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Romances Arqueológicos - David Gibbins

A CRUZADA DO OURO
DAVID GIBBINS

Tradução
Lea P. Zylberlicht

2006


Agradecimentos

Com agradecimento imenso ao meu agente, Luigi Bonimi,
da LBA, à minha editora, Harriet Evans, e a toda a equipe da
Headline. A Tessa Balshaw-Jones, Gaia Banks, Jenny
Bateman, Alison Bonomi, Sam Edenborough, Mary Esdaile,
Nicki Kennedy, Rebecca McEwan, Tony McGrath, Amanda
Preston, Rebecca Purtell, John Rush, Poppy Shirlaw e Ann
Verrinder Gibbins. Como no meu primeiro romance,
Atlantis, as ambientações deste livro estão baseadas em
experiências de primeira mão, e devo muito àqueles que
tornaram isto possível. Aos meus pais pelas muitas visitas à
catedral de Hereford quando eu era criança, e por me
acompanharem, anos depois, em uma viagem de estudos
memorável a Roma. Ao Instituto Britânico de Arqueologia
em Ankara por uma viagem de estudos que me permitiu o
exame do Chifre de Ouro em Istambul, e ao presidente do
Comitê para as Ciências e Tecnologia da OTAN por me
convidar para uma visita a Kiev. À tripulação do RV
Akademik Ioffe por me levar até os fiordes gelados da
Groenlândia, uma experiência verdadeiramente
inesquecível, e ao Parks Canada para a inauguração de
L'Anse aux Meadows. A Steve Aitken e Tom D'Entremont
pelos meus primeiros mergulhos sob o gelo, bem no início
de minha carreira como mergulhador, e ao meu irmão Alan
por mergulhar comigo no Iucatã e por sua habilidade
técnica. A Angie e Molly, com muito amor, por nossas
viagens para Stamford Bridge e para a ilha sagrada de lona, e
a LNG por ter estado lá também.

"Os espólios foram amontoados empilhas desordenadas; mas,
mais claramente visíveis, os mais destacados, eram os que
haviam sido capturados no Templo de Jerusalém. Estes
consistiam de uma mesa de ouro, muitos talentos, e um
candelabro igualmente em ouro, mas feito de uma forma
diferente daqueles que comumente usamos. Presa a um
pedestal havia uma haste central, da qual se estendiam
braços delgados, dispostos em forma de tridente, e uma
lamparina ornamentada se alojava na extremidade de cada
braço; destes havia sete, indicando o respeito que os judeus
tinham por esse número... As cerimônias triunfais tendo
sido concluídas e o império dos romanos estando
estabelecido em bases mais firmes, Vespasiano decidiu erigir
um Templo da Paz... Nesse santuário foram acumulados e
armazenados todos os objetos para a apreciação dos homens
que, outrora, tinham de viajar pelo mundo todo na ânsia de
examiná-los com os próprios olhos, uma vez que tais
relíquias encontravam-se em diferentes países. Aqui,
também, ele armazenou as baixelas de ouro do Templo
Judaico..."
Josefo, A Guerra dos Judeus,VII, 148-62


Prólogo

As duas águias douradas, vindas do oeste, sobrevoaram
majestosamente a cidade, e com suas batidas de asas lentas e
vigorosas pareciam estar voando resolutamente em direção
ao pódio. Sob a luz pastel da aurora suas sombras davam a
impressão de ondular e ampliar-se sobre os templos e
monumentos do Fórum, como duas freqüentadoras do
Hades que viessem assumir seu lugar de direito à mesa da
vitória. No último instante, as águias baixaram o vôo e
viraram para o norte ao longo da Via Sacra. O homem com a
coroa de louros, sozinho na praça, sentiu o roçar de suas
asas, viu os reflexos purpúreos que saíam de suas garras e as
mechas brilhantes onde a sua plumagem havia sido
pincelada de dourado. Elas eram o seu par premiado,
descendente de poderosas águias, que trouxera para Roma
depois de um outro triunfo, muitos anos antes, arrebatadas
de seus ninhos nos desolados cumes das montanhas nas
orlas setentrionais do império. Agora, enquanto ele as
observava se erguer majestosas sobre o centro da cidade,
suas asas agitavam-se como numa corrente ascendente
gerada pela emanação da concentração de pessoas que se
atropelavam de cada lado da Via Sacra, bem abaixo. No ápice
de seu vôo elas pareciam ficar imóveis, como se o próprio
Júpiter tivesse descido e as acolhesse em seu abraço. Em
seguida, com um grito rouco, elas arremeteram levemente
para cima e mergulharam velozmente com as asas fechadas,
precipitando-se sobre o Templo Capitolino, e sumiram de
vista em direção às legiões concentradas no Campo de
Marte.
No silêncio trêmulo que se seguiu, todos os olhares se
concentraram no pódio. O homem tirou o manto que lhe
cobria a cabeça, da maneira costumeira, e ergueu o braço
direito, com a palma da mão à mostra. O presságio tinha sido
favorável. O maior triunfo de todos os tempos podia
começar.
Quando o som monótono do rufar do tambor da procissão
começou a ecoar do Campo de Marte, um escravo subiu ao
pódio e estendeu a mão.
"Recém-saída da casa da moeda, princeps!"
O homem pegou a moeda e rapidamente a virou, impaciente
para não perder nada do espetáculo. Ergueu a moeda acima
da cabeça, de modo que ela ficou emoldurada pelo arco
triunfal do início da Via Sacra, o lugar onde a procissão iria
aparecer. Ele podia ver que a moeda era um denário de
prata, cunhado com os espólios de guerra trazidos do porto
fluvial em Óstia apenas um dia antes. Piscou e leu a inscrição
ao redor da beirada. IMP CAESAR VESPASIANUS AUG.
Imperador César Augusto Vespasiano, detentor de poder
tribunício, cônsul pela terceira vez, pontífice máximo. Ele
era imperador havia menos de um ano, e as palavras ainda
faziam seu coração estremecer. Viu a imagem no centro da
moeda e resmungou. Ela mostrava uma figura pesada, um
homem calvo, avançado em anos, com um queixo saliente e
o nariz aquilino, rugas ao redor dos olhos e da boca e vincos
na testa. Não era uma visão bonita, mas o seu murmúrio foi
de satisfação. Ele havia ordenado que seu retrato fosse
deliberadamente feito no antigo estilo da República Romana,
com imperfeições e tudo, em contraste com o de seu
ultrajante predecessor, Nero, cujas imagens em estilo grego
efeminado estavam sendo eliminadas em todo o império.
Vespasiano era vigoroso, corajoso e honrado, um homem
próximo da terra. Um romano de antigas maneiras.
Ele arremessou a moeda para cima e segurou-a no alto de
modo que os primeiros raios de sol atrás de si brilhassem na
prata. No centro mostrava-se uma mulher curvada,
chorando, o cabelo arrumado à maneira oriental. Ao lado
dela havia um legionário romano típico, idêntico àqueles
que se alinhavam na Via Sacra neste dia. Aos pés da mulher
estava a palavra que ele tinha mandado colocar em todas as
moedas, a palavra que tornava este dia um triunfo coroado.
IUDAEA.
Judéia capturada.
Naquele momento, a multidão, silenciada pelo vôo das
águias, explodiu num crescente e imenso alarido. O
insistente rufar dos tambores que vinha do Circo Máximo
repentinamente tornou-se um som estrondoso. Através do
arco emergiu um enorme elefante branco; o seu corpo
movia-se de lado a lado da Via quase alcançando as mãos dos
espectadores que procuravam tocá-lo. Montados no elefante
estavam dois escravos núbios, com seus braços musculosos
batendo em uníssono sobre tambores presos de cada lado do
animal. Imediatamente atrás vinham seis vestais virgens, os
cabelos presos em tranças, com suas vestes brancas
tremeluzentes como se fossem emissárias do próprio céu.
Em seguida vinha uma coorte da guarda pretoriana,
resplandecente com seus peitorais pretos e elmos
emplumados; eram gigantes em meio aos homens,
recrutados entre os mais admiráveis guerreiros de todo o
Império Romano. Depois o início de uma longa procissão de
homens e meninos, senadores e cavaleiros e membros da
própria família de Vespasiano, todos vestidos com togas
púrpuras entrelaçadas com fios de ouro. Entre eles, a curtos
intervalos, surgiam veículos puxados a cavalo com grandes
pilhas de riquezas fabulosas, sobre padiolas e pedestais, e
outras suspensas no alto por escravos de todos os cantos do
império.
Vespasiano observou enquanto esses veículos passavam
lentamente e cada nova maravilha despertava um suspiro de
admiração da multidão. Havia magníficas estátuas de deuses
em bronze revestido de ouro, suntuosos tesouros reais dos
reinos do Leste, escravas com os cabelos soltos usando
pesados colares de ouro da Gália e da Alemanha, montículos
de esmeraldas e de diamantes de além do Indus, tapeçarias
de seda brilhante da longínqua região chamada Thina. Todas
as maravilhas que anteriormente os homens tinham de
viajar para ver estavam presentes hoje em um único lugar,
esta cidade eterna.
Apenas Vespasiano sabia que muitos desses tesouros
estavam sendo vistos pela última vez. Ao lado dele no pódio
havia uma fina placa de mármore preparada por seus
arquitetos, sua superfície gravada com água-forte com um
intricado plano da cidade dominada por uma imensa
estrutura elíptica. Quando o último dos veículos passou,
Vespasiano olhou para além da procissão em direção à Casa
Dourada de Nero, a cabeça com coroa de flores do Colosso
monstruoso de Nero apenas visível acima dos topos dos
templos. Naquele local, Vespasiano construiria um vasto
anfiteatro, o maior que a cidade jamais vira, o primeiro dos
muitos projetos que planejara dar ao povo de Roma com os
espólios conquistados.
Em seguida, enfileirada, vinha uma extravagante procissão
de anões e deformados, caprichos que os deuses haviam
criado para o seu próprio divertimento, selecionados por
todo o império. Alguns eram carregados no alto em bandejas
de prata como leitões para uma festa, crianças com cabeças
em forma de bulbos, outras com membros atrofiados, e
ainda indivíduos com elefantíase. Havia até um monstro
com um único olho em sua testa, como se fosse um ciclope.
Em seguida vinha um anão maníaco e tagarela dirigindo um
carro para ser puxado por quatro cavalos, uma quadriga
imperial, só que esta era arrastada por bodes. O anão estava
vestido como um deus grego, com uma asa dourada
absurdamente pesada, e trazia um cartaz com as palavras
damna-tio memoriae, De Maldita Memória. Era uma paródia
grotesca do odiado Nero. Vespasiano deu uma palmada em
suas coxas e gargalhou com a multidão. Ele era um homem
do povo. Isso não era apenas um triunfo, mas, sim,
entretenimento em escala épica. E o melhor ainda estava
por vir.
Houve um intervalo na procissão e depois se ouviu um som
de trombetas. Através do arco chegaram dois cavaleiros
cavalgando lado a lado, ambos com adornos vermelhos e
usando uma coroa de folhas de louro feita com diademas,
exatamente como a do imperador. A multidão irrompeu em
estrondoso aplauso, e Vespasiano sentiu uma vaga de
nostalgia enquanto observava seus filhos Tito e Domiciano
receberem a aclamação. O espetáculo seguinte deixou a
multidão emudecida, e o próprio Vespasiano sentiu seu
queixo cair. Depois dos cavaleiros veio uma sucessão de
imensos estrados sobre rodas, cada um puxado por uma
parelha de touros brancos com grinaldas e transportando um
imenso cenário com a altura do arco. Cada cenário
representava um quadro vivo das cenas de guerra, com
prisioneiros e legionários desempenhando seus papéis. Um
mostrava uma zona rural devastada e seus ocupantes
dominados com as espadas. Outro mostrava as máquinas de
cerco quebrando um imenso muro, os ocupantes da cidade
defendendo-se valentemente de cima. Outros represen-
tavam cenas de total destruição. Soldados inimigos
aniquilados no campo de batalha. Famílias inteiras
cometendo suicídio em uma cidadela no alto de um rochedo
em vez de se render. Um grande templo derrubado e
destruído em uma conflagração, os sacerdotes trancados em
seu interior. Uma legião triunfante marchando por uma
cidade arruinada, prisioneiros algemados e carretas car-
regadas com o resultado das pilhagens levadas a reboque.
Cenas de desolação tão cruéis que até mesmo a multidão de
romanos sedenta de sangue curvou-se de vergonha, em
silêncio, e rugiu sua aprovação apenas depois que a última
cena tinha passado.
O triunfo estava rumando inexoravelmente para seu clímax.
Fm seguida vieram os prisioneiros, homens, mulheres e
crianças, centenas deles acorrentados juntos e encurralados
entre fileiras de legionários armados de lanças. Segundo uma
prática respeitada ao longo do tempo, eles estavam bem
vestidos com mantos púrpuras, uma maneira de ocultar seus
ferimentos e fazê-los parecer adversários mais formidáveis.
Vespasiano inclinou-se para frente e examinou-os
atentamente. Estes eram de raça diferente da dos bárbaros
selvagens que ele tinha trazido da Grã-Bretanha havia trinta
e cinco anos. Josefo, o informante judeu de Vespasiano, lhe
contara que seu povo acreditava que seu Deus viera com os
romanos para purificar o seu templo e destruir Jerusalém,
como punição pela corrupção. No entanto, esse parecia ser
um povo orgulhoso; mantinham a cabeça erguida, não havia
cativos subjugados pelo abatimento. No meio deles estava
Simão, o rabino líder, algemado entre dois legionários, um
belo homem de barba lutando para caminhar ereto e dando
a impressão de desdenhar seu destino. Quando chegou à
frente do pódio, ele ergueu seus olhos escuros para o impe-
rador, e por um segundo Vespasiano sentiu sua alma
trespassada, um momento fugidio de inquietação que ele
logo deixou de lado.
Um novo soar das trombetas assinalou o clímax da procissão.
Vespasiano desviou o olhar dos prisioneiros e fitou o arco.
Josefo tinha lhe contado sobre os espólios do templo e ele
estava ansioso para vê-los. Agora eles se aproximavam, não
empilhados de maneira extravagante em carretas como os
primeiros tesouros, mas carregados individualmente para
que pudessem ser vistos de modo apropriado. Primeiro
passou o cortinado sagrado que separava o santuário do resto
do templo. Depois vieram as vestes dos sumos sacerdotes,
pesados vestuários tingidos com a preciosa púrpura de Tiro e
enfeitados com jóias brilhantes. Em seguida, os pergaminhos
de seu antigo testamento, as leis sagradas que Josefo
chamava de Pentateuco. Após isso, passou uma longa
procissão de objetos rituais do santuário, cálices, travessas,
vasilhas de ablução, tudo inteiramente de ouro, e logo atrás
uma mesa de ouro carregada por quatro legionários, envolta
na fumaça dos incensários presos em cada lado. Quando o
pesado aroma de canela e cássia se espalhou pelo pódio,
Vespasiano se viu transportado para os seus primeiros dias
de soldado no Leste. Ao abrir os olhos, ele se deparou com
uma aparição que o deixou boquiaberto de admiração.
Através da fumaça que se prolongava na frente do arco
surgiu um tesouro jamais visto em Roma. Josefo o havia
descrito em detalhes, mas Vespasiano não esperava ver uma
tal quantidade de ouro, tão difícil de ser carregada que eram
necessários doze legionários para suportá-la sobre os
ombros. Quando eles emergiram da fumaça, o objeto
começou a ficar visível; era brilhante e da altura de um
homem, ou ainda maior. Elevando-se de uma base octogonal
dupla havia uma coluna afilada ornada, e, de cada lado,
braços estendiam-se simetricamente para cima até o mesmo
nível. Era como um enorme tridente de Netuno, deus dos
mares, só que aqui as extremidades dos dentes terminavam
em lamparinas decoradas, sete ao todo. Quando os
transportadores ultrapassaram o arco, surgiu um escravo
com uma tocha que usou para acender o incenso em cada
lamparina, enviando uma densa fumaça branca que caía
rapidamente sobre a multidão de cada lado da Via Sacra e a
envolvia como uma névoa do alvorecer.
Vespasiano sabia que esta era a menorá, o símbolo mais
sagrado do Templo Judaico. Josefo lhe havia contado que o
número sete tinha significado especial para o seu povo e
remontava aos dias de seus primeiros profetas. Ele dissera
que despojar o templo da menorá seria o mesmo que um
inimigo roubar a estátua da loba do Capitólio, uma
profanação inimaginável que arrasaria o coração de toda
Roma.
Uma súbita agitação à direita desviou o olhar da multidão da
menorá. Ela havia se saciado à vontade com o ouro e agora
estava gritando por sangue. Vespasiano sabia o que viria em
seguida, um ato transformado em ritual desde os dias de
Rómulo e Remo. Ao longe, ao pé da colina Capitolino, ele
podia ver onde a multidão havia se dividido em duas para
formar um amplo círculo ao redor de uma horrível abertura
no solo; a agitação da turba era contida por um
destacamento da guarda pretoriana, com as espadas
empunhadas. Ali haviam morrido Jugurta, inimigo da
República Romana, Vercingetórix, o gaulês, os comandantes
britânicos que o próprio Vespasiano havia arrastado até o
local. Ele podia ver onde os prisioneiros judeus estavam
formados ao redor da beirada do círculo, sem as correntes,
mas imóveis e em silêncio. No centro, o homem de barba
estava sendo atormentado como um cachorro, espancado e
aguilhoado pelos guardas que o cercavam como se fosse um
animal num anfiteatro. Ele fazia tudo o que podia para
permanecer ereto e digno, mas não ofereceu resistência
quando lhe arrancaram a túnica e um nó corrediço lhe foi
violentamente colocado ao redor do pescoço. A multidão
zombava enquanto ele era perfurado com as lanças e
empurrado para o buraco. Repentinamente, o homem caiu e
desapareceu de vista. Naquele momento, a cena foi
iluminada por um ofuscante feixe de luz, o sol havia se
erguido acima do Templo de Marte, o deus da guerra, atrás
de Vespasiano, e refletia de maneira deslumbrante a menorá
e os demais espólios de ouro reunidos na praça pública.
A multidão explodiu em vivas. Este era um novo bom
presságio.
Vespasiano lembrou-se dos olhos escuros e virou
impassivelmente o rosto para o oeste.
Vamos terminar com isso.
Durante alguns instantes houve um calmo silêncio, como
quando as águias tinham sobrevoado o Fórum, depois um
homem encapuzado emergiu de uma cova segurando algo
em suas mãos. A multidão rugiu. Agora era a vez dos outros
prisioneiros. Vespasiano olhava desapaixonadamente
enquanto as crianças eram separadas de seus pais e levadas
para a frente. Uma mulher desmaiou e foi segura pelos
cabelos e decapitada no local. Um homem correu atrás de
seu filho e foi pisoteado por um dos núbios até se trans-
formar em uma massa sangrenta. As crianças foram
arrastadas até a beira do buraco em grupos de três e tiveram
o pescoço cortado, seus pequenos corpos sendo em seguida
atirados no abismo. Depois as mulheres, e então os homens.
Estes foram decapitados, gladiadores com elmos que
ocultavam seus rostos desciam suas enormes espadas
curvadas em uníssono, cada golpe do aço acompanhado por
uma única batida de tambor, como se eles fossem remadores
em uma galera. Os corpos se empilhavam mis sobre os
outros. O aço subia e descia sob o clarão da luz do sol. A
multidão se agitava, saciando-se com sangue. Vespasiano
olhou de novo para a menorá. Os sete prisioneiros que ele
havia ordenado manter à parte estavam pendurados em
postes do outro lado do buraco, os corpos nus pintados de
carmesim. Eles iriam voltar para a sua casa no deserto da
Judeia e contar sobre a vingança de Roma, sobre o saque de
seus objetos mais sagrados que agora se encontravam nas
caves do vencedor. Enquanto Roma mantivesse o tesouro
do Templo eles nunca ousariam levantar-se contra ela.
Qualquer perturbação e sua luz orientadora seria extinta para
sempre. Essa era a maneira de agir de Roma.
Os executores haviam cumprido seu trabalho. Agora, o
triunfo podia começar de verdade, dias de festejos e jogos,
piedade e aclamações. Mesmo antes de a multidão expressar
sua exaltação, os touros que tinham arrastado as carroças
com os tesouros foram conduzidos ao Templo de Júpiter, e
já o altar e a estátua da loba estavam salpicados com o sangue
do primeiro sacrifício.
Vespasiano voltou-se para deixar o pódio, ainda girando a
moeda entre os dedos. Retirou dos ombros o manto púrpura
e entregou-o para ser carregado por dois escravos. Ele iria se
juntar a seus filhos Tito e Domiciano, a cavalo, na retaguarda
da procissão, dirigida por uma fileira de sacerdotes para o
altar inferior do Templo de Júpiter, onde se realizariam seus
rituais habituais de pontífice máximo. Antes de abandonar o
local, ele olhou mais uma vez para a placa de mármore e fez
um voto. A era de conquistas terminaria. Esta seria uma era
de reconstrução, um retorno da decadência para as virtudes
de seus ancestrais. Nesse mesmo local onde se encontrava
construiria um Templo de Paz, um templo maior do que
qualquer outro. Ali ele guardaria para sempre o tesouro do
povo vencido. Recordou novamente aqueles olhos escuros.
Ele faria tudo o que estava em seu poder para que a menorá
nunca mais desfilasse em triunfo pelas ruas de Roma.
Voltou-se para ir, depois hesitou e atirou a moeda longe, no
meio da multidão, observando-a descrever um grande arco
diante do tremeluzir do ouro e desaparecer para sempre
dentro da história.


