
Alabama para dizer que estavam pensando em vir passar uns
dias aqui e neste fim de semana fazer o Passeio pelas Casas
Históricas.
Jeremy sacudiu a cabeça, tentando desacelerar o ritmo. —
Como ficou sabendo que eu estava aqui?
O prefeito Gherkin colocou uma mão amigável em seu
ombro, e antes mesmo que Jeremy percebesse, eles estavam
caminhando em direção ao chalé do escritório. — As
notícias correm, sr. Marsh. Passam como um rojão. Foi
sempre assim, e sempre será. É parte do encanto deste lugar.
Isso, e a beleza natural. Sabe que nós temos algumas das
melhores pescarias e também a melhor caça ao pato do
estado? Vem gente de toda parte, até gente famosa, e a
maioria fica bem aqui, em Greenleaf. Isso aqui é um pe-
queno pedaço do paraíso, se quiser saber o que eu acho. Seu
próprio chalé sossegado, bem aqui no meio da natureza.
Puxa, você vai poder ouvir passarinhos e grilos a noite
inteira. Aposto que vai fazer você enxergar aqueles hotéis de
Nova Iorque de um modo inteiramente novo.
— Vai mesmo — Jeremy admitiu. O homem era
definitivamente um político.
— E não precisa se preocupar nem um pouco com as
cobras. Jeremy arregalou os olhos. — Cobras?
— Tenho certeza de que já ouviu falar, mas acredite que
toda aquela confusão do ano passado foi apenas um mal-
entendido. Alguns camaradas simplesmente não têm um
pingo de bom senso. Mas como eu lhe disse, não se
preocupe com elas. Normalmente, as cobras não saem até o
verão, de qualquer forma. Ê claro, não vá sair por aí
cutucando os arbustos ou algo parecido, procurando por
elas. Essas serpentes podem ser desagradáveis.
— Ah — Jeremy falou, tentando elaborar uma resposta em
meio à imagem que havia se formado em sua mente. Ele
odiava cobras. Mais ainda que mosquitos e jacarés. — Para
falar a verdade, eu estava pensando...
O prefeito Gherkin suspirou profunda e tão sonoramente
que interrompeu a resposta de Jeremy, então olhou em
volta, como para se certificar de que Jeremy estava
percebendo o quanto ele apreciava a paisagem ao redor. —
Então, Jeremy, me diga... você não se importa que eu o cha-
me de Jeremy?
— Não.
— É muita gentileza sua. Muita gentileza. Então, Jeremy, eu
estava pensando se você acha que um desses programas de
televisão poderia complementar a sua história por aqui.
— Eu não faço idéia — ele disse.
— Bom, porque se puderem, nós estenderíamos o tapete
vermelho para eles. Mostraríamos como é a verdadeira
hospitalidade do Sul. Puxa, nós os colocaríamos bem aqui
em Greenleaf, sem cobrar nada. E, é claro, eles teriam uma
história fantástica para mostrar. Muito melhor do que aquilo
que você fez no Primetime Live. O que nós temos aqui é de
verdade.
— Será que o senhor entende que, antes de mais nada, eu
escrevo para uma coluna? Normalmente, eu não tenho nada
a ver com a televisão...
— Não, claro que não — o prefeito Gherkin piscou o olho,
deixando claro que não acreditava. — Faça o que tem de
fazer, e vamos ver o que acontece.
— Estou falando sério — Jeremy disse.
Ele piscou de novo. — É claro que
está.
Jeremy não tinha muita certeza sobre o que poderia dizer
para dissuadi-lo — principalmente porque o homem poderia
estar certo — e no instante seguinte o prefeito Gherkin já
estava abrindo a porta do escritório. Se é que se poderia
chamar assim.
Parecia que aquele lugar não era reformado há séculos, e as
paredes de madeira lembraram-no do que poderia encontrar
numa cabana da floresta. Um pouco além da mesa instável
havia um peixe serranídeo de boca enorme, pendurado na
parede; em cada canto, ao longo das paredes, e em cima do
arquivo e da mesa havia bichos empalhados: castores,
coelhos, esquilos, gambás, doninhas e um texugo. Ao
contrário da maioria das montagens desse tipo que ele já
vira, entretanto, todos os bichos tinham sido colocados
como se estivessem encurralados e tentando se defender. As
bocas estavam como que rosnando, os corpos arqueados, os
dentes e patas expostos. Jeremy ainda estava absorvendo as
imagens quando deu com um urso no canto e pulou
assustado. Assim como os outros animais, as patas do urso
estavam estendidas como se ele fosse atacar. O lugar parecia
o Museu de História Natural, transformado em um filme de
terror e trancado num armário.
Atrás da mesa, um homem enorme e barbudo estava
sentado com os pés para cima, uma televisão na frente dele.
A imagem tinha chuviscos e umas linhas verticais
atravessavam a tela a cada segundo, fazendo com que fosse
quase impossível ver o que estava passando.
O homem ficou em pé atrás da mesa e continuou a levantar-
se, agigantando-se diante de Jeremy. Ele devia ter mais de
dois metros, e seus ombros eram mais largos que os do urso
empalhado no canto. Vestido com um macacão e uma
camisa xadrez, ele pegou uma prancheta e a colocou sobre a
mesa.
Ele apontou para Jeremy e para a prancheta. Não sorriu; para
todos os efeitos, parecia que ele não queria outra coisa senão
arrancar os braços do corpo de Jeremy, a fim de usá-los para
bater nele, antes de o empalhar e colocar na parede.
Gherkin, como era de se prever, riu. O homem ria bastante,
Jeremy percebeu.
— Não precisa ficar nem um pouco preocupado com ele,
Jeremy — o prefeito falou correndo. — O Jed não é de falar
muito com estranhos. É só preencher a ficha, e poderá
seguir seu caminho para o seu próprio quartinho no paraíso.
Jeremy mantinha os olhos arregalados presos em Jed,
pensando que o homem era a pessoa mais assustadora que já
havia visto na vida.
— Além de ser o proprietário do Greenleaf e de trabalhar na
assembléia da cidade, ele é o taxidermista da região —
continuou Gherkin. — O trabalho dele não é incrível?
— Incrível — Jeremy disse, forçando um sorriso.
— Se matar qualquer coisa por aqui, procure o Jed. Ele vai
fazer um ótimo serviço.
— Vou tentar me lembrar disso.
O prefeito ficou subitamente animado. — Você caça, não?
— Não muito, para ser honesto.
— Bom, talvez a gente mude isso enquanto está por aqui.
Eu já falei que a caça ao pato por aqui é espetacular, não
falei?
Enquanto Gherkin falava, Jed bateu com seu dedo enorme
na prancheta de novo.
— Escuta, não tente intimidar nosso camarada — interferiu
o prefeito Gherkin. — Ele é de Nova Iorque. É um jornalista
da cidade grande, por isso trate ele direito.
O prefeito Gherkin voltou sua atenção para Jeremy
novamente. — E, Jeremy, só pra você saber, a cidade terá
prazer em pagar por suas acomodações por aqui.
— Isso não é necessário...
— Nem mais uma palavra — ele disse, ignorando a ofensa.
— A decisão já foi tomada pelos manda-chuvas — ele
piscou. — Que sou eu, por acaso. Mas é o mínimo que
podemos fazer por um convidado tão ilustre.
— Bem, obrigado.
Jeremy pegou a caneta. Começou a preencher a ficha de
registro, sentindo os olhos de Jed em cima dele e com medo
do que poderia acontecer se mudasse de idéia sobre ficar ali.
Gherkin inclinou-se sobre seu ombro.
— Eu já lhe disse o quanto estamos emocionados por tê-lo
em nossa cidade?

Do outro lado da cidade, em uma casinha branca com
persianas azuis, em uma rua tranqüila, Dóris estava
refogando bacon, cebola e alho, enquanto uma panela com
macarrão fervia em outra boca do fogão. Lexie estava
picando tomates e cenouras sobre a pia, lavando-as
enquanto executava a tarefa. Depois de ter saído da
biblioteca, ela passara na casa de Dóris, como fazia
normalmente algumas vezes por semana. Apesar de ter sua
própria casa ali perto, freqüentemente jantava na casa de sua
avó. Velhos hábitos não mudam, e coisas assim.
No beiral da janela, o rádio tocava jazz, e além da conversa
rotineira, típica dos membros de uma família, nenhuma das
duas tinha dito muita coisa. Para Dóris, o assunto era o longo
dia no trabalho. Desde que sofrera um ataque do coração
dois anos atrás, ela se cansava com mais facilidade, mesmo
que não quisesse admitir isso. Para Lexie, o assunto era
Jeremy Marsh, apesar de estar calejada para saber que não
devia comentar nada com Dóris, pois ela sempre se
interessara demais por sua vida pessoal, e Lexie tinha
aprendido que era melhor evitar o assunto sempre que
possível.
Lexie sabia que sua avó não fazia por mal. Dóris
simplesmente não entendia porque uma pessoa de trinta
anos ainda não tinha se assentado, e ela havia chegado num
ponto em que estava sempre se perguntando porque é que
Lexie ainda não estava casada. Apesar de muito astuta, Dóris
era antiquada; ela havia casado aos vinte e passara os
quarenta anos seguintes com um homem que adorava, até
ele morrer, três anos atrás. Lexie tinha sido criada pelos
avós, no final das contas, e podia muito bem condensar toda
a lengalenga de Dóris em apenas alguns poucos pensa-
mentos: já estava na hora de encontrar um bom rapaz,
assentar o juízo, mudar para uma casa com cerca de madeira
branca e ter bebês.
O desejo de Dóris não era assim tão estranho, Lexie sabia.
Por ali, pelo menos, era isso o que se esperava das mulheres.
E quando se permitia ser franca consigo mesma, Lexie às
vezes também desejava ter uma vida assim. Pelo menos na
teoria. Mas ela queria primeiro encontrar o homem certo,
alguém que a inspirasse, o tipo de homem que ela teria
orgulho de chamar de seu homem. Era nisso que ela e Dóris
divergiam. Dóris parecia achar que um homem de bem,
decente, e com um bom emprego era tudo o que uma
mulher sensata poderia desejar. E, talvez no passado, essas
fossem as qualidades que se poderia esperar. Mas Lexie não
queria ficar com alguém apenas por ele ser bom e decente e
ter um bom emprego. Quem sabe — talvez ela tivesse
expectativas irreais —, mas Lexie também queria se sentir
apaixonada por ele. Não importava a bondade ou o senso de
responsabilidade, se ela não se sentisse apaixonada por esse
homem, não conseguiria evitar a sensação de que estaria se
acomodando a alguém, e ela não queria se acomodar. Isso
não seria justo com ela e não seria justo com ele. Ela queria
um homem que fosse sensível e bom, mas que conseguisse
arrebatá-la completamente. Queria alguém que lhe
oferecesse uma massagem nos pés depois de um longo dia
na biblioteca, mas que também a desafiasse
intelectualmente. Um homem romântico, é claro, alguém
capaz de lhe comprar flores, sem que houvesse qualquer
razão para isso.
Não era pedir muito, era?
De acordo com a Glamour, a Ladies home Journal e a Good
housekeeping — a biblioteca recebia essas revistas — era.
Nessas revistas, parecia que cada artigo declarava que cabia
inteiramente à mulher fazer com que a relação fosse sempre
estimulante. Mas uma relação não deveria ser exatamente
isso? Uma relação? Com ambos os parceiros fazendo tudo o
que estivesse à seu alcance para manter o outro satisfeito?
Veja, esse era o problema enfrentado por muitos casais que
ela conhecia. Em qualquer casamento, era preciso equilibrar
delicadamente o que você gostaria de fazer e o que o seu
companheiro gostaria de fazer, e enquanto o marido ou a
mulher estivessem fazendo o que o outro queria, nunca
havia problema. Os problemas surgiam quando as pessoas
começavam a fazer o que queriam sem se importar com o
outro. Um marido que decidia de uma hora para outra que
precisava de mais sexo e saía procurando fora do casamento;
uma mulher que decidia que precisava de mais afeto, o que
acabava levando-a a fazer exatamente a mesma coisa. Um
bom casamento, como qualquer sociedade, significava a
subordinação de suas próprias necessidades às da outra
pessoa, na expectativa de que o outro fosse agir da mesma
maneira. E enquanto ambos os parceiros mantivessem sua
parte no acordo, tudo estaria bem no mundo.
Mas se você não sentisse nenhuma paixão por seu marido,
será que poderia esperar uma coisa dessas? Ela não tinha
certeza. Dóris, é claro, tinha uma resposta pronta. "Acredite
em mim, querida, isso passa depois dos primeiros anos", ela
diria, apesar do fato de que, na cabeça de Lexie, de qualquer
forma, seus avós haviam tido o tipo de relacionamento que
qualquer um invejaria. Seu avô era um daqueles homens
naturalmente românticos. Até o final, ele abria a porta do
carro para Dóris e segurava sua mão quando caminhavam
pela cidade. Ele fora totalmente dedicado e fiel a ela. Era
óbvio que ele a adorava e estava sempre comentando como
tivera a sorte de encontrar uma mulher como ela. Depois de
sua morte, uma parte de Dóris também começou a morrer.
Primeiro, o ataque cardíaco; agora, a piora da artrite. Era
como se eles tivessem sido feitos um para o outro. Qual seria
o significado disso, quando ligado ao conselho de Dóris?
Significaria que Dóris simplesmente tivera sorte por
encontrar um homem como ele? Ou ela teria visto alguma
coisa em seu marido, algo que depois confirmaria que ele era
o homem certo para ela?
Agora, o que teria levado Dóris a sequer pensar em
casamento novamente?
Provavelmente, o fato de estar ali na casa de Dóris, a casa
onde tinha sido criada depois da morte de seus pais.
Cozinhando ao lado dela, Lexie sentia uma familiaridade
reconfortante, e se lembrava de ter crescido pensando que
um dia viveria numa casa como aquela. Tábuas de madeira
gastas; teto de zinco que amplificava o barulho da chuva,
como se toda a chuva do mundo estivesse caindo ali; janelas
antiquadas, com caixilhos que haviam sido pintados tantas
vezes que era quase impossível abri-las. E ela realmente
morava numa casa como aquela. Bom, mais ou menos, de
qualquer forma. À primeira vista, poderia parecer que a casa
de Dóris e a sua eram parecidas — elas haviam sido
construídas na mesma época —, mas ela jamais havia
conseguido reproduzir os aromas. Os cozidos das tardes de
domingo, o cheiro dos lençóis secados ao sol, o odor
levemente abafado da velha cadeira de balanço onde seu avô
havia descansado durante anos. Odores como esses refletiam
um estilo de viver sereno, com muita tranqüilidade ao longo
dos anos; e toda vez que abria as portas daquela casa, ela era
invadida pelas lembranças vívidas da infância.
Naturalmente, sempre havia imaginado que àquela altura
teria sua própria família, talvez até filhos, mas não tinha
dado certo. Dois de seus relacionamentos haviam chegado
bem perto: houve o longo relacionamento com Avery, que
tinha começado na faculdade, e, depois desse, um outro
envolvendo um jovem de Chicago, que viera visitar um
primo em Boone Creek no verão. Ele era o clássico homem
da Renascença: falava quatro línguas, havia passado um ano
estudando na School of Economics de Londres, e pagara
todos os seus estudos com uma bolsa que conseguira por ser
bom jogador de baseball. O sr. Renascença era charmoso e
exótico, e ela se apaixonara por ele rapidamente. Ela
acreditou que ele ficaria ali, achou que ele tivesse aprendido
a amar a cidade tanto quanto ela, mas, ao acordar num
sábado de manhã, ficou sabendo que ele estava voltando
para Chicago. Ele jamais se preocupou em se despedir pelo
menos.
E depois disso? Nada demais, para dizer a verdade. Houve
dois namoricos que duraram mais ou menos seis meses, e
sobre os quais ela nunca pensou muito a respeito, depois que
acabaram. Um deles tinha sido com um médico da cidade, o
outro com um advogado; os dois a haviam pedido em
casamento, porém, novamente, ela não sentira a magia ou a
emoção, ou o que quer que fosse que se devia sentir, para
saber que não seria mais necessário continuar procurando.
Nos últimos anos, ela havia tido muito menos encontros e
muito mais espaçados, a menos que se levasse em
consideração Rodney Hopper, assistente do xerife na cidade.
Eles haviam saído uma dezena de vezes, mais ou menos uma
vez por mês, sempre que havia um evento beneficente do
qual ela se animava a participar. Como ela, Rodney também
havia nascido e crescido ali, e quando eram crianças
costumavam brincar na gangorra que ficava atrás da igreja
episcopal. Ele passara a vida tentando conquistá-la e
freqüentemente a convidava para beber alguma coisa no
Lukilu. Às vezes, ela se perguntava se não seria melhor
simplesmente ceder e aceitar seu pedido para sair com ele
mais vezes, mas Rodney... bem, ele gostava um pouco
demais de pescar e caçar e levantar peso, e não demonstrava
um interesse minimamente razoável por livros e pelo que
acontecia no resto do mundo. Mas ele era um sujeito
bacana, e ela achava que ele daria um ótimo marido. Mas
não para ela. Sendo assim, aonde é que ela iria parar?
Ali na casa de Dóris, três vezes por semana, ela pensou, à
espera das inevitáveis perguntas sobre sua vida amorosa.
— Então, o que achou dele? — Dóris perguntou, nesse
exato momento. Lexie não conseguiu evitar o sorriso. —
Quem? — ela perguntou, fazendo-se de inocente.
— Jeremy Marsh. De quem você acha que eu estava falando?
— Eu não faço a menor idéia. Foi por isso que fiz a pergunta.
— Não tente evitar o assunto. Eu soube que ele passou
algumas horas na biblioteca.
Lexie deu de ombros. — Ele pareceu uma pessoa agradável.
Eu o ajudei a encontrar alguns livros para começar sua
pesquisa, e isso foi tudo.
— Você não conversou com ele?
— É claro que conversamos. Como você disse, ele ficou lá
durante algum tempo.
Dóris ficou esperando que Lexie dissesse mais alguma coisa,
mas como isso não aconteceu, soltou um suspiro profundo.
— Bom, eu gostei dele — Dóris falou. — Ele me pareceu um
perfeito cavalheiro.
— Ah, isso foi — Lexie concordou. — Simplesmente
perfeito.
— Você não me parece muito convincente.
— O que mais você quer que eu diga?
— Bem, ele ficou encantado com sua personalidade
fascinante?
— Por que cargas d'água isso teria alguma importância? Ele
só vai ficar na cidade por alguns dias.
— Alguma vez eu lhe falei a respeito do dia em que conheci
seu avô?
— Várias vezes — Lexie respondeu, lembrando-se
perfeitamente da história. Eles haviam se conhecido em um
trem que ia para Baltimore; ele era de Grifton e estava a
caminho de uma entrevista para um emprego, um emprego
que ele jamais assumiria, preferindo ficar com ela.
— Então você sabe que é muito provável que você conheça
alguém quando menos espera.
— Você sempre diz isso.
Dóris piscou. — Só porque eu acho que você precisa estar
sempre ouvindo isso.
Lexie colocou a travessa com a salada na mesa. — Você não
precisa se preocupar comigo. Eu sou feliz. Adoro o meu
trabalho, tenho ótimos amigos, tenho tempo para ler e para
me exercitar e fazer as coisas de que gosto.
— E não se esqueça também da bênção que é você me ter ao
seu lado.
— É claro — Lexie concordou. — Como que poderia
esquecer isso?
Dóris deu um risinho de satisfação e voltou para o fogão. Por
alguns momentos, a cozinha ficou em silêncio, e Lexie
soltou um suspiro de alívio. Pelo menos aquele assunto
estava encerrado, e felizmente Dóris não havia insistido
muito. Agora, ela pensou, poderiam ter um jantar agradável.
— Eu acho que ele é muito bem-apessoado — Dóris falou.
Lexie ficou quieta; em vez de falar qualquer coisa, pegou
dois pratos e talheres antes de voltar para a mesa. Talvez
fosse melhor simplesmente fingir que não tinha ouvido.
— E só para você saber, ele é mais interessante do que
aparenta ser — Dóris continuou. — Ele não é o que você
está pensando.
Foi o jeito como ela falou isso o que fez Lexie vacilar. Ela já
havia ouvido aquele tom muitas vezes no passado — quando
estava no colegial e quis fazer um passeio com os amigos, e
Dóris conseguiu convencê-la a desistir de ir; quando ela quis
fazer uma viagem para Miami alguns anos atrás, e Dóris fez
com que mudasse de idéia. No primeiro caso, os amigos com
quem queria sair acabaram se envolvendo em um acidente
de carro; no segundo, uma série de tumultos tomou conta da
cidade, envolvendo o hotel em que ela pretendia ficar
hospedada.
Dóris às vezes tinha pressentimentos, ela sabia disso. Não
com a intensidade de sua própria mãe. Mas apesar de Dóris
nunca dar muitas explicações, Lexie estava perfeitamente
consciente de que seus pressentimentos eram sempre
verdadeiros.

Completamente alheio ao burburinho das pessoas que
comentavam sua presença na cidade, congestionando as
linhas telefônicas, Jeremy estava deitado na cama sob as
cobertas, assistindo o noticiário local enquanto esperava as
notícias sobre a previsão do tempo, desejando ter seguido
seu impulso inicial de procurar outro hotel para ficar. Ele
não tinha dúvida de que se tivesse feito isso, não estaria
cercado pelas obras de Jed, que lhe causavam calafrios.
O cara certamente tinha muito tempo disponível para
manter as mãos ocupadas.
E muitas balas. Ou chumbo. Ou a dianteira de uma pick-up.
Ou o que quer que ele usasse para matar todos aqueles
animais. Em seu quarto, havia doze criaturas; havia
representantes de todas as espécies de animais da Carolina
do Norte para lhe fazer companhia, menos um segundo urso
empalhado. Mas ele não tinha dúvida de que Jed teria
colocado outro urso ali, se dispusesse de mais um.
Fora isso, o quarto não era tão ruim, desde que não se
esperasse uma conexão rápida de internet, ou o aquecimento
do quarto sem necessidade de acender a lareira, ou mesmo
chamar o serviço de quarto, assistir TV a cabo, ou ainda
fazer uma ligação num telefone de teclas. Ele não via um
telefone com disco há quanto tempo? Dez anos? Até sua
mãe havia sucumbido ao mundo moderno nesse aspecto.
Mas não o Jed. Não, senhor. O bom e velho Jed certamente
tinha suas próprias idéias a respeito do que era importante
no que dizia respeito às acomodações de seus hóspedes.
Se havia uma coisa decente em relação àquele quarto,
entretanto, era a bela varanda coberta nos fundos, que dava
para o rio. Tinha até uma cadeira de balanço, e Jeremy
chegou a pensar em ficar sentado lá fora, até se lembrar das
cobras. O que o levou a pensar sobre que espécie de mal-
entendido Gherkin estivera falando. Ele não gostava daquilo.
Ele realmente deveria ter feito mais perguntas, assim como
deveria ter descoberto onde é que poderia encontrar
madeira para a lareira por ali. Aquele lugar era
absolutamente congelante, mas ele tinha a divertida suspeita
de que
Jed não atenderia o telefone, se ele tentasse falar com o
escritório para fazer algum pedido. Além do mais, Jed o
aterrorizava.
Nesse momento, entrou a previsão do tempo no noticiário.
Revestindo-se de coragem, Jeremy saiu da cama para
aumentar o volume. Movimentando-se com a maior rapidez
possível, ele tremia ao mexer no botão, voltando
rapidamente para debaixo das cobertas.
O moço da meteorologia foi substituído rapidamente pelos
comerciais. Palpites...
Ele estivera pensando se deveria ir até o cemitério, mas
queria descobrir qual era a probabilidade de haver neblina.
Se não houvesse, ele pretendia descansar. Tinha sido um
longo dia; havia começado no mundo moderno, retrocedera
cinqüenta anos no tempo e agora estava dormindo no meio
do frio e da morte. Certamente, isso não era algo que lhe
acontecia todos os dias.
E, é claro, havia Lexie. Lexie qualquer-que-fosse-seu-
sobrenome. Lexie, a misteriosa. Lexie, que flertava e recuava
e flertava de novo.
Ela tinha flertado, não tinha? O modo como insistia em
chamá-lo de sr. Marsh? O fato de ter fingido que o havia
analisado quase que imediatamente? A observação sobre o
funeral? Definitivamente, isso era flerte.
Não era?
O moço da previsão do tempo apareceu novamente na tela,
com cara de quem tinha acabado de sair da faculdade. O
rapaz não devia ter mais do que vinte e três ou vinte e
quatro anos, e não havia dúvida de que esse era seu primeiro
emprego. Ele tinha aquela aparência espantada de um animal
pego de surpresa, mas ainda assim cheio de entusiasmo. Pelo
menos o cara parecia ser competente. Ele não tropeçava nas
palavras, e Jeremy percebeu quase imediatamente que não
iria sair do quarto. A previsão era de que o céu ficaria limpo
durante toda a noite, e o homem também não dissera nada
sobre a possibilidade de haver neblina no dia seguinte.
Estimativas, ele pensou.


Capítulo
SEIS

Na manhã seguinte, depois de um banho com pingos de
água morna, Jeremy enfiou-se numa calça jeans, num suéter
e numa jaqueta de couro marrom e dirigiu-se ao Herbs, que
parecia ter o café-da-manhã mais popular da cidade. Do
balcão, ele viu o prefeito Gherkin conversando com alguns
homens de terno, e Rachel ocupada em servir as mesas. Jed
estava sentado no outro lado do salão, parecendo o lado
escuro de uma montanha. Tully estava sentado em uma das
mesas do centro com três outros homens e, como se poderia
esperar, falava praticamente sozinho. As pessoas haviam
mexido a cabeça e acenado quando Jeremy passara pelas
mesas, e o prefeito erguera sua xícara para saudá-lo.
— Bom dia, sr. Marsh — disse o prefeito Gherkin. —
Pensando em coisas positivas para escrever a respeito de
nossa cidade, eu espero.
— É claro que está — disse Rachel, intrometendo-se.
— Espero que tenha encontrado o cemitério — acrescentou
Tully. Ele se inclinou na direção dos outros que estavam na
mesa. — Aquele lá é o doutor de quem eu estava falando
para vocês.
Jeremy acenou e inclinou a cabeça como resposta, tentando
evitar que o pegassem para uma conversa. Ele nunca fora
exatamente uma pessoa matinal e, além disso, não tinha
dormido muito bem. Frio e morte, somados a pesadelos com
cobras poderiam fazer isso com uma pessoa. Ele decidiu
sentar-se em uma mesa no canto, e Rachel aproximou-se
rapidamente, levando com ela um bule de café.
— Nenhum funeral hoje? — ela provocou.
— Não. Eu decidi adotar um visual mais comum — ele
explicou.
— Café, querido?
— Por favor.
Depois de virar a xícara, ela a encheu até a borda. — Que tal
experimentar nosso especial hoje? As pessoas daqui adoram.
— O que é o especial?
— Omelete Carolina.
— Claro — ele respondeu, sem ter idéia do que pudesse vir
na omelete Carolina, mas com o estômago roncando,
qualquer coisa parecia boa.
— Com cereais e biscoito?
— Por que não? — ele perguntou.
— Estarei de volta em cinco minutos, querido.
Ele começou a tomar seu café lentamente, enquanto passava
os olhos pelo jornal do dia anterior. Por todas as suas quatro
páginas, inclusive a grande matéria da primeira página sobre
a sra. Judy Roberts, que acabara de celebrar seu centésimo
aniversário, marco que era agora alcançado por 1,1 por
cento da população. Junto com o artigo havia uma foto da
equipe que trabalhava no abrigo para idosos segurando um
bolinho com uma única vela acesa, enquanto a sra. Roberts
aparecia deitada na cama atrás deles, como se estivesse em
estado de coma.
Ele ergueu os olhos para ver pela janela, imaginando porque
haveria de se preocupar com o jornal local. Havia uma
máquina automática do lado de fora exibindo exemplares do
USA Today, e ele estava remexendo nos bolsos à procura de
algum trocado quando um policial uniformizado ocupou um
lugar na mesa exatamente na frente dele.
O homem parecia extremamente mal-humorado; seus
bíceps mantinham a camisa esticada e forçavam a costura, e
ele usava óculos de sol espelhados que estavam fora de moda
há algum tempo... quer dizer, há uns vinte anos, Jeremy
calculou, desde que o seriado CHíPs deixara de ser
apresentado. A mão dele descansava sobre o coldre, bem em
cima de uma arma. Na boca, tinha um palito de dentes, que
ele mexia de um lado para outro. Ele não disse
absolutamente nada, ficou ali parado apenas encarando,
dando a Jeremy tempo bastante para que estudasse seu
próprio reflexo.
Aquilo era, Jeremy tinha de admitir, algo intimidador.
— Posso ajudá-lo? — Jeremy perguntou.
O palito de dentes se mexeu de um lado para outro
novamente. Jeremy fechou o jornal, imaginando que diabos
estaria acontecendo.
— Jeremy Marsh? — o policial perguntou.
— Sim?
— Foi o que pensei — ele disse.
Acima do bolso do peito do policial, Jeremy notou que havia
uma plaquinha brilhante com um nome gravado. Mais um
crachá.
— E você deve ser o xerife Hopper?
— Assistente do xerife — ele corrigiu.
— Desculpe — Jeremy falou. — Eu fiz alguma coisa errada,
policial?
— Eu não sei — Hopper respondeu. — Fez?
— Não que eu saiba.
O assistente de xerife Hopper mexeu o palito de dentes de
novo. — Está pensando em ficar por aqui algum tempo?
— Apenas uma semana. Eu vim para escrever um artigo...
— Eu sei por que está aqui — Hopper interrompeu. — Eu
só pensei em verificar pessoalmente. Eu gosto de fazer uma
visita a estranhos que estejam planejando ficar por aqui
durante algum tempo.
Ele colocou a ênfase na palavra "estranhos", fazendo com
que Jeremy sentisse que isso era uma espécie de crime. Ele
não tinha muita certeza de que haveria alguma resposta
capaz de dissipar a hostilidade, por isso recostou-se na
cadeira e limitou-se ao óbvio.
— Sei — ele disse.
— Ouvi dizer que pretende passar bastante tempo na
biblioteca.
— Bem... talvez eu passe...
— Hummm — o policial ruminou, cortando o que ia dizer.
Jeremy pegou sua xícara de café e tomou um gole, para
ganhar algum tempo. — Desculpe, policial Hopper, mas eu
não tenho muita certeza sobre o que está acontecendo aqui.
— Hummm — Hopper ruminou novamente.
— Você não está incomodando nosso convidado, está,
Rodney? — o prefeito falou do outro lado do salão. — Ele é
um visitante especial, está aqui para despertar o interesse
pelo folclore local.
O policial Hopper não piscou ou tirou seus olhos de cima de
Jeremy. Qualquer que fosse a razão, ele parecia
absolutamente zangado. — Apenas batendo um papo,
prefeito.
— Bem, deixe o homem tomar o seu café-da-manhã —
disse Gherkin, repreendendo-o enquanto caminhava na
direção da mesa. Ele acenou com a mão. — Venha até aqui,
Jeremy. Há algumas pessoas que eu gostaria que você
conhecesse.
O policial Hopper franziu a testa, contrariado, quando
Jeremy se levantou e deixou a mesa, caminhando em
direção ao prefeito Gherkin.
Quando estava perto, o prefeito o apresentou a duas pessoas;
uma delas era o cadavérico advogado da prefeitura, e a outra
era um médico troncudo que trabalhava no ambulatório da
cidade. Ele teve a impressão de que ambos o estavam
examinando da mesma maneira que o policial Hopper.
Fazendo uma avaliação, como eles diziam. Enquanto isso, o
prefeito continuou a falar sobre como era excitante a visita
de Jeremy para a cidade. Inclinando-se para os outros dois,
ele fez um gesto com a cabeça, como um sinal de
conspiração.
— Isso pode até acabar no Primetime Live — ele sussurrou.
— Verdade? — perguntou o advogado. Jeremy avaliou que
o cara poderia fingir tranqüilamente que era um esqueleto.
Jeremy mexeu-se no lugar, transferindo o peso de uma
perna para a outra. — Bem, como eu estava tentando
explicar para o prefeito ontem... O prefeito Gherkin deu-lhe
um tapa nas costas, interrompendo-o.
— Muito excitante — acrescentou o prefeito Gherkin. —
Grande cobertura da televisão.
Os outros acenaram com a cabeça, com uma expressão de
solenidade nos rostos.
— E falando na cidade — acrescentou subitamente o
prefeito —, eu gostaria de convidá-lo para um pequeno
jantar de boas-vindas hoje à noite, com alguns poucos
amigos mais próximos. Nada exagerado, é claro, mas já que
vai ficar aqui por alguns dias, gostaria de lhe dar a
oportunidade de conhecer algumas das pessoas daqui.
Jeremy ergueu as mãos. — Isso não é realmente necessário...
— Besteira — disse o prefeito Gherkin. — É o mínimo que
podemos fazer. E, não se esqueça, algumas dessas pessoas
que estou convidando viram os fantasmas, e você terá a
oportunidade de entrevistar todos de uma só vez. As
histórias deles podem até fazer com que tenha pesadelos.
Ele ergueu as sobrancelhas; o advogado e o médico
aguardavam, cheios de expectativa. Diante da hesitação de
Jeremy, o prefeito não teve dúvidas em dar o assunto por
encerrado.
— Que tal às sete horas? — ele disse.
— Certo... está bem. Acho que está bem — Jeremy
concordou. — Onde será o jantar?
— Mais tarde eu lhe digo. Imagino que estará na biblioteca,
certo?
— Provavelmente.
O prefeito ergueu as sobrancelhas. — Pelo que sei, já
conheceu nossa ótima bibliotecária, a srta. Lexie?
— Sim, já.
— Ela é uma mulher e tanto, não é?
Havia, na sua entonação, uma leve sugestão de que o
comentário poderia ser interpretado de várias formas, algo
parecido com conversa de vestiário masculino.
— Ela tem sido de grande ajuda — disse Jeremy.
O advogado e o médico sorriram, mas antes que a conversa
fosse adiante, Rachel surgiu deslizando ao seu lado, perto
demais na verdade. Segurando um prato na mão, ela puxou
Jeremy.
— Vamos lá, querido. Aqui está o seu café-da-manhã.
Jeremy olhou para o prefeito.
— Fique à vontade — disse o prefeito Gherkin, gesticulando.
Jeremy seguiu-a de volta até sua mesa. Felizmente, o policial
Hopper já havia partido, e Jeremy ocupou novamente seu
lugar. Rachel colocou o prato diante dele.
— E você, aproveite. Eu falei para eles capricharem, pois
você é um visitante da cidade de Nova Iorque. Eu
simplesmente adoro aquele lugar!
— Ah, você já esteve lá?
— Bom, não. Mas eu sempre quis ir. Parece uma cidade tão...
glamourosa e excitante.
— Você deveria conhecer. Não há nenhum lugar no mundo
que se pareça com ela.
Ela sorriu, parecendo envergonhada. — Nossa, sr. Marsh...
isso é um convite?
Jeremy ficou de queixo caído. — O quê?
Rachel, em contrapartida, parecia não ter reparado na
expressão do rosto dele. — Bem, talvez eu queira lhe fazer
algumas perguntas a respeito disso — ela suspirou, com a
voz trêmula. — E ficaria feliz em mostrar-lhe o cemitério,
qualquer noite dessas. Normalmente, eu saio daqui às três
horas da tarde.
— Eu não vou esquecer — Jeremy resmungou.
Durante os vinte minutos seguintes, enquanto Jeremy
comia, Rachel passou pela mesa uma dezena de vezes,
completando a xícara de café em todas elas, com um sorriso
colado no rosto.

Jeremy dirigiu-se para seu carro, recuperando-se do que
deveria ter sido um café-da-manhã tranqüilo.
O policial Hopper. O prefeito Gherkin. Tully. Rachel. Jed.
Uma cidadezinha americana era demais para encarar antes
do café-da-manhã.
No dia seguinte, tomaria apenas uma xícara de café em
algum outro lugar. Ele não tinha certeza de que a comida do
Herbs compensasse, mesmo sendo realmente boa. E, ele
tinha de admitir, era ainda melhor do que ele pensara que
fosse. Como havia dito Dóris no dia anterior, o sabor era de
alimentos frescos, como se os ingredientes tivessem sido
colhidos na fazenda naquela manhã.
Mesmo assim, amanhã o café seria em qualquer outro lugar.
E certamente não seria no posto de Tully, presumindo que
ali tivesse café. Ele não queria que o prendessem numa
conversa quando tinha tantas coisas para fazer.
Ele parou no meio do caminho, achando graça. Meu Deus,
refletiu, eu já estou pensando como alguém da cidade.
Balançou a cabeça e procurou as chaves no bolso, enquanto
andava na direção do carro. Pelo menos o café-da-manhã
tinha terminado. Olhando o relógio, viu que já eram quase
nove horas da manhã. Ótimo.

Lexie estava olhando pela janela de seu escritório no exato
momento em que Jeremy Marsh entrou no estacionamento
da biblioteca.
Jeremy Marsh. Que continuava a atormentar seus
pensamentos, apesar de fazer força para concentrar-se no
trabalho. E olhe para ele agora. Tentando usar roupas mais
comuns para se misturar com as pessoas da cidade, ela
deduziu. E de algum modo ele quase tinha conseguido.
Mas aquilo já havia durado muito. Havia muito trabalho a
fazer. Seu escritório estava cheio de estantes abarrotadas de
livros de alto a baixo: livros empilhados de todas as
maneiras, na vertical e na horizontal. Um arquivo de aço
cinza ocupava um dos cantos, e sua mesa e cadeira eram
absolutamente funcionais. Havia pouca coisa no escritório
com função decorativa, simplesmente por falta de espaço, e
havia formulários para preencher por toda a sala: nos cantos,
sob a janela, e na outra cadeira encostada em um dos cantos.
Sobre a sua mesa também havia pilhas enormes, com o que
ela considerava ser o mais urgente.
O orçamento precisava ser fechado no final do mês, e havia
uma pilha de catálogos de editoras para revisar, antes de
fazer o pedido semanal. A isso precisava ser acrescentada a
necessidade de encontrar alguém para falar no almoço dos
Amigos da Biblioteca em abril, e preparar tudo para o
Passeio pelas Casas Históricas — do qual fazia parte a
biblioteca, já que, sob certos aspectos, era uma casa histórica
— e mal tivera tempo para respirar. Ela contava com duas
funcionárias que trabalhavam em período integral, mas tinha
aprendido que as coisas funcionavam melhor quando não
delegava. As funcionárias eram ótimas para recomendar os
lançamentos mais recentes e para ajudar os estudantes a
encontrar o que estivessem procurando, mas da última vez
que deixara uma delas decidir o que deveria ser comprado,
acabara recebendo seis títulos diferentes a respeito de orquí-
deas, pois essa era a flor favorita da funcionária. Um pouco
antes, depois de sentar-se diante do computador, havia
tentado elaborar um plano para organizar sua agenda, mas
não havia chegado a lugar algum. Não importava o quanto
tivesse tentado esvaziar sua cabeça, seus pensamentos
continuavam voltando para Jeremy Marsh. Ela não queria
pensar nele, mas Dóris havia falado exatamente o suficiente
para atiçar sua curiosidade.
Ele não é o que você está pensando.
O que será que aquilo queria dizer? Ontem à noite, quando
tentou pressionar Dóris, ela ficou muda, como se não tivesse
dito uma palavra. Ela não voltou a falar da vida amorosa de
Lexie, tampouco de Jeremy Marsh. Em vez disso, ficaram
desviando do assunto: o que havia acontecido no trabalho, o
que estava acontecendo com as pessoas que conheciam,
como seria o Passeio pelas Casas Históricas no fim de
semana. Dóris era a presidente da Sociedade Histórica, e o
passeio era um dos grandes eventos do ano. Não que exigisse
muito planejamento. A maior parte dele era constituída pela
mesma dezena de casas escolhidas todos os anos, além das
quatro igrejas e da biblioteca. Enquanto sua avó tagarelava,
Lexie continuava pensando naquela frase. Ele não é o que
você está pensando.
E o que poderia ser? Um tipo de cidade grande? Um
galanteador? Alguém à procura de uma aventura
inconseqüente? Alguém que iria rir da cidade assim que
partisse? Alguém à procura de uma história e disposto a
encontrar uma da forma que pudesse, mesmo que acabasse
ferindo alguém no caminho?
E por que cargas d'água isso a preocuparia? Ele ficaria ali por
alguns dias e depois iria embora, e tudo voltaria ao normal
novamente. Graças a Deus.
Ah, ela já estava sabendo das fofocas daquela manhã. Na
padaria, ao parar para comprar um muffin, tinha ouvido
algumas mulheres falando a respeito dele. Como ele iria
tornar a cidade famosa, como as coisas poderiam melhorar
para os negócios da cidade. No momento em que a viram,
elas a encheram de perguntas sobre ele e exprimiram suas
próprias opiniões quanto às chances de ele encontrar a causa
das luzes misteriosas.
Afinal de contas, algumas pessoas dali realmente
acreditavam que elas fossem criadas por fantasmas. Outros
certamente não. O prefeito Gher-kin, por exemplo. Não, ele
via as coisas de um ângulo diferente, considerando a
investigação de Jeremy como uma espécie de jogo. Se
Jeremy Marsh não conseguisse encontrar a causa, seria bom
para a economia da cidade, e era nisso que o prefeito estava
apostando. Afinal, o prefeito Gherkin sabia de alguma coisa
que apenas poucas pessoas sabiam.
O mistério vinha sendo estudado fazia anos. E não apenas
pelos estudantes da Universidade Duke. Além do historiador
local — que parecia ter encontrado uma explicação
plausível, na opinião de Lexie — pelo menos outros dois
grupos ou indivíduos que não eram dali haviam investigado
a questão no passado, porém sem sucesso. O prefeito
Gherkin havia efetivamente convidado os estudantes de
Duke a visitarem o cemitério, na esperança de que eles
desvendassem o mistério. E, com certeza, depois disso o
movimento de turistas aumentara bastante.
Ela ficou pensando se deveria ter dito isso para o sr. Marsh
no dia anterior. Mas já que ele não perguntou, ela não viu
por que falar. Estava ocupada demais tentando driblar suas
investidas e deixar claro que não estava interessada nele. Ah,
ele bem que havia tentado ser charmoso... tudo bem, aquele
jeito dele tinha mesmo um certo charme, mas isso não
mudava o fato de que ela não tinha intenção alguma de
deixar suas emoções levarem a melhor. Sentira até um certo
alívio depois que ele saiu no dia anterior.
E aí Dóris veio com aquele ridículo comentário, que lá no
fundo dava a entender que ela achava que Lexie deveria
conhecê-lo melhor. Mas o que realmente mexia com ela era
o fato de saber que Dóris não teria dito nada a menos que
tivesse certeza. Qualquer que fosse a razão, Dóris via algo
especial em Jeremy.
Às vezes ela odiava aquelas premonições da avó.
É claro que ela não tinha de dar ouvidos ao que Dóris dizia.
Afinal, ela já havia passado pela experiência de "conhecer
um estranho", e não estava disposta a trilhar esse caminho
novamente. Apesar de sua determinação, porém, tinha de
admitir que toda aquela situação fazia com que se sentisse
meio sem equilíbrio. Enquanto fazia essa avaliação, ouviu a
porta do escritório abrir com um rangido.
— Bom dia — disse Jeremy, colocando a cabeça pelo vão da
porta. — Achei que tinha visto a luz acesa.
Girando a cadeira, ela reparou que ele tinha jogado a jaqueta
sobre os ombros.
— Olá — ela respondeu educadamente. — Eu estava
justamente tentando me concentrar no trabalho.
Ele segurou a jaqueta na mão. — Você tem um lugar onde
eu possa deixar isto? Não há muito espaço na mesa da sala de
livros raros.
— Aqui, pode deixar comigo. Há um cabide atrás da porta.
Entrando no escritório, ele deu sua jaqueta para Lexie. Ela a
pendurou perto de seu casaco, no cabide atrás da porta.
Jeremy passou os olhos pelo escritório.
— Então, esta aqui é a cabine de controle, certo? O lugar
onde tudo acontece?
— Exatamente — ela confirmou. — Não é muito amplo, mas
tem espaço suficiente para a execução do trabalho.
— Gosto do seu sistema de arquivo — ele disse, fazendo um
gesto em direção às pilhas de formulários em cima da mesa.
— Também tenho um parecido lá em casa.
Um sorriso escapou de seus lábios, enquanto ele dava alguns
passos em direção à sua mesa para espiar pela janela.
— Bela vista também. Você pode ver todo o quintal até a
casa do lado. E o estacionamento também.
— Bem, você parece estar muito bem-humorado esta
manhã.
—- E por que não estaria? Dormi num quarto congelante,
cheio de animais mortos. Ou melhor, não dormi nada.
Fiquei ouvindo todos aqueles sons estranhos que vinham do
mato.
— Fiquei imaginando o que acharia de Greenleaf. Ouvi dizer
que é um lugar rústico.
— A palavra "rústico" não é exatamente o termo mais
apropriado para definir aquele lugar. E depois, logo cedo,
metade da cidade estava tomando café.
— Imagino que tenha ido ao Herbs — ela observou.
— Fui — ele disse. — E percebi que você não foi.
— Não. Tem muita gente. Eu gosto de um pouco de calma
no começo do dia.
— Você deveria ter me avisado.
Ela sorriu. — Você deveria ter perguntado.
Ele riu, e Lexie apontou com a mão na direção da porta.
Caminhando até a sala de livros raros com ele, ela sentiu que
ele estava de bom humor, apesar do cansaço, mas isso ainda
não era suficiente para fazer com que confiasse nele.
— Por acaso você conhece um policial chamado Hopper?
— ele perguntou.
Ela ergueu os olhos, surpresa. — Rodney?
— Acho que era esse o nome dele. Qual é a dele, afinal? Ele
me pareceu meio perturbado com a minha presença na
cidade.
— Ah, ele é inofensivo.
— Ele não me pareceu inofensivo.
Ela deu de ombros. — Ele provavelmente ficou sabendo que
você passaria algum tempo na biblioteca. Ele é meio protetor
em relação a essas coisas, e sempre foi muito doce comigo
esses anos todos.
— Você poderia falar bem de mim para ele, por favor?
— Acho que posso fazer isso.
Como estava esperando outro comentário mordaz, ele
ergueu as sobrancelhas com ar agradavelmente surpreso.
— Obrigado — ele falou.
— Não há de quê. Mas não faça nada que me obrigue a
mudar de idéia.
Eles seguiram em silêncio até a sala de livros raros. Ela
entrou primeiro, acendendo a luz.
— Fiquei pensando no seu projeto, e há uma coisa que talvez
deva saber.
— O que é?
Ela lhe contou a respeito das duas investigações anteriores
em torno do cemitério, antes de acrescentar: — Se me der
cinco minutos, posso encontrá-las para você.
— Eu ficaria muito grato — ele disse. — Mas por que não
falou disso ontem?
Ela sorriu sem responder.
— Deixe-me adivinhar — ele disse. — Por que eu não
perguntei?
— Eu sou apenas uma bibliotecária, não leio pensamentos.
— Como a sua avó? Ah, espere, ela é uma vidente, certo?
— Para falar a verdade, ela é. E ela também consegue dizer
qual é o sexo do bebê antes de ele nascer.
— Foi o que me disseram — Jeremy falou.
Ela o fuzilou com o olhar. — É verdade, Jeremy. Acredite
ou não, ela consegue fazer essas coisas.
Ele sorriu com malícia. — Você me chamou de Jeremy?
— Sim. Mas não precisa dar tanta importância a esse fato.
Você me pediu que fizesse isso, está lembrado?
— Claro que sim, Lexie.
— Vá com calma — ela disse, mas, enquanto falava, Jeremy
reparou que ela sustentara seu olhar por mais tempo que o
de hábito, e ele gostou disso.
Ele gostou muito disso.


Capítulo
SETE

Jeremy passou o resto da manhã debruçado sobre uma pilha
de livros e os dois artigos que Lexie havia encontrado. O
primeiro, escrito em 1958 por um professor de folclore da
Universidade da Carolina do Norte e publicado no Journal of
the South, parecia ter o propósito de ser uma resposta à
interpretação que A. J. Morrison fazia da lenda. O artigo
apresentava algumas citações do trabalho de Morrison,
resumia a lenda e narrava em detalhes o período de uma
semana que o professor havia passado no cemitério. Em
quatro dessas noites ele havia testemunhado as luzes. Parecia
que ele fizera pelo menos uma tentativa preliminar para
encontrar a causa: ele contara o número de casas das áreas
vizinhas (havia dezoito no perímetro de quase dois
quilômetros em torno do cemitério e, surpreendentemente,
nenhuma em Riker's Hill), e também anotara o número de
carros que passaram no espaço de dois minutos em que as
luzes apareceram. Em duas dessas ocasiões, o lapso de tempo
foi inferior a um minuto. Nas outras duas, entretanto, não
houve qualquer registro de carro, o que parecia eliminar a
possibilidade de terem sido os faróis a fonte dos "fantasmas".
O segundo artigo era apenas um pouco mais informativo.
Publicado em uma edição de 1969 da Coastal Carolina, uma
pequena revista que fora à falência em 1980, o artigo
comentava o fato de que o cemitério estava afundando e o
estrago que isso havia causado. O autor também fazia
referência à lenda e à proximidade de Riker's Hill, e embora
ele não tivesse visto as luzes (ele havia estado lá nos meses
de verão), descrevia em detalhes os relatos das testemunhas,
antes de partir para especulações a respeito de inúmeras
possibilidades, sobre as quais Jeremy já estava a par.
A primeira era a decomposição da vegetação que às vezes
irrompe em chamas, liberando vapores conhecidos como
gás natural. Numa área costeira como essa, Jeremy sabia que
a idéia não podia ser totalmente descartada, embora
considerasse improvável, já que as luzes apareciam em
noites frias e cobertas de névoa. Elas também poderiam ser
"luzes de terremoto", que são descargas elétricas que
ocorrem na atmosfera, provocadas pela movimentação e
fricção das rochas nas camadas mais profundas da Terra. A
teoria relativa aos faróis dos carros foi aventada novamente,
assim como a idéia de refração de luzes de estrelas e fogo-
fátuo, brilho fosforescente que emana de certos fungos
presentes na madeira apodrecida. Algas, de acordo com as
anotações, também poderiam emanar um brilho
fosforescente. O autor mencionava ainda a possibilidade de
estar ocorrendo o efeito Nova Zembla, no qual a direção de
feixes luminosos é determinada por camadas de ar
adjacentes, mas com temperaturas diferentes, causando o
efeito de brilho. E, oferecendo uma última possibilidade, o
autor concluía que poderia ser o fogo-de-santelmo, criado
por descargas elétricas que surgem na ponta de objetos
pontiagudos durante as tempestades.
Em outras palavras, o autor havia dito que poderia ser
qualquer coisa.
Apesar de inconclusos, os artigos ajudaram Jeremy a tornar
mais claros seus próprios pensamentos. Em sua opinião, as
luzes tinham tudo a ver com a geografia. A colina que ficava
atrás do cemitério parecia ser o ponto mais alto, qualquer
que fosse a direção, e o afundamento do cemitério fazia com
que a neblina fosse particularmente mais densa nessa área.
Tudo isso queria dizer luz refrativa ou refletida.
Ele tinha apenas de identificar a fonte com precisão, e para
isso precisava descobrir quando as luzes haviam sido vistas
pela primeira vez. Não poderia ser algo genérico, mas uma
data exata, de forma que ele pudesse determinar o que estava
acontecendo na cidade naquela época. Se a cidade estivesse
passando por alguma mudança significativa — um novo
projeto de construção, uma nova fábrica ou alguma coisa
parecida — talvez ele encontrasse a causa. Ou se ele
realmente visse as luzes — e ele não estava contando com
isso — seu trabalho seria ainda mais simples. Se elas apare-
cessem à meia-noite, por exemplo, e ele não visse qualquer
carro passando, poderia então inspecionar a área, anotando a
localização das casas ocupadas com lâmpadas brilhando na
janela, a proximidade da estrada, ou talvez até o tráfego no
rio. Barcos, ele suspeitava, eram uma possibilidade, se fos-
sem bastante grandes.
Repassando a pilha de livros pela segunda vez, ele anotou
outras observações em relação às mudanças ocorridas na
cidade no decorrer dos anos, com ênfase especial nas
mudanças ocorridas na virada do século.
Com o passar das horas, a lista foi aumentando. No início do
século XX, houve um crescimento imobiliário acelerado que
durou de 1907 a 1914, durante o qual ocorreu um
desenvolvimento no lado norte da cidade. O pequeno porto
foi ampliado em 1910, depois em 1916, e mais uma vez em
1922; combinada com as pedreiras e as minas de fósforo, a
escavação foi extensiva. A construção da ferrovia foi iniciada
em 1898, e a abertura de ramais em várias áreas do
município prosseguiu até 1912. Uma ponte sobre o rio foi
concluída em 1904, e de 1908 a 1915 foram construídas três
grandes instalações industriais: uma fábrica têxtil, uma mina
de fósforo e uma indústria de papel. Das três, apenas a
indústria de papel ainda estava em operação — a fábrica
têxtil havia fechado quatro anos atrás, e a mina em 1987 —,
de forma que isso parecia eliminar as outras duas como pos-
sibilidades.
Ele checou novamente os fatos, certificou-se de que
estavam corretos, e voltou a empilhar os livros para que
Lexie pudesse colocá-los de volta nas estantes. Ele se apoiou
nas costas da cadeira, espreguiçou-se para aliviar a tensão do
corpo, e olhou para o relógio. De repente, já era quase meio-
dia. Considerando tudo, ele concluiu que haviam sido
algumas horas bem gastas, e então olhou sobre o ombro para
a porta aberta atrás dele.
Lexie não havia retornado para ver se precisava de alguma
coisa. Ele meio que gostava do fato de não conseguir
adivinhar o que ela iria fazer, e por um momento desejou
que ela vivesse em Nova Iorque, ou pelo menos em algum
lugar perto de lá. Teria sido interessante ver o rumo que as
coisas poderiam ter tomado entre eles. Um instante depois,
ela empurrou a porta.
— E aí? — Lexie o interrompeu — Como está indo?
Jeremy se virou. — Bem, obrigado.
Ela vestiu seu casaco. — Bem, eu estava pensando em dar
uma saída para almoçar, e fiquei pensando se você gostaria
que eu lhe trouxesse alguma coisa também.
— Você está indo até o Herbs? — ele perguntou.
— Não. Se você acha que estava lotado no café-da-manhã,
deveria ver aquele lugar na hora do almoço. Mas teria o
maior prazer em pegar alguma coisa para viagem na volta.
Ele hesitou por um instante apenas.
— Bem, se importaria se eu fosse com você aonde quer que
esteja pensando em ir? Seria bom esticar minhas pernas.
Fiquei sentado aqui a manhã inteira, e adoraria ver um lugar
novo. Talvez você até pudesse me mostrar um pouco da
vizinhança — ele fez uma pausa. — Se você não se
importar, é claro.
Ela quase disse não, porém, mais uma vez, ouviu as palavras
de Dóris, e seus pensamentos ficaram confusos. Devo ou
não devo? Apesar de achar que estava cometendo um erro
— muito obrigada por isso, Dóris — ela disse: — Claro. Mas
eu tenho de voltar dentro de uma hora, por isso não acho
que vá ser de grande ajuda.
Ele pareceu quase tão surpreso quanto ela, e ficou parado;
depois saiu pela porta atrás dela. — Qualquer coisa já será
muito bom — ele disse. — Pode me ajudar a preencher os
espaços em branco, entende? É importante saber o que
acontece num lugar como este.
— Em nossa cidadezinha caipira, você quer dizer?
— Eu não disse que era uma cidade caipira. Essas palavras são
suas.
— Sim, mas os pensamentos são seus, não meus. Eu adoro
este lugar.
— Tenho certeza que sim — ele concordou. — Por que
outro motivo você viveria aqui?
— Por que não é a cidade de Nova Iorque, por exemplo.
— Já esteve lá?
— Eu morei em Manhattan. Na sessenta e nove, oeste.
Ele quase tropeçou pisando em falso. — Isso fica a apenas
alguns quarteirões de onde eu moro.
Ela sorriu. — Mundo pequeno, não é mesmo?
Caminhando apressadamente, Jeremy se esforçava para
acompanhar o passo de Lexie enquanto ela se aproximava da
escada. — Você está brincando, certo?
— Não — ela respondeu. — Morei com meu namorado ali
por quase um ano. Ele trabalhava para o Morgan Stanley,
enquanto eu fazia estágio na biblioteca da Universidade de
Nova Iorque.
— Eu não consigo acreditar nisso...
— No quê? Que eu morava em Nova Iorque e fui embora?
Ou que eu morava perto de você? Ou que eu morava com
meu namorado?
— Em tudo — ele disse. — Ou em nada, não tenho certeza
— ele estava tentando digerir a idéia dessa bibliotecária de
cidade pequena vivendo em sua vizinhança. Observando a
expressão no rosto dele, Lexie teve de rir. — Vocês são
todos iguais, sabia?
— Quem?
— As pessoas que vivem nessa cidade. Você vive sua vida
pensando que não há lugar no mundo tão especial quanto
Nova Iorque e que nenhum outro lugar tem qualquer coisa a
oferecer.
— Você tem razão — Jeremy admitiu. — Mas isso acontece
porque nem dá para comparar com o resto do mundo.
Fitando-o com olhar perscrutador, ela fez cara de quem
perguntava: Você não disse o que eu acho que acabou de
dizer, não é?
Ele deu de ombros, fazendo-se de inocente. — Quer dizer,
qual é... Você não acha que dá para comparar o Greenleaf
Cottages com o Four Seasons ou com o Plaza, acha? Quer
dizer, até você tem de admitir isso.
Ela mostrou-se ofendida com sua postura presunçosa e
passou a caminhar ainda mais rapidamente. Naquele exato
momento, ela decidiu que Dóris não sabia do quê estava
falando.
Jeremy, contudo, não estava disposto a encerrar o assunto.
— Vamos lá... admita. Você sabe que tenho razão, não sabe?
A essa altura, eles haviam chegado diante da porta da frente
da biblioteca, e ele a abriu para ela. Atrás deles, a senhora de
idade que trabalhava na recepção observava-os atentamente.
Lexie controlou sua língua até atravessarem a porta, e então
se virou para ele.
— As pessoas não moram em hotéis — ela retrucou. — Elas
vivem em comunidades. E é isso o que nós temos aqui. Uma
comunidade. Onde as pessoas se conhecem e se preocupam
umas com as outras. Onde as crianças podem brincar à noite
sem se preocupar com estranhos.
Ele ergueu as mãos. — Ei — ele disse —, não me entenda
mal. Eu adoro comunidades. Eu cresci no meio de uma.
Conhecia cada família da vizinhança pelo nome, porque
viveram ali durante muitos anos. Algumas delas ainda
vivem, por isso, acredite, sei exatamente o quanto é
importante conhecer seus vizinhos, e como é importante
para os pais saberem o que seus filhos estão fazendo e com
quem estão saindo. Foi assim que as coisas aconteceram
comigo. Mesmo quando eu estava fora, os vizinhos estavam
atentos. O que eu quero dizer é que a cidade de Nova Iorque
também tem isso, dependendo de onde você mora. É claro,
se você mora na minha vizinhança, vai ver que ela está
cheia de jovens profissionais batalhando pelo sucesso na
carreira. Mas faça uma visita a Park Slope, no Brooklyn, ou a
Astoria, no Queens, e vai ver crianças brincando nos
parques, jogando basquete e futebol, e muita coisa parecida
com o que as crianças fazem por aqui.
— Como se alguma vez você tivesse pensado em coisas
desse tipo. Ela se arrependeu do sarcasmo no tom da voz,
assim que desferiu o golpe contra Jeremy. Ele, por sua vez,
pareceu imperturbável.
— Já pensei — ele disse. — E acredite, se eu tivesse filhos,
eu não iria morar no mesmo lugar. Tenho uma tonelada de
sobrinhos e sobrinhas que moram na cidade, e cada um
deles mora em um lugar que tem muitas outras crianças e
pessoas que cuidam delas. Sob muitos aspectos, muito pa-
recidos com este lugar.
Ela não disse nada, pensando se ele estaria falando a verdade.
— Olhe — ele falou —, eu não estou querendo comprar
uma briga. Só acho que as crianças acabam crescendo sem
problemas desde que os pais se envolvam, não importa onde
morem. Não é possível que as cidades pequenas tenham um
monopólio sobre os valores. Quer dizer, eu tenho certeza de
que se procurar um pouco, também vou encontrar muitas
crianças com problemas por aqui. Crianças são crianças, não
importa onde moram. — Ele sorriu, tentando mostrar-lhe
que não havia levado o que ela tinha dito para o lado pessoal.
— Além disso, eu não tenho muita certeza do motivo que
nos levou a falar de crianças, de qualquer forma, a partir de
agora, prometo não falar mais disso. Tudo o que estava
tentando dizer é que fiquei surpreso por você ter vivido em
Nova Iorque e há apenas alguns quarteirões de onde eu
moro — ele fez uma pausa. — Trégua?
Ela o encarou antes de soltar a respiração. Talvez ele
estivesse certo. Não, ela sabia que ele estava certo. E, ela
admitia, fora ela quem tinha provocado tudo aquilo.
Pensamentos confusos podem fazer isso com uma pessoa.
Por que cargas d'água ela estaria se envolvendo numa
discussão dessas?
— Trégua — ela concordou finalmente. — Com uma
condição.
— Qual é?
— Você vai ter de dirigir. Eu não vim de carro.
Ele pareceu aliviado. — É só eu encontrar as chaves.

Nenhum dos dois estava com muita fome, então Lexie
indicou a Jeremy o caminho até uma pequena mercearia, e
em poucos minutos eles saíram dali com um pacote de
biscoitos, algumas frutas frescas, vários tipos de queijo e duas
garrafinhas de suco.
No carro, Lexie colocou o pacote com a comida perto dos
pés. — Há alguma coisa em especial que você queira ver? —
ela perguntou.
— Riker's Hill. Tem alguma estrada que vá até o topo?
Ela acenou positivamente com a cabeça. — Não é bem uma
estrada. Costumava ser usada para a extração de madeira,
mas agora apenas os caçadores de veados andam por lá. Mas
é muito acidentada — não sei se você gostaria de levar seu
carro até lá.
— Não tem problema. É alugado. E, além disso, estou me
acostumando com estradas ruins por aqui.
— Está bem — ela falou. — Mas não diga que não avisei.
Nenhum dos dois falou muito enquanto deixavam a cidade,
passando pelo cemitério de Cedar Creek e depois por uma
pequena ponte. A estrada logo começou a se tornar ladeada
por bosques cada vez mais densos. O céu azul havia dado
lugar a uma grande mancha cor de cinza, fazendo com que
Jeremy se lembrasse das tardes de inverno muito mais ao
norte. Aqui e ali, bandos de estorninhos passavam voando
diante do carro, mo-vendo-se em uníssono, como se
estivessem todos amarrados uns aos outros por algum
cordão.
Lexie sentia-se pouco à vontade com aquele silêncio, por
isso começou a descrever a paisagem: projetos imobiliários
que jamais haviam sido aproveitados, nomes de árvores,
Cedar Creek quando podia ser visto através da mata. Riker's
Hill surgiu à esquerda, parecendo sombrio e ameaçador em
meio à pouca luminosidade do dia.
Jeremy já havia dirigido até aquele lugar depois de ter saído
do cemitério na primeira vez que o vira, e achava que tinha
feito a volta por ali. Devia ter sido um pouquinho antes, ele
percebeu, porque ela lhe disse para virar no cruzamento
seguinte, que parecia fazer uma volta em torno da parte de
trás de Riker's Hill. Inclinando-se para a frente no banco, ela
tentou ver através do pára-brisa.
— A curva é logo ali na frente — ela disse. — Talvez seja
melhor você diminuir a velocidade.
Foi o que Jeremy fez, e como ela continuasse a olhar
fixamente para fora, ele a olhou de relance, observando a
pequena marca da testa franzida entre as sobrancelhas.
— O.k... ali — ela disse, apontando para a frente.
Ela estava certa: aquilo não era bem uma estrada. Cheia de
cascalho e esburacada, meio parecida com a entrada do
Greenleaf, mas pior. Saindo da estrada principal, o carro
começou a pular e a sacolejar. Jeremy diminuiu ainda mais.
— Riker's Hill é propriedade do governo?
Ela fez que sim com a cabeça. — O governo a comprou de
uma grande companhia madeireira — Weyerhaeuser ou
Georgia-Pacific ou qualquer coisa desse gênero — quando
eu era pequena. Parte da nossa história local, você sabe
como é. Mas não é um parque ou algo assim. Acho que
houve planos para transformar isso aqui numa área para
acampamento, mas o governo nunca divulgou nada a
respeito disso.
Os pinheiros ficavam mais próximos à medida que a estrada
se estreitava, mas a estrada em si parecia ficar melhor à
medida que subiam, fazendo uma espécie de ziguezague em
direção ao topo. Aqui e ali se podia ver uma trilha que, ele
presumira, deveria ser usada pelos caçadores.
Por fim, as árvores foram ficando mais esparsas e o céu mais
visível; enquanto se aproximavam do cume, a vegetação
parecia mais gasta, e depois praticamente arrasada. Dezenas
de árvores estavam quebradas no meio; menos de um terço
ainda parecia estar de pé. A subida foi ficando menos
íngreme, e então o terreno ficou mais plano quando se
aproximaram do topo. Jeremy encostou o carro de um lado.
Lexie fez sinal para que ele desligasse o motor, e aí saíram
do carro.
Lexie cruzou os braços quando começaram a andar. O ar
parecia mais frio ali em cima, a brisa, fria e cortante. O céu
parecia estar mais próximo; as nuvens não eram mais uma
forma indistinta, mas se moviam e se transformavam,
adquirindo contornos específicos. Lá embaixo, podiam ver a
cidade, telhados agrupados e empoleirados à beira de
estradas retilíneas, uma das quais levava até o Cemitério de
Cedar Creek. Pouco além da cidade, o velho rio de água
salgada parecia um rastro de ferro escorrendo. Ele conseguiu
localizar a ponte da rodovia, assim como uma pitoresca
ponte suspensa que se erguia ao fundo, enquanto um falcão
de cauda vermelha voava em círculos sobre suas cabeças.
Olhando mais atentamente, Jeremy conseguiu visualizar a
minúscula estrutura da biblioteca e até mesmo a localização
de Greenleaf, embora os chalés estivessem perdidos no meio
das matas ao redor.
— A vista é incrível — ele disse finalmente.
Lexie apontou para a beira da cidade e ajudou-o a focalizar
até o ponto que queria mostrar. — Está vendo aquela
casinha? Meio que largada de lado, perto do lago? E onde eu
moro agora. E aquela mais adiante? É a casa de Dóris. Foi
onde eu cresci. Algumas vezes, quando eu era criança,
ficava olhando aqui pra cima, imaginando que conseguia me
ver olhando daqui de cima lá para baixo.
Ele sorriu. A brisa agitava os cabelos de Lexie, que
continuou a falar.
— Quando éramos adolescentes, eu e minhas amigas às
vezes vínhamos até aqui e ficávamos durante horas. No
verão, o calor fazia as luzes das casas brilhar como se fossem
estrelas. E os vaga-lumes — bem, em junho eles são tantos
que dá a impressão de que existe outra cidade no céu.
Apesar de todo mundo saber da existência deste lugar,
nunca havia muita gente por aqui. Sempre foi uma espécie
de lugar secreto que eu e minhas amigas tínhamos em
comum.
Ela fez uma pausa, percebendo que se sentia estranhamente
nervosa. Embora a explicação para tal nervosismo estivesse
além de sua compreensão.
— Eu me lembro de uma vez em que se esperava uma
grande tempestade. Eu e minhas amigas conseguimos
convencer um dos rapazes a nos trazer aqui em cima em seu
caminhão. Uma daquelas coisas com rodas enormes, capazes
de atravessar o Grand Canyon se fosse necessário, sabe?
Bom, nós viemos todas para cá, para ver os relâmpagos,
achando que iríamos poder assistir um espetáculo de luzes
no céu. Em nenhum momento paramos para pensar no fato
de que estávamos no ponto mais alto de toda a região.
Quando os relâmpagos começaram, foi lindo. Eles
iluminavam o céu, às vezes com uma rajada de luz, outras
vezes como uma luz intermitente, e nós ficávamos
contando em voz alta o tempo que demorava até vir o
trovão. Sabe, para ver a distância em que estava o raio. Mas
logo em seguida e tempestade caiu sobre nós, quer dizer, o
vento estava batendo com tanta força que o caminhão
começou a sacudir de verdade, e com a chuva era
impossível enxergar qualquer coisa. Então os raios
começaram a atingir as árvores que estavam ao nosso redor.
Descargas elétricas gigantescas caíam tão perto de nós que o
chão tremia e as pontas dos pinheiros simplesmente
explodiam em pedaços.
Enquanto Lexie falava, Jeremy a estudava. Aquilo era o
máximo que ela havia revelado a respeito de si mesma desde
que tinham se conhecido, e ele tentou imaginar como era
sua vida naquele tempo. Como teria sido ela no colégio?
Uma das populares animadoras de torcida? Ou uma das ga-
rotas estudiosas, que passava as horas do recreio na
biblioteca? Com certeza, isso era coisa do passado — quer
dizer, quem se importava com o colégio? —, mas mesmo
agora, quando ela estava perdida em suas lembranças, ele
não conseguia dizer com certeza que tipo de garota ela fora.
— Aposto que vocês ficaram apavoradas — ele disse. —
Você sabe que as descargas elétricas podem chegar a
cinqüenta mil graus? — ele a olhou de relance. — Isso
significa que é dez vezes mais quente que a superfície do
Sol.
Ela sorriu, divertida. — Eu não sabia disso. Mas você está
certo — acho que nunca fiquei tão apavorada em toda a
minha vida.
— E depois, o que aconteceu?
— A tempestade passou, como sempre. E depois que nos
refizemos do susto, voltamos para casa. Mas eu me lembro
de que Rachel estava apertando minha mão com tanta força
que deixou marcas de unhas em minha pele.
— Rachel? Não seria por acaso a garçonete do Herbs, seria?
— Sim, essa mesma. — Cruzando os braços, ela olhou para
ele. — Por quê? Por acaso ela deu em cima de você no café-
da-manhã?
Ele se mexeu sem sair do lugar, mudando o peso de uma
perna para outra. — Bom, eu não diria isso. Ela apenas me
pareceu um pouco... atrevida, só isso.
Lexie riu. — Isso não me surpreende. Ela é... bom, Rachel é
Rachel. Nós éramos as melhores amigas uma da outra na
infância, e ainda penso nela como uma espécie de irmã.
Acho que será assim para sempre. Mas depois que eu fui
para a faculdade e depois para Nova Iorque... bom, não foi
mais a mesma coisa depois que voltei. Apenas ficou
diferente, na falta de palavra melhor. Não me entenda mal
— ela é um doce e é muito divertida, e não tem um pingo
de maldade, mas...
Ela deixou as palavras no ar. Jeremy olhou-a mais
atentamente.
— Você vê o mundo de outra maneira atualmente? — ele
sugeriu. Ela suspirou. — É, acho que é isso.
— Acho que isso acontece com todo mundo quando cresce
— Jeremy respondeu. — Você descobre quem você é e o
que você quer, e então percebe que as pessoas que
conheceu a vida inteira não vêem as coisas da mesma
maneira. E aí você preserva as lembranças maravilhosas, mas
se dá conta de que precisa seguir em frente. É perfeitamente
normal.
— Eu sei. Mas, numa cidade do tamanho desta, é mais difícil
assumir essa atitude. Há tão poucas pessoas na faixa dos
trinta por aqui, e menos ainda solteiras. Este nosso
mundinho é realmente muito pequeno.
Ele mexeu a cabeça antes de abrir um sorriso. — Faixa dos
trinta? De repente ela se lembrou de que ele havia tentado
adivinhar sua idade no dia anterior.
— Isso mesmo — ela disse, dando de ombros. — Ficando
velha, eu acho.
— Ou permanecendo jovem — ele contrapôs. — A
propósito, é assim que me sinto quando penso em mim
mesmo. Sempre que começo a me preocupar com a idade,
começo a usar a calça mais baixa, deixo aparecer a cintura da
cueca, uso o boné virado para trás, e dou uma volta pelo
shopping ouvindo rap.
Ela não conseguiu conter o riso ao imaginar a cena. Apesar
do ar frio, sentiu uma onda de calor ao perceber, de modo
inesperado, mas estranhamente inevitável, que estava
apreciando a companhia. Ela ainda não tinha certeza se
gostava dele — na verdade, tinha quase certeza que não —
e, por alguns instantes, lutou para conciliar os dois
sentimentos. O que significava, é claro, que todo aquele
assunto deveria ser evitado. Ela colocou um dedo no queixo.
— Sim, eu consigo imaginar. Você realmente dá muita
importância para o estilo pessoal.
— Sem dúvida. Bem, ainda ontem, para ser mais exato, as
pessoas ficaram bastante impressionadas com o jeito de eu
me vestir, inclusive você.
Ela riu, e no silêncio que se seguiu, ela olhou para ele. —
Aposto que você viaja muito por causa do seu trabalho, não
viaja?
— Talvez umas quatro ou cinco vezes por ano, durante
algumas semanas em cada viagem.
— Você já esteve numa cidade como esta?
— Não — ele disse. — Para ser sincero, nunca. Cada lugar
que conheço tem seu próprio charme, mas posso dizer, com
toda a honestidade, que nunca estive num lugar como este.
E você? Conhece outros lugares? Quer dizer, além de Nova
Iorque.
— Eu freqüentei a Universidade da Carolina do Norte, em
Chapei Hill, e passei muito tempo em Raleigh. E também fui
para Charlotte, quando estava no colegial. Nosso time de
futebol conquistou o campeonato estadual quando eu estava
no último ano, por isso praticamente todos na cidade
fizeram essa viagem. Nosso comboio se estendia por
quilômetros na estrada. E também Washington, D.C., numa
viagem com a escola quando eu era pequena. Mas nunca fiz
uma viagem para o exterior ou algo do gênero.
Já enquanto falava, ela sabia o quanto sua vida deveria
parecer insignificante para ele. Jeremy, como se tivesse lido
seus pensamentos, mostrou um leve sorriso.
— Você iria gostar da Europa. As catedrais, as maravilhosas
paisagens do campo, os bistrôs e as praças nas grandes
cidades. O estilo de vida tranqüilo... você iria se sentir em
casa.
Lexie deixou os pensamentos voar. Era uma bela imagem,
mas...
E era isso o que importava. O mas. Havia sempre um mas. A
vida tinha a desagradável tendência de oferecer
pouquíssimas oportunidades exóticas. Isso simplesmente não
fazia parte da realidade da maioria das pessoas comuns.
Como ela. Ela não podia simplesmente sair com Dóris ou
afastar-se durante muito tempo da biblioteca. E por que
diabos ele estava lhe dizendo tudo aquilo, afinal? Para lhe
mostrar que era mais cosmopolita do que ela? Bem, detesto
ter de lhe dizer isso, ela pensou, mas já sei disso há muito
tempo.
Contudo, enquanto digeria esses pensamentos, uma outra
voz se intrometeu, dizendo-lhe que ele estava flertando com
ela. Parecia que ele estava dizendo que sabia que ela era
diferente, mais experiente do que esperava que fosse. Que
ela ficaria bem em qualquer lugar.
— Eu sempre quis viajar — ela admitiu, driblando as vozes
conflitantes em sua cabeça. — Deve ser bom ter essa
possibilidade.
— É sim, às vezes. Mas, acredite ou não, o que mais gosto é
de encontrar pessoas diferentes. E quando me lembro dos
lugares em que estive, quase sempre vejo os rostos e não as
coisas.
— Agora você está parecendo uma pessoa romântica — ela
disse. Ah, era difícil resistir a ele, a esse sr. Jeremy Marsh.
Primeiro, o galanteador, e agora o grande altruísta; muito
viajado, mas conservando as raízes; cosmopolita, mas ainda
assim consciente em relação às coisas realmente impor-
tantes. Não importava quem ele conhecesse ou onde
estivesse, ela não tinha dúvida de que ele possuía uma
habilidade inata para fazer os outros — principalmente as
mulheres — sentirem que tinha uma grande afinidade com
todos. O que, sem dúvida alguma, reconduzia tudo à
primeira impressão que tivera dele.
— Talvez eu seja um romântico — ele disse, olhando-a de
relance.
— Sabe o que eu mais gostava em Nova Iorque? — ela
perguntou, mudando de assunto.
Ele a olhou de frente, na expectativa.
— Eu gostava do fato de estar sempre acontecendo alguma
coisa. Havia sempre gente correndo pelas calçadas, e os táxis
passando apressados, não importava a hora do dia. Havia
sempre algum lugar para ir, alguma coisa para ver, um
restaurante novo para conhecer. Era excitante,
principalmente para alguém que cresceu por aqui. Como ir
para Marte, praticamente.
— Por que você não ficou?
— Acho que poderia ter ficado. Mas não era lugar para mim.
Acho que podemos dizer que os motivos que me fizeram ir
para lá haviam mudado completamente. Eu tinha ido para
ficar com alguém.
— Então — disse Jeremy —, você foi até lá atrás dele?
Ela assentiu com a cabeça. — Nós nos conhecemos na
faculdade. Ele parecia tão... eu não sei... perfeito, eu acho.
Ele havia crescido em Greensboro, vinha de uma boa
família, era inteligente. E muito bonito também. Bonito o
bastante para fazer qualquer mulher ignorar seus melhores
instintos. Eu sei que ele olhou para mim e depois disso só
lembro de ter ido para Nova Iorque atrás dele. Não pude
evitar.
Jeremy pareceu embaraçado. — E foi isso?
Por dentro, ela estava sorrindo. Os homens não gostavam de
ouvir as mulheres dizerem que outros homens eram
bonitos, principalmente quando havia existido um
relacionamento sério.
— Correu tudo muito bem durante um ano, mais ou menos.
Nós até ficamos noivos. — Ela parecia ter se perdido em
seus pensamentos quando soltou um suspiro profundo. —
Eu tinha conseguido um estágio na biblioteca da
Universidade de Nova Iorque. Avery tinha ido trabalhar em
Wall Street, e então, num belo dia, eu o peguei na cama com
uma colega de trabalho. Isso me fez compreender que ele
simplesmente não era o cara certo, por isso arrumei minhas
coisas naquela mesma noite e voltei pra cá. Depois disso,
nunca mais o vi.
A brisa começou a soprar com mais força, fazendo um
barulho parecido com o de um assobio ao passar por entre as
rochas em declive, espalhando pelo ar um cheiro suave de
terra.
— Você está com fome? — ela perguntou, querendo mudar
de assunto novamente. — Quer dizer, estou gostando de ter
vindo aqui com você, mas se fico muito tempo sem comer
vou ficando de mau humor.
— Eu estou morto de fome — ele disse.
Eles voltaram para o carro e fizeram a divisão do almoço.
Sentado no banco da frente, Jeremy abriu o pacote de
biscoitos cream-cracker. Ao perceber que a vista não era
grande coisa naquele ponto, ligou o motor do carro, fez uma
manobra ali mesmo no topo da colina e — colocando o car-
ro no ângulo perfeito — estacionou de novo tendo a vista da
cidade à sua frente.
— Aí você voltou para cá e começou a trabalhar na
biblioteca, e...
— Só isso — ela disse. — É isso o que venho fazendo nos
últimos sete anos.
Ele fez as contas, e chegou à conclusão de que ela deveria
ter trinta e um anos.
— Algum namorado depois disso?
Com um pote de frutas preso entre as pernas, ela cortou um
pedaço de queijo e o colocou sobre um biscoito. Ficou
pensando se deveria responder. Decidiu que sim, ora que
diabos, ele iria embora, de qualquer forma.
— É claro. Alguns, aqui e ali. — Ela contou sobre o
advogado, o médico e — por fim — Rodney Hopper. Ela
não disse nada a respeito do sr. Renascença.
— Bem... muito bem. Você parece feliz — ele disse.
— Eu sou — ela concordou rapidamente. — Você não é?
— A maior parte do tempo. Às vezes acho que vou
enlouquecer, mas isso deve ser normal.
— E é aí que você começa a usar as calças mais baixas?
— Exatamente — ele respondeu, com um sorriso. Ele pegou
alguns biscoitos, colocou-os sobre as pernas e começou a
cortar um pouco de queijo. Ergueu os olhos, parecendo
sério. — Você se importaria se eu fizesse uma pergunta
muito pessoal? Você não precisa responder, é claro. Não vou
criticá-la, acredite. Só estou curioso.
— Você quer dizer, mais pessoal do que falar de todos os
meus ex-namorados?
Ele encolheu os ombros, envergonhado, e de repente ela
teve uma idéia de como ele poderia ter sido quando menino:
rosto fino, a pele lisa, cabelo curto com franja reta, camisa e
jeans sujos das brincadeiras na rua.
— Vamos lá — ela disse. — Pode perguntar.
Ele fixou o olhar na borda do seu pote de fruta enquanto
falava, fugindo subitamente a um encontro com os olhos
dela. — Logo que chegamos aqui, você mostrou onde ficava
a casa de sua avó. E disse que havia crescido ali.
Ela confirmou com a cabeça. Já tinha imaginado quando é
que ele iria fazer alguma pergunta a respeito.
— Eu sei — ela falou.
— Por quê?
Ela olhou para fora da janela; o hábito fez com que
procurasse a estrada que levava para fora da cidade. Quando
conseguiu encontrá-la, falou lentamente.
— Meus pais estavam voltando de Buxton, nas ilhas de
Outer Banks. Foi lá que eles se casaram, e tinham uma
pequena casa de praia naquela região. Não é fácil ir daqui pra
lá, mas a minha mãe jurava que era o lugar mais lindo do
mundo, então meu pai comprou um pequeno bote para que
não precisassem pegar a balsa para ir até lá. Aquilo era o
pequeno refúgio deles, para onde eles podiam fugir,
entende? Da varanda dá pra ver um lindo farol, e de vez em
quando eu também vou pra lá, como eles costumavam ir, só
pra fugir um pouco disso tudo.
Os lábios dela esboçaram um sorriso levíssimo antes que ela
prosseguisse. — Bom, ao voltar para casa naquela noite,
meus pais deviam estar cansados. Ainda demora algumas
horas para chegar até lá, mesmo sem a balsa, e tudo leva a
crer que, no caminho para casa, meu pai deve ter dormido
ao volante e o carro caiu da ponte. Quando a polícia
encontrou o carro na manhã seguinte e o tirou do fundo da
água, os dois estavam mortos.
Jeremy ficou em silêncio por algum tempo. — Isso é terrível
— ele disse, por fim. — Quantos anos você tinha?
— Dois. Eu tinha ficado com Dóris naquela noite, e no dia
seguinte ela foi até o hospital com meu avô. Quando
voltaram, ela me disse que eu iria viver com eles a partir
dali. E foi o que aconteceu. Mas é estranho, quer dizer, eu
sei o que aconteceu, mas é como se não fosse de verdade,
pra valer. Enquanto crescia, eu não me sentia como se
tivesse perdido alguma coisa. Para mim, meus avós pareciam
iguais aos pais de todo mundo, a única diferença é que eu os
chamava pelo primeiro nome — ela sorriu. — A propósito,
isso foi idéia deles. Acho que não queriam que eu pensasse
mais neles como avós, já que estavam me criando, mas eles
também não eram meus pais.
Quando ela terminou, olhou para ele, observando o
contorno de seus ombros sob o suéter e admirando a
covinha de novo.
— Agora é minha vez de fazer perguntas — ela disse. — Eu
falei demais, e sei que a minha vida deve ser uma chatice
comparada com a sua. Não estou me referindo à história de
meus pais; quer dizer, mas ao fato de viver aqui, é claro.
— Não, não é chata de forma alguma. É interessante. É
como... quando lemos um livro novo e ao virar as páginas
vivenciamos algo inesperado.
— Bela metáfora.
— Achei que fosse gostar.
— E quanto a você? O que fez você querer se tornar um
jornalista? Nos minutos que se seguiram, ele falou sobre seus
anos de faculdade,
seus planos para se tornar professor, e a série de
acontecimentos que o haviam levado até ali.
— E você disse que tem cinco irmãos?
Ele confirmou com a cabeça. — Cinco irmãos mais velhos.
Sou-o caçula da família.
— Eu não sei por que, mas não consigo ver você com
irmãos.
— Por quê?
— Pra mim você tem um jeito de filho único.
Ele sacudiu a cabeça. — E uma pena que você não tenha
herdado as habilidades adivinhatórias do resto da família.
Ela sorriu, antes de desviar o olhar para longe. Na distância,
falcões de rabo vermelho voavam em círculos sobre a
cidade. Ela colocou a mão contra a janela do carro, sentindo
o frio do vidro em sua pele. — Duzentos e quarenta e sete
— ela disse.
Ele virou os olhos em sua direção. — Desculpe?
— Esse é o número de mulheres que já visitaram Dóris para
saber o sexo de seus bebês. Enquanto crescia, eu as via
quando apareciam na cozinha para visitar minha avó. E é
engraçado, até hoje eu consigo me lembrar de que ficava
pensando que todas elas tinham algumas coisas em comum:
o brilho dos olhos, a pele brilhante, e uma emoção
verdadeira. Acho que é verdade essa história de que as
mulheres grávidas parecem ficar resplandecentes, e eu me
lembro de ter pensado que gostaria de ficar exatamente
daquele jeito quando eu crescesse. Primeiro, Dóris
conversava com elas durante algum tempo, para ter certeza
de que elas queriam saber, depois pegava as mãos delas e de
repente ficava completamente em silêncio. Algumas delas
sequer aparentavam estar grávidas, e alguns segundos depois
ela fazia seu pronunciamento — Lexie deixou escapar um
leve suspiro. — Ela acertou todas as vezes. Duzentas e
quarenta e sete mulheres passaram por lá, e ela acertou
duzentas e quarenta e sete vezes. Dóris anotou os nomes
delas em um caderno e escreveu tudo o que tinha dito,
inclusive as datas em que foram feitas as visitas. Você pode
verificar se quiser. Ela ainda tem esse caderno na cozinha.
Jeremy simplesmente a fitou, o olhar parado. Impossível, ele
pensou, uma coincidência estatística. Que pressionava os
limites da credibilidade, mas ainda assim uma coincidência.
E o caderno, sem dúvida alguma, mostraria apenas os
palpites que ela havia acertado.
— Eu sei o que está pensando — ela disse —, mas você
também pode ir até o hospital para se certificar. Ou falar
com as mulheres. E pode falar com quem quiser, para ver se
alguma vez ela se enganou. Mas isso nunca aconteceu. Até
os médicos das redondezas vão lhe dizer sem rodeios que ela
tem um dom.
— Você alguma vez pensou que ela poderia conhecer
alguém que fizesse os exames de ultra-som?
— Impossível — ela insistiu.
— Como é que você pode ter tanta certeza?
— Porque foi aí que ela parou. Quando essa tecnologia
finalmente chegou à cidade. Não havia mais motivo para que
as pessoas a procurassem, já que elas mesmas poderiam ver a
imagem do bebê. As visitas das mulheres começaram a
diminuir depois disso, depois ficaram muito raras. Agora
aparecem uma ou duas pessoas por ano, normalmente
pessoas que vêm de fora, da zona rural, que não têm plano
de saúde. Acho que se pode dizer que seus dons não têm
tido muita procura ultimamente.
— E as premonições?
— A mesma coisa — ela disse. — Por aqui não há muita
procura por alguém com as habilidades que ela possui. Toda
a parte leste do estado fica sobre um grande reservatório.
Você pode cavar um poço em qualquer lugar por aqui e
certamente vai encontrar água. Mas na época em que ela era
criança, em Cobb County, na Geórgia, os fazendeiros iam
até a casa dela para pedir ajuda, principalmente na estação da
seca. E apesar de não ter mais que oito ou nove anos, ela
sempre encontrava água.
— Interessante — observou Jeremy.
— Parece que você ainda não acredita.
Ele se mexeu no banco. — Existe uma explicação em algum
lugar. Tudo tem uma explicação.
— Você não acredita em magia de nenhum tipo?
— Não — ele falou.
— Isso é triste — ela disse. — Porque às vezes ela existe.
Ele sorriu. — Bom, talvez eu encontre alguma coisa que me
faça mudar de idéia enquanto ainda estiver por aqui.
Ela também sorriu. — Você já encontrou. Só que é teimoso
demais para acreditar nisso.

Depois que acabaram seu almoço improvisado, Jeremy ligou
o carro novamente e eles desceram Riker's Hill sacolejando,
como se as rodas da frente estivessem entrando em todos os
buracos do caminho. Só se ouvia o barulho das batidas e das
freadas do carro, e quando acabou a descida, os punhos de
Jeremy, ainda grudados no volante, haviam perdido a cor.
Eles seguiram pelas mesmas estradas na volta. Ao passar pelo
Cemitério de Cedar Creek, Jeremy olhou para o topo de
Riker's Hill; apesar da distância, ele conseguiu visualizar o
lugar em que haviam estado.
— Será que teríamos tempo para ver outros lugares? Eu
adoraria dar uma volta pela marina, ver a fábrica de papel e
talvez dar uma olhada na ponte suspensa da ferrovia.
— Nós temos tempo — ela disse. — Desde que não
fiquemos muito. Todos esses lugares ficam muito próximos
uns dos outros.
Dez minutos depois, seguindo as instruções de Lexie, ele
estacionou novamente. Eles se encontravam no limite do
perímetro do centro da cidade, há alguns quarteirões do
Herbs, perto de um passeio feito de tábuas ao longo da
margem do rio. O rio Pamlico tinha quase dois mil metros
de largura, a correnteza era forte e ia formando pequenas
ondas sobre as águas que seguiam seu fluxo intenso. Na outra
margem do rio, perto da ponte suspensa da rodovia, a fábrica
de papel — uma estrutura gigantesca — soltava nuvens de
fumaça pelas chaminés, dispostas frente a frente em cima do
telhado.
Ao sair do carro, Jeremy esticou o corpo e Lexie cruzou os
braços. Seu queixo começou a ficar vermelho por causa do
frio.
— Está muito frio — ele admitiu. — Parece que está mais
frio aqui do que lá no alto, mas talvez porque tenhamos nos
acostumado com o aquecimento dentro do carro.
Jeremy fez um esforço para alcançá-la, pois Lexie já estava a
caminho do passeio de tábuas. Ela finalmente diminuiu o
passo e parou, debruçando-se sobre o peitoril, enquanto
Jeremy olhava para a ponte suspensa. Construída bem acima
do rio, para permitir a passagem dos barcos maiores, sua
estrutura se sustentava sobre vigas trançadas, parecendo uma
ponte pênsil.
— Eu não sabia a que distância você queria chegar — ela
disse. — Se tivéssemos mais tempo, eu o levaria até a fábrica
do outro lado do rio, mas acho que daqui você pode apreciar
uma vista mais bonita. — Ela apontou para o outro lado da
cidade. — A marina fica daquele lado, perto da estrada.
Você consegue enxergar onde estão parados todos os
barcos?
Jeremy acenou afirmativamente com a cabeça. Por algum
motivo, ele esperava alguma coisa mais grandiosa.
— Barcos grandes também podem parar lá?
— Acho que sim. De vez em quando alguns iates grandes de
New Bern fazem uma parada de alguns dias.
— E barcaças?
— Acho que poderiam. A dragagem do rio é feita para
permitir a circulação das barcaças que transportam a
madeira, mas normalmente elas param do outro lado. Bem
ali — ela apontou para o que parecia ser uma pequena
enseada. -— Agora dá pra ver algumas delas, todas
carregadas.
Ele acompanhou a direção de seu olhar, depois olhou ao
redor, fazendo uma avaliação. Olhando para Riker's Hill a
distância, a ponte e a fábrica pareciam perfeitamente
alinhadas. Coincidência? Ou sem nenhuma importância? Ele
fixou os olhos na direção da fábrica de papel, tentando ima-
ginar se os topos das chaminés eram iluminados à noite. Ele
teria de checar isso.
— Todo o transporte da madeira é feito por meio das
barcaças, ou você sabe se eles também usam a ferrovia?
— Eu nunca prestei atenção, para falar a verdade. Mas acho
que é fácil de descobrir.
— Você sabe quantos trens costumam atravessar a ponte?
— Também não tenho certeza quanto a isso. Às vezes
escuto um apito à noite, e já tive de parar algumas vezes
diante da linha do trem na cidade, para esperar o trem
passar, mas eu não teria como lhe dar essa informação com
segurança. Mas sei que eles fazem muitos carregamentos
direto na fábrica. É lá que o trem faz realmente uma parada.
Jeremy mexeu a cabeça enquanto fitava a ponte.
Lexie exibiu um sorriso e continuou a falar. — Eu sei o que
você está pensando. Está pensando que talvez o brilho da
luz do trem quando ele atravessa a ponte esteja criando as
luzes, certo?
— Essa idéia realmente me ocorreu.
— Não é isso — ela disse, mexendo a cabeça.
— Tem certeza?
— À noite, os trens ficam parados junto ao pátio da fábrica
de papel para que possam ser carregados no dia seguinte.
Assim, o brilho da luz da locomotiva fica virado no sentido
oposto, contrário à direção de Riker's Hill.
Ele ficou avaliando essa informação enquanto se juntava a
ela, ao lado do peitoril. O vento balançava seu cabelo,
deixando-o completamente despenteado. Ela enfiou as mãos
nos bolsos do casaco.
— Dá pra ver por que você gosta de ter sido criada aqui —
ele comentou.
Ela se virou, de forma que pôde apoiar as costas no peitoril e
ficar de frente para a cidade — as lojinhas arrumadas e
enfeitadas com bandeiras americanas, a barbearia, o pequeno
parque situado na extremidade do passeio de tábuas. Pela
calçada, as pessoas que entravam e saíam das lojas, car-
regando sacolas. Apesar do frio, parecia que ninguém tinha
pressa alguma.
— Bem, tem muito a ver com Nova Iorque, isso eu tenho
de admitir. Ele riu. — Não é isso o que eu quis dizer. Eu quis
dizer que os meus pais
provavelmente teriam adorado criar os filhos num lugar
como este. Com grandes espaços cobertos de grama e
florestas para brincar. E até um rio para nadar nos dias
quentes. Deve ter sido... idílico.
— Ainda é. E é isso o que as pessoas dizem a respeito da vida
por aqui.
— Você parece ter florescido aqui.
Por um momento, ela pareceu quase triste. — Sim, mas eu
fui embora para fazer faculdade. A maioria das pessoas daqui
nunca sai. O município é pobre, e o vilarejo teve de lutar
muito desde que a tecelagem e a mina de fósforo fecharam,
e muitos pais não estão dispostos a gastar muito para
proporcionar uma boa educação para os filhos. Isso é que é
difícil às vezes — tentar convencer algumas crianças de que
há mais coisas na vida além de trabalhar na fábrica de papel
do outro lado do rio. Eu vivo aqui porque quero viver aqui.
Fiz essa escolha. Mas muitas dessas pessoas ficam
simplesmente porque para elas é impossível sair daqui.
— Isso acontece em todos os lugares. Nenhum dos meus
irmãos freqüentou uma universidade também. Eu era um
tipo meio esquisito, de forma que o estudo caiu muito bem
em mim. Meus pais são trabalhadores e moraram no Queens
a vida inteira. Meu pai era motorista da companhia de
transportes metropolitanos. Passou quarenta anos sentado
atrás de um volante, até o dia em que se aposentou.
Ela parecia achar engraçado. — Que ironia. Ainda ontem, eu
o considerava uma figura típica do Upper East Side. Você
sabe, do tipo que os porteiros cumprimentam chamando
pelo nome, colégio particular, jantares com cinco pratos,
com um mordomo para anunciar os convidados.
Ele se encolheu, horrorizado. — Primeiro, filho único, e
agora isso? Estou começando a achar que você me considera
um garoto mimado.
— Não, mimado não... apenas...
— Não diga nada — ele falou, erguendo a mão. — Prefiro
não saber. Principalmente porque não é verdade.
— Como é que você sabe o que eu ia dizer?
— Porque até agora você errou dois palpites, e nenhum dos
dois era muito lisonjeiro.
Os cantos de sua boca revelaram o esboço de um sorriso. —
Sinto muito. Não tive intenção.
— Sim, você teve — ele respondeu, com um sorriso irônico.
Então se virou e também encostou as costas no parapeito,
sentindo a brisa tocando seu rosto. — Mas não se preocupe,
não vou levar isso para o lado pessoal. Quer dizer, já que eu
não sou um garoto rico mimado.
— Não. Você é um jornalista bastante objetivo.
— Exatamente.
— Embora se recuse a ter a mente aberta para qualquer coisa
misteriosa.
— Exatamente.
Ela riu. — E o que me diz dos supostos mistérios femininos?
Você não acredita neles?
— Ah, eu sei que eles existem — ele respondeu, pensando
especialmente nela. — Mas é algo bastante diferente da
crença na possibilidade da fusão a frio.
— Por quê?
— Porque as mulheres são um mistério subjetivo, e não
objetivo. Você não pode fazer qualquer cálculo científico no
que diz respeito a elas, embora, é claro, haja diferenças
genéticas entre os sexos. As mulheres só parecem
misteriosas para os homens porque eles não percebem que
homens e mulheres têm visões de mundo diferentes.
— Eles têm, hã?
— Claro. Isso tem a ver com a evolução e as melhores
alternativas para a preservação da espécie.
— E você é um especialista nessa área?
— Eu tenho algum conhecimento nessa área, sim.
— E por isso você também se considera um especialista em
mulheres?
— Não, é claro que não. Eu sou tímido, está lembrada?
— Hã-hã, eu me lembro. Eu só não acredito.
Ele cruzou os braços. — Deixe-me adivinhar... você acha
que eu tenho um problema com compromisso?
Ela o examinou com os olhos. — Acho que se pode resumir
assim.
Ele riu. — O que posso dizer? O mundo do jornalismo
investigativo é cheio de glamour, e há milhares de mulheres
que estão loucas para fazer parte dele.
Ela revirou os olhos. — Tá bom, que mentira! — ela disse.
— Você não é nenhum astro de cinema ou cantor de rock.
Você escreve para a Scientific American.
— E...?
— Bom, eu posso ter nascido no Sul, mas, assim mesmo, eu
não consigo imaginar sua revista sendo invadida por fãs.
Ele a encarou com olhar triunfal. — Acho que você acabou
de entrar em contradição.
Ela ergueu uma sobrancelha. — Você se acha muito esperto,
sr. Marsh, não acha?
— Ah, então agora você voltou para o sr. Marsh?
— Talvez. Ainda não decidi. — Ela prendeu uma mecha de
cabelo atrás da orelha. — Mas você está esquecendo o fato
de que não é preciso ter uma porção de fãs para... se
sociabilizar. Tudo o que precisa fazer é freqüentar os lugares
certos e derramar o seu charme.
— E você acha que eu sou charmoso?
— Eu diria que algumas mulheres devem considerá-lo
charmoso.
— Mas você, não.
— Nós não estamos falando de mim. Estamos falando de
você, e neste instante você está tentando mudar de assunto.
O que provavelmente quer dizer que estou certa, mas que
você não quer admitir.
Ele a olhou com admiração. — Você é muito esperta, srta.
Darnell. Ela concordou. — Já me disseram.
— E charmosa — ele fez questão de acrescentar.
Ela sorriu para ele, e depois desviou os olhos. Seu olhar se
perdeu no passeio que descia acompanhando o rio, depois
atravessou a rua na direção da cidade, depois se fixou no céu,
e por fim ela soltou um suspiro. Não iria responder ao
galanteio, ela decidiu. Apesar disso, sentiu que corava.
Como se tivesse lido sua mente, Jeremy mudou de assunto.
— Então, no fim de semana — ele começou —, o que vai
acontecer?
— Você não vai estar aqui? — ela perguntou.
— Provavelmente. Pelo menos durante uma parte. Mas eu só
estava curioso para saber o que você acha disso.
— Além de transformar a vida de algumas pessoas numa
loucura total durante alguns dias? — ela perguntou. — Acho
que... é necessário nesta época do ano. Temos a correria do
Dia de Ação de Graças e, depois, a do Natal, e de repente
não há nada na programação até a primavera. Enquanto isso,
o tempo é frio, cinzento, chuvoso... por isso, alguns anos
atrás, a prefeitura decidiu criar o Passeio pelas Casas
Históricas. E desde então foram acrescentando cada vez
mais festividades, na esperança de transformá-lo num fim de
semana especial. Este ano é o cemitério, no ano passado foi a
parada, no ano anterior eles fizeram um baile de música
country na sexta-feira à noite. Agora isso está se tornando
parte da tradição da cidade, de modo que a maioria das
pessoas da região fica esperando pela data. — Ela o olhou de
relance. — Mesmo que pequena e sem importância, a cidade
é realmente divertida.
Olhando-a de frente, Jeremy ergueu as sobrancelhas,
lembrando das fotos do baile no folheto. — Eles organizam
um baile? — ele perguntou, fingindo desconhecimento.
Ela fez que sim com um gesto de cabeça. — Na sexta à
noite. No celeiro de tabaco do Meyer, na cidade. É uma festa
e tanto, com música ao vivo e tudo. É a única noite do ano
em que o Lukilu fica praticamente vazio.
— Bem, quem sabe você dança comigo se eu resolver
aparecer.
Ela sorriu, e finalmente olhou para ele com um olhar quase
sedutor. — Vamos combinar uma coisa. Se tiver resolvido o
mistério até lá, eu danço com você.
— Promete?
— Prometo — ela disse. — Mas o combinado é que você
tem de resolver o mistério primeiro.
— Muito justo — ele falou. — Mal posso esperar. E quando
for a hora do swing ou dofox-trot... — ele sacudiu a cabeça,
soltando um longo suspiro. — Bem, só o que posso dizer é
que eu espero que você me acompanhe.
Ela riu. — Eu vou tentar.
Cruzando os braços, Lexie observou o sol que tentava, sem
êxito, brilhar através das nuvens. — Esta noite — ela disse.
Ele franziu a testa. — Esta noite?
— Você vai ver as luzes esta noite. Se for ao cemitério.
— Como você sabe?
— A neblina está se aproximando.
Ele seguiu seu olhar. — Como você pode saber? Eu não vejo
diferença alguma.
— Olhe para o outro lado do rio, atrás de mim — ela falou.
— O topo das chaminés da fábrica de papel já está encoberto
pelas nuvens.
— Sim, claro... — ele disse, sem completar a frase.
— Vire-se e olhe. Você vai ver.
Ele olhou para trás, por cima do ombro, depois olhou
novamente, estudando os contornos da fábrica de papel. —
Você tem razão.
— É claro que tenho.
— Acho que você deu uma espiada sem que eu percebesse.
— Não — ela disse. — Eu sabia, só isso.
— Claro. Mais um daqueles mistérios incômodos?
Ela se afastou do peitoril. — Se é assim que você quer
chamar — ela disse. — Mas, vamos lá. Está ficando tarde e
eu tenho de voltar para a biblioteca. Vou ter de ler para as
crianças em quinze minutos.
Enquanto voltavam para o carro, Jeremy reparou que o topo
de Riker's Hill também tinha ficado encoberto. Ele sorriu,
pensando, "Foi por issó que ela percebeu". Olhando lá para
cima, imaginou que também estivesse acontecendo do outro
lado do rio. Espertinha.
— Diga-me uma coisa — ele falou, esforçando-se para
esconder o sorriso cínico —, já que você parece ter talentos
ocultos. Como pode estar tão segura de que as luzes vão
aparecer esta noite?
Ela demorou um pouco para responder.
— Simplesmente estou.
— Bem, então acho que está combinado. Imagino que o
correto seria ir até lá esta noite, certo? — Assim que
pronunciou estas palavras, ele se lembrou do jantar a que
deveria comparecer e parou de repente.
— O que foi? — ela perguntou, sem entender.
— Lembrei que o prefeito está organizando um jantar com
algumas pessoas que ele acha que eu deveria conhecer — ele
explicou. — Uma pequena reunião ou algo do gênero.
— Para você?
Ele sorriu. — O que foi? Ficou impressionada com isso?
— Não, apenas surpresa.
— Por quê?
— Porque não ouvi falar nada a respeito.
— Eu mesmo só descobri hoje de manhã.
— Bem, ainda assim estou surpresa. Mas eu não ficaria
preocupada, mesmo comparecendo ao jantar com o prefeito.
Normalmente, as luzes só aparecem bem tarde da noite, de
qualquer forma. Você vai ter bastante tempo.
— Tem certeza?
— Foi quando eu as vi. Um pouco antes da meia-noite.
Ele parou de andar. — Espere aí — você viu as luzes?
Porque não me falou nada?
Ela sorriu. — Você não perguntou.
— É o que você vive dizendo.
— Bem, senhor jornalista, só porque você vive esquecendo
de perguntar.


Capítulo
OITO

Do outro lado da cidade, no Herbs, o policial Rodney
Hopper estava debruçado sobre sua xícara de café,
imaginando por onde andaria Lexie e aquele... garotão da
cidade.
Havia pensado em fazer uma surpresa a Lexie e levá-la para
almoçar, para que o Garotão da Cidade soubesse exatamente
em que pé estavam as coisas. Talvez ela o deixasse
acompanhá-la até o carro, enquanto o Garotão da Cidade
ficaria assistindo com inveja.
Ah, ele sabia exatamente o que o Garotão da Cidade tinha
visto em Lexie. E ele tinha de ver. Diabos, era impossível
não ver, Rodney pensou. Ela era a mulher mais bonita da
região, provavelmente do estado. Talvez até do mundo
inteiro.
Normalmente, ele não ficaria preocupado com um sujeito
fazendo pesquisa na biblioteca, e ele não ficou preocupado
quando ouviu falar pela primeira vez. Mas aí começou a
ouvir todo mundo cochichando a respeito do novo estranho
na cidade, por isso quis conferir. E eles estavam certos:
precisou apenas de uma olhada no Garotão da Cidade para
ver que ele tinha aquele jeito de cidade grande. As pessoas
que pesquisavam na biblioteca eram mais velhas e pareciam
professores desligados, usando óculos de leitura, a postura
não muito boa, parando de vez em quando para um café.
Mas não esse sujeito; não, esse sujeito parecia que tinha
acabado de sair do salão de beleza da Della. Mas até isso não
o teria preocupado tanto, se não fosse o fato de, nesse exato
momento, estarem os dois desfilando pela cidade, apenas os
dois sozinhos.
Rodney tinha uma expressão preocupada no rosto. Onde
estariam eles, afinal?
Não no Herbs. E também não no Pike's Diner. Não, ele
havia dado uma olhada no estacionamento desses lugares e
não os encontrara. Ficou pensando que poderia ter entrado e
perguntado, mas aí as pessoas poderiam falar, e ele não
estava certo de que essa teria sido uma boa idéia. Todos os
seus amigos faziam gozações a respeito de sua situação com
Leslie, principalmente quando ele contava que tinham
marcado outro encontro. Eles lhe diziam para esquecê-la,
que ela só estava com ele para ser legal, mas eles não sabiam
de nada. Todas as vezes que ele a convidara, ela tinha
aceitado o convite, não tinha? Ele pensou a respeito. Bem, a
maioria das vezes, de qualquer forma. Ela nunca o beijava no
final do encontro, mas aí já era pedir demais. Ele era
paciente e ia chegar a hora. Todas as vezes que saíam,
abordavam cada vez mais profundamente assuntos sérios.
Ele sabia disso. Podia sentir isso. Seus amigos, ele sabia,
apenas estavam com inveja.
Tivera a esperança de que Doris pudesse lhe dar alguma
idéia, mas por acaso ela também não estava por ali. Tinha ido
falar com o contador, foi o que lhe disseram, mas voltaria
logo. O que, obviamente, não ajudara muito, pois sua hora
de almoço já estava quase no fim e não poderia simples-
mente ficar esperando por ela. Além disso, ela
provavelmente iria negar que estava sabendo de alguma
coisa. Ele tinha ouvido falar que ela até gostava do Garotão
da Cidade, e bem... isso não era especial?
— Desculpe, querido? — Rachel falou. — Você está bem?
Rodney ergueu o olhar e a viu parada ao lado da mesa com o
bule de café na mão.
— Não é nada, Rachel —- ele disse. — Apenas mais um
daqueles dias.
— Os caras maus estão incomodando você de novo?
Rodney fez que sim com a cabeça. — Acho que dá pra dizer
que sim. Ela sorriu, e ficou bonita com o sorriso no rosto,
mas Rodney não pareceu perceber. Há muito tempo ele a
via apenas como uma espécie de irmã.
— Bem, as coisas vão melhorar — ela disse para animá-lo.
Ele concordou com a cabeça. — Você deve ter razão.
Ela apertou os lábios. Às vezes ficava preocupada com
Rodney.
— Tem certeza de que não pode entrar e comer alguma coisa
rapidinho? Sei que está com pressa e posso pedir para que
preparem alguma coisa bem rápida.
— Não. Não estou com tanta fome. E tenho proteína em pó
no carro para mais tarde. Não se preocupe comigo. — Ele
estendeu a mão que segurava a xícara. — Mas um pouco
mais de café seria bom.
— Aqui está — ela disse, enchendo a xícara.
— Ei, por acaso você reparou se Lexie passou por aqui?
Talvez para pedir alguma coisa pra viagem?
Ela sacudiu a cabeça. — Eu não a vi o dia inteiro. Você já viu
na biblioteca? Posso dar uma ligada pra lá se for importante.
— Não, não é tão importante.
Ela continuou perto da mesa, como se estivesse pensando
no que dizer em seguida. — Eu vi você falando com Jeremy
Marsh hoje de manhã.
— Quem? — Rodney perguntou, tentando parecer inocente.
— O jornalista de Nova Iorque. Você não lembra?
— Ah, sim. Eu só achei que devia me apresentar pra ele.
— Ele é um cara bonitão, não é?
— Eu não costumo reparar se os outros homens são bonitos
— ele resmungou.
— Bom, ele é. Eu poderia ficar olhando pra ele o dia todo.
Quer dizer, aquele cabelo. Me dá uma vontade de passar os
dedos naquela cabeça. Está todo mundo falando dele.
— Que ótimo — Rodney resmungou de novo, sentindo-se
pior.
— Ele me convidou para ir a Nova Iorque — ela falou.
Ao ouvir isso, Rodney parou, imaginando se tinha ouvido
direito. — Ele convidou?
— Bom, foi uma espécie de convite. Ele falou que eu deveria
fazer uma visita, e apesar de não ter dito com todas essas
palavras, acho que ele meio que disse que eu podia visitá-lo.
— Verdade? Isso é ótimo, Rachel.
— O que você acha dele?
Rodney se mexeu na cadeira. — A gente não conversou
muito.
— Ah, mas você deveria conversar. Ele é muito
interessante e muito inteligente. E aquele cabelo. Eu já falei
do cabelo?
— Sim — Rodney disse. Ele tomou outro gole de café,
procurando acalmar-se para ver se entendia o que estava
acontecendo. Então, ele tinha convidado Rachel para ir a
Nova Iorque? Ou Rachel é que havia se convidado? Ele não
tinha muita certeza. Ele não conseguia entender porque o
Garotão da Cidade poderia achar que ela era atraente, mas
ele definitivamente fazia o tipo que avançava sobre as
mulheres, mas... mas... Rachel tinha a mania de exagerar, e
Lexie e o Garotão da Cidade tinham sumido e estavam em
algum lugar, sabe-se lá onde. Tinha alguma coisa aqui que
não batia, não tinha?
Ele começou a se mexer para ir embora. — Bom, escuta, se
você encontrar com Lexie, diga a ela que estive aqui, certo?
— Claro. Quer que eu coloque seu café num copo
descartável para viagem?
— Não, obrigado. Já estou sentindo o estômago me
incomodar um pouco.
— Ah, coitadinho. Acho que temos alguns comprimidos pra
dor de estômago lá atrás. Quer que eu lhe traga um?
— Pra falar a verdade, Rach — ele respondeu, estufando o
peito e tentando parecer oficial de novo —, eu não acho que
isso possa ajudar.

Em outro lugar da cidade, do lado de fora do escritório do
contador, o prefeito Gherkin corria para alcançar Dóris.
— Aqui está a mulher que eu queria ver — ele gritou.
Dóris se virou e viu quando ele se aproximava, com seu
paletó vermelho e sua calça xadrez — ela não conseguiu
deixar de pensar que o homem devia ser daltônico. Poucas
vezes ele exibia uma aparência que não fosse simplesmente
ridícula.
— Em que posso ajudá-lo, Tom?
— Bem, não sei se você ouviu falar ou não, mas estamos
organizando uma noite especial para o nosso convidado,
Jeremy Marsh — ele disse. — Ele está escrevendo uma
grande história, sabe, e...
Dóris completou a frase mentalmente, e pronunciou as
palavras junto com ele.
— ...você sabe como isso pode ser importante para a cidade.
— Já ouvi falar — ela disse. — E isso é bom, principalmente
para seus negócios.
— Estou pensando na comunidade como um todo — ele
disse, ignorando o comentário. — Passei toda a manhã
tentando organizar as coisas para que corra tudo bem. Mas
eu esperava que você se dispusesse a nos ajudar com a
comida.
— Você quer que eu forneça a comida?
— Não de graça, veja bem. A cidade terá o maior prazer em
reembolsar suas despesas. Estamos planejando realizar tudo
na velha Fazenda Lawson, nos arredores da cidade. Já falei
com o pessoal de lá, e eles disseram que ficariam muito
satisfeitos em nos deixar usar as instalações. Imagino que
poderíamos fazer uma pequena reunião, e depois usá-la
como ponto de partida para o Passeio pelas Casas Históricas.
Já falei com o jornal, e eles estão pensando em mandar um
repórter...
— Quando é que você está pensando em fazer essa pequena
reunião? — ela perguntou, cortando o que ele dizia.
Ele pareceu momentaneamente perplexo com a interrupção.
— Bem, hoje à noite, é claro... mas, como eu estava
dizendo...
— Hoje à noite? — ela o interrompeu novamente. — Você
quer que eu prepare as coisas para uma de suas pequenas
reuniões esta noite.
— É por uma boa causa, Dóris. Eu sei que é muita falta de
consideração da minha parte largar uma bomba dessas na sua
mão, mas podemos estar prestes a presenciar grandes
acontecimentos, e precisamos correr para aproveitar ao
máximo. Nós dois sabemos que você é a única pessoa com
condições de dar conta de uma coisa dessas. Eu estava
pensando que você poderia fazer o seu pesto de frango
especial, mas sem os sanduíches...
— Jeremy Marsh está sabendo disso?
— É claro que ele sabe. Nossa, falei com ele hoje de manhã,
e ele me pareceu bastante animado com a idéia.
— Verdade? — ela perguntou, inclinando-se para trás,
duvidando.
— E eu espero que Lexie possa vir também. Você sabe como
ela é importante para o pessoal desta cidade.
— Duvido que ela vá. Ela detesta esse tipo de coisa, a menos
que seja absolutamente necessário. E este não me parece que
seja absolutamente necessário.
— Talvez você tenha razão. Mas, de qualquer forma, como
eu estava dizendo, gostaria de fazer com que esta noite nos
ajudasse a dar o pontapé inicial para o fim de semana.
— Você não está esquecendo que sou contra a idéia de usar o
cemitério como atração turística?
— É claro que não — ele disse. — Lembro exatamente de
tudo o que você me disse. Mas você quer que a sua opinião
seja ouvida ou não? Se você não aparecer, não vai haver
ninguém ali para representar o seu lado nessa questão.
Dóris encarou o prefeito Gherkin demoradamente. O
homem com certeza sabia que botão deveria apertar. Além
disso, ele estava absolutamente certo. Se ela não fosse, já
podia imaginar o que Jeremy acabaria escrevendo, se tivesse
como única fonte o prefeito e os membros da assembléia da
cidade. Tom estava certo: ela era a única que poderia cuidar
de uma coisa dessas em tão curto espaço de tempo. Os dois
sabiam que ela estivera se preparando para o passeio do fim
de semana e já havia enchido a geladeira com muita comida.
— Está certo — ela capitulou. — Vou cuidar de tudo. Mas
não pense nem por um segundo que vou servir todo mundo.
Será tipo bufê, e vou sentar em uma mesa como todos
vocês.
O prefeito Gherkin sorriu. — Eu não aceitaria se não fosse
desse jeito, Dóris.

O policial Rodney Hopper estava sentado em seu carro em
frente à biblioteca no outro lado da rua, pensando se devia
ou não entrar e falar com Lexie. Dali ele conseguia ver o
carro do Garotão da Cidade parado no estacionamento, o
que significava que eles já tinham voltado de onde quer que
tivessem ido, e ele também conseguia ver luzes brilhando
através da janela, no escritório de Lexie.
Conseguia imaginar Lexie em seu escritório, lendo, sentada
em cima das pernas, os joelhos dobrados, enrolando as
mechas de cabelo enquanto virava as páginas de um livro.
Queria conversar com ela, mas o problema era que ele sabia
que não tinha um bom motivo para procurá-la. Ele nunca ia
até a biblioteca só para conversar porque, francamente, ele
não tinha muita certeza de que ela gostaria que fizesse isso.
Ela nunca tinha sugerido que poderia dar uma passada por ali
só para vê-la, e sempre que ele tentava desviar a conversa
nessa direção, ela mudava de assunto. De certa forma, fazia
sentido, já que ela precisava trabalhar, mas, ao mesmo tem-
po, ele sabia que, se ela o encorajasse a visitá-la, significaria
mais um pequeno passo na evolução do relacionamento
deles.
Ele viu uma figura passar pela janela, e ficou pensando se o
Garotão da Cidade estaria no escritório com ela.
Ele franziu a testa. Isso, sim, era de surpreender, não era?
Primeiro, um almoço — algo que ele e Lexie nunca tinham
feito —, e agora uma visita amigável no trabalho. Ele
continuou com a testa franzida, pensando a respeito do
assunto. Em menos de um dia, o Garotão da Cidade já estava
botando as manguinhas de fora, não é mesmo? Bem, talvez
ele tivesse de procurá-lo para outra conversinha a respeito
daquela situação. Explicar as coisas para ele, de forma que o
Garotão da Cidade entendesse direitinho em que pé estavam
as coisas.
Naturalmente, isso significaria que a situação dele com Lexie
estava em algum ponto, e nesse momento ele não tinha
muita certeza de qual era exatamente esse ponto. Até
ontem, ele estava satisfeito com o relacionamento deles.
Bem, está certo, talvez não estivesse completamente satisfei-
to. Ele preferiria que as coisas andassem um pouco mais
rápido, mas essa não era a questão. A questão é que até
ontem ele sabia que não havia concorrência, mas hoje os
dois estavam sentados lá dentro, provavelmente rindo e
fazendo piadas, divertindo-se pra valer. E ali estava ele,
sentado num carro parado, olhando para eles do lado de
fora.
Mas talvez Lexie e o Garotão da Cidade não estivessem
juntos no escritório. Talvez Lexie estivesse fazendo... bem,
seu trabalho de bibliotecária, enquanto o Garotão da Cidade
estava enfiado num canto, lendo algum livro mofado. Talvez
Lexie estivesse apenas sendo educada, já que o sujeito estava
visitando a cidade. Ele pensou um pouco a respeito, antes de
decidir que fazia sentido. Bom, todo mundo estava fazendo
o que podia para que o sujeito se sentisse à vontade, certo? E
o prefeito estava comandando o cumprimento dessa
obrigação. Naquela manhã, quando ele estava diante do
Garotão da Cidade, exatamente quando pretendia enquadrar
o sujeito, o prefeito (o prefeito!) tinha ajudado o sujeito a
escapar em segurança. E aí tinha dado nisso. O Garotão da
Cidade e Lexie estavam colhendo flores e vendo o arco-íris
juntinhos.
Mas talvez não fosse nada disso.
Ele detestava o fato de não saber o que estava acontecendo,
e bem quando ele estava se preparando para ir até lá, seus
pensamentos foram interrompidos por uma batida no vidro.
Levou um minuto para que o rosto ficasse visível.
O prefeito. O sr. Interrupção no Momento Errado. Duas
vezes já.
Rodney abaixou o vidro da janela do carro e sentiu o frio
bater no rosto. O prefeito Gherkin se inclinou, usando as
mãos para se apoiar.
— Aqui está o homem que eu estava procurando — disse o
prefeito Gherkin. — Eu estava passando de carro quando vi
você, e aí me lembrei de que vamos precisar de um
representante do setor responsável pelo cumprimento da lei
esta noite.
— Para quê?
— A pequena reunião, é claro. Para Jeremy Marsh, nosso
ilustre visitante. Hoje à noite na Fazenda Lawson.
Rodney piscou. — Você está brincando, não está?
— Não, é claro que não. Na verdade, a essa hora o Gary já
deve estar fazendo uma chave da cidade para ele, que eu
encomendei.
— Uma chave da cidade — Rodney repetiu.
— É claro, não conte a ninguém sobre isso. Deverá ser uma
surpresa. Mas já que isso está se tornando mais oficial, eu
realmente gostaria de contar com a sua presença esta noite.
A noite vai parecer mais... cerimoniosa. Eu gostaria que
você estivesse do meu lado quando eu a entregasse a ele.
Rodney estufou o peito, lisonjeado. Mesmo assim, não havia
a menor chance de ele sequer pensar em fazer uma coisa
daquelas. — Eu acho que esse papel está mais para o meu
chefe, você não acha?
— Bem, está certo. Mas nós sabemos que neste momento ele
está nas montanhas, caçando. E como você é o responsável
quando ele está fora, essa é mais uma das obrigações que
acabam sobrando pra você.
— Eu não sei, Tom. Eu teria de convocar alguém para me
cobrir. É uma pena, mas eu realmente acho que não vou
poder.
— É uma pena. Mas eu entendo. O dever é
sagrado. Rodney soltou um suspiro de alívio. —
Obrigado.
— Mas eu tenho certeza de que Lexie iria adorar encontrar
com você.
— Lexie?
— É claro. Ela dirige a biblioteca, e isso faz dela um dos
dignitários que deverão comparecer. Ora essa, eu estava
justamente passando para falar com ela sobre isso. Mas eu
tenho certeza de que ela vai gostar de conversar com o
nosso convidado, mesmo que você não esteja lá. — O
prefeito se endireitou. — Mas tudo bem, como eu já disse,
eu entendo.
— Espere! — Rodney falou, a mente trabalhando acelerada,
tentando recapitular. — Você disse que é hoje à noite,
certo?
O prefeito acenou afirmativamente com a cabeça.
— Eu não sei onde é que eu estava com a cabeça, mas acho
que o Bruce já está escalado para trabalhar, por isso eu acho
que posso dar um jeito.
O prefeito sorriu. — Fico feliz em ouvir isso — ele disse. —
Agora deixa eu entrar para falar com a srta. Darnell. Você
não estava pensando em entrar lá para falar com ela, estava?
Quer dizer, eu não me importo em esperar.
— Não — Rodney falou. — Só diga a ela que a verei mais
tarde.
— Pode deixar, policial.