1

"Acho que encontramos alguma coisa!"
Jack Howard levantou o olhar da mesa onde estava o mapa
para os minaretes de Istambul que se erguiam no horizonte,
depois desviou os olhos para baixo, de onde vinha um grito
excitado da coberta de proa. Ele pousou rapidamente o
compasso náutico que estivera usando e se dirigiu em passo
vacilante até a porta da ponte de comando para observar
melhor. Tinha estado nervoso durante toda a manhã,
aguardando sem muita esperança que este fosse o dia, e
agora seu coração disparava com a excitação. Quando viu o
que estava acontecendo, ele voltou e desceu as passarelas de
desembarque, com seus degraus de metal, para alcançar o
ancoradouro ao lado do navio. Segundos depois, estava
misturando-se com a tripulação. Seu colete azul-marinho de
pescador destacava-se em meio aos jalecos que ostentavam o
logotipo da IMU, a Universidade Marítima Internacional.
"Certo. O que conseguimos?"
Antes que o chefe da tripulação respondesse, um dos
mergulhadores veio à tona agitando a água transparente do
ancoradouro na proa do barco. Jack inclinou-se sobre o
parapeito da balaustrada para observar enquanto o
mergulhador retirava o respirador de boca e injetava uma
rajada de ar dentro de seu colete estabilizador.
"É veneziano", disse ele, ofegante. "Tenho certeza disso. Eu
vi as marcações."
O mergulhador calibrou o seu colete e desapareceu sob as
águas. Jack observou as bolhas que subiam do tubo de escape
e as de três outros mergulhadores que estavam dirigindo a
plataforma de elevação para a superfície. Era uma operação
potencialmente traiçoeira, com o Sea Venture mantendo
posição contra uma corrente de cinco nós na superfície.
Uma leve oscilação na corrente e os mergulhadores e sua
preciosa carga seriam atirados em uma das correntezas mais
fortes do mundo.
Jack estreitou os olhos quando a luz do sol brilhou nas
ondas, suas feições bronzeadas e severas se enrugaram
enquanto mantinha a atenção no lugar onde o mergulhador
havia desaparecido. Atrás dele, o maquinário na coberta de
proa zumbiu, produzindo o som de uma pancada ao entrar
em ação, e então o guindaste inclinou-se com o peso de sua
carga. Lenta e inexoravelmente, o cabo ergueu-se do leito
do mar trinta metros abaixo, gemendo de modo alarmante
enquanto a corrente se ajustava. A tripulação, apoiada no
parapeito, pareceu prender a respiração enquanto o cabo
rangia ao subir centímetro por centímetro. Por fim, as cor-
rentes esticadas, presas em cada canto da plataforma,
apareceram e Jack soube que estavam salvos. O Sea Venture
fora posicionado com o lado que dava para o ancoradouro ao
abrigo da correnteza, de frente para o litoral da antiga
cidade. E a elevação da plataforma estaria agora protegida
pelo grande calado do navio.
Das profundezas obscuras começou a surgir uma forma
oblonga. Jack sentiu a agulhada familiar da excitação, a
descarga de adrenalina que sempre experimentava nesses
momentos. Apesar de ter estado presente a alguns dos
maiores achados arqueológicos já realizados, ele nunca
deixava de sentir a palpitação que tomava conta de si a cada
nova descoberta. Até mesmo o objeto mais mundano podia
permitir uma perspectiva completamente nova sobre o
passado, proporcionar concreticidade a eventos significa-
tivos, apenas lembrados obscuramente através do mito e da
história. Enquanto observava atentamente, com as mãos
agarradas ao parapeito, os quatro mergulhadores emergiram
e os quatro cantos da plataforma se içaram das ondas.
Quando viu o que se encontrava no meio da plataforma, a
tripulação irrompeu em aplausos dissonantes. Os meses de
planejamento e os dias e dias de esforço tinham valido a
pena.
"Bingo." O chefe da tripulação sorriu para Jack. "Você tinha
razão de novo."
"Isso não teria sido possível sem o trabalho duro de vocês."
Era uma arma enorme, um canhão, aparentemente de
bronze, com pelo menos dois metros de comprimento. Sua
parte superior, já completamente livre da sujeira dos séculos,
brilhava como ouro. Jack pôde perceber de imediato que era
de um tipo primitivo, sua parte posterior cilíndrica ornada
afunilando-se em forma octogonal na parte dianteira. Ele
havia visto armas como esta, datadas do século XVI,
retiradas da nau almirante do rei Henrique VIII, Mary Rose,
em Portsmouth, e em naufrágios da armada espanhola. Mas
esta parecia mais velha, muito mais antiga. Depois que o
guindaste lentamente girou seu carregamento sobre o
parapeito e o depositou na coberta de proa, Jack foi até o
canhão para dar uma olhada mais de perto, enquanto a
tripulação amontoava-se ansiosamente atrás dele. Jack
ignorou os respingos de lama da mangueira que limpava o
canhão enquanto se abaixava e estendia as mãos com
reverência para tocá-lo.
"O Leão de São Marcos", disse ele. "É veneziano, certa-
mente."
Apontou para uma peça fundida em relevo perto da culatra
da arma. A imagem era inequívoca, um leão alado, olhando
de frente, envolto em uma frondosa grinalda. Subitamente,
Jack levantou a outra mão para ordenar ao tripulante que
fechasse o esguicho de modo a impedir o fluxo de água.
"Há uma marca da fundição", disse, excitado. "Em frente ao
orifício da mecha."
"É uma data." O chefe da tripulação inclinou-se sobre fack,
protegendo os olhos da luz forte e ofuscante. "Anno domini.
A seguir, números romanos. Quase não consigo distingui-
los, M, C, D..."
"1453", exclamou um dos outros.
"Meu Deus", disse Jack baixinho. "O Grande Cerco." Ele não
precisava explicar essa data; seu significado havia sido
repetido para a tripulação durante algumas curtas preleções.
1453. O ano da maior luta entre o Oriente e o Ocidente, um
grande conflito de gigantes na encruzilhada entre a Europa e
a Ásia. O ano do último e moribundo suspiro do Império
Romano, seu domínio restringido a esse promontório
desafiador desde seu apogeu mil e quinhentos anos atrás,
quando Roma controlava a maior parte do mundo
conhecido. Durante um momento Jack sentiu um frisson de
energia enquanto pressionava a mão contra o metal frio da
arma. Olhou ao longo da linha do cano do canhão para a
cidade, seus minaretes e cúpulas elevando-se como jóias
cravejadas de uma miragem. Ele estava tocando na própria
história, levado para o passado com uma proximidade que
nenhum livro jamais poderia proporcionar.
Depois de um momento, Jack ficou em pé e arqueou as
costas, sua altura se destacando de quase toda a população.
"Ela é uma peça de campo, uma arma de cerco, muito maior
do que as de retrocarga de combate transportadas nos barcos
daquele período. Em minha opinião, estamos olhando para
uma das armas usadas pelo sultão Mehmet II e pelos turcos
otomanos para destruir as defesas da cidade." Fez um gesto
em direção ao litoral, onde os vestígios dos muros destruídos
à beira do mar de Bizâncio eram pouco visíveis, sua altura
impressionante depois reduzida por um terremoto e o
progresso moderno. "Os otomanos teriam usado quaisquer
armas sobre as quais conseguissem pôr a mão. Essa havia
sido fundida em Veneza um pouco antes daquele ano,
depois, talvez, capturada por piratas em batalhas, em seguida
usada contra as forças de Bizâncio concentradas atrás
daqueles muros, inclusive contra os próprios venezianos. A
mídia turca vai gostar disso."
Quando a tripulação se dispersou e voltou ao seu trabalho,
Jack olhou de novo para o emblema na arma. Como os seus
antepassados na Inglaterra, capitães-de-mar e exploradores
que tocaram os pontos mais distantes do globo, os
venezianos eram aventureiros marítimos que espalharam
seus tentáculos através do mundo mediterrâneo, instalando
até uma colónia de mercadores ali em Constantinopla. O
mundo deles era feito de comércio e especulação e não de
imperialismo e conquistas. No entanto, eles foram
responsáveis por um dos maiores crimes na história da civi-
lização, um crime que havia conduzido Jack a esse local e o
qual ele estava determinado a decifrar antes que a expedição
terminasse.