Depois de fornecer a Jeremy algumas informações adicionais
e de passar rapidamente por seu escritório, Lexie se viu
cercada por vinte crianças, algumas delas sentadas no colo
de suas mães. Ela estava sentada no chão, lendo o terceiro
livro. Havia um grande barulho na sala, como sempre. Em
uma mesinha baixa, na lateral, foram colocados biscoitos e
suco; no canto oposto da sala, algumas crianças menos
interessadas na leitura estavam entretidas com os brinquedos
que ela deixava nas prateleiras. Outras ainda, brincavam de
pintar com as mãos em uma mesa improvisada que ela
mesma havia criado. A sala era decorada com cores alegres
— as prateleiras pareciam lápis de cor, sem nenhum tema
especial, além do colorido. Apesar das reclamações de alguns
dos voluntários e empregados mais velhos — que queriam
que as crianças sentassem em silêncio para ouvir as histórias,
como acontecia antes —, Lexie queria que as crianças se
divertissem na biblioteca. Ela queria que elas ficassem
animadas com a idéia de ir até lá, mesmo que para isso
fossem necessários brinquedos, jogos e uma sala que era
tudo, menos silenciosa. Ao longo dos anos, ela pôde ver
dezenas de crianças que passavam um ou dois anos
brincando, antes de descobrirem o prazer da leitura, mas
para ela isso não era problema. Desde que continuassem a
vir.
Mas hoje, enquanto estava lendo, ela sentia que sua cabeça
teimava em voltar para o almoço que havia compartilhado
com Jeremy. Embora não pudesse ser descrito como um
encontro, essa sensação pairava no ar, o que o tornava algo
desconcertante. Relembrando os acontecimentos, ela
percebeu que havia revelado muito mais coisas à respeito de
si mesma do que pretendia, e ficava tentando se lembrar de
como isso acontecera. E não é que ele tivesse sido
intrometido. Ao contrário, simplesmente tinha acontecido.
Mas por que cargas d'água ela ainda estava remoendo essas
coisas?
Ela não gostava de imaginar a si mesma como uma
neurótica, mas essa análise interminável era muito estranha.
Além disso, disse a si mesma, tinha sido mais um passeio
turístico em que ela servira de guia do que propriamente um
encontro. Mas não importava o quanto se esforçasse para
parar de pensar, a imagem de Jeremy continuava a surgir
inesperadamente: o sorriso levemente evasivo, seu ar de
divertimento com as coisas que ela dizia. Ela não conseguia
evitar de se perguntar no que ele pensaria a respeito de sua
vida ali, para não falar do que ele pensaria a respeito dela. Ela
até havia corado quando ele disse que a achava charmosa. O
que significaria tudo isso? Talvez, ela pensou, por ter falado
abertamente sobre meu passado, eu esteja me sentindo
vulnerável.
Ela fez uma observação mental para que isso não se
repetisse. Mesmo assim...
Não fora tão ruim, tinha de admitir. Apenas uma conversa
com uma pessoa nova, alguém que não conhecia todo
mundo e nem sabia de tudo o que estava acontecendo na
cidade, e isso era bom. Ela até havia esquecido como isso
podia ser especial. E ele a tinha surpreendido. Dóris tinha
razão, pelo menos em parte. Ele não era o que ela pensava
que fosse. Era mais inteligente do que imaginara, e mesmo
tendo uma postura fechada para qualquer possibilidade de
mistério, ele compensara tudo, encarando com bom humor
suas diferenças no modo de pensar e de levar a vida. Ele
também era capaz de fazer ironia consigo mesmo, o que era
muito charmoso.
Enquanto prosseguia com a leitura para as crianças —
felizmente, o livro não era complicado —, sua mente se
recusava a parar de divagar.
Certo, então ela gostava dele. Tinha de admitir. E para falar a
verdade, gostaria de passar mais tempo com ele. Mas, apesar
de reconhecer esse fato, continuava a ouvir aquela vozinha
em sua cabeça que a alertava para não se machucar. Ela teria
de tomar muito cuidado — apesar de que pareciam estar se
dando bem —, pois Jeremy Marsh poderia realmente
machucá-la, se ela permitisse que isso acontecesse.

Jeremy estava debruçado sobre uma série de mapas das ruas
de Boone Creek, pertencentes aos anos de 1850. Quanto
mais antigos, mais detalhes escritos pareciam ter, e enquanto
observava como a cidade tinha mudado a cada década, mais
anotações ele fazia. De vilarejo pacato incrustado junto a
uma dezena de estradas, a cidade havia se expandido
continuamente.
O cemitério, como ele já sabia, estava situado entre o rio e
Riker's Hill; o mais importante era que ele havia percebido
que se fosse traçada uma linha entre Riker's Hill e a fábrica
de papel, ela passaria diretamente através do cemitério. A
distância total era um pouco menor que cinco quilômetros,
e ele sabia que a refração da luz era possível nessa distância,
mesmo em noites nubladas. Ficou pensando se a fábrica teria
um terceiro turno, o que exigiria a manutenção das luzes
acesas durante a noite. Com o volume certo de neblina e
iluminação suficiente, tudo poderia ser explicado numa
tacada só.
Depois de refletir, ele percebeu que deveria ter notado a
relação em linha reta entre a fábrica de papel e Riker's Hill
quando estivera lá em cima. Em vez disso, ficara apreciando
a vista, olhando a cidade e passando o tempo com Lexie.
Ele ainda estava tentando entender a mudança repentina em
seu comportamento. Ainda ontem, ela não queria nada com
ele, e hoje... bem, hoje tinha sido um novo dia, não é
mesmo? O diabo é que ele não conseguia parar de pensar
nela, e não só da maneira mais comum, daquele jeito de
pensar na pessoa que pendura a roupa do lado da sua. Ele
não conseguia lembrar de quando é que isso tinha
acontecido pela última vez. Com Maria, certamente, mas
isso tinha sido há muito tempo. Numa outra vida, quando
ele era inteiramente outra pessoa. Mas hoje a conversa tinha
sido tão natural, ele havia ficado tão à vontade, que, apesar
do fato de saber que tinha de terminar de estudar os mapas,
tudo o que realmente queria fazer era conhecê-la um pouco
melhor.
Estranho, ele pensou, e antes que percebesse o que estava
acontecendo, deixou a mesa em que estava trabalhando e
começou a andar na direção das escadas. Ele sabia que ela
estava lendo para as crianças, e não tinha intenção de
perturbá-la, mas de repente ficara com vontade de vê-la.
Ele desceu os degraus, fez a volta e foi até uma das paredes
de vidro. Levou poucos minutos para localizar Lexie sentada
no chão, cercada pelas crianças.
Ela fazia a leitura com muita animação, e ele sorriu ao ver as
expressões de seu rosto: os olhos arregalados, o "o" que fez
com a boca, o modo como se curvava para enfatizar alguma
coisa que estava acontecendo na história. As mães estavam
sentadas, com um sorriso no rosto. Algumas das crianças
estavam completamente paradas; outras, pareciam ter
tomado algum estimulante.
— Ela é realmente uma coisa, não é?
Surpreso, Jeremy virou-se para o lado. — Prefeito Gherkin.
O que está fazendo aqui?
— Ora, Vim para vê-lo, é claro. E a srta. Lexie também. Pra
falar do jantar de hoje à noite. Conseguimos organizar tudo.
Acho que vai ficar bastante impressionado.
— Tenho certeza que sim — Jeremy falou.
— Mas como eu estava dizendo, ela é mesmo uma coisa,
não é? Jeremy ficou calado, e o prefeito deu uma piscada
antes de continuar.
— Eu vi o jeito como estava olhando pra ela. O homem é
sempre traído pelo olhar. Os olhos sempre dizem a verdade.
— O que quer dizer isso?
O prefeito exibiu um sorrisinho irônico. — Bem , eu não sei.
Por que não me conta?
— Não há nada para contar.
— É claro que não — disse o prefeito.
Jeremy mexeu a cabeça. — Escute, sr. prefeito... Tom...
— Ora, não se preocupe. Eu estava só brincando. Mas deixe
eu lhe contar umas coisas sobre nossa reunião desta noite.
O prefeito Gherkin contou a Jeremy qual havia sido o local
escolhido, e então lhe passou algumas indicações em relação
ao caminho. Como era de se esperar, todas baseadas no
conhecimento da região. Sem dúvida, Tully devia ter lhe
ensinado tudo o que sabia, Jeremy pensou.
— Você acha que vai conseguir encontrar? — o prefeito
perguntou quando terminou a explicação.
— Eu tenho um mapa — Jeremy falou.
— Isso pode ajudar, mas não se esqueça de que aquelas
estradas secundárias podem ficar bastante escuras. É fácil se
perder se não tomar cuidado. Talvez seja melhor você vir
com alguém que conheça a região.
Quando Jeremy olhou para ele com ar de interrogação, o
prefeito Gherkin olhou de relance para a janela.
— Você acha que eu deveria falar com Lexie? — Jeremy
perguntou.
Os olhos do prefeito piscaram. — Isso é com você. Se acha
que ela pode concordar. Muitos homens a consideram uma
espécie de troféu neste condado.
— Acho que ela diria sim — Jeremy falou, sentindo-se mais
esperançoso que confiante.
O prefeito exibiu uma expressão de dúvida. — Acho que
está superestimando suas habilidades. Mas se tem tanta
certeza, então acho que minha missão por aqui está
encerrada. Veja, eu vim para convidá-la pessoalmente, mas
já que você acha que pode se encarregar disso, nos vemos
mais à noite.
O prefeito virou-se para sair, e poucos minutos depois
Jeremy viu que Lexie havia terminado. Ela fechou o livro, e
enquanto os pais ficavam de pé, ele sentiu a adrenalina
correndo em suas veias. Achou divertida aquela sensação de
nervosismo. Quando fora a última vez que uma coisa dessas
tinha acontecido?
Algumas mães chamaram as crianças que não tinham ficado
escutando, e pouco depois Lexie estava acompanhando o
grupo para fora da sala infantil. Quando viu Jeremy,
caminhou em sua direção.
— Presumo que esteja pronto para começar a examinar os
diários — ela arriscou.
— Se você tiver disponibilidade para pegá-los — ele disse. —
Ainda tenho de examinar algumas coisas nos mapas. Mas, na
verdade, também tenho outra coisa para lhe dizer.
— O que é? — ela perguntou, erguendo a cabeça, surpresa.
Enquanto falava, ele sentiu seu estômago se contorcendo.
Coisa estranha.
— O prefeito apareceu para falar do jantar de hoje à noite
na Fazenda Lawson, e ele acha que eu não vou conseguir
encontrar o lugar sozinho, por isso ele sugeriu que eu
levasse alguém que conheça o local. E, bem, como você é
praticamente a única pessoa que conheço na cidade, estava
pensando se você aceitaria ir comigo.
Por um longo minuto, Lexie não disse nada.
— Previsível — ela disse finalmente.
A resposta pegou Jeremy desprevenido.
— Desculpe?
— Ah, não você. É o prefeito e o jeito que ele tem de fazer
as coisas. Ele sabe que tento evitar eventos como esse
sempre que possível, a menos que tenha algo a ver com a
biblioteca. Ele calculou que eu diria não se ele me
convidasse, por isso deu um jeito de fazer você me
convidar. E aí está você. E aqui estou eu.
Jeremy piscou os olhos diante dessa idéia, tentando se
lembrar de como tinha ocorrido exatamente, mas só lhe
vinham à cabeça pedaços da conversa. Quem havia sugerido
que ele fosse com Lexie? Ele ou o prefeito?
— Por que é que de repente estou me sentindo no meio de
uma novela?
— Porque está. Isso se chama viver numa pequena cidade do
Sul do país.
Jeremy parou, parecendo indeciso. — Você realmente acha
que o prefeito já havia planejado fazer isso?
— Eu sei que ele já havia planejado tudo. Pode parecer que
ele não é mais esperto do que um saco de grama, mas ele
tem uma forma engraçada de fazer com que as pessoas
façam exatamente o que ele quer, e ainda por cima ele as
deixa pensando que foi tudo idéia delas. Por que diabos você
acha que ainda está hospedado em Greenleaf?
Jeremy enfiou as mãos nos bolsos, considerando o assunto.
— Bem, já que é assim, você sabe muito bem que não
precisa vir comigo. Tenho certeza de que conseguirei
encontrar o lugar sozinho.
Ela colocou as mãos nos quadris e olhou para ele. — Você
está me dispensando?
Jeremy estacou, sem saber o que responder. — Bom, eu só
pensei que se o prefeito...
— Você quer que eu vá com você ou não? — ela perguntou.
— Claro, mas se você não...
— Então, faça o convite de novo.
— Desculpe?
— Me convide para ir com você hoje à noite. Por sua
própria conta, e não use a desculpa de que precisa de alguém
para lhe ensinar o caminho. Diga algo como "Eu realmente
gostaria de levá-la ao jantar esta noite. Posso pegá-la mais
tarde?".
Ele olhou para ela, tentando descobrir se ela estava falando
sério. — Quer que eu repita essas palavras?
— Se não repetir, a idéia vai continuar a ser do prefeito e eu
não vou. Mas se me convidar, tem de ser sincero, por isso
use o tom de voz apropriado.
Jeremy parecia nervoso como um colegial. — Eu realmente
gostaria de levá-la ao jantar esta noite. Posso pegar você mais
tarde? Ela sorriu e colocou a mão em seu braço.
— Ora, sr. Marsh — ela disse, arrastando as palavras. — Eu
ficaria encantada.

Minutos depois, Jeremy observava enquanto Lexie tirava os
diários de uma caixa fechada na sala de livros raros, a cabeça
ainda girando. As mulheres de Nova Iorque simplesmente
não falavam do jeito que Lexie falava com ele. Ele não tinha
certeza se ela havia tomado uma atitude sensata ou insensata
ou estava no meio. Convide-me novamente e use o tom de
voz apropriado. Que tipo de mulher fazia uma coisa dessas?
E por que cargas d'água ele tinha sentido aquela obrigação?
Ele não tinha muita certeza; e, subitamente, tanto a matéria
quanto a oportunidade que poderia ter na televisão,
passaram a ser meros detalhes. Em vez disso, enquanto
olhava para Lexie, tudo o que ele conseguia pensar era no
calor que havia sentido quando ela colocara a mão
suavemente em seu braço.


Capítulo
NOVE

Já estava quase anoitecendo, a neblina ficara espessa a ponto
de comprometer a visibilidade, e Rodney Hopper chegara à
conclusão de que a Fazenda Lawson parecia que estava
prestes a acolher um show de Barry Manilow.
Durante os últimos vinte minutos, ele havia ficado
orientando o tráfego para as vagas de estacionamento,
observando com olhar incrédulo a procissão de pessoas
agitadas que caminhavam para a porta de entrada. Até agora
ele tinha visto o dr. Benton e o dr. Tricket, Albert, o
dentista, todos os oito membros da assembléia da cidade,
incluindo Tully e Jed, o prefeito e o pessoal da Câmara de
Comércio, toda a diretoria da escola, todos os nove
comissários do condado, o voluntariado da Sociedade
Histórica, três contadores, toda a equipe do Herbs, o barman
do Lukilu, o barbeiro e até mesmo Toby, que ganhava a vida
limpando fossas sépticas, mas que parecia muito bem-
arrumado, apesar disso. A Fazenda Lawson não ficava lotada
desse jeito nem na época do Natal, quando o local era
superbem decorado e aberto ao público na primeira sexta-
feira de dezembro.
Esta noite não era a mesma coisa. Essa não seria uma
celebração na qual amigos e conhecidos se reuniriam para
apreciar a companhia uns dos outros, antes da correria das
festas de fim de ano. Essa festa fora feita para homenagear
alguém que não tinha nada a ver com a cidade e não dava a
mínima para este lugar. E o que era pior, embora estivesse
ali em caráter oficial, Rodney subitamente se deu conta de
que não deveria nem ter se preocupado em passar a camisa e
engraxar os sapatos, pois duvidava de que Lexie iria lhe dar
qualquer atenção.
Ele já estava sabendo de tudo. Depois de Dóris ter voltado
para o Herbs, a fim de providenciar o envio da comida, o
prefeito tinha dado uma passada e comentado a terrível
novidade sobre Jeremy e Lexie, e Rachel o havia chamado
imediatamente. Rachel, para ele, era uma pessoa doce a
ponto de fazer essas coisas, e sempre tinha sido. Ela sabia de
seus sentimentos por Lexie e não gozava dele como uma
porção de gente fazia. De qualquer forma, ele ficara com a
impressão de que ela também não tinha ficado muito
entusiasmada com a idéia de os dois aparecerem juntos. Mas
Rachel sabia esconder os próprios sentimentos melhor do
que ele, e nessa hora a vontade que ele sentia era a de estar
em qualquer outro lugar. Tudo o que dissesse respeito àquela
noite causava-lhe mal-estar.
Principalmente o modo como a cidade inteira estava agindo.
Pelo que se lembrava, esse pessoal não ficava tão agitado em
relação às perspectivas para a cidade desde que o Raleigh
News & Observer havia mandado um repórter para escrever
uma história sobre Jumpy Walton, que estava tentando
construir uma réplica do avião dos irmãos Wright, com o
qual ele pretendia voar em comemoração ao centésimo
aniversário da aviação em Kitty Hawk. Jumpy, que sempre
tivera alguns parafusos soltos, havia muito tempo dizia que
estava com a réplica quase pronta, mas quando abriu as
portas do celeiro para mostrar orgulhosamente tudo o que
havia feito, o repórter percebeu que Jumpy não tinha a
menor idéia do que fizera até então. No celeiro, a tal réplica
parecia uma versão torta e gigantesca de uma galinha de
arame farpado e madeira compensada.
E agora a cidade estava apostando todas as suas fichas na
existência de fantasmas no cemitério, e acreditando que o
Garotão da Cidade traria o mundo inteiro para a soleira de
suas portas por causa disso. Rodney duvidava seriamente de
tudo isso. Além do mais, honestamente, ele não dava a
mínima para o fato de o mundo todo vir ou não, desde que
Lexie continuasse a fazer parte do seu mundo.
Em outro lugar da cidade, nesse mesmo instante, Lexie saía
para a varanda de sua casa, enquanto Jeremy se aproximava
trazendo um pequeno buquê de flores do campo na mão.
Belo gesto, ela pensou, e de repente se deu conta de que
estava rezando para que ele não percebesse todo o ner-
vosismo que sentira até alguns minutos atrás.
Às vezes era difícil ser mulher, e esta noite tinha sido mais
difícil que de costume. Primeiro, é claro, havia a dúvida em
relação ao fato de este ser um encontro de verdade.
Certamente, estava mais próximo de um encontro do que os
acontecimentos da hora do almoço, mas não seria exata-
mente um jantar romântico para dois, e ela não tinha certeza
sequer de que aceitaria um convite desse tipo. Depois, havia
toda a questão da imagem, e de como gostaria de ser vista,
não apenas por Jeremy, mas por todas aquelas pessoas que os
veriam juntos. Acrescente-se a isso o fato de que ela se
sentia muito mais confortável quando estava usando uma
calça jeans e não tinha qualquer intenção de exibir o colo, e
tudo ficara tão embolado em sua cabeça que ela finalmente
entregou os pontos. Decidiu que iria apresentar um ar
profissional: terno marrom e blusa em tom creme.
Mas aí vinha ele, caminhando tranqüilamente com seu ar de
cantor country, fingindo não ter ficado minimamente
preocupado com aquela noite.
— Você achou minha casa! — Lexie observou.
— Não foi muito difícil — disse Jeremy. — Você me
mostrou onde ficava quando estávamos lá em Riker's Hill,
lembra? — Ele lhe entregou as flores. — São pra você.
Ela sorriu ao pegar o buquê, absolutamente adorável. E sexy
também, é claro. Mas "adorável" parecia mais apropriado.
— Obrigada — ela disse. — Como foi a pesquisa com os
diários?
— Tranqüila — ele respondeu. — Não havia nada de muito
espetacular naqueles que examinei até agora.
— Tenha um pouco de paciência — ela disse com um
sorriso. — Quem sabe o que você poderá encontrar? — Ela
aproximou o buquê do nariz. — A propósito, são lindas. Eu
vou colocá-las em um vaso e pegar um casaco. Aí
poderemos ir.
Ele abriu os braços. — Estarei esperando aqui mesmo.
Poucos minutos depois, já no carro, eles atravessaram a
cidade na direção oposta à do cemitério. Enquanto a neblina
ficava cada vez mais espessa, Lexie orientava Jeremy pelas
estradas, até chegarem a um caminho longo e sinuoso, com
carvalhos em ambos os lados, tão antigos que pareciam ter
sido plantados ali havia séculos. Embora não conseguisse ver
a casa, ele diminuiu a marcha ao se aproximar de uma cerca-
viva, imaginando que ela acompanhava algum caminho além
da curva. Ele se inclinou sobre o volante, pensando para
onde deveria virar.
— Talvez seja melhor você estacionar por aqui — Lexie
sugeriu. — Duvido que você encontre algum lugar mais
perto e, além disso, acho que vai ser bom ter a possibilidade
de sair daqui facilmente mais tarde.
— Tem certeza? Nós ainda nem conseguimos ver a casa.
— Confie em mim — ela disse. — Por que você acha que
eu trouxe este casaco?
Ele ficou pensando por alguns instantes, antes de se decidir.
Por que não? Logo em seguida eles estavam seguindo pelo
caminho a pé, Lexie fazendo o melhor que podia para
manter o casaco sobre os ombros. Seguiram pela curva,
acompanhando a cerca-viva que ladeava o caminho e,
subitamente, a velha mansão georgiana surgiu gloriosa diante
de seus olhos.
A casa, entretanto, não foi a primeira coisa que Jeremy
notou. O que ele viu primeiro foram os carros. Muitos
carros, estacionados aleatoriamente, com a frente virada para
todas as direções, como se estivessem preparados para uma
fuga rápida. Muitos outros ainda estavam circulando, as luzes
dos freios acendendo de vez em quando, ou então tentando
ocupar espaços inacreditavelmente estreitos.
Jeremy estacou, observando a cena.
— Eu achava que esta seria uma pequena reunião entre
amigos.
Lexie acenou com a cabeça. — Esta é a versão do prefeito
para uma pequena reunião. Não se esqueça de que ele
conhece praticamente todo mundo neste condado.
— E você sabia que isto iria acontecer?
— É claro.
— E por que não me contou que seria uma coisa assim?
— Como eu vivo dizendo, você sempre esquece de
perguntar. Além disso, pensei que você soubesse.
— Como eu poderia saber que ele estava planejando uma
coisa desta?
Ela sorriu, olhando na direção da casa. — E bastante
impressionante, não é? Não que eu ache que você mereça.
Ele resmungou com ar divertido. — Sabe de uma coisa, eu
realmente começo a gostar desse seu charme sulista.
— Obrigada. E não se preocupe com esta noite. Não vai ser
tão estres-sante quanto você pensa. Todos são muito
simpáticos e, em caso de dúvida, lembre-se apenas de que
você é o convidado de honra.

Dóris devia ser a banqueteira mais organizada e eficiente do
mundo, pensou Rachel, já que tudo havia sido organizado
sem maiores problemas e até com alguma tranqüilidade. Em
vez de ter de passar a noite lavando pratos, Rachel estava
saracoteando entre as pessoas, em sua primorosa cópia de
vestido Chanel para festas, quando viu Rodney caminhando
em direção à varanda.
Com seu uniforme impecável e bem passado, ela achava que
ele ficava parecido com um oficial, como um fuzileiro naval
naqueles cartazes da II Guerra Mundial pendurados no
edifício dos Veteranos de Guerra, na Main Street. Muitos
dos outros policiais revelavam os sinais dos salgadinhos e das
cervejas na silhueta, mas Rodney, nas suas horas de folga,
fazia musculação na garagem de sua casa. Ele deixava a porta
da garagem aberta e, às vezes, quando voltava do trabalho,
ela parava para conversar um pouco com ele, como velhos
amigos que eram. Quando pequenos, tinham sido vizinhos,
e sua mãe guardava fotos deles brincando juntos na banhei-
ra. Poucos amigos tinham esse tipo de lembrança.
Ela tirou o batom da bolsa e retocou os lábios, consciente de
sua fraqueza em relação a ele. Haviam seguido rumos
diferentes na vida, é claro, mas nos últimos anos as coisas
estavam mudando. Há dois anos, no verão, acabaram
sentando perto um do outro no Lukilu, e ela percebera a
expressão de seus olhos enquanto ele assistia ao noticiário
sobre um jovem que havia morrido em um trágico incêndio
em Raleigh. A visão de seus olhos marejados por causa da
perda de um estranho tinha-a afetado de uma maneira que
ela não esperava. Ela percebeu isso numa outra ocasião, na
última Páscoa, quando o Departamento de Polícia
patrocinou a caça ao ovo na Casa Maçônica e ele a chamou
de lado para lhe contar os lugares mais ardilosos que haviam
encontrado para esconder as guloseimas. Ele parecia mais
excitado do que as crianças, o que provocava um contraste
divertido com seus bíceps avantajados, e ela se lembrou de
ter pensado que ele seria o tipo de pai que deixaria qualquer
mulher orgulhosa.
Pensando bem, ela achava que tinha sido naquele momento
que seus sentimentos em relação a Rodney haviam mudado.
Não que tivesse se apaixonado por ele de repente, mas
naquele momento ela percebeu que tinha parado de
acreditar na possibilidade de que não havia nada. Não que
tivesse passado a acreditar que tinha alguma chance. Rodney
seria capaz de tentar alcançar a lua por causa de Lexie. Fora
sempre assim, e sempre seria, e Rachel há muito tempo
chegara à conclusão de que nada mudaria o que ele sentia
por ela. Às vezes não era nada fácil, e havia ocasiões em que
ela não se preocupava com isso. Mas, ultimamente, às vezes
em que ela não se preocupava estavam se tornando cada vez
mais raras, tinha de admitir.
Caminhando pelo meio das pessoas, ela se deu conta de que
devia ter ficado calada, em vez de ter tocado no assunto
Jeremy Marsh na hora do almoço. Ela sabia muito bem o
que estava incomodando Rodney naquela hora. E parecia
que, agora, a cidade inteira estava falando de Lexie e Jeremy,
a começar pela dona da mercearia onde tinham comprado
seu almoço, e os comentários estavam se espalhando como
fogo depois que o prefeito fez seu anúncio. Bem que ela
gostaria de ir para Nova Iorque, mas ao rever mentalmente a
conversa que tivera com Jeremy, foi percebendo, aos
poucos, que ele podia estar simplesmente jogando conversa
fora e não fazendo um convite propriamente dito. Às vezes
ela avançava o sinal em situações como essa.
Mas Jeremy Marsh era simplesmente tão... perfeito.
Culto, inteligente, charmoso, famoso e, o melhor de tudo,
não era dali. Não havia como Rodney competir com isso, e a
desagradável sensação de que Rodney também sabia disso
pulsava dentro dela. Mas Rodney, por sua vez, estava aqui e
não pretendia ir embora, o que era um tipo diferente de
vantagem, se alguém se decidisse a ver as coisas dessa forma.
E, ela admitia, ele também era responsável e bonito, à sua
maneira.
— Ei, Rodney! — ela disse, sorrindo.
Rodney olhou por cima do ombro. — Ei, Rach. Como vai?
— Bem, obrigada. Que festa, hein?
— Maravilha! — ele disse, sem esconder o sarcasmo no tom
de voz. — Como está lá dentro?
— Muito boa. Eles acabaram de esticar a faixa.
— Faixa?
— Claro. Dando a ele as boas-vindas em nome da cidade.
Escreveram o nome dele em grandes letras azuis e tudo.
Rodney soltou um suspiro, deixando o tórax um pouco
murcho. — Maravilha — ele disse de novo.
— Você devia ver as coisas que o prefeito preparou para ele.
Não só a faixa e a comida, mas ele também mandou fazer
uma chave da cidade.
— Eu soube — Rodney falou.
— E os Mahi-Mahis também estão aqui — continuou ela,
referindo-se a um quarteto vocal que cantava a capella.
Nascidos na região, eles cantavam juntos há quarenta e três
anos, e apesar de dois deles usarem andadores e outro ter um
tique nervoso que o obrigava a cantar com os olhos
fechados, formavam o grupo mais famoso num raio que
quilômetros.
— Formidável! — disse Rodney.
Seu tom de voz deu a ela condições para mudar a conversa.
— Acho que você não quer saber de nada disso, certo?
— Pra falar a verdade, não.
— Então, por que veio?
— Tom me convenceu a vir. Um dia vou aprender a
descobrir o que é que ele está querendo dizer antes que ele
abra a boca.
— Acho que não vai ser tão ruim — ela disse. — Quer dizer,
você já viu como as pessoas estão esta noite. Está todo
mundo querendo falar com ele. Acho que nem ele nem
Lexie vão poder se esconder em algum canto. Aposto com
você que eles não vão conseguir trocar dez palavras a noite
inteira. E, só pra você saber, já guardei um prato de comida
pra você, caso não consiga encontrar um tempo pra comer
alguma coisa.
Rodney hesitou por alguns instantes antes de sorrir. Rachel
estava sempre cuidando dele.
— Obrigado, Rach. — Pela primeira vez ele percebeu o que
ela estava vestindo, e seus olhos pousaram nas pequenas
argolas de ouro penduradas em suas orelhas. — Você está
muito bonita — ele acrescentou.
— Obrigada.
— Quer me fazer um pouco de
companhia? Ela sorriu. — Eu adoraria.
Jeremy e Lexie atravessaram o mar de carros estacionados
diante da casa, expelindo o ar em pequenas golfadas à
medida que se aproximavam da mansão. Nos degraus à
frente, Jeremy viu que os casais faziam uma parada diante da
porta, antes de entrar. Levou poucos minutos para ver Rod-
ney Hopper parado bem na entrada. Na mesma hora
Rodney também o viu, e seu sorriso transformou-se
imediatamente numa carranca. Mesmo à distância, ele
parecia grande, ciumento e, o mais importante, armado, im-
pressões que causaram em Jeremy uma sensação de
desconforto.
Lexie seguiu seu olhar. — Ora, não se preocupe com
Rodney — ela disse. — Você está comigo.
— É por isso que estou preocupado — ele disse. — Eu
tenho a impressão de que ele não está muito feliz por termos
vindo juntos.
Ela sabia que Jeremy estava certo, mas felizmente Rachel
estava ao lado do policial. Rachel sempre dava um jeito de
acalmar Rodney, e há muito tempo Lexie vinha pensando
que ela seria perfeita para ele. Porém, ainda não tinha
encontrado uma maneira de dizer isso a ele sem ferir seus
sentimentos. Não era o tipo de assunto a respeito do qual ela
poderia conversar enquanto dançavam no Baile Beneficente
do Shriners, certo?
— Se isso puder fazê-lo se sentir melhor, deixe a conversa
comigo — ela disse.
— Era o que eu estava planejando fazer.
Rachel parecia iluminada ao ver que eles subiam os degraus.
— Ei, vocês dois! — ela falou. Quando eles estavam
próximos, esticou o braço para alcançar o casaco de Lexie.
— Adorei a sua roupa, Lex.
— Obrigada, Rachel — Lexie respondeu. — E você está o
máximo também.
Jeremy não fez qualquer comentário, preferindo examinar as
unhas dos dedos enquanto procurava evitar o olhar invejoso
de Rodney em sua direção. O silêncio súbito fez com que
Rachel e Lexie se entreolhassem, e Rachel logo entendeu a
dica de Lexie para dizer alguma coisa.
— E olha só pra você sr. Jornalista Famoso — ela disse em
voz alta. — Olha só, assim que puserem os olhos em você, o
coração da mulherada vai bater disparado a noite inteira. —
Ela exibiu um sorriso largo. — Eu odeio ter de lhe pedir isso,
Lexie, mas você se importa se eu o acompanhar até lá
dentro? Eu sei que o prefeito está esperando por ele.
— Absolutamente — Lexie falou, consciente de que
precisava de um minuto sozinha com Rodney. Ela acenou
com a cabeça para Jeremy. — Vá em frente, eu o alcanço
em um minuto.
Rachel enganchou no braço de Jeremy, e antes que ele
percebesse, estava sendo levado. — Agora diga, você já
havia estado em uma fazenda sulista tão maravilhosa quanto
esta? — Rachel perguntou.
— Acho que não — Jeremy respondeu, em dúvida se não
estaria sendo atirado aos lobos.
Ao entrarem, Lexie fez um gesto de agradecimento para
Rachel, que respondeu com uma piscadela.
Lexie então se virou para Rodney.
— Não é o que você está pensando — ela começou, e
Rodney ergueu a mão para impedir que ela continuasse.
— Olhe — ele disse —, você não tem de explicar. Já vi isso
antes, lembra?
Ela sabia que ele estava falando do sr. Renascença, e
instintivamente quase lhe disse que ele estava enganado.
Queria lhe dizer que não ia se deixar levar pelos sentimentos
desta vez, mas sabia que já havia prometido isso antes. Fora
isso o que havia dito a Rodney, afinal, quando ele tentou
gentilmente avisá-la de que o sr. Renascença não tinha
intenção de ficar.
— Eu gostaria de saber o que dizer — ela falou, odiando o
toque de culpa no seu tom de voz.
—- Você não precisa dizer nada.
Ela sabia que não precisava. Eles não eram um casal e jamais
haviam sido, mas ela guardava a estranha sensação de ser
uma espécie de ex-mulher depois de um divórcio recente,
com as feridas ainda abertas. Mais uma vez, ela queria apenas
que ele seguisse seu caminho, mas uma vozinha a lembrou
de que tinha certa responsabilidade pelo fato de a chama
continuar acesa nos últimos anos, apesar de ter mais a ver
com um sentimento de segurança e conforto do que com
qualquer romantismo de sua parte.
— Bem, só pra você saber, eu realmente espero que as
coisas voltem ao normal por aqui — ela disse.
— Eu também.
Por uns instantes, nenhum dos dois disse qualquer coisa. No
silêncio, Lexie ficou olhando para o lado, desejando que
Rodney não expusesse seus sentimentos dessa maneira.
— A Rachel está realmente bonita, não está? — ela
comentou.
O queixo de Rodney caiu até o peito antes de ele olhar de
novo para Lexie. Pela primeira vez ela via um pequeno
sorriso.
— Está — ele disse. — Está mesmo.
— Ela ainda está saindo com o Jim? — Lexie perguntou,
referindo-se ao homem da empresa de dedetização, a
Terminix. Ela havia visto os dois na caminhonete verde,
com um inseto gigante na carroceria, quando estava indo
para um jantar em Greenville durante o feriado.
— Não, essa história acabou — ele respondeu. — Eles saíram
apenas uma vez. Ela disse que o carro dele tinha cheiro de
desinfetante, e que ficou espirrando feito louca a noite
inteira.
Apesar da tensão, Lexie sorriu. — Isso é uma daquelas coisas
que só poderiam acontecer com a Rachel.
— Ela já esqueceu. E não é uma coisa que a tenha deixado
com medo de levar outro tombo ou coisa parecida. Ela
continua tentando montar o cavalo, entende?
— Às vezes eu acho que ela só precisa escolher melhor os
cavalos. Ou, pelo menos, um que não tenha um inseto
gigante na carroceria.
Ele riu, dando a entender que pensava a mesma coisa. Seus
olhos se encontraram por um instante, e então Lexie olhou
para longe, enquanto colocava alguns fios de cabelo atrás da
orelha.
— Bem, acho que é melhor eu entrar — ela disse.
— Eu sei — ele respondeu.
— Você também vem?
— Eu acho que não. Eu não tinha intenção de ficar muito
tempo. Além disso, estou de plantão. O condado é bem
grande para uma só pessoa, e Bruce está sozinho na rua.
Ela acenou com a cabeça. — Bom, se eu não o vir mais esta
noite, tome cuidado, o.k.?
— Pode deixar. Até mais tarde.
Ela começou a andar para entrar na casa.
— Ei, Lexie?
Ela se virou. — Sim?
Ele engoliu em seco. — Só queria dizer que você também
está bonita. A tristeza com que ele disse isso quase partiu seu
coração, e ela sentiu as lágrimas umedecerem seus olhos. —
Obrigada — ela disse.
Rachel e Jeremy entraram discretamente, movimentando-se
pelas laterais do salão, enquanto Rachel ia mostrando os
quadros que retratavam os vários membros da família
Lawson, que exibiam entre eles uma surpreendente
semelhança, não apenas de geração para geração, mas, o que
era mais estranho, também entre os sexos. Os homens
tinham traços afeminados e as mulheres tendiam a ser
masculinizadas, de forma que a impressão que se tinha era a
de que todos os artistas haviam usado um mesmo modelo
andrógino.
Mas ele estava gostando do fato de Rachel o manter ocupado
e fora de qualquer perigo, embora se recusasse a largar o seu
braço. Ouvia as pessoas falarem a respeito dele, mas ainda
não estava preparado para se misturar, mesmo
reconhecendo que tudo aquilo fazia com que ele se sentisse
um pouquinho lisonjeado. Nate não havia conseguido reunir
um décimo daquela quantidade de pessoas para assistir sua
ida a um programa de televisão, e ainda tivera de oferecer
bebida grátis como um estímulo para que comparecessem.
Mas essas coisas não aconteciam por aqui. Não na América
das cidades pequenas, onde as pessoas jogavam bingo,
freqüentavam o boliche e assistiam reprises do seriado
Matlock na TNT. Ele não via tanto cabelo azulado e poliéster
desde... bom, desde sempre; e enquanto estava avaliando
toda a situação, Rachel apertou seu braço para chamar sua
atenção.
— Prepare-se, querido. É hora do show.
— Desculpe?
Ela olhou por cima do ombro, para a agitação que aumentava
atrás deles.
— Bem, prefeito Tom, como vai? — Rachel perguntou,
disparando aquele sorriso hollywoodiano mais uma vez.
O prefeito Gherkin parecia ser a única pessoa no salão que
estava transpirando. Sua careca brilhava com a luz, e se
pareceu surpreso pelo fato de Jeremy estar com Rachel, não
demonstrou.
— Rachel! Você está adorável como sempre, e, pelo que
pude perceber, estava compartilhando o ilustre passado desta
bela casa com o nosso convidado.
— Fazendo o melhor que posso — ela disse.
— Ótimo, ótimo. Fico feliz em ouvir isso. — Eles
continuaram a tagarelar um pouco mais, antes de Gherkin ir
ao ponto.
— E odeio ter de lhe pedir isso, já que você foi muito gentil
contando a ele a história deste belo lugar, mas você se
importa? — ele disse, gesticulando para Jeremy. — Está todo
mundo ansioso, esperando para darmos início a este evento
notável.
— Absolutamente — ela respondeu, e no mesmo instante a
mão do prefeito substituiu a de Rachel em seu braço,
conduzindo Jeremy através da multidão.
À medida que eles iam passando, as pessoas ficavam em
silêncio e davam passagem, como o mar Vermelho se
abrindo para Moisés. Outros arregalavam os olhos ou
erguiam o pescoço para ver melhor. Todos soltavam
exclamações, cochichando alto sobre ele.
— Eu nem sei como lhe dizer como estamos felizes por você
ter conseguido chegar finalmente — disse o prefeito
Gherkin, falando pelo canto da boca, enquanto mantinha o
sorriso para a multidão. — Eu já estava começando a ficar
preocupado.
— Talvez devêssemos esperar por Lexie — Jeremy
respondeu, procurando evitar que seu rosto ficasse
ruborizado. Aquilo tudo, principalmente o fato de estar
sendo conduzido pelo prefeito como se fosse a rainha do
baile, era um pouco demais até para uma pequena cidade da
América, para não falar que era um pouco demais até para o
lado mais estranho dessa América.
— Já falei com ela, e ela vai nos encontrar lá.
— Onde, exatamente?
— Ora, você vai conhecer o resto da assembléia da cidade, é
claro. Você já conheceu Jed e o Tully e os camaradas que
apresentei hoje de manhã, mas ainda têm outros. E também
o pessoal da administração da cidade. Como eu, eles estão
muito sensibilizados com a sua visita. Muito sensibilizados. E
não se preocupe — eles já prepararam todas as histórias de
fantasmas. Você trouxe o gravador, não trouxe?
— Está no meu bolso.
— Ótimo, ótimo. Fico feliz em ouvir isso. E... — pela
primeira vez o prefeito desviou o olhar da multidão para
encarar Jeremy — imagino que esteja pensando em ir até o
cemitério esta noite...
— Estou, e por falar nisso, eu queria ter certeza...
O prefeito continuou andando como se não tivesse ouvido,
enquanto gesticulava e acenava para a multidão. — Bem,
como prefeito, sinto que tenho a obrigação de lhe dizer que
não precisa se preocupar com aqueles fantasmas. Eles são
uma visão e tanto, é claro. Suficiente para fazer um elefante
desmaiar. Mas, até agora, ninguém se machucou, exceto
Bobby Lee Howard, mas a batida contra a placa da estrada
teve menos a ver com o que ele tinha visto, do que com o
fato de ele ter virado um pacote de doze garrafas de cerveja
Pabst antes de pegar o volante.
— Entendo — Jeremy disse, começando a imitar o prefeito
com gestos e acenos. — Vou tentar me lembrar disso.

Lexie estava esperando por ele quando encontrou os
membros da assembléia. Ele respirou aliviado quando ela
ficou do seu lado, enquanto era apresentado à elite do poder
na cidade. A maioria foi bastante simpática — embora Jed
tenha ficado de braços cruzados com a testa franzida —, mas
ele não conseguiu deixar de observar Lexie com o canto dos
olhos. Ela parecia absorta, e ele ficou pensando no que
poderia ter acontecido entre ela e Rodney.
Jeremy não teve chance de descobrir, nem de relaxar, pelas
três horas seguintes, pois o resto da noite foi muito
semelhante a uma convenção política. Depois de seu
encontro com os membros da assembléia — cada um deles,
com exceção de Jed, parecendo ter sido preparado pelo
prefeito, prometia que aquela "poderia ser a maior história
de todos os tempos" e ficava lembrando que "o turismo é
importante para a cidade" — Jeremy foi levado a um palco
que havia sido enfeitado e exibia uma faixa com os dizeres
BEM-VINDO JEREMY MARSH!
Tecnicamente, não era um palco, mas uma grande mesa de
madeira coberta com uma toalha de cor púrpura brilhante.
Jeremy teve de usar uma cadeira para subir, assim como
Gherkin, para então se ver diante de um mar de rostos
estranhos olhando para cima, em sua direção. Quando a
multidão se acalmou, o prefeito fez um longo discurso
elogiando Jeremy por seu profissionalismo e honestidade,
como se eles se conhecessem há anos. Além disso, Gherkin
não apenas mencionou sua ida ao Primetime Live — o que
fez ressurgir os já familiares sorrisos e acenos, bem como
algumas outras interjeições —, como falou também de uma
série de matérias de sucesso que ele havia escrito, inclusive
uma reportagem que ele fizera para a Atlantic Monthly
sobre pesquisas realizadas em Fort Detrick a respeito de
armas biológicas. Embora às vezes parecesse apenas um
caipira simplório,
Jeremy pensou, o homem realmente fizera a lição de casa e
não havia dúvida de que conhecia profundamente a arte da
bajulação. Ao final do discurso, Jeremy recebeu a chave da
cidade e os Mahi-Mahis — que estavam em cima de outra
mesa, encostada em uma parede adjacente — entraram em
cena e cantaram três músicas: Carolina in my mind, New
York, New York e, talvez a mais apropriada, o tema do filme
Os caça-fantasmas.
Surpreendentemente, os Mahi-Mahis não eram tão ruins,
apesar de ele não ter idéia de como é que eles tinham
conseguido subir na mesa. A multidão adorou e, por alguns
instantes, o próprio Jeremy se pegou sorrindo e apreciando a
apresentação. Ele ainda estava em cima do palco e Lexie
piscou para ele, o que tornava tudo aquilo ainda mais surreal.
Dali, o prefeito o levou para um canto, onde ele se sentou
em uma confortável cadeira antiga, diante de uma mesa
também antiga. Com a fita do gravador rodando, Jeremy
passou o resto da noite ouvindo uma história atrás da outra a
respeito de encontros com fantasmas. O prefeito havia
organizado as pessoas em uma fila, e elas conversavam
animadamente enquanto esperavam sua vez de encontrar
com ele, como se ele estivesse distribuindo autógrafos.
Infelizmente, a maioria das histórias começou a se
confundir. Todas as pessoas da fila alegavam ter visto as
luzes, mas cada uma delas fazia uma descrição diferente.
Algumas juravam que elas se pareciam com pessoas, outros
diziam que pareciam luzes estroboscópicas. Um homem
disse que eram extremamente parecidas com uma fantasia de
Halloween, da cabeça aos pés. A mais original foi contada
por um homem chamado Joe, que disse ter visto as luzes
mais de meia dúzia de vezes, e ele falou com ar circunspecto
quando disse que elas eram exatamente iguais à placa
luminosa do Piggly Wiggly, na estrada 54, perto de
Vanceboro.
Nesse meio tempo, Lexie ficara por perto, conversando com
várias pessoas, e de vez em quando seus olhares se
encontravam, apesar de estarem ambos envolvidos em
conversas. Como se estivessem dividindo uma piada que só
eles conheciam, ela sorria erguendo as sobrancelhas, a
expressão no rosto que parecia estar perguntando "Você está
vendo no que é que foi se meter?"
Lexie, Jeremy refletiu, não se parecia com nenhuma das
mulheres com quem ele tinha saído nos últimos tempos. Ela
não escondia o que estava pensando, não tentara
impressioná-lo, e também não se havia deixado abalar por
nada do que ele havia conquistado no passado. Em vez disso,
ela parecia que apenas levava em consideração o que ele era
hoje, agora, sem se apegar ao passado ou ao futuro para usar
contra ele.
Essa tinha sido, agora ele percebia, uma das razões que o
haviam levado a se casar com Maria. Não tinha sido apenas a
explosão de emoções arrebatadoras que sentira quando
fizeram amor pela primeira vez o que o havia enfeitiçado —
ao contrário, foram as coisas simples que o convenceram de
que tinha de ser ela. A ausência de qualquer sinal de
arrogância quando estava no meio de outras pessoas, a
atitude firme com que o enfrentava quando ele fazia alguma
coisa errada, a paciência com que o ouvia enquanto ele
caminhava pela casa, às voltas com algum problema
exasperante. E apesar de ele e Lexie jamais terem dividido
qualquer probleminha do dia-a-dia, ele não conseguia afastar
a idéia de que ela saberia lidar com isso, desde que fosse o
que ela estivesse com vontade de fazer.
Jeremy compreendeu que ela sentia uma afeição genuína
por aquelas pessoas, e parecia realmente interessada no que
quer que eles estivessem falando. Seu comportamento dava
a entender que não via motivos para apressar ou
interromper a conversa de uma pessoa, e não tinha
vergonha de rir alto quando algo a divertia. De vez em
quando, ela se inclinava para abraçar alguém, e depois
pegava a mão da pessoa enquanto murmurava algo do tipo
"Estou tão feliz por ver você novamente". Ela não parecia
achar que era diferente, nem mesmo reparar no fato de que
os outros achavam, e isso fazia Jeremy se lembrar de uma tia
que era sempre a pessoa mais popular nas festas da família,
simplesmente porque conseguia concentrar sua atenção
inteiramente nos outros.
Pouco depois, ao levantar-se para esticar um pouco as
pernas, Jeremy reparou que Lexie vinha em sua direção,
com um toque delicadamente sedutor no modo como
movimentava suavemente os lábios. Ao observá-la, houve
um momento, apenas um momento, em que a cena não
parecia estar acontecendo naquela hora, mas em algum
momento no futuro, em alguma outra pequena reunião de
uma longa sucessão de pequenas reuniões, numa pequena
cidade sulista no meio do nada.


Capítulo
DEZ

Quando a noite se aproximava do fim, Jeremy se postou com
o prefeito Gherkin na varanda, enquanto Lexie e Dóris
ficavam um pouco de lado.
— Eu realmente espero que esta noite tenha merecido sua
aprovação — disse o prefeito Gherkin — e que tenha
conseguido ver por si mesmo que oportunidade maravilhosa
você pode ter em relação a essa história.
— Eu vi, obrigado. Mas não precisava ter tido todo este
trabalho — Jeremy objetou.
— Bobagem — Gherkin retrucou. — Ora, é o mínimo que
poderíamos fazer. Além disso, eu queria que visse do quê
esta cidade é capaz quando se propõe a fazer alguma coisa. Já
dá pra imaginar o que poderíamos fazer para os camaradas da
televisão. É claro que você vai poder sentir um pouco mais
do sabor da cidade neste fim de semana também. A
atmosfera de cidade pequena, a sensação de estar voltando
no tempo ao passear pelas casas. E diferente de qualquer
coisa que possa ter imaginado.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso — disse Jeremy.
Gherkin sorriu. — Bem, escute aqui, preciso cuidar de
algumas coisas lá dentro. As obrigações do prefeito não
acabam nunca, você sabe.
— Eu entendo — ele disse. — E, a propósito, muito obrigado
por isto — Jeremy disse, erguendo a chave da cidade.
— Ah, não tem o que agradecer. Você merece. — Ele
estendeu a mão para cumprimentar Jeremy. — Mas nem
pense em fazer gracinhas. Não pense que vai conseguir abrir
o cofre do banco com ela. É mais um gesto simbólico.
Jeremy sorriu enquanto Gherkin sacudia sua mão. Depois
que o prefeito desapareceu no interior da casa, Dóris e Lexie
se aproximaram de Jeremy, as duas exibindo um sorriso
irônico nos lábios. Apesar disso, Jeremy não pôde deixar de
notar a aparência exausta de Dóris.
— Vige — Dóris falou.
— O quê? — Jeremy perguntou.
— Você e esse seu jeito maroto de cidade grande.
— Desculpe?
— É que você devia ter ouvido o modo como algumas
pessoas estavam falando de você — Dóris provocou. — Eu
me sinto feliz por ter conhecido você antes disso tudo.
Jeremy sorriu, parecendo envergonhado. — Foi uma
loucura, não foi?
— Eu que o diga — Dóris respondeu. — Meu grupo de
estudos da Bíblia falou a noite toda sobre como você é
bonito. Algumas delas queriam levar você pra casa, mas,
felizmente, eu consegui fazer com que mudassem de idéia.
Além disso, não acho que os maridos delas teriam gostado
dessa idéia.
— Nem sei como lhe agradecer.
— Você conseguiu comer alguma coisa? Acho que posso
conseguir alguma coisa se estiver com fome.
— Não é preciso, obrigado.
— Tem certeza? Sua noite está na verdade apenas
começando, certo?
— Estarei bem — ele a tranqüilizou. No silêncio que se
seguiu, ele olhou ao redor e reparou que a neblina havia se
tornado ainda mais espessa. — Por falar nisso, acho que eu
deveria ir agora. Detestaria perder minha grande chance de
sentir uma manifestação do sobrenatural.
— Não se preocupe. Você não vai perder as luzes — Dóris
falou. — Elas só aparecem bem tarde da noite, por isso você
ainda tem algumas horas. — Surpreendendo Jeremy, ela se
aproximou e deu-lhe um abraço cansado. — Eu só queria lhe
agradecer por ter dado um jeito de falar com todo mundo.
Nem todo estranho é tão bom ouvinte quanto você.
— Sem problemas. Eu gostei.
Depois que Dóris o soltou, Jeremy voltou sua atenção para
Lexie, pensando que a criação que ela recebera de Dóris
devia ter sido muito parecida com a que ele mesmo havia
recebido de sua própria mãe.
— Está pronta pra ir?
Lexie fez que sim com a cabeça, mas continuou sem dizer
uma palavra para ele. Em vez disso, beijou Dóris no rosto,
disse que a veria no dia seguinte, e logo em seguida estava
caminhando ao lado de Jeremy na direção do carro, o
cascalho fazendo o barulho característico enquanto
andavam. Ela parecia estar com o olhar perdido na distância,
sem enxergar coisa alguma. Depois de alguns passos em
silêncio, Jeremy cutucou-a levemente com seu ombro.
— Você está bem? Por que está tão calada?
Ela sacudiu a cabeça, virando-se para ele. — Só estava
pensando em Dóris. Esta noite ela realmente ficou cansada,
e apesar de eu talvez não ter razão para me preocupar, a
verdade é que me preocupo com ela.
— Ela me pareceu bem.
— É, ela consegue manter as aparências. Mas precisa
aprender a ir mais devagar. Ela sofreu um ataque do coração
alguns anos atrás, mas gosta de fingir que isso nunca
aconteceu. E, depois disto, ela também vai ter um fim de
semana puxado.
Jeremy não sabia muito bem o que dizer; a idéia de que
Dóris não tivesse uma saúde perfeita jamais havia lhe
ocorrido.
Lexie percebeu o desconforto e sorriu. — Mas ela realmente
se divertiu, disso não há dúvida. Nós duas tivemos a
oportunidade de conversar com uma porção de gente que
não víamos há muito tempo.
— Eu pensei que todos por aqui estivessem se encontrando o
tempo todo.
— E encontramos. Mas as pessoas normalmente estão
ocupadas, e não é sempre que você tem mais do que alguns
minutos para conversar à toa. Mas esta noite foi muito
agradável. — Ela o olhou de relance. — E Dóris falou a
verdade. As pessoas adoraram você.
Ela pareceu quase chocada por admitir isso, e Jeremy enfiou
as mãos nos bolsos.
— Bem, você não deveria estar tão surpresa. Eu sou muito
adorável, sabia?
Ela revirou os olhos, parecendo mais divertida do que
incomodada. Atrás deles, a casa desaparecia ao longe
enquanto eles contornavam o caminho.
— Ei, eu sei que não é da minha conta, mas como foram as
coisas com Rodney?
Ela hesitou antes de finalmente sacudir os ombros. — Você
tem razão. Não é da sua conta.
Ele procurou um sorriso, mas não o encontrou. — Bem, eu
só perguntei porque estava pensando se você acha que seria
uma boa idéia eu aproveitar a escuridão para sumir da
cidade, antes que ele tenha a chance de esmagar minha
cabeça com as próprias mãos.
Isso fez aparecer um sorriso. — Você vai ficar bem, não se
preocupe. Além disso, estaria partindo o coração do prefeito
se fosse embora. Não é todo visitante que ganha uma festa
como esta ou uma chave da cidade.
— É a primeira vez na vida que ganho uma. Normalmente,
recebo apenas cartas cheias de raiva.
Ela riu num tom melódico. Ao luar, seus traços eram
indecifráveis, e ele se lembrou de como ela parecia cheia de
animação quando estava cercada pelas pessoas da cidade.
Quando chegaram no carro, ele abriu a porta para ela. Ao
entrar, ela esbarrou nele levemente, o que o fez pensar se
ela teria feito isso em resposta ao modo como ele a cutucara
com o ombro, ou se fizera isso sem perceber. Ele deu a volta
e sentou atrás do volante, colocando as chaves na ignição,
mas parou antes de ligar o motor do carro.
— O que foi? — ela perguntou.
— Só estava pensando... — ele respondeu, deixando as
palavras no ar. As palavras pareciam ter ficado penduradas
no carro, e ela mexeu a cabeça. — Bem que eu pensei ter
ouvido alguma coisa ranger.
— Engraçadinha. O que eu estava tentando dizer é que sei
que está ficando tarde, mas você não gostaria de vir comigo
até o cemitério?
— Para o caso de você ficar assustado?
— Mais ou menos.
Ela olhou para o relógio, pensando... Caramba! Ela não devia
ir. Não devia mesmo. Já havia aberto a guarda vindo esta
noite, e ficar sozinha com ele mais algumas horas iria abrir
ainda mais essa guarda. Ela sabia que daí não iria sair coisa
boa, e não havia um único motivo para dizer sim. Mas antes
que pudesse impedir a si mesma, as palavras saíram de sua
boca.
— Eu teria de passar primeiro em casa para colocar uma
roupa mais confortável.
— Tudo bem — ele disse. — Estou inteiramente de acordo
com que você vista alguma coisa mais confortável.
— Aposto que sim — ela respondeu com ironia.
— Escute, não vá ficando confiada — ele disse, fazendo-se
de ofendido. — Eu não acho que nós nos conhecemos bem
o bastante para isso.
— Essa fala é minha — ela disse.
— Achei que tinha ouvido em algum lugar.
— Bom, use seu próprio texto da próxima vez. E só para você
saber, não me venha com idéias engraçadinhas para esta
noite.
— Eu não tenho idéias engraçadinhas. Sou completamente
destituído de senso de humor.
— Você sabe o que eu quis dizer.
— Não — ele disse, tentando parecer inocente. — O que
você quis dizer?
— Apenas dirija, está bem? Ou posso mudar de idéia.
— Está bem, está bem — ele respondeu, acionando o motor.
— Nossa, você às vezes é bem atrevida.
— Obrigada. Já me disseram que é uma das minhas melhores
qualidades.
— Quem lhe disse isso?
— Você quer mesmo saber?

O Taurus percorreu as ruas tomadas pela neblina, e as luzes
amareladas dos postes de luz tornavam a noite ainda mais
tenebrosa. Assim que chegaram na entrada de carros de sua
casa, ela abriu a porta do automóvel.
— Espere aqui — ela disse, colocando uma mecha de
cabelos atrás da orelha. — Não vou demorar mais do que
alguns minutos.
Ele sorriu, apreciando o fato de ela estar nervosa.
— Você precisa da minha chave da cidade para abrir a porta?
Teria imenso prazer em emprestá-la.
— Ora, não comece a achar que é especial, sr. Marsh. A
minha mãe também recebeu uma chave da cidade.
— Estamos de volta ao "sr. Marsh" novamente? E eu aqui
pensando que estávamos nos dando tão bem.
— E eu estou começando a achar que a noite lhe subiu à
cabeça.
Ela saiu do carro e bateu a porta atrás dela, numa tentativa de
fazê-lo entender que havia dito a última palavra. Jeremy riu,
achando que ela era muito parecida com ele. Incapaz de
resistir, ele apertou o botão de sua porta para abaixar o vidro
do outro lado do carro. Ele se curvou por cima do banco do
passageiro.
— Ei, Lexie?
Ela se virou. — O que é?
— Já que provavelmente vai estar frio, que tal trazer uma
garrafa de vinho?
Ela colocou as mãos nos quadris. — Por quê? Para você me
assediar por causa da bebida?
Ele sorriu. — Só se você concordar.
Ela franziu a testa, apertando os olhos. Mas, como da outra
vez, parecia mais divertida que ofendida. — Eu não costumo
ter garrafas de vinho em casa, sr. Marsh, mas eu diria não de
qualquer forma.
— Você não bebe?
— Não muito — ela disse. — Agora, espere aí mesmo — ela
avisou, apontando pra onde ele estava. — Vou só colocar
uma calça jeans.
— Prometo que não vou nem tentar dar uma espiada pela
janela.
— Boa idéia. Eu certamente teria de contar a Rodney se
fizesse uma coisa estúpida como essa.
— Isso não me parece nada bom.
— Pode ter certeza — ela disse, tentando manter um olhar
severo — de que não seria mesmo.
Jeremy observou-a enquanto caminhava até a porta, certo
de que nunca tinha encontrado ninguém como ela.