De volta à ponte de comando, Jack reassumiu seu lugar
diante da mesa onde se encontrava o mapa e enrolou as
mangas da camisa. Tinha sido uma fria manhã de domingo,
mas o sol estava começando a aparecer rapidamente
enquanto a névoa marinha se erguia. Ele examinou Tom
York, o capitão mais antigo da IMU, um homem de cabelos
brancos esmeradamente trajado, que estava conferenciando
com o segundo oficial do navio, um estoniano recentemente
designado que chegara com credenciais impecáveis da
academia de marinha mercante russa. York olhou
atentamente para Jack e inclinou a cabeça para a janela da
ponte de comando, de onde estivera observando a cena na
coberta de proa.
"Como hipótese, eu diria metade do século XV." York havia
começado uma carreira notável na Marinha Real como
oficial da ciência da artilharia, e desde então vinha
desenvolvendo um conhecimento em arsenal naval antigo
que se provou indispensável nos projetos da IMU. "Mal
posso esperar para olhar mais de perto. Deve ser bem do
início da artilharia naval. Mas muito recente para nós."
Jack concordou. "1453, para ser preciso. Quase duzentos e
cinqüenta anos mais tarde. Estamos olhando para algo de
estilo anterior ao da época em que as armas foram usadas no
mar. É um achado extraordinário e não quero diminuir o
ânimo da tripulação, mas temos um longo caminho a
percorrer antes de alcançar os cruzados."
Jack olhou de modo pensativo para a praia, sua visão
momentaneamente obscurecida por uma balsa demasiado
apinhada que passava perigosamente perto do local da
escavação. No brilho da fosforescência deixada na esteira da
balsa, a cidade atrás parecia estar flutuando em uma nuvem,
como uma aparição celestial. Era uma das imagens supremas
da história, uma representação visual da sobreposição de
algumas das maiores civilizações que o mundo já conheceu.
Para o olhar de Jack era como um corte transversal feito em
um sítio arqueológico, desempenhando as funções de
camada construída sobre camada, só que aqui tudo estava
em desordem, as seqüências da história todas entrelaçadas e
sem nenhum corte nítido. No nível inferior se encontravam
os restos quebrados e rachados dos muros de
Constantinopla, planejados inicialmente pelo imperador
Constantino, o Grande, quando ele mudou sua capital para
cá, no século IV d.C., e abandonou Roma ao declínio e à
ruína. Acima dos muros elevava-se a ladeira da muito mais
antiga acrópole grega de Bizâncio, um nome que sobreviveu
como sendo o termo para o império cristão da Idade Média
baseado em Constantinopla, cujas raízes remontavam a
Roma. Acima disso erguia-se o vasto esplendor do Topkapi,
o primeiro palácio dos sultões, o centro da cidade dos turcos
otomanos, renomeada Istambul depois da derrota dos
bizantinos em 1453 e o núcleo brilhante do Estado mais
poderoso do mundo medieval. Mais alto ainda, acima das
poucas casas remanescentes da velha Istambul, erguiam-se
os minaretes e as cúpulas em cascata da igreja de Santa Sofia,
antigamente a maior de todas as catedrais cristãs no Oriente,
mas, depois de 1453, um local sagrado do Islã. E em algum
lugar, jack sabia, era possível, apenas possível, que a
expansão da cidade escondesse a evidência de uma
migração, bem no início da história, de colonizadores de
civilizações precoces que haviam escapado de suas cidadelas
da Atlântida quando ela fora inundada pelas enchentes
distantes do leste no mar Negro.
Ele mal podia acreditar que fazia apenas seis meses desde
que ele e Katya tinham se perdido nos caminhos labirínticos
da cidade. Fora uma época de extrema alegria, gozando a
descoberta de uma vida, mas ao mesmo tempo um período
de vazio e de perda. Para Katya tinha havido a devastadora
descoberta sobre o criminoso império de seu pai, uma
revelação que pesou muito sobre ela, apesar de todos os
esforços de Jack, e a fez voltar para a Rússia para liderar um
ataque contra o comércio ilegal de antiguidades. Para Jack, a
sensação de perda pessoal tinha sido mais aguda, e ele ainda
a experimentava. Eles ficaram juntos quando a busca por
Peter Howe finalmente fora interrompida. Jack lembrava-se
do amigo de infância cada vez que via Tom York, sua
claudicação era um legado da mesma batalha armada. Jack
insistira em ficar no Sea Venture, sobre a Atlântida, até a
busca ser finalmente abandonada. Durante muitos dias
depois disso, sentiu que sua ambição tinha sido sepultada no
mar Negro com o naufrágio do Seaquest, que ele não tinha o
direito de arriscar a vida dos outros em aventuras. Foi Katya
quem lhe devolveu a confiança quando eles ficaram
absorvidos na história de Bizâncio durante os longos dias em
que, juntos, exploraram Istambul. Ela o persuadiu a despertar
de novo um sonho infantil que nutrira junto com Peter
Howe, um sonho de um fabuloso tesouro perdido que o
tinha consumido por inteiro depois que ele e Katya se
separaram no aeroporto, um sonho que trouxera Jack ao
local onde se encontrava agora. "Consegui!"
Jack despertou de seu transe e correu até a origem do alarido
na sala de navegação atrás da ponte de comando. No interior
escurecido ele pôde ver onde o radar e os consoles de
estabilização da posição haviam sido empilhados de cada
lado para dar lugar a um complexo arranjo de dispositivos
eletrônicos que rodeava a ula descomunalmente grande do
computador. Em meio a tudo isso, esquecido de sua
presença, estava sentado um homem de cabelo preto,
bronzeado, com um físico de jogador de rúgbi, os olhos
grudados na tela e as têmporas pressionadas por fones de
ouvido com antenas.
"Muito bom você ter finalmente perdido um pouco de
peso", disse Jack. "Senão teríamos que escavar para tirá-lo
daí."
"O quê?" Costas Kazantzakis lançou-lhe um olhar
impaciente e voltou-se para a tela. Jack gritou de novo as
palavras para se fazer ouvir.
"Ok, ok." Costas tirou os fones de ouvido e inclinou-se para
trás no pequeno espaço que tinha disponível. "Ah, bem, o
apuro que passei durante minha passagem por aquele túnel
embaixo da água é o responsável por isso. Eu ainda tenho as
feridas. Se algo deu certo naquele projeto foi que os deuses
da Atlântida me advertiram para perder algumas calorias."
Costas esticou o pescoço, olhou ao redor e notou o pulôver
de Jack salpicado de lama. "Estava brincando de novo?"
"Arma de cerco. Veneziana. 1453."
Costas resmungou, depois subitamente recolocou os fones
de ouvido quando na tela apareceu um caleidoscópio de
cores. Jack olhou com orgulho enquanto seu amigo ficava
absorvido de novo em sua tarefa. Costas era um engenheiro
brilhantemente inventivo, com um Ph.D. em tecnologia de
submersíveis da IMU, e tinha acompanhado Jack em muitas
de suas aventuras desde a fundação da universidade, uma
década antes. Sua ciência intrincada era um complemento
perfeito para a arqueologia de Jack. Costas não gostava das
complexas seqüências entrelaçadas da história e das
incertezas das interpretações. Para ele, os únicos problemas
significativos eram os que podiam ser resolvidos pela
ciência, e a única complexidade aparecia quando os
aparelhos não funcionavam direito.
"O que está acontecendo?"
Uma outra figura havia aparecido na porta e comprimia-se
ao lado de Jack, sua constituição física definitivamente mais
corpulenta. Maurice Hiebermeyer parecia estar com um
permanente brilho de suor, apesar de seus shorts largos e a
camisa aberta. Jack voltou-se e acenou para cumprimentá-lo.
"Acho que Costas, finalmente, pegou esse negócio para
trabalhar."
Jack sabia o que vinha a seguir. Hiebermeyer tinha
sobrevoado o mar de helicóptero na noite anterior, vindo do
Instituto de Arqueologia em Alexandria, como uma ave de
rapina lançando-se sobre o alvo, esperando que Jack já
estivesse de olho no futuro, depois de chegar à conclusão de
que os problemas para fazer escavações na enseada de
Istambul eram intransponíveis. A última vez que haviam
conversado fora no convés do Sea Venture, seis meses atrás,
quando Hiebermeyer mencionara um outro achado
extraordinário de escrita antiga na necrópole das múmias, a
mesma que já produzira o papiro da Atlântida, e desde
então ele estivera bombardeando a IMU com mensagens via
telefone e e-mails.
Ele atrapalhou-se com uma pasta de papéis que estava
carregando. "Jack, nós precisamos..."
"Isso terá de esperar." Jack lançou um sorriso complacente
para o corpulento egiptólogo. "Estamos muito ansiosos aqui
e devemos nos concentrar. Sinto muito, Maurice. Espere
apenas até isto terminar." Voltou-se para a tela e
Hiebermeyer permaneceu em silêncio.
"Sim!"
A tela oscilou com cores e os dois homens se postaram atrás
de Costas para ter melhor visão. Eles estavam olhando para
uma imagem de vídeo, uma massa cinza iluminada por
holofotes e um braço com pinça sendo estendido para o
interior dela.
"Estamos agora a cerca de dezesseis metros abaixo do fundo
do mar, cinqüenta e um metros de profundidade absoluta de
nossa posição atual." Costas retirou os fones de ouvido e
inclinou-se para trás enquanto ralava. "Dentro de poucos
segundos a imagem voltará a ser por sonar e o furão entrará
de novo em operação."
"Furão?"
Costas olhou para Hiebermeyer, desculpando-se, e esten-
deu-lhe um modelo de plástico que estava segurando como
se tosse um talismã, uma curiosa forma cilíndrica que
mostrava uma leve semelhança com o veículo operado por
controle remoto que eles haviam usado para explorar a
aldeia neolítica no mar Morto. "Uma combinação de veículo
operado por controle remoto, um aspirador de pó
subaquático e um sonar que funciona abaixo do fundo do
mar", entusiasmou-se ele. "É controlado daqui por inter-
médio de um cordão umbilical e consegue vasculhar dentro
de um sedimento com uma precisão extremamente aguçada,
enviando imagens tão nítidas quanto um escâner MRI. No
momento, o furão está escavando em um sedimento de
terra, terra desmoronada, toneladas dela. Estamos à beira do
canal que passa velozmente pelo Bósforo, mas mesmo assim
há uma enorme quantidade de sedimentos, vários metros
por século. Necessitamos ir mais fundo se quisermos ter
alguma chance de encontrar o que queremos. O peso
daquela corrente vai afundar tudo ainda mais."
"Ah, a corrente", murmurou Hiebermeyer. "Reavive minha
memória."
Jack se deslocou até um mapa amarelo do almirantado, das
cercanias de Istambul, pregado na parede atrás de Costas. A
posição deles estava claramente marcada na beirada exterior
do estuário que atravessava a cidade, sua forma sinuosa de
cimitarra definia o promontório de Bizâncio e formava um
dos maiores ancoradouros naturais do mundo. Para os
antigos gregos isso era a Chrysoceras, o Chifre de Ouro,
como se um touro mitológico gigantesco houvesse se
engastado no Bósforo em seu esforço para alcançar o mar
Negro, um significado que até então não se perdera para os
três homens, com as imagens da Atlântida ainda frescas em
suas mentes.
Jack pegou uma caneta e traçou uma leve linha desde a
entrada até o estuário. "Durante o período bizantino, o
Chifre de Ouro ficava fechado em épocas de emergência por
uma gigantesca barreira flutuante de um quilômetro de
comprimento e enormes elos de ferro, grosseiramente
forjados, sustentados em pilares e barcaças. A corrente
ficava presa aqui, em uma torre próxima à extremidade dos
muros da cidade, onde o estuário encontra o Bósforo, e aqui,
a cerca de trezentos metros de nós na praia de Gaiata. A
corrente é registrada pela primeira vez no século VIII d.C. e
teve um papel famoso no Grande Cerco de 1453, mas
conhecemos apenas duas ocasiões em que ela pôde ser
rompida. A primeira foi no século XI, quando um grupo de
vikings, supostamente mercenários, lançou seus drakar
sobre ela. A segunda ocasião é mais definida, em 1204,
quando galeras venezianas a quebraram com um aríete. A
corrente foi reconstruída, mas uma parte rompida pode ter
ficado perdida no fundo do mar. Se pudermos achá-la, então
teremos encontrado a camada-alvo com a pilhagem que
estamos procurando e entraremos em operação."
"O primeiro elo em nossa história." O trocadilho de Costas
mal deu para esconder a sua ansiedade, seus dedos
batucavam levemente sobre a escrivaninha e os olhos se
movimentavam rapidamente de um canto ao outro da tela.
A imagem tornou-se escura e a única indicação de que o
furão estava operando era o calibrador de profundidade no
canto, deslocando-se ciclicamente com lentidão agonizante
ao longo de cinco centímetros de perfuração.
"Como você pode estar tão seguro sobre a localização?"
Hiebermeyer deixou a sua própria busca de lado e começou
a se interessar pelo projeto.
"Isso sempre foi controverso, mas um manuscrito do século
XV, descoberto no arquivo Topkapi no ano passado, dá uma
posição fixa exata entre os monumentos conhecidos e o
contorno da costa."
"Eu não gosto disso." Costas deu uma olhada no relógio da
parede e mexeu-se desconfortavelmente em seu assento. "Se
aquele canhão era de 1453, então temos pelo menos cinco
metros de sedimento compactado para escavar antes de
estarmos, de alguma maneira, próximos da camada-alvo. E
temos apenas vinte minutos antes de o Sea Venture ter de
alterar sua posição."
Jack também expressou sua preocupação e comprimiu os
lábios. Esse projeto era diferente de todos os outros em que
haviam trabalhado, uma brincadeira constante de gato e rato
em um dos cursos de água navegável mais superlotados do
planeta. Eles tinham um intervalo de seis horas, a cada dia,
autorizado pelas autoridades portuárias, mas mesmo assim
repetidamente tinham de alterar sua posição para deixar uma
barcaça ou um navio de carga passar, alguns com
carregamentos tão pesados que suas hélices agitavam o
sedimento do fundo. Jack tinha total confiança na habilidade
de Tom York para eliminar erros de localização na
navegação, e o sistema de posicionamento dinâmico do Sea
Venture fazia que ele reencontrasse coordenadas precisas
com facilidade. Mas não havia proteção para a escavação no
fundo do mar, nem, mais importante ainda para Costas,
qualquer garantia de que sua amada invenção não ficaria
atolada junto com todos os outros detritos da história.
Hiebermeyer sentiu a tensão e insistiu com Jack. "Então, o
que é este seu sonho de infância?"
Jack respirou profundamente, aquiesceu, e fez um gesto para
que Hiebermeyer o seguisse até um console onde havia um
computador, do outro lado da sala. Era uma história que ele
havia contado uma centena de vezes antes, para a tripulação,
para a imprensa, em suas repetidas tentativas para obter
patrocínio para o projeto do Conselho de Diretores da IMU
e das autoridades turcas, mas, ao falar disso, nunca deixava
de experimentar um arrepio de excitação que lhe subia pela
espinha dorsal.
"O Grande Cerco de 1453 foi um dos momentos decisivos
da história", começou Jack. "O dobre fúnebre ao maior
império jamais visto no mundo, o evento que deu ao Islã um
ponto de apoio na Europa. Mas, para a cidade de
Constantinopla, um evento mais calamitoso havia ocorrido
dois séculos e meio antes. Profanações e pilhagens em
grande escala, uma atrocidade horrenda mesmo para os
padrões medievais. E os que o perpetraram não eram infiéis,
mas sim cristãos, cruzados da Santa Cruz, nada menos que
isso."
"Os cruzados", disse Hiebermeyer. "É claro."
"Na época em que eles não faziam isso somente pela Terra
Santa."
"Lembre o que o professor Dillen sempre insistia conosco
em Cambridge", murmurou Hiebermeyer. "Que os maiores
crimes contra a cristandade sempre foram causados pelos
próprios cristãos." Os dois homens tinham sido
contemporâneos quando estudantes universitários, e quando
Jack voltou para completar seu doutorado, depois de um
estágio na Marinha Real, eles estudaram juntos a história
cristã e judaica sob o famoso mentor.
"A data era 1204", continuou Jack. "O papa Inocêncio III
havia requerido os serviços de uma quarta cruzada, mais
uma expedição destinada a libertar Jerusalém dos infiéis. A
maneira como os nobres cavaleiros chegaram a se desviar de
sua causa para saquear o local que abrigava o maior tesouro
da cristandade oriental é uma das narrativas épicas mais
apavorantes da história."
A pequena tela na frente deles subitamente se iluminou com
uma imagem reconhecível no mundo inteiro, quatro cavalos
esplendidamente ornamentados com cobre dourado parados
juntos na frente de um belo cenário arquitetônico.
"Os Cavalos de São Marcos", exclamou Hiebermeyer.
"Alguns turistas deixariam cair suas câmeras se soubessem a
verdade sobre como essas esculturas chegaram a Veneza."
Jack agora andava a passos largos, suas palavras tingidas pela
fúria. "Os líderes das cruzadas precisavam de gente para
levar de navio os cavaleiros e seu equipamento através do
Mediterrâneo para a Terra Santa. E quem melhor que os
venezianos, o maior poder marítimo da época? Mas os
venezianos tinham outras idéias escondidas nas mangas. O
Império Bizantino estabelecido em Constantinopla havia
começado a invadir o território próximo a Veneza no mar
Adriático, e os venezianos não gostavam disso. Mercadores
venezianos em Constantinopla tinham sido assassinados.
Alguns anos antes, o doge veneziano Dandolo fora
aprisionado pelos bizantinos, que o cegaram, e estava
secretamente inclinado a vingar-se. Além disso, os cruzados
se mostraram incapazes de conseguir o dinheiro para pagar a
sua passagem depois de embarcarem, tornando-se
virtualmente escravos dos venezianos. Acrescente a isto um
pretendente ao trono bizantino entre a hierarquia de
cruzados e o cenário está pronto. O papa Inocêncio III
encontrou-se inadvertidamente como o patrocinador do
saque da segunda cidade da cristandade, o ponto focal da
Igreja oriental. Logo que chegaram a Constantinopla, os
cruzados esqueceram-se da Santa Cruz e se comportaram
como qualquer outro exército saqueador da Idade Média,
somente que com uma ferocidade e um barbarismo sem
iguais, mesmo para aquele período."
"O que aconteceu?"
"Imagine um exército sem controle chegando a Londres e
começando a roubar todas as estátuas públicas, a profanar a
abadia de Westminster, a esvaziar o Museu Britânico, a
queimar a Biblioteca Britânica. Todos os símbolos da nação e
os tesouros do império perdidos em uma única investida
violenta encharcada de sangue. Em Constantinopla, os
guerreiros sagrados aplicaram seus muito alardeados fervores
cristãos nas grandes igrejas. Santa Sofia, sobretudo, entre
elas, foi saqueada de suas relíquias de milhares de anos de
cristianismo. Eles destruíram as bibliotecas, originárias de
antigas bibliotecas de Alexandria e Éfeso, uma perda
incalculável para a civilização. Pilharam o hipódromo, o
antigo anfiteatro de corrida que representava a imagem da
cidade, deixando apenas fragmentos de esculturas que ainda
podem ser encontradas ali hoje e alguns poucos
monumentos muito grandes para serem roubados."
"O obelisco egípcio de Tutmés III", disse Hiebermeyer,
concordando com um gesto de cabeça.
Jack apontou para a tela. "Sabemos que Constantinopla era a
herdeira de todos os grandes tesouros da civilização ociden-
tal. Artefatos de valor incalculável que haviam estado no
Egito e na Grécia e no Oriente Próximo foram de início
trazidos para Roma quando o império se expandiu. Depois,
quando a capital se deslocou para Constantinopla, muitos
desses tesouros se deslocaram também, enviados através do
Mediterrâneo, de Roma para Constantinopla. Os Cavalos de
São Marcos podem originalmente ter sido criações gregas do
século V, embelezando, talvez, o famoso santuário em
Olímpia. Cinco séculos depois eles estão em Roma, no topo
de um triunfal arco de Nero no Fórum, como parte de um
grupo de esculturas que mostrava o imperador dirigindo uma
quadriga. O arco foi destruído por Vespasiano, mas a
imagem sobrevive nas moedas de Nero. Quatro séculos
depois, eles estavam aqui em Constantinopla, talvez no
hipódromo ao lado do obelisco. E lembre que
Constantinopla nunca fora saqueada antes de 1204. Os
tesouros que conhecemos por relatos de testemunhas
oculares e que foram pilhados pelos cruzados só dão uma
indicação do que se encontrava ali. Um pouco da pilhagem
foi fundida para fabricar lingotes e moedas. Outros tesouros,
como os Cavalos de São Marcos, foram enviados por navio
para Veneza e para as pátrias dos cruzados, França, Espanha,
Países Baixos, Inglaterra, onde as relíquias desse crime
podem ainda estar nas grandes catedrais e mosteiros. E
outros objetos, principalmente antiguidades com simbolismo
pagão, foram profanados e arremessados no Chifre de Ouro."
Ele fez uma pausa. "Quando eu e Peter Howe ficamos pela
primeira vez obcecados por essa história, convencemo-nos
de que um dos maiores tesouros sem dono no mundo pode
estar no fundo do mar debaixo de nós bem agora."
Houve uma súbita agitação atrás deles quando Costas
aproximou sua cadeira da tela do vídeo. Os olhos de
Hiebermeyer permaneceram de maneira pensativa na
imagem dos cavalos e ele colocou a mão no ombro de seu
amigo.
"Você diz que qualquer coisa da antiga Grécia pode ter sido
trazida para cá", disse ele calmamente. "No ano passado,
depois de nossa pequena aventura no mar Negro, eu fui
chamado a Roma para traduzir um texto egípcio hierático
encontrado no local do Templo da Paz de Vespasiano, perto
do lugar onde os fragmentos de mármore com o projeto da
cidade foram encontrados. O texto provou fazer parte de
uma série de placas de bronze fixas na colunata do recinto,
cada uma com um texto idêntico em todas as principais
línguas do Império Romano. Latim, grego, aramaico,
egípcio, você pode nomeá-las todas. Eram proclamas
listando as vitórias de Vespasiano e os triunfos de Roma. Seu
tema era a Guerra dos Judeus."
Jack desviou o olhar de Costas e encarou Hiebermeyer de
frente, os olhos escuros insondáveis. O outro homem falou,
hesitante.
"Você está pensando o que eu estou pensando?"
Jack permaneceu calado.
"Meu Deus." O sotaque alemão de Hiebermeyer tornou-se
mais acentuado, e sua voz estava oscilando. "Os tesouros
judaicos do Tabernáculo. Vespasiano os colocou no Templo
da Paz, para nunca serem expostos de novo em um desfile.
Eles se tornaram lenda." Sua voz tornou-se um sussurro.
"Será que eles podem ter sido secretamente enviados por
mar para Constantinopla antes da queda de Roma?"
"Este pensamento me ocorreu", disse Jack baixinho.
Hiebermeyer retirou seus óculos de pequenas lentes redon-
das e secou a testa. "Os receptáculos sagrados do santuário
interior. A mesa de ouro. A menorá." Ele parecia ter
dificuldade para pronunciar a última palavra, e ofegou de
maneira rouca. "Você faz idéia daquilo em que estamos nos
metendo?"
"Sim", disse Jack.
"Não estamos apenas falando de tesouros fabulosos. Estamos
falando de coisas de grande importância contemporânea. A
menorá é o símbolo do moderno estado de Israel. Qualquer
alusão de que estamos em busca do tesouro do Templo
Judaico e o resultado poderia ser explosivo. Literalmente."
"Isto não irá além destas quatro paredes", afirmou Jack.
Naquele momento ouviram um grito e uma série de
imprecações animadas típicas do Brooklyn vindas do outro
console. Jack e Hiebermeyer rapidamente voltaram para
suas posições atrás de Costas, e o segundo oficial do navio
apareceu ao lado deles. Jack olhou curiosamente para o
homem e depois voltou a fixar a tela. Eles puderam ver
imediatamente por que Costas estava tão radiante. A tela
havia se transformado em uma imagem fantástica,
multicolorida, as linhas e contornos do escâner tão definidos
como os de um desenho em um computador a três
dimensões. No centro havia sinais inequívocos de atividade
humana, uma massa escura e torcida incrustada no
sedimento. Era uma imensa argola de metal, de pelo menos
um metro de comprimento, uma figura em forma de oito,
grosseiramente soldada no meio. Uma segunda argola estava
presa a ela e prolongava-se para fora da tela à direita, mas o
prolongamento à esquerda estava marcado e dobrado onde a
argola adicionada havia sido quebrada.
"Fantástico!" Jack deu uma palmada no ombro de Costas. Ele
estava muito contente, sua mente já disparava para o estágio
seguinte da busca, mas os olhos permaneceram grudados na
tela quando a câmera se movimentou para a extremidade do
metal exposto a fim de obter um efeito panorâmico. Preso
no final da argola havia um fragmento de madeira,
evidentemente madeira de lei de navio, um pedaço de tábua
do revestimento exterior em que apareciam fileiras de
protuberâncias escuras regularmente espaçadas onde os
rebites de ferro haviam sido preservados por mais de
oitocentos anos pelo lodo anaeróbico. A respiração de Jack e
de Hiebermeyer tornou-se ofegante ao se dar conta do que
estava enroscado na argola, uma massa branca semelhante a
ramos desnudos de uma árvore. Era um esqueleto humano
comprimido violentamente, os braços presos em ângulos
grotescos através do metal, o crânio distorcido e quase
irreconhecível, mas ainda recoberto por uma coloração
marrom-ferrugem onde outrora houvera um capacete
cónico bem ajustado com uma proteção para o nariz.
"Aqui estão os grilhões e uma de suas vítimas", comentou
Costas. "Agora é hora de sair daqui."
Costas ativou um controle e libertou o umbilical exatamente
quando o maquinário do navio começou a pulsar. Jack e
Hiebermeyer o deixaram e saíram da sala de navegação para
juntar-se a York na ponte de comando. Jack queria
transmitir as novas tias descobertas para a tripulação durante
o período em que o Sea Ventare era obrigado a ficar fora do
local, antes que a rota marítima ficasse de novo disponível
para eles. Ele olhou pela janela para o carregador de minério
que esperava para navegar a passagem e para as baixas
arcadas da ponte Gaiata, sua rodovia alvoroçada com o
tráfego da manhã e as balaustradas apinhadas de pescadores
esperançosos, abstraídos dos verdadeiros tesouros que
podiam estar debaixo deles. As águas encrespadas, outrora
navegadas pelas barcaças de lazer dos imperadores e sultões,
brilhavam de novo agora, como resultado de uma grande
operação de limpeza feita na última década. Quando Jack
olhou além da ponte de comando para o horizonte
resplandecente, experimentou outra vez a fascinação que
arrastara a ele e Katya para desvendar os profundos segredos
da cidade. Porque, apesar de todo o seu caos e de sua
história sombria, essa cidade viera a simbolizar esperança, o
lugar onde Jack revivera sua paixão pelos mistérios do
passado que o estimulavam desde a infância.
Olhou para baixo quando as águas cintilantes na proa do Sea
Venture se agitaram em desordem por causa dos
estabilizadores do motor a jato do navio. Ele estava alegre,
além da expectativa, pelo fato de que tinham feito a
descoberta que podia demonstrar o seu sonho, um ponto de
partida para achados ainda mais sensacionais nos dias
vindouros. A corrente os colocava direto no momento-
chave na história, e mostrava que eles estavam nos limites
exteriores do ancoradouro onde os espólios do saque de
Constantinopla haviam sido despejados. Tudo que tinham de
fazer agora era encaminhar-se para o Chifre de Ouro e
poderiam fazer uma descoberta preciosa. Mas, como
sempre, o júbilo de Jack era temperado por ansiedade. A
pressão havia começado. Ainda tinham um longo caminho a
percorrer. Ele sabia que teriam de continuar a mostrar sua
carga para as autoridades se elas fossem prosseguir com a
limitação de horários para usar as rotas prescritas para os
navios; a arma e a corrente provavam que ele tinha razão,
mas isso também aumentava as expectativas. Olhou de novo
para as águas do Chifre de Ouro, protegendo os olhos contra
o brilho ofuscante, e rezou fervorosamente para que aquilo
correspondesse às suas expectativas.


2

Maria de Montijo mudou de posição quase imperceptível
mente sobre o banco e fechou os olhos. Esse havia sido o dia
mais longo que já passara no recinto da catedral, e, apesar da
adrenalina que a sustentara hora após hora, ela sabia que sua
concentração em breve começaria a diminuir. Lá fora, a
tarde cinzenta e melancólica, como era comum na
Inglaterra, estava começando a escurecer, e ela podia ouvir
o insistente tamborilar da chuva nas vidraças da janela.
Endireitou as costas, piscou com dificuldade e levantou a
paleta com os instrumentos de limpeza até a beirada da
moldura. No total silêncio do aposento, o tempo parecia
permanecer imóvel, e toda sua atenção estava focalizada no
padrão intrincado de tinta revelado pela minúscula luz a
apenas alguns centímetros de seu rosto. Respirava lenta e
deliberadamente, e ao final de cada exalação dirigia o seu
pincel com uma firmeza alcançada através de anos de
experiência. Depois de quinze minutos, ela afastou-se e
estendeu a paleta para seu assistente.
"É isso aí", disse ela. "Terminamos."
Cuidadosamente, ela puxou a lâmpada de maneira a revelar
toda a inscrição, o produto de mais de uma semana de
trabalho esmerado. Com a pátina de séculos removida, as
letras se tornaram pretas e nítidas como se tivessem sido
aplicadas apenas alguns dias antes.

Tuz ki cest estorie ont. Ou oyront ou lirront ou ueront.
Prient a ihesu en deyte. De Richard de Holdingham o de
Lafford eyt pite. Ki latfet e compasse. Ki ioie en cel li seit
done.

A ortografia não familiar do francês arcaico só servia para
aprofundar o mistério do homem que a havia composto.
Depois de um momento de contemplação, Maria voltou-se
de maneira encorajadora para seu assistente, um jovem
esbelto que usava óculos com armação de metal e que se
inclinou impacientemente para a frente para fazer a
tradução.
"Todos aqueles que possuem esta obra, ou que a ouvem,
lêem, ou vêem, rezem para que Jesus em sua divindade
tenha compaixão de Richard de Holdingham e de Sleaford,
que a iniciaram e a concluíram, para que lhes seja concedida
a bem-aventurança no céu."
Parecia apropriado que as últimas palavras de Richard
também fossem as deles, que eles devessem terminar sua
tarefa no mesmo lugar em que o escriba levantou pela última
vez sua pena do pergaminho, quase setecentos anos antes.

Vinte minutos mais tarde, Maria parou no centro da sala e
olhou mais uma vez para o mapa antes de colocá-lo atrás do
vidro protetor. Com a pequena lâmpada removida, a fraca
luminosidade da sala parecia acentuar a aparência antiga do
velino, as sombras e as ondulações mostravam onde a pele
de bezerro havia encolhido e enrugado com o passar dos
anos.
Normalmente o trabalho de limpeza dos manuscritos teria
sido deixado para a sua equipe técnica no instituto em
Oxford. Mas, quando chegou o telefonema de um novo
programa de restauração do Mappa Mundi na catedral de
Hereford, a tentação fora demasiado grande. Era a chance de
uma vida, a oportunidade de trabalhar no maior manuscrito
com iluminuras existente do século XIII, de tocar com suas
próprias mãos o mapa medieval mais importante e celebrado
do mundo.


Quando seus olhos se acostumaram com a escuridão, o
contorno familiar começou a tomar forma. Quase
preenchendo o imenso pergaminho quadrado havia um
globo com mais de um metro e vinte de diâmetro. No
centro estava Jerusalém, e abaixo dela a forma em T do
Mediterrâneo que divide a Ásia, a África e a Europa. As Ilhas
Britânicas localizavam-se abaixo, à esquerda, e no espaço
atrás ficava a inscrição que ela havia recuperado. Por Ioda
parte no mapa havia centenas de desenhos em miniatura,
com legendas em latim e francês, alguns dos quais ilustrando
histórias bíblicas e outros representando criaturas bizarras e
lugares míticos.
Era uma cornucópia de fato e fantasia, a expressão suprema
da mente medieval. Embora estivesse também cercada por
ignorância. Na sua seqüência, e na certeza que demonstrava,
o mapa parecia ser a última declaração sobre o mundo do
homem, apesar de não haver absolutamente nada além da
fina faixa de oceano que cercava a cristandade. Para Maria, a
figura de Cristo, colocada na parte superior, parecia estar
sendo julgada, não apenas na morte, mas também na vida,
por homens arrogantes o bastante para pensar que as
incontáveis maravilhas com as quais haviam abarrotado seu
Mappa Mundi representavam algo como a totalidade da
criação de Deus.

"Doutora De Montijo. A senhora deve vir imediatamente."
A figura esmerada em trajes clericais alcançou Maria quando
esta caminhava rapidamente pelo átrio da catedral, com o
guarda-chuva aberto por causa do eterno chuvisco inglês.
Ela deveria estar de volta a Oxford naquela noite e dispunha
de pouco tempo para pegar o trem.
"É melhor que isso seja importante", disse ela, o leve sotaque
espanhol dando uma cadência animada à sua voz. "Estou
escalada para dar um seminário sobre Richard de
Holdingham no meu instituto, dentro de três horas, e
preciso de tempo para prepará lo."


"Talvez isso tenha de esperar", o pequeno homem ofegou,
excitado. "Os operários na antiga Biblioteca Acorrentada
acabaram de fazer uma descoberta extraordinária. Seu
assistente já se encontra com eles."
Juntos, Maria e o clérigo se aproximaram do pórtico norte da
catedral. Com seu matiz cor de mel, o arenito desbotado dos
pilares fazia Hereford parecer menos ameaçadora do que
muitas grandes catedrais da Inglaterra, apesar de, mesmo
assim, quando eles entraram, o efeito ser apavorante. Maria
olhou para a nave, depois para o altar e em seguida para o
espaço cavernoso entre eles, sua visão emoldurada pelos
pilares maciços que de cada lado se elevavam até alcançar os
arcos menores do clerestório e os ventiladores espalhados
no teto da abóbada bem acima. Enquanto seguia o clérigo
em direção à nave lateral norte da igreja, ela foi invadida
pelo odor de pedra úmida e um leve indício de decom-
posição, como se o cheiro repugnante de putrefação que
havia permeado a catedral por tanto tempo tivesse deixado
uma aura que demorava a desaparecer muito tempo depois
que as últimas criptas funerárias tinham sido lacradas.
A nave tinha mudado pouco desde a última vez que Richard
de Holdingham passara por ela. Ela esbarrou num pilar e
experimentou uma sensação de intimidade, como se tivesse
voltado atrás no passado para seguir de perto as pegadas do
grande homem. Nos dias dele, era utilizada a alvenaria
pesada dos normandos havia apenas um século, no entanto,
uma igreja monástica estivera nesse mesmo lugar desde o
reinado anglo-saxão de Mércia. Era a igreja catedral de Santo
Etelberto, o rei da Ânglia Oriental, que havia sido
perfidamente assassinado nas vizinhanças. Nos dias de
Richard, a igreja também atraiu peregrinos que vieram de
todas as regiões próximas para prestar homenagem a Thomas
Becket, o arcebispo martirizado em Canterbury, cujo
relicário esmaltado também havia sobrevivido através dos
séculos, outro dos grandes tesouros da catedral, junto com o
Mappa Mundi.
Depois de passar o transepto norte, eles alcançaram a nave
do coro; ali o mapa fora exibido durante o século passado até
ser removido para o lugar onde se encontrava agora, em um
museu exterior construído especialmente para essa
finalidade. Imediatamente oposta ao espaço vazio na parede,
havia uma porta baixa na estrutura exterior da catedral.
Através dela podia-se ver uma escada em espiral.
"O trabalho de reconstrução está quase completo", disse o
clérigo. "Isto é apenas uma precaução." Ele entregou a Maria
um capacete amarelo de segurança e colocou um em si
mesmo, o qual pareceu um tanto inapropriado por cima de
sua batina marrom. Enquanto ela o seguia subindo os
degraus espiralados, as palavras dele ressoavam como um
eco amortecido.
"Uma catedral de arenito é como um navio de madeira", ele
explicou. "Mantenha um velho casco de navio em uso por
um tempo bastante longo e todos os madeiramentos
precisarão ser trocados. Como o HMS Victory. O arenito
não é um material de construção durável. Quando mudamos
a biblioteca tivemos a oportunidade de substituir algumas
pedras bastante danificadas."
Estavam se aproximando do aposento que tinha sido ocu-
pado pela mundialmente famosa Biblioteca Acorrentada,
uma fabulosa coleção que incluía raros incunábulos, livros
impressos antes de 1500, assim como 227 volumes
manuscritos, começando com "inestimável Hereford
Gospels do século VIII. Tanto os livros como as caixas às
quais estiveram acorrentados estavam agora, restaurados, no
museu que também alojava o Mappa Mundi, que também
estivera guardado nessa biblioteca.
Depois de subir ao nível do clerestório, eles se comprimiram
para passar um grande número de blocos recém-extraídos e
pararam na entrada do aposento. Com os finos raios que a
luz do dia lançava através das fendas das janelas eles podiam
apenas imaginar os trechos mais claros nas paredes, onde as
prateleiras de livros se encontravam antes. Em vez de uma
biblioteca, o aposento agora se parecia com um ateliê de
pedreiro medieval, com instrumentos de cortar e
fragmentos de alvenaria deteriorada espalhados por todo o
chão.
Do outro lado, um grupo de operários aglomerava-se diante
de uma área de luz brilhante na parede. A luz vinha de um
buraco de onde dois blocos de alvenaria haviam sido
retirados, deixando um espaço que dava passagem apenas
para alguém esguio. Naquele momento apareceu uma
cabeça, os cabelos loiros desgrenhados e os óculos cheios de
poeira.
"Maria! Você não vai acreditar nisto."
Jeremy Haverstock tinha sido seu melhor aluno de
doutoramento, um grande conhecedor de línguas
germânicas antigas, mas havia ficado enclausurado em
Oxford escrevendo sua tese e agora aparecia estar se
deleitando com a sensação de aventura. Ela o convidara para
vir a Hereford para que fizesse uma pausa, e para que
compartilhasse de uma experiência única. Desde sua vinda
da América ela o encorajara a viajar bastante para conhecer
bibliotecas monásticas antigas, embora ele ainda tivesse
aquele entusiasmo contagioso de um turista tocando a
história pela primeira vez. Maria sorriu consigo mesma
quando ela e o clérigo abriram caminho em meio aos
detritos e abaixaram as máscaras contra poeira de seus
capacetes.
"É sua carreira que está em jogo", disse ela. "Qualquer coisa
menos que uma bíblia da Ordem de Santo Agostinho e você
terá de fazer o seminário sem ajuda."
"É melhor do que isso. Muito melhor." Quando eles se
aproximaram, ela pôde ver que o rosto de Jeremy estava
marcado pelo suor, apesar do frio do aposento. Ele deslocou
mais um dos blocos de alvenaria e esgueirou-se para dentro
da parede. Sigam-me.