Quinze minutos depois, eles estavam parando o carro em
uma vaga em frente ao Cemitério de Cedar Creek. Ele
estacionou num ângulo que fazia as luzes dos faróis do carro
iluminarem o cemitério, e seu primeiro pensamento foi o de
que até a neblina parecia diferente por ali. Era densa e im-
penetrável em alguns lugares e fina em outros, e a brisa
muito leve fazia as plantas se mexerem discretamente, como
se estivessem vivas. Os galhos pendentes das árvores de
magnólias pareciam apenas sombras escuras, e as tumbas
esfaceladas apenas aumentavam o efeito lúgubre. Estava tão
escuro que Jeremy era incapaz de enxergar ao menos um
pequeno pedaço da lua no céu.
Saindo do carro lentamente, ele abriu o porta-malas. Lexie
veio dar uma espiada e ficou de olhos arregalados.
— Parece que você tem todo o material necessário para fazer
uma bomba aí.
— Nada disso — ele falou. — Só algumas coisas legais. Os
homens adoram seus brinquedinhos, sabia?
— Pensei que você tivesse apenas uma fumadora ou algo
parecido.
— Eu tenho. Tenho quatro fumadoras.
— E por que precisa de quatro?
— Para filmar de vários ângulos, é claro. E se os fantasmas
estiverem andando na direção errada, por exemplo? Eu não
conseguiria pegar os rostos.
Ela ignorou o comentário. — E o que é esta coisa? — ela
perguntou, apontando para uma caixa eletrônica.
— Ê um detector de radiação de microondas. E aquilo ali —
ele disse, apontando para outra peça — meio que faz parte. É
capaz de detectar atividade eletromagnética.
— Você está brincando.
— Não — ele faiou. — Está no manual oficial dos caça-
fantasmas. Você sempre vai encontrar um aumento de
atividade espiritual em áreas onde houver alta concentração
de energia, e isso ajuda a detectar um campo de energia
acima do normal.
— Você já registrou algum campo de energia acima do
normal?
— Para falar a verdade, já. Numa casa supostamente
assombrada. Infelizmente, não tinha nada a ver com
fantasmas. O microondas do dono da casa não estava
funcionando direito.
— Sei.
Ele olhou para ela. — Agora é você quem está roubando
minhas falas.
— Desculpe. Mas isso foi tudo o que me veio à cabeça.
— Tudo bem. Eu posso entender.
— Por que é que você tem todas essas coisas?
— Porque — ele explicou —, para derrubar a possibilidade
de haver fantasmas, preciso usar tudo o que é usado pelos
investigadores de paranormais. Não quero ser acusado de ter
deixado escapar alguma coisa, e essas pessoas têm suas
regras. Além disso, parece causar mais impacto quando as
pessoas lêem que você usou um detector de ondas
eletromagnéticas. Elas acham que você sabe o que está
fazendo.
— E você sabe?
— Claro. Eu já lhe disse, tenho o manual oficial.
Ela riu. — Então, como é que eu poderei ajudar? Você
precisa que eu ajude a carregar alguma dessas coisas?
— Nós vamos usar tudo isso. Mas se você acha que isso é
trabalho pra homem, eu posso lidar com tudo enquanto
você cuida das unhas ou qualquer coisa do gênero.
Ela pegou uma das fumadoras, colocou-a em um dos
ombros, e pegou mais uma com a outra mão.
— Está certo, sr. Machão, para onde?
— Depende. Onde você acha que deveríamos montá-la?
Como você já viu as luzes, talvez tenha alguma idéia.
Ela apontou na direção da árvore de magnólias, para onde
estava caminhando na primeira vez em que ele a tinha visto
no cemitério.
— Bem ali. É ali que você vai ver as luzes.
Aquele ponto ficava exatamente na frente de Riker's Hill,
embora a colina estivesse escondida no meio da neblina.
— Elas aparecem sempre no mesmo lugar?
— Eu não faço a menor idéia. Mas era lá que estavam quando
eu as vi.

No decorrer da hora seguinte, enquanto Lexie o filmava
com uma das filmadoras, Jeremy preparou tudo. Ele colocou
as outras três fumadoras numa disposição triangular,
montando-as sobre tripés, colocando lentes com filtros
especiais em duas delas e ajustando o zoom até que toda a
área estivesse coberta. Ele testou os controles do laser, e
então começou a montar o equipamento de áudio. Foram
colocados quatro microfones em árvores próximas, e um
quinto foi colocado perto do centro, onde ele iria colocar os
detectores de radiação e ondas eletromagnéticas, assim
como o gravador central.
Enquanto ele fazia os testes para verificar se estava tudo em
ordem, ouviu Lexie chamar por ele.
— Ei, que tal?
Virou-se e a viu com os óculos para visão noturna,
parecendo um inseto gigante.
— Muito sexy — ele disse. — Acho que finalmente você
descobriu seu estilo.
— Essas coisas são muito bem-feitas. Dá pra ver tudo daqui.
— Alguma coisa com que eu deva me preocupar?
— Tirando alguns ursos e pumas famintos, parece que você
está sozinho.
— Bom, estou quase terminando isto aqui. Mas ainda tenho
de espalhar um pouco de farinha e soltar a linha.
— Farinha? Tipo farinha de cozinha?
— Pra ter certeza de que ninguém vai mexer no
equipamento. Com a farinha posso verificar se há pegadas, e
a linha vai permitir que eu saiba se alguém mais se
aproximar.
— Muito esperto. Mas você sabe que estamos sozinhos aqui,
não sabe?
— Não dá para ter certeza nunca — ele falou.
— Ah, eu tenho certeza. Mas faça o que tem de fazer, e eu
vou manter a câmera virada para a direção certa. A
propósito, você está indo muito bem.
Ele deu uma risada ao abrir o pacote de farinha, que
começou a espalhar em círculos ao redor das câmeras,
formando uma fina camada branca. Fez a mesma coisa ao
redor dos microfones e do resto do equipamento, depois
amarrou a linha em um galho e formou um grande quadrado
em volta de toda a área, como se estivesse cercando a cena
de um crime. Passou uma segunda linha cerca de meio
metro mais abaixo e depois pendurou pequenos sinos na
linha. Quando ele finalmente terminou, voltou para o lugar
onde estava Lexie.
— Eu não imaginava que fosse preciso fazer tanta coisa — ela
disse.
— Acho que você está percebendo que mereço muito mais
respeito agora, não é mesmo?
— Sinceramente, não. Eu só estava tentando bater papo.
Ele sorriu, e então apontou na direção do carro. — Eu vou
desligar as luzes do carro. Espero não ter feito tudo isso à
toa.
Quando ele desligou o motor do carro, o cemitério ficou
completamente escuro e ele teve de esperar um pouco para
que seus olhos se adaptassem. Infelizmente, isso não
aconteceu, porque o cemitério parecia mais escuro que uma
caverna. Ele fez o caminho de volta até o portão tateando
como um cego, tropeçou numa raiz bem na entrada e quase
caiu.
— Você pode me passar os óculos para visão noturna?
— Não — foi a resposta. — Como eu lhe disse, essas coisas
são muito boas. Além disso, você está indo muito bem.
— Mas eu não estou enxergando nada.
— Você pode dar mais alguns passos sem o menor problema.
É só ir em frente.
Lentamente, ele caminhou para a frente com os braços
estendidos e então parou.
— E agora, o que é isso?
— Você está diante de uma cripta, desvie para a esquerda. —
Ela parecia estar se divertindo muito com aquilo, Jeremy
pensou.
— Você esqueceu de dizer "Faça tudo o que o chefe
mandar".
— Quer minha ajuda ou não?
— Eu queria os meus óculos — ele quase suplicou.
— Vai ter de vir aqui e pegar.
— Você é que poderia vir até aqui me buscar.
— Poderia, mas não vou. É muito mais divertido ver você
vagando feito um zumbi. Agora vá para a esquerda. Eu aviso
quando for pra parar.
O jogo continuou desse jeito até que ele finalmente
conseguiu chegar perto dela. Quando ele se sentou, ela tirou
os óculos e os deu a ele com um sorriso irônico.
— Aqui está — ela falou.
— Puxa, muito obrigado.
— Não há de quê. Estou feliz por ter ajudado.

Durante aproximadamente meia hora, Lexie e Jeremy
conversaram sobre coisas que haviam acontecido na festa.
Estava muito escuro para Jeremy ver o rosto de Lexie, mas
ele estava gostando da proximidade que sentia no meio da
escuridão.
Mudando o tema da conversa, ele disse: — Conte o que
aconteceu quando você viu as luzes. Ouvi a história de todas
as outras pessoas esta noite.
Embora seus traços não fossem nada além de sombras,
Jeremy teve a impressão de que ela estava voltando no
tempo para algo que não tinha certeza se queria lembrar.
— Eu tinha oito anos de idade — ela disse, a voz suave. —
Eu não sei por que começara a ter pesadelos com meus pais.
Dóris mantinha a foto do casamento deles na parede, e era
desse jeito que eles sempre apareciam nos meus sonhos:
mamãe com seu vestido de noiva e papai de smoking. Só
que, daquela vez, eles estavam presos dentro do carro depois
de terem caído no rio. Era como se eu estivesse olhando
para eles do lado de fora do carro, e eu conseguia ver o
pânico e o medo no rosto deles enquanto a água ia subindo.
E a minha mãe ia ficando com o rosto cada vez mais triste,
como se soubesse que aquele era mesmo o fim, e de repente
o carro começava a afundar muito depressa, e eu ficava
olhando de cima.
A voz de Lexie parecia estranhamente desprovida de
emoção, e ela suspirou.
— Eu acordava gritando. Não sei quantas vezes isso
aconteceu — agora parecem apenas borrões misturados em
uma única lembrança —, mas deve ter se estendido durante
algum tempo, até Dóris perceber que não se tratava apenas
de uma fase. Imagino que se tivesse sido criada por outras
pessoas, elas teriam me levado a um psicólogo, mas Dóris...
bem, ela só me acordou uma noite, já era bem tarde, e disse
para eu me vestir, para colocar um casaco bem quente. E só
lembro que depois disso, ela me trouxe para cá. Ela me disse
que ia me mostrar uma coisa maravilhosa...
"Lembro que era uma noite como esta, e Dóris segurou
minha mão para que eu não ficasse com medo. Nós
caminhamos entre os túmulos e depois ficamos sentadas
algum tempo até as luzes surgirem. Elas pareciam ter vida —
tudo ficou muito iluminado... até as luzes simplesmente
desaparecerem. Depois voltamos pra casa."
Ele quase conseguiu ouvir o tremor de seus ombros. —
Apesar de eu ser muito nova, sabia o que tinha acontecido, e
quando voltei pra casa, não conseguia dormir, porque tinha
acabado de ver os fantasmas de meus pais. Era como se eles
tivessem vindo me visitar. Depois disso, parei de ter os
pesadelos.
Jeremy ficou em silêncio.
Ela se inclinou em sua direção. — Você acredita em mim?
— Sim — ele disse. — Eu realmente acredito. Sua história
seria aquela que eu guardaria desta noite, mesmo que não a
conhecesse.
— Bem, só pra que você saiba, prefiro que minha experiência
não acabe em seu artigo.
— Tem certeza? Você pode ficar famosa.
— Eu dispenso. Estou testemunhando em primeira mão
como um pouco de fama pode arruinar uma pessoa.
Ele riu. — Já que seu depoimento não será levado em
consideração, posso lhe perguntar se essas lembranças fazem
parte dos motivos que a fizeram vir até aqui esta noite? Ou
foi porque você queria aproveitar minha fascinante
companhia?
— Bom, certamente não foi a segunda alternativa — ela
disse, embora, ao pronunciar essas palavras, soubesse que
tinha sido. E achou que ele também tivesse percebido, mas
na pequena pausa que se seguiu, sentiu que suas palavras
haviam sido ofensivas.
— Desculpe — ela disse.
— Tudo bem — ele respondeu. — Não se esqueça de que eu
tinha cinco irmãos mais velhos. Insultos eram obrigatórios
numa família como a nossa, por isso estou acostumado.
Ela se endireitou. — Tudo bem, mas voltando à sua
pergunta... talvez eu realmente quisesse ver as luzes de
novo. Para mim, elas sempre foram uma fonte de consolo.
Jeremy pegou um galho no chão e o jogou para o lado.
— Sua avó mostrou que é uma mulher inteligente. Quer
dizer, fazendo o que fez.
— Ela é uma mulher inteligente.
— Aceito a retificação — ele disse, e nesse instante Lexie
mudou de posição ao lado dele, como se fizesse um esforço
para ver a distância.
— Acho que talvez você devesse ligar seu equipamento —
ela falou.
— Por quê?
— Porque elas estão vindo. Você não percebe?
Ele estava prestes a soltar uma bravata sobre o fato de ser "à
prova de fantasmas", quando percebeu que estava
conseguindo enxergar não apenas Lexie, mas também as
cameras mais ao longe. E também, ele notou, o caminho até
o carro. O lugar estava ficando bem iluminado, não estava?
— Alô — ela chamou. — Você está perdendo sua grande
oportunidade.
Ele apertou os olhos, tentando se certificar de que seus olhos
não estavam lhe pregando uma peça, depois procurou o
controle remoto das três câmeras. Na distância, as luzes
vermelhas se acenderam, indicando que estavam ligadas.
Mesmo assim, foi tudo o que ele conseguiu fazer para
registrar o fato de que alguma coisa parecia estar mesmo
acontecendo.
Olhou ao redor, procurando carros que pudessem estar
passando ou casas iluminadas, e quando olhou de novo para
as câmeras, concluiu que certamente não estava vendo
coisas. Não só as câmeras estavam visíveis, como também
conseguia ver o detector de ondas eletromagnéticas no cen-
tro do triângulo que havia criado. Ele procurou os óculos de
visão noturna.
— Você não vai precisar disso — ela disse.
Ele os colocou, de qualquer forma, e o mundo adquiriu um
brilho fosforescente esverdeado. À medida que a luz
aumentava em intensidade, a neblina parecia rodopiar e
girar, adquirindo formas diferentes.
Olhou o relógio: eram onze horas, quarenta e quatro
minutos e dez segundos, e ele tomou nota para não
esquecer. Ficou imaginando se a lua teria aparecido
subitamente — duvidava, mas poderia checar a fase depois,
quando voltasse para seu quarto no Greenleaf.
Mas esses pensamentos eram secundários. A neblina, como
Lexie havia previsto, continuava iluminada, e ele abaixou os
óculos por um instante, observando a diferença entre as
imagens. Lá fora continuava a ficar cada vez mais brilhante,
mas a mudança parecia mais significativa com os óculos. Ele
mal conseguia esperar para comparar as imagens gravadas
lado a lado. Mas nesse momento tudo o que podia fazer era
olhar bem à frente, desta vez sem os óculos.
Segurando a respiração, ele viu a neblina diante deles se
tornar mais prateada, antes de mudar para um amarelado-
claro, depois um branco-opaco e, finalmente, num brilho
que cegava. Por um momento, só por um momento, a maior
parte do cemitério ficou completamente visível — como um
campo de futebol iluminado antes do grande jogo — e partes
da luz envolta na neblina começaram a se mexer em
pequenos círculos, antes de se espalharem para todos os
lados, como se fosse uma estrela explodindo. Por um
instante, Jeremy pensou ter visto a sombra de pessoas ou
coisas, mas aí a luz começou a retroceder, como se estivesse
sendo puxada por um cordão, de volta para o centro, e antes
que percebesse as luzes haviam desaparecido, e o cemitério
ficara no escuro novamente.
Ele piscou, como para se assegurar de que aquilo realmente
havia acontecido, depois olhou seu relógio novamente.
Tudo havia acontecido em apenas vinte e dois segundos,
desde o início até o final. Apesar de saber que devia levantar
para checar o equipamento, houve um breve instante em
que tudo o que conseguiu fazer foi olhar fixamente para o
ponto em que os fantasmas de Cedar Creek tinham
aparecido.

Fraude, equívocos bem-intencionados e coincidências eram
as explicações mais comuns para eventos ligados a
acontecimentos sobrenaturais, e, até aquele dia, cada uma
das investigações de Jeremy em relação a eventos desse tipo
havia caído em uma dessas três categorias. A primeira cos-
tumava ser a explicação mais predominante nas situações em
que alguém de alguma forma estava lucrando. William
Newell, por exemplo, que alegava ter encontrado os restos
petrificados de um gigante em sua fazenda em Nova Iorque,
em 1869, uma estátua conhecida como o Gigante de Cardiff,
estava nessa categoria. Timothy Clausen, o guia espiritual,
era outro exemplo.
Mas a fraude também abrangia aqueles que desejavam
apenas ver quantas pessoas poderiam enganar, não por
dinheiro, mas só para saber se era possível. Doug Bower e
Dave Chorley, os fazendeiros ingleses que haviam criado o
fenômeno conhecido como círculos da plantação, eram
exemplos desse tipo; o cirurgião que havia fotografado o
monstro do lago Ness em 1933 era outro. Em ambos os
casos, o embuste havia sido perpetrado originalmente como
uma piada, mas o interesse público atingira tais proporções
que dificultara qualquer confissão.
Equívocos bem-intencionados, por outro lado, eram apenas
isso. Um balão meteorológico confundido com um objeto
voador, um urso confundido com o Pé Grande, uma
descoberta arqueológica levada para outro lugar centenas ou
milhares de anos depois de ter se sedimentado no local
original. Em casos como esses, a pessoa realmente vê alguma
coisa, mas sua mente extrapola o que é visto e transforma
em algo totalmente diferente.
As coincidências respondiam por quase todo o resto e eram
apenas uma questão de probabilidades matemáticas. Por mais
improvável que possa parecer um acontecimento, desde que
seja teoricamente viável, é mais do que provável que possa
acontecer alguma vez, em algum lugar, com alguém. Pegue
o romance de Robert Morgan, por exemplo, chamado
Futility, publicado em 1898 — quatorze anos antes da
partida do Titanic
— que contava a história do maior e mais grandioso navio
de passageiros existente até então, que zarpou de
Southampton em sua viagem inaugural para ser dividido ao
meio por um iceberg, e cujos passageiros, ricos e famosos,
acabaram morrendo em sua grande maioria no gelado
Atlântico Norte, devido à falta de botes salva-vidas. O nome
do navio, ironicamente, era Titan.
Mas o que tinha acontecido ali não se encaixava direito em
nenhuma dessas categorias. Para Jeremy, as luzes não
pareciam ser uma fraude ou uma coincidência, e também
não eram um equívoco bem-intencionado. Havia alguma
explicação em algum lugar, mas ao sentar no cemitério, na
inquietação do momento, ele não tinha idéia de qual poderia
ser.
Durante todo o tempo, Lexie havia permanecido sentada e
não dissera uma palavra. — Muito bem? — ela perguntou
finalmente. — O que achou?
— Eu ainda não sei — Jeremy admitiu. — Eu vi alguma
coisa, disso tenho certeza.
— Você já tinha visto alguma coisa parecida?
— Não — ele reconheceu. — Esta foi realmente a primeira
vez. Nunca tinha visto nada que me parecesse sequer
remotamente misteriosa.
— É incrível, não é? — ela disse, a voz suave. — Eu quase
tinha esquecido de como podia ser bonito. Já ouvi falar da
aurora boreal, e fico sempre imaginando se seria algo
parecido com isto.
Jeremy não respondeu. Com os olhos de sua mente, ele
recriou as luzes, pensando que a maneira como elas haviam
aumentado de intensidade lembrava as luzes dos faróis dos
carros quando fazem uma curva. Simplesmente tinham de
estar sendo provocadas por algum tipo de veículo em
movimento, ele pensou. Ele olhou na direção da estrada,
esperando por algum carro, mas não ficou de modo algum
surpreso por não ver nenhum.
Lexie deixou que ele ficasse ali sentado em silêncio por
alguns minutos, e quase conseguia ver seus pensamentos se
mexendo. Por fim, ela se inclinou e tocou seu braço para
que prestasse atenção a ela.
— E então? — ela perguntou. — O que vamos fazer agora?
Jeremy sacudiu a cabeça, voltando a perceber sua presença.
— Há alguma estrada aqui perto? Ou pelo menos uma
rodovia importante?
— Só aquela que você pegou pra vir até aqui e que passa
pela cidade.
— Hã! — foi sua resposta, com a testa franzida.
— O quê? Nenhum "sei" desta vez?
— Ainda não. Mas vou chegar lá — ele falou. Apesar da
escuridão retinta, ele achou que podia vê-la sorrir. — Por
que será que estou com a impressão de que você já sabe de
onde elas vêm?
— Eu não sei — ela respondeu, de maneira evasiva. — Por
que será?
— É só uma impressão. Se tem uma coisa que sei fazer muito
bem é decifrar as pessoas. Um sujeito chamado Clausen me
ensinou seus segredos.
Ela riu. — Bem, então você já sabe o que eu penso.
Ela deu a ele um segundo para pensar a respeito, e depois se
inclinou para a frente. Seus olhos escuros eram sedutores, e
embora sua mente talvez estivesse em algum outro lugar,
mais uma vez ele vislumbrou a imagem dela na festa e
lembrou de como ela estava bonita.
— Você não se lembra da minha história? — ela sussurrou.
— Eram os meus pais. Eles provavelmente queriam
conhecer você.
Talvez fosse a voz de órfã que ela havia usado para dizer isso
— ao mesmo tempo triste e esperançosa — o que mexera
com ele, mas ao sentir um nó na garganta, teve de se
controlar para não tomá-la nos braços naquele instante, na
esperança de poder segurá-la junto de si para sempre.

Meia hora depois, após ter carregado o equipamento, eles
estavam de volta diante da casa de Lexie.
Nenhum dos dois dissera muita coisa no caminho de volta, e
quando chegaram diante da porta, Jeremy percebeu que
tinha passado muito mais tempo pensando em Lexie do que
nas luzes durante todo o trajeto da volta. Ele não queria que
a noite acabasse, ainda não.
Lexie parou em frente à porta e levou uma das mãos à boca
para abafar um bocejo, antes de irromper num sorriso
envergonhado.
— Desculpe — ela disse. — Não costumo ficar acordada até
tão tarde.
— Tudo bem — ele respondeu, encarando seu olhar. — Eu
me diverti muito esta noite.
— Eu também — ela disse, com sinceridade.
Ele deu um pequeno passo à frente, e quando ela percebeu
que ele estava pensando em beijá-la, fingiu que procurava
alguma coisa no bolso do casaco.
— Acho que poderíamos dizer que foi uma noite e tanto —
ela falou, esperando que ele tivesse entendido o recado.
— Tem certeza? Poderíamos entrar e assistir as fitas, se você
quiser. Talvez você pudesse me ajudar a descobrir o que são
realmente essas luzes.
Ela desviou o olhar, com uma expressão pensativa.
— Por favor, não estrague tudo isso, está bem? — ela
sussurrou.
— Estragar o quê?
— Isso... tudo... — ela fechou os olhos, tentando conciliar
seus pensamentos. — Tanto você quanto eu sabemos por
que você quer entrar, mas mesmo que eu quisesse, eu não
permitiria. Por isso, por favor, não insista.
— Eu fiz alguma coisa errada?
— Não. Você não teve a intenção de fazer nada errado. O dia
foi ótimo, na verdade acho que foi maravilhoso. Há muito
tempo eu não tinha um dia tão bom como o de hoje.
— Então, o que foi?
— Você está me cortejando desde que chegou aqui, e nós
sabemos o que aconteceria se eu o deixasse passar por essa
porta. Mas você vai embora. E quando for, eu é que vou sair
machucada dessa história. Então, por que começar algo que
você não tem a menor intenção de terminar?
Se fosse outra pessoa, com qualquer outra pessoa, ele teria
feito algum comentário irreverente ou mudado de assunto
até descobrir outra forma de atravessar aquela porta. Mas ao
olhar para ela na varanda, ele não conseguiu encontrar as
palavras. E, estranhamente, também não queria.
— Você está certa — ele admitiu, e forçou um sorriso. —
Vamos dizer que foi uma bela noite. Eu certamente vou
descobrir de onde estão vindo aquelas luzes, de qualquer
forma.
Por um segundo, ela não teve certeza se tinha escutado
direito, mas quando ele deu um passo para trás, ela
encontrou seu olhar.
— Obrigada.
— Boa noite, Lexie.
Ela acenou com a cabeça e depois de fazer uma pausa
estranha, virou-se para abrir a porta. Jeremy encarou aquilo
como um sinal para ir embora e desceu os degraus da
varanda, enquanto Lexie pegava as chaves para abrir a porta.
Já estava com um pé do lado de dentro quando o ouviu
chamar.
— Ei, Lexie? — ele gritou.
Em meio à neblina, ele era apenas um borrão.
— Sim?
— Eu sei que você pode não acreditar, mas a última coisa que
eu gostaria de fazer seria magoá-la, ou fazer qualquer coisa
para deixar você arrependida de ter me conhecido.
Embora não pudesse evitar um leve sorriso com esse
comentário, ela entrou sem dizer uma palavra. A falta de
resposta dizia tudo, e pela primeira vez em sua vida, Jeremy
não apenas estava desapontado consigo mesmo, mas de
repente sentiu vontade de ser uma pessoa completamente
diferente.


Capítulo
ONZE

A neblina tinha começado a se desfazer, os pássaros
cantavam e um guaxinim passava correndo pela varanda do
chalé quando o celular de Jeremy tocou. A luz forte do
início da manhã atravessava as cortinas rasgadas, atingindo-o
no olho como o soco de um lutador de boxe.
Uma olhada rápida para o relógio mostrou que eram oito
horas da manhã, muito cedo ainda para falar com alguém,
principalmente depois de ter passado a noite em claro. Ele
estava ficando velho demais para noites desse tipo, e piscou
muitas vezes os olhos antes de pegar o telefone.
— É bom que seja importante — ele resmungou.
— Jeremy? É você? Por onde é que você tem andado? Por
que é que você não telefonou? Estou tentando falar com
você!
Nate, Jeremy pensou, fechando os olhos novamente. Pelo
amor de Deus, Nate.
Enquanto isso, Nate continuava a falar. Ele devia ser algum
parente perdido do prefeito, Jeremy concluiu. Se alguém
tivesse a idéia de colocar esses dois numa sala e os ligasse a
um gerador enquanto falavam, iriam gerar energia para
iluminar o Brooklyn durante um mês.
— Você disse que iria manter contato!
Jeremy forçou-se a sentar direito na beirada da cama, apesar
de seu corpo estar dolorido.
— Desculpe, Nate — ele disse. — Eu fiquei totalmente
ocupado, e a recepção não foi muito boa por aqui.
— Você precisa me manter informado! Passei o dia inteiro
tentando ligar para você ontem, mas caía direto na caixa
postal. Você nem vai acreditar no que está acontecendo.
Estou sendo cercado por produtores de todas as partes,
cheios de idéias sobre coisas que você poderia querer
discutir. E as coisas estão realmente caminhando. Um deles
sugeriu que você faça uma matéria sobre essas dietas à base
de proteínas. Você sabe, aquelas que dizem que você pode
comer todo o bacon e carne que quiser e mesmo assim
perder peso.
Jeremy sacudiu a cabeça, tentando acompanhar.
— Espere aí! Do que é que você está falando? Quem é que
quer que eu fale o quê sobre que dieta?
— O Good Morning America. De quem você acha que eu
estava falando? È claro que eu disse a eles que daria a
resposta depois, mas acho que tem tudo a ver com você.
Esse cara às vezes o deixava com dor de cabeça, e Jeremy
passou a mão pela testa.
— Não estou interessado em falar de uma nova dieta, Nate.
Eu sou um jornalista científico, não sou a Oprah Winfrey.
— Então você pode fazer as coisas do seu jeito. Não é isso o
que você costuma fazer? E as dietas têm algo a ver com
química e ciência. Estou certo ou estou certo? Diabo, você
sabe que eu estou certo, e você me conhece — quando
estou certo, estou certo. Além disso, só estou falando de
algumas idéias...
— Eu vi as luzes — Jeremy falou, interrompendo o que ele
dizia.
— Quer dizer, se você tiver alguma idéia melhor, podemos
conversar. Mas estou voando às cegas por aqui, e essa coisa
de dieta pode ser uma forma de você colocar o pé...
— Eu vi as luzes — Jeremy falou novamente, erguendo a
voz.
Desta vez Nate o ouviu. — Você está falando das luzes no
cemitério? — ele perguntou.
Jeremy continuou a esfregar as têmporas. — Sim, essas
luzes.
— Quando? Por que você não telefonou pra mim? Isso sim
é material para trabalhar. Por favor, diga que você filmou
tudo.
— Filmei, mas ainda não vi as fitas, por isso não sei como
ficaram as imagens.
— Então as luzes existem?
— Sim. Mas eu acho que descobri de onde estão vindo.
— Então não existem...
— Escute, Nate. Eu estou cansado, por isso preste atenção
por um minuto, está bem? Eu fui até o cemitério ontem à
noite e vi as luzes. E, honestamente, entendo porque
algumas pessoas acham que são fantasmas, por causa do
modo como aparecem. Há uma lenda muito interessante li-
gada a elas, e a cidade até programou um passeio no fim de
semana para capitalizar em cima disso. Mas, depois que
deixei o cemitério, sai à procura da fonte e tenho quase
certeza de que encontrei. Tudo o que tenho a fazer é
descobrir como e porque acontece, mas também tenho
algumas idéias a respeito disso, e acredito que talvez consiga
descobrir ainda hoje.
Nate, numa atitude rara, ficou em silêncio. Porém, como
profissional treinado que era, recuperou-se rapidamente.
— Está bem, está bem, me dê apenas um minuto para
pensar na melhor maneira de mostrar esse material. Estou
pensando nesses caras da televisão...
Em quem mais ele poderia pensar? Jeremy avaliou.
— Está bem, que tal isto? — e Nate continuou. — Abrimos
com a lenda propriamente dita, meio que criando o clima.
Cemitério com neblina, close-up em alguns dos túmulos,
talvez uma tomada rápida de um corvo bem agourento, sua
voz como pano de fundo...
O homem realmente era um mestre nos clichês de
Hollywood, e Jeremy olhou para o relógio novamente,
concluindo que era muito cedo para isso.
— Estou cansado, Nate. Que tal isto? Você pensa um pouco
mais e depois me conta, certo?
— Tudo bem, tudo bem, eu faço isso. É pra isso que estou
aqui, certo? Pra facilitar sua vida. Ei, você acha que eu
deveria ligar para o Alvin?
— Ainda não tenho certeza. Deixe-me ver as fitas primeiro,
e depois eu falo com o Alvin e vejo o que ele acha.
— Está certo — disse Nate, a voz cheia de entusiasmo. —
Bom plano, boa idéia! E essa foi uma ótima notícia! Uma
verdadeira história de fantasmas! Eles vão adorar! Eu falei pra
você que eles estavam animados com a idéia, não falei?
Acredite, eu disse a eles que você ia trazer essa história e
que você não teria interesse em falar sobre a última dieta da
moda. Mas agora que nós temos material pra barganhar, eles
vão ficar malucos. Eu mal consigo esperar para falar com
eles, e escute aqui, eu vou ligar de volta para você daqui a
algumas horas, por isso mantenha seu telefone ligado. As
coisas podem andar muito depressa... — Tchau, Nate. Falo
com você mais tarde.
Jeremy voltou para a cama e cobriu a cabeça com o
travesseiro. Descobriu que seria impossível pegar no sono de
novo, e soltou um rugido enquanto ia até o banheiro,
fazendo o possível para ignorar as criaturas empalhadas que
pareciam atentas a todos os seus movimentos. Mas ele já
estava se acostumando com elas, e, enquanto se despia,
pendurou a toalha nas patas estendidas de um texugo,
imaginando que não havia problema algum em aproveitar a
pose conveniente dos animais.
Entrando no box do chuveiro, ele abriu a torneira no
máximo e ficou embaixo do jato d'água durante vinte
minutos, até sua pele ficar enrugada. Só então ele começou a
se sentir vivo de novo. Tendo dormido menos de duas
horas, qualquer pessoa teria essa sensação.
Depois de vestir sua calça jeans, ele pegou as fitas e entrou
no carro. A neblina cobria a estrada como fumaça de gelo
seco no palco de um concerto de rock, e o céu ainda tinha
os mesmos tons desagradáveis do dia anterior, levando-o a
suspeitar de que as luzes iriam aparecer de novo nessa noite.
Isso não apenas significava um bom presságio para os turistas
deste fim de semana, mas também significava que ele
deveria ligar para Alvin. Mesmo que as fitas tivessem ficado
boas, Alvin fazia mágicas com uma câmera, e poderia captar
imagens que sem dúvida deixariam os dedos de Nate gastos
de tanto fazer telefonemas.
O primeiro passo, entretanto, era ver o que haviam captado
as câmeras, mesmo que fosse apenas para ver se tinham
captado qualquer coisa. Como era de se esperar, não havia
aparelho de videocassete em Greenleaf, mas ele tinha visto
um na sala de livros raros, e enquanto dirigia pela estrada
tranqüila que levava até a cidade, ficou pensando qual seria a
atitude de Lexie em relação a ele quando chegasse lá. Será
que adotaria uma postura profissional e distante? Os bons
sentimentos compartilhados durante o dia anterior iriam
prevalecer? Ou ela lembraria apenas os últimos momentos
na varanda, quando ele forçara um pouco as coisas? Ele não
tinha idéia do que iria acontecer, embora tivesse passado boa
parte da noite tentando adivinhar.
Ele certamente havia descoberto a fonte da luz. Como
muitos outros mistérios, não tinha sido tão difícil de
resolver; sabendo o que procurar, e depois de uma rápida
olhada no website da NASA, eliminara qualquer outra
possibilidade. A Lua, ele descobriu, não poderia ser
responsável pelas luzes. Estavam, na verdade, na lua nova,
quando a Lua fica encoberta pela sombra da Terra, e ele
secretamente suspeitava de que as luzes misteriosas
aconteciam nessa fase em particular. Fazia sentido: sem a luz
do luar, até os traços mais sutis de qualquer outra luz
ficariam muito mais evidentes, especialmente quando se
refletissem nas gotículas de água da neblina.
Mas enquanto estava ali, parado no ar frio, com a resposta ao
seu alcance, não conseguia parar de pensar em Lexie.
Parecia impossível que ele só a tivesse conhecido há dois
dias. Não fazia sentido. É claro que Einstein havia afirmado
que o tempo era relativo, e ele imaginou que isso talvez
pudesse ser uma explicação. Como era mesmo aquele ditado
sobre a relatividade? Um minuto com uma bela mulher
passaria num instante, mas um minuto com a mão colocada
em uma chapa queimando iria parecer uma eternidade? Sim,
ele pensou, era isso. Ou quase, de qualquer forma.
Ele se arrependeu novamente de sua atitude na varanda,
desejando pela centésima vez ter se conformado com a dica
para ir embora, em vez de ter cogitado beijá-la. Ela havia
deixado claro o que estava sentindo e ele simplesmente
ignorara. Normalmente, o velho Jeremy já teria esquecido
isso, descartando a história toda como um acontecimento
sem importância. Mas, por algum motivo, desta vez não
estava sendo tão fácil.
Ele certamente tivera muitos encontros, e não poderia ser
chamado exatamente de eremita depois que Maria o havia
deixado, mas poucas vezes tinha feito algo como passar-o-
dia-inteiro-conversando-com-alguém. Em geral, um jantar
ou alguns drinques e uma conversa recheada com palavras
sedutoras bastavam para soltar a inibição antes da parte boa.
Uma parte dele sabia que já estava na hora de adotar uma
postura mais madura no que dizia respeito a seus encontros,
talvez até tentar sossegar e levar uma vida como a de seus
irmãos. Com o que eles concordavam inteiramente, bem
como, é claro, suas esposas. Todos eram unânimes na
opinião de que ele deveria conhecer as mulheres antes de
tentar dormir com elas, e chegaram até a arranjar um
encontro com uma vizinha divorciada que também pensava
assim. E é claro que ela não aceitara o convite para um
segundo encontro, em parte por causa de seus avanços no
primeiro. Nos últimos anos, simplesmente parecia mais fácil
se não conhecesse as mulheres muito bem, poderia mantê-
las no reino das perpétuas estranhas, quando elas ainda
podiam projetar nele esperança e potencial.
E aí é que estava o problema. Não havia esperança ou
potencial. Pelo menos, não em relação ao tipo de vida em
que seus irmãos e cunhadas acreditavam, nem mesmo, era o
que suspeitava, em relação ao tipo de vida que Lexie queria.
Seu divórcio de Maria havia provado. Lexie era uma garota
de cidade pequena com sonhos de cidade pequena, e não se-
ria suficiente ser fiel e responsável e ter coisas em comum.
A maioria das mulheres queria algo mais, um tipo de vida
que ele não poderia proporcionar. Não porque não quisesse,
nem porque estivesse apaixonado pela vida de solteiro, mas
simplesmente porque era impossível. A ciência podia
responder a uma série de perguntas, a ciência podia resolver
uma série de problemas, mas não podia mudar sua realidade.
E a realidade era que Maria o havia deixado por que ele não
era, e jamais poderia ser, o tipo de marido que ela queria.
É claro que ele jamais admitiria essa dolorosa verdade para
alguém. Nem para seus irmãos, nem para seus pais, nem para
Lexie. E, normalmente, mesmo nos momentos mais
solitários, nem para si mesmo.

Apesar de a biblioteca estar aberta, Lexie ainda não havia
chegado, e ele sentiu uma dolorosa sensação de
desapontamento ao abrir a porta do escritório e ver a sala
vazia. Mas ela já havia passado por ali mais cedo: a sala de
livros raros estava destrancada, e quando ele acendeu a luz,
viu um bilhete sobre a mesa, junto com os mapas de
topografia que havia mencionado. O bilhete tinha apenas
duas linhas:

Estou cuidando de alguns assuntos pessoais.
Fique à vontade para usar o videocassete.
Lexie

Nenhuma menção ao dia anterior ou à noite, nenhuma
menção quanto a querer vê-lo novamente. Nem mesmo
algum tipo de cumprimento acima da assinatura. Não era um
bilhete absolutamente frio como os bilhetes costumam ser,
mas também não transmitia qualquer mensagem calorosa.
Mas, quem sabe, ele estivesse exagerando. Ela podia estar
com pressa logo de manhã, ou talvez tivesse escrito pouco
porque pretendia voltar logo. Ela falou que era pessoal, e no
que diz respeito às mulheres, isso podia significar qualquer
coisa — desde uma consulta médica até comprar um
presente de aniversário para uma amiga. Simplesmente não
havia o que dizer.
Além disso, ele disse a si mesmo, tinha de trabalhar. Nate
estava esperando e sua carreira estava em jogo. Jeremy
obrigou-se a pensar apenas em encontrar o final da história.
Os gravadores de áudio não haviam captado qualquer som
incomum, e nem o detector de ondas eletromagnéticas ou
de microondas haviam registrado a menor variação de
energia. As fitas de vídeo, entretanto, haviam captado tudo
o que ele vira na noite anterior, e ele assistiu as imagens uma
dúzia de vezes de todos os ângulos. As cameras com capaci-
dade especial para filtrar a luz mostravam a neblina brilhante
mais vividamente. Embora as fitas pudessem fornecer
imagens suficientemente boas para sua coluna, estavam
muito abaixo da qualidade exigida pela televisão. Quando
vistas em tempo real, tinham um ar de vídeo caseiro que o
lembrava daquelas fitas grosseiras oferecidas como prova de
acontecimentos sobrenaturais. Ele redigiu uma nota para se
lembrar de comprar uma camera de verdade, não importava
o quanto seu editor pudesse reclamar por causa disso.
Mas, apesar de as fitas não terem a qualidade que ele
esperava, observando a maneira como as luzes tinham
mudado durante os vinte e dois segundos em que ficaram
visíveis, ele teve a certeza de que havia realmente
encontrado a resposta. Ele tirou as fitas do aparelho, analisou
os mapas topográficos e calculou a distância entre Riker's
Hill e o rio. Comparou as fotografias que havia tirado do
cemitério com fotos do cemitério encontradas em livros a
respeito da história da cidade, e chegou à conclusão do que
seria uma estimativa mais ou menos exata do grau de
afundamento do cemitério. Embora não conseguisse
encontrar mais nenhuma informação na lenda de Hettie
Doubilet — os registros daquele período não revelavam
muita coisa sobre o assunto —, ele telefonou ao
departamento estadual de saneamento para falar do
reservatório subterrâneo naquela parte do estado, e também
para o departamento de minas, que tinha informações a
respeito das pedreiras do início do século. Depois disso,
digitou algumas palavras numa ferramenta de busca da
internet em busca das escalas de atividades de que ele
precisava; e finalmente, depois de ficar esperando durante
dez minutos, conseguiu falar com um sr. Larsen na fábrica
de papel, que estava ansioso para colaborar da forma que
pudesse.
E, com isso, todas as peças haviam se juntado de maneira
que ele poderia definitivamente provar sua teoria.
A verdade estivera diante de todos o tempo todo. Como
quase todos os mistérios, a solução era simples, o que o fez
pensar por que ninguém havia percebido antes. A menos, é
claro, que alguém tivesse percebido; o que abria a porta para
um ângulo completamente diferente da história.
Nate, sem dúvida, ficaria excitado, mas apesar do sucesso
daquela manhã, Jeremy não se sentia muito realizado. Ao
contrário, tudo o que conseguia pensar era que Lexie não
estava por ali para lhe dar os parabéns ou para provocá-lo.
Honestamente, ele não se importava com a reação que ela
teria, desde que estivesse ali para reagir, e ele se levantou da
cadeira para olhar de novo seu escritório.
Parecia praticamente idêntico ao dia anterior. Pilhas de
documentos ainda estavam sobre sua mesa, livros espalhados
ao acaso, e a proteção de tela de seu computador exibia
desenhos coloridos. A secretária eletrônica, piscando por
causa das mensagens, ficava perto de um vaso com uma
pequena planta.
Ainda assim, ele não conseguia afastar a sensação de que,
sem Lexie, a sala podia muito bem estar completamente
vazia que não faria a menor diferença.


Capítulo
DOZE

Meu grande homem! — Alvin gritou do outro lado do
aparelho. — A vida está tratando bem de você aí no Sul?
Apesar da estática no celular de Jeremy, Alvin parecia
extremamente animado.
— Estou bem. Estou ligando para saber se você ainda está
com vontade de vir pra cá, para me dar uma ajuda.
— Já estou juntando meu equipamento — ele respondeu,
parecendo um pouco sem fôlego. — Nate me ligou faz uma
hora e me contou tudo. Encontro você hoje à noite no
Greenleaf — Nate já fez a reserva. Bom, de qualquer forma,
meu vôo sai daqui a algumas horas. E acredite, mal posso
esperar. Mais alguns dias por aqui e sou capaz de ficar louco.
— Do que é que você está falando?
— Você não tem lido os jornais ou assistido televisão?
— Claro. Não perdi um único número da Boone Creek
Weekly.
— O quê?
— Esqueça — Jeremy falou. — Nada importante.
— Bom, de qualquer forma, tem sido uma nevasca só desde
que você foi embora — Alvin informou. — E estou falando
de um cenário parecido com o do Pólo Norte. Manhattan
está praticamente enterrada na neve.
Você saiu daqui na hora certa. Hoje é o primeiro dia, desde
que você foi embora, que os vôos estão saindo mais ou
menos de acordo com a programação. E ainda tive de mexer
uns pauzinhos para conseguir um lugar nesse vôo. Como é
que você não está sabendo dessas coisas?
Enquanto Alvin falava, Jeremy teclou alguns comandos no
computador e entrou num site de meteorologia na internet.
No mapa que abrangia todo o país, o Nordeste era uma
mancha branca.
Vige, ele pensou. Quem poderia imaginar uma coisa dessas?
— Acho que tenho andado muito ocupado — ele disse.
— Escondido, você quer dizer — falou Alvin. — Mas,
espero que ela valha a pena.
— Do que é que você está falando?
— Nem pense que pode me enganar. Somos amigos,
lembra? Nate estava em pânico porque não conseguia
encontrar você, você não tem lido os jornais, e também não
tem acompanhado o noticiário. Nós dois sabemos o que isso
significa. Você sempre fica desse jeito quando conhece
alguém.
— Escuta, Alvin...
— Ela é bonita? Aposto que é linda, não é? Você sempre
consegue achar ouro. Até me vira o estômago.
Jeremy hesitou antes de responder, e acabou desistindo. Se
Alvin estava a caminho, logo iria descobrir tudo, de
qualquer forma.
— É, ela é bonita. Mas não é nada do que você está
pensando. Somos apenas amigos.
— Claro — ele respondeu, gargalhando. — Mas há uma
pequena diferença entre o que você chama de amigo e o que
eu considero um amigo.
— Não desta vez — Jeremy falou.
— Ela tem alguma irmã? — Alvin perguntou, ignorando o
comentário.
— Não.
— Mas tem amigas, certo? E espero que você se lembre de
que não estou interessado na feia.
Jeremy sentiu que a dor de cabeça estava voltando, e sua voz
adquiriu um tom mais impaciente. — Eu não estou muito a
fim desse papo, está bem?
Alvin fez uma pausa do outro lado. — Ei, o que foi que
aconteceu? Eu estava apenas brincando.
— Algumas das suas brincadeiras não são engraçadas.
— Você está gostando dela, não está? Quer dizer, está
gostando muito.
— Eu disse que nós somos apenas amigos.
— Eu não acredito nisso. Você está ficando apaixonado.
— Não — Jeremy respondeu.
— Ei, cara, eu te conheço. Nem tente negar. E eu acho isso
incrível. Estranho mas incrível. Mas, infelizmente, tenho de
cortar o papo, pois tenho de pegar o avião. O trânsito está
terrível, como você pode imaginar. Mas eu mal posso
esperar para ver a mulher que finalmente te dominou.
— Ela não me dominou — Jeremy protestou. — Por que é
que você não ouve o que digo?
— Estou ouvindo — Alvin falou. — Só que estou ouvindo as
coisas que você não está dizendo.
— Tá certo, tudo bem. Quando é que você chega?
— Acho que por volta das sete da noite. Vejo você mais
tarde. E, a propósito, dê um alô por mim, está bem? Diga a
ela que estou morrendo de vontade de conhecê-la e a amiga
dela...
Jeremy encerrou a conversa antes que Alvin terminasse de
falar e, como se quisesse esquecer totalmente o assunto,
enfiou o telefone no bolso.
Não admira que o tivesse deixado desligado. Devia ter sido
uma decisão tomada pelo subconsciente, baseada no fato de
que seus amigos tinham uma tendência para irritá-lo às
vezes. Primeiro, tinha sido o Nate, movido a pilha alcalina e
sua inesgotável busca pela fama. E agora isso.
Alvin não tinha a mínima idéia do que estava falando. Eles
podiam ser amigos, eles podiam ter passado muitas noites de
sexta olhando para as mulheres por cima dos copos de
cerveja, podiam ter conversado a respeito de coisas da vida
durante horas, e, lá no fundo, Alvin talvez acreditasse
sinceramente que estava certo. Mas não estava,
simplesmente porque não podia estar.
Os fatos, afinal de contas, falavam por si mesmos. Em
primeiro lugar, Jeremy não se apaixonava por uma mulher
há anos, e apesar de fazer muito tempo, ainda conseguia se
lembrar de como se sentira então. Ele tinha certeza de que
reconheceria esse sentimento novamente, e francamente,
isso não tinha acontecido. E considerando o fato de que ele
tinha acabado de conhecer aquela mulher, a idéia toda
parecia absurda. Nem mesmo sua mãe, com toda a sua
profunda emotividade italiana, conseguiria acreditar que o
verdadeiro amor pudesse surgir da noite para o dia. Como
seus irmãos e cunhadas, tudo o que ela queria era que ele
casasse e constituísse uma família, mas se ele aparecesse em
sua casa e dissesse que dois dias atrás tinha encontrado
alguém e sabia que era a pessoa de sua vida, sua mãe lhe
daria uma surra com a vassoura, diria uma porção de
palavrões em italiano, e o mandaria para a igreja, acreditando
sinceramente que ele tinha pecados graves para confessar.
Sua mãe conhecia os homens. Tinha casado com um, criara
seis meninos, e achava que já tinha visto tudo. Sabia
exatamente como os homens costumavam pensar quando se
tratava de mulheres, e apesar de acreditar mais no bom
senso do que na ciência, tinha uma opinião extremamente
racional em relação ao amor, e não acreditava que fosse
possível acontecer em apenas alguns dias. O amor poderia
ser colocado em movimento rapidamente, mas o verdadeiro
amor precisava de tempo para se transformar em algo forte e
duradouro. O amor era, acima de tudo, compromisso e de-
dicação, era acreditar que o passar dos anos com uma
determinada pessoa iria criar algo maior do que a soma
daquilo que ambas poderiam conquistar separadamente.
Somente o tempo, contudo, poderia mostrar se a sua
avaliação estava correta.
O desejo, em contrapartida, poderia acontecer quase que
instantaneamente, e era por isso que sua mãe lhe teria dado
uma sova. Para ela, era fácil descrever o desejo: duas pessoas
percebem que têm afinidades, a atração aumenta e o instinto
ancestral para a preservação da espécie entra em cena. Tudo
isso queria dizer que, apesar de o desejo ser uma
possibilidade, ele não poderia estar sentindo amor por ela.
Então era isso. Caso encerrado. Alvin estava errado, Jeremy
estava certo, e mais uma vez a verdade o libertara.
Por um momento, ele sorriu satisfeito, mas sua testa logo
começou a ficar franzida.
E mesmo assim...
Bom, o problema era que também não parecia ser apenas
uma questão de desejo. Não esta manhã, de qualquer forma.
Porque muito mais do que tê-la nos braços ou beijá-la, ele
simplesmente ansiava por vê-la novamente. Para passar o
tempo com ela. Para falar com ela. Queria ver novamente o
jeito como ela revirava os olhos quando dizia alguma coisa
ridícula, queria sentir sua mão em seu braço, como no dia
anterior. Queria ver como ela colocava mechas de cabelo
atrás da orelha quando estava nervosa, e ouvir as histórias
que ela contava a respeito de sua infância. Queria lhe
perguntar a respeito de seus sonhos e esperanças para o
futuro, saber seus segredos.
Mas essa não era a parte mais estranha. O mais estranho era
que ele não conseguia compreender qual seria o motivo
oculto para seus impulsos. É claro que ele não se recusaria a
dormir com ela, se ela quisesse, mas mesmo que ela não
quisesse, só o fato de passar o tempo com ela seria suficiente
por enquanto.
Lá no fundo, ele simplesmente sentia falta de um motivo
oculto. Ele já havia tomado a decisão de nunca mais colocar
Lexie na situação em que a colocara na noite anterior. Era
preciso muita coragem, ele pensou, para dizer o que ela
havia dito. Mais coragem do que a que ele possuía. Afinal,
nos dois dias em que estiveram juntos, ele sequer havia
conseguido dizer a ela que já fora casado.
Mas se aquilo não podia ser amor e não era desejo, o que
seria? Gostar? Ele gostava dela? È claro que gostava, mas essa
palavra também não abarcava todos os seus sentimentos. Era
muito... vaga e mal definida. As pessoas gostavam de
sorvete. As pessoas gostavam de assistir à televisão. Não
queria dizer nada, e nem chegava perto de uma explicação
para o fato de, pela primeira vez, ele sentir a necessidade de
contar a alguém a verdade a respeito de seu divórcio. Seus
irmãos não sabiam a verdade, nem seus pais. Mas, qualquer
que fosse o motivo, ele não conseguia ignorar a percepção
de que queria que Lexie soubesse; e nesse momento ela não
estava em um lugar onde pudesse ser encontrada.

Dois minutos depois, tocou o telefone de Jeremy, e ele
reconheceu imediatamente o número que estava chamando.
Apesar de não estar com vontade, sabia que devia atender,
ou o sujeito provavelmente teria uma síncope.
— E aí? — disse Jeremy. — O que está acontecendo?
— Jeremy! — Nate gritou. Por causa da estática, Jeremy mal
conseguia escutá-lo. -— Grandes novidades! Você nem vai
acreditar como estou ocupado. Uma loucura! Temos uma
conference call com a ABC às duas da tarde!
— Ótimo.
— Espere um pouco. Não estou ouvindo. O sinal está muito
ruim.
— Desculpe...
— Jeremy! Você está aí? Não estou ouvindo sua voz!
— Sim, Nate, estou aqui.
— Jeremy? — Nate gritou, alheio à sua resposta. — Escute,
se ainda puder me ouvir, você precisa procurar um telefone
público e ligar para mim. Às duas horas! Sua carreira
depende disso! Todo o seu futuro depende disso!
— Está bem, eu entendi.
— Ora, isto é ridículo — Nate disse, como se estivesse
falando para si mesmo. — Não consigo ouvir uma palavra do
que está dizendo. Aperte um botão se escutou o que eu
disse.
Jeremy apertou o 6.
— Ótimo! Fantástico! Duas horas! E seja você mesmo! Quer
dizer, deixando o sarcasmo de lado. Essas pessoas parecem
muito rigorosas...
Jeremy desligou o telefone, imaginando quanto tempo
levaria para Nate perceber que ele não estava mais na linha.
Jeremy esperou. Depois esperou mais um pouco.
Ficou andando pela biblioteca, passando pelo escritório de
Lexie, espiando pela janela em busca de sinais de seu carro,
sentindo crescer dentro dele uma sensação de desconforto à
medida que os minutos passavam. Era só um
pressentimento, mas havia alguma coisa errada com sua
ausência naquela manhã. Entretanto, ele fez o que pôde para
se convencer do contrário. Disse a si mesmo que ela
chegaria a qualquer momento, e depois iria achar graça
desses sentimentos ridículos. Mesmo assim, agora que
terminara sua pesquisa — além de ter encontrado anedotas
em alguns dos diários, que ele ainda não havia terminado de
examinar — não tinha muita certeza sobre o que fazer em
seguida.
Greenleaf estava fora de cogitação — ele não queria passar
mais tempo ali do que o absolutamente necessário, embora
estivesse começando a gostar dos porta-toalhas. Alvin não
chegaria até o anoitecer, e a última coisa que queria era
vagar pela cidade, onde poderia ser encurralado pelo prefeito
Gherkin. Também não queria ficar andando pela biblioteca o
dia inteiro.
Ele realmente gostaria que Lexie tivesse sido mais específica
em seu bilhete sobre a hora em que estaria de volta. Ou
mesmo sobre o lugar para onde tinha ido. Ele não conseguia
entender o bilhete, mesmo depois de ter lido pela terceira
vez. Será que a falta de detalhes teria sido distração ou algo
que havia feito de propósito? Nenhuma das possibilidades
fazia com que se sentisse melhor. Ele tinha de sair dali; era
difícil não pensar o pior.
Depois de juntar suas coisas, ele desceu as escadas e parou
junto à mesa da recepção. A senhora que ali estava,
trabalhando como voluntária, parecia completamente
envolvida com a leitura de um livro. De pé, diante dela, ele
limpou a garganta. Quando ergueu os olhos, ela sorriu. — Sr.
Marsh! — ela disse. — Eu o vi entrar esta manhã, mas
parecia tão preocupado, que achei melhor ficar calada. Em
que posso ajudá-lo?
Jeremy ajeitou os papéis embaixo do braço, procurando
parecer o mais natural possível.
— Por acaso sabe onde está a srta. Darnell? Ela me deixou
um bilhete dizendo que ficaria fora, e eu estava pensando
quando é que ela vai voltar.
— Engraçado — disse a mulher —, ela estava aqui quando
cheguei. — Ela verificou o calendário que estava em cima da
mesa. — Não há nenhuma entrevista marcada e não estou
vendo nenhum outro compromisso. Você já deu uma
olhada no escritório? Talvez ela esteja trancada lá dentro. Ela
costuma fazer isso com freqüência quando o trabalho
começa a acumular.
— Eu olhei — ele disse. — Sabe se por acaso ela tem um
celular para que eu possa falar com ela?
— Ela não tem — isso eu sei com certeza. Ela me disse que,
quando estivesse fora, a última coisa que iria querer é que
alguém a encontrasse.
— Bem... obrigado, de qualquer forma.
— Há alguma outra coisa que eu possa fazer para ajudá-lo?
— Não, eu só precisava da ajuda dela para minha matéria.
— Desculpe não poder fazer mais nada para ajudar.
— Tudo bem.
— Já pensou em dar uma olhada no Herbs? Ela pode estar
ajudando Dóris a preparar as coisas para o fim de semana. Ou
talvez tenha ido para casa. Em se tratando da Lexie, nunca
dá pra prever o que ela vai fazer. Aprendi a não me
surpreender com nada do que ela faz.
— Obrigado, de qualquer maneira. Mas, se ela voltar,
poderia dizer-lhe que eu estava procurando por ela?
Sentindo-se mais perturbado do que nunca, Jeremy saiu da
biblioteca.

Antes de dirigir-se ao Herbs, Jeremy passou pela casa de
Lexie e viu que as cortinas das janelas estavam abaixadas e
seu carro havia sumido. Embora não houvesse qualquer
coisa extraordinária na cena, mais uma vez ele sentiu que
havia alguma coisa errada, e percebeu que o desconforto só
havia aumentado quando pegou de novo a estrada para
voltar à cidade.
O movimento da manhã no Herbs já havia diminuído a essa
hora, e o restaurante estava naquele período intermediário
entre o café-da-manhã e o almoço, quando as coisas usadas
na correria anterior estavam sendo limpas e os preparativos
para a próxima estava sendo feitos. Havia quatro
funcionários para cada cliente, e ele levou apenas alguns
segundos para ver que Lexie também não estava por ali.
Rachel estava limpando uma mesa e sacudiu uma toalha
quando o viu.
— Bom dia, querido — ela disse, aproximando-se. — Já é
um pouco tarde, mas tenho certeza de que conseguimos
alguma coisa para você tomar café se estiver com fome.
Jeremy colocou as chaves no bolso. — Não, obrigado. Não
estou com fome — ele disse. — Mas por acaso você sabe se
Dóris está por aqui? Gostaria muito de falar com ela, se não
fosse incomodar.
— Voltou por causa dela, não é? — ela sorriu e acenou com
a cabeça por cima do ombro. — Ela está lá atrás. Vou dizer
que você está aqui. E, a propósito, foi uma festa e tanto
ontem à noite. As pessoas falaram de você a manhã inteira, e
o prefeito apareceu para ver se você havia se recuperado.
Acho que ele ficou desapontado por não o encontrar por
aqui.
— Eu gostei.
— Quer um pouco de café ou de chá enquanto espera?
— Não, obrigado — ele respondeu.
Ela desapareceu nos fundos, e poucos minutos depois Dóris
apareceu, limpando as mãos no avental. Seu rosto estava
salpicado de farinha. Mesmo de longe, ele conseguia ver
suas olheiras, e lhe pareceu que ela estava andando mais
devagar que de costume.
— Desculpe por estar deste jeito — ela falou, apontando
com as mãos para si mesma. — Eu estava mexendo na massa
de pão. A festa de ontem à noite atrasou um pouco os
preparativos para o fim de semana, e vou ter de correr um
pouco para compensar o atraso, antes que todo mundo
comece a chegar amanhã.
Lembrando-se do que Lexie havia lhe contado, ele
perguntou: — Quantas pessoas vocês estão esperando neste
fim de semana?
— Quem sabe? — ela falou. — Normalmente, aparecem
algumas centenas, às vezes um pouco mais, para o passeio. O
prefeito estava esperando que chegasse perto de mil este
ano, só para o passeio, mas é sempre difícil imaginar quantas
pessoas vão aparecer para o café-da-manhã e o almoço.
— Se o prefeito estiver certo, será um verdadeiro salto este
ano.
— Bem, avalie a estimativa dele como ela merece ser
avaliada. Tom costuma ser exageradamente otimista, mas ele
consegue criar uma sensação de urgência para que tudo
fique pronto a tempo. Além disso, mesmo que as pessoas
não façam o passeio, ainda há gente que gosta de ver a
parada no sábado. Os Shriners — artistas de rua — estarão
por aqui se exibindo com seus carros divertidos, e as
crianças adoram. E também vamos ter um pequeno
zoológico com animais de estimação este ano, e isso é
novidade.
— Parece ótimo.
— Seria melhor se não fosse no meio do inverno. O Festival
de Pamlico atrai muito mais gente, mas acontece em junho,
e sempre montamos uma loja num daqueles parques de
diversões itinerantes nesses finais de semana. Aliás, em fins
de semana como esses é possível erguer ou quebrar um
negócio. Nem fale do estresse. É umas dez vezes mais
intenso do que o que estou enfrentando agora.
Ele sorriu. — A vida daqui está sempre me surpreendendo.
— Não critique até experimentar. Sinto uma sensação
engraçada de que você adoraria tudo isto.
A voz de Dóris saiu como se ela estivesse com a intenção de
testá-lo, e ele não soube o que responder. Atrás deles,
Rachel estava limpando uma mesa enquanto tagarelava com
o cozinheiro, que estava no meio do salão. Os dois caíram
na risada por causa de algum comentário que um dos dois
fizera.
— Bom, de qualquer forma, estou feliz por você ter vindo
até aqui — ela disse, livrando'0 de uma situação embaraçosa.
— Lexie mencionou que lhe falou a respeito do meu
caderno de anotações. Ela me avisou que você talvez não
acreditasse em uma única palavra do que está escrito ali, mas
fique à vontade para examiná-lo, se quiser. Ele está no meu
escritório lá atrás.
— Eu gostaria muito — ele falou. — Ela me disse que você
fez um registro notável.
— Fiz o melhor que pude. Certamente deve estar aquém dos
seus padrões, mas eu jamais imaginei que outra pessoa, além
de mim, pudesse ter interesse em ler.
— Tenho certeza de que vai me surpreender. Mas, por falar
em Lexie, ela é um dos motivos por que vim até aqui. Você
a viu por aí? Ela não estava na biblioteca hoje.
Ela fez que sim com um aceno de cabeça. — Lexie passou
pela minha casa hoje de manhã. Por isso eu sabia que devia
trazer o caderno. Ela me disse que vocês viram as luzes
ontem à noite.
— Nós vimos.
— E...?
— Surpreendentes, mas, como você mesma disse, não eram
fantasmas. Ela olhou para ele, satisfeita. — E eu devo
presumir que você já descobriu tudo, ou então não estaria
aqui.
— Acho que sim.
— Que bom — ela disse. Então fez um gesto com a cabeça
por cima do ombro. — Desculpe não poder conversar mais
com você agora, mas estou meio ocupada. Vou pegar meu
caderno lá dentro. Quem sabe, talvez você queira escrever
uma história sobre meus poderes surpreendentes depois.
— Nunca se sabe. Posso querer — ele respondeu.
Enquanto a via desaparecer dentro da cozinha, Jeremy ficou
pensando a respeito da conversa que tiveram. Perfeitamente
agradável, mas curiosamente impessoal. E ele percebeu que
Dóris não havia respondido sua pergunta a respeito do
paradeiro de Lexie. Não tinha sequer aventado um palpite, o
que parecia sugerir que — qualquer que fosse o motivo —
para ela, qualquer assunto relativo a Lexie estava fora de sua
alçada. E isso era um mau sinal. Ele ergueu os olhos quando
ela se aproximou novamente. Tinha o mesmo sorriso
agradável de antes, mas desta vez fez com que ele sentisse
uma espécie de mal-estar.
— Olhe, se tiver qualquer pergunta a respeito do que está
escrito aqui — ela falou, entregando-lhe o caderno —, é só
telefonar. E pode fazer cópias, se quiser, mas me devolva
antes de ir embora. É muito especial para mim.
— Farei isso — ele prometeu.
Ela permaneceu de pé diante dele, em silêncio, e Jeremy
teve a impressão de que essa era a maneira que ela tinha de
dizer que a conversa tinha acabado. Ele, por outro lado, não
estava disposto a desistir tão facilmente.
— Ah, mais uma coisa — ele falou.
— O quê?
— Algum problema se eu devolver o caderno para Lexie? Se
por acaso encontrar com ela hoje?
— Pode ser — ela disse. — Mas, de qualquer forma, estarei
por aqui também.
Percebendo o significado óbvio do que ela estava dizendo, o
mal-estar aumentou.
— Ela disse alguma coisa a meu respeito? — ele perguntou.
— Quando vocês se viram hoje de manhã?
— Não muito. Mas ela disse que você certamente passaria
por aqui.
— Ela estava bem?
— Lexie... — Dóris falou devagar, como se estivesse
escolhendo as palavras cuidadosamente — às vezes é difícil
captar o que Lexie está sentindo, por isso não tenho certeza
se posso responder essa pergunta. Mas tenho certeza de que
ela vai ficar bem, se é isso o que está perguntando.
— Ela estava zangada comigo?
— Não, isso eu posso lhe garantir. Ela definitivamente não
estava zangada.
Esperando por mais alguma coisa, Jeremy não disse nada. No
silêncio, Dóris suspirou profundamente. Pela primeira vez,
desde que haviam se conhecido, ele percebeu a idade nas
linhas ao redor de seus olhos.
— Eu gosto de você, Jeremy, você sabe disso — ela disse, a
voz suave. — Mas você está me deixando numa situação
difícil. O que você precisa entender é que eu devo lealdade a
certas pessoas, e Lexie é uma delas.
— E o que isso quer dizer? — ele perguntou, sentindo a
garganta seca.
— Quer dizer que eu sei o que você quer e o que está
perguntando, mas não posso responder suas perguntas. O
que posso dizer é que se Lexie quisesse que você soubesse
onde ela está, teria-lhe dito.
— Será que vou vê-la novamente? Antes de ir embora?
— Eu não sei — ela respondeu. — Acho que cabe a ela
decidir.
— Diante desse comentário, sua mente começou a absorver
o fato de que ela realmente tinha ido embora.
— Eu não entendo... Por que ela faria uma coisa dessas?
Dóris mostrou um sorriso triste. — Sim, eu acho que você
sabe.