Momentos depois, Maria estava se espremendo ao lado dele,
com seu cabelo castanho ondulado e sua jaqueta de couro
cobertos de poeira. Qualquer irritação que ela pudesse ter
sentido evaporou-se instantaneamente quando viu o que
havia diante deles. O operário tinha aberto uma passagem
para um espaço de cerca de um metro dentro da maciça
parede exterior da catedral. De sua posição curvada, Maria
pôde ver que eles estavam agachados acima de uma escada
espiralada arruinada, uma relíquia de alguma fase anterior tia
construção, que havia sido bloqueada muito tempo antes.
Três degraus abaixo deles, o poço da escada estava obstruído
com detritos, uma mistura de escombros que pareciam ser
de arenito gasto e que estavam cobertos por uma camada de
poeira vermelha. Com o corpo curvado, Maria aproximou-se
para olhar mais atentamente, o holofote disposto
diretamente atrás de sua cabeça.
"Es estupendo!" As palavras de sua língua natal, o espanhol,
saíram involuntariamente, enquanto ela olhava, boquiaberta,
sem acreditar.
"Você vê o que quero dizer?" Jeremy colocou-se impaciente
ao lado dela. "É como a caverna de Aladim."
Os detritos não eram pedaços de alvenaria descartados, mas
uma grande quantidade de pergaminho amarelado e pardo,
alguns compactados como papel machê, mas muitos deles
bem preservados e com letras plenamente visíveis.
"É como se fosse uma lixeira da biblioteca", disse Jeremy.
"fragmentos rasgados, livros danificados sem possibilidade de
teparação. São todos escritos à mão e nenhum deles parece
ser posterior ao século XIII. Os registros arquitetônicos
consideraram esta escada supérflua e ela foi fechada algum
tempo depois de o transepto norte ter sido completado no
século XIV."
Maria deslocou-se para o lado e apontou para o lugar na
frente do holofote que havia ficado nas sombras,
obscurecido por sua cabeça. Ela estava repentinamente
tremendo de excitação.
"Olhe", ela exclamou. "Nem tudo são fragmentos. Há um
volume in-fólio intacto."
Jeremy o alcançou com seu braço longo e cuidadosamente
retirou o livro com capa de couro do meio dos pergaminhos
rasgados. Enquanto ele o segurava, Maria gentilmente
soprou a poeira e abriu a velha capa marrom.
"Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum."
Ela leu lentamente as palavras em voz alta, sua mente
vacilando diante do espanto. "A história eclesiástica do
povo inglês, de Beda, o Venerável. E ainda em latim, o que
significa que se trata de uma das cópias originais. Século IX
ou talvez VIII."
Jeremy retirou algumas folhas de pergaminho que tinham
ficado grudadas na capa de trás do volume. Com as folhas
empoeiradas equilibradas nas mãos, ele começou a sussurrar
baixinho para si mesmo, os olhos movendo-se para cá e para
lá ao longo do texto. Maria observava, mergulhada em
conjecturas, quando subitamente ele silenciou.
"O que é?" ela perguntou.
"Incrível", ele sussurrou. "Uma continuação do século XII da
Crônica anglo-saxônica. Ela menciona o rei Henrique II e o
rei João. Este deve ser o último documento existente em
inglês arcaico, a língua que os normandos tentaram suprimir
com muito empenho. Isso prova de uma vez por todas
minha tese de que as tradições anglo-saxônicas eram
mantidas vivas nos scriptoria secretos das catedrais durante o
período medieval. Se isso não me der o doutorado, nada
mais me dará."
Maria examinou a cena diante deles, notando mais outros
volumes intactos no local de onde tinham removido o de
Beda.
"Isto era mais do que uma lixeira", ela afirmou baixinho.
"Sempre foi um mistério o fato de essas duas obras originais
sobre a história anglo-saxônica não constarem da biblioteca
Hereford, dentro de uma coleção com manuscritos
litúrgicos que remontam ao século VIII. Talvez isso tenha
sido feito por um bibliotecário extremamente zeloso que,
adaptando-se às condições, dava espaço nas prateleiras para
obras mais recentes. Mas pode ter significado mais do que
isso, uma seleção deliberada das obras de história anglo-
saxônica da biblioteca, uma tentativa de ocultar qualquer
coisa que a aristocracia normanda considerava subversiva."
Ela fechou o livro cuidadosamente e o abrigou em seus
braços, enquanto olhava preocupada para os fragmentos de
pergaminho que haviam se partido e esmigalhado onde
Jeremy havia retirado o livro do seu local de repouso.
"Vamos levar o Beda e aquelas páginas da Crônica", foram as
ordens de Maria. "Mas todo o resto deve permanecer in situ
e a entrada precisa ser lacrada de novo até conseguirmos
obter uma equipe de conservação. Não podemos expor ao ar
nenhum outro pergaminho." Ela observou atentamente
Jeremy, que estava limpando os óculos com uma expressão
séria no rosto. "E eu o perdôo", ela sorriu maliciosamente.
"Você talvez tenha encontrado por acaso o maior tesouro
sem dono da história inglesa antiga."
Quando se viraram para sair, Jeremy percebeu uma forma
anômala projetando-se sobre o mar de fragmentos de
pergaminhos. Era uma das extremidades de um rolo de
pergaminho danificado, algo que podia ser ainda mais antigo
do que os volumes manuscritos encadernados. Ele foi
incapaz de se conter e inclinou-se para pegá-lo bem no
instante em que Maria começava a se arrastar para fora.
Ele pigarreou sugestivamente e Maria olhou para trás em
direção à luz brilhante de tungstênio. Ela percebeu a
expressão culpada no rosto dele e depois o rolo de mais ou
menos um metro colocado em cima das páginas da Crônica.
"Devemos deixá-lo", ela disse de maneira brusca.
"Não, se você ainda quiser dar aquele seminário hoje à
noite."
A curiosidade de Maria foi espicaçada e ela voltou-se para
ele. Jeremy havia desenrolado dez centímetros do rolo de
pergaminho e segurava-o de modo que ela pudesse vê-lo.
Era visível uma área onde havia um grande círculo inscrito,
e dentro dele ela pôde distinguir formas esmaecidas que se
pareciam com croquis e inscrições escritas com firmeza.
Maria sabia para o que estava olhando mesmo antes de se
aproximar do pergaminho. Em sua própria tese de
doutorado, dez anos antes, ela havia argumentado que o
Mappa Mundi de Hereford era uma cópia, o trabalho de um
notável artista, mas não de um estudioso. Era a única maneira
de considerar o seu erro mais evidente, a palavra AFFRICA
escrita no lugar de Europa e EUROPA no lugar de África. O
bispo de Hereford havia encomendado o mapa a Richard de
Holdingham, que preparou um projeto em sua sede, na
catedral de Lincoln, mas a versão final foi completada em
sua ausência por um artista, de Hereford, hábil em caligrafia
e iluminuras, mas não muito instruído ou preciso. Sua
ignorância se revelava nos detalhes mais finos, pelas
pequenas liberdades que assumia por causa de propósitos
estéticos à custa da credibilidade no que se refere a
peculiaridades na ortografia e na geografia.
Agora, para seu espanto, ela sabia que estava diante do
original preparado pelo próprio Richard, o cartógrafo e
monge cuja visão do mundo a havia fascinado desde os seus
dias de estudante. Ela olhou com reverência para o resultado
criado pela mão hábil e precisa que colocara legendas por
todo o mapa. Logo abaixo da mão esquerda de Jeremy, onde
ele segurava o rolo danificado, encontravam-se as letras
apagadas da palavra EUROPA, corretamente colocadas sobre
a França e a Itália. Ao lado de sua mão direita, com a qual ele
segurava o rolo aberto, localizavam-se as formas alongadas
das Ilhas Britânicas, com Hereford e Lincoln exibidas de
maneira proeminente.
Quando Jeremy movimentou os dedos da mão direita para a
beirada do pergaminho, Maria percebeu algo estranho.
"Meu Deus", ela ofegou. "O exergo. Ele não está aqui."
A decoração elaborada que preenchia o espaço entre a esfera
do mundo e as beiradas quadradas do pergaminho no Mappa
Mundi terminado havia sido, claramente, a criação apenas
do próprio artista, um local para aspectos decorativos de
menor interesse para Richard, embelezamentos que
poderiam ter sido feitos por encomenda para satisfazer os
caprichos das autoridades da catedral. Isto explicava o
bizarro desfile de imagens, desde caçadores e clérigos até
referências aos imperadores romanos, que o artista deve ter
colocado juntos a esmo, tirados de outros mapas e
manuscritos que havia visto. No canto, Maria observou que
a dedicatória que ela havia limpado com tanta dificuldade no
Mappa Mundi estava faltando, então ela também devia ter
sido o trabalho do artesão e não o do próprio mestre.
Richard deve ter visitado a catedral para discutir a
encomenda, mas claramente não havia estado presente no
momento da dedicatória. Isto resolvia o mistério de como os
continentes nomeados erradamente tinham podido
permanecer, enganos que Richard certamente nunca teria
tolerado. Ela sentiu uma pontada de desapontamento
quando olhou para o espaço vazio, uma sensação de que
Richard não estava mais tão seguramente ao seu alcance, que
ele havia dado um passo atrás em direção às regiões sombrias
do passado.
Quando Jeremy se deslocou ligeiramente, ela percebeu que
no mosqueado marrom e amarelo do pergaminho, onde
deveria constar a dedicatória, havia uma forma definida.
"Desloque o pergaminho para a luz", disse ela. "Há algo
aqui."
A imagem apagada do desenho surgiu. Tratava-se de uma
área de terra, uma imagem irregular não muito maior do que
as Ilhas Britânicas, introduzida no canto do pergaminho.
"Essa terra está além do oceano exterior que circunda o
mundo, de modo que ela não pode fazer parte do mapa",
disse Maria. "Ela deve ser um dos esboços de Richard para
um dos continentes. Olhe, é possível ver onde ele utilizou
uma faca para raspar a tinta e tentar apagar o desenho."
Jeremy estava esticando a cabeça para ver melhor, sua
madeixa de cabelo loiro e liso quase tocando o rosto de
Maria.
"Não tenho muita certeza", ele murmurou. "Parece algo
vagamente familiar, mas não do Mappa Mundi. Talvez se eu
olhar do lado certo possa ter uma melhor..."
Enquanto suas palavras eram emitidas, ambos olharam um
para o outro com espanto.
"O Mapa de Vinland", sussurrou Maria.
Com o coração disparado, ela tirou sua lente de aumento e
começou a examinar as linhas. Apenas poucas semanas antes
eles tinham assistido a uma conferência na Universidade de
Yale sobre a mais recente evidência indicando uma data
para o famoso Mapa de Vinland, um desenho que agora se
pensava ser uma falsificação, mas que se baseava em um
mapa perdido que precedia Colombo em cerca de
quinhentos anos, um mapa que mostrava um contorno da
costa que, dizia-se, havia sido descoberta pelos vikings
séculos antes a oeste da Groenlândia.
"É inacreditável", exclamou Maria. "É exatamente o mesmo.
Aqui está o rio que conduz ao lago e o grande braço de mar
mais abaixo. E a legenda parece idêntica, em latim
medieval."
Com a lente de aumento, o borrão apagado no topo se
tornou legível: Vinlanda Insula a Byarno repa et Leipho
socijs.
"A ilha Vinland", murmurou Jeremy. "Descoberta por Bjarni
e Leif ao mesmo tempo."
"Isto prova sem dúvida a autenticidade da imagem no Mapa
de Vinland." Maria estava ruborizada com a excitação. "Mas
se essa é verdadeiramente a mão de Richard de Holdingham,
então seu mapa data de mais de dois séculos antes do Mapa
de Vinland. Você pode esquecer a história inglesa antiga
durante algum tempo. Você pode ter acabado de descobrir a
mais antiga descrição conhecida da América do Norte."
Eles se fitaram com um assombro perplexo. O Mappa Mundi
e aquele croqui datavam do século XIII, quase três séculos
antes das viagens européias para a descoberta do Novo
Mundo, centenas de anos antes que os primeiros mapas da
costa americana fossem desenhados, conforme se pensava.
"Há outros escritos mais abaixo."
Maria tinha focalizado a parte superior da representação e
deixara de registrar uma segunda inscrição meio apagada do
outro lado do desenho. Ela deslocou a lente de aumento
alguns centímetros para baixo.
"Isto definitivamente não está no Mapa de Vinland", disse
ela. "Não está escrito em alfabeto romano, mas também não
em latim ou francês. Parece mais com escandinavo antigo."
Maria passou a lente para Jeremy e segurou o mapa para ele,
reconhecendo tacitamente sua perícia maior na linguagem
dos vikings.
"Há uma runa curiosa aqui", ele murmurou. "Ela está
colocada no início da inscrição como a letra em iluminura
de um texto medieval. Uma simples haste com braços de
cada lado, dirigidos para cima. Parece simétrico. Cinco,
talvez sete braços no total, incluindo a haste. Muito
estranho."
"Você pode distinguir mais alguma coisa?"
"Harald Sigurdsson" Ele fez uma pausa e olhou para cima.
"Este é Harald Hardraade, conhecido como Harald, o
Severo, rei da Noruega. Morto na batalha de Stamford Bridge
em sua tentativa de tomar o trono inglês em 1066, apenas
algumas semanas antes da conquista dos normandos."
"Não é possível", murmurou Maria, sem acreditar.
"Continue."
"Harald Sigurdsson nosso rei com seus companheiros
intrépidos alcançou essas regiões com o tesouro de
Michelgard", ele traduziu lentamente. "Ali eles festejaram
com Thor no Valhala e esperaram o final da batalha de
Ragnarok."
Ele ergueu o olhar para Maria com descrença.
"Michelgard não era o nome viking para Constantinopla?"
Durante um instante ela ficou estupefata demais para
conseguir falar. Depois, deixou o pergaminho enrolar-se e o
passou para Jeremy.
"Guarde isso com extremo cuidado. Não diga uma palavra a
ninguém." Ela pegou o volume de Beda e com dificuldade
andou apressadamente em direção à parede, pegando seu
celular enquanto se movia. No momento em que ela estava
prestes a curvar-se para passar, Jeremy gritou muito
excitado.
"Aquela runa", ele disse. "Eu sabia que já a tinha visto antes.
Ela não é absolutamente uma runa. Não posso imaginar por
que diabos estaria aqui, mas só pode ser uma coisa. Ela é o
símbolo da menorá judaica."