Ela havia ido embora.
Como um eco, as palavras continuavam se repetindo na sua
cabeça. Ao volante, no caminho para Greenleaf, Jeremy
tentou analisar os fatos, repassando-os friamente. Estava
tudo sob controle. Ele nunca perdia o controle. Não
importava o quanto se sentisse zangado, não importava o
quanto desejasse pressionar Dóris para lhe dar alguma
informação a respeito do paradeiro de Lexie ou de seu estado
de espírito, simplesmente agradeceu a ela pela ajuda e
dirigiu-se para o carro, como se não tivesse esperado outra
coisa.
Além disso, ele lembrou a si mesmo, não havia por que
perder a cabeça. Afinal, não havia acontecido nada de
terrível com ela. Ela simplesmente não queria vê-lo
novamente. Talvez ele devesse ter previsto que uma coisa
dessas iria acontecer. Alimentara expectativas demais,
mesmo quando ela deixara perfeitamente claro, logo no
início, que não estava interessada.
Ele sacudiu a cabeça, pensando que não era de estranhar que
ela tivesse sumido. Apesar de moderna em algumas
questões, era tradicional em outras, e provavelmente estava
cansada de ter de lidar com suas manobras transparentes.
Certamente, era mais fácil para ela simplesmente sair da ci-
dade do que ficar argumentando com uma pessoa como ele.
Então, em que pé ficariam as coisas? Ela poderia voltar ou
não. Se voltasse, não haveria problema algum. Mas se não...
bem, era aí que a realidade começava a ficar complicada. Ele
poderia ficar sentado e aceitar sua decisão, ou poderia tentar
encontrá-la. Se havia uma habilidade em que ele se
destacava, era sua capacidade para encontrar pessoas.
Utilizando registros públicos, conversas amigáveis e os sites
corretos na internet, ele sabia como seguir as migalhas de
pão até a casa de qualquer pessoa. Mas ele duvidava que
fosse precisar de qualquer uma dessas coisas. Afinal, ela já
lhe havia dado a resposta que ele precisava, e ele tinha
certeza de que sabia exatamente para onde ela tinha ido. O
que significava que ele poderia lidar com a situação da forma
que quisesse.
Seus pensamentos foram interrompidos novamente.
O problema era que isso não ajudava muito em relação ao
que ele deveria fazer. Ele se lembrou de que teria uma
conference call dentro de poucas horas, cujos
desdobramentos seriam muito importantes para sua carreira,
e se ele saísse à procura de Lexie agora, dificilmente
encontraria um telefone fixo quando fosse precisar de um.
Alvin estaria chegando mais à noite — provavelmente a
última noite de neblina —, e apesar de Alvin ter todas as
condições para realizar as filmagens daquela noite por sua
própria conta, eles teriam de trabalhar juntos no dia
seguinte. Para não falar que ele precisava dormir um pouco
— teria outra longa noite pela frente, e até os seus ossos
estavam cansados.
Porém, ele não queria que tudo acabasse daquele jeito.
Queria ver Lexie, precisava vê-la. Uma voz dentro dele
avisou-o para não deixar que suas emoções ditassem suas
ações, e, racionalmente, ele não conseguia ver nenhum
resultado positivo se saísse perambulando atrás dela. Mesmo
que a encontrasse, ela provavelmente iria ignorá-lo ou, pior,
ficaria enojada. E nesse meio tempo, Nate provavelmente
sofreria um ataque cardíaco, Alvin ficaria furioso e em
situação difícil, e sua história e sua carreira podiam
simplesmente ir pelo ralo.
Ao final, a decisão era simples. Estacionando o carro na vaga
diante de seu chalé em Greenleaf, ele acenou
afirmativamente com a cabeça para si mesmo. O fato de ter
colocado as coisas nesses termos fizera com que ficassem
mais claras. Afinal, ele não tinha passado os últimos quinze
anos utilizando lógica e ciência sem que isso tivesse lhe
ensinado algo.
Agora, pensou, tudo o que tinha a fazer era arrumar a mala.



Capítulo
TREZE

Tudo bem, ela admitia, era uma covarde.
Não era a coisa mais fácil para ela admitir o fato de que havia
fugido, mas não estava conseguindo pensar com muita
clareza naqueles últimos dias, e podia muito bem se perdoar
por não ser perfeita. A verdade é que, se ela tivesse
continuado por perto, as coisas acabariam ficando muito
mais complicadas. Não importava que ela gostasse dele e que
ele gostasse dela; tinha acordado naquela manhã sabendo
que precisava colocar um ponto final naquela história, antes
que fosse longe demais, e ao ver a entrada de garagem
coberta de areia ali na frente, sabia que ter vindo para cá
tinha sido a coisa certa a fazer.
O lugar não estava muito bem conservado. O velho chalé
estava desbotado e tomado pela vegetação praiana que o
cercava. As janelas pequenas e retangulares, com cortinas
brancas, estavam cobertas com resíduos da maresia, e as
laterais tinham riscas cor de cinza, lembranças da fúria de
uma dezena de ruracões. De certa forma, sempre havia
considerado o chalé uma espécie de cápsula do tempo; a
maior parte da mobília tinha mais de vinte anos, os canos
faziam barulho quando ela ligava o chuveiro e tinha de
acender as bocas do fogão com fósforos. Mas as lembranças
de períodos da sua juventude passados aqui sempre a
acalmavam, e depois de guardar suas malas e os
mantimentos que havia trazido para o fim de semana, abriu
as janelas para arejar o lugar. Depois, pegando um cobertor,
ela se acomodou na cadeira de balanço que ficava na varanda
de trás, desejando apenas observar o oceano. O barulho
constante das ondas era relaxante, quase hipnótico, e
quando o Sol surgiu através das nuvens e os raios
começaram a encostar na água como dedos que se
estendiam a partir do céu, prendeu a respiração.
Ela fazia isso todas as vezes que vinha pra cá. A primeira vez
em que viu a luz abrindo caminho dessa forma, através das
nuvens, foi logo depois de ter visitado o cemitério com
Dóris, quando ainda era uma menina, e começou a pensar
que seus pais haviam encontrado outra forma de continuar
presentes em sua vida. Como anjos enviados pelo céu,
acreditava que eles estavam ali tomando conta dela, sempre
presentes, mas nunca interferindo, como se sentissem que
tomaria sempre as decisões corretas.
Durante muito tempo ela precisou acreditar nessas coisas,
simplesmente porque sempre se sentia muito sozinha. Seus
avós eram bons e maravilhosos, mas por mais que os amasse,
por todo o amor e sacrifício que lhe dedicavam, ela nunca se
acostumara com a sensação de ser diferente das outras
crianças. Os pais de suas amigas jogavam softball nos fins de
semana e pareciam joviais mesmo sob a suave luz da manhã
que invadia a igreja, e essa observação a fazia pensar nas
coisas que poderia estar perdendo, se é que estava perdendo
alguma coisa.
Ela não poderia falar com Dóris a respeito de coisas desse
tipo. Também não podia falar com ela sobre o sentimento de
culpa que sentia por causa disso. Ela sabia que não importaria
como dissesse, iria ferir os sentimentos de Dóris, e apesar
de, naquela época, ser muito menina, ela sabia disso.
Mas aquela sensação de ser diferente havia deixado uma
marca. Não apenas nela, mas em Dóris também, como pôde
notar durante a adolescência. Quando Lexie forçava os
limites, Dóris freqüentemente cedia para evitar uma
discussão, deixando que Lexie acreditasse que poderia
estabelecer suas próprias regras. Ela acabou mostrando seu
lado mais rebelde quando era jovem, cometeu erros e
colecionou arrependimentos, mas de alguma forma se
tornou séria durante a faculdade. Em sua nova, mais madura
encarnação, abraçou a idéia de que maturidade significava
calcular o risco muito antes de avaliar a recompensa, e que
sucesso e felicidade na vida se conquistavam tanto evitando
os erros quanto deixando sua própria marca no mundo.
Na noite anterior, ela sabia, quase cometera um erro.
Esperou que ele tentasse beijá-la, e ficou orgulhosa de como
se mostrou decidida quando ele quis entrar.
Sabia que tinha ferido seus sentimentos, e sentia muito por
isso. Mas o que ele certamente não percebeu é que só depois
de ele ter ido embora seu coração parou de bater
descontroladamente, porque uma parte dela queria deixá-lo
entrar, não importando o que acontecesse depois. Ela sabia
que não devia, mas não conseguia evitar. O pior, porém, foi
compreender, enquanto rolava e se virava na cama a noite
inteira, que poderia não ter forças para agir corretamente de
novo.
Honestamente, ela devia ter percebido que isso iria
acontecer. Enquanto transcorria a noite, percebeu que
estava comparando Jeremy com Avery e com o sr.
Renascença; e para sua surpresa, Jeremy ganhava dos dois.
Ele tinha a perspicácia e o senso de humor de Avery, e a
inteligência e o charme do sr. Renascença, mas Jeremy
parecia mais confortável consigo mesmo do que eles. Talvez
devesse creditar essa avaliação ao dia maravilhoso que tivera,
coisa que não acontecia há muito tempo. Quando tinha sido
a última vez que desfrutara de um almoço despojado como
aquele? Ou que se sentara no alto de Riker's Hill? Ou que
visitara o cemitério depois de uma festa, quando
normalmente teria ido direto para a cama? Sem dúvida, a
excitação e o inesperado haviam contribuído para lembrá-la
de como havia sido feliz quando ainda acreditava que Avery
ou que o sr. Renascença eram os homens de seus sonhos.
Mas ela se enganara, da mesma forma que estava enganada
agora. Ela sabia que Jeremy resolveria o mistério naquele dia
— tudo bem, talvez fosse apenas um feeling, mas tinha
certeza disso, já que a resposta estava em um dos diários e
tudo o que ele precisava fazer era descobrir — e não tinha
dúvida de que ele iria lhe pedir para celebrarem a descoberta
juntos. Se ela tivesse ficado na cidade, os dois iriam passar a
maior parte do dia unidos, e ela não queria que isso
acontecesse. E de novo, lá no fundo, viu que era exatamente
isso o que queria, fazendo com que se sentisse mais confusa
do que jamais estivera nos últimos anos.
A intuição de Doris havia captado absolutamente tudo logo
de manhã, quando Lexie passou em sua casa, mas isso não
era de surpreender. Lexie percebeu o cansaço em volta de
seus olhos e sabia que também estava parecendo um lixo ao
surgir assim, do nada. Depois de jogar algumas roupas na
mala, ela havia saído de casa sem ter ao menos tomado um
banho; ela também não havia tentado explicar o que estava
sentindo. Mesmo assim, Dóris simplesmente concordou
com a cabeça quando Lexie lhe disse que precisava ir
embora. Dóris, apesar de todo o seu cansaço, parecia ter en-
tendido que não havia previsto o que poderia acontecer em
conseqüência de toda aquela série de acontecimentos que
ela mesma havia começado. Esse era o problema das
premonições: apesar de poderem ser bastante exatas a curto
prazo, era impossível saber qualquer coisa além disso.
Assim, ela tinha vindo para cá porque era o que tinha de
fazer, nem que fosse apenas para preservar sua sanidade, e
retornaria a Boone Creek quando as coisas voltassem ao
normal. Não levaria muito tempo. Em alguns dias, as pessoas
teriam parado de falar dos fantasmas e das casas históricas, e
do estranho que estava na cidade, e a vinda dos turistas não
seria nada mais que uma lembrança. O prefeito voltaria para
seu curso de golfe, Rachel voltaria a sair com o tipo errado
de homens e Rodney certamente iria encontrar uma forma
de trombar com Lexie acidentalmente, perto da biblioteca,
sem dúvida aliviado por perceber que a relação deles poderia
voltar a ser o que era.
Talvez não fosse uma vida muito excitante, mas era a sua
vida, e ela não estava disposta a deixar que nada ou ninguém
interferisse nesse equilíbrio. Em outra época ou lugar, talvez
pudesse se sentir diferente em relação a essas coisas, mas era
inútil pensar nisso agora. Enquanto seu olhar continuava
encarando fixamente a água, ela fez força para não pensar no
que poderia ter acontecido.
Na varanda, Lexie puxou o cobertor para ficar bem apertado
em torno dos ombros. Ela era uma garota crescida e
conseguiria superar, da mesma forma que havia conseguido
superar seu envolvimento com os outros. Tinha certeza
disso. Porém, mesmo se sentindo mais tranqüila com essa
constatação, o movimento das águas do mar insistia em
lembrá-la de seus sentimentos em relação a Jeremy, e
precisou reunir todas as suas forças para controlar as
lágrimas.
Parecia relativamente simples quando Jeremy resolveu o que
iria fazer, e ele se movimentava apressadamente em seu
quarto no Greenleaf, enquanto planejava tudo. Pegar o mapa
e sua carteira, para qualquer eventualidade. Deixar o
computador, porque não iria precisar dele. A mesma coisa
valia para suas anotações. Colocar o caderno de Dóris na
mochila de couro, para não esquecê-lo. Escrever um bilhete
para Alvin e deixá-lo na recepção, apesar de saber que Jed
não iria ficar muito satisfeito. Certificar-se de que estava
levando o carregador do celular — e sair.
Ele havia entrado e saído em menos de dez minutos, e já
estava a caminho de Swan Quarter, onde a balsa o levaria até
Ocracoke, um vilarejo na região de Outer Banks. Dali, ele
pegaria a rodovia 12 em direção ao norte, até Buxton.
Calculou que essa deveria ser a rota que ela teria seguido, e
tudo o que tinha a fazer seria seguir o mesmo caminho e
chegaria ao lugar em apenas algumas horas.
Porém, apesar da viagem até Swan Quarter ter sido
tranqüila, através de estradas retas e vazias, ele não
conseguia parar de pensar em Lexie e pisava mais fundo no
acelerador, tentando afastar o nervosismo. Mas, nervosismo
era apenas outra palavra para pânico, e ele nunca entrava em
pânico. Tinha orgulho disso. Entretanto, quando era
obrigado a diminuir a velocidade — em lugares como
Belhaven e Leechville —, ele se via tamborilando o volante
com os dedos e resmungando sob a respiração pesada.
Para ele, essa sensação era estranha, e ficava mais forte à
medida que ele se aproximava de seu destino. Ele não
saberia explicar, mas também não queria fazer uma análise.
Aquele era um dos raros momentos de sua vida em que
estava se movimentando no piloto automático, fazendo exa-
tamente o oposto do que dizia a lógica, pensando apenas em
como ela iria reagir quando o visse.
Quando achava que estava começando a entender a razão
para esse comportamento estranho, Jeremy percebeu que
estava no local de partida das balsas olhando para um
homem magro, uniformizado, que nem se dera ao trabalho
de tirar os olhos da revista que estava lendo. A balsa para
Ocracoke, ele descobriu, não tinha a mesma regularidade da
que ia de Manhattan para Staten Island, e ele havia perdido a
última saída do dia, o que significava que poderia voltar no
dia seguinte ou simplesmente cancelar seus planos, coisas
que ele não estava disposto sequer a levar em consideração.
— Tem certeza de que não há outra maneira de chegar até o
farol de Hatteras? — ele perguntou, sentindo seu coração
disparar. — Isto é importante.
— Você poderia ir de carro, eu acho.
— E quanto tempo levaria isso?
— Depende da velocidade com que você dirigir.
Aquilo era óbvio, Jeremy pensou. — Vamos dizer que sou
rápido.
O homem encolheu os ombros, como se todo aquele
assunto o aborrecesse. — Cinco ou seis horas, talvez. Você
teria de ir para o norte até chegar em Plymouth, depois
pegar a 64 para Roanoke Island, e depois para Whalebone.
Dali, teria de seguir para o sul até Buxton. O farol fica ali
mesmo.
Jeremy olhou para o relógio; já era quase uma hora; quando
estivesse chegando lá, Alvin certamente estaria chegando
em Boone Creek. Isso não era bom.
— Há algum outro lugar onde se possa pegar a balsa?
— Tem um em Cedar Island.
— Ótimo. Onde fica isso?
— Cerca de três horas na outra direção. Mas também vai ter
de esperar até amanhã de manhã.
Por cima do ombro do homem, Jeremy viu um pôster
mostrando os vários faróis existentes na Carolina do Norte.
Hatteras, o maior de todos, estava no centro.
— E se eu lhe dissesse que isto é uma emergência? — ele
perguntou. Pela primeira vez, o homem ergueu a cabeça.
— É uma emergência?
— Vamos dizer que sim.
— Então eu chamaria a Guarda Costeira. Ou talvez o xerife.
— Sei — Jeremy falou, tentando não perder a paciência. —
Mas o que você está me dizendo é que não há outra maneira
de chegar até lá, agora? Daqui, eu quero dizer.
O homem colocou um dedo no queixo. — Acho que você
poderia pegar um barco, se está com tanta pressa.
Agora estamos chegando em algum lugar, Jeremy pensou.
— E como eu conseguiria um barco?
— Eu não sei. Ninguém nunca perguntou.

Jeremy voltou para o carro, admitindo finalmente que estava
começando a entrar em pânico.
Talvez porque já tivesse ido tão longe, ou talvez por ter
percebido que suas últimas palavras para Lexie na noite
anterior haviam revelado uma verdade mais profunda, o fato
é que alguma coisa havia tomado conta dele, e não iria voltar
atrás. Ele se recusava a voltar atrás, não depois de ter
chegado tão perto.
Nate ficaria esperando seu telefonema, mas, subitamente,
isso já não era tão importante para ele. Também não se
importava com o fato de Alvin estar chegando; se tudo
corresse bem, eles poderiam filmar mais tarde naquela noite
e na noite seguinte. Ele tinha dez horas até que as luzes
aparecessem novamente; com um barco rápido, ele
calculava que conseguiria chegar até Hatteras em duas. Isso
lhe dava tempo suficiente para chegar lá, falar com Lexie e
voltar, supondo que encontrasse alguém para levá-lo até lá.
É claro que tudo poderia dar errado. Ele podia não conseguir
alugar um barco, por exemplo. Mas se isso acontecesse, iria
dirigindo até Buxton se fosse preciso. Quando chegasse lá,
contudo, não poderia sequer ter certeza de que a
encontraria.
Nada fazia sentido nessa seqüência imaginária de
acontecimentos. Mas quem se importava? De vez em
quando, todo mundo tinha o direito de ser um pouco
excêntrico, e agora era sua vez. Ele tinha dinheiro vivo na
carteira e encontraria uma maneira de chegar até lá. Estava
determinado a arriscar e ver o que iria acontecer quando a
encontrasse, mesmo que fosse apenas para provar a si
mesmo que poderia deixá-la e nunca mais pensar nela.
No fundo, ele sabia, era disso que se tratava. Quando Dóris
insinuara que ele talvez não a visse nunca mais, todas as
lembranças a respeito dela passaram a mil por hora em sua
cabeça. Claro, ele iria embora dentro de alguns dias, mas isso
não significava que tivesse de acabar. Não ainda, pelo
menos. Ele poderia vir visitá-la, ela poderia ir a Nova Iorque,
e se tivesse de ser, ele iria dar um jeito. As pessoas viviam
fazendo isso, certo? Mas mesmo que não fosse possível,
mesmo que ela estivesse decidida em sua determinação de
acabar com tudo de uma vez, queria ouvi-la dizer isso. Só
assim ele poderia voltar para Nova Iorque sabendo que não
tivera outra escolha.
E no entanto, ao parar na primeira marina que encontrara,
compreendeu que não queria que ela dissesse isso. Ele não
estava indo até Buxton para se despedir ou para ouvi-la dizer
que não queria vê-lo nunca mais. Na verdade, ele percebeu,
para seu espanto, que estava indo até lá para conferir se
Alvin havia acertado.

O final da tarde era a parte do dia favorita de Lexie. A luz
suave do sol no inverno, combinada com a austera beleza
natural da paisagem, fazia o mundo parecer uma coisa de
sonho.
Até o farol, que lembrava um doce por causa daquelas listras
pintadas, parecia uma miragem visto dali, e enquanto
caminhava pela praia, ficou pensando o quanto teria sido
difícil para marinheiros e pescadores navegar por aquelas
paragens antes de sua construção. As águas mais distantes da
praia, muito rasas e tomadas por bancos de areia, eram
chamadas de Cemitério do Atlântico, e milhares de carcaças
de navios afundados se espalhavam pelo fundo do mar. O
Monitor, que participara da primeira batalha entre
couraçados durante a Guerra Civil, havia se perdido ali.
Assim como o Central America, carregado com ouro da
Califórnia, cujo naufrágio ajudou a causar o pânico de 1857.
Diziam que o navio do Barba Negra, Queen Anne's
Revenge, havia sido encontrado no Beaufort Inlet, e meia
dúzia de submarinos alemães afundados durante a II Guerra
Mundial eram visitados quase diariamente por
mergulhadores.
Seu avô era um aficionado por história, e todas as vezes que
passeavam pela praia de mãos dadas, contava-lhe histórias
dos navios que haviam se perdido por ali ao longo dos
séculos. Ela havia aprendido tudo sobre furacões, sobre a
rebentação perigosa e as falhas de navegação que faziam os
barcos encalhar, ficando presos no fundo, até serem partidos
ao meio pela rebentação violenta. Embora não sentisse
qualquer interesse especial e às vezes até ficasse assustada
com as imagens evocadas por essas histórias, a voz melódica
e lenta de seu avô, acentuando as vogais, era estranhamente
relaxante, e ela jamais havia tentado mudar de assunto.
Mesmo sendo muito jovem na época, ela sabia que, para seu
avô, era muito importante falar com ela sobre essas coisas.
Anos depois, ela viria à saber que seu navio tinha sido
bombardeado na II Guerra Mundial e ele sobrevivera por
pouco.
A lembrança daquelas caminhadas fez com que sentisse
imensa saudade de seu avô. Os passeios haviam feito parte
de sua rotina diária, uma coisa só dos dois, e normalmente
eles saíam pouco antes do jantar, quando Dóris estava
cozinhando. Quase sempre, ele estaria lendo na cadeira,
com os óculos na ponta do nariz; ele fecharia o livro com
um suspiro e o colocaria de lado. Ele então ficaria de pé e
lhe perguntaria se gostaria de fazer uma caminhada para ver
os cavalos selvagens.
A idéia de ver os cavalos sempre a deixava animada. Ela não
sabia muito bem por quê; nunca havia andado a cavalo, nem
tinha qualquer interesse especial em andar, mas se lembrava
dos pulos que dava e de como corria para a porta, assim que
seu avô dizia isso. Normalmente, os cavalos se mantinham
distantes das pessoas e se espalhavam sempre que alguém se
aproximava, mas, ao anoitecer, eles gostavam de pastar,
baixando suas defesas, mesmo que por alguns minutos
apenas. Era possível chegar perto o bastante para ver os seus
traços marcantes e, com sorte, ouvi-los bufar e relinchar,
como que avisando as pessoas para não se aproximar.
Os cavalos eram descendentes de mustangues espanhóis, e
sua presença nas Outer Banks datava de 1523. Naquela
época, havia uma série de normas legais para garantir sua
sobrevivência, e eles eram tão característicos daquela
paisagem quanto os veados na Pensilvânia, e o único
problema era a eventual superpopulação. Os moradores do
lugar costumavam ignorá-los, a menos que causassem algum
incômodo, mas a maioria dos veranistas considerava os
cavalos o ponto alto de sua estada. Lexie se considerava uma
pessoa do lugar, mas cada vez que os via sentia-se criança
novamente, com todas as alegrias e expectativas da vida pela
frente.
Queria se sentir assim naquele momento, mesmo que fosse
apenas para fugir da pressão da vida adulta. Dóris havia
telefonado para lhe contar que Jeremy tinha aparecido à sua
procura. Isso não a surpreendera. Apesar de ter calculado
que ele iria se perguntar sobre o que tinha feito de errado ou
por que ela tinha ido embora, sabia que ele iria superar tudo
aquilo rapidamente. Jeremy era uma daquelas pessoas
abençoadas, dotadas de uma grande confiança em tudo o
que fazia, que ia sempre para a frente sem um
arrependimento e sem olhar para trás.
Avery também era assim, e ainda hoje se lembrava de como
havia se sentido ferida por causa de seu sentimento de poder
e pela indiferença à sua dor. Olhando em perspectiva, sabia
que devia ter considerado os desvios de caráter como
desvios, mas naquela época ela simplesmente não viu os
sinais de aviso: o modo como seu olhar se demorava um
pouco demais quando olhava para outras mulheres, ou o
jeito exagerado como apertava as mulheres ao abraçá-las,
mesmo jurando que eram apenas amigas. No começo, ela
queria acreditar nele quando dissera que tinha sido infiel
apenas uma vez, mas pedaços de conversas esquecidas
acabaram fazendo com que algumas lembranças viessem à
tona: uma amiga da faculdade há muito tempo havia
confessado que tinha ouvido boatos sobre Avery e uma
colega do grêmio; uma de suas colegas de trabalho mencio-
nara por acaso algumas de suas muitas faltas ao trabalho. Ela
odiava pensar em si mesma como uma pessoa ingênua, mas
tinha sido exatamente isso, e ainda mais do que desapontada
com ele, há muito tempo havia percebido que ficara
desapontada consigo mesma. Dissera a si mesma que iria
superar, que iria encontrar alguém melhor... alguém como o
sr. Renascença, que provou de uma vez por todas que ela
não sabia julgar os homens. Como também não sabia, pelo
visto, conservar um.
Não era fácil admitir isso, e houve ocasiões em que ficou
pensando se teria feito alguma coisa para afastar aqueles
homens. Está bem, talvez não o sr. Renascença, já que não
se poderia chamar de relacionamento seu breve romance,
mas e quanto a Avery? Ela o amava e acreditava que ele a
amava. Claro, seria fácil dizer que Avery era desonesto e que
a culpa pelo fim de seu relacionamento era toda dele; mas o
certo é que ele devia estar sentindo que havia alguma coisa
errada em seu relacionamento. Que havia alguma coisa
errada com ela. Mas o quê? Teria sido muito exigente? Muito
chata? Será que ele estava insatisfeito na cama? Por que ele
não tinha vindo atrás dela, pedindo perdão? Essas eram as
perguntas que ela nunca tinha conseguido responder. Seus
amigos, é claro, lhe garantiram que não sabia o que estava
falando, e Dóris tinha dito a mesma coisa. Mesmo assim,
para ela não havia ficado totalmente claro o que tinha real-
mente acontecido. Afinal, em todas as histórias havia
sempre dois lados, e ainda hoje, às vezes, ela se pegava
fantasiando um telefonema para perguntar a ele se havia
alguma coisa que pudesse ter feito de outra maneira.
Como lhe tinha dito uma de suas amigas, era típico das
mulheres se preocuparem com essas coisas. Os homens
pareciam imunes a esse tipo de insegurança. Mesmo que não
fossem, aprendiam a disfarçar seus sentimentos ou então
conseguiam enterrá-los tão profundamente que não ficavam
incomodados. Geralmente, ela tentava fazer a mesma coisa
e, quase sempre, funcionava. Geralmente.
À distância, com o sol sumindo nas águas de Pamlico Sound,
a cidade de Buxton, com suas casas branquinhas de teto
chanfrado, parecia um cartão postal. Ela estava olhando
fixamente para o farol, e, atendendo a seus desejos, um
pequeno bando de cavalos veio pastar na vegetação que se
espalhava naquele trecho. Devia haver uns doze — marrons
e castanhos, principalmente — e seu pêlo era encrespado e
irregular, bem volumoso para enfrentar o inverno. Dois
potros se juntaram no centro, abanando os rabos em sinal de
união.
Lexie se deteve para observá-los, enfiando as mãos no bolso
da jaqueta. Estava ficando frio agora que a noite se
aproximava, e ela conseguia sentir o vento cortante no nariz
e no rosto. Mas o ar era revigorante, e sentiu que gostaria de
ficar mais apesar do cansaço. Tinha sido um longo dia, na
verdade muito longo.
Contra sua vontade, ficou imaginando o que Jeremy estaria
fazendo. Estaria se preparando para filmar novamente? Ou
pensando onde iria jantar? Fazendo as malas? E por que seus
pensamentos insistiam em se voltar para ele?
Ela suspirou, já sabendo a resposta. Por mais que quisesse
ficar vendo os cavalos, eles a lembravam de que estava
sozinha. Por mais que se considerasse independente, por
mais que tentasse minimizar os comentários constantes de
Dóris, não conseguia evitar o desejo de compartilhar, de
dividir sua intimidade. Nem precisava ser casamento; às
vezes, tudo o que queria era experimentar aquela ansiedade
que antecedia a chegada da noite de sexta ou do sábado.
Sentia vontade de passar a manhã deitada na cama com
alguém de quem gostasse, e por mais improvável que
pudesse parecer a idéia, era Jeremy quem ela insistia em
imaginar a seu lado.
Lexie balançou a cabeça, esforçando-se para afastar esse
pensamento. Ao vir para cá, tinha a esperança de conseguir
encontrar algum descanso para sua mente, mas ao ficar ao
lado do farol e ver os cavalos pastando, ela sentiu o mundo
desabar sobre ela. Estava com trinta e um anos, sozinha e
vivendo em um lugar sem perspectivas. Seu avô e seus pais
eram apenas lembranças, o estado de saúde de Dóris era
fonte de constante preocupação, e o único homem que
chegara a considerar interessante nos últimos anos, mesmo
que remotamente, já teria ido embora para sempre quando
voltasse para casa.
Foi aí que ela começou a chorar, e durante um bom tempo
encontrou uma dificuldade enorme de parar. Mas quando
estava finalmente começando a se controlar, ela viu que
alguém se aproximava, e tudo o que conseguiu fazer foi ficar
com o olhar parado ao perceber quem era.

Capítulo
QUATORZE

Lexie piscou, para ter certeza de que o que estava vendo era
real. Não poderia ser ele, porque ele não poderia estar ali. A
idéia toda era tão estranha, tão inesperada, que ela se sentiu
como se estivesse vendo a cena através dos olhos de outra
pessoa.
Jeremy sorriu e tirou a mochila das costas. — Sabe de uma
coisa, você realmente não devia ficar encarando desse jeito
— ele disse. — Os homens gostam de mulheres que sabem
ser sutis.
Lexie continuou a olhar para ele. — Você! — ela respondeu.
— Eu! — ele concordou com um aceno.
— Você... aqui.
— Eu estou aqui — ele concordou novamente.
Ela apertou os olhos para ver melhor na pouca luz, e ocorreu
a Jeremy que ela era ainda mais bonita do que se lembrava.
— O que é que você...? — ela parou, tentando entender por
que ele havia aparecido. — Quer dizer, como você...?
— É uma longa história — ele admitiu. Como ela não fizesse
qualquer movimento em sua direção, ele apontou para o
farol. — E este é o farol onde seus pais se casaram?
— Você lembra dessa história?
— Eu me lembro de tudo — ele respondeu, batendo com o
dedo na têmpora. — Pequenas células cinzas, essas coisas.
Onde é que eles se casaram exatamente?
Ele falava de maneira casual, como se fosse a conversa mais
informal deste mundo, o que só fazia as coisas parecerem
mais surrealistas para ela.
— Ali — ela disse, apontando para o lugar. — No lado do
oceano, próximo da linha da água.
— Deve ter sido lindo — ele disse, olhando naquela direção.
— Todo este lugar é lindo. Dá pra entender porque você
gosta tanto daqui.
Em vez de responder, Lexie suspirou profundamente,
tentando acalmar o turbilhão de emoções. — O que está
fazendo aqui, Jeremy?
Ele ficou em silêncio por um minuto, antes de responder. —
Eu não tinha certeza de que você iria voltar — ele falou. —
E percebi que se quisesse vê-la novamente, o melhor a fazer
era vir até onde você estava.
— Mas, por quê?
Jeremy continuou olhando fixamente para o farol. — Acho
que eu não tinha outra alternativa.
— Não tenho certeza do que isso quer dizer — ela disse.
Jeremy ficou estudando seus pés, depois ergueu os olhos e
sorriu, como se estivesse pedindo desculpas. —
Honestamente, também passei quase o dia inteiro tentando
entender.

Parados perto do farol, eles viram o sol se pôr no horizonte,
tingindo o céu de um cinza ameaçador. A brisa, fria e úmida,
roçava levemente a superfície da areia, formando uma
espuma na beira da água.
Mais ao longe, uma figura vestida com um casaco escuro e
pesado estava dando comida às gaivotas, jogando cascas de
pão no ar. Enquanto o observava, Lexie sentia que, aos
poucos, o choque que sua chegada lhe causara se desfazia.
Parte dela queria ficar zangada por ele ter ignorado seu
desejo de ficar sozinha, mas outra parte, a maior parte, tinha
adorado que ele tivesse vindo atrás dela. Avery jamais havia
se preocupado em ir atrás dela, nem o sr. Renascença. Nem
mesmo Rodney jamais pensara em ir até ali; e, até alguns
minutos atrás, ela teria caído na gargalhada se alguém
simplesmente sugerisse que Jeremy faria uma coisa dessas.
Mas ela estava começando a se dar conta de que Jeremy era
diferente de todas as pessoas que já havia conhecido, e de
que não deveria se surpreender com nada do que ele fizesse.

À distância, os cavalos começaram a se afastar, mordiscando
aqui e ali enquanto desapareciam na duna. A cerração
marinha estava se aproximando, fundindo o céu e o mar.
Andorinhas-do-mar cobriram a areia na beira da água, com
suas pernas finas e compridas movimentando-se rapi-
damente, enquanto procuravam pequenos crustáceos.
No silêncio, Jeremy juntou as mãos, soprando para aquecê-
las e aliviar a dor. — Está zangada por eu ter vindo? — ele
perguntou finalmente.
— Não — ela admitiu. — Surpresa, mas não zangada.
Ele sorriu, e ela devolveu o sorriso de um jeito muito
pessoal.
— Como foi que chegou aqui? — ela perguntou.
Por cima do ombro, ele fez um gesto em direção a Buxton.
— Consegui uma carona com alguns pescadores que vinham
pra cá — ele disse. — Eles me deixaram na marina.
— Eles lhe deram uma carona sem mais nem menos.
— Sem mais nem menos.
— Você teve sorte. A maioria dos pescadores é bastante
rude.
— Você pode ter razão, mas pessoas são sempre pessoas —
ele disse. — Posso não ser expert em psicologia, mas acho
que qualquer pessoa — até mesmo as estranhas —
conseguem sentir a urgência de um pedido, e geralmente a
maioria das pessoas acaba fazendo o certo. — Ele se endirei-
tou, limpando a garganta. — Mas quando isso não
funcionou, eu lhes ofereci dinheiro.
Ela achou graça nessa confissão.
— Deixe-me adivinhar — ela falou. — Eles te limparam,
não é mesmo?
Ele encolheu os ombros, envergonhado. — Acho que isso
depende da perspectiva. Realmente foi um bocado de
dinheiro para uma carona de barco.
— Com certeza. É uma viagem e tanto. Só o combustível já
teria ficado bem caro. Além disso, tem o desgaste do barco...
— Eles mencionaram isso.
— E, naturalmente, o tempo deles e o fato de que amanhã
teriam de trabalhar cedo, antes do amanhecer.
— Falaram disso também.
Ao longe, os últimos cavalos desapareceram nas dunas. —
Mas você veio assim mesmo.
Ele acenou com a cabeça, enquanto ela se divertia. — Mas
eles me fizeram entender que era uma viagem só de ida.
Disseram que não iam esperar, então eu acho que fiquei
preso aqui.
Ela ergueu uma sobrancelha. — Ah, verdade? E como
pretende voltar?
Ele exibiu um sorriso malicioso. — Bem, acontece que eu
conheço alguém que veio pra cá, e estava pensando em usar
meu charme irresistível para convencê-la a me dar uma
carona para voltar pra casa.
— E se eu não estiver pensando em voltar logo? Ou se eu
lhe dissesse que está por sua própria conta?
— Ainda não tinha pensado nessa parte.
— E onde pretendia ficar enquanto estivesse por aqui?
— Também não tinha pensado nessa parte, ainda.
— Pelo menos está sendo honesto — ela disse, sorrindo. —
Mas me diga uma coisa, o que faria se eu não estivesse aqui?
— Para onde mais você poderia ter ido?
Ela olhou para longe, saboreando o fato de ele ter se
lembrado dessas coisas. Na distância, viu as luzes de uma
traineira que saía para a pesca de camarões, e ela se
movimentava tão vagarosamente que parecia parada.
— Está com fome? — ela perguntou.
— Morrendo. Não comi nada o dia inteiro.
— Gostaria de jantar?
— Você conhece algum lugar bacana?
— Estou pensando em um lugar bastante interessante.
— Esse lugar aceita cartão de crédito? Usei todo o meu
dinheiro para chegar até aqui.
Tenho certeza — ela falou -— de que vamos conseguir dar
um jeito nisso.
Afastando-se do farol, fizeram o caminho de volta pela praia,
andando pela areia compacta próxima da água. Havia entre
eles um espaço que nenhum dos dois parecia disposto a
atravessar. Ao contrário, com o nariz de ambos ficando
vermelho por causa do frio, caminhavam firmemente, como
se estivessem sendo puxados para o lugar em que deveriam
estar.
No silêncio, Jeremy refez mentalmente sua viagem até ali,
engolindo um sentimento de culpa em relação a Nate e a
Alvin. Ele tinha perdido a conference call — não tinha
conseguido nenhum sinal no telefone enquanto atravessava
o Pamlico Sound — e calculou que talvez conseguisse
telefonar assim que chegasse em terra firme, embora não
estivesse muito ansioso por isso. Nate, ele imaginou, devia
ter trabalhado em ritmo acelerado durante horas e devia ter
ficado esperando pelo seu telefonema, por isso agora estaria
alterado; Jeremy pensou em sugerir um encontro com os
produtores na semana seguinte, com as imagens e as linhas
gerais da matéria, idéia que ele imaginara ser a questão
central do telefonema, de qualquer forma. Se isso não fosse
suficiente para acalmá-lo, se o fato de ter perdido um
simples telefonema pudesse pôr um fim em sua carreira,
antes de ela ter começado, então ele não tinha muita certeza
de que queria trabalhar na televisão.
E Alvin... bem, com ele seria mais fácil. Não havia como
voltar para Boone Creek e encontrar Alvin naquela noite —
Jeremy compreendeu isso na hora em que desceu do barco
—, mas Alvin tinha um celular, e ele poderia lhe explicar o
que estava acontecendo. Alvin não ficaria muito feliz por ter
de trabalhar sozinho a noite inteira, mas no dia seguinte,
estaria recuperado. Alvin era uma daquelas pessoas raras que
não deixavam que nada as incomodasse por mais de um dia.
Ainda assim, sendo honesto consigo mesmo, Jeremy
admitiu que não se importava com nada daquilo agora. Ao
contrário, tudo o que parecia importar era que estava
caminhando ao lado de Lexie numa praia tranqüila no meio
do nada, e enquanto se arrastavam contra a brisa salgada, ela
havia enganchado tranqüilamente seu braço no dele.

Lexie subiu na frente os degraus de madeira empenada do
velho chalé e pendurou sua jaqueta no cabide que ficava ao
lado da porta. Jeremy também pendurou a sua, junto com a
mochila. Enquanto ela caminhava à sua frente pela sala,
Jeremy a observava, pensando de novo no quanto ela era
bonita.
— Você gosta de macarrão? — ela perguntou,
interrompendo seus pensamentos.
— Está falando sério? Eu cresci comendo macarrão.
Acontece que minha mãe é italiana.
— Ótimo — ela disse. — Porque era isso que eu estava
pensando em fazer.
— Vamos comer aqui?
— Acho que seremos obrigados — ela falou, por cima do
ombro. — Você está sem dinheiro, lembra?
A cozinha era pequena, num tom de amarelo desbotado,
com o papel de parede florido soltando nos cantos, armários
gastos e um pequeno conjunto de mesa e cadeiras pintadas
sob a janela. Sobre o tampo de um armário estavam as
compras que ela havia trazido. Mexendo no primeiro pacote,
Lexie tirou uma caixa de cereal matinal e um pão de fôrma.
Do lugar em que estava, perto da pia, Jeremy reparou em sua
pele, quando ela ficou na ponta dos pés para colocar as
coisas no armário.
— Precisa de ajuda? — ele perguntou.
— Não, eu consegui, obrigada — ela respondeu,
endireitando-se. Depois de ajeitar a saia, ela alcançou o outro
pacote e colocou duas cebolas de lado, junto com duas latas
grandes de tomates San Marzano. — Mas enquanto estou
fazendo isto, você quer beber alguma coisa? Tem um pacote
com seis garrafinhas de cerveja na geladeira, se estiver
interessado.
Ele arregalou os olhos, simulando um choque. — Você tem
cerveja? Achei que você não fosse de beber muito.
— E não bebo.
— Mas, para alguém que não bebe, seis garrafas fazem um
belo estrago. — Ele sacudiu a cabeça, antes de continuar. —
Se eu não a conhecesse melhor, poderia achar que você
estava pensando em cair na farra este fim de semana.
Ela disparou um olhar fulminante em sua direção, mas,
como no dia anterior, tinha um ar divertido. — É mais do
que suficiente para eu passar o mês, muitíssimo obrigada.
Então, quer tomar uma ou não?
Ele sorriu, aliviado com essa disputa familiar. — Eu adoraria,
obrigado.
— Importa-se em pegar você mesmo? Preciso cuidar do
molho.
Jeremy caminhou até a geladeira e tirou duas garrafas de
Coors Light do pacote. Tirou a tampa de uma e depois da
outra, que colocou diante dela. Quando ela deu uma olhada
para a garrafa, ele sacudiu os ombros. — Detesto beber
sozinho — ele explicou.
Ele ergueu a garrafa para fazer um brinde e ela também
ergueu a sua. Eles bateram as garrafas sem dizer uma palavra.
Inclinando-se sobre a bancada ao lado dela, ele cruzou uma
perna sobre a outra. — Se quer saber, sou muito bom para
picar coisas, caso precise de ajuda.
— Vou procurar me lembrar — ela falou.
Ele sorriu. — Há quanto tempo sua família é dona deste
lugar?
— Meus avós o compraram logo depois da II Grande
Guerra. Naquela época, não havia sequer uma estrada na
ilha. Você tinha de vir dirigindo pela areia até chegar aqui.
Ali na sala há algumas fotos do lugar naquela época.
— Se importaria se eu desse uma olhada?
— Fique à vontade. Ainda estou preparando as coisas. Há
um banheiro no corredor, se quiser se lavar antes do jantar.
No quarto de hóspedes, à direita.
Jeremy foi para a sala e deu uma olhada nas fotos que
mostravam a vida rústica na praia, então reparou que a mala
de Lexie estava perto do sofá. Depois de pensar por uns
instantes, ele pegou a mala e foi até o corredor. À esquerda,
ele viu um quarto bem ventilado, com uma cama grande de
pés altos, coberta por uma colcha de retalhos com motivos
de conchas. As paredes eram decoradas com mais fotos
mostrando a paisagem de Outer Banks. Presumindo que este
fosse seu quarto, ele colocou a mala no lado de dentro, junto
à porta.
Depois, ele entrou no quarto que ficava no lado oposto do
corredor. Decoradas com motivos náuticos, as cortinas
proporcionavam um contraste agradável com o guarda-
roupa e criados-mudos de madeira. Ao tirar os sapatos e
meias ao pé da cama, ele ficou imaginando como seria
dormir ali, sabendo que Lexie estaria sozinha do outro lado
do corredor.
Junto à pia do banheiro, deu uma olhada no espelho e, com
as mãos, fez uma tentativa para dar um jeito nos cabelos
desalinhados. Sua pele estava coberta por uma fina camada
de sal e, depois de lavar as mãos, também jogou um pouco
de água no rosto. Sentindo-se um pouco melhor, ele voltou
para a cozinha a tempo de ouvir as melancólicas notas de
Yesterday, dos Beatles, que vinham de um pequeno rádio
colocado no peitoril da janela.
— Ainda está precisando de ajuda? — ele perguntou. Ao
lado dela, ele viu uma saladeira média; dentro havia
pequenos pedaços de tomate e azeitonas.
Enquanto lavava a alface, Lexie apontou com a cabeça na
direção das cebolas. — Estou quase acabando a salada, mas
você se importa de descascar as cebolas?
— Claro que não. Quer que eu corte também?
— Não é preciso, pode deixar. É só descascar. A faca está
naquela gaveta.
Jeremy pegou uma faca de cozinha e começou a descascar as
cebolas. Durante algum tempo eles trabalharam sem falar,
apenas ouvindo música. Quando terminou de lavar a alface e
a colocou de lado, Lexie se movimentou, procurando
ignorar o fato de que estavam muito próximos. Mas, com o
canto do olho, não conseguiu deixar de admirar o charme
natural de Jeremy, o formato de seus quadris e pernas, os
ombros largos, o formato do rosto.
Jeremy ergueu uma cebola descascada, completamente
alheio aos pensamentos dela. — Assim?
— Exatamente — ela respondeu.
— Tem certeza de que não quer que eu corte?
— Tenho. Se fizer isso, vai arruinar o molho e eu jamais
poderei perdoá-lo.
— Todo mundo corta as cebolas. Minha mãe italiana corta as
cebolas.
— Eu não.
— Então você pretende colocar estas cebolas grandes e
redondas dentro do molho, inteiras?
— Não. Primeiro vou cortá-las na metade.
— Posso fazer isso, pelo menos?
— Não, obrigada. Eu detestaria ter de colocar você pra fora
— ela sorriu. — Além disso, sou eu quem está cozinhando,
lembra? Você só tem de olhar e aprender. Neste momento,
pense em você mesmo como se fosse um... aprendiz.
Ele olhou para ela. Desde que tinham entrado na casa, o tom
meio avermelhado do rosto, provocado pelo frio, havia
desaparecido, dando lugar ao brilho natural de sua pele.
— Aprendiz?
Ela deu de ombros. — O que é que eu posso dizer? Sua mãe
pode ser italiana, mas eu fui criada por uma avó que
experimentou todas as receitas existentes neste mundo.
— E isso faz de você uma especialista?
— Não, mas Dóris se tornou uma, e durante muito tempo
eu fui a aprendiz. Eu aprendi por osmose, e agora é a sua
vez.
Ele pegou a outra cebola. — Então, me diga o que há de tão
especial na sua receita? Quer dizer, além de ter cebolas do
tamanho de bolas de tênis.
Ela pegou a cebola descascada e a cortou no meio. — Bem,
já que sua mãe era italiana, tenho certeza de que já ouviu
falar dos tomates San Marzano.
— É claro — ele disse. — São tomates. De San Marzano.
— Ha, ha — ela gracejou. — Na verdade, são tomates mais
doces e saborosos, especialmente para molhos. Agora,
observe e aprenda.
Ela tirou uma panela do armário e a colocou de lado, então
abriu o gás e acendeu a boca do fogão. A chama azul ganhou
vida, e ela colocou a panela vazia em cima.
— Estou impressionado — ele falou, terminando a segunda
cebola e colocando-a do lado. Então, pegou sua cerveja e
inclinou-se novamente sobre a bancada. — Você devia ter
um programa de culinária só seu na TV.
Ignorando o comentário, ela virou duas latas de tomates na
panela, depois acrescentou uma barra inteira de manteiga.
Jeremy espiou por cima de seu ombro, vendo a manteiga
derreter.
— Parece saudável — ele disse. — Meu médico vive me
dizendo que estou precisando de mais colesterol na minha
dieta.
— Você sabia que tem uma tendência a ser sarcástico?
— Já ouvi falar — ele disse, erguendo sua garrafa. — Mas,
obrigado por ter percebido.
— Você já terminou a outra cebola?
— Sou o aprendiz, não sou? — ele falou, passando-lhe a
cebola.
Ela também cortou essa outra, antes de acrescentar as quatro
metades ao molho. Mexendo um pouco com uma longa
colher de madeira, ela deixou que o molho começasse a
ferver e depois diminuiu o fogo.
— Está bem, então — ela falou, satisfeita, voltando para a
pia —, por enquanto é isso. Ficará pronto em uma hora e
meia.
Enquanto ela lavava as mãos, Jeremy espiou a panela do
molho, franzindo a testa. — É isso? Sem alho? Sem sal e
pimenta? Ou lingüiça? Almôndegas?
Ela sacudiu a cabeça. — Apenas três ingredientes. Depois
cobrimos o linguine com esse molho e por cima colocamos
queijo parmesão ralado na hora.
— Isso não é muito italiano.
— Para falar a verdade, é sim. É a maneira como fazem em
San Marzano há séculos. A propósito, isso fica na Itália. —
Ela fechou a torneira, sacudiu as mãos sobre a pia e secou-as
com um pano de prato. — Mas já que temos algum tempo,
vou me arrumar um pouco antes do jantar — ela disse. — O
que significa que vai ter de ficar sozinho durante algum
tempo.
— Não se preocupe comigo. Vou pensar em algo pra fazer.
— Se quiser, pode tomar um banho — ela disse. — Posso
lhe trazer uma toalha.
Como ainda sentia o sal no pescoço e nos braços, ele não
precisou pensar muito para aceitar. — Obrigado. Seria
ótimo.
— Espere só um minuto que eu arrumo tudo pra você, está
bem?
Ela sorriu e pegou sua cerveja ao passar por ele, sentindo os
olhos dele em seus quadris. Ficou pensando se ele estaria se
sentindo tão constrangido quanto ela.
No fim do corredor, ela abriu a porta de um armário, pegou
algumas toalhas e colocou-as na cama dele. Embaixo da pia
do banheiro, no quarto de hóspedes, havia vários frascos de
xampu e sabonete. Ela pegou um sabonete novo e deixou
tudo arrumado. Enquanto fazia isso, vislumbrou sua imagem
no espelho, ao mesmo tempo em que teve uma rápida visão
de Jeremy enrolado numa toalha, saindo do chuveiro. Essa
imagem causou-lhe um certo tremor e ela respirou
profundamente, sentindo-se como se tivesse voltado à
adolescência.
— Alô? — ela o ouviu chamar. — Onde é que você está?
— Estou no banheiro — ela respondeu, divertindo-se com a
calma que conseguira transmitir na voz. — Apenas
verificando se está tudo aqui.
Ele apareceu atrás dela. — Por acaso você não tem uma
gilete perdida em alguma dessas gavetas, tem?
— Não, sinto muito. Posso procurar no meu banheiro,
também, mas...
— Não tem importância — ele disse, passando a mão pela
barba por fazer. — Vou usar um visual meio relaxado esta
noite.
Relaxado seria perfeito, ela pensou, sentindo seu rosto corar.
Desviando dele para que não percebesse seu embaraço, ela
mostrou os frascos de xampu. — Use o que quiser — ela
falou. — E não se esqueça de que a água quente demora um
pouco para sair, por isso tenha paciência.
— Pode deixar — ele respondeu. — Mas, vou ter de lhe
pedir para me deixar usar seu telefone. Preciso fazer alguns
telefonemas.
Ela assentiu com a cabeça. — O telefone fica na cozinha.
Passando por ele de novo, ela voltou a sentir seu olhar,
embora não tivesse se voltado para conferir. Ao contrário,
foi direto para seu quarto, fechou a porta, e ficou ali parada,
encostada na porta, envergonhada por estar se sentindo tão
boba. Não havia acontecido nada, e não iria acontecer nada,
ela disse a si mesma novamente. Trancou a porta, na
esperança de que isso fosse suficiente para impedir que seus
pensamentos escapassem dali. E funcionou, pelo menos por
alguns instantes, até perceber que ele havia trazido sua mala
para o quarto.
Ao pensar que ele havia estado ali alguns minutos antes,
sentiu crescer dentro dela uma expectativa proibida e,
embora desejasse esvaziar completamente sua mente,
percebeu então que precisava admitir que estivera mentindo
para si mesma todo aquele tempo.

Quando Jeremy voltou para a cozinha, depois de ter tomado
banho, conseguiu sentir o aroma que a panela do molho
exalava, borbulhando em cima do fogão. Ele terminou sua
cerveja, encontrou a lata de lixo embaixo da pia, para jogar
fora a garrafa vazia, e depois foi pegar outra na geladeira. Na
prateleira de baixo, viu um pedaço de queijo parmesão
fresco e um vidro fechado de azeitonas Amfiso; ficou
pensando em roubar uma, mas acabou desistindo.
Encontrou o telefone e discou o número do escritório de
Nate, conseguindo completar a ligação imediatamente.
Durante uns vinte segundos Jeremy precisou manter o
aparelho afastado da orelha para agüentar as imprecações
disparadas por Nate, mas quando ele se acalmou, reagiu
positivamente à sugestão de Jeremy, de fazer uma reunião
na próxima semana. Jeremy encerrou o telefonema com a
promessa de falar com ele novamente na manhã seguinte.
Alvin, por outro lado, ele não conseguiu localizar. Depois de
discar o número e ouvir a mensagem da caixa postal, Jeremy
esperou um minuto e tentou de novo, mas o resultado foi o
mesmo. O relógio da cozinha mostrava que já eram quase
seis horas, e Jeremy calculou que Alvin devia estar em
algum ponto da rodovia. Se tivesse sorte, conseguiria falar
com ele antes que saísse à noite.
Sem ter mais o que fazer e Lexie ainda fora de vista, Jeremy
saiu pela porta de trás e foi para a varanda. A temperatura
havia caído ainda mais. O vento cada vez mais forte era frio
e cortante, e apesar de não conseguir ver o oceano, as ondas
batiam continuamente, o barulho ritmado embalando-o até
deixá-lo num estado quase hipnótico.
Antes que fosse tarde demais, ele voltou para a sala
escurecida. Espiando o corredor, viu uma fresta de luz sob a
porta fechada do quarto de Lexie. Sem saber o que fazer em
seguida, ele acendeu um pequeno abajur perto da lareira.
Com uma luz que mal dava para espalhar sombras pela sala,
ele começou a olhar os livros que estavam empilhados sobre
a lareira até se lembrar de sua mochila. Na pressa para chegar
até ali, ainda não tinha dado uma olhada no caderno de
Dóris, e depois de tirá-lo da mochila, ele o levou consigo
para a espreguiçadeira. Ao ajeitar-se no assento, sentiu a ten-
são de seus ombros diminuir pela primeira vez em muito
tempo.
Isso, sim, ele pensou, era bom. Não, melhor: era assim que
as coisas deviam ser sempre.

Um pouco antes, ao ouvir Jeremy fechar a porta de seu
quarto, Lexie tinha resolvido ir para perto da janela e tomar
um gole de cerveja, feliz por ter alguma coisa para acalmar
seus nervos.
Os dois haviam tido uma conversa superficial na cozinha,
mantendo distância enquanto as coisas se ajeitavam. Ela
sabia que precisava sustentar sua determinação quando viera
para cá, mas ao colocar a cerveja de lado, compreendeu que
não queria conservar essa distância. Não mais.
Apesar de saber dos riscos, tudo o que dizia respeito a ele só
a puxava para que ficasse mais perto — a surpresa por vê-lo
caminhando na praia em sua direção, seu sorriso fácil e seu
cabelo desgrenhado, o olhar nervoso, de moleque —, e,
naquele instante, ele era tanto o homem que ela conhecia
quanto o que não conhecia. Embora não tivesse admitido
para si mesma então, agora compreendia que queria
conhecer a parte que ele havia escondido, qualquer que
fosse ela e para onde quer que pudesse levar.
Dois dias atrás, jamais teria imaginado que fosse possível
acontecer uma coisa dessas, especialmente com um homem
que ela mal conhecia. Ela já havia se machucado antes, e
agora percebia que havia reagido à dor recolhendo-se na
segurança da solidão. Mas uma vida sem riscos não era uma
vida pra valer, e se era preciso mudar, podia muito bem
começar agora.
Depois de tomar banho, sentou-se na ponta da cama e abriu
o zíper do bolso de fora da mala para tirar um vidro de
loção. Passou um pouco nas pernas e braços, espalhou-a pelo
colo e pela barriga, sentindo uma sensação de prazer na pele
macia.
Ela não havia trazido nenhuma roupa especial que pudesse
usar; na pressa para sair logo de manhã, pegou as primeiras
coisas que encontrou, e ao procurar na mala, acabou
encontrando sua calça jeans favorita. Bastante gasta, estava
rasgada nos joelhos e a barra estava puída. Mas as inúmeras
lavagens haviam deixado o tecido fino e macio, e ela sabia
que isso acentuava suas formas. Sentiu um arrepio diante da
certeza de que Jeremy iria notar.
Vestiu uma camisa branca de manga comprida, que ela não
havia se preocupado em dobrar, e enrolou as mangas até os
cotovelos. De pé diante do espelho, ela fechou os botões,
parando um botão abaixo de onde pararia normalmente,
revelando um leve vestígio do colo.
Secou o cabelo com o secador e penteou-o com uma escova.
Quanto à maquilagem, fez o melhor que pôde com o que
tinha, aplicando um pouco de blush no rosto, delineador e
batom. Sentiu falta de um perfume, mas não havia nada que
pudesse fazer quanto a isso agora.
Quando ficou pronta, arrumou a camisa diante do espelho,
para que ela parecesse passada, e gostou da imagem que viu.
Sorrindo, tentou lembrar-se de quando fora a última vez em
que se preocupara em ter uma boa aparência.
Jeremy estava sentado na cadeira, com os pés para o alto,
quando ela entrou na sala. Ele ergueu os olhos para vê-la, e
por um instante pareceu-lhe que ele havia pensado em dizer
algo, mas as palavras não saíram. Em vez disso, ele
simplesmente a encarou.
Incapaz de desviar os olhos de Lexie, ele subitamente
entendeu por que havia sido tão importante encontrá-la
novamente. Ele não tivera escolha, pois já sabia que estava
apaixonado por ela.
— Você está... incrível — ele sussurrou, finalmente.
— Obrigada — ela disse, percebendo a emoção genuína em
sua voz e regozijando-se pela maneira como a fez sentir-se.
Os olhos dos dois se encontraram e sustentaram o olhar, e
nesse instante ela compreendeu que a mensagem que ele
estava transmitindo era um reflexo da que estava enviando.