3

"É inacreditável", disse Jack. "Eu sabia que Harald Hardraade
e os vikings haviam estado em Constantinopla, mas nunca
sonhei que tivessem atravessado o Atlântico. Isto coloca
Cristóvão Colombo na sombra de uma vez por todas."
"Você já me deixou perdido", replicou Costas. "Os vikings
em Constantinopla?"
Jack tomou um gole de seu café e levantou-se. "Espere aqui."
Os dois homens haviam estado na Inglaterra por menos de
uma hora, tinham pegado um vôo ao alvorecer, da Turquia
para a Estação Aeronaval Real situada em Culdrose, e sido
transferidos, com um helicóptero Lynx, para o campus da
vizinha Universidade Marítima Internacional. Costas havia
planejado esse retorno para a Inglaterra vários dias antes,
sabendo que, uma vez que o escavador debaixo do fundo do
mar, no Chifre de Ouro, estivesse totalmente operacional,
ele seria necessário para dar assistência técnica a outro
projeto de campo da IMU, no momento perto da
Groenlândia. Para Jack, a decisão tinha se dado apenas na
noite anterior, em seguida ao extraordinário telefonema de
sua amiga Maria de Montijo, que estava em Hereford. Ele
havia convocado um encontro de emergência dos
funcionários da escavação e havia pedido a Hiebermeyer
para assumir a supervisão arqueológica, sabendo que
Maurice ficaria secretamente deliciado em aceitar um papel
bem além daquele que lhe era usualmente permitido nos
desertos do Egito.
"É melhor você se apressar." Costas retirou um celular de
seu macacão todo salpicado de óleo e verificou uma
mensagem. "Eles são esperados a qualquer momento."
Jack aquiesceu e caminhou do pátio onde estavam sentados
até a porta aberta de seu escritório. Parou a fim de olhar para
trás por cima da ampla curva de Carrick Roads, o sinuoso
estuário que se afastava da extremidade da Cornuália em
direção ao canal da Mancha e ao oceano Atlântico. Desse
ponto, gerações de seus ancestrais iniciaram viagens
marítimas para moldar o destino da Inglaterra e fazer
fortuna. Os Howard haviam lutado com Drake contra o
exército espanhol e, sob o comando de Nelson, em
Trafalgar, haviam trazido riquezas das índias e mapeado os
lugares mais distantes dos oceanos.
Jack sentiu uma onda de certeza invadi-lo enquanto
observava a cena, sabendo que estava mantendo uma
tradição de família que remontava a mil anos antes, desde a
época anterior à conquista da Inglaterra pelos normandos.
Fora o pai de Jack quem decidira doar a propriedade da
Cornuália para a novata Universidade Marítima
Internacional, mas a IMU tinha sido sonho de Jack e ele a
vira dar frutos. Com um financiamento generoso dado por
Efram Jacobovich, um velho amigo que se tornara magnata
de software, a mansão e as construções exteriores haviam se
transformado em um local de pesquisa moderno que
utilizava os métodos e as tecnologias mais avançados, e
rivalizava com os melhores institutos oceanográficos do
mundo. Além do estuário, o velho estaleiro havia se
expandido em um complexo de engenharia espaçoso,
completo, com uma doca seca para os navios de pesquisa da
IMU, bem como um tanque experimental para estudo com
submersíveis. Em uma colina coberta por bosques, contígua
ao complexo, ficava o elegante edifício neoclássico da
Howard Gallery, uma das principais coleções particulares de
arte do mundo e também um local para mostras itinerantes
do Museu Marítimo da IMU de Cartago, no Mediterrâneo.
Apenas algumas semanas antes, Jack havia inaugurado uma
de suas mostras mais surpreendentes, uma exibição
deslumbrante dos achados de um naufrágio minoano da
Idade do Bronze que eles tinham desenterrado no ano
anterior. Um pôster publicitário mostrando o disco de ouro
e a magnífica escultura da cabeça de touro encontrada no
naufrágio adornava a parede que dava para a porta quando
Jack entrou em seu escritório, uma antiga sala de visitas do
século XVI que agora era o centro das pesquisas e das
explorações da IMU pelo mundo inteiro.
Alguns momentos depois Jack saía com um mapa da Europa
que ele desenrolou e prendeu na mesa do pátio usando as
xícaras de café. Costas puxou a cadeira para perto, enquanto
Jack passava a mão pelo mapa desde a Escandinávia até o
mar Negro.
"Os bizantinos os chamavam de varegues", disse Jack.
"Altos, loiros, bárbaros horripilantes do Norte que serviam
como mercenários na lendária guarda varegue do imperador
bizantino, a sucessora da guarda pretoriana da antiga Roma.
Na época de Hardraade, a guarda varegue era formada
sobretudo por vikings, guerreiros nórdicos cujo
comportamento justificava plenamente sua reputação. Eles
saqueavam e queimavam em suas andanças ao longo do
Mediterrâneo, disfarçados como servidores comuns para o
imperador cristão, mas na verdade eram heróis que
retornavam para a sua pátria, no Norte, cheios de histórias
de derramamento de sangue e saques. Na época em que eles
foram derrotados pelos cruzados, durante o saque de
Constantinopla em 1204, muitos da guarda eram ingleses,
descendentes dos guerreiros anglo-saxões que haviam
escapado da Inglaterra em seguida à batalha de Hastings em
1066, quando William da Normandia derrotou o rei Harold
da Inglaterra."
"Você quer dizer o outro Harold?", perguntou Costas.
Jack fez que sim. "Havia sangue viking em todos os
concorrentes ao trono da Inglaterra em 1066. Os
normandos eram homens do Norte, descendentes dos
vikings que tinham se estabelecido na França no século
anterior. Os ancestrais anglo-saxões do rei Harold da
Inglaterra eram, eles mesmos, migrantes da Dinamarca e da
Alemanha do Norte. Mas o único viking de sangue puro
entre os concorrentes em 1066 era Harald Hardraade, rei da
Noruega. Ele era o mais temido de todos, e tinha aprendido
sua arte décadas antes como chefe da guarda varegue em
Constantinopla."
Costas mediu a distância no mapa com a mão e sacudiu a
cabeça. "Dista mais de três mil e duzentos quilômetros da
Noruega."
"Ao mesmo tempo que os vikings estavam começando a
explorar o oeste, indo para a Ilhas Britânicas e além delas,
estavam também rumando para o leste", explicou Jack. "A
partir do século VIII d.C., os comerciantes escandinavos
começaram a penetrar nos rios da Europa central e oriental,
do Vístula no Báltico até o Dnieper no mar Negro. Eles
buscavam riquezas incalculáveis, os fabulosos tesouros do
Oriente, uma procura por prata e pedras preciosas que os
levou para a Ásia Central e bem profundamente para dentro
do mundo do Islã. Finalmente eles fundaram o reino viking
de Rus, a origem da Rússia moderna. De sua fortaleza em
Kiev, eles estavam muito perto do lugar chamado
Michelgard, a Cirande Cidade, uma jornada perigosa pelo
Dnieper, mas a chave para riquezas jamais sonhadas."
"Foi assim que chegaram a Constantinopla?" perguntou
Costas.
Jack sorriu. "É verdade. Se você não acreditar, basta olhar
para os acúmulos de tesouros descobertos em sua pátria, a
Escandinávia, cheia de moedas de prata árabes que os
vikings adquiriram na troca por peles, escravos e âmbar."
Jack podia ver Costas olhando de maneira duvidosa para a
distância entre a Noruega e a Istambul de hoje. "Se você
ainda não estiver convencido, dê uma olhada nisto." Jack lhe
passou uma fotografia em preto-e-branco que mostrava um
parapeito de mármore polido, a superfície coberta com
grafito antigo. "Aqueles símbolos lineares na beirada? São
runas, letras vikings, provavelmente do século XI. Elas estão
muito danificadas para ser decifradas completamente, mas
um nome pode ser distinguido. 'Halfdan esteve aqui', ou
algo parecido. Pode adivinhar onde se encontra? A cada ano,
milhares de turistas passam por ela, a urna distância que
poderiam chegar a tocá-la. Está em um nicho na parede logo
acima da nave de Santa Sofia, no coração da antiga
Constantinopla. É quase certo que Halfdan era um dos
guarda-costas varegues, e, de acordo com a data, ele pode ter
sido um dos homens de Harald Hardraade."
Quando terminou de falar, um ruído que vinha do leste foi
se tornando cada vez mais alto e reverberante, e um
helicóptero Lynx surgiu das nuvens para logo depois descer
no heliporto perto da costa. "Vou acreditar em sua palavra."
Costas sorriu e devolveu a fotografia. "Bem, agora, acho que
devemos cumprimentar nossos convidados."
Poucos minutos depois, os dois homens estavam nas
proximidades do heliporto quando as duas turbinas Rolls-
Royce Gem foram desligadas e o principal rotor do Lynx
estremeceu e parou. A primeira figura a sair do
compartimento de passageiros foi uma mulher
surpreendentemente atraente vestindo uma jaqueta de
couro e jeans, os longos cabelos castanhos presos em um
coque frouxo. Maria de Montijo era uma das mais velhas
amigas de Jack, fazia parte de um grupo unido que incluía
Maurice Hiebermeyer e Efram Jacobovich, todos eles tendo
se conhecido quando eram estudantes em Cambridge. Maria
e Jack se ajudaram mutuamente em tempos difíceis e isso
criara um laço estreito entre eles. Jack a envolvera no
projeto do Chifre de Ouro desde o início, e fazia sentido que
fosse a primeira pessoa a ser chamada por ela depois das
novas sobre a espantosa descoberta na catedral de Hereford.
As morenas feições hispânicas de Maria abriram-se em um
sorriso enquanto abraçava Jack e, logo em seguida, Costas.
"Jack, você já conhece Jeremy, meu orientando americano
de doutorado." O jovem esbelto que apareceu atrás de Maria
afastou o cabelo loiro do rosto e estendeu a mão. Eles
haviam se encontrado várias vezes antes, quando Jack
visitara o Instituto para Estudos Medievais em Oxford, para
traduzirem um manuscrito de Topkapi recém-descoberto, o
relato de uma testemunha ocular sobre o cerco de
Constantinopla pelos cruzados, que continha a localização
exata e crucial da corrente através da enseada. Jack ficara
impressionado com a facilidade de Jeremy com o grego
medieval, e não tinha motivos para duvidar do julgamento
entusiasmado de Maria sobre seu potencial.
"Há quanto tempo você está fora dos Estados Unidos?",
perguntou Costas de maneira amigável.
"Três anos." Jeremy observou atentamente o homem baixo
através de seus óculos. "Eu tenho uma bolsa de estudos
esperando por mim em Princeton, mas parece que não sou
capaz de ir embora deste lugar."
"Conheço esse problema", disse Costas. "Eu continuo
tentando, mas a cada tentativa ele encontra algum motivo
para me manter aqui." Virou a cabeça para Jack e sorriu.
"Felizmente, trabalhar para uma organização internacional
significa que não fico preso no laço da garoa inglesa o ano
todo."
"Cavalheiros, permitam-me apresentar-lhes o padre Patrick
O'Connor." Maria fez um gesto em direção ao helicóptero e
eles se viraram para observar a figura que estava sendo
ajudada pelo piloto. Em um contraste chocante com o traje
de vôo e o capacete de piloto, ele usava a inconfundível
sotaina preta dos sacerdotes jesuítas, e estava carregando
duas pastas gastas de couro. Depois de acenar para o piloto,
ele caminhou a passos largos, de maneira confiante,
atravessando o heliporto. Colocou as pastas no chão e
apertou firmemente a mão de Jack. "Doutor Howard.
Encantado em conhecê-lo, finalmente. Maria contou-me
tudo a seu respeito, e é claro que eu o vi na tevê logo depois
das descobertas notáveis que fez no ano passado."
Jack olhou atentamente para o outro homem. O sotaque
tinha um resquício de dialeto irlandês, mas podia facilmente
ser de Boston. Ele supôs que O'Connor fosse um cinqüentão
jovial; os cabelos que lhe restavam eram cinzentos e
cortados rente, mas tinha um rosto que havia sido exposto às
intempéries e o corpo saudável de um homem que não
passara a vida toda em mosteiros.
"Maria contou-me que você tem um Ph.D. em história
antiga da Igreja", disse Jack.
"Trinity College, Dublin, depois Heidelberg", replicou
O'Connor. "Em seguida encontrei minha vocação. Passei
vinte anos na América Central, sobretudo no México,
fazendo o que os jesuítas fazem melhor: construindo
escolas, atendendo os doentes, tentando levar a humanidade
para locais onde, por vezes, é difícil encontrar qualquer
traço dela."
"E depois você encontrou o mundo acadêmico de novo."
O'Connor aquiesceu. "Há cinco anos. Eu já tinha feito
minhas viagens profissionais e solicitei um período de férias
na Biblioteca do Vaticano. Para minha alegria ofereceram-
me uma posição sob medida no Departamento de
Antiguidades, como inspetor de construções antigas e
arqueologia. A oferta cobria a fiscalização de tudo o que
havia em Roma sob o controle do Vaticano até a época da
Renascença, e me deixava com bastante tempo livre para a
minha própria pesquisa. Estive em Oxford para ouvir o
seminário de Maria sobre Richard de Holdingham e o
Mappa Mundi, uma de minhas áreas de interesse especial.
Acredito que tenho algo para oferecer."
"É essa a razão pela qual estamos aqui", disse Jack. "Vamos
ao trabalho."
Depois de um rápido café no pátio, Jack os conduziu ao seu
escritório. Quase toda a extensão da antiga sala de visitas
estava ocupada com uma mesa de madeira maciça, a sua
superfície de carvalho nodoso fora feita com madeira de lei
supostamente recuperada de navios que haviam trazido os
invasores normandos para a Inglaterra. Sempre que se
sentava à mesa, Jack sentia o poder de sua ascendência
ilustre, como se os seus ancestrais que haviam tramado
guerras e viagens de descobertas, nessa mesma mesa, lhe
proporcionassem uma companhia espectral e o
encorajassem. Nesse momento, em lugar de compassos
náuticos e mapas em pergaminho, a mesa estava coberta
com instrumentos de exploração do século XXI, estações de
trabalho computadorizadas e consoles de comunicações. A
isto Maria acrescentou uma grande pasta dobrável em papel
manilha preto, que ela deixou em uma extremidade da mesa;
na outra, Jack ergueu uma tela de vídeo ligada a um laptop
que ele abriu ao lado da pasta preta.
Costas chegou ofegante depois de uma visita apressada ao
complexo de engenharia, e então Jack fechou a porta atrás
dele e diminuiu as luzes. Maria e O'Connor sentaram-se na
extremidade da mesa, com Jeremy de um lado e Jack e
Costas do outro.
"Há algo que não lhes contei pelo telefone, porque queria
mostrar-lhes isso pessoalmente." Maria falava lentamente, as
mãos pousadas no canto da pasta dobrada de papel manilha.
"O padre O'Connor estava em Oxford quando eu cheguei de
Hereford na noite de anteontem, e eu o pus imediatamente
a par de minha descoberta. Ele é a maior autoridade do
mundo nisso que vocês estão prestes a ver."
Quando Maria estava a ponto de levantar a capa da pasta,
O'Connor colocou a mão sobre a dela. "O que discutirmos
aqui deve permanecer em segredo", disse ele calmamente.
"Chegará o momento em que essa história poderá ser
manchete de jornal, mas até lá o vazamento da menor
informação poderia pôr tudo em perigo. E não estou falando
apenas de arqueologia. Vidas estão em jogo aqui, talvez
inúmeras vidas."
Ele soltou a mão de Maria e olhou para os outros, todos
concordaram. Maria olhou de novo para ele e levantou a
capa, abriu-a para revelar uma folha protetora de papel
tecido sobre uma prancha branca e dura. Ela retirou o papel
e eles viram a imagem que a havia paralisado no aposento
perdido da catedral dois dias antes. Costas soltou um longo
assobio e Jack levantou-se e esticou o pescoço para ver
melhor. O velino tinha cerca de um metro quadrado, e havia
sido colocado sob uma lâmina transparente de poliuretano.
Mesmo depois de setecentos anos na poeira do aposento da
catedral, a tinta ainda estava escura e o contorno do mapa
claramente preservado.
"Fantástico", murmurou Jack. "Não tenho visto o Mappa
Mundi há muito tempo, mas isto é totalmente familiar.
Pode-se distinguir claramente a forma em 'T' do
Mediterrâneo e o mar Vermelho dividindo os continentes,
com a Ásia no topo e Jerusalém no centro. E a Europa e a
África estão corretamente indicadas."
O'Connor concordou. "Não tenho dúvidas de que este é o
original de Richard de Holdingham. O seu croqui, feito em
Lincoln, e depois embelezado com iluminuras em Hereford.
Olhe agora para o canto esquerdo inferior."
Jack já havia visto as linhas delicadas do texto e do desenho
para os quais Maria apontava, mas queria primeiro
compreender o mapa inteiro. Agora ele olhava atentamente
para a imagem além da margem ocidental do mundo, uma
imagem muito diferente da dedicatória inscrita nesse lugar
no mapa de Hereford.
"Meu Deus, elas realmente são runas", disse ele, excitado.
"Eu estou um pouco enferrujado, mas essa deve ser uma."
Ele apontava para a menor das duas inscrições e olhou para
Jeremy, que aquiesceu e recitou de memória.
"Harald Sigurdsson nosso rei com seus companheiros
intrépidos alcançou essas regiões com o tesouro de
Michelgard. Ali eles festejaram com Thor no Valhala e
esperaram o final da batalha de Ragnarok."
"Ragnarok é a batalha mítica no final dos tempos, quando os
guerreiros no Valhala buscarão a glória final", contou Maria.
"A segunda inscrição e o desenho são virtualmente idênticos
ao Mapa de Vinland, que mostra o contorno da costa
descoberto por Leif Ericsson do outro lado da Groenlândia,
por volta do ano 1000 d.C. Sigurdsson era o nome de família
de Harald Hardraade. A implicação disso é que Hardraade e
seus companheiros, na verdade, alcançaram a América uma
ou duas gerações depois que os primeiros vikings já a tinham
tornado conhecida."
"Com o tesouro de Michelgard, de Constantinopla",
murmurou Jack, excitado. "É por isso que estamos aqui. Eu
só queria saber o que ele levou. É muito improvável que
tenha sido uma carga de navio com bronzes clássicos."
"Olhe atentamente para aquelas runas", disse O'Connor.
"Então você compreenderá a razão de estarmos aqui."
Jack examinou cuidadosamente o texto de cima a baixo,
desde a tinta mais nítida das linhas inferiores até as
inscrições mais apagadas acima. Os símbolos pareciam ser
uma versão-padrão do futhark, o alfabeto rúnico nórdico
cujo nome corresponde às suas primeiras seis letras. Ele não
viu nada excepcional até chegar ao símbolo apagado no
início da inscrição, um símbolo que havia sido desenhado
ligeiramente maior, como a primeira letra de um manuscrito
com iluminuras.
Ele pegou a lente de aumento oferecida por Jeremy e
inclinou-se para examinar mais de perto. "Essa,
definitivamente, é estranha", ele disse. "Ela parece ser um
símbolo futhark para a letra F com os braços dirigidos para
cima de cada lado, só que aqui ela tem três braços em vez de
dois e está repetida simetricamente do outro lado."
Jeremy sacudiu a cabeça com impaciência. "Esqueça as runas
por um momento. Pense fora do padrão."
Jack ergueu os olhos e fitou Jeremy de modo inexpressivo,
depois tornou a olhar o desenho. Subitamente, sua boca
abriu-se e ele quase deixou cair a lente de aumento.
"A menorá?
"Foi Jeremy quem a notou primeiro", disse Maria depois de
um silêncio. "Eu estava completamente envolvida com
aquele mapa extraordinário."
"Uma distração compreensível", comentou Costas sorrindo
para ela.
"Os ancestrais de meu pai eram judeus sefardis", replicou ela
baixinho. "Expulsos da Espanha pelo rei cristão não muito
tempo depois que seus cruzados estavam tentando salvar a
Terra Santa. Uma das grandes ironias da história."
Jack sentou-se lentamente, seu rosto mostrava uma
incompreensão espantosa.
O'Connor empurrou o laptop na direção de Jack e colocou
um CD no drive. "Desculpe-me por interromper", ele disse.
"Mas, se estamos falando sobre a menorá, precisamos saber
algo de sua história. Acontece que o mistério do perdido
tesouro judaico do templo é outra de minhas paixões
especiais."