Capítulo
QUINZE

Por um momento, nenhum dos dois pareceu capaz de se
mexer, até que Lexie suspirou profundamente e desviou o
olhar. Embora a pulsação ainda estivesse alterada, ela ergueu
ligeiramente a garrafa.
— Acho que preciso tomar mais uma — ela falou, tentando
mostrar um sorriso. — Você também quer uma?
Jeremy limpou a garganta. — Eu já peguei. Obrigado.
— Volto num minuto. Acho que também preciso dar uma
olhada no molho.
Lexie caminhou na direção da cozinha com as pernas
bambas e parou diante do fogão. A colher de madeira deixou
uma marca de molho de tomate no balcão, quando ela a
pegou para mexer o molho, e por isso ela colocou-a de volta
no mesmo lugar quando terminou. Depois, ela abriu a
geladeira, pegou outra cerveja e a colocou sobre a bancada,
junto com as azeitonas. Tentou abrir o vidro, porém, como
suas mãos estavam trêmulas, não conseguia ter a firmeza
necessária.
— Precisa de ajuda para fazer isso? —Jeremy perguntou.
Ela ergueu os olhos, surpresa. Como não havia percebido sua
aproximação, ficou pensando se seus sentimentos eram tão
óbvios quanto imaginava.
— Se você não se importa — ela respondeu.
Jeremy tirou o vidro de azeitonas de sua mão. Ela ficou
observando os músculos vigorosos de seu braço enrijecerem
quando ele forçou a tampa para abrir. Depois, olhando para a
cerveja, ele pegou a garrafa, abriu-a e deu para ela.
Ele não a olhou nos olhos, também não parecia estar com
vontade de dizer qualquer coisa. Na tranqüilidade que
pairava sobre o ambiente, ela o viu inclinar-se na bancada. A
luz do teto estava acesa, mas sem a claridade que atravessava
as janelas no final da tarde, agora parecia mais suave do que
quando havia começado a cozinhar.
Lexie tomou um grande gole de cerveja, saboreando o gosto,
saboreando tudo daquela noite: seu aspecto e suas sensações,
assim como o modo como ele a olhava fixamente. Estava
perto o bastante para alcançá-lo e poderia até tocar em
Jeremy, e por um momento quase fez isso, mas decidiu se
virar na direção do armário da cozinha.
Pegou uma lata de azeite e um vidro de aceto balsâmico, e
derramou um pouco de cada numa pequena cumbuca, junto
com sal e pimenta.
— O cheiro está delicioso — ele disse.
Depois que terminou o molho para a salada, ela pegou as
azeitonas e colocou-as em outra cumbuca pequena. —
Ainda temos uma hora antes do jantar — ela disse. Quando
falava, sentia-se mais segura. — Como eu não planejava ter
companhia, isso vai ter de servir como aperitivo. Se
estivéssemos no verão, eu diria para esperarmos na varanda,
lá fora. Mas tentei ficar lá esta tarde e está um gelo. E devo
avisá-lo de que as cadeiras da cozinha não são muito
confortáveis.
— E isso quer dizer?...
— Você se importa de esperar sentado de novo na sala?
Ele foi na frente, parou perto da espreguiçadeira para pegar o
caderno de Dóris, e ficou olhando enquanto Lexie ocupava
um lugar no sofá. Ela colocou as azeitonas sobre a mesa de
centro, e então se mexeu no lugar para ficar confortável.
Quando se sentou ao seu lado, ele sentiu o aroma doce e
floral do xampu que ela havia usado. Da cozinha, vinha o
barulho muito baixo do rádio.
— Estou vendo que você está com o caderno de Dóris.
Ele concordou com a cabeça. — Ela me emprestou.
— E...?
— Só agora há pouco consegui dar uma olhada nas primeiras
páginas. Mas tem muito mais detalhes do que eu havia
imaginado.
— Agora você acredita que ela adivinhou o sexo de todos
esses bebês?
— Não — ele respondeu. — Como eu disse, ela pode ter
anotado apenas aqueles que acertou.
Lexie sorriu. — E a diferença na maneira como ela fez todas
as anotações? Às vezes usando caneta, às vezes um lápis,
algumas vezes parece que ela estava com pressa, outras
vezes parece ter feito com muita calma.
— Eu não estou dizendo que o caderno não parece
convincente. Só estou dizendo que ela não pode adivinhar o
sexo de bebês simplesmente segurando a mão de alguém.
— Por que você acha que não pode.
— Não. Porque é impossível.
— Será que você não quer dizer estatisticamente
improvável?
— Não — ele falou. — Impossível.
— Tudo bem, sr. Cético. Como está indo sua história?
Jeremy começou a arranhar o rótulo de sua garrafa com o
dedão. — Bem — ele disse. — Mas, se puder, ainda gostaria
de dar uma olhada em alguns dos diários que estão na
biblioteca para finalizar. Talvez encontre alguma coisa para
tornar a história mais interessante.
— Você descobriu a causa?
— Sim — ele disse. — Agora só tenho de provar. Se tudo der
certo, o tempo vai cooperar.
— Vai sim. Deveremos ter neblina durante todo o fim de
semana. Ouvi esta tarde no rádio.
— Ótimo. Mas a parte ruim é que a solução pode não ser tão
engraçada quanto a lenda.
— Então, você acha que valeu a pena ter vindo até aqui?
Ele assentiu com a cabeça. — Sem dúvida alguma — ele
disse, com a voz tranqüila. — Eu não teria perdido esta
viagem por nada neste mundo.
Atenta ao tom da voz, ela sabia exatamente o que ele estava
querendo dizer, e virou-se para ele. Pousando o queixo
sobre a mão, ela colocou uma perna no sofá, apreciando
aquela intimidade, o modo como ele a fazia sentir-se
desejada.
— Então, o que está acontecendo? — ela perguntou,
inclinando-se levemente para a frente. — Você pode me
contar qual é a resposta?
A luminária que estava atrás dela lhe dava uma aura de luz
muito fraca, e seus olhos irradiavam um brilho violeta sob os
cílios pretos.
— Eu prefiro lhe mostrar.
Ela sorriu. — Você quer dizer, já que eu tenho de levar você
de volta, de qualquer forma. Certo?
— Certo.
— E você vai querer ir embora...
— Amanhã, se for possível. — Ele sacudiu a cabeça,
tentando recuperar o controle sobre seus sentimentos, pois
não queria arruinar tudo, não queria forçar nada, ao mesmo
tempo em que não desejava outra coisa senão tomá-la em
seus braços. — Preciso encontrar Alvin. Ê um amigo meu
— um cameraman de Nova Iorque. Ele está vindo para fazer
algumas imagens profissionais.
— Ele está vindo para Boone Creek?
— Pra falar a verdade, é provável que ele esteja chegando na
cidade neste momento.
— Agora? E você não deveria estar lá?
— Com certeza — ele admitiu.
Ela pensou a respeito do que ele havia dito, sensibilizada por
todo o esforço que ele fizera para estar ali ainda hoje.
— Tudo bem — ela falou. — Podemos pegar a balsa que sai
logo de manhãzinha. Podemos estar de volta à cidade por
volta das dez.
— Obrigado.
— E vocês pretendem filmar amanhã à noite?
Ele fez que sim. — Deixei um bilhete para Alvin, sugerindo
que ele fosse até o cemitério esta noite, mas também
precisamos filmar outros lugares. E amanhã vai ser um dia
cheio, de qualquer forma. Existem alguns fios soltos que
preciso amarrar.
— E quanto ao baile no celeiro? Pensei que tínhamos
combinado que se você resolvesse o mistério eu iria dançar
com você.
Jeremy abaixou a cabeça. — Se eu puder, vou resolver.
Acredite. Não há nada que eu queira mais. O silêncio cobriu
a sala.
— Quando é que você vai voltar para Nova Iorque? — ela
perguntou finalmente.
— Sábado — ele respondeu. — Tenho de estar em Nova
Iorque para uma reunião na semana que vem.
Seu coração encolheu diante daquelas palavras. Embora já
soubesse que isso iria acontecer, aquelas palavras
machucaram. — De volta à vida excitante, hein?
Ele sacudiu a cabeça. — A minha vida em Nova Iorque não
é tão glamourosa. Na maior parte, significa trabalho. Passo a
maior parte do meu tempo pesquisando ou escrevendo, e
essas atividades são solitárias. Pra falar a verdade, às vezes
fico muito sozinho.
Ela ergueu a sobrancelha. — Não tente fazer com que eu
sinta pena de você, porque nessa eu não caio.
Ele a olhou de relance. — E se eu lhe falasse dos meus
vizinhos horripilantes? Sentiria pena de mim?
— Não.
Ele riu. — Você pode pensar o que quiser, mas eu não moro
em Nova Iorque porque é excitante. Vivo ali porque minha
família está lá, porque é confortável. Porque, para mim, é
meu lar. Assim como Boone Creek é o seu lar.
— Pelo que vejo, você e sua família são muito próximos.
— Sim, nós somos — ele disse. — Nós nos reunimos quase
todos os fins de semana na casa de mamãe e papai, no
Queens, para esses jantares enormes. Meu pai teve um
ataque cardíaco alguns anos atrás e ainda sente os efeitos,
mas ele adora esses finais de semana. Parece um zoológico
de verdade: uma porção de crianças correndo para todos os
lados, mamãe cuidando da comida na cozinha, meus irmãos
com as esposas no quintal de trás. É claro que todos moram
nas proximidades, por isso eles aparecem por lá muito mais
do que eu.
Ela bebeu mais um pouco, tentando imaginar a cena. —
Parece bacana.
— E é. Mas, às vezes, é difícil.
Ela olhou para ele. — Eu não entendo.
Ele ficou em silêncio, enquanto girava a garrafa na mão. —
Às vezes, eu também não — ele disse.
Talvez fosse o jeito dele falar, o fato é que não conseguiu
fazer qualquer comentário; no silêncio, ela o observou mais
atentamente, esperando que ele continuasse.
— Você já teve algum sonho? — ele perguntou. — Algo
que você quisesse demais e aí, justamente quando achasse
que estava prestes a alcançar e agarrar o que você tanto
queria, alguma coisa acontecesse e afastasse você do seu
sonho?
— Todo mundo tem sonhos que não se transformam em
realidade — ela respondeu, a voz na defensiva.
Os ombros dele desabaram. — É. Acho que você está certa.
— Eu não sei se estou entendendo o que você está querendo
dizer — ela falou.
— Há uma coisa que você não sabe a meu respeito — ele
disse, virando-se para olhá-la de frente. — Na verdade, é
algo que jamais contei a qualquer pessoa.
Diante dessas palavras, ela sentiu uma tensão em seus
ombros. —Você é casado — ela disse, endireitando as
costas. Ele balançou a cabeça. — Não.
— Então você está saindo com alguém em Nova Iorque e é
sério.
— Não, também não é isso.
Como ele não falasse mais nada, ela pensou ter visto uma
sombra de dúvida em seu rosto.
— Tudo bem — ela disse. — Não é da minha conta, afinal.
Ele balançou a cabeça e forçou um sorriso. — Você chegou
perto com o primeiro palpite — ele falou. — Eu fui casado.
E me divorciei.
Esperando coisa muito pior, ela quase caiu na risada de
alívio, mas a expressão sombria de Jeremy a impediu.
— Ela se chamava Maria. Éramos como fogo e palha, mas
ninguém entendia o que nós víamos um no outro. Para além
da superfície, entretanto, compartilhávamos das mesmas
crenças e valores a respeito de todas as coisas realmente
importantes na vida. Inclusive a vontade de ter filhos. Ela
queria quatro, e eu, cinco — ele parou, quando viu a
expressão do rosto dela. — Eu sei que esse número de filhos
é alto para os dias de hoje, mas era uma coisa que nós dois
tínhamos em comum. Como eu, ela também viera de uma
família grande — ele fez uma pausa. — Nós não soubemos
de imediato que havia um problema. Mas depois de seis
meses, ela ainda não tinha engravidado, e decidimos fazer
alguns testes de rotina. Os resultados revelaram que estava
tudo bem com ela, mas por algum motivo, comigo não. Não
nos deram qualquer explicação, nenhuma resposta plausível.
Parecia ser apenas uma daquelas coisas que às vezes
acontecem com as pessoas. Quando ela descobriu, decidiu
que não queria mais manter o casamento. E agora... quer
dizer, adoro minha família, gosto muito de ficar com eles,
mas, quando estou lá, fico sempre me lembrando da família
que nunca poderei ter. Eu sei que parece estranho, mas acho
que você teria de se colocar no meu lugar para entender o
quanto eu queria ter filhos.
Quando ele terminou, Lexie apenas o olhou fixamente,
esforçando-se para entender o que ele tinha acabado de lhe
contar. — Sua mulher o deixou porque vocês descobriram
que não poderiam ter filhos? — ela perguntou.
— Não imediatamente. Mas no final, sim.
— E não havia nada que os médicos pudessem fazer?
— Não — ele parecia quase envergonhado. — Quer dizer,
eles não disseram que era absolutamente impossível para
mim ter um filho, mas deixaram claro que era bastante
provável que isso jamais aconteceria. E isso foi suficiente
para ela.
— E quanto à adoção? Ou encontrar um doador? Ou...
Jeremy sacudiu a cabeça. — Eu sei que é fácil pensar que ela
foi insensível, mas não foi bem assim — ele disse. — Você
teria de conhecê-la para entender. Ela cresceu imaginando
que um dia seria mãe. Afinal, suas irmãs estavam todas se
tornando mães, e ela também teria sido mãe, se não fosse
por mim — ele ergueu os olhos na direção do teto. —
Durante muito tempo eu me recusei a acreditar nisso. Eu
não queria pensar em mim como um homem defeituoso,
mas essa era a verdade. E eu sei que pode parecer ridículo,
mas, depois disso, eu me senti um pouco menos homem.
Como se eu não fosse suficientemente digno de ninguém.
Ele deu de ombros, com sua voz ficando cada vez mais
normal à medida que ele falava. — Sim, nós poderíamos ter
partido para a adoção; sim, poderíamos ter encontrado um
doador. Eu sugeri que fizéssemos tudo isso. Mas o coração
dela não aceitava. Ela queria ficar grávida, queria vivenciar o
parto, e nem era preciso dizer que ela queria viver tudo isso
com seu marido. A partir daí, as coisas nunca mais foram as
mesmas. Mas não era só ela. Eu também mudei. Eu me
tornei uma pessoa melancólica... Passei a viajar ainda mais a
trabalho... Eu não sei... talvez eu a tenha afastado.
Lexie o observou durante algum tempo. — Por que está me
contando tudo isso?
Ele tomou um gole de sua cerveja e arranhou o rótulo da
garrafa de novo. — Talvez porque eu queira que você saiba
no que é que está se metendo ao se envolver com alguém
como eu.
Ao ouvir essas palavras, Lexie sentiu que corava. Ela
balançou a cabeça e desviou o olhar.
— Não diga coisas se não sabe do que está falando.
— O que a faz pensar que eu não sei do que estou falando?
Lá fora, o vento recomeçou a soprar com força, e ela ouvia o
som passando como um carrilhão perto da porta.
— Porque não sabe. Porque não pode. Porque você não é
assim, e não tem nada a ver com o que você acabou de me
contar — ela disse. — Você e eu... não somos parecidos, por
mais que você queira pensar que somos. Você está lá, eu
estou aqui. Você tem uma grande família que costuma
visitar com freqüência, eu só tenho Dóris, e ela precisa de
mim aqui, principalmente agora, por causa de sua saúde.
Você gosta de cidades, eu prefiro pequenos vilarejos. Você
tem uma carreira que adora, e eu... bem, eu tenho a
biblioteca e adoro aquilo também. Se um de nós dois for
obrigado a mudar, a abrir mão daquilo que escolhemos para
nossas vidas... — ela fechou os olhos rapidamente. — Sei
que algumas pessoas conseguem fazer isso, mas é um osso
duro de roer quando se trata de construir um
relacionamento. Você mesmo disse que se apaixonou por
Maria porque vocês tinham os mesmos valores. Mas, no
nosso caso, um dos dois teria de se sacrificar. E se eu não
quero ter de me sacrificar, não acho que seja justo esperar
que você se sacrifique também.
Ela baixou o olhar, e no silêncio que se seguiu, era possível
ouvir o tique-taque do relógio que ficava sobre a lareira. Seu
rosto adorável estava marcado pela tristeza, e Jeremy foi
tomado subitamente pelo medo de perder qualquer chance
de ficar com ela. Estendendo o braço, ele virou o rosto dela
com um dedo em sua direção.
— E se eu não achar que é um sacrifício? — ele falou. — E
se eu lhe disser que prefiro ficar com você a voltar para a
vida que eu levava?
Fazendo um esforço para ignorar a eletricidade que sentiu
quando ele a tocou, Lexie procurou manter sua voz firme.
— Então eu lhe diria que foram maravilhosos os
momentos que passamos nos últimos dias. Que conhecer
você foi... bem, incrível. E que, sim, eu gostaria de acreditar
que poderia dar certo. E que estou lisonjeada.
— Mas você não quer tentar fazer com que dê certo.
Lexie sacudiu a cabeça. — Jeremy... eu ...
— Tudo bem — ele disse. — Eu entendo.
— Não, você não está entendendo — ela respondeu. —
Porque você ouviu o que eu disse, mas não escutou direito.
Eu quis dizer que é claro que eu gostaria que as coisas entre
nós dessem certo. Você é inteligente e gentil e charmoso...
— ela parou de falar, hesitante. — Tudo bem, talvez você
avance um pouco o sinal de vez em quando...
Apesar da tensão, ele não conseguiu evitar o sorriso. Ela
continuou, escolhendo cuidadosamente as palavras.
— O motivo porque estou falando tudo isso é que... eu acho
que esses dois dias foram incríveis, mas há coisas que
aconteceram no passado, e que deixaram feridas em mim
também — ela disse. Brevemente, e com toda a calma, Lexie
lhe contou sobre o sr. Renascença. Quando terminou, ela se
sentia um pouco culpada. — Talvez por isso eu esteja
tentando ser prática desta vez. Não estou dizendo que você
vai desaparecer como ele. Mas você afirmaria, com toda a
honestidade, que nós sentiríamos a mesma coisa um em
relação ao outro se tivéssemos de ficar viajando para poder
passar um tempo juntos?
— Sim — ele disse, a voz firme. — Afirmo.
Ela pareceu quase triste com a resposta dele. — Você diz
isso agora, mas e amanhã? E daqui um mês?
Lá fora, o vento fazia um zumbido enquanto girava ao redor
do chalé. A areia batia nas janelas, e as cortinas balançavam
com o ar que entrava pelas velhas venezianas.
Jeremy olhou fixamente para Lexie, percebendo mais uma
vez o quanto a amava.
— Lexie — ele disse, sentindo que sua boca estava ficando
seca. — Eu...
Sabendo o que ele ia dizer, ela ergueu a mão para
interrompê-lo. — Por favor — ela disse. — Não. Ainda não
estou preparada para isso, o.k.! Por enquanto, vamos
aproveitar o jantar. Podemos fazer isso? — Ela hesitou, antes
de colocar delicadamente sua garrafa de cerveja sobre a
mesa. — É melhor eu dar uma olhada no molho e colocar o
linguine para cozinhar.
Tomado por uma sensação de desalento, Jeremy viu-a
levantar-se do sofá. Fazendo uma parada na entrada da
cozinha, ela se virou para olhá-lo de frente.
— E só pra você saber, eu acho que a atitude de sua ex-
mulher foi horrível e ela não chega nem aos pés da mulher
que você tentou fazer com que ela parecesse. Você não
deixa seu marido por uma coisa dessas, e o fato de você
ainda dizer coisas agradáveis a respeito dela já mostra que ela
é quem agiu de maneira errada. Acredite — eu sei o que é
preciso fazer para ser um bom pai. Ter filhos significa tomar
conta deles, criá-los, amar e dar apoio, e nada disso tem
qualquer coisa a ver com o fato de terem sido concebidos
numa noite num quarto ou com a experiência da gravidez.
Ela se virou de novo e entrou na cozinha, desaparecendo de
vista. Ele ficou ouvindo Billie Holiday cantar I'll be seeing
you no rádio. Sentindo um nó na garganta, Jeremy se
levantou para ir atrás dela, sabendo que se ele não
aproveitasse aquele momento, talvez nunca mais tivesse
uma chance. Lexie, ele compreendeu subitamente, havia
sido o motivo por ele ter vindo para Boone Creek; Lexie era
a resposta que ele vinha procurando o tempo todo.
Ele se encostou no batente da porta da cozinha, observando-
a enquanto ela colocava outra panela no fogo.
— Quero agradecer por ter dito aquilo.
— Não tem de quê — ela respondeu, recusando-se a olhá-lo
nos olhos. Ele sabia que ela estava tentando se manter firme
diante das mesmas emoções que ele estava sentindo, e
admirou sua paixão e sua reserva. Ainda assim, deu um passo
em sua direção, sabendo que precisava arriscar.
— Você me faria um favor? — ele perguntou. — Já que
talvez eu não possa amanhã à noite — ele disse, estendendo
o braço — você se importaria de dançar comigo?
— Aqui? — ela olhou em volta, atônita, o coração
acelerado. Agora?
Sem dizer nem mais uma palavra, Jeremy se aproximou e
pegou sua mão. Ele sorriu enquanto levava a mão de Lexie
até sua boca, abaixando-a novamente depois de beijar seus
dedos. Então, com os olhos grudados nos olhos dela, ele a
enlaçou com o outro braço e puxou-a gentilmente contra si.
Acariciando suavemente a pele da mão com um dedo, ele
sussurrou seu nome, e ela se abandonou para deixar que ele
a guiasse.
A melodia suave conduzia seus passos em pequenos círculos
pela cozinha, e apesar de se sentir um pouco desconcertada
no começo, ela finalmente se acalmou e se apoiou nele,
deixando-se envolver pelo calor de seu corpo. Ao sentir a
respiração quente que aquecia seu pescoço e a mão que
roçava suas costas, ela fechou os olhos e se aconchegou
ainda mais, abandonando a cabeça em seu ombro, sentindo
os últimos laivos de determinação desaparecerem. Então ela
compreendeu que aquilo era tudo o que ela havia desejado
desde o início, e na cozinha minúscula eles acompanharam
o ritmo da música suave, cada um perdido no outro.
Além das janelas, o movimento incessante das ondas que
varriam a praia na direção das dunas. O vento frio soprando
sobre o chalé, desaparecendo na noite cada vez mais escura.
O jantar fervendo tranqüilamente no fogão.
Quando ela finalmente ergueu a cabeça para encontrar seu
olhar, ele a envolveu num abraço. Ele roçou seus lábios nos
dela uma vez, depois outra, antes de pressioná-los com
força. Após afastar-se ligeiramente para se certificar de que
ela estava bem, ele a beijou novamente, e ela correspondeu
ao beijo, deleitando-se em seus braços fortes. Ela sentiu a
língua dele na sua, a umidade intoxicante, e levou sua mão
até o rosto dele, sentindo a barba por fazer. Ele respondeu a
esse toque, beijando-a no rosto e no pescoço, roçando a
língua quente em sua pele.
Ficaram ali na cozinha, beijando-se durante muito tempo,
saboreando um ao outro sem pressa ou urgência, até que
Lexie finalmente se afastou. Ela desligou o fogo aceso no
fogão e então, pegando a mão dele novamente, puxou-o até
seu quarto.
Fizeram amor lentamente. Enquanto se movia sobre ela, ele
sussurrava o quanto a amava e soprava seu nome como se
fizesse uma súplica. Suas mãos não paravam um só segundo,
como se quisesse provar para si mesmo que ela era real. Eles
ficaram na cama durante horas, fazendo amor e sorrindo
calmamente, saboreando o toque um do outro.
Horas depois, Lexie saiu da cama e se enfiou num roupão de
banho. Jeremy vestiu sua calça jeans e foi encontrá-la na
cozinha. Eles terminaram de fazer o jantar e Lexie acendeu
uma vela. Ele ficou olhando para ela através da pequena
chama, maravilhado com o rubor de suas faces, enquanto
devorava a refeição mais deliciosa que já havia
experimentado. Por alguma razão, o ato de comerem juntos
na cozinha, ele sem camisa e ela completamente nua sob o
roupão, parecia a coisa mais íntima entre todas as coisas que
haviam acontecido naquela noite.
Depois eles voltaram para a cama, e ele a puxou para bem
perto, feliz por estar simplesmente abraçado a ela. Quando
Lexie pegou no sono em seus braços, Jeremy observou-a
enquanto dormia. De vez em quanto ele tirava o cabelo de
seus olhos, revivendo a noite, lembrando de todos os
detalhes, e sabendo no fundo do coração que havia
encontrado a mulher com quem queria passar o resto de sua
vida.

Pouco antes do amanhecer, Jeremy acordou e percebeu que
Lexie não estava a seu lado. Sentou-se na cama, apalpou as
cobertas como que para se certificar, e então pulou da cama
e vestiu a calça jeans. As roupas dela ainda estavam no chão,
mas o roupão que ela usara durante o jantar havia sumido.
Ele fechou a calça e, tremendo um pouco de frio, atravessou
o corredor com os braços cruzados.
Ele a encontrou na espreguiçadeira ao lado da lareira, uma
xícara de leite na mesinha ao lado. Em seu colo, tinha o
caderno de Dóris, aberto quase no começo, mas não estava
olhando para ele. Em vez disso, seu olhar estava perdido na
janela escura, olhando para o nada.
Ele deu um passo em sua direção, as tábuas do chão
rangendo sob seus pés, e ela despertou com o barulho.
Quando o viu, ela sorriu.
— Olá pra você — ela falou.
Naquela luz pálida, Jeremy sentiu que havia alguma coisa
errada. Ele sentou no braço da cadeira, e passou o braço em
torno dela.
— Você está bem? — ele murmurou.
— Sim. Estou bem.
— O que está fazendo? Ainda estamos no meio da noite.
— Eu não conseguia mais dormir — ela disse. — Além
disso, teremos de ficar prontos daqui a pouco para pegar a
balsa.
Ele concordou com a cabeça, apesar de não ter ficado
completamente satisfeito com a resposta.
— Está zangada comigo?
— Não — ela respondeu.
— Está arrependida pelo que aconteceu?
— Não, também não é isso — ela falou. Mas também não
disse mais nada, e Jeremy a puxou para perto, esforçando-se
para acreditar nela.
— Esse caderno é muito interessante — ele disse, sem querer
pressioná-la. — Espero poder passar algum tempo com ele
mais tarde.
Lexie sorriu. — Já fazia algum tempo que eu não o via. A
presença dele aqui me traz algumas recordações.
— Por exemplo?
Ela hesitou, então apontou para a página que estava aberta
em seu colo. — Quando o leu, ontem à noite, você reparou
nesta anotação?
— Não — ele respondeu.
— Leia — ela disse.
Jeremy leu a anotação rapidamente; sob vários aspectos,
parecia idêntica às outras. O primeiro nome dos pais, a
idade, em que fase da gravidez estava a mulher. E o fato de
que a mulher iria ter uma menina. Quando terminou, olhou
para ela.
— Isto quer dizer alguma coisa para você? — ela perguntou.
— Não — ele examinou o rosto dela. — Deveria?
Lexie abaixou os olhos. — Essas informações se referem aos
meus pais — ela disse, a voz calma. — Esta é a anotação que
previu que eu seria uma menina.
Jeremy ergueu as sobrancelhas com curiosidade.
— Era nisso que eu estava pensando — ela disse. — Nós
pensamos que nos conhecemos, mas você nem sabia qual
era o nome dos meus pais. E eu não sei o nome dos seus.
Jeremy sentiu que se formava um nó em seu estômago. — E
isso a preocupa? O fato de você achar que nós não nos
conhecemos muito bem?
— Não — ela falou. — O que me preocupa é que não sei
se algum dia iremos nos conhecer.
Então, com uma ternura que lhe causou uma dor no
coração, ela passou os braços em volta dele. Eles ficaram
abraçados um ao outro na cadeira durante muito tempo,
desejando poder perpetuar aquele momento para sempre.


CAPÍTULO
DEZESSEIS

- Então, esse é o seu amigo, hã? — Lexie perguntou.
Ela gesticulou discretamente para o interior da cela. Apesar
de ter passado a vida inteira em Boone Creek, Lexie jamais
havia tido o privilégio de visitar a cadeia municipal — até
aquele dia.
Jeremy fez que sim com a cabeça. — Normalmente, ele é
um pouco diferente — Jeremy sussurrou.
Naquela manhã, logo cedo, eles haviam arrumado suas malas
e fechado o chalé da praia, ambos relutando em sair. Mas
quando chegaram em Swan Quarter, para pegar a balsa, o
celular de Jeremy recebeu sinal suficiente para que ele
pegasse as mensagens. Nate havia deixado quatro, sobre a
reunião que teriam. Alvin, por outro lado, deixara apenas
uma, bastante furiosa, dizendo que havia sido preso.
Lexie havia levado Jeremy até o lugar em que ele deixara o
carro, e depois ele a seguira até Boone Creek, preocupado
com Alvin, mas preocupado com Lexie também. O jeito
amuado de Lexie, que havia começado antes do dia
amanhecer, continuara inalterado nas horas seguintes.
Apesar de não ter se afastado quando ele colocou o braço
em volta dela na balsa, tinha permanecido calada, olhando
fixamente para as águas de Pamlico Sound. Quando sorriu,
foi apenas um lampejo, e quando ele pegou sua mão, ela não
apertou a dele. Também não disse nada a respeito do que
haviam conversado antes; estranhamente, ela se pôs a falar
dos navios naufragados na costa, e quando ele tentara
desviar a conversa para questões mais sérias, ela mudava de
assunto ou simplesmente não respondia.
Enquanto isso, Alvin estava definhando na cadeia municipal,
parecendo — aos olhos de Lexie, pelo menos — que
pertencia àquele lugar. Vestido com uma camiseta preta do
Metallica, calça e jaqueta de couro, e uma pulseira cheia de
tachas, Alvin estava olhando para eles com um olhar
enfurecido, o rosto afogueado. — Alguém pode me dizer
que diabo de cidade maluca é esta? Alguma coisa normal já
aconteceu por aqui? — ele começara com essa ladainha
desde o momento em que Lexie e Jeremy haviam chegado,
e seus dedos estavam brancos devido à força com que ele
agarrava as barras das grades. — Vocês podem, por favor,
me tirar daqui?
Atrás deles, Rodney mantinha uma expressão carrancuda, os
braços cruzados, ignorando o que Alvin dizia, da mesma
forma como havia feito nas últimas oito horas. O sujeito
reclamava demais e, além disso, Rodney estava muito mais
interessado em Lexie e Jeremy. De acordo com Jed, Jeremy
não havia voltado para seu quarto na noite passada, e Lexie
também não havia passado a noite em casa. Poderia ter sido
coincidência, mas ele duvidava muito, o que significava que
era bem provável que eles tivessem passado a noite juntos.
O que não era nada bom.
— Tenho certeza de que vamos dar um jeito — Jeremy disse,
sem querer irritar Rodney ainda mais. Ele parecia já bastante
nervoso quando Jeremy e Lexie apareceram. — Conte o que
foi que aconteceu.
— O que aconteceu? — Alvin repetiu, o tom de voz
subindo. Seus olhos adquiriram um aspecto algo
ensandecido. — Você quer saber o que aconteceu? Eu lhe
digo o que foi que aconteceu! Este lugar está cheio de
malucos, isso é o que aconteceu! Primeiro, eu me perdi
tentando encontrar esta cidade idiota. Quer dizer, eu vinha
dirigindo pela estrada, passei dois postos de gasolina e
continuei, certo? Dali pra frente não parece que deveria ter
uma cidade? Pois o que aconteceu é que eu fiquei perdido
no meio de um pântano durante horas. Não encontrei a
cidade até umas nove horas da noite. E aí você poderia
pensar que alguém me daria alguma indicação para chegar
até o Greenleaf, certo? Quer dizer, qual seria a dificuldade?
Cidade pequena, único lugar pra ficar? Bom, eu me perdi de
novo! E isso depois de agüentar o cara do posto de gasolina
buzinar na minha orelha por mais de meia hora...
— Tully — Jeremy disse, acenando com a cabeça.
— O quê?
— O cara de quem você falou.
— Tá, não importa... então eu consegui chegar finalmente ao
Greenleaf, certo? E o gigantesco sujeito cabeludo daquele
lugar não é exatamente uma pessoa amigável e me olhou de
um jeito pouco amistoso, me entregou seu bilhete e me
colocou num quarto com todos aqueles animais mortos...
— Todos os quartos são assim.
— Não importa! — Alvin grunhiu. — E, é claro, você não
estava nem perto...
— Desculpe por isso.
— Você vai me deixar acabar de falar?! — Alvin gritou. —
Então, o.k., recebi seu recado e segui suas instruções para ir
até o cemitério, certo? E cheguei lá bem a tempo de ver as
luzes, e é fantástico, sabe? Pela primeira vez em muitas
horas, eu não estava irritado, certo? Então eu fui para esse
lugar chamado Lukilu para tomar um último trago antes de
dormir, já que parecia o único lugar aberto na cidade
naquela hora da noite. E havia apenas algumas pessoas no
lugar, então eu comecei a conversar com essa garota
chamada Rachel. E o papo estava ótimo. Nós estávamos
realmente nos entendendo, então apareceu esse sujeito,
parecendo que tinha acabado de engolir um porco-
espinho... — ele apontou com a cabeça na direção de
Rodney. Rodney sorriu sem mostrar os dentes.
— Bom, de qualquer forma, um pouco depois eu saí para
pegar meu carro, e logo em seguida esse cara apareceu
batendo com a lanterna contra a janela e me mandando sair
do carro. Eu perguntei por que, e ele me mandou sair de
novo. E aí começou a perguntar quanto eu tinha bebido e a
dizer que talvez eu não devesse dirigir. Eu disse que estava
bem e que estava aqui para trabalhar com você, e o que sei é
que passei a noite trancado aqui! Agora, tire-me daqui!
Lexie olhou por cima do ombro. — Foi isso o que
aconteceu, Rodney?
Rodney limpou a garganta. — Até certo ponto. Mas ele se
esqueceu da parte em que me chamou de Barney Fife Bobão
e disse que iria me processar por abuso de autoridade se eu
não o deixasse ir embora. Ele parecia estar agindo de
maneira tão irracional que eu pensei que ele pudesse ter
consumido drogas ou que pudesse agir de maneira violenta,
então eu o trouxe para cá, para sua própria segurança. Ah, e
ele também me chamou de monte de músculos idiota.
— Você estava me hostilizando! Eu não fiz nada!
— Você estava bebendo e dirigindo.
— Duas cervejas! Eu tinha tomado duas cervejas! — Alvin
estava parecendo um maníaco novamente. — Pergunte ao
moço que me serviu! Ele vai confirmar!
— Eu já fiz isso — Rodney falou —, e ele me disse que
você tomou sete.
— Ele está mentindo! — Alvin gritou, os olhos se
revirando na direção de Jeremy. Ele encostou a cabeça nas
grades, o rosto em pânico entre suas mãos. — Eu bebi duas
cervejas! Eu juro, Jeremy! Eu jamais sairia dirigindo se
tivesse bebido demais. Juro pela Bíblia da minha mãe!
Jeremy e Lexie olharam para Rodney. Ele deu de ombros. —
Eu só estava fazendo meu trabalho.
— Seu trabalho! Seu trabalho! — Alvin esbravejou. —
Prendendo uma pessoa inocente! Estamos nos Estados
Unidos e você não pode fazer uma coisa dessas! E isso não
vai ficar assim! Quando eu acabar com você, você não vai
conseguir um emprego nem como segurança no Wal-Mart!
Está me ouvindo, Barney?! Wal-Mart!
Estava claro que os dois deviam ter passado a noite trocando
insultos.
— Eu vou conversar com Rodney — Lexie sussurrou,
finalmente. Quando ela saiu com o policial, Alvin ficou em
silêncio.
— Nós vamos tirar você daqui — Jeremy garantiu a ele.
— Pra começo de conversa, eu nem devia estar aqui!
— Eu sei disso. Mas você não está colaborando.
— Ele está me intimidando!
— Eu sei disso. Mas vamos deixar por conta da Lexie. Ela
vai dar um jeito.

No corredor, Lexie ergueu os olhos para encarar Rodney. —
O que está acontecendo por aqui? — ela perguntou.
Rodney não a olhou nos olhos; em vez disso, continuou a
olhar na direção da cela.
— Onde é que você estava na noite passada?
Ela cruzou os braços. — Eu estava no chalé da praia.
— Com ele?
Lexie hesitou, imaginando qual seria a melhor resposta. —
Eu não fui com ele, se é isso o que está perguntando.
Rodney fez que sim com a cabeça, percebendo que ela não
havia respondido à pergunta completamente, mas
compreendendo subitamente que não queria saber mais
nada.
— Por que você o prendeu? Honestamente.
— Eu não planejei nada. Ele provocou tudo isso.
— Rodney...
Ele se virou, deixando a cabeça cair sobre o peito.
— Ele estava dando em cima da Rachel, e você sabe como
ela fica quando bebe: toda coquete e sem um pingo de bom
senso. Quer dizer, eu sei que não é da minha conta, mas
alguém precisa tomar conta dela — ele fez uma pausa. — De
qualquer forma, quando ele estava saindo, eu fui atrás para
falar com esse sujeito, para ver se ele estava pensando em ir
até a casa dela e que tipo de cara ele era. E aí ele começou a
me insultar. E eu não estava no melhor dos meus dias, de
qualquer forma...
Lexie sabia qual era o motivo, e quando Rodney deixou as
palavras no ar, não fez qualquer comentário. Rapidamente,
Rodney sacudiu a cabeça, como se ainda estivesse tentando
se justificar. — Mas o fato é que ele tinha bebido e estava
pensando em dirigir. E isso é ilegal.
— Ele havia ultrapassado algum limite de velocidade?
— Eu não sei. Eu não tentei descobrir.
— Rodney! — ela sussurrou com o tom de voz mais alto.
— Ele me deixou zangado, Lexie. Ele é mal-educado e
esquisito, e estava dando em cima da Rachel e me xingando,
e aí falou que estava trabalhando com esse sujeito... — ele
apontou com a cabeça para Jeremy.
Lexie colocou uma das mãos em seu ombro. — Veja se me
escuta, está certo? Você sabe que vai ficar encrencado se o
mantiver aqui sem motivo. Principalmente com o prefeito.
Se ele descobrir o que você fez com o cameraman —
especialmente depois de todo o trabalho que ele teve para
que desse tudo certo com essa história —, ele pode lhe
causar problemas — ela deixou que aquilo fosse assimilado
antes de prosseguir. — Além disso, nós dois sabemos que
quanto mais cedo você o deixar sair, tanto mais cedo os dois
irão embora.
— Você realmente acredita que ele vai embora?
Lexie fitou Rodney nos olhos. — O vôo dele sai amanhã.
Pela primeira vez, Rodney sustentou seu olhar. — Você vai
embora com ele?
Ela demorou um pouco para responder a pergunta que havia
feito para si mesma durante toda a manhã. — Não — ela
sussurrou. — Boone Creek é o meu lar. E é aqui que eu vou
ficar.

Dez minutos depois, Alvin estava caminhando pelo
estacionamento ao lado de Jeremy e de Lexie. Rodney ficara
parado na porta da cadeia municipal, vendo-os partir.
— Não diga nada — Jeremy avisou novamente, segurando o
braço de Alvin. — Continue andando.
— Ele é um jeca com uma arma e um distintivo!
— Não, ele não é — Lexie falou, a voz firme. — Ele é um
bom sujeito, não importa o que você possa pensar.
— Ele me prendeu sem motivo algum!
— E ele também cuida das pessoas que vivem aqui.
Eles chegaram no carro, e Jeremy fez sinal para que Alvin
sentasse no banco de trás.
— Isso não vai ficar assim — Alvin resmungou enquanto
entrava. — Vou telefonar para o promotor. Esse cara vai ser
mandado embora.
— O melhor que tem a fazer é esquecer tudo isto — Lexie
falou, olhando para ele através da porta aberta.
— Esquecer tudo isso? Você ficou maluca? Ele estava errado
e você sabe disso.
— Sim, ele estava. Mas já que ninguém foi indiciado, você
vai mesmo esquecer tudo.
— E quem é você para me dizer isso?
— Sou Lexie Darnell — ela disse, apresentando-se. — E não
apenas sou amiga de Jeremy como também tenho de viver
neste lugar com Rodney, e não estou mentindo quando digo
que me sinto muito mais segura sabendo que ele está por
perto. Todos na cidade se sentem mais seguros por causa
dele. Mas você vai embora amanhã, e ele não vai incomodá-
lo novamente — ela sorriu. — E, vamos lá, você tem de
admitir que isso tudo vai render uma boa história quando
voltar para Nova Iorque.
Ele a encarou com um olhar incrédulo antes de olhar para
Jeremy. — É ela? — ele perguntou.
Jeremy fez que sim com a cabeça.
— Ela é bonita — Alvin observou. — Talvez um pouco
autoritária, mas bonita.
—- Melhor ainda, cozinha como uma italiana.
— Tão boa quanto sua mãe?
— Talvez melhor.
Alvin assentiu com a cabeça, em silêncio por alguns
instantes. — Eu imagino que você acha que ela está certa
com esse papo de deixar tudo prá lá.
— Eu acho. Ela entende este lugar melhor do que eu ou
você, e até agora não me deu qualquer informação que não
estivesse correta.
— Então ela é esperta, também, hã?
— Muito.
Alvin exibiu um sorriso cínico. — Imagino que vocês
estavam juntos ontem à noite.
Jeremy ficou em silêncio.
— Ela deve ser mesmo uma coisa...
— Eu estou aqui, rapazes! — Lexie finalmente interferiu. —
Vocês percebem que estou ouvindo tudo o que estão
dizendo?
— Desculpe — Jeremy disse. — Velhos hábitos, só isso.
— Podemos ir agora? — Lexie perguntou.
Jeremy olhou para Alvin, que parecia estar pensando em
quais seriam as alternativas.
— Claro — ele respondeu, dando de ombros. — E não é só
isso. Pretendo esquecer que tudo isto aconteceu. Com uma
condição.
— E qual é? —Jeremy perguntou.
— Toda essa conversa sobre comida italiana me deixou com
fome, e não como nada desde ontem à noite. Vocês me
pagam um almoço e eu não só vou deixar tudo de lado,
como também vou lhes contar tudo o que aconteceu
durante a filmagem ontem à noite.
Rodney ficou olhando enquanto eles se afastavam, e depois
entrou, cansado devido à falta de sono. Ele sabia que não
devia ter prendido o sujeito; mesmo assim, não se sentia tão
mal a respeito disso. Tudo o que queria era fazer um pouco
de pressão, e então o cara começou a abrir a boca e a agir
como um coitado...
Ele coçou a cabeça, sem querer pensar muito a respeito
daquilo. Estava tudo acabado agora. O que não estava
acabado era o fato de que Lexie e Jeremy tinham passado a
noite juntos. Uma coisa era a suspeita, e outra bem diferente
era a prova, e ele viu o modo como estavam agindo agora
pela manhã. Havia alguma coisa diferente do modo como
tinham se comportado na festa da noite anterior, o que
significava que algo havia mudado entre eles. Ainda assim,
ele não tivera certeza absoluta até ouvir a resposta enviesada
com que ela havia tentado responder sem responder. Eu não
fui com ele, se é isso o que está perguntando. Não, ele tinha
sentido vontade de dizer, ele não tinha perguntado aquilo.
Ele tinha perguntado se ela havia passado a noite na praia
com Jeremy. Mas a resposta vaga foi suficiente, e não era
preciso ser um gênio para descobrir o que tinha acontecido.
A compreensão desse fato quase partiu seu coração, e mais
uma vez ele desejou poder entendê-la melhor. Houve
algumas ocasiões no passado em que ele chegou a pensar
que estava quase conseguindo descobrir o que a fazia vibrar,
mas isto... bem, isto mostrava que estava errado, não mostra-
va? Por que, diabos, ela iria permitir que uma coisa dessas
acontecesse de novo? Por que é que ela não tinha aprendido
a lição com o primeiro estranho que havia passado pela
cidade? Será que ela se lembrava de como tinha ficado
deprimida depois de tudo? Será que não sabia que seria a
única a se machucar de novo?
Ela devia saber essas coisas, ele pensou, mas tinha decidido
— pelo menos por uma noite, de qualquer forma — que não
se importava. Não fazia nenhum sentido, e Rodney estava
ficando cansado de se preocupar com isso. Estava ficando
cansado de ser ferido por ela. Sim, ele ainda a amava, mas já
lhe dera tempo mais do que suficiente para que avaliasse
quais eram seus sentimentos por ele. Agora já estava na
hora, ele pensou, de Lexie tomar uma decisão, qualquer que
fosse ela.
Já quase esquecendo a raiva, Alvin parou na soleira da porta
do Herbs ao ver que Jed estava sentado em uma das mesas.
Jed lançou um olhar mal-humorado e cruzou os braços
assim que viu Alvin, Jeremy e Lexie ocuparem seus lugares
em uma mesa de canto, perto da janela da frente.
— Nosso amigável conderge não parece muito feliz em
nos ver — Alvin sussurrou por cima da mesa.
Jeremy olhou-o de relance. Os olhos de Jed pareciam
pequenos botões.
— Puxa, isso é muito estranho. Ele sempre me pareceu
tão amigável. Você deve ter feito alguma coisa para deixá-lo
contrariado.
— Eu não fiz nada. Só me registrei.
— Talvez ele não goste de sua aparência.
— O que há de errado com a minha aparência?
Lexie ergueu as sobrancelhas, como se dissesse "Você deve
estar brincando".
— Eu não sei — ele respondeu em voz alta. — Talvez ele
não goste do Metallica.
Alvin olhou rapidamente para a própria camiseta e balançou
a cabeça.
— Não importa — ele respondeu.
Jeremy piscou para Lexie; apesar de ter lhe devolvido um
sorriso, sua expressão era distante, como se a cabeça dela
estivesse longe dali.
— A filmagem de ontem a noite foi ótima — Alvin falou,
pegando o menu. — Peguei tudo de dois ângulos e assisti no
playback ontem à noite. O material ficou incrível. As redes
de TV vão adorar. O que me lembra que preciso telefonar
para Nate. Como ele não conseguiu encontrar você, ficou
ligando pra mim a tarde inteira. Eu não consigo entender
como você agüenta aquele cara.
Diante da expressão de perplexidade de Lexie, Jeremy se
inclinou em sua direção. — Ele está falando do meu agente.
— Ele também vem pra cá?
— Não. Ele está ocupado demais, sonhando com o futuro de
minha carreira. Além disso, ele não saberia o que fazer fora
daquela cidade. Ele é o tipo de cara que acha que a área do
Central Park deveria ser ocupada por apartamentos e ruas
comerciais.
Ela exibiu um sorriso rápido.
— E quanto a vocês dois? — Alvin quis saber. — Como foi
que vocês se conheceram?
Como Lexie não tivesse feito menção de responder, Jeremy
voltou a sentar-se de frente para Alvin.
— Ela é bibliotecária e tem me ajudado com a pesquisa que
venho fazendo para minha história — ele disse vagamente.
— E você dois têm passado um bocado de tempo juntos,
hein? Com o canto do olho, Jeremy viu Lexie desviar o
olhar para longe.
— Havia muita coisa para pesquisar — ele disse.
Alvin olhou para seu amigo, percebendo que havia alguma
coisa estranha. Era como se tivesse havido uma briga de
namorados e eles já tivessem encerrado o assunto, mas ainda
estivessem cuidando das feridas. O que era um bocado de
coisas para acontecer numa única manhã.
— Bom... tudo bem — ele disse, decidindo deixar esse
assunto de lado. Em vez disso, ele resolveu dar uma olhada
nas entradas do cardápio, no momento em que Rachel se
aproximava da mesa.
— Oi, Lex; oi, Jeremy — ela disse, quando chegou ao lado
deles. — Oi, Alvin.
Alvin ergueu os olhos. — Rachel!
— Eu pensei que você tivesse dito que iria aparecer para o
café-da-manhã — ela disse. — Eu acabei de desistir de você.
— Me desculpe por isso — Alvin falou, e olhou rapidamente
para Jeremy e para Lexie. — Acho que peguei no sono.
Colocando a mão no bolso do avental, Rachel tirou um
bloquinho de papel, depois pegou a caneta que levava atrás
da orelha. — Então, o que é que vocês vão querer?
Jeremy pediu um sanduíche; Alvin pediu um caldo de
lagosta e um sanduíche também. Lexie balançou a cabeça.
— Eu não estou com muita fome — ela disse. — A Dóris
está por aqui?
— Não, ela não veio hoje. Estava cansada e decidiu tirar o
dia para descansar. Ela trabalhou até tarde ontem à noite
para preparar todas as coisas para o fim de semana.
Lexie tentou ler a expressão de seu rosto.
-— É verdade, Lex — Rachel acrescentou, a voz séria. —
Não há com que se preocupar. Ela parecia bem ao telefone.
— Talvez seja melhor eu ir até a casa dela para ver se está
tudo bem, de qualquer forma — Lexie falou, olhando ao
redor da mesa antes de se levantar. Rachel mudou de lugar
para lhe dar passagem.
— Quer que eu vá com você? — Jeremy perguntou.
— Não, está tudo bem — ela respondeu. — Você tem
trabalho a fazer, e eu também tenho coisas para resolver.
Quer me encontrar mais tarde na biblioteca? Você queria
dar mais uma olhada nos diários, lembra?
— Se você não se importar — ele disse, atônito com a
indiferença de seu tom de voz. Ele teria preferido passar o
resto da tarde com ela.
— Que tal se nos encontrarmos lá às quatro?
— Pra mim está ótimo — ele disse. — Mas me avise sobre o
que está acontecendo, o.k.!
— Como disse a Rachel, tenho certeza de que ela está bem.
Mas vou pegar o caderno dela no banco do carro, se você
não se importar.
— Sim, claro.
Ela olhou para Alvin. — Foi um prazer conhecê-lo, Alvin.
— Meu também.
No minuto seguinte, Lexie tinha ido embora e Rachel estava
a caminho da cozinha. Assim que ficaram longe do alcance
de qualquer ouvido, Alvin inclinou-se sobre a mesa.
— Tudo bem, meu amigo, vá falando.
— O que você quer dizer?
— Você sabe muito bem do que estou falando. Primeiro
você se apaixona por ela. Depois vocês passam a noite
juntos. Mas quando vocês apareceram na cadeia, agiram
como se mal se conhecessem. E agora ela aproveitou a
primeira desculpa que apareceu para sumir daqui.
— Dóris é a avó dela — Jeremy explicou — e Lexie está
preocupada. A saúde dela não anda muito bem.
— Não importa — Alvin respondeu, sem esconder seu
ceticismo. — O que eu acho é que você passou o tempo
todo olhando para ela como um cãozinho solitário, e ela tem
feito o possível para fingir que não está vendo. Vocês dois
brigaram ou aconteceu alguma coisa desse tipo?
— Não — Jeremy falou. Então, parou, dando uma olhada
pelo restaurante. Em uma mesa do canto, ele viu três
membros da assembléia da cidade, bem como a senhora que
trabalhava como voluntária na biblioteca. Todos acenaram
para ele. — Pra falar a verdade, eu não sei o que aconteceu.
Num minuto estava tudo bem, e depois...
Como ele tivesse parado de falar, Alvin se inclinou
novamente sobre a mesa. — Tá, tudo bem, não ia durar
muito, de qualquer forma.
— Mas poderia — Jeremy insistiu.
— Ah, é mesmo? O quê? Você estava pensando em se mudar
para a região Além da Imaginação. Ou ela pretendia mudar
para Nova Iorque?
Jeremy dobrou e desdobrou o guardanapo sem responder,
sem querer que o lembrassem do óbvio.
No silêncio, Alvin ergueu as sobrancelhas. — Eu
definitivamente preciso passar mais algum tempo com essa
moça — ele disse. — Eu nunca vi você ficar desse jeito por
causa de alguém desde Maria.
Jeremy ergueu os olhos sem dizer uma palavra, sabendo que
seu amigo estava certo.

Dóris estava na cama, apoiada na cabeceira, olhando por
cima dos óculos de leitura, quando Lexie espiou pela porta
do quarto.
— Dóris? — Lexie chamou.
— Lexie, o que está fazendo aqui? Entre, entre ...
Dóris colocou de lado o livro que estava aberto sobre seu
colo. Ela ainda estava de pijama, e tirando o tom um pouco
acinzentado da pele, parecia estar bem.
Lexie atravessou o quarto. — Rachel disse que você resolveu
ficar em casa por hoje, e eu só queria ver se estava tudo
bem.
— Ah, eu estou bem. Só um pouco devagar, só isso. Mas, eu
pensei que você devia estar na praia.
— Eu estava — ela disse, sentando-se na ponta da cama. —
Mas precisei voltar.
— Hã?
— Jeremy apareceu por lá.
Dóris ergueu as mãos como se estivesse se rendendo. — Não
me culpe. Eu não contei a ele onde você estava. E também
não lhe disse para ir atrás de você.
— Eu sei! — Lexie apertou suavemente o braço de Dóris para
tranqüilizá-la.
— Então como é que ele sabia onde encontrar você?
Lexie juntou as mãos sobre o colo. — Eu tinha falado a
respeito do chalé para ele outro dia, e ele apenas cruzou as
informações. Você nem acredita a surpresa que foi quando
eu o vi caminhando pela praia.
Dóris examinou Lexie atentamente antes de se endireitar um
pouco mais. — Então... vocês dois ficaram no chalé da praia
a noite passada? Lexie assentiu com a cabeça.
— E...?
Lexie não respondeu imediatamente, mas depois de algum
tempo, seus lábios formaram um sorriso leve. — Eu fiz o seu
famoso molho de tomate para ele.
— É mesmo?
— Ele ficou impressionado — ela disse. Lexie passou a
mão pelos cabelos. — A propósito, eu trouxe o seu caderno
de volta. Está na sala.
Dóris tirou os óculos de leitura e começou a limpar as lentes
com uma pontinha do lençol. — Mas nada disso explica o
fato de você ter voltado.
— Jeremy precisava de uma carona. Um amigo dele de
Nova Iorque — um cameraman — veio filmar as luzes. Eles
também vão filmar hoje à noite.
— Como é o amigo dele?
Lexie hesitou, pensando um pouco a respeito. — Ele parece
uma mistura de músico punk e membro de uma gangue de
motocicletas, mas fora isso... é legal.
Quando ela ficou em silêncio, Dóris esticou o braço e pegou
na mão de Lexie. Apertando-a suavemente, ela estudou a
expressão de sua neta.
— Você quer conversar sobre o verdadeiro motivo que a
trouxe até aqui?
— Não — Lexie respondeu, passando o dedo pelas dobras da
colcha da cama. — Pra falar a verdade, não. Acho que vou
ter de resolver isso sozinha.
Dóris acenou com a cabeça. Lexie sempre se fazia de forte.
Ela sabia que às vezes era melhor não dizer absolutamente
nada.


CAPÍTULO
DEZESSETE

Parado em pé na varanda do Herbs, Jeremy olhou para o
relógio, enquanto esperava que Alvin terminasse sua
conversa com Rachel. Alvin estava caprichando na cantada,
e Rachel não parecia estar com pressa de se despedir, o que
normalmente seria considerado um bom sinal. Mas, para
Jeremy, Rachel parecia menos interessada em Alvin do que
em ser simplesmente educada, e Alvin não estava
percebendo suas indiretas. Como sempre, Alvin tinha uma
certa dificuldade para entender indiretas.
Quando Alvin e Rachel finalmente se despediram, Alvin se
aproximou de Jeremy, um sorriso cínico no rosto, como se
já tivesse esquecido dos acontecimentos da noite anterior. O
que era bastante provável.
— Você viu aquilo? — ele cochichou quando estava bem
perto. — Acho que ela gosta de mim.
— E por que não gostaria?
— Exatamente — ele concordou. — Cara, ela é mesmo uma
coisa. Adoro o jeito dela falar. É tão... sexy.
— Você acha tudo sexy — Jeremy observou.
— Isso não é verdade — ele protestou. — Só a maioria das
coisas.
Jeremy sorriu. — Bem, talvez você encontre com ela esta
noite, no baile. Acho que podemos dar uma passada por lá
antes de irmos filmar novamente.
— Tem um baile esta noite?
— No velho celeiro de tabaco. Pelo que sei, a cidade inteira
comparece. Tenho certeza de que ela vai estar lá.
— Ótimo — Alvin falou, descendo a escada da varanda.
Então, como se estivesse falando para si mesmo, ele
acrescentou: — Por que será que ela não falou nada?

Rachel folheou o seu talãozinho de pedidos distraidamente,
enquanto observava Alvin afastar-se e sair do restaurante
com Jeremy.
Ela havia se mostrado um pouco retraída quando ele sentou
ao seu lado no Lukilu, mas depois que ele contou o que
estava fazendo na cidade e que conhecia Jeremy, engataram
uma conversa e ele passou quase uma hora falando de Nova
Iorque. Do jeito que ele falava, parecia o próprio paraíso.
Quando ela disse que esperava poder viajar até lá algum dia,
ele anotou o número de seu telefone na capa de sua agenda
e lhe disse para telefonar. Até prometeu que conseguiria
alguns ingressos em musicais da cidade, se ela quisesse.
Por mais lisonjeira que fosse a oferta, sabia que não iria
telefonar. Ela jamais havia gostado muito de tatuagens, e
apesar de não ter tido muita sorte com os homens ao longo
dos anos, já há muito tempo havia decidido que jamais iria
namorar alguém que tivesse mais furos na orelha do que ela
mesma. Mas, ela tinha de admitir, aquele não era o único
motivo para a sua falta de interesse; Rodney também tinha
alguma coisa a ver com isso.
Rodney sempre aparecia no Lukilu para se certificar de que
ninguém iria tentar sair dirigindo se estivesse embriagado, e
praticamente todo mundo que costumava passar por lá sabia
que ele poderia aparecer a qualquer hora durante a noite. Ele
passeava pelo bar, cumprimentava muita gente, e se achasse
que você tinha ido um pouco além da conta, iria lhe dizer
isso e avisar que daria uma olhada no seu carro mais tarde.
Apesar de parecer intimidativo — e provavelmente era, se
você estivesse bebendo demais —, ele também acrescentaria
que teria prazer em levá-lo para casa. Era sua maneira de
manter os bêbados fora da estrada, e nos últimos quatro anos
não tinha havido necessidade de fazer uma única prisão.
Nem mesmo o proprietário do Lukilu se importava mais
com suas visitas; bem, ele havia reclamado do fato de ter um
policial patrulhando o salão no começo, mas como ninguém
parecia se importar, acabou se acostumando, e até passou a
chamar Rodney quando achava que havia alguém no salão
precisando de uma carona.
Na noite passada, Rodney havia aparecido como sempre
fazia, e não levou muito tempo para descobrir Rachel
sentada no bar. Normalmente, ele teria sorrido e se
aproximado para conversar um pouco, mas, desta vez, ao
perceber que Alvin estava ao seu lado, por um momento ela
teve a impressão de que ele havia ficado quase magoado.
Essa reação foi inesperada, mas desapareceu tão rapidamente
quanto havia surgido, e de repente ele pareceu zangado. De
certa forma, parecia que ele estava quase com ciúmes, e ela
imaginou que tinha sido esse o motivo que a levou a deixar o
bar assim que ele saiu. Enquanto voltava para casa, ela ficou
relembrando a cena, tentando entender se realmente tinha
visto o que achava, ou se estava apenas imaginando coisas.
Mais tarde, deitada na cama, chegou à conclusão de que não
ficaria nem um pouco chateada se Rodney tivesse sentido
ciúmes.
Talvez, ela pensou, ainda houvesse esperança para eles.