4

Momentos depois, uma visão espetacular da antiga Roma
apareceu na tela, na outra extremidade da mesa. No primeiro
plano, um arco de mármore, perfeitamente proporcionado,
elevava-se por vários andares de altura, sua superfície
corroída ornada com esculturas em relevo. Eles podiam
discernir troféus, estandartes, coroas de louro e vencedores
alados em pé sobre globos. No pano de fundo aparecia
indistintamente a vasta fachada do Coliseu.
"O legado mais duradouro da dinastia flaviana de
imperadores, Vespasiano e seus filhos Tito e Domiciano",
disse O'Connor. "O Arco de Tito fica sobre a Via Sacra no
centro de Roma. O Coliseu foi financiado com os espólios da
Guerra dos Judeus, e inaugurado por Tito em 80 d.C. Ele foi
construído perto do colosso de Nero, uma estátua
monstruosa recoberta de bronze que deu o nome ao
anfiteatro."
"Mas não até o período medieval", interpôs Jeremy. "O
nome Coliseu aparece pela primeira vez na Historia
Ecclesiastica Gentis Anglorum de Beda, o Venerável, no
século VIII d.C." Ele olhou encabulado para o grupo. "Um
outro de nossos achados na biblioteca Hereford."
"A Guerra dos Judeus", disse Costas. "Uma outra desculpa
para violação e pilhagem em escala colossal?"
"Ela foi bem terrível, mesmo para padrões romanos",
replicou O'Connor. "Provavelmente uma proporção maior
da população judaica foi aniquilada na guerra de 66 a 70 d.C.
do que durante o holocausto nazista, ou mortos em batalha
ou passados a fio de espada em uma orgia de vingança que
durou mais de três anos. Mas a história é mais complexa do
que se pode pensar. O Estado judeu gozou de um grau
incomum de autonomia sob Roma, e houve vínculos
próximos com os imperadores. O rei Herodes Agripa da
Judéia foi educado em Roma e era amigo do imperador
Cláudio. Uma geração mais tarde, o historiador judeu Josefo
tornou-se confidente de Vespasiano, tendo trocado de lado
durante a rebelião. Ele é malvisto porque os judeus nunca o
perdoaram, mas seus escritos são inestimáveis, pelo fato de
ter sido a única testemunha ocular a relatar a guerra e o
triunfo de Roma em 71 d.C."
E o arco?
"Construído no local de um arco anterior, exatamente onde
a procissão triunfal se tornou visível, pela primeira vez, para
a enorme multidão que esperava no Fórum." Ele bateu numa
tecla e deu um close com a lente zoom em uma inscrição no
ático do arco acima da passagem. "Senatus Populusque
Romanus", ele leu. "O Senado e o Povo de Roma, para o
Divino Tito, filho do Divino Vespasiano, Vespasiano
Augusto. Isto mostra que o arco era dedicado pelo
imperador Domiciano, que sucedeu seu irmão Tito em 81
d.C. Com algumas exceções evidentes, como Nero, o título
Divino só era conferido aos imperadores depois de sua
morte. A escultura no teto da passagem até mostra a
deificação de Tito, dirigindo-se para o céu nas costas de uma
grande águia."
"O triunfo era um assunto familiar", acrescentou Jack, seu
comportamento agora novamente próximo ao normal,
depois do choque que experimentara ao ver o símbolo da
menorá. 'De acordo com a tradição, Vespasiano era o
principal oficiante como imperador na época, mas o senado
romano votou um triunfo duplo ao reconhecer Tito como
general vitorioso. Domiciano estava aumentando seu
próprio prestígio ao honrar as gloriosas realizações de seu
irmão e de seu pai."
O'Connor passou por uma seqüência de tomadas, cada uma
levando-os mais para perto do arco, como se ele estivesse
passeando ao longo da Via Sacra a partir do Coliseu. Através
da passagem sob o arco eles puderam distinguir o coração da
antiga Roma, a desordem de ruínas no antigo Fórum com
suas colunas despedaçadas, vestígios de tribunais de justiça e
de templos e as fortes paredes de tijolos do Palácio do
Senado. Além da praça pública se localizava a colina
Capitolino, onde as fundações do Templo de Júpiter ficaram
enterradas debaixo do palácio medieval construído por
Michelangelo e do extravagante Monumento de Vitório
Emanuel que dominava o horizonte moderno de Roma.
"E agora a parte incrível", entusiasmou-se O'Connor. "É aqui
que a história antiga realmente se torna viva para mim, mais
ainda do que na arena do Coliseu. Quando se fica parado
debaixo do arco é como se aqueles poucos momentos da
alvorada, dois mil anos atrás, estivessem sendo
continuamente interpretados de novo, impressos no
mármore. Dá para sentir a exaltação dos vitoriosos, a fúria
mal contida da multidão, o terror dos condenados. Podemos
ouvir a batida do tambor, sentir a vibração da procissão. Isto
nunca deixa de me dar um calafrio na espinha."
Ele parou em uma imagem de um painel em relevo
carcomido. "Na parede da passagem através do arco, do lado
direito, de frente para a praça", ele explicou. "Podemos ver
Tito em uma quadriga, um carro com quatro cavalos,
conduzida pela deusa Roma. O sacerdote atrás dele está
carregando longas machadinhas, fasces, que serão usadas
para sacrificar touros castrados nos degraus do Templo de
Júpiter."
Ele bateu de novo na tecla. "E isto se encontra do lado
esquerdo."
O'Connor reclinou-se na cadeira enquanto eles absorviam a
cena. Ela mostrava-se fragmentada e gasta, mas a parte
central estava suficientemente visível. Era uma das obras-
primas da escultura em relevo de Roma. Do lado direito
havia um arco triunfal em três quartos de vista, com duas
quadrigas no topo. No segundo plano viam-se cartazes
afixados sustentados no alto como estandartes, com espaços
vazios onde outrora haviam sido pintadas algumas inscrições
com os nomes de cidades e de povos derrotados na guerra.
Debaixo das inscrições, havia a imagem que por quase dois
mil anos tinha incentivado o ardor de um povo determinado
a reconstruir seu templo mais sagrado, e de seus inimigos,
que juraram fazer tudo o que estivesse em seu poder para
impedir que isso ocorresse. Ela mostrava uma procissão de
soldados vestidos com túnicas, coroados com grinaldas de
vitória, carregando duas padiolas, e cada uma delas
sustentava um objeto ornamentado levantado de modo que
todos pudessem ver. À direita, dirigindo-se para o arco,
havia uma mesa decorada com trombetas, o grande altar do
Templo Judaico. A esquerda, no primeiro plano, uma forma
extraordinária, mas inconfundível, uma coluna afilada com
três braços de cada lado curvando-se para cima em
semicírculos concêntricos, sendo que cada braço terminava
no mesmo nível e era completado com um remate
elaborado na forma de uma lamparina.
Costas soltou um assobio baixo. "Isso é que é castiçal."
"A menorá." O'Connor falou com uma excitação mal
contida. "O símbolo mais reverenciado do judaísmo,
colocado imediatamente na frente do santuário no Templo.
A menorá representa a luz de Deus, e lembra as pessoas do
antigo símbolo de sete braços: a Árvore da Vida. A menorá
do Templo era um dos tesouros mais sagrados do povo
judeu, sendo superada apenas pela Arca da Aliança."
"Era muito antiga?", perguntou Costas.
"Há os que acreditam que a menorá do Templo era a própria
menorá do Tabernáculo, ordenada por Deus quando instruiu
Moisés no Monte", disse O'Connor. "A tradição rabínica
conta que Deus mostrou a menorá envolta em fogo, e que a
luz divina irradiava em ouro puro. A primeira menção da
menorá encontra-se no Pentateuco, o Antigo Testamento
judaico. No Livro do Êxodo, Deus instrui os israelitas sobre a
forma de seu santuário no deserto, sobre o Tabernáculo, a
base do Santo dos Santos no Templo construído pelo rei
Salomão em Jerusalém mil anos antes da chegada dos
romanos." Ele fechou os olhos e recitou de memória. "E faça
um candelabro de ouro puro. E dos seus lados sairão seis
braços; três braços do candelabro saindo de um de seus lados
e três braços do outro. E faça as lamparinas em número de
sete, para dar luz diante dele. De um talento de puro ouro
ele deverá ser feito."
"Um talento." Costas esfregou o queixo pensativo. "Isto
equivalia a quanto?"
"O talento de que fala a Bíblia tinha cerca de trinta e quatro
quilos, setenta e cinco libras", replicou O'Connor. "Mas não
considere isso como valor nominal. Um talento era a maior
unidade de peso comumente usada, e provavelmente foi
empregada no Antigo Testamento de maneira figurativa,
para representar o maior peso que as pessoas pudessem
prontamente quantificar."
"Foram necessários pelo menos dez soldados romanos para
erguer a menorá, cinco de cada lado." Costas olhava
atentamente a imagem na tela. "A base parece ter pelo
menos um metro de diâmetro, e estou supondo que também
era de ouro. Se o arco foi esculpido apenas uma década
depois do triunfo, então muitas pessoas em Roma viram o
original, e assim a escultura provavelmente não é um
exagero. Com a base, eu suponho que estamos olhando para
cento e trinta, talvez cento e sessenta quilos de ouro, quatro
ou cinco talentos pelo menos. Isso equivale a milhões de
dólares com o valor dos lingotes nos dias de hoje."
"É de um valor incalculável", disse O'Connor concisamente.
"Um símbolo de nacionalidade, de todo um povo. Ninguém
jamais valorizará a menorá apenas em termos monetários."
"Mas esse é certamente o ponto." Jeremy voltou-se e olhou
para O'Connor, sua voz nervosa, mas persistente. "Os
vikings não ligavam a mínima para símbolos de
nacionalidade. Costas tem razão de considerá-la em termos
monetários. Na pátria dos vikings, a prata era o metal
precioso predominante, e o ouro era um prêmio
extraordinário. Dificilmente ele será encontrado em reservas
vikings escondidas. Cento e trinta quilos de ouro
assegurariam para Harald Hardraade o lugar de homem mais
poderoso de toda a Escandinávia. Então, dada a
oportunidade de uma pilhagem rápida, ele e seus
companheiros optaram pelos maiores objetos em ouro que
puderam encontrar. Substitua os vikings pelos romanos
carregando a menorá e você terá o instantâneo de uma noite
tempestuosa no Chifre de Ouro quase mil anos depois."
Jack concordava enquanto ouvia Jeremy falar, e sentia
aumentar o respeito que sentia pelo conhecimento do
jovem. "Uma imagem extraordinária. Mas, antes de nos
voltarmos para os vikings, vamos tentar compreender como,
diabos, a menorá foi parar em Constantinopla."

Meia hora mais tarde, Jack estava parado, ao lado de Maria e
Jeremy, diante de um edifício das proporções de um hangar
de aeronaves, uma construção de pedra tirada da beira do
estuário. O'Connor havia pedido um intervalo para pesquisar
algumas referências-chave no banco de dados da IMU, e
Jack aproveitara a oportunidade para dar com os outros um
breve passeio pelo campus. Eles tinham chegado ao
complexo de engenharia justo a tempo de ver abrir-se a
porta do depósito principal e um estranho dispositivo
aparecer sobre a plataforma com roletes puxada pelo
caminhão.
"Meu último filhote", gritou uma voz. "Venham até aqui e
deixem-me mostrá-lo."
Eles olharam o interior cavernoso e viram Costas
comandando uma equipe de operários atrás do caminhão;
seu macacão estava coberto com uma nova camada de óleo e
sujeira. Ele tinha saído do encontro ao mesmo tempo que
O'Connor e achava-se agora completamente absorvido em
seu trabalho. No hangar via-se uma desordem incrível de
projetos técnicos, alguns ainda na prancha de desenho e
outros nitidamente em estágio experimental. Através do
facho de luz de um maçarico, Jack pôde perceber a forma
danificada do ADSA, o Anthropod Autônomo para Mar
Profundo, que o salvara do naufrágio do Seaquest apenas seis
meses antes. Dispostos de cada lado encontravam-se os
Aquapods, os submersíveis de um só lugar através dos quais
ele e Costas viram pela primeira vez as paredes cobertas de
lama da Atlântida, sua carapaça de metal ainda com faixas
amarelas por causa das águas sulfurosas do mar Negro.
"Estamos quase prontos para começar a operar", explicou
Costas. "Uma verificação final nos sistemas e estará pronto."
Jack e Maria abriram caminho na direção de Costas através
de pilhas de aparelhagens e de projetos semi-acabados,
enquanto Jeremy vinha na retaguarda. Costas levantou a
mão para desligar um gerador e o ruído contínuo e sinistro
cessou. Ele os chamou com um gesto por cima do
dispositivo puxado pelo caminhão, o rosto brilhando de
excitação. "Vocês podem ter visto algo parecido com isto em
nossas fotos do Chifre de Ouro", disse ele para Maria e
Jeremy. "O furão, o perfurador que funciona por baixo do
fundo do mar e que estamos usando para escavar através do
leito das águas até as camadas medievais. Eu ainda não tenho
um nome para este dispositivo, mas ele faz um trabalho
similar. Descobriram a diferença?"
"Deixe-me dar uma olhada", Jeremy estendeu o pescoço,
olhando com muita atenção para a extremidade da frente do
dispositivo. Ele resmungou, parou para olhar debaixo da
armação e depois se endireitou, ignorando a mancha de
graxa que tinha aparecido em sua jaqueta de tweed.
Levantou os óculos e olhou de soslaio para Costas. "Ele corta
através do gelo."
"Muito bem", Costas ergueu as sobrancelhas e piscou para
Jack. "Continue."
"Ele tem um elemento elétrico ao redor da borda", disse
Jeremy. "Suponho que seja um elemento superaquecido que
usa materiais semicondutores, provavelmente em uma
matriz de cerâmica. E a caixa atrás parece ser um aparelho
laser de alta potência."
"Estou impressionado. Muito bom para um historiador da
Idade Média. Você está no negócio errado."
"Quando eu solicitei a bolsa de estudos Rhodes, podia
escolher entre engenharia ou anglo-saxões, nórdicos e
celtas. Minha escola era muito conservadora."
"Você escolheu o que ninguém quer fazer."
"Eu discordo", disse Maria. Todos riram e Jeremy olhou
tristemente para o dispositivo. Costas bateu com a mão cheia
de óleo nas costas de Jeremy e voltou-se para Jack.
"Estamos despachando o dispositivo, por via aérea, esta
noite", ele disse, agora sério. "Recebi um telefonema de
James Macleod alguns minutos atrás e ele disse que as
condições do gelo são perfeitas. Se esperarmos um ou dois
dias, o derretimento por causa do verão pode tornar o
experimento muito arriscado. Estou voando para a
Groenlândia amanhã de manhã para supervisionar a
instalação do aparelho. E há algo mais. Ele mencionou um
velho do lugar que afirma ter visto no gelo madeiras de lei
que pertenceram a navios antigos. Algo relacionado com
expedições européias que voltaram, antes da Segunda Guerra
Mundial. Macleod estava convencido de que você deveria
ver o sujeito e depressa. Aparentemente ele está bastante
debilitado. Sei que isso acarreta um bocado de desvio na sua
viagem de volta a Istambul, mas você pode querer dar uma
olhada de perto."
Ao voltar ao escritório, Jack pegou o celular e girou a cadeira
de modo a ficar de frente para a mesa de conferência.
Depois de conversar com Maurice Hiebermeyer e Tom
York no Sea Venture, sentiu-se mais tranqüilo, certo de que
a escavação no Chifre de Ouro poderia continuar por
quarenta e oito horas sem sua presença. O prêmio maior, ele
sabia agora, poderia estar em outro lugar, onde nunca teria
imaginado, mas o Chifre de Ouro podia ainda conter
tesouros de inestimável valor histórico. Depois da
descoberta do canhão e da corrente, a equipe estava bastante
eufórica e já havia começado a usar a sonda para penetrar
nos sedimentos do ancoradouro, mas isto vinha sendo feito
sem um prévio planejamento e poderiam se passar dias antes
que eles tivessem sucesso.
"Muito bem", disse Jack. "O que vocês conseguiram?"
O'Connor sentou-se com um pequeno livro de capa verde
aberto diante de si, onde se via um texto em grego de um
lado e um em inglês do outro. Costas havia se desculpado
por não comparecer, mas Maria e Jeremy sentaram-se
cheios de expectativa ao lado de Jack.
"Em seu livro As Guerras dos Judeus, Josefo nos conta que
Vespasiano trancou os tesouros no Templo de Júpiter",
começou O'Connor. "Mas nós sabemos que eles foram
transferidos para o Templo da Paz quando este ficou pronto,
alguns anos mais tarde, ainda no reinado de Vespasiano.
Depois disso, a menorá não foi mencionada durante
centenas de anos."
"Mas certamente o imperador deve ter desejado exibir seu
saque em todas as oportunidades, nos desfiles e festivais da
cidade", protestou Maria.
"Vespasiano era a personificação suprema das virtudes
imperiais dos romanos", interpôs Jack. "Conquistar,
estabilizar, construir. Quando jovem, ele havia comandado
uma legião durante a conquista da Grã-Bretanha, e como
imperador supervisionou a conquista da Judéia. Em seguida
ele estabilizou o império depois do reinado desastroso de
Nero. Então estava inteiramente absorvido pelas
construções. O Templo da Paz, os monumentos em praça
pública danificados pelo grande incêndio em 64 d.C., no
reinado de Nero, sobretudo o Coliseu. Ele não precisava
proclamar seus triunfos em altos brados."
"Pode haver outras razões", disse O'Connor cuidadosamente.
"Vocês sabem, há um aspecto estranho no relato que Josefo
faz sobre o triunfo: ele relata apenas a execução de Simão, o
carismático líder judeu que foi levado acorrentado para
Roma. Não há nada acerca do destino das centenas dos
demais judeus capturados, homens, mulheres e crianças.
Alguns de nós acreditamos que houve uma orgia de
assassinatos no final da procissão, uma cena tão aterrorizante
que Josefo não conseguiu descrevê-la. Afinal, aquele era o
seu povo, e ele nunca renunciou à fé judaica. Quando
Vespasiano assistiu ao massacre, ele também condenou a
cena. O imperador era um soldado velho e rijo, tão cruel
com seus inimigos como qualquer romano, mas era bem
conhecido por seu ódio contra o derramamento de sangue
gratuito. Talvez ele tenha inventado um mau augúrio como
desculpa para nunca celebrar de novo o triunfo contra os
judeus, instruindo em segredo os sacerdotes para manter a
menorá trancada para sempre."
"E assim os vestígios desaparecem", disse Maria.
"Tudo o que temos para prosseguir está em Procópio."
O'Connor mostra o livro à sua frente. "Ele foi uma
testemunha ocular da última grande tentativa para reunir o
Império Romano, quando o general Belisário recapturou
Roma dos vândalos e godos que haviam infestado as
províncias ocidentais no século V d.C."
"Surpreende-me que a menorá tenha sobrevivido por tanto
tempo em Roma sem ser roubada", disse Jack. "Aqueles não
foram exatamente séculos de paz e harmonia. Pense em
Cômodo, o filho demente de Marco Aurélio. Ele pensava ser
o deus Hércules e derreteu a maior parte do tesouro imperial
para pagar torneios de gladiadores. Ou a anarquia do século
III, quando houve mais de trinta imperadores em cinqüenta
anos. O Templo da Paz era um repositório bem conhecido
de espólios de guerra, e suas tesourarias certamente foram
abertas para encontrar ouro com que pagar os exércitos
mercenários de cada novo pretendente ao trono."
"Realmente." O'Connor fez uma pausa, depois olhou de
modo penetrante para Jack e baixou o tom da voz. "Devo
pedir-lhe para manter o que vou dizer dentro destas quatro
paredes. A resposta está olhando para nós na imagem do
Arco de Tito. Nos anos 1970, uma inspeção feita com sonar
por uma equipe de conservação revelou um aposento
secreto no ático, atrás da inscrição com dedicatória."
O queixo de Jack caiu. "Você está sugerindo que a menorá
estava escondida dentro do arco?"
O'Connor hesitou de novo, depois procurou algo dentro de
sua sotaina e retirou um envelope marrom. "Poucos sabem
que o Arco de Tito está sob o controle do Vaticano, um dos
muitos monumentos antigos em Roma consagrados pela
Igreja na Idade Média como uma forma de estampar a
autoridade do papa em tudo que era pagão. Meu predecessor
no Departamento de Antiguidades do Vaticano tentou
incessantemente conseguir que abrissem o aposento, mas a
cada vez sua solicitação era rejeitada pelos cardeais. Acredito
que a sua persistência foi a principal razão paia que o
demitissem do Vaticano. Eu finalmente consegui isso no
mês passado durante o programa de trabalho habitual de
reparação no arco. Uma noite, o chefe da Conservação e eu
estávamos sozinhos no andaime inspecionando o
andamento dos serviços, e uma pedra contígua ao aposento
caiu. Um acidente, é claro, você compreende."
Jack ergueu as sobrancelhas enquanto O'Connor retirava
ama fotografia do envelope e a estendia para o outro lado da
mesa, sua mão conservando-se sobre a foto enquanto olhava
para Jack. "Não é apenas o meu trabalho que está em jogo
aqui. Há mais, muito mais."
Maria e Jeremy estenderam o pescoço enquanto Jack pegava
a fotografia. Ela mostrava uma imagem tirada com luz de
lanterna dentro de um pequeno aposento, as paredes polidas
e descoloridas com faixas marrons e verdes. No chão havia
restos de matéria apodrecida, salpicada com fragmentos de
madeira e tecido. Parecia ser a tumba de um faraó egípcio
aberta pela primeira vez, depois de ter sido saqueada muito
tempo antes na Antiguidade.
"Eu consegui entrar lá dentro e peguei um punhado daquele
material, que analisei secretamente", disse O'Connor
tranqüilamente. "Era madeira de acácia, a madeira dura
mencionada no Antigo Testamento. Foi provavelmente
usada para fazer uma padiola, algo que requeria bastante
força para sustentar peso. E a seda era tingida com a púrpura
de Tiro, o valioso corante derivado da concha marinha
encontrada nas costas do Líbano."
"Meu Deus", murmurou Maria. "O Véu do Templo, o
cortinado sagrado do Santo dos Santos, usado para ocultar o
santuário do resto do Templo."
O'Connor concordou. "Provavelmente utilizado pelos
romanos para envolver a menorá e a mesa de ouro."
"Nesse caso, elas estavam dentro do arco todo o tempo,
diretamente acima do símbolo da menorá na escultura em
relevo." Jack sacudiu a cabeça com espanto. "Os sacerdotes
devem tê-las transportado do Templo da Paz, sob o segredo
da escuridão, para muito perto, ao alcance de uma pedrada."
"E então, centenas de anos depois, um dos zeladores deixou
escapar o segredo, talvez usando a revelação do tesouro
como um meio de troca vantajoso para salvar sua própria
pele quando houve a invasão dos bárbaros", disse O'Connor.
"Roma foi devastada pelos godos, sob o comando de Alarico,
em 410 d.C., e depois de novo pelos vândalos em 455. De
acordo com Procópio, o rei vândalo Giseric capturou os
tesouros judaicos e levou-os para Cartago, no norte da
África, e depois o general bizantino Belisário tirou Cartago
dos vândalos em 533 e enviou os tesouros, por navio, para
Constantinopla. Procópio nos conta que o imperador
bizantino Justiniano foi dominado pela compaixão e
devolveu os tesouros para Jerusalém, mas não acredito em
nada disso. Não há registro confiável de que os tesouros do
Templo estejam de novo na Terra Santa."
"Então a menorá realmente estava em Constantinopla."
Maria olhou atentamente para O'Connor. "Será que a
história de seu retorno para Jerusalém foi uma ocultação da
verdade, uma pista falsa?"
"É muito provável", replicou O'Connor. "Procópio se tornou
o chefe da prefeitura de Constantinopla, e era membro da
corte interna de Justiniano. Os rituais e as superstições da
Roma pagã continuaram durante o período cristão, e os
imperadores da idade dourada eram venerados. Talvez as
instruções de Vespasiano para ocultar a menorá ainda
tivessem poder através dos séculos, e a história do retorno
dos tesouros para Jerusalém fosse uma maneira de manter
secreta sua presença em Constantinopla. E simplesmente o
fato de os bizantinos serem cristãos não significava que eram
mais simpáticos aos judeus do que os romanos dos dias de
Vespasiano. Acredito que a menorá ficou trancada por mais
quinhentos anos, talvez bem profundamente nas
catacumbas da nova catedral de Justiniano, a Santa Sofia em
Constantinopla."
"Há quem acredite que os tesouros judaicos nunca saíram dc
Roma, mas que foram secretamente capturados pelas
autoridades papais e estão escondidos até hoje no Vaticano."
Jack lançou um olhar penetrante para O'Connor, sem saber
quanto o outro homem podia revelar. "Mesmo antes das
invasões bárbaras, a Igreja tinha começado a se apropriar de
templos em Roma e a despojá-los de seus artefatos, logo
depois da conversão de Constantino ao cristianismo no
século IV d.C."
O'Connor fez uma breve pausa antes de replicar com voz
baixa, mas deliberada. "É verdade que o Vaticano oculta
tesouros, Obras de arte de valor inestimável que não são
vistas há gerações. Há passagens fechadas nas catacumbas de
São Pedro que nem eu cheguei a ver." Ele olhou
solenemente para Jack. "Mas posso lhe assegurar que a
menorá não se encontra entre esses tesouros. Se fosse assim,
eu não estaria aqui, agora. As autoridades papais me teriam
feito jurar manter segredo. Lembre nossa história. Os
tesouros do Templo judaico representam o último triunfo da
cristandade, retribuição pela cumplicidade dos judeus na
morte de Cristo. Se nós os mantivéssemos, isso deveria ser o
segredo mais bem guardado do mundo. Qualquer
informação que vazasse e haveria guerra."
"Guerra?" perguntou Jeremy, cético.
"Total ruptura nas relações entre o Vaticano e Israel.
Animosidades antigas entre judeus e cristãos prevaleceriam
através do mundo, reacendendo o anti-semitismo e o ultra-
sionismo em uma escala terrível. E se o tesouro retornasse a
Jerusalém, ele acenderia a faísca da luta final no Oriente
Médio que tememos há muito tempo. Alguns judeus
ortodoxos acreditam que a restituição da menorá para
Jerusalém seria o primeiro passo para a reconstrução do
Templo, no lugar atualmente ocupado pela mesquita Al-
Aqsa, um dos locais mais sagrados do Islã. A menorá daria a
Israel total confiança no seu destino, conferindo poderes aos
fundamentalistas e persuadindo os indecisos. E o mundo
árabe saberia de uma vez por todas que suas exigências
nunca seriam alcançadas por meio de negociação."
"É curioso que os nazistas nunca tenham vindo procurar os
tesouros em Roma", disse Jack.
"A Segunda Guerra Mundial foi um período negro para a
Igreja", disse O'Connor de maneira severa. "O papa nunca
deu a Hitler uma desculpa para saquear o Vaticano. Mas
houve muitos outros batendo às nossas portas desde então.
Sionistas fantasiosos, teóricos de conspirações, caçadores de
tesouros que acreditam estar no caminho para encontrar o
Santo Graal. Eu posso lhes assegurar que todos eles entraram
em becos sem saída."
Naquele momento houve um alvoroço e Costas irrompeu na
sala. "Sinto interromper", disse ele, ofegante. "Mas acho que
você deve ver isto." Apressou-se em entregar um pedaço de
papel para Jack. "Lembra-se daquelas madeiras com a
corrente no Chifre de Ouro? Você achou que elas pareciam
um pouco estranhas."
"Camadas superpostas, unidas com rebites de ferro." Jack se
esforçou para desviar sua mente da menorá e focalizá-la no
achado do dia anterior. "São mais encontradas na tradição de
construção de navios na região noroeste da Europa durante
o início do período medieval. Seria uma construção estranha
para uma galera de Veneza de 1453."
"Bem, aqui está sua resposta." Costas inclinou-se para a
frente, muito excitado. "A amostra que tiramos acaba de ser
analisada. Trata-se de carvalho escandinavo. E é da proa de
um drakar viking, não de uma galera do Mediterrâneo.
Parece que ele se partiu na corrente, provavelmente sem
provocar o afundamento do barco. E verifique a data
calculada pelos anéis da árvore."
"1042, um ano a mais ou a menos", leu Jack, com a mente
perplexa e espantada.
Jeremy soltou um grito e levantou-se, incapaz de conter-se.
"Isto se ajusta perfeitamente! Harald Hardraade escapou de
(Constantinopla em 1042. Seu navio pode ter sido
construído um ano antes, nas praias do Báltico. Vocês não
encontraram a corrente do saque de Constantinopla de
1204. O que vocês encontraram foi a corrente afundada por
um bando de mercenários vikings Um século e meio antes,
quando eles aumentavam a propulsão do barco para sair do
Chifre de Ouro."
Costas olhou para a imagem dos soldados carregados com o
saque na procissão triunfal sob o arco. "E agora sabemos o
que podia ter fornecido ao seu barco o peso para quebrar
aqueles grilhões."
"A menorá." Jack sacudiu a cabeça e depois sorriu ampla-
mente para Costas. "Eu devo cumprimentá-lo por isso. E
também à ciência."