Depois de irem até o carro de Alvin, que havia ficado
estacionado na rua perto do Lukilu, Jeremy e Alvin foram
para o Greenleaf. Alvin tomou um banho rápido, Jeremy
trocou de roupa, e os dois passaram as horas seguintes
conversando a respeito das descobertas que Jeremy havia
feito. Para Jeremy, isso funcionava como uma válvula de
escape; a concentração no trabalho era a única maneira que
ele conhecia para evitar ficar se preocupando com Lexie.
As fitas de Alvin eram tão extraordinárias quanto ele havia
dito, especialmente quando comparadas com as que Jeremy
havia gravado. A clareza e a resolução, combinadas com o
playback em slow-motion, faziam com que fosse muito fácil
captar detalhes que Jeremy havia deixado escapar na pressa
do momento. E o que era melhor, havia alguns
enquadramentos que Jeremy poderia isolar e congelar, e ele
sabia que isso ajudaria as pessoas a entender o que estava
sendo realmente mostrado.
A partir daí, Jeremy colocou Alvin a par dos acontecimentos
históricos ao longo do tempo, usando as referências que ele
havia descoberto para interpretar o que estava sendo visto.
Mas, quando Jeremy continuou a exibir as provas em seus
detalhes mais intricados — as três versões da lenda; mapas,
anotações sobre as pedreiras, quadros sobre o sistema de
águas e tabelas; vários projetos de construções; e aspectos
detalhados da refração da luz —, Alvin começou a bocejar.
Em nenhum momento ele havia mostrado qualquer
interesse pelas minúcias do trabalho de Jeremy, e finalmente
conseguiu convencer Jeremy a levá-lo até a fábrica de papel,
atravessando a ponte de carro, para que ele pudesse ver o
lugar por si mesmo. Eles ficaram alguns minutos olhando ao
redor do pátio, vendo a madeira ser carregada para as
plataformas, e no caminho de volta pela cidade, Jeremy
apontou para o lugar que iriam filmar mais tarde. Dali, eles
foram para o cemitério, a fim de que Alvin pudesse gravar
algumas imagens com a luz do dia.
Alvin montou a câmera em vários lugares, enquanto Jeremy
perambulava por sua própria conta, a tranqüilidade do
cemitério forçando seus pensamentos a se voltarem para
Lexie e para suas preocupações em relação a ela. Ele se
lembrou da noite que haviam passado juntos e tentou mais
uma vez entender o que a teria feito levantar da cama no
meio da noite. Apesar de ter negado, ele sabia que ela estava
arrependida, talvez até sentisse algum remorso em relação
ao que havia acontecido, mas nem isso fazia sentido para ele.
Sim, ele estava indo embora, mas ele havia dito inúmeras
vezes que encontrariam um jeito para que tudo desse certo.
E, sim, era verdade que eles não se conheciam muito bem,
mas diante do pouco tempo que haviam estado juntos, ele
havia descoberto o suficiente para saber que poderia amá-la
para sempre. Tudo de que precisavam era uma chance.
Mas talvez Alvin estivesse certo, ele pensou. Quaisquer que
fossem suas preocupações com Dóris, seu comportamento
naquela manhã sugeria que ela estava esperando por uma
desculpa para se afastar dele. O que ele não tinha certeza,
contudo, era se isso se devia ao fato de ela estar apaixonada,
e por causa disso achar que seria mais fácil se distanciar dele
agora, ou porque ela não estava, e por isso não queria mais
ficar perto dele.
Na noite passada, ele tinha certeza de que ela estava
sentindo a mesma coisa que ele. Mas, agora...
Ele gostaria que eles tivessem podido passar a tarde, juntos.
Ele queria saber quais eram suas preocupações e tranqüilizá-
la; queria abraçá-la e beijá-la, e convencê-la de que
encontraria uma maneira de fazer sua relação dar certo, não
importava o quanto isso pudesse ser difícil. Ele queria fazer
com que ela ouvisse suas palavras: que ele não conseguia
imaginar uma vida sem ela, que seus sentimentos eram
verdadeiros. Mas, o mais importante, queria voltar a ter
certeza de que ela estava sentindo a mesma coisa que ele.
Mais ao longe, Alvin estava mudando a câmera e o tripé de
lugar, perdido em seu próprio mundo e ignorando as
preocupações de Jeremy. Jeremy suspirou antes de perceber
que tinha ido para a parte do cemitério onde Lexie havia
sumido de vista na primeira vez em que a tinha visto ali.
Ele parou por um minuto, hesitante, uma suspeita surgindo
em sua mente. Então ele começou a examinar o chão,
parando de vez em quando. Levou apenas alguns minutos
para que ele descobrisse o óbvio. Caminhando por um sulco
estreito, ele parou diante de uma azaléia absolutamente into-
cada. Ela estava cercada por alguns ramos e galhos, mas o
espaço diante dela parecia cuidado. Agachando-se, ele
afastou as flores que Lexie devia estar carregando na bolsa, e
subitamente entendeu porque nem ela nem Dóris queriam
estranhos perambulando pelo cemitério.
Na luz acinzentada, ele olhou fixamente para o túmulo de
Claire e de James Darnell, imaginando por que não tinha
pensado nisso antes.

No caminho de volta do cemitério, Jeremy deixou Alvin no
Greenleaf, para que ele tirasse uma soneca, e depois voltou
para a biblioteca, ensaiando as coisas que queria dizer a
Lexie.
Ele percebeu que a biblioteca tinha mais gente do que o
normal, pelo menos do lado de fora. As pessoas faziam
pequenos círculos na calçada, formando grupos de duas ou
três, apontando para cima e admirando a arquitetura, como
se estivessem ensaiando para o Passeio pelas Casas Histó-
ricas. A maioria parecia ter nas mãos o mesmo folheto que
Dóris havia enviado para Jeremy e lia em voz alta as
informações que ressaltavam as características únicas do
edifício.
No lado de dentro, a equipe também parecia estar se
preparando. Algumas voluntárias estavam varrendo e
limpando; duas outras estavam colocando mais luminárias
Tiffany, e Jeremy deduziu que, ao ter início o passeio oficial,
as lâmpadas do teto seriam desligadas para dar à biblioteca
uma atmosfera mais histórica.
Jeremy passou pela sala das crianças, observando que parecia
muito mais desorganizada do que no dia anterior, e
continuou pelas escadas. A porta do escritório de Lexie
estava aberta, e ele parou por um momento, para se
recompor antes de entrar. Lexie estava curvada perto da
mesa, que estava quase totalmente limpa. Como todas as
outras pessoas da biblioteca, ela estava fazendo o máximo
para se livrar da bagunça, fazendo várias pilhas embaixo da
mesa.
— Olá! — ele disse.
Lexie ergueu os olhos. — Ei, olá! — ela respondeu, ficando
em pé. Ela arrumou a blusa. — Acho que você me pegou
tentando tornar este lugar apresentável.
— Vocês realmente vão ter um grande fim de semana pela
frente.
— Sim, eu acho que sim. Acho que eu devia ter cuidado
destas coisas mais cedo — ela falou, apontando com a mão
para o resto da sala —, mas imagino que devo ter sucumbido
a um surto de procrastinação.
Ela sorriu, linda mesmo estando um pouco desalinhada.
— Acontece mesmo com as melhores pessoas.
— Sim, bem, normalmente isso não acontece comigo. Em
vez de ir na direção de Jeremy, ela pegou outra pilha, e
então enfiou a cabeça de novo embaixo da mesa.
— Como está Dóris?
— Bem — ela disse, falando ainda debaixo da mesa. —
Como disse a Rachel, ela só está um pouco indisposta, mas
amanhã já vai estar novinha em folha — Lexie reapareceu,
alcançando outra pilha de papéis. — Se você puder, dê uma
passadinha por lá antes de ir embora. Tenho certeza de que
ela ficaria contente.
Por um momento, ele ficou simplesmente olhando para ela,
mas quando percebeu as implicações do que ela estava
dizendo, deu um passo em sua direção. Quando ele fez isso,
Lexie deu a volta em torno da mesa, agindo com se não
tivesse percebido, mas certificando-se de que a mesa estava
entre eles.
— O que está acontecendo? — ele perguntou.
Ela pegou mais algumas coisas de cima da mesa. — Só estou
ocupada — ela respondeu.
— Eu perguntei o que está acontecendo conosco — ele
disse.
— Nada — a voz dela parecia natural, como se estivesse
falando do tempo.
— Você não está nem olhando pra mim.
Diante disso, ela finalmente olhou para cima, encontrando
os olhos dele pela primeira vez. Ele podia sentir a hostilidade
fervilhando, embora não tivesse certeza se ela estava com
raiva dele ou com raiva de si mesma.
— Eu não sei o que você quer que eu diga. Eu já expliquei
que tenho muitas coisas para fazer. Acredite ou não, estou
na correria por aqui.
Jeremy olhou-a fixamente, sem se mexer, e de repente
sentiu que ela estava procurando qualquer desculpa para
começar uma briga.
— Posso ajudar em alguma coisa? — ele perguntou.
— Não, obrigada. Eu posso cuidar de tudo — Lexie
colocou outra pilha embaixo da mesa. — Como está Alvin?
— ela perguntou, sua voz vindo de baixo.
Jeremy coçou a cabeça. — Ele não está mais bravo, se é isso
o que está perguntando.
— Ótimo — ela disse. — Vocês dois conseguiram fazer o
que queriam?
— A maior parte — ele respondeu.
Ela apareceu de novo, tentando parecer ocupada. — Eu tirei
os diários do lugar de novo para você poder olhar. Estão na
mesa da sala de livros raros.
Jeremy exibiu um sorriso fraco. — Obrigado.
— E se lembrar de mais alguma coisa que possa precisar
antes de sair — ela acrescentou —, vou ficar por aqui
durante pelo menos mais uma hora. Mas o passeio começa
às sete, por isso tem de se programar para sair daqui até seis
e meia, o mais tardar, pois desligamos as luzes do teto.
— Eu pensei que a sala de livros raros era fechada às cinco.
— Como você está indo embora amanhã, achei que podia
ser um pouco mais liberal com as regras só desta vez.
— E porque somos amigos, certo?
— Claro — ela disse, e sorriu automaticamente. — Porque
nós somos amigos.
Jeremy saiu do escritório e caminhou até a sala de livros
raros, refazendo a conversa em sua cabeça e tentando
entender o que havia acontecido. Aquele encontro não
tinha sido como ele esperava. Apesar da irreverência do
comentário final, ele esperava que ela o seguisse, mas de
alguma forma sabia que ela não faria isso. O distanciamento
da tarde não tinha ajudado a consertar as coisas entre eles;
na verdade, elas haviam piorado. Se antes ela parecia
distante, agora dava a impressão de que o achava radioativo.
Por mais que seu comportamento o preocupasse, em alguns
aspectos ele sabia que fazia sentido. Talvez ela não precisasse
ter sido tão... fria a respeito do assunto, mas tudo girava em
torno do fato de que ele morava em Nova Iorque e ela
morava ali. No dia anterior, na praia, tinha sido fácil enganar
a si mesmo, convencendo-se de que as coisas entre eles
iriam dar certo num passe de mágica. E ele havia acreditado
nisso. Esse era o problema. Quando as pessoas se
importavam umas com as outras, sempre encontravam um
jeito de fazer as coisas darem certo.
Ele percebeu que estava alguns passos à frente de si mesmo,
mas era assim que ele agia quando tinha de enfrentar um
problema. Procurava soluções, fazia suposições, tentava
analisar os acontecimentos a longo prazo, a fim de avaliar
cuidadosamente potenciais desdobramentos. E, ele imagi-
nou, era isso o que esperava que ela também fizesse.
O que ele não esperava era ser tratado como um pária. Ou
que ela agisse como se não tivesse acontecido absolutamente
nada entre eles. Ou que agisse como se acreditasse que a
noite anterior tinha sido um erro.
Ele olhou para a pilha de diários em cima da mesa, enquanto
sentava na cadeira. Começou separando aqueles pelos quais
já tinha dado uma passada de olhos daqueles que não tinha
visto, deixando quatro de lado. Até ali, nenhum dos outros
sete tinha sido particularmente útil — dois mencionavam
funerais familiares que haviam sido realizados em Cedar
Creek —, por isso pegou um que não tinha examinado. Em
vez de ler a partir da primeira anotação, ele encostou as
costas na cadeira e foi virando as folhas para examinar
algumas passagens aleatoriamente, tentando determinar se a
pessoa que escrevera o diário havia falado a respeito de si
mesma ou da cidade em que vivia. Ele havia sido escrito
entre 1912 e 1915 por uma jovem adolescente chamada
Anne Dempsey, e era, na maior parte, um relato dos
acontecimentos pessoais de sua vida no dia-adia daquele
período. De quem ela gostava, o que ela comia,
pensamentos sobre seus pais e seus amigos, e o fato de que
ninguém parecia entendê-la. Se havia alguma coisa notável a
respeito de Anne, era que suas angústias e preocupações
eram as mesmas que caracterizavam os jovens de hoje.
Apesar de interessante, ele o deixou de lado, junto com os
outros que rejeitara.
Os outros dois que ele folheou — ambos escritos durante os
anos 20 — eram também em grande parte relatos pessoais.
Um pescador havia escrito a respeito de pesca e das marés
praticamente nos mínimos detalhes; o segundo, escrito por
uma loquaz professora, chamada Glenara, descrevia seu
relacionamento amigável com um jovem médico visitante
por um período de oito meses, assim como pensamentos a
respeito de seus alunos e pessoas que ela conhecia na cidade.
Além disso, havia algumas anotações a respeito dos eventos
sociais da cidade que pareciam consistir, em grande parte, na
observação dos barcos que navegavam pelo rio Pamlico, na
ida à igreja, no jogo de bridge, e em passeios pela Main
Street nas tardes de sábado. Ele não viu menção alguma a
Cedar Creek.
Ele imaginava que o último diário seria mais uma perda de
tempo, mas deixar de vê-lo significaria sair, e ele não
conseguia se imaginar fazendo isso sem tentar falar com
Lexie novamente, nem que fosse apenas para manter as
linhas de comunicação abertas. No dia anterior, ele teria
irrompido na sala e dito a primeira coisa que lhe viesse à
cabeça, mas com as últimas idas e vindas do relacionamento,
combinadas com seu estado nitidamente alterado, era
impossível imaginar exatamente o que ele deveria dizer ou
fazer.
Deveria manter-se distante? Deveria tentar falar com ela,
mesmo sabendo que ela estava ansiosa por uma briga? Ou
deveria fingir que nem havia notado sua atitude, e
simplesmente agir como se ela ainda quisesse saber como
haviam realmente surgido as luzes misteriosas? Deveria
convidá-la para jantar? Ou simplesmente tomá-la nos
braços?
Está vendo, esse era o problema dos relacionamentos
quando a emoção começava a embaçar as águas. Era como se
Lexie esperasse que ele fizesse ou dissesse exatamente a
coisa certa, exatamente na horta certa, qualquer que fosse
ela. E isso, ele decidiu, não era justo.
Sim, ele a amava. E sim, ele também estava preocupado com
o futuro deles. Mas enquanto ele queria tentar resolver as
coisas, ela estava agindo como se já quisesse jogar a toalha.
Ele pensou de novo sobre a conversa que haviam tido.
Se você puder, dê uma passadinha por lá antes de ir
embora...
Não "se nós pudermos". Se você...
E o que dizer de seu último comentário? Claro, ela tinha
dito, porque somos amigos. Diante disso, tudo o que ele
pôde fazer foi morder a própria língua. Amigos?, ele deveria
ter dito. Depois da noite passada, tudo o que você consegue
dizer é que somos amigos? Isso é tudo o que eu significo
para você?
Aquele não era jeito de falar com alguém de quem você
gostasse. Não era jeito de tratar alguém que você esperava
ver novamente, e quanto mais ele pensava nisso, mais ele
queria responder na mesma moeda. Você está dando pra
trás? Eu posso fazer isso, também! Você quer brigar? Pois es-
tou aqui. Ele não tinha feito nada errado, afinal de contas. O
que acontecera na noite passada tinha a ver tanto com ela
quanto com ele. Ele havia tentado falar com ela sobre como
se sentia; parecia que ela não estava querendo saber. Ele
havia prometido que iria tentar fazer com que desse tudo
certo; ela parecia ter descartado a idéia desde o começo. E
no final das contas, ela é quem o tinha levado para o quarto,
e não o contrário.
Ele ficou olhando pela janela, os lábios apertados. Não, ele
pensou, ele não ia mais fazer seu jogo. Se ela quisesse falar
com ele, ótimo. Mas, se não... bom, então, era dessa maneira
que as coisas iriam ficar, e, sinceramente, não havia nada
que ele pudesse fazer a respeito. Ele não estava disposto a
voltar rastejando para lhe implorar e suplicar, por isso estava
nas mãos dela o que quer que fosse acontecer. Ela saberia
onde encontrá-lo. Ele tomou a decisão de deixar a biblioteca
assim que terminasse e seguir para o Greenleaf. Talvez isso
desse a ela uma chance para avaliar o que realmente queria,
ao mesmo tempo em que lhe mostraria que ele não estava
disposto a ficar por perto para ser maltratado.

Assim que ele saiu, Lexie se xingou; gostaria de saber lidar
melhor com aquela situação. Tinha imaginado que o fato de
ter passado algumas horas com Dóris iria deixar as coisas
mais claras, mas tudo o que conseguira fora adiar o
inevitável. E então Jeremy tinha aparecido como se nada
tivesse mudado. Agindo como se nada fosse mudar no dia
seguinte. Como se ele não fosse embora.
Sim, desde o começo ela sabia que ele iria embora, que a
deixaria para trás como havia feito o sr. Renascença, mas o
conto de fadas que ele havia começado na noite anterior
insistia em permanecer, alimentando fantasias nas quais as
pessoas viviam felizes para sempre. Se ele havia conseguido
encontrá-la na praia, se havia tido coragem bastante para lhe
contar tudo o que havia contado, será que não encontraria
também uma razão para ficar?
Lá no fundo, ela sabia que ele alimentava a esperança de que
fosse com ele para Nova Iorque, mas não entendia por quê.
Será que ele não conseguia entender que ela não dava a
mínima para o dinheiro ou para a fama? Ou para compras,
ou para os shows, ou para o fato de poder comprar comida
tailandesa no meio da noite? A vida não era nada disso. A
vida era passar o tempo juntos, era ter tempo para caminhar
juntos de mãos dadas, conversando calmamente enquanto
viam o sol se pôr. Isso não era nada glamouroso, mas era, em
muitos aspectos, o melhor que a vida tinha a oferecer. Não
era isso que dizia o velho ditado? Quem, já no leito de
morte, dissera alguma vez que desejaria ter trabalhado mais?
Ou passado menos tempo apreciando uma tarde tranqüila?
Ou passado menos tempo com a família?
Ela não era ingênua a ponto de negar que a cultura moderna
tinha seus atrativos. Ser famoso, rico e bonito, ir a festas
exclusivas: só assim você será feliz. Em sua opinião, isso era
uma porção de asneiras, a canção dos desesperados. Se não
fosse, por que haveria tantas pessoas ricas, famosas e bonitas
consumindo drogas? Por que parecia que eles não
conseguiam manter um casamento? Por que é que eles
viviam sendo presos? Por que pareciam tão infelizes quando
não estavam sob os holofotes?
Jeremy, ela suspeitava, sentia-se atraído por esse mundo,
embora não quisesse admitir. Ela havia adivinhado isso no
instante em que se conheceram, e havia alertado a si mesma
para não se envolver emocionalmente. Mesmo assim,
lamentava a maneira como se comportara há pouco. Ela não
estava preparada para lidar com Jeremy quando ele apareceu
no escritório, mas imaginou que devia simplesmente ter dito
isso, em vez de manter a mesa entre eles e negar que
houvesse alguma coisa errada.
Sim, ela deveria ter lidado melhor com a situação. Quaisquer
que fossem suas diferenças, Jeremy merecia pelo menos
isso.
Amigos, ele pensou novamente. Porque somos amigos.
A maneira como ela havia dito aquilo ainda conseguia deixá-
lo irritado, e batendo distraidamente no caderno com a
caneta, Jeremy sacudiu a cabeça. Ele precisava terminar o
que viera fazer ali. Movimentando os ombros para aliviar a
tensão, ele pegou o último diário e puxou a cadeira para a
frente. Depois de abri-lo, levou apenas alguns minutos para
perceber que este era diferente de todos os outros.
Em vez de conter passagens curtas, relatos pessoais, o diário
era composto por um conjunto de ensaios datados, cada um
com um título, escritos de 1955 a 1962. O primeiro se
referia à construção da igreja episcopal St. Richard, em 1859,
e — enquanto o local estava sendo escavado — a descoberta
do que parecia ser um antigo acampamento dos índios
Lumbee. O ensaio ocupava três páginas e era seguido por um
artigo a respeito do Curtume McTauten, construído no
litoral de Boone Creek em 1794. O terceiro ensaio, que fez
Jeremy erguer as sobrancelhas, apresentava a opinião do
autor a respeito do que teria realmente acontecido aos
colonos de Roanoke Island em 1587.
Jeremy, lembrando-se vagamente de que um dos diários
tinha pertencido a um historiador amador, começou a
folhear as páginas mais depressa... atentando para os títulos,
procurando nos artigos alguma coisa óbvia... virando as
páginas rapidamente... folheando... parando de repente,
quando percebeu que havia encontrado alguma coisa...
voltou algumas páginas, e então compreendeu que o que ele
havia visto...
Ele se recostou na cadeira, piscando os olhos enquanto
passava os dedos pela página.

Resolvendo o mistério das Luzes no Cemitério de Cedar
Creek

Durante anos, alguns moradores de nossa cidade afirmaram a
existência de fantasmas no Cemitério de Cedar Creek, e três
anos atrás foi publicado um artigo relacionado a esse
fenômeno no Journal of the South. Apesar de não terem
apresentado uma resposta, eu acredito, após ter realizado
uma investigação por minha própria conta, ter resolvido o
enigma de por que as luzes parecem surgir em determinadas
ocasiões e não em outras.
Posso dizer categoricamente que não existem fantasmas. Na
verdade, as luzes são da Fábrica de Papel Henrickson e são
influenciadas pelo trem ao cruzar a ponte sobre a ferrovia,
pela localização de Riker's Hill e pelas fases da Lua.

Enquanto prosseguia com a leitura, Jeremy prendeu a
respiração. Embora o autor não tivesse procurado explicar
por que o cemitério estava afundando — sem o que as luzes
provavelmente não seriam vistas de forma alguma — suas
conclusões quanto a tudo o mais eram essencialmente as
mesmas de Jeremy.
O escritor, quem quer que fosse, havia descoberto tudo
quarenta anos atrás.
Quarenta anos...
Ele marcou a página com um pedaço de papel e fechou o
livro, procurando o nome do autor na capa, sua mente
relembrando a primeira conversa que tivera com o prefeito.
E com isso, ele sentiu suas suspeitas se juntarem como peças
de um quebra-cabeça.
Owen Gherkin.
O diário havia sido escrito pelo pai do prefeito. Que,
segundo o prefeito Gherkin, "sabia tudo o que havia para
saber a respeito deste lugar". Que entendia qual era a causa
das luzes. Que, sem dúvida alguma, havia contado para seu
filho. Que, então, sabia que não havia absolutamente nada
de sobrenatural em relação às luzes, embora tivesse simulado
o contrário. Isso significava que o prefeito Gherkin estivera
mentindo o tempo todo, acreditando que poderia usar
Jeremy para ganhar uns trocados de visitantes incautos.
E Lexie...
A bibliotecária. A mulher que lhe dera a dica de que ele
poderia encontrar nos diários as respostas que estava
procurando. O que significava que ela havia lido o relato de
Owen Gherkin. O que significava que ela também estivera
mentindo, preferindo jogar o joguinho do prefeito.
Ele ficou imaginando quem mais da cidade saberia a
resposta. Doris? Talvez, ele pensou. Não, nada disso, ele
decidiu rapidamente. Doris tinha de saber. Em sua primeira
conversa, ela fora direto ao assunto e dissera o que as luzes
não eram. Mas, como o prefeito e Lexie, não havia dito o
que eram realmente, embora também certamente soubesse.
E isso significava... que tudo aquilo havia sido uma piada
desde o começo. A carta. A investigação. A festa. A piada,
na verdade, era ele.
E agora Lexie estava se afastando, não sem antes haver lhe
contado a história de que Dóris a tinha levado até o
cemitério para que ela visse o espírito de seus pais. E aquela
conversa doce sobre seus pais desejarem que ela os
encontrasse.
Coincidência? Ou estava tudo planejado? E agora, o jeito de
ela agir...
Como se quisesse que ele fosse embora. Como se não
sentisse nada por ele. Como se soubesse o que aconteceria...
Será que tudo havia sido planejado? Mas por quê?
Jeremy pegou o diário e foi até o escritório de Lexie,
decidido a conseguir algumas respostas. Ele nem percebeu
que, ao sair, batera a porta com força; também não reparou
no rosto das voluntárias que se viraram quando o viram
passar. A porta de Lexie estava escancarada, e ele a abriu
completamente ao entrar no escritório.
Com todas as pilhas de livros e papéis agora escondidas,
Lexie tinha nas mãos uma embalagem de lustra-móveis e
estava dando lustro no tampo da mesa, fazendo a madeira
brilhar. Ela olhou para Jeremy quando ele ergueu o diário.
— Ei, oi — ela disse, forçando um sorriso. — Estou quase
acabando por aqui.
Jeremy encarou-a. — Você pode parar de fingir — ele
anunciou. Mesmo estando do outro lado da sala, ela
conseguiu sentir a raiva, e instintivamente colocou uma
mecha de cabelo atrás da orelha.
— Do que é que você está falando?
— Disto — ele disse, mostrando o diário. — Você o leu, não
é mesmo?
— Sim — ela disse, reconhecendo o diário de Owen
Gherkin. — Eu li.
— Você sabia que há uma passagem que fala sobre as luzes
de Cedar Creek?
— Sim — ela disse novamente.
— Por que não me falou a respeito disto?
— Eu falei — ela disse. — Eu lhe falei dos diários na primeira
vez em que você veio até a biblioteca. E se me lembro bem,
eu lhe disse que poderia encontrar as respostas que estava
procurando, lembra?
— Não me venha com joguinhos — Jeremy falou, apertando
os olhos. — Você sabia o que eu estava procurando.
— E você encontrou — ela contrapôs, erguendo o tom da
voz. — Não estou entendendo qual é o problema.
— O problema é que eu estive perdendo meu tempo. As
respostas estavam neste diário desde o começo. Não há
nenhum mistério aqui. Nunca houve. E você estava metida
neste esquema o tempo todo.
— Que esquema?
— Não perca seu tempo tentando negar — ele disse,
cortando o que ela dizia. Ele ergueu o diário. — A prova está
bem aqui, está lembrada? Você mentiu pra mim. Você
mentiu bem na minha cara.
Lexie olhou-o fixamente, sentindo a intensidade de sua
raiva, sentindo sua própria voz subir de tom. — É por isso
que você veio até o meu escritório? Para me acusar?
— Você sabia!
Ela colocou as mãos nos quadris. — Não — ela disse —, eu
não sabia.
— Mas você leu o diário!
— E daí? — ela revidou. — Eu também li o artigo do jornal.
E li os artigos daquelas outras pessoas. Por que diabos eu
deveria imaginar que as suposições de Owen Gherkin eram
corretas? Até onde eu sei, ele estava fazendo suposições,
como os outros fizeram. E isso, supondo que eu me
preocupasse com esse assunto. Você acha, sinceramente,
que eu alguma vez gastei mais do que um minuto pensando
nessas coisas, até você chegar aqui? Eu não me importo!
Nunca me importei! Você é quem está aqui para investigar.
E se tivesse lido o diário dois dias atrás, também não teria
tanta certeza. Nós dois sabemos que você teria feito suas
próprias investigações, de qualquer forma.
— Não é essa a questão — ele falou, ignorando a
possibilidade de que ela estivesse certa. — A questão é que
todo esse negócio tem sido uma grande trapaça. O passeio,
os fantasmas, a lenda — é uma fraude, pura e simples.
— Do que é que você está falando? O passeio tem a ver com
as casas históricas e, é claro, eles acrescentaram o cemitério.
Oba-oba. Tudo faz parte de um fim de semana agradável no
meio de uma temporada monótona. Ninguém está sendo
enganado, ninguém está sendo magoado. E, vamos lá, você
realmente acha que as pessoas acreditam que existem
mesmo os tais fantasmas? A maioria simplesmente gosta de
dizer que sim porque é engraçado.
— Dóris sabia? — ele perguntou, interrompendo-a
novamente.
— A respeito do diário de Owen Gherkin? — ela balançou a
cabeça, furiosa porque ele se recusava a ouvi-la. — Como é
que ela poderia saber?
— Escute — ele disse, levantando o dedo, como um
professor que enfatiza uma questão para o aluno. — Essa é a
parte que eu não consigo entender. Se você não queria que
o cemitério fizesse parte do passeio, e se Dóris não queria
que ele fizesse parte do passeio, por que vocês simplesmente
não procuraram os jornais para dizer a verdade? Por que
vocês quiseram me envolver nesse seu joguinho?
— Eu não quis envolver você. E isso não é um jogo. É um
inofensivo fim de semana que você está transformando em
algo totalmente despropositado com esse seu exagero.
— Eu não estou exagerando. Você e o prefeito é que fizeram
isso.
— Então agora eu sou um dos caras maus nessa história?
Como Jeremy tivesse ficado em silêncio, ela apertou os
olhos. — Então por que eu lhe teria dado o diário? Por que
eu não o escondi de você?
— Eu não sei. Talvez tenha algo a ver com o caderno de
Dóris. Vocês duas ficaram empurrando aquele caderno pra
cima de mim desde que cheguei aqui. Talvez tivessem
imaginado que eu não viria para cá por causa dele, então
vocês armaram tudo isso.
— Você consegue perceber como isso que você está dizendo
parece ridículo? — ela se inclinou sobre a mesa, o rosto
vermelho.
— Olhe, só estou tentando entender por que é que me
trouxeram pra cá, antes de mais nada.
Ela ergueu as mãos, como se estivesse tentando fazer com
que parasse. — Eu não quero ouvir isso.
— Aposto que não.
— Saia daqui — ela disse, atirando a embalagem de lustra-
móveis na gaveta da mesa. — Você não pertence a este lugar
e não quero falar com você nunca mais. Volte para o lugar
de onde veio.
Ele cruzou os braços. — Pelo menos você finalmente
admitiu o que esteve pensando o dia todo.
— Ah, agora você também consegue ler pensamentos?
— Não. Mas não preciso ler pensamentos para entender por
que você está agindo do modo com vem agindo.
— Bem, então me deixe ler seus pensamentos também, está
certo? — ela provocou, cansada daquele ar de superioridade,
cansada dele. — Deixe-me dizer-lhe o que eu vejo, o.k.? —
Ela sabia que estava falando alto o bastante para que toda a
biblioteca ouvisse, mas não estava preocupada com isso. —
Eu vejo alguém que é muito bom para dizer as coisas certas,
mas quando é pra fazer o que tem de ser feito, não diz uma
palavra verdadeira.
— E o que você quer dizer com isso?
Ela começou a andar pela sala, a raiva tomando conta de
cada músculo de seu corpo.
— O quê? Você acha que eu não sei o que você realmente
pensa da nossa cidade? Que não é nada além de uma parada
na estrada? Ou que, lá no fundo, você não consegue
entender como é que alguém consegue viver aqui? E que,
não importa o que tenha dito ontem à noite, a idéia de que
você poderia viver aqui é ridícula?
— Eu não disse isso.
— E nem precisava! — ela gritou, odiando aquele tom
arrogante. — Essa é a questão. Quando eu estava falando de
sacrifício, eu sabia muito bem que você achava que eu é que
deveria abrir mão de minhas raízes. Que eu deveria deixar
minha família, meus amigos, minha casa, porque Nova
Iorque é muito melhor. Que eu deveria ser a boa
mulherzinha que segue seu homem para onde quer que ele
ache que nós devemos ir. Nunca ocorreu a você a idéia de
que você é quem teria de ir embora.
— Você está exagerando.
— Estou, é? Exagerando o quê? Quando disse que você
esperava que eu deixasse tudo pra trás? Ou você estava
pensando em procurar um corretor de imóveis quando
estivesse saindo da cidade? Escute, deixe-me facilitar as
coisas pra você — ela disse, alcançando o telefone. — O
escritório da sra. Reynolds fica do outro lado da rua, e tenho
certeza de que ela ficaria encantada em lhe mostrar algumas
casas esta noite, se estiver interessado.
Jeremy simplesmente a olhou fixamente, incapaz de negar
suas acusações.
— Nada a dizer? — ela gritou, batendo o telefone. — O
gato comeu sua língua? Então veja se consegue me explicar
uma coisa. O que foi que você quis dizer exatamente quando
disse que encontraríamos uma forma de fazer as coisas
darem certo? Você achou que eu me contentaria em esperar
que me visitasse de vez em quando para passar a noite
comigo na cama, sem que houvesse a possibilidade de um
futuro juntos? Ou você estava pensando em aproveitar essas
visitas para me convencer de que eu estava errada, já que
acha que estou desperdiçando minha vida aqui e seria muito
mais feliz se o acompanhasse em sua vida?
A raiva e a dor em sua voz eram inequívocas; assim como o
significado de tudo o que ela estava dizendo. Durante algum
tempo, nenhum dos dois disse qualquer coisa.
— Por que você não disse nada disso ontem à noite? — ele
perguntou, a voz ficando mais fraca.
— Eu tentei — ela falou. — Mas você não queria ouvir.
— Então, por que...?
Ele deixou a pergunta no ar, as implicações eram claras.
— Eu não sei — ela desviou o olhar. — Você é um cara
legal, os dias que passamos juntos foram ótimos. Talvez eu
tenha me deixado levar pelo momento.
Ele a encarou. — Foi esse o significado de tudo pra você?
— Não — ela admitiu, vendo a dor estampada em seu
rosto. — Não ontem à noite. Mas isso não muda o fato de
que acabou, não é?
— Então você está caindo fora?
— Não — ela disse. Consternada, ela sentiu seus olhos se
encherem de lágrimas. — Não jogue a culpa em mim. É
você quem está indo embora. Você entrou no meu mundo.
E não o contrário. Eu era feliz até você chegar. Talvez não
totalmente feliz, talvez um pouco solitária, mas estava sa-
tisfeita. Eu gosto da minha vida aqui. Eu gosto de poder
visitar Dóris se ela não estiver num bom dia. Gosto de ler
para as crianças na hora da história. E gosto inclusive do
nosso pequeno Passeio pelas Casas Históricas, mesmo que
você pretenda transformá-lo em algo feio para poder causar
grande impressão na televisão.
Eles ficaram frente a frente, estáticos e sem palavras. Depois
de terem colocado todas as cartas na mesa, depois de terem
dito tudo o que havia para dizer, ambos se sentiam
esgotados.
— Não faça isso — ele disse por fim.
— Fazer o quê? Dizer toda a verdade?
Em vez de esperar que ele respondesse, Lexie pegou seu
casaco e sua bolsa. Colocando-os no braço, ela se dirigiu para
a porta. Jeremy deu um passo para o lado, para lhe dar
passagem, e ela roçou levemente seu braço, sem dizer uma
palavra. Ela estava a alguns passos de distância do escritório
quando Jeremy finalmente recuperou a vontade de falar. —
Para onde você está indo?
Lexie deu mais um passo antes de parar. Com um suspiro,
ela se virou. — Estou indo para casa — ela disse. — Como
você vai para a sua — ela completou, enxugando uma
lágrima no rosto e endireitando o corpo.


CAPÍTULO
DEZOITO

Mais tarde, naquela noite, Alvin e Jeremy montaram as
câmeras perto do passeio de madeira junto ao rio Pamlico. À
distância, ouvia-se a música que tocava no celeiro de tabaco
do Meyer, onde estava acontecendo o baile. O resto das lojas
da cidade havia fechado as portas; até o Lukilu parecia
abandonado. Enfiados em seus casacos, eles pareciam estar
sozinhos.
— E o que aconteceu depois? — Alvin perguntou.
— Nada — Jeremy falou. — Ela foi embora.
— Você não foi atrás dela?
— Ela não queria que eu fosse.
— Como é que você sabe?
Jeremy coçou os olhos, relembrando a discussão pela
milésima vez. Ele havia passado as últimas horas sentindo-se
atordoado. Lembrava vagamente de ter voltado para a sala de
livros raros; depois, de ter colocado os diários em uma pilha
na prateleira, e então fechado a porta atrás de si. Fez o
caminho de volta remoendo as palavras que ela havia dito,
sentindo-se traído e zangado, e ao mesmo tempo triste e
arrependido. Havia passado cerca de quatro horas deitado na
cama, no Greenleaf, tentando imaginar o que poderia ter
feito para lidar melhor com a situação. Ele não deveria ter
irrompido daquela maneira brusca no escritório. Teria ficado
assim tão zangado por causa do diário? Com a idéia de ter
sido tapeado? Ou estaria simplesmente zangado com Lexie e,
como ela, procurando uma desculpa para começar uma
briga?
Ele não tinha certeza, e Alvin também não estava
conseguindo ajudá-lo a encontrar uma resposta, depois de
ter ouvido toda a história. Tudo o que Jeremy sabia era que
estava se sentindo exausto e, apesar de ter de fazer a
filmagem, estava lutando contra a vontade de ir até a casa de
Lexie para ver se conseguia consertar as coisas. Pressupondo
que ela estivesse lá. Até onde sabia, ela estava no baile como
todo mundo da cidade.
Jeremy suspirou, Alvin sacudiu a cabeça e se afastou. Ele não
conseguia entender como é que seu amigo tinha se
amarrado desse jeito em tão pouco tempo. Ela nem era tão
charmosa, e não se encaixava naquela imagem que ele tinha
das mulheres sulistas.
Paciência. Aquilo tinha sido uma aventura, Alvin sabia, e
não tinha dúvida de que Jeremy logo iria superar tudo
aquilo, assim que entrasse no avião para voltar para casa.
Jeremy sempre havia superado.

No baile, o prefeito Gherkin estava sentado sozinho em uma
mesa de canto, a mão no queixo.
Havia contado com a presença de Jeremy, de preferência
com Lexie, mas assim que chegou ficou sabendo, através dos
cochichos das voluntárias, da discussão na biblioteca.
Segundo essas senhoras, tinha sido uma briga feia, e tinha
algo a ver com um dos diários e algum tipo de armação.
Pensando nisso agora, concluiu que não deveria ter doado o
diário de seu pai à biblioteca; mas, na época, não parecia que
fosse tão importante, além de apresentar relatos pouco
exatos a respeito da história da cidade. A biblioteca lhe
parecera o destino mais óbvio para a doação. Mas quem
poderia ter adivinhado o que iria acontecer nos quinze anos
seguintes? Quem iria saber que a fábrica têxtil seria fechada
ou a mina abandonada? Quem poderia saber que centenas de
pessoas ficariam na rua sem trabalho? Quem poderia saber
que inúmeras famílias iriam embora para nunca mais voltar?
Quem poderia saber que a cidade acabaria tendo de travar
uma luta por sua sobrevivência?
Talvez ele não devesse ter incluído o cemitério no passeio.
Talvez não devesse ter divulgado que havia fantasmas,
quando sabia que eram apenas as luzes do turno da noite na
fábrica de papel. Mas o fato era que a cidade precisava de
algo para se reerguer, algo que motivasse as pessoas a visitá-
la, algo que fizesse com que as pessoas passassem alguns dias
na cidade, para ver como aquele lugar era maravilhoso. Se
um número razoável de pessoas passasse por ali, quem sabe
eles não pudessem acabar se transformando em outra meca
para os aposentados, como Oriental, ou Washington ou New
Bern. Essa era, ele pensou, a única esperança para a cidade.
Os aposentados gostavam de lugares hospitaleiros para
comer e manter suas contas bancárias, eles queriam lugares
para fazer compras. Isso não iria acontecer imediatamente,
mas era o único plano que ele tinha, e precisava começar
por algum lugar. Graças à inclusão do cemitério e suas luzes
misteriosas, haviam vendido algumas centenas de ingressos
extras para o passeio, e a presença de Jeremy havia lhes dado
a oportunidade de uma publicidade em âmbito nacional.
Ah, ele sempre achara que Jeremy era suficientemente
esperto para descobrir tudo por sua conta. Essa parte não o
preocupava. E daí que Jeremy expusesse a verdade em rede
nacional de televisão? Ou até mesmo em sua coluna? As
pessoas de todo o país ainda assim iriam ouvir falar de Boone
Creek, e alguns poderiam querer conhecê-la. Qualquer
publicidade era melhor do que nenhuma publicidade. A
menos, é claro, que ele usasse a palavra "armação".
Era uma palavra que soava de maneira tão desagradável, e
não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. Claro,
ele sabia o que eram as luzes, mas ninguém mais sabia; e
qual era o problema, de qualquer forma? A questão é que
havia uma lenda, havia as luzes e algumas pessoas acre-
ditavam que elas eram fantasmas. Outras simplesmente
entravam na brincadeira, achando que isso fazia a cidade
parecer diferente e especial. As pessoas precisavam disso
agora, mais do que nunca.
Jeremy Marsh, tendo lembranças afetuosas da cidade,
entenderia isso. Jeremy Marsh sem essas lembranças, talvez
não. E nesse instante o prefeito Gherkin não estava muito
certo em relação à lembrança que Jeremy estaria levando
com ele no dia seguinte.
— O prefeito está parecendo um pouco preocupado, você
não acha? — Rodney observou.
Rachel deu uma olhada, sentindo muito orgulho por terem
ficado juntos a maior parte da noite. Nem mesmo o fato de
ele algumas vezes ter olhado para a porta, e parecer que
estava à procura de Lexie no meio da multidão, conseguiu
diminuir essa sensação, pelo simples motivo de que ele
também parecia estar feliz ao seu lado.
— Parece. Mas ele está sempre com essa cara.
— Não — Rodney falou —, não é a mesma. Ele está com
alguma preocupação séria.
— Quer ir falar com ele?
Rodney pensou no assunto. Assim como o prefeito — como
todo mundo, pelo visto —, ele ouvira falar da discussão na
biblioteca, mas ao contrário da maioria, ele achava que sabia
muito bem o que estava acontecendo. Ele achava que era só
juntar as peças, especialmente depois de ver a expressão do
rosto do prefeito. O prefeito, ele percebeu de repente, devia
estar preocupado com a forma como Jeremy iria apresentar
seu pequeno mistério para o mundo.
Quanto à discussão, ele havia tentado avisar Lexie de que
isso iria acontecer. Era inevitável. Ela era a mulher mais
cabeça-dura que ele já havia conhecido, alguém sempre
firme em suas posições. Mas podia ser volátil, às vezes, e
Jeremy havia finalmente tido uma amostra. Embora
desejasse que ela jamais tivesse se colocado naquela situação
mais uma vez, Rodney estava aliviado por saber que o caso
já estava encerrado.
— Não, não há muito o que falar — Rodney disse. — Não
está mais nas mãos dele agora.
Rachel enrugou a testa. — O que não está nas mãos dele?
— Nada — ele encerrou o assunto com um sorriso. —
Nada importante.
Rachel analisou sua expressão por um momento e depois
deu de ombros. Eles haviam ficado ali, em pé, enquanto
terminava uma música e a banda começava outra. Enquanto
aumentava o número de pessoas dançando, Rachel batia
com o pé no chão, acompanhando a batida da música.
Rodney nem parecia notar que as pessoas estavam
dançando, tamanha era sua preocupação. Ele gostaria de
conversar com Lexie. No caminho para cá, ele passara pela
casa dela, e visto luzes e o carro na entrada da garagem.
Antes disso, ele havia sido informado por um colega da
polícia que o Garotão da Cidade e seu amigo de história em
quadrinhos estavam montando sua câmera no passeio ao
lado do rio. O que significava que a discussão ainda
precisaria ser resolvida.
Se as luzes da casa de Lexie ainda estivessem acesas quando
tivesse terminado o baile, talvez ele pudesse dar uma passada
por ali antes de ir para casa, como fizera na noite em que o
sr. Renascença tinha ido embora. Tinha a sensação de que
ela não ficaria completamente surpresa em vê-lo. Calculou
que ela provavelmente ficaria olhando para ele antes de abrir
a porta. Ela faria um pouco de chá e, como da última vez, ele
sentaria no sofá e ficaria ouvindo durante horas, enquanto
ela se recriminaria por ter sido tão boba.
Ele acenou com a cabeça para si mesmo. Ele a conhecia
melhor do que a si mesmo.
Mesmo assim, ainda não estava preparado para enfrentar
essa situação. No que lhe dizia respeito, ela precisava de mais
algum tempo sozinha para poder fazer uma avaliação de
tudo o que acontecera. Tinha de admitir que estava um
pouco cansado de ser visto como uma espécie de irmão mais
velho, e ele não tinha certeza de que estava com vontade de
ouvi-la. Afinal, ele estava se sentindo muito bem, e naquele
instante não estava ansioso para terminar a noite com uma
pessoa deprimida.
Além disso, a banda que estava tocando era muito boa.
Muito melhor do que a do ano passado. Com o canto do
olho, ele conseguia ver Rachel balançando no ritmo da
música, satisfeito por ela o ter procurado para lhe fazer
companhia, como fizera na festa da noite anterior. Ela
sempre fora uma companhia agradável, mas o estranho era
que, ultimamente, todas as vezes em que a via, ela parecia
ainda mais bonita do que ele lembrava. Sem dúvida, isso era
fruto de sua imaginação, mas não conseguia deixar de pensar
no quanto ela estava bonita esta noite.
Rachel percebeu que ele estava olhando para ela e sorriu
envergonhada. — Desculpe — ela disse —, eu gosto dessa
música.
Rodney limpou a garganta. — Gostaria de dançar?
Ela ergueu as sobrancelhas. — Está falando sério?
— Eu não sou um grande dançarino, mas...
— Eu adoraria! — ela interrompeu, pegando na mão dele.
Seguindo-a até a pista de dança, ele decidiu, então, que mais
tarde iria pensar o que fazer com Lexie.

Dóris estava sentada na cadeira de balanço da sala, os olhos
abertos distraidamente na direção da janela, pensando se
Lexie iria passar por ali. Sua intuição levava-a a duvidar, mas
esse era um daqueles momentos em que desejava estar
errada. Ela sabia que Lexie estava abalada — isso era menos
uma premonição do que um entendimento do óbvio —, e
tinha tudo a ver com o fato de Jeremy estar indo embora.
De certa forma, desejou que não tivesse empurrado Lexie
para ele. Relembrando os fatos, percebia agora que deveria
ter imaginado que poderia acabar assim. Então, por que
havia feito tudo o que podia para que eles se envolvessem
um com o outro? Por que Lexie estava sozinha? Por que Le-
xie havia caído numa rotina e estava assim desde que se
apaixonara por aquele jovem de Chicago? Por que chegara a
acreditar que Lexie tinha medo da idéia de se apaixonar por
alguém novamente?
Por que ela não poderia ter simplesmente aproveitado a
companhia de Jeremy? Na verdade, isso era tudo o que havia
desejado que Lexie fizesse. Jeremy era inteligente e
charmoso, e Lexie simplesmente precisava ver que existiam
homens assim por aí. Ela precisava compreender que nem
todos os homens eram como Avery ou como o jovem de
Chicago. Como ela o chamava agora? Sr. Renascença?
Tentou lembrar como era seu nome verdadeiro, mas sabia
que isso não era importante. O importante era Lexie, e Dóris
estava preocupada com ela.
Ah, é claro que ela acabaria ficando bem, Dóris sabia disso.
Sem dúvida, ela aceitaria o que havia acontecido e
encontraria uma maneira de seguir em frente. Com o tempo,
ela era até capaz de se convencer de que tinha sido uma
coisa boa. Se tinha uma coisa que havia aprendido a respeito
de Lexie, era que ela era uma sobrevivente.
Dóris suspirou. Ela sabia que Jeremy havia se apaixonado. Se
Lexie estava apaixonada por ele, ele estava ainda mais
apaixonado, mas Lexie havia aprendido a arte de deixar os
relacionamentos para trás e levar sua vida fingindo que
jamais haviam acontecido.
Pobre Jeremy, ela pensou. Isso não era justo com ele.
No Cemitério de Cedar Creek, Lexie estava em pé no meio
da densa neblina olhando para o local onde haviam sido
enterrados seus pais. Ela sabia que Jeremy e Alvin estariam
no passeio filmando a ponte e Riker's Hill, o que significava
que poderia ficar sozinha com seus pensamentos esta noite.
Ela não pretendia ficar muito tempo, mas por algum motivo
havia sentido necessidade de ir até ali. Tinha feito a mesma
coisa depois do fim de seu relacionamento com Avery e
também com o sr. Renascença, e ao iluminar com a lanterna
a inscrição com os nomes de seus pais, desejou que eles
estivessem ali para conversar com ela.
Sabia que tinha uma visão romantizada em relação a eles,
que mudava de acordo com seu estado de espírito. Às vezes
gostava de pensar neles como pessoas amorosas e falantes;
outras vezes gostava de acreditar que eram ouvintes
pacientes. Nesse momento, queria pensar neles como
criaturas fortes e sábias, pessoas que dariam a ela o tipo de
conselho que tornaria tudo menos confuso. Estava cansada
de cometer erros na vida. Era o que sempre fizera, ela
pensou melancolicamente, e agora sabia que estava prestes a
cometer outro erro, não importava o que fizesse.

Do outro lado do rio, somente as luzes da fábrica de papel
eram visíveis através da neblina, e a própria cidade estava
perdida em meio a uma cerração sonolenta. Com o trem se
aproximando lentamente — de acordo com a programação
de Jeremy, de qualquer forma —, Alvin deu uma última
verificada na câmera voltada para Riker's Hill. Essa seria a
tomada mais difícil. A da ponte seria fácil, mas como Riker's
Hill estava distante e coberto pela névoa, ele não tinha
certeza absoluta de como a câmera iria registrar a imagem.
Ela não havia sido feita para fotografar a longa distância,
exatamente o que seria necessário agora. Apesar de ter
trazido as melhores lentes e filmes de alta sensibilidade,
desejou que Jeremy lhe tivesse falado desse pequeno detalhe
antes de ele sair de Nova Iorque.
Jeremy não estava pensando com muita clareza nos últimos
dias, por isso concluiu que isso poderia ser perdoado.
Normalmente, numa situação como essa, Jeremy estaria
falando e fazendo piadas sem parar, mas desta vez ele não
havia falado muito a respeito de nada durante as últimas
horas. Em vez de tranqüilas, já que havia esperado que fosse
como tirar fotografia nas férias, as últimas horas tinham
começado a parecer como se fossem trabalho,
principalmente por causa da friagem. Não fora para isso que
ele havia se prontificado, mas tudo bem... ele simplesmente
aumentaria o pagamento e mandaria a conta para Nate.
Enquanto isso, Jeremy estava em pé junto ao peitoril, de
braços cruzados, olhando fixamente para um monte de
nuvens.
— Eu lhe contei que Nate telefonou esta tarde? — Alvin
perguntou, tentando mais uma vez conversar com seu
amigo.
— Telefonou?
— Quando eu estava tirando uma soneca — Alvin falou.
— Ele me acordou e começou a gritar comigo porque você
não estava com seu celular ligado.
Apesar da expressão preocupada, Jeremy sorriu. — Eu
aprendi a mantê-lo desligado o máximo de tempo possível.
— Certo... mas você podia ter me avisado.
— O que ele queria?
— A mesma coisa. As últimas novidades. Mas escute isto:
ele perguntou se você poderia conseguir uma amostra.
— Amostra do quê?
— Eu imaginei que ele estivesse falando dos fantasmas. Se
havia lama ou algo parecido. Ele achou que você poderia
mostrar para os produtores na reunião da semana que vem.
— Lama?
Alvin ergueu as mãos. — Palavra dele, não minha.
— Mas ele sabe que é apenas a luz da fábrica de papel.
Alvin concordou com a cabeça. — Sim, ele sabe. Ele só
pensou que poderia ser um toque interessante. Sabe, alguma
coisa para impressioná-los de verdade.
Jeremy sacudiu a cabeça, incrédulo. Nate havia tido uma
porção de idéias malucas nesses anos todos, mas esta
merecia um prêmio. Mas, ele era assim mesmo. Qualquer
coisa que lhe viesse à cabeça saía pela boca e, na maioria das
vezes, ele nem lembraria de ter dito alguma coisa.
Ele também disse para você telefonar.
— Eu vou — Jeremy falou. — Mas deixei meu celular no
Greenleaf. — Ele fez uma pausa. — Você não contou a ele
sobre o diário, contou?
— Eu nem sabia que ele existia — Alvin lembrou. — Você
só me contou isso mais tarde. Lembra que eu lhe disse que
foi ele quem me acordou?
Jeremy fez que sim com um aceno da cabeça. — Se ele
telefonar pra você de novo, não diga nada, está bem?
— Você não quer que ele saiba que o prefeito armou essa
fraude?
— Não, ainda não.
Alvin olhou para ele. — Ainda não ou nunca?
Jeremy não respondeu imediatamente. Essa era a verdadeira
questão, não era? — Eu ainda não decidi.
Alvin deu mais uma olhada pela lente. — É uma decisão
difícil — ele falou. — Talvez seja suficiente para fazer a
matéria, você sabe. — Quer dizer, as luzes são uma coisa,
mas você tem de entender que a explicação não é assim tão
interessante.
— O que você quer dizer?
— Para a televisão. Eu não tenho tanta certeza de que eles
vão se interessar pelo fato de que as luzes são causadas pela
passagem do trem.
— Não é só a passagem do trem — Jeremy corrigiu. — É a
maneira como as luzes da fábrica de papel refletidas no trem
são vistas em Riker's Hill, e como a densidade da neblina,
sendo maior no cemitério que está afundando, interfere no
seu aspecto.
Alvin fingiu um bocejo. — Desculpe, o que você estava
dizendo?
— Isso não é tão chato — Jeremy insistiu. — Você não
percebe quantas coisas têm de acontecer ao mesmo tempo
para criar esse fenômeno? Como as pedreiras provocaram
alterações nas camadas de água e fizeram o cemitério
afundar? A localização da ponte principal? As fases da Lua, já
que em apenas algumas ocasiões está escuro o bastante para
que as luzes sejam vistas? A lenda? A localização da fábrica
de papel e o horário do trem?
Alvin deu de ombros. — Acredite em mim. É chato com
"CH" maiúsculo. Para ser franco, eu ficaria muito mais
interessado se você não tivesse encontrado a explicação. O
público da televisão adora mistérios. Especialmente em
lugares como Nova Orleans e Charleston, ou qualquer outro
lugar romântico e tranqüilo. Mas reflexo de luzes em Boone
Creek, na Carolina do Norte? Você realmente acha que as
pessoas de Nova Iorque ou de Los Angeles vão se preocupar
com isso?
Jeremy abriu a boca para dizer alguma coisa e de repente
lembrou que Lexie havia dito exatamente a mesma coisa a
respeito do fenômeno, e ela vivia aqui. No silêncio que se
seguiu, Alvin ficou olhando para ele.
— Se está pensando seriamente nesse negócio de televisão,
vai ter de dar um jeito de apimentar essa história, e o diário
que você encontrou talvez possa fazer isso. Você pode fazer
uma matéria seguindo a sua pesquisa e revelar o diário no
final. Isso talvez seja suficiente para chamar a atenção dos
produtores, se você fizer as coisas direito.
— Você acha que devo atirar a cidade aos lobos?
Alvin sacudiu a cabeça. — Eu não disse isso. E, francamente,
nem tenho certeza de que o diário seja suficiente. Só estou
lhe dizendo que se você não conseguir mostrar um pouco
de lama, é melhor você encontrar alguma utilidade para o
diário, se não quiser ficar com cara de idiota na reunião.
Jeremy desviou o olhar. O trem, ele sabia, estaria se
aproximando em alguns minutos. — Lexie jamais falaria
comigo de novo se eu fizesse uma coisa dessas — ele disse.
Então sacudiu os ombros. — Isso, imaginando que ela ainda
queira falar comigo.
Alvin não disse nada. No silêncio, Jeremy olhou em sua
direção.
— O que você acha que eu devo fazer?
Alvin respirou profundamente. — Eu acho — Alvin falou
— que tudo se resume ao que é mais importante pra você,
você não acha?


CAPÍTULO
DEZENOVE

Jeremy dormiu muito mal na sua última noite no Greenleaf.
Ele e Alvin tinham acabado a filmagem — quando o trem
passou, Riker's Hill registrou as luzes refletidas de maneira
muito fraca — e depois de verem o filme, tanto ele quanto
Alvin decidiram que havia ficado bom o bastante para
provar a teoria de Jeremy, a menos que se dispusessem a ar-
rumar um equipamento melhor.
Porém, quando estavam no caminho de volta para
Greenleaf, o pensamento de Jeremy estava muito distante do
mistério ou mesmo do caminho que percorriam. Ao
contrário, ele começou mais uma vez a repassar em sua
cabeça os acontecimentos dos últimos dias. Lembrou-se da
primeira vez que tinha visto Lexie no cemitério, e seu
animado encontro na biblioteca. Pensou no almoço que
haviam saboreado em Riker's Hill e sua visita ao passeio que
seguia ao longo do rio, lembrou-se de como ficou
impressionado com a extraordinária festa em sua
homenagem, e de como havia se sentido na primeira vez em
que vira as luzes no cemitério. Mas, acima de tudo, ele se
lembrava daqueles momentos em que começou a perceber
que estava se apaixonando por ela.
Seria realmente possível que tivesse acontecido tanta coisa
em apenas alguns dias? Quando chegou ao Greenleaf e
entrou em seu quarto, estava tentando definir o momento
exato em que tudo tinha começado a dar errado. Ele não
tinha muita certeza, mas agora estava com a impressão de
que ela havia tentado fugir de seus próprios sentimentos, e
não apenas dele. Então, quando é que ela havia percebido
que sentia alguma coisa por ele? Na festa, como ele? No
cemitério? No início daquela tarde?
Ele não tinha idéia de qual era a resposta. Tudo o que sabia
era que a amava e não conseguia imaginar como seria não
vê-la nunca mais.
As horas passaram lentamente; seu vôo sairia de Raleigh ao
meio-dia, por isso estaria deixando o Greenleaf em breve.
Ele se levantou antes das seis, terminou de arrumar suas
coisas e as colocou no carro. Depois de se certificar que a luz
no quarto de Alvin também estava acesa, ele se dirigiu ao
escritório, atravessando o ar gelado da manhã.
Jed, como havia previsto, fez uma cara feia. Seu cabelo
estava ainda mais desalinhado que o de costume e as roupas
todas amassadas, de modo que Jeremy concluiu que ele
havia acabado de se levantar. Jeremy colocou as chaves em
cima da mesa.
— Um lugar e tanto o que você tem aqui — Jeremy falou.
— Com certeza vou me lembrar de recomendar para os
amigos.
Como se fosse possível, a expressão de Jed ficou ainda mais
dura, mas Jeremy apenas devolveu um sorriso amigável. Ao
voltar para o quarto, ele viu luzes tremulando em meio à
neblina, enquanto um carro subia pela entrada de cascalho.
Por um instante, ele pensou que fosse Lexie, e sentiu um
sobressalto no peito; quando o carro finalmente pôde ser
visto, suas esperanças simplesmente evaporaram.
O prefeito Gherkin, enfiado num casaco pesado e coberto
por um cachecol, saiu do carro. Sem a energia que havia
mostrado em encontros anteriores, ele caminhou no escuro
em direção a Jeremy.
— Fazendo as malas, eu imagino.
— Já arrumei tudo.
— Jed não atirou a conta na sua cara, atirou?
— Não — Jeremy respondeu. — Aliás, obrigado por isso.
— Não tem de quê. Como eu lhe disse, era o mínimo que
podíamos fazer por você. Só espero que tenha gostado de
sua estada em nossa pacata cidade.
Jeremy fez que sim com a cabeça, observando o ar de
preocupação no rosto do prefeito. — Sim, eu gostei.
Pela primeira vez desde que Jeremy o conhecera, Gherkin
parecia não saber o que dizer. Enquanto aumentava o
desconforto daquele silêncio, ele arrumou o cachecol dentro
do casaco. — Bom, eu só passei para lhe dizer que os
moradores da região gostaram de conhecer você. Sei que
estou aqui falando pela cidade, pois você causou uma ótima
impressão.
Jeremy colocou as mãos nos bolsos. — Por que a enganação?
— ele perguntou.
Gherkin suspirou. — Você está perguntando por que
incluímos o cemitério no passeio?
— Não. Estou me referindo ao fato de o seu pai ter
anotado a resposta em seu diário e de você ter escondido
isso de mim.
Uma expressão triste tomou conta do rosto de Gherkin. —
Você está coberto de razão — ele falou depois de alguns
instantes. Sua voz era hesitante. — Meu pai realmente
resolveu o mistério, mas acho que isso fazia parte de seu
destino. — Ele olhou Jeremy nos olhos. — Você sabe por
que meu pai ficou tão interessado pela história da nossa
cidade?
Jeremy negou com a cabeça.
— Na II Guerra Mundial, meu pai serviu no Exército com
um homem chamado Lloyd Shaumberg. Ele era tenente,
meu pai era soldado. As pessoas hoje em dia parecem que
não entendem que, durante a guerra, eles não eram apenas
soldados nos campos de batalha. A maioria dos que estavam
servindo eram pessoas comuns: padeiros, açougueiros,
mecânicos. Shaumberg era historiador. Pelo menos era isso
o que meu pai falava dele. Na verdade, ele era apenas um
professor de colégio em Delaware, mas meu pai jurava que
ele era o melhor oficial do Exército. Ele costumava manter
seus homens entretidos, contando histórias do passado,
histórias que quase ninguém conhecia, e isso evitava que
meu pai ficasse com medo do que estava acontecendo. De
qualquer forma, depois do avanço das tropas na Itália,
Shaumberg e meu pai, junto com o restante do pelotão, fo-
ram cercados pelos alemães. Shaumberg disse aos homens
para recuarem enquanto tentava dar cobertura a eles. — Eu
não tenho escolha — ele teria dito. Era uma missão suicida,
todos sabiam. Mas assim era Shaumberg. — Gherkin fez
uma pausa. — De qualquer forma, meu pai ficou vivo e
Shaumberg morreu, e depois da guerra, quando meu pai
voltou para casa, ele disse que também iria se tornar um
historiador, para prestar uma homenagem ao seu amigo.
Como Gherkin tivesse parado de falar, Jeremy olhou para ele
com curiosidade. — Por que está me contando isso?
— Porque — Gherkin respondeu — do modo como vejo
as coisas, eu também não tive muita escolha. Toda cidade
precisa ter alguma coisa só sua, algo para lembrar as pessoas
de que seu lar é especial. Em Nova Iorque, você não precisa
se preocupar com isso. Vocês têm a Broadway e Wall Street,
e o Empire State Building e a Estátua da Liberdade. Mas, por
aqui, depois que tantos negócios fecharam, olhei em volta e
percebi que tudo o que nós tínhamos era uma lenda. E as
lendas... bem, são apenas relíquias do passado, e uma cidade
precisa de mais do que isso para sobreviver. E isso é tudo o
que eu estava tentando fazer, procurando um meio de man-
ter esta cidade viva, e então você apareceu.
Jeremy desviou o olhar para longe, pensando nas fachadas
de lojas fechadas com tapumes que tinha visto quando
chegara, lembrando-se do comentário de Lexie a respeito do
fechamento da fábrica têxtil e da mina de fósforo.
— Então veio aqui logo cedo para me apresentar o seu lado
da história?
— Não — Gherkin falou. — Eu vim aqui para lhe dizer que
tudo isso foi idéia minha. A assembléia da cidade não tem
nada a ver com isso, e nem as pessoas que vivem aqui.
Talvez eu tenha cometido um erro agindo dessa forma.
Talvez não concorde com o que fiz. Mas fiz o que achei que
seria bom para este lugar e para as pessoas que vivem aqui. E
tudo o que lhe peço é que, ao escrever sua história, você se
lembre de que não havia mais ninguém envolvido. Se quiser
me sacrificar, eu posso agüentar. E acho que meu pai
entenderia.
Sem esperar por uma resposta, Gherkin voltou para seu
carro, e rapidamente desapareceu em meio à neblina.
Enquanto o amanhecer tingia o céu com um cinza-escuro e
Jeremy ajudava Alvin a carregar as últimas peças de
equipamento, Lexie apareceu.
Quando saiu do carro, parecia praticamente a mesma de
quando a tinha visto pela primeira vez, os olhos violeta
impenetráveis mesmo quando seu olhar encontrou o dela.
Trazia nas mãos o diário de Gherkin. Por um momento os
dois se olharam como se não soubessem o que dizer.
Alvin, parado perto do porta-malas aberto, quebrou o
silêncio.
— Bom dia! — ele disse.
Ela forçou um sorriso. — Ei, Alvin.
— Você levantou cedo.
Ela deu de ombros, os olhos voltando na direção de Jeremy.
Alvin olhou de um para outro antes de virar para o outro
lado.
— Acho que vou dar uma última olhada no quarto — ele
falou, apesar de que ninguém parecia estar prestando muita
atenção.
Quando ele se afastou, Jeremy respirou profundamente. —
Eu não pensei que você fosse passar por aqui.
— Para ser franca, eu também não tinha muita certeza.
— Fico feliz por ter vindo — ele disse. A luz acinzentada
fazia com que se lembrasse do passeio na praia perto do
farol, e uma dor forte que o remoía por dentro o advertiu do
quanto a amava. Embora seu primeiro impulso fosse no
sentido de colocar um fim em tudo o que pudesse separá-
los, a postura rígida de Lexie manteve-o a distância.
Ela fez um gesto na direção do carro. — Pelo que vejo você
já arrumou tudo e está pronto para partir.
— Sim — ele falou. — Tudo arrumado.
— E terminou de filmar as luzes?
Ele hesitou, odiando aquela conversa banal. — Você
realmente veio até aqui para falar do meu trabalho ou para
ver se eu já tinha feito as malas?
— Não — ela disse. — Não é nada disso.
— Então, por que veio?
— Para me desculpar pela forma como o tratei ontem na
biblioteca. Eu não devia ter agido do modo como agi. Não
foi justo com você.
Ele esboçou um sorriso fraco. — Não se preocupe — ele
disse. — Eu vou superar. Também peço desculpas.
Ela estendeu a mão com o diário. — Eu lhe trouxe isto. Eu
não sabia se ia querer.
— Eu pensei que você não quisesse que eu o usasse.
— Eu não quero.
— Então por que me oferecer?
— Porque eu devia ter lhe contado sobre o que está escrito
no diário e não quero que você pense que há alguém
envolvido em alguma espécie de acobertamento. Posso
entender por que você pode ter pensado que a cidade estava
armando alguma coisa, e isto é uma oferenda de paz. Mas
posso lhe garantir que não havia nenhum grande esquema...
— Eu sei — Jeremy interrompeu. — O prefeito passou por
aqui agora há pouco.
Ela assentiu com a cabeça, abaixando os olhos antes de
encará-lo novamente. Nesse instante, achou que ela ia dizer
alguma coisa, mas o que quer que fosse, ela se conteve. —
Bem, acho que é isso — ela falou, enfiando as mãos nos
bolsos do casaco. — É melhor eu deixar você terminar de
arrumar suas coisas para poder ir embora. Eu nunca gostei de
despedidas longas.
— Então isto é uma despedida? — ele perguntou,
procurando sustentar seu olhar.
Ela parecia quase triste ao jogar a cabeça de lado. — Tem de
ser, não tem?
— Então, é assim. Você só passou por aqui para dizer que
acabou tudo? — ele passou os dedos agitados pelo cabelo,
franzindo a testa. — A minha opinião não conta nada?
Ela tinha a voz muito calma ao responder. — Nós já
discutimos tudo o que devia ser discutido, Jeremy. Eu não
vim aqui para brigar, e também não vim para deixar você
zangado. Vim apenas para me desculpar pela forma como o
tratei ontem. E porque eu não queria que você pensasse que
esta semana não significou nada para mim. Pois significou.
Suas palavras tiveram o efeito de golpes físicos, e ele
precisou se esforçar para falar. — Mas você pretende acabar
com tudo.
— Eu pretendo tratar a situação de maneira realista.
— E se eu dissesse que te amo.
Ela olhou para ele longamente antes de virar os olhos. —
Não diga isso. Ele deu um passo em sua direção. — Mas é
verdade — ele disse. — Eu te amo. Não posso evitar o que
sinto.
— Jeremy... por favor...
Ele foi se aproximando dela, sentindo que estava finalmente
derrubando as barreiras, sua coragem aumentando a cada
passo. — Eu quero fazer isto dar certo.
— Não podemos.
— É claro que podemos — ele disse, contornando o carro.
— Podemos dar um jeito.
— Não — ela disse, a voz ficando mais dura. Ela deu um
passo atrás.
— Por que não?
— Porque eu vou me casar com Rodney, entendeu?
Suas palavras o deixaram paralisado. — Do que é que você
está falando?
— Ontem à noite, depois do baile, ele passou em casa e
nós conversamos. Conversamos durante muito tempo. Ele é
honesto, trabalhador, ele me ama e está por aqui. Você não.
Ele a olhou fixamente, atônito com a notícia. — Eu não
acredito em você.
Ela também o encarou, o rosto impassível. — Pode acreditar
— ela falou.
Jeremy não conseguiu dizer mais uma palavra; então ela lhe
entregou o diário e fez um breve aceno com a mão em sinal
de despedida, depois começou a andar de costas olhando
para ele, como fizera no dia em que se conheceram no
cemitério.
— Adeus, Jeremy — ela disse, antes de se virar para entrar
no carro.
Ainda paralisado com o choque, Jeremy ouviu o barulho do
motor do carro sendo acionado, e a viu olhar por cima do
ombro enquanto dava a ré para sair. Ele correu e colocou as
mãos no capô, tentando pará-la. Mas quando o carro
começou a ir para a frente, deixou que seu dedos escorre-
gassem pela superfície lisa e finalmente deu um passo para
trás, enquanto o carro seguia para o caminho de cascalho.
Por um instante, Jeremy pensou ter visto o reflexo de
lágrimas nos olhos dela. Mas quando ela olhou para a frente,
teve certeza de que nunca mais a veria.
Ele sentiu vontade de gritar, mandar que parasse. Queria
dizer-lhe que ele poderia ficar, que queria ficar; que se ir
embora significasse perdê-la, então não valia a pena ir para
casa. Mas as palavras ficaram presas na garganta, e o
automóvel se afastou lentamente, sumindo na entrada de
carros.
Em meio à neblina, Jeremy continuou de pé, olhando
enquanto o carro se transformava numa sombra e apenas as
luzes da traseira ainda eram visíveis. Por fim, quando
desapareceu completamente, restou apenas o barulho do
motor, que também se perdeu na vegetação.


CAPÍTULO
VINTE
O resto do dia passou como se ele o estivesse assistindo com
os olhos de outra pessoa. Ferido e zangado, mal se lembrava
de ter seguido Alvin pela estrada até Raleigh. Mais de uma
vez ele olhou pelo espelho retrovisor, vendo o asfalto negro
que ia ficando para trás, observando os carros que vinham
na mesma direção, esperando que um deles fosse o de Lexie.
Ela havia deixado perfeitamente clara sua vontade de
terminar o relacionamento; mesmo assim, ele sentia
aumentar a adrenalina no sangue cada vez que via um carro
parecido com o dela, e até diminuía a velocidade para ver
melhor. Alvin, enquanto isso, ia aumentando a distância
entre eles. Jeremy sabia que devia prestar mais atenção à es-
trada diante do pára-brisa; porém, passou a maior parte do
tempo olhando para trás.
Depois de entregar o carro alugado, caminhou pelo terminal
do aeroporto até o portão de embarque. Ao passar pelas lojas
cheias de gente, desviando das pessoas que se interpunham
em seu caminho, voltou a pensar no motivo que teria levado
Lexie a querer desistir de tudo o que haviam vivido juntos.
No avião, seus pensamentos foram interrompidos quando
Alvin se sentou ao seu lado.
— Obrigado por ter dado um jeitinho para que eu sentasse do
seu lado — Alvin falou, sua voz derramando sarcasmo. Ele
guardou a mala no bagageiro acima deles.
— Ah?!
— Os lugares. Eu pensei que você iria avisar para reservarem
o lugar ao seu lado quando fizesse o check-in. Ainda bem
que eu perguntei quando fui pegar meu cartão de embarque.
Se não tivesse falado nada, iria sentar na última fileira.
— Desculpe — Jeremy disse. — Acho que esqueci.
— É, eu acho que sim. — Alvin se atirou no assento ao lado
de Jeremy e olhou para ele. — Você quer conversar a
respeito?
Jeremy hesitou. — Eu não sei se há alguma coisa sobre a
qual possamos conversar.
— Foi o que você falou da outra vez. Mas, pelo que sei, pode
ser bom para você. Você não tem acompanhado os
programas de entrevistas ultimamente? Não ouviu falar de
coisas como expressar seus sentimentos, expurgar as suas
culpas, coisas do tipo "procure e poderá encontrar"?
— Talvez mais tarde — ele resmungou.
— Faça como quiser — Alvin falou. — Se não quer
conversar, tudo bem. Vou aproveitar pra tirar uma soneca.
— Ele se inclinou no assento e fechou os olhos.
Jeremy ficou olhando pela janela, enquanto Alvin passou
praticamente toda a viagem dormindo.

Já dentro do táxi que pegara no Aeroporto de La Guardia,
Jeremy foi bombardeado com o barulho e o ritmo febril da
cidade: homens de negócios correndo com suas pastas, mães
puxando crianças pequenas enquanto tentavam equilibrar
sacolas de compras, o cheiro dos escapamentos dos carros,
buzinas, sirenes de polícia. Era perfeitamente normal, o
mundo no qual ele havia crescido e que conhecia bem; o
que o surpreendeu é que, ao olhar pela janela do carro,
tentando se adaptar à realidade da vida, ele pensou no
Greenleaf e no silêncio profundo que havia encontrado ali.
No prédio onde morava, sua caixa de correspondência estava
cheia de folhetos de propaganda e contas; pegou tudo e
subiu as escadas. Dentro do apartamento, as coisas
continuavam do jeito que deixara. Havia revistas espalhadas
pelo chão da sala, seu escritório estava bagunçado como
sempre, e ainda havia três garrafas de Heineken na geladeira.
Depois de colocar a mala no quarto, ele abriu uma garrafa de
cerveja e levou o computador e a mochila até a mesa.
Estava com todas as informações que havia reunido nos
últimos dias: suas anotações e cópias de artigos, a câmera
digital com as fotos que havia tirado do cemitério, o mapa e
o diário. Quando começou a tirar as coisas da mochila, um
conjunto de cartões-postais caiu sobre a mesa, e levou algum
tempo para que ele se lembrasse de que os havia adquirido
em seu primeiro dia na cidade. O primeiro cartão era uma
vista da cidade a partir do rio. Retirando o plástico, ele
começou a examiná-los, um por um. Encontrou cartões que
mostravam a prefeitura da cidade, uma vista enevoada de
uma garça azul, em pé nos bancos de areia de Boone Creek,
e barcos se reunindo em uma tarde festiva. Na metade do
pacote, ele parou diante de uma imagem da biblioteca.
Ele se sentou, imóvel. Pensou em Lexie e, mais uma vez,
percebeu o quanto a amava.
Mas isso tudo havia acabado, ele lembrou a si mesmo, e
continuou a remexer nos cartões-postais. Viu uma fotografia
do Herbs estranhamente granulada e outra da cidade como
era vista de Riker's Hill. O último cartão-postal era uma foto
da área central da cidade de Boone Creek, e aí ele parou de
novo.
O cartão-postal, uma reprodução de uma antiga foto preto-e-
branco, exibia a imagem da cidade por volta de 1950. No
primeiro plano, estava o teatro, com freqüentadores muito
bem vestidos esperando na fila perto da bilheteria; ao fundo,
havia uma árvore de Natal decorada na pequena área verde
junto à avenida principal. Nas calçadas, podiam ser vistos
casais observando as janelas decoradas com luzes e
guirlandas, ou caminhando de mãos dadas. Estudando a
imagem, descobriu-se imaginando como seria a celebração
das festas em Boone Creek cinqüenta anos atrás. No lugar de
fachadas cobertas com tapumes, ele viu calçadas ocupadas
por mulheres usando estolas e homens de chapéu, com
crianças apontando para um pingente feito de gelo,
pendurado em um poste de luz.
Enquanto olhava, Jeremy começou a pensar no prefeito
Gherkin. O cartão-postal retratava não apenas o estilo de
vida de Boone Creek meio século atrás, mas também a vida
que Gherkin esperava que a cidade tivesse novamente. Seria
uma existencia parecida com a das pinturas de Norman
Rockwell, mas com um jeitinho sulista. Ele segurou o
cartão-postal na mão durante muito tempo, pensando em
Lexie e imaginando mais uma vez o que iria fazer com
aquela história.

A reunião com os produtores de televisão estava marcada
para terça-feira à tarde. Antes, Nate foi encontrar-se com
Jeremy em seu restaurante favorito, o Smith and Wollensky.
Nate era a animação em pessoa, emocionado por encontrar
Jeremy e aliviado por ele estar novamente na cidade, sob sua
atenta vigilância. Assim que se sentou, ele começou a falar
das imagens que Alvin havia feito, descrevendo-as como
fantásticas, como "aquela casa mal-assombrada de
Amityville, mas de verdade", e garantindo que os executivos
da televisão iriam adorar. Na maior parte do tempo, Jeremy
ficou em silêncio, ouvindo enquanto Nate tagarelava. Mas
quando viu uma mulher de cabelos escuros saindo do
restaurante, o comprimento do cabelo exatamente igual ao
de Lexie, sentiu um nó na garganta e de repente se
desculpou e disse que precisava ir ao banheiro.
Quando voltou, Nate estava analisando o menu. Jeremy
colocou adoçante no chá gelado que havia pedido. Ele
também passou os olhos pelo menu e disse a Nate que estava
pensando em pedir o peixe-espada. Nate ergueu os olhos.
— Mas este é um restaurante especializado em grelhados
— Nate protestou.
— Eu sei. Mas estou com vontade de comer alguma coisa
mais leve. Nate colocou a mão instintivamente no meio de
seu peito, enquanto
pensava se devia fazer a mesma coisa. Por fim, franziu a
testa ao colocar o menu de lado. — Acho que vou pedir
mesmo o bife de tira — ele disse. — Passei a manhã inteira
pensando em comer um. Mas onde é que nós estávamos?
— A reunião — Jeremy lembrou, e Nate se inclinou para a
frente.
— Então não tem nenhum fantasma, certo? — Nate falou.
— Você disse ao telefone que tinha visto as luzes, mas tinha
uma explicação muito boa para elas.
— Não, não são fantasmas — Jeremy confirmou.
— Então o que é?
Jeremy pegou suas anotações e passou os minutos seguintes
contando a Nate tudo o que havia encontrado, começando
com a lenda e descrevendo em detalhes todo o processo da
descoberta. Até ele conseguia perceber a monotonia do seu
tom de voz. Enquanto escutava, Nate acenava
continuamente com a cabeça, mas quando Jeremy terminou
de falar, pôde ver as rugas de preocupação se formando na
testa de Nate.
— A fábrica de papel? — ele disse. — Eu estava esperando
alguma espécie de teste do governo ou algo parecido. Como
o teste de um novo avião militar ou coisa assim — ele fez
uma pausa. — E tem certeza de que não é um trem militar?
O pessoal do noticiário adora revelar qualquer coisa da área
militar. Programas de armas secretas, coisas do gênero. Ou
talvez você tenha ouvido alguma coisa que não consiga
explicar.
— Desculpe — Jeremy falou, a voz apática. — Trata-se
apenas da luz do trem que ricocheteia. Não havia rumor
algum.
Ao observar Nate, Jeremy conseguia ver os pensamentos em
movimento. Quando se tratava de avaliar as matérias, o
instinto de Nate, Jeremy já havia compreendido há muito
tempo, era muito melhor do que o de seus editores.
— Não é muita coisa — ele disse. — Você descobriu qual
das versões da lenda seria a verdadeira? Talvez se pudesse
fazer alguma coisa sob o ângulo da questão racial.
Jeremy balançou a cabeça. — Eu não tive condições de
confirmar nem mesmo a existência de Hettie Doubilet.
Tirando essas lendas, não encontrei qualquer registro a
respeito dela em qualquer documento oficial. E Watts
Landing acabou faz tempo.
— Olhe, eu não quero bancar o chato, mas você precisa
dar uma realçada na mercadoria, se quer mesmo conseguir
esse trabalho. Se você não mostrar algum entusiasmo, eles
também não vão ficar muito animados. Estou certo ou estou
certo? É claro que eu estou certo. Mas vamos lá, seja
honesto comigo. Você descobriu mais alguma coisa, não
descobriu?
— Do que é que você está falando?
— Alvin — Nate falou. — Quando ele passou para deixar
as fitas, eu lhe perguntei a respeito dessa história, só para
sentir a opinião dele, e ele falou que você havia descoberto
mais alguma coisa e que era interessante.
A expressão de Jeremy não se alterou. — Ele disse isso?
— Palavras dele, não minhas — Nate falou, parecendo
satisfeito consigo mesmo. — Mas ele não me disse o que era.
Ele falou que só você poderia contar. O que deve significar
que é importante.
Olhando para Nate, ele quase conseguia sentir o diário
fazendo um buraco através do tecido da mochila. Sobre a
mesa, Nate brincava com seu garfo, virando-o para cima e
para baixo, esperando.
— Muito bem — Jeremy começou, sabendo que seu tempo
para tomar uma decisão tinha finalmente acabado.
Como ele tivesse parado de falar, Nate se inclinou para a
frente. — Então?

Naquela noite, depois de terminada a reunião, Jeremy se
sentou sozinho em seu apartamento, observando
distraidamente o mundo lá fora. Tinha começado a nevar, e
os flocos de neve formavam uma massa hipnótica, que
girava sob o brilho das luzes da rua.
A reunião havia começado bem; Nate instigara os
produtores de tal forma que eles ficaram paralisados com as
imagens que viram. Nate havia feito o melhor que podia.
Depois disso, Jeremy lhes falou da lenda, observando seu
interesse crescente enquanto falava de Hettie Doubilet, e da
maneira cuidadosa com que conduzira a investigação. Ele
intercalou a história de Boone Creek com os outros
trabalhos investigativos envolvendo o mistério, e mais de
uma vez reparou que os executivos se entreolhavam,
certamente tentando imaginar como iriam encaixá-lo no
programa.
Mas quando se sentou sozinho, mais tarde naquela noite,
com o diário no colo, ele sabia que não iria trabalhar com
eles. Sua matéria — o mistério do cemitério de Boone Creek
— estava mais para um romance excitante com final fraco.
A solução era muito simples, muito conveniente, e ele
sentiu o desapontamento deles no momento em que se
despediram. Nate havia prometido manter contato, assim
como eles, mas Jeremy sabia que não haveria mais
telefonema algum.
Quanto ao diário, ele não contaria a ninguém, como não
tinha contado para Nate antes.
Mais tarde, fez um telefonema para o prefeito Gherkin. A
proposta de Jeremy era simples: Boone Creek não iria mais
prometer aos visitantes que participassem do Passeio às
Casas Históricas uma chance de ver os fantasmas no
cemitério. A palavra "mal-assombrado" seria retirada do
folheto, assim como qualquer afirmação de que as luzes
tinham qualquer relação com fenômenos sobrenaturais. Em
vez disso, a história da lenda seria contada na íntegra, e os
visitantes poderiam ser informados de que teriam a chance
de testemunhar algo espetacular. Embora alguns turistas
pudessem achar que as luzes tinham alguma ligação com os
fantasmas da lenda, os voluntários que estivessem servindo
de guias no passeio deveriam ser instruídos a jamais fazer tal
sugestão. Finalmente, Jeremy pediu ao prefeito que retirasse
as camisetas e as canecas da loja de departamentos do centro
da cidade.
Em troca, Jeremy prometeu que jamais iria falar qualquer
coisa a respeito do Cemitério de Cedar Creek na televisão,
em sua coluna, ou em qualquer artigo. Ele não revelaria o
plano do prefeito para transformar a cidade em uma versão
fantasmagórica de Roswell, no Novo México. E também não
contaria a ninguém da cidade que o prefeito sabia de toda a
verdade desde o começo.
O prefeito Gherkin aceitou a proposta. Depois de desligar,
Jeremy telefonou para Alvin, que jurou guardar segredo.


CAPÍTULO
VINTE E UM

Nos dias seguintes à malfadada reunião com os produtores,
Jeremy concentrou sua atenção na tentativa de retomar sua
rotina anterior. Ele foi conversar com seu editor da
Scientific American. Consciente de que estava atrasado em
relação ao prazo para entregar alguma matéria para a revista,
e lembrando vagamente o que Nate havia sugerido, ele
concordou em colocar em sua coluna um texto sobre os
possíveis perigos de uma dieta baseada no baixo consumo de
carboidratos. Passou horas na internet, pesquisando em
inúmeros jornais, procurando por outras matérias que
pudessem ser de algum interesse. Ficou desapontado ao
saber que Clausen — com a ajuda de uma grande empresa da
área de publicidade, em Nova Iorque — havia conseguido
acalmar a tempestade causada pela participação de Jeremy
no Primetime e ainda estava negociando seu próprio
programa de televisão. A ironia da situação não escapou a
Jeremy, e ele passou o resto do dia lamentando a
ingenuidade dos crédulos.
Pouco a pouco, ele estava fazendo as coisas entrarem nos
eixos novamente. Ou, pelo menos, pensou que estivesse.
Embora ainda pensasse em Lexie com freqüência,
imaginando se ela estaria muito ocupada preparando seu
casamento com Rodney, fez o possível para afastar esses
pensamentos de sua cabeça. Eram dolorosos demais. Em vez
disso, procurou fazer um balanço da vida que havia vivido
antes de conhecer Lexie. Na sexta-feira à noite, foi a uma
boate. Não deu muito certo. Em vez de se enturmar e tentar
atrair a atenção da mulher que estava mais próxima, ele
sentou no balcão do bar e passou a maior parte da noite
acariciando uma única garrafa de cerveja, saindo muito antes
do que sairia normalmente. No dia seguinte, foi visitar sua
família no Queens, mas ao ver seus irmãos com as mulheres,
brincando com as crianças, voltou a desejar uma coisa que
para ele seria impossível.
Na segunda de manhã, quando se aproximava outra
tempestade de inverno, ele se convenceu de que realmente
estava tudo acabado. Ela não havia telefonado e nem ele. Às
vezes, tinha a impressão de que aqueles poucos dias passados
com Lexie não tinham sido outra coisa senão uma ilusão,
como a que havia investigado. Não podia ter sido real, dizia a
si mesmo, mas ao se sentar diante da mesa, via-se
remexendo nos cartões-postais novamente, até finalmente
pregar na parede o da biblioteca.
Ele pediu o almoço do restaurante chinês que ficava perto
de sua casa pela terceira vez naquela semana, e então se
encostou na cadeira, pensando nas escolhas que havia feito.
Por um instante, imaginou se Lexie também estaria
comendo naquela mesma hora, mas esse pensamento foi
interrompido pelo barulho do interfone.
Ele pegou a carteira e andou até a porta. Em meio à estática
do aparelho, ouviu uma voz feminina.
-— A porta está aberta. Pode subir.
Ele remexeu as notas, pegou uma de vinte, e virou a
maçaneta no momento em que ouviu a batida.
— Hoje foi rápido — ele disse. — Normalmente,
demora...
Sua voz ficou no ar quando abriu a porta e viu quem estava
diante dele.
No silêncio, ele e sua visitante ficaram se olhando, até que
Dóris abriu finalmente um sorriso.
— Surpresa!!! — ela disse.
Ele piscou. — Dóris?
Ela sacudiu a neve de seus sapatos. — Está caindo uma
nevasca lá fora — ela falou —, e está tão frio que eu não
tinha certeza se iria conseguir chegar até aqui. O táxi veio
escorregando por todo o caminho.
Ele continuou olhando para ela, tentando entender sua visita
repentina.
Ela tirou a bolsa do ombro e olhou-o nos olhos. — Você vai
me deixar aqui, em pé no corredor, ou vai me convidar a
entrar?
— Sim... claro. Por favor... — ele falou, indicando-lhe que
entrasse.
Dóris passou por ele e colocou sua bolsa sobre a mesinha de
canto que estava junto da porta. Examinou o apartamento
com os olhos e tirou o casaco. — É agradável — ela disse,
caminhando pela sala. — É maior do que eu imaginava. Mas
essas escadas me mataram. Você realmente precisa mandar
consertar o elevador.
— É... eu sei.
Ela parou junto à janela. — Mas a cidade é bonita, mesmo
com a tempestade. E tão... movimentada. Posso entender
porque algumas pessoas gostariam de viver aqui.
— O que você está fazendo aqui?
— Vim falar com você, é claro.
— A respeito de Lexie?
Ela não respondeu imediatamente. Em vez disso, suspirou, e
então falou calmamente. — Entre outras coisas. — Ao
perceber um vinco se formar na testa de Jeremy, ela sacudiu
os ombros. — Por acaso você teria um chá? Ainda estou
com um pouco de frio.
— Mas...
— Temos muito o que conversar — ela disse, a voz
mantendo-se firme. — Sei que você tem muitas perguntas,
mas vai ser uma conversa longa. Por isso, que tal um chá?
Jeremy foi até a pequena cozinha e esquentou uma xícara de
água no micro-ondas. Depois de colocar um saquinho de
chá, levou a xícara para a sala, onde encontrou Dóris sentada
no sofá. Ele lhe deu a xícara, e ela tomou um gole quase que
imediatamente.
— Desculpe por não ter telefonado. Sei que deveria ter feito
isso. Você deve estar assustado. Mas eu queria falar com
você pessoalmente.
— Como você soube onde me encontrar?
— Falei com seu amigo Alvin. Ele me disse.
— Você falou com Alvin?
— Ontem — ela disse. — Ele deixou o número do telefone
com Rachel, por isso telefonei para ele, e ele foi muito gentil
me fornecendo seu endereço. Gostaria de ter tido a
oportunidade de conhecê-lo quando esteve em Boone
Creek. Ele me pareceu um perfeito cavalheiro.
Jeremy sentiu que a conversa trivial era sinal de muito
nervosismo, por isso não disse nada. Sabia que ela estava
apenas tentando achar as palavras para dizer o que quer que
tivesse para dizer.
O interfone tocou novamente e Dóris olhou para a porta. —
É meu almoço — ele disse, aborrecido com a interrupção.
— Espere só um minuto, está bem?
Ele se levantou, atendeu o interfone e apertou o botão para
abrir a porta; enquanto esperava, viu que Dóris passava a
mão pela blusa para ficar mais arrumada. Um minuto depois,
ela repetiu o gesto, e por algum motivo o fato de ela estar
nervosa ajudou-o a controlar seu próprio nervosismo. Ele
respirou profundamente e saiu para o corredor, encontrando
o entregador no alto da escada.
Jeremy voltou e estava prestes a colocar o pacote com a
comida no balcão da cozinha, quando ouviu a voz de Dóris
às suas costas.
— O que você pediu?
— Carne com brócolis e arroz com carne de porco frita.
— O cheiro é bom.
O jeito como ela disse aquilo, com toda a certeza, foi o que
fez com que ele sorrisse. — Que tal se eu preparasse dois
pratos para nós comermos?
— Eu não quero tirar sua comida.
— Aqui tem bastante para nós dois — ele disse,
alcançando dois pratos. — Além disso, não foi você quem
me disse que gostava de conversar diante de uma boa
refeição?
Ele dividiu a comida, depois a trouxe para a mesa; Dóris
sentou-se perto dele.
Mais uma vez, ele decidiu que deveria deixá-la falar
primeiro, e eles comeram em silêncio durante alguns
minutos.
— Isso está delicioso — ela disse finalmente. — Eu não
comi nada de manhã, e acho que não percebi o quanto
estava com fome. Foi uma viagem e tanto para chegar até
aqui. Tive de sair quando amanhecia e meu vôo atrasou. O
tempo segurou todos os vôos, e eu cheguei a pensar que
nunca sairia de lá. Eu também estava nervosa. Foi a primeira
vez na vida que andei de avião.
— Sério?
— Nunca tive motivo para isso. Lexie me pediu para vir
visitá-la quando morou aqui, mas o meu marido não estava
bem de saúde e nunca tive muita vontade de fazer isso. E aí
ela voltou. Ela estava um trapo. Eu sei que você deve achar
que ela é forte e durona, mas isso é exatamente o que ela
quer que as pessoas pensem. No fundo, ela é como todo
mundo, e ficou muito abalada com o que aconteceu com
Avery. — Dóris hesitou. — Ela lhe falou a respeito dele, não
falou?
— Sim.
— Ela sofreu em silêncio, manteve a fachada de forte, mas
eu sei o quanto ficou abalada. Não havia nada que eu
pudesse fazer por ela. Ela se manteve ocupada para
esconder, andando de um lado para outro, conversando com
todo mundo e tentando garantir que tivessem a impressão
de que ela estava bem. Você não imagina o quanto eu me
senti impotente.
— Por que está me contando isso?
— Porque ela está fazendo a mesma coisa agora.
Jeremy mexeu na comida com o garfo. — Não fui eu quem
terminou tudo, Dóris.
— Eu sei disso também.
— Então por que conversar comigo?
— Lexie não me ouve.
Apesar da tensão, Jeremy riu. — Acho que isso significa que
você me acha um galinha morta.
— Não — ela disse. — Mas o que espero é que você não seja
tão teimoso quanto ela.
— Mesmo que eu estivesse disposto a tentar de novo, ainda
depende dela.
Dóris o olhou atentamente. — Você realmente acredita
nisso?
— Eu tentei falar com ela. Eu disse que queria encontrar
um modo de fazer nosso relacionamento dar certo.
Em vez de responder a esse comentário, Dóris perguntou:
— Você já foi casado, não foi?
— Muito tempo atrás. Lexie lhe contou isso?
— Não — ela disse. — Eu sei disso desde a primeira vez
que conversamos.
— Habilidades mediúnicas de novo.
— Não, não é nada disso. Tem mais a ver com a maneira
como você interage com as mulheres. Você demonstra um
tipo de confiança que muitas mulheres acham atraente. Ao
mesmo tempo, tive a sensação de que você entende o que as
mulheres querem, mas por algum motivo você não quer se
entregar completamente.
— E o que é que isso tem a ver com a nossa conversa?
— As mulheres gostam do conto de fadas. Nem todas as
mulheres, é claro, mas a maioria das mulheres cresce
sonhando com o tipo de homem que arriscaria tudo por elas,
mesmo sabendo que poderia se machucar. — Ela fez uma
pausa. — Coisas como a que você fez quando foi atrás de
Lexie na praia. Foi por isso que ela se apaixonou por você.
— Ela não está apaixonada por mim.
— Sim, ela está.
Jeremy abriu a boca para negar, mas não conseguiu. Em vez
disso, sacudiu a cabeça. — Isso não importa mais, de
qualquer forma. Ela vai casar com Rodney.
Dóris o encarou. — Não, não vai. Mas antes que pense que
esse foi o jeito que ela encontrou para afastá-lo, precisa saber
que ela só disse isso porque achou que assim não ficaria
rolando na cama acordada todas as noites, pensando por que
você nunca voltou para ela, caso realmente tivesse ido
embora. — Ela parou de novo, deixando que ele assimilasse
aquilo. — Além disso, você não acreditou mesmo nessa
história, acreditou?
A maneira de Dóris falar lembrou-o de qual tinha sido sua
primeira reação, quando Lexie lhe falara pela primeira vez a
respeito de Rodney. Não, ele compreendeu subitamente, ele
não havia acreditado.
Dóris esticou o braço por cima da mesa e pegou sua mão.
— Você é um bom homem, Jeremy. E merecia saber a
verdade, foi por isso que vim até aqui.
Ela se levantou. — Preciso pegar o avião. Se não voltar esta
noite, Lexie vai saber que aconteceu alguma coisa. Eu
prefiro que ela não saiba que eu vim até aqui.
— É uma viagem e tanto. Você podia simplesmente ter
telefonado.
— Eu sei. Mas precisava ver seu rosto.
— Por quê?
— Queria saber se você também estava apaixonado por ela.
— Ela deu um tapinha com a mão no ombro dele antes de
voltar para a sala de estar, onde pegou sua bolsa.


— Dóris? —Jeremy chamou.
Ela se virou. — Sim?
— Você encontrou a resposta que esperava encontrar?
Ela sorriu. — A verdadeira questão é se você encontrou.



CAPÍTULO
VINTE E DOIS

Jeremy ficou andando pela sala. Precisava pensar, avaliar
suas opções, para saber o que fazer.
Passou a mão pelo cabelo antes de sacudir a cabeça. Não
havia tempo para a indecisão. Não agora, sabendo o que
sabia. Precisava voltar. Pegar o primeiro avião e ir ao
encontro dela novamente. Falar com ela, tentar convencê-la
de que nunca havia dito algo tão sério em toda a sua vida,
como quando disse que a amava. Dizer-lhe que não
conseguia imaginar a vida sem ela. Dizer-lhe que faria o que
fosse preciso para que eles pudessem ficar juntos.
Antes mesmo que Dóris tivesse feito sinal para um táxi ao
chegar na rua, ele estava pegando no telefone e ligando para
a companhia aérea.
Foi deixado na espera durante o que pareceu uma
eternidade, ficando mais irritado a cada minuto que passava,
até finalmente conseguir falar com um atendente.
O último vôo para Raleigh iria partir em uma hora e meia.
Mesmo com tempo bom, só a viagem de táxi tomaria pelo
menos meia hora desse tempo, mas ou pegava esse vôo ou
teria de esperar até o dia seguinte.
Ele tinha de andar depressa. Pegando uma mochila no
closet, colocou duas calças jeans, algumas camisetas, meias e
cuecas. Vestiu sua jaqueta e enfiou o celular no bolso. Pegou
o carregador que estava em cima da mesa. Laptop? Não, não
iria precisar dele. Que mais?
Ah, sim. Correu para o banheiro e conferiu se a nécessaire
tinha tudo o que precisava. Lembrou do barbeador e da
escova de dentes. Apagou as luzes, desligou o computador e
pegou sua carteira. Deu uma examinada e verificou que
tinha dinheiro suficiente para chegar até o aeroporto — era
o que bastava, por enquanto. Com o canto do olho, viu o
diário de Owen Gherkin meio escondido embaixo de uma
pilha de papéis. Enfiou o diário e a nécessaire na mochila,
tentou pensar se precisava de mais alguma coisa, mas
desistiu. Não tinha tempo para isso. Pegou as chaves na mesa
de canto perto da porta, deu uma última olhada em volta,
então trancou a porta e desceu as escadas.
Fez sinal para um táxi, disse ao motorista que estava com
pressa, e sentou no banco de trás, suspirando
profundamente, esperando que acontecesse o melhor. Dóris
estava certa: por causa da neve, o trânsito estava péssimo, e
quando pararam sobre a ponte que cruza o East River, ele
praguejou baixinho. Para facilitar a passagem pela segurança
do aeroporto, tirou o cinto e guardou-o na mochila, junto
com suas chaves. O motorista olhou-o pelo espelho
retrovisor. Sua expressão era de tédio, e embora dirigisse
com rapidez, não demonstrava qualquer noção de urgência.
Jeremy mordeu a língua, sabia que não adiantava nada irritá-
lo.
Os minutos passavam. A neve, que havia parado
temporariamente, voltou a cair, diminuindo ainda mais a
visibilidade. Quarenta e cinco minutos para o vôo.
O trânsito piorou de novo, e Jeremy soltou outro suspiro
enquanto olhava para o relógio novamente. Trinta minutos
para o vôo. Dez minutos depois, chegaram na saída que
levava para o aeroporto e seguiram até o terminal.
Finalmente.
No instante em que o táxi parou, ele abriu a porta e atirou
duas notas de vinte para o motorista. No interior do
terminal, parou por apenas um segundo diante do painel que
indicava as partidas, para descobrir o número do portão de
embarque. Pegou uma fila misericordiosamente pequena
para obter seu cartão eletrônico, e então se dirigiu à área de
segurança. Sentiu o coração desfalecer quando viu o
tamanho das filas, mas achou uma brecha quando abriram
uma nova. As pessoas que estavam esperando começaram a
mudar para a fila nova; na corrida, Jeremy passou por três
delas.
O avião iria fechar as portas em menos de dez minutos, e
depois de passar pela segurança, Jeremy começou a andar
mais depressa, e depois correu. Abrindo caminho entre as
pessoas, pegou a carteira de motorista e foi com ela na mão
contando os portões.
Respirava com dificuldade quando chegou no portão de
embarque e sentiu que estava começando a transpirar.
— Consegui? — ele perguntou, ofegante.
— Somente porque tivemos um pequeno atraso — disse a
mulher do balcão, digitando no teclado do computador. A
atendente que estava perto da porta olhou para ele.
Depois de pegar seu cartão, a atendente fechou a porta assim
que Jeremy começou a descer a rampa. Ele ainda estava
tentando recuperar o fôlego quando entrou no avião.
— Estaremos deixando o portão daqui a pouco. O senhor é
o último, por isso pode escolher qualquer lugar — disse a
comissária de bordo, ao abrir passagem para ele.
— Obrigado.
Ele seguiu pelo corredor, atônito por ter conseguido, e
notou um assento vazio perto de uma janela no meio do
corredor. Estava guardando sua mochila no maleiro quando
avistou Dóris, três fileiras atrás dele.
Devolvendo-lhe o olhar, ela não disse nada; apenas sorriu.

O avião aterrissou em Raleigh às três e meia, e Jeremy
caminhou ao lado de Dóris pelo terminal. Perto da saída, ele
fez um sinal por cima do ombro.
— Preciso alugar um carro — ele falou.
— Terei o maior prazer em levá-lo — ela disse. — Estou
indo para aqueles lados.
Quando viu sua hesitação, ela sorriu. — E vou deixar que vá
dirigindo — ela disse.
Ele foi o tempo todo acima de oitenta, e com isso conseguiu
reduzir quarenta e cinco minutos da viagem de três horas;
estava anoitecendo quando chegaram nos arredores da
cidade. Com lembranças aleatórias de Lexie flutuando em
sua mente, ele não havia percebido a passagem do tempo, e
também não lembraria muita coisa do percurso. Ele tentou
pensar no que queria dizer e também imaginar o que ela
poderia responder, mas percebeu que não tinha idéia do que
poderia acontecer. Não importava. Mesmo que estivesse
voando só por voar, não conseguia imaginar-se fazendo
qualquer outra coisa.
As ruas de Boone Creek estavam tranqüilas quando eles
chegaram no centro da cidade. Dóris virou-se para ele.
— Você se importa de me deixar em casa?
Ele a olhou de relance, percebendo que mal haviam se
falado desde que haviam deixado o aeroporto. Com a mente
fixa em Lexie, ele nem havia percebido.
— Você não vai precisar do carro?
— Não até amanhã de manhã. Além disso, está muito frio
pra ficar andando a pé esta noite.
Seguindo as instruções de Dóris, Jeremy chegou na casa dela
e parou o carro. Diante da pequena casa pintada de branco,
reparou no jornal jogado na porta. A lua crescente aparecia
bem acima da linha do telhado, e, sob a pouca claridade, ele
deu com sua imagem no espelho retrovisor. Sabendo que
dali a poucos minutos iria encontrar-se com Lexie, passou a
mão pelos cabelos.
Dóris percebeu seu gesto de nervosismo e deu-lhe um
tapinha na perna. — Vai dar tudo certo — ela disse. —
Confie em mim.
Jeremy forçou um sorriso, tentando ocultar suas dúvidas. —
Algum conselho de última hora?
— Não — ela falou, mexendo a cabeça. — Além disso,
você já se apossou do que eu tinha para dar. Você está aqui,
não está?
Jeremy assentiu com a cabeça, e Dóris se inclinou no banco
para dar-lhe um beijo no rosto.
— Seja bem-vindo ao lar — ela sussurrou.

Jeremy manobrou o carro, cantando os pneus quando largou
em direção à biblioteca. Lexie havia dito que a biblioteca
ficava aberta para as pessoas que apareciam depois do
trabalho, não havia? Em uma de suas conversas? Sim, ele
pensou, tinha certeza que sim, só não conseguia se lembrar
quando. Tinha sido no dia em que se conheceram? No dia
seguinte? Ele suspirou, reconhecendo que a necessidade
compulsiva de relembrar a história deles era apenas uma
tentativa para acalmar os nervos. Deveria ter vindo? Ela
ficaria feliz em vê-lo? Toda a sua confiança ia evaporando à
medida que se aproximava da biblioteca.
O centro da cidade surgiu nitidamente à sua frente,
contrastando com as imagens indistintas, nebulosas, de que
se lembrava. Ele passou pelo Lukilu e viu meia dúzia de
carros estacionados na frente, viu também outro grupo de
carros perto da pizzaria. Um grupo de adolescentes matava o
tempo na esquina, e se a princípio achou que estivessem
fumando, logo percebeu que era apenas o ar quente da
respiração em contato com o ar frio.
Ele virou de novo; do outro lado do cruzamento, viu as
luzes da biblioteca brilhando nos dois andares. Estacionou o
carro e saiu para o frio da noite. Respirando profundamente,
caminhou a passos largos até a porta da frente e a abriu.
Não havia ninguém na recepção, então ele olhou pelas
portas de vidro que davam para o interior da área que ficava
no térreo. Nenhum sinal de Lexie entre os freqüentadores.
Ele passou novamente os olhos pela sala para ter certeza.
Imaginando que Lexie estivesse em seu escritório ou na sala
principal, ele correu pelo corredor e subiu as escadas,
olhando de novo ao redor, antes de se dirigir para o
escritório. De longe, percebeu que a porta estava fechada,
sem nenhuma luz saindo pela fresta de baixo. Ele foi
conferir, mas a porta estava trancada, então procurou nos
outros corredores enquanto seguia na direção da sala de
livros raros.
Trancada.
Ele andou em ziguezague pelo salão principal, caminhando
apressadamente, ignorando os olhares das pessoas que sem
dúvida o estavam reconhecendo, e depois desceu as escadas
correndo. Ao dirigir-se para a porta da frente, percebeu que
deveria ter verificado se o carro de Lexie estava por ali, e
então ficou pensando por que não estaria.
Nervosismo, respondeu uma voz dentro de sua cabeça.
Não importava. Se ela não estava ali, provavelmente estava
em casa.
Uma das voluntárias mais velhas apareceu carregando uma
porção de livros, e seus olhos brilharam quando o viram
aproximar-se.
— Sr. Marsh! — ela falou alto com a voz melodiosa. — Eu
não esperava vê-lo novamente! O que está fazendo por aqui?
— Estou procurando por Lexie.
— Ela saiu há mais ou menos uma hora. Acho que estava
indo para a casa de Dóris, para ver se estava tudo bem. Sei
que ela já havia telefonado, mas Dóris não estava atendendo.
Jeremy manteve sua expressão inalterada. — É mesmo?
— E Dóris não estava no Herbs, pelo que sei. Tentei dizer a
Lexie que Dóris podia ter saído para dar uma volta, mas você
sabe como Lexie fica preocupada. Parece uma mãezona. Às
vezes Dóris fica maluca, mas sabe que esse é seu jeito de
mostrar que se importa. — Ela fez uma pausa, percebendo,
subitamente, que Jeremy não havia dado qualquer
explicação para o fato de ter reaparecido. Mas antes que
pudesse dizer qualquer outra coisa, Jeremy falou.
— Escute, eu adoraria ficar e conversar um pouco, mas eu
realmente preciso falar com Lexie.
— Sobre aquela história de novo? Talvez eu possa ajudar.
Tenho a chave da sala de livros raros, se precisar.
— Não, não é preciso. Mas, obrigado.
Ele já havia passado por ela quando ouviu sua voz pelas
costas.
— Se ela voltar, quer que eu lhe diga que esteve aqui?
— Não — ele falou por cima do ombro. — É uma surpresa.
Ele tremeu quando saiu de novo no frio e correu para o
carro. Pegou a estrada principal, fez a curva no sentido dos
arredores da cidade, e observou o céu que estava ainda mais
escuro. Por cima das árvores, podia ver as estrelas, milhares
delas. Milhões. Por um instante, imaginou como seria vê-las
do alto de Riker's Hill.
Ele entrou na rua de Lexie, viu a casa, e sentiu um vazio ao
perceber que não havia luzes acesas no interior ou na
entrada de carro. Relutando em acreditar no que viam seus
olhos, passou pela casa lentamente, esperando estar
enganado.
Se não estava na biblioteca, se não estava em casa, onde
estaria?
Será que tinha passado por ele quando estava indo para a
casa de Dóris? Ele tentou pensar. Teria passado por alguém?
Não que lembrasse, mas realmente não tinha prestado
atenção. Estava certo, porém, de que teria reconhecido seu
carro, de qualquer forma.
Decidiu voltar até a casa de Dóris só para ter certeza, e —
cruzando a cidade em alta velocidade enquanto procurava o
carro dela — chegou à casinha branca.
Precisou apenas de uma olhada rápida para ver que Dóris já
tinha ido para a cama.
Mesmo assim, parou diante da casa, tentando imaginar para
onde Lexie poderia ter ido. A cidade não era tão grande e as
opções eram poucas. Ele pensou imediatamente no Herbs,
mas se lembrou de que não ficava aberto à noite. Não tinha
visto seu carro no Lukilu — ou em qualquer outro lugar da
cidade. Calculou que ela talvez estivesse fazendo alguma coi-
sa rotineira: compras na mercearia, devolvendo uma fita de
vídeo ou pegando a roupa na lavanderia... ou... ou...
E então ele compreendeu onde é que ela estava.

Jeremy agarrou o volante, procurando fortalecer-se para o
final de sua jornada. Sentia um aperto no peito e podia
perceber que sua respiração estava acelerada, igual ao que
havia sentido naquela tarde, quando ocupara seu lugar no
avião. Era difícil acreditar que havia começado o dia em
Nova Iorque pensando que nunca mais iria ver Lexie de
novo, e agora ali estava ele em Boone Creek, preparando-se
para fazer o que ele achava que fosse impossível. Ele dirigiu
pelas estradas escuras, ainda nervoso em relação à reação de
Lexie quando o visse.
O luar tingia o cemitério com uma cor quase azulada, e as
lápides pareciam brilhar como se estivessem sendo
iluminadas por uma luz fraca que vinha do interior. A cerca
de ferro batido dava um toque fantasmagórico ao cenário
etéreo. Quando Jeremy se aproximou da entrada do
cemitério, viu o carro de Lexie parado perto do portão.
Estacionou atrás dele. Desceu do carro de Dóris ouvindo o
barulho do motor desaquecendo. Folhas secas faziam
barulho sob seus pés e ele respirou profundamente. Colocou
a palma da mão sobre o capô do carro de Lexie e sentiu o
calor irradiando através de sua mão. Ela havia chegado há
pouco tempo.
Ele atravessou o portão e viu a magnólia, suas folhas pretas e
brilhantes, como se tivessem sido mergulhadas em óleo.
Pulou um galho e se lembrou da dificuldade que teve para
andar pelo cemitério naquela noite nebulosa com Lexie,
quando ele não conseguia enxergar absolutamente nada.
Quando já estava no meio do cemitério, ouviu o barulho de
uma coruja, escondida no meio das árvores.
Saiu do caminho principal e contornou uma cripta caindo
aos pedaços, caminhando lentamente para fazer o mínimo
de barulho, acompanhando a ligeira inclinação. Acima dele,
a lua brilhava no céu como se estivesse pregada em veludo
escuro. Ele pensou ter escutado um murmúrio; e quando
parou para ouvir, sentiu uma injeção de adrenalina acelerar o
batimento cardíaco. Ele tinha vindo para encontrá-la, para
encontrar a si mesmo, e seu corpo o estava preparando para
o que viria em seguida. Ele subiu pela pequena colina,
sabendo que os pais de Lexie estavam enterrados do outro
lado.
Já não era sem tempo. Iria ver Lexie num minuto e ela o
veria. Iriam acertar tudo de uma vez por todas, exatamente
ali onde tudo havia começado.
Lexie estava no lugar em que ele havia imaginado que
estaria, banhada por uma luz prateada. Seu rosto tinha uma
expressão aberta, quase melancólica, e seus olhos eram de
uma luminosa cor violeta. Estava preparada para enfrentar o
frio — um cachecol em volta do pescoço, luvas pretas que
faziam suas mãos parecerem apenas sombras.
Falava com suavidade, mas ele não conseguia entender suas
palavras. Enquanto estava ali observando, ela parou de
repente e ergueu o olhar. Por um momento que pareceu
interminável, seus olhares se encontraram.
Lexie parecia congelada, enquanto sustentava seu olhar.
Finalmente, desviou os olhos. Ela voltou a olhar para os
túmulos, e Jeremy percebeu que não tinha idéia do que ela
poderia estar pensando. Subitamente, ele sentiu que tinha
sido um erro vir até ali. Ela não o queria ali, ela não o queria
de modo algum. Sentiu um aperto na garganta, e estava
prestes a se virar quando percebeu que Lexie tinha um leve
sorriso no rosto.
— Você sabe que não devia encarar as pessoas desse jeito
— ela disse. — As mulheres gostam dos homens que sabem
ser sutis.
O alívio tomou conta de seu corpo, e ele sorriu ao dar um
passo para a frente. Quando chegou perto o bastante para
tocá-la, estendeu o braço e colocou a mão em suas costas.
Ela não se afastou; em vez disso, encostou-se nele. Dóris
estava certa.
Ele estava em casa.
— Não — ele sussurrou em seu cabelo —, as mulheres
gostam de homens que as sigam até o fim do mundo, ou até
Boone Creek, se for preciso.
Puxando-a mais para perto, ele levantou seu rosto e a beijou,
sabendo que nunca mais a deixaria.


EPÍLOGO

Jeremy e Lexie estavam sentados, abraçados debaixo de uma
coberta, olhando para a cidade, abaixo de onde estavam. Era
uma quinta-feira à noite, três dias depois do retorno de
Jeremy a Boone Creek. No meio das bruxuleantes luzes
brancas e amarelas da cidade, intercaladas ocasionalmente
por verdes e vermelhas, Jeremy podia ver a fumaça saindo
das chaminés. A água do rio corria preta como se fosse
carvão líquido, espelhando o céu. Além dele, as luzes da
fábrica de papel se espalhavam em todas as direções,
iluminando a ponte sobre a ferrovia.
Nos últimos dias, Lexie e ele haviam passado muito tempo
conversando. Ela se desculpou por ter mentido a respeito de
Rodney e confessou que sair dirigindo enquanto Jeremy
ficava parado na entrada de cascalho do Greenleaf tinha sido
uma das coisas mais difíceis que ela já havia feito. Ela
revelou o mistério da semana em que estiveram separados,
sentimento bem compreendido por Jeremy. De sua parte,
ele contou que Nate não havia ficado muito animado com
sua mudança, mas seu editor da Scientific American estava
disposto a permitir que ele enviasse seus trabalhos de Boone
Creek, desde que aparecesse em Nova Iorque regularmente.
Entretanto, Jeremy não contou que Dóris tinha ido visitá-lo
em Nova Iorque; em sua segunda noite na cidade, Lexie o
havia levado para jantar na casa de Dóris, e esta o tinha
puxado para o lado e lhe pedira para não contar nada.
— Eu não quero que Lexie fique pensando que eu me
intrometi na vida dela — Dóris disse, os olhos brilhando. —
Acredite ou não, ela acha que eu sou invasiva.
Às vezes, achava difícil de acreditar que realmente estava ali
com ela; por outro lado, era ainda mais difícil acreditar que
algum dia ele tivesse partido. Estar com Lexie parecia a coisa
mais natural do mundo, como se ela fosse o lar que ele
estivera procurando. Embora Lexie parecesse sentir a mesma
coisa, ela não deixou que ele ficasse em sua casa. — Eu não
gostaria de dar a essas pessoas motivo para qualquer fofoca.
— Mas ele até que se sentia razoavelmente confortável no
Greenleaf, mesmo que Jed ainda não tivesse dado um sorriso
sequer.
— Então você acha que é sério entre Rodney e Rachel? —
Jeremy perguntou.
— Parece que sim — Lexie falou. -— Eles têm passado muito
tempo juntos ultimamente. Ela parece iluminada cada vez
que ele aparece no Herbs, e sou capaz de jurar que ele fica
ruborizado. Acho que vão ser realmente bons um para o
outro.
— Eu ainda não acredito que você me disse que iria se
casar com ele. Ela encostou seu ombro no dele. — Eu não
quero voltar a falar disso.
Já pedi desculpas. E gostaria que não ficasse me lembrando
disso para o resto da vida; muito obrigada.
— Mas é uma história tão boa.
— Você acha isso porque fica parecendo que você é o cara
legal e eu sou a má da história.
— Eu fui um cara legal.
Ela o beijou no rosto. — E, você foi.
Ele a puxou para perto, observando uma estrela cadente que
cruzava o céu. Ficaram em silêncio durante algum tempo.
— Você vai estar muito ocupada amanhã? — ele perguntou.
— Depende — ela respondeu. — O que você está
planejando?
— Telefonei para a sra. Reynolds, e vou dar uma olhada
em algumas casas. Gostaria que você viesse junto. Num lugar
como este, não gostaria de ficar no meio da vizinhança
errada.
Ela o abraçou mais forte. — Eu adoraria ir junto.
— E eu também gostaria de levar você para Nova Iorque.
Algum dia nas próximas semanas. Minha mãe está insistindo
que precisa conhecer você.
— Eu também gostaria de conhecê-la. Além disso, sempre
gostei daquela cidade. Algumas das melhores pessoas que
conheci são de lá. — Jeremy olhou para cima. Pequenos
flocos de nuvens passavam flutuando diante da lua, e, no
horizonte, ele pôde ver que uma tempestade se aproximava.
Dentro de poucas horas certamente iria cair uma chuva, mas
aí Lexie e ele já estariam bebericando vinho na sala de estar,
escutando as gotas da chuva batendo no telhado.
Nesse momento, ela se virou para ele. — Obrigada por ter
voltado. Por se mudar para cá... por tudo.
— Eu não tive escolha. O amor faz coisas engraçadas com as
pessoas. Ela sorriu. — Eu também te amo, sabe?
— Sim, eu sei.
— O quê? Você não vai dizer?
— Tenho mesmo?
— Pode apostar que sim. E também use o tom certo. Tem
de dizer como se estivesse sentindo.
Ele sorriu, pensando se ela iria dirigir o seu "tom" para
sempre. — Eu te amo, Lexie.
O apito de um trem soou ao longe, e Jeremy viu um
pontinho de luz na paisagem escura. Se aquela fosse uma
noite com neblina, as luzes logo estariam aparecendo no
cemitério. Lexie parecia ter acompanhado seus
pensamentos.
— Então me diga, sr. Jornalista Científico, ainda duvida da
existência de milagres?
— Eu já lhe disse. Você é meu milagre.
Ela encostou a cabeça em seu ombro por um minuto, antes
de procurar sua mão. — Estou falando de milagres de
verdade. Quando acontece uma coisa que você jamais
acreditou que fosse possível.
— Não — ele disse. — Acho que existe sempre uma
explicação para quem realmente procurar bastante.
— Mesmo que um milagre estivesse para acontecer
conosco?
Sua voz era tranqüila, quase um sussurro, e ele olhou para
ela. Podia ver o reflexo das luzes da cidade brilhando em
seus olhos.
— Do que é que você está falando?
Ela respirou profundamente. — Dóris me confidenciou uma
notícia hoje de manhã.
Jeremy examinou seu rosto, incapaz de entender o que ela
estava dizendo, mesmo quando sua expressão mudou de
hesitante para animada e, depois, para esperançosa. Ela
continuava olhando para ele, esperando que ele dissesse
algo, e sua mente ainda se recusava a registrar o que ela
havia dito.
Havia a ciência e havia o inexplicável, e Jeremy passara a
vida tentando conciliar os dois. Ele lidava com a realidade,
zombava da magia e sentia pena dos crédulos. Mas ao olhar
para Lexie, tentando entender o que ela estava dizendo,
percebeu que sua velha sensação de certeza se desfazia.
Não, ele não conseguia explicar e, no futuro, jamais
conseguiria. Desafiava as leis da biologia, derrubava as
certezas sobre o homem que acreditava ser. Era
simplesmente impossível, mas quando ela pegou sua mão e a
colocou suavemente sobre sua barriga, ele acreditou, com
certeza súbita e eufórica, nas palavras que jamais pensou que
pudesse ouvir algum dia.
— Aqui está o nosso milagre — ela sussurrou. — É uma
menina.




De: déia
 

 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
O Milagre - Nicholas Spark
 
 
 
links ao final da mensagem
 
 
digitalização, formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
Sinopse:
 
Jeremy Marsh é um nova-iorquino típico e circula entre a elite da mídia. Especialista em desmistificar o sobrenatural em uma coluna regular na Scientific American, acaba de fazer sua primeira apresentação na TV americana. Ao receber uma carta da pequena cidade de Boone Creek, Carolina do Norte, relatando fenômenos com luzes fantasmagóricas no cemitério local, ele não resiste e decide investigar o caso pessoalmente. Nessa comunidade fechada, Lexie Darnell dirige a biblioteca da cidade, ocupando o lugar que já havia sido de sua mãe, antes de morrer em um acidente. Decepcionada com relações amorosas do passado, incluindo uma que a afastou de sua cidade natal, a única certeza que ela tem na vida é de que seu futuro está em Boone Creek, perto da avó que a criou quando ficou órfa.
Jeremy programa uma semana de trabalho na pequena cidade, já pensando em voltar rapidamente a Nova York. Mas assim que bota os olhos em Lexies, ente-se curioso e atraído por essa mulher de voz macia e beleza desconcertante. E, apesar de relutar, Lexie percebe que Jeremy começa a ocupar seus pensamentos com mais frequência do que gostaria de admitir.
Agora, Jeremy Marsh precisa fazer uma escolha difícil: voltar para a vida que conhece ou fazer algo que nunca fez antes - deixar-se levar pela fé? Falando dos riscos que devemos correr e dos caminhos ditados pelo coração, O Milagre fará com que você também acredite no amor.
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
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