5
Jack olhou pela janela ao seu lado enquanto a aeronave se
inclinava a estibordo e a visão da extensão do oceano
aparecia dramaticamente. O céu estava claro e sem nuvens
nesse início de manhã, e o sol iluminava as ondas cerca de
nove mil metros abaixo. Fazia meia hora, desde que tinham
feito uma parada para reabastecer em Reykjavik, que não
viam terra, mas, depois de passarem pelo Círculo Ártico, o
mar tornou-se cada vez mais salpicado de branco. Algumas
das formas eram enormes, grandes placas brancas
circundadas por turquesa onde o iceberg continuava por
centenas de metros debaixo da água. Agora os icebergs
estavam unidos pelo mar de gelo, um mosaico rachado de
branco até onde a vista conseguia alcançar, e Jack pôde
distinguir as primeiras extensões de terra adiante deles, na
direção oeste. Ele inclinou-se para a ocupante do assento à
sua frente e apontou pela janela.
"Dá para ver a calota de gelo da Groenlândia."
"É de tirar o fôlego."
O rosto de Maria estava radiante de excitação, e Jack sentiu
de novo que fizera bem em convidá-la para vir com eles.
Depois que O'Connor viajara para Roma, três dias antes, Jack
telefonara a James Macleod para avisar que acompanharia de
perto o trabalho de Costas e sua descoberta no gelo. Havia
mais, muito mais, um desenvolvimento de fatos excitantes
nos últimos dias que agora tornava a visita de Jack
imperativa. O furão de gelo havia trazido uma amostra que
tornava o relato de um navio enterrado no gelo algo mais
concreto do que uma simples lenda local. Jack também
ficara sabendo de um achado que necessitaria da perícia de
Maria e Jeremy, e ambos ficaram contentes com a
oportunidade de juntar-se a ele, durante alguns dias, em um
dos principais navios de pesquisa da IMU, para um dos mais
extraordinários projetos que jamais haviam empreendido.
Agora todos se encontravam acomodados em um Embraer
BEM-145XR reformado, o jato regional da IMU usado para
transporte pessoal ao redor do mundo. Do outro lado do
corredor, Jeremy estava curvado atrás de uma pilha de
papéis e livros, digitando tranqüilamente em um laptop. Jack
fechou a Introdução ao escandinavo antigo que estivera
lendo e olhou pela janela. Durante os últimos dias tinha
ficado absorvido por Harald Hardraade, alimentando uma
paixão de criança. Do lado da família de sua mãe, Jack
descendia do povo da costa de Yorkshire, alto, loiro e com
um sotaque que ainda retinha um ritmo escandinavo, e Jack
sempre sentira uma forte afinidade com seus ancestrais
nórdicos. Harald Hardraade era o maior de todos os heróis
vikings, no entanto a sua vida não fora completa. Um
homem que seria rei, cujo destino parecia demasiado grande
para ser realizado mesmo por ele. Com uma decisão rápida,
Harald poderia ter ganhado a batalha de Stamford Bridge e a
história da Inglaterra e do mundo inteiro leria sido diferente.
Jack havia dirigido sozinho, no dia anterior, até o lugar perto
de York, tinha caminhado pelos campos barrentos
procurando o local onde Harald havia empunhado sua acha-
de-armas pela última vez. Ele sentiu-se próximo de Harald,
quase sentira uma presença, no entanto voltara
estranhamente insatisfeito. Algo não estava muito certo.
Defronte a ele, na aeronave, Costas estava afundado no
assento, roncando espasmodicamente, a cabeça pendendo
devagar ale o peito e depois erguendo-se de novo. Ele ficara
durante toda a noite no laboratório de engenharia,
aperfeiçoando a explorado no gelo, e ainda vestia seu
macacão da IMU favorito e já bem esfarrapado. Com a barba
curta e o cabelo emaranhado, parecia-se mais do que nunca
com seu avô, um pescador de esponja grego que fizera
fortuna com exportações, mas que havia insistido para que a
família permanecesse próxima às suas raízes. Era um legado
que Costas havia involuntariamente desenvolvido com a
habilidade de um artista.
Jack sorriu para Maria quando Costas roncou e se mexeu, e
ambos desviaram o olhar para a janela. A costa da
Groenlândia oriental apareceu como uma linha irregular de
rochas entre o mar e as camadas de gelo, os afloramentos
expostos de granito envolviam braços de mar cheios de
placas brancas espalhadas. Logo eles se encontraram
diretamente sobre a própria capa de gelo, um carpete de um
branco brilhante que ondulava até o horizonte, sua
superfície pontilhada com bolsões de água derretida que
brilhavam como pedras de turquesa na manhã ensolarada.
Era uma das paisagens mais ameaçadoras do mundo, no
entanto possuía uma beleza que evocou o explorador em
Jack e o fez compreender o que impulsionara os
aventureiros nórdicos que pela primeira vez navegaram para
essas praias mil anos atrás.
"Há uma coisa que não compreendo." Costas havia
despertado subitamente com um solavanco, como se não
tivesse havido um hiato na conversa que estavam tendo uma
hora antes. "Harald Hardraade foi morto na Inglaterra, em
1066. Certo? Então, como a inscrição no mapa sugere que
ele morreu em algum outro lugar?"
Jack lançou um olhar espantado para Costas e ambos fitaram
Jeremy, que estava desarranjando uma pilha de papéis e
parecia completamente absorto em seu trabalho.
"Jeremy?", chamou Maria.
"Hum?"
"A batalha de Ragnarok na inscrição no mapa. Como isso se
ajusta com o fato de Harald ter morrido na de Stamford
Bridge?"
"Oh, o fraseado, provavelmente, era apenas figurativo", disse
Jeremy descartando o fato. "Todos os guerreiros vikings
mortos em batalha vão para o Valhala, onde servem a Odin e
esperam a prova final contra a maldade, em Ragnarok. O
Valhala era concebido como estando a oeste, além da borda
do mundo. A inscrição não implica necessariamente que
Harald e seus homens morreram ali."
"E o tesouro de Michelgard?"
"Receio não poder ajudá-la com isso."
"Jeremy, você está com meu exemplar de Sturluson?" Havia
um toque de irritação na voz de Maria quando Jeremy lhe
estendeu um livro sem olhar para ela, sua atenção de novo
focalizada no computador. Maria pegou o livro e o entregou
para Costas. A capa trazia a imagem de um cavaleiro
montado em seu cavalo, usando uma armadura de cota de
malha e um capacete descerrado bem ajustado, com
proteção para o nariz, e carregando um grande escudo
losangular.
"Parece um cruzado", disse Costas.
"Você não está longe", replicou Maria. "É uma cena de uma
tapeçaria na Noruega, que data do século XII, cerca de cem
anos após a morte de Harald. Mas, na ausência de qualquer
retrato dele, isso dá uma boa idéia do aspecto de Harald e
seus homens. A guarda varegue em Constantinopla era
formada por vikings, de nascimento e educação, e eles
traziam consigo a terrível acha-de-armas dos nórdicos. A
acha era a matéria-prima que constituía as lendas de homens
altos, implacáveis, apavorantes na batalha. Os varegues
tiraram vantagem da reputação de seus ancestrais, vikings
que tinham violado e pilhado em todos os lugares por onde
passaram na Europa ocidental, e haviam até navegado pelo
Mediterrâneo para aterrorizar a Itália e a França. Mas os
varegues também eram bons indivíduos cosmopolitas que
passaram a vida adulta em Constantinopla, a cidade mais
sofisticada no mundo medieval, servindo aos imperadores
bizantinos. Suas armaduras e os ornatos de efeito não
pareceriam deslocados nas cruzadas, e teriam falado tanto
grego como escandinavo. Harald Hardraade chegou mesmo
a tomar parte em operações militares na Terra Santa."
"Na Terra Santa?" Costas pareceu incrédulo. "Mas eu pensei
que as cruzadas não haviam começado antes do final do
século XI. Quer dizer, uma geração após a morte de Harald!"
"Você poderia chamar Harald Hardraade de o primeiro
cruzado", disse Maria com os olhos brilhando de
entusiasmo. "Ele nasceu pagão, e certamente não estava
procurando redenção por seus pecados, mas serviu aos
interesses da Igreja cristã na Terra Santa. Você deve
entender, Costas. As cruzadas como as conhecemos são
apenas uma parte da história, contada a partir do ponto de
vista ocidental. A Igreja bizantina e seus guerreiros vinham
tentando tirar o controle que os árabes exerciam na Terra
Santa havia séculos. No ano 1036, o imperador bizantino
Miguel concluiu um tratado com o califa do Egito para
permitir a restauração da igreja do Santo Sepulcro, o
santuário erguido sobre o lugar da sepultura de Cristo em
Jerusalém. Um ano mais tarde, Harald Hardraade conduziu a
guarda varegue para escoltar os artesãos até Jerusalém. A
cena poderia ter saído direto das cruzadas, cavaleiros altos e
loiros curvados sob o peso da armadura movendo-se através
do deserto, exceto que Harald estava sendo bem-sucedido
em pacificar a Terra Santa. Todas as cidades e castelos da
Palestina se renderam a ele sem uma luta sequer, e ele
libertou as estradas dos ladrões e bandidos. Ofereceu
tesouros para o santuário do Santo Sepulcro, provavelmente
sob as instruções do imperador bizantino. Ele até se banhou
no rio Jordão, como todo bom peregrino."
"Você pode levar o caso adiante." Jeremy havia abandonado
seu trabalho e estava agora totalmente centrado em Maria.
"Depois de Jerusalém, Harald Hardraade participou de
operações militares durante três anos no interesse do
imperador bizantino no Mediterrâneo central, na Sicília e na
Itália. Naquela época, a Sicília era um emirado islâmico,
capturado pelos árabes na grande guerra santa dos
maometanos, quando as armadas muçulmanas tomaram a
Terra Santa e foram vitoriosas até a Espanha. Harald estava
liderando um exército sob o estandarte da cruz contra os
infiéis, para pedir terras para a Igreja. Os bizantinos
chamavam seus inimigos de sarracenos, os mesmos
oponentes que os cruzados enfrentaram algumas gerações
mais tarde. A guerra de Harald era a de cristãos contra
muçulmanos, a primeira e a maior explosão do conflito que
inflamou os cruzados e continua até hoje. Hardraade era o
líder mais temido de todas as forças cristãs, mais ainda do
que Ricardo, Coração de Leão, e Balduíno de Flandres nas
cruzadas. Para os árabes, Hardraade era Ra'd Shamaal, o
Trovão do Norte."
"Ele não era qualquer um", murmurou Costas. "E você disse
que ele era originalmente da Noruega?"
Maria acenou com o livro que havia pegado de Jeremy. "Esta
é a nossa fonte principal, A saga do rei Harald, escrita por
um poeta da Islândia, Snorri Sturluson, no início do século
XIII. Faz parte da Heimskringla, a história dos reis da
Noruega. Ele nos dá a única descrição de como era Harald:
imensamente alto, cabelos e barba loiros, e longos bigodes,
um viking clássico. O autor conta que ele nasceu Harald
Sigurdsson, no ano de 1015. Depois adotou o nome
Hardraade, literalmente 'Monarca Inflexível', Harald, o
Severo. Sua doutrinação nos métodos de guerra começou
cedo, aos quinze anos, quando lutou ao lado de seu meio-
irmão rei Olaf, o Santo, na batalha de Stiklestad contra o
exército norueguês rival. Olaf foi morto e Harald escapou
para o leste em exílio, primeiro na Suécia e depois em
Novgorod e Kiev para servir como mercenário para o rei
Iaroslav de Rus."
"Como ele foi para Constantinopla, então?", perguntou
Costas olhando para o mapa.
"Bem, as pilhagens eram mais ricas ali. Com dezoito anos,
Harald chegou a Constantinopla para juntar-se à guarda
varegue. Ele ascendeu rapidamente para ser atrologus, chefe
da guarda, e durante nove anos saqueou através do
Mediterrâneo em nome do imperador bizantino. Em 1042
fugiu de Constantinopla. Ele estava abarrotado com os
saques que havia feito e reclamou o trono da Noruega. Vinte
e quatro anos mais tarde, durante os quais ele devastou a
Dinamarca e governou a Noruega com mão de ferro, sua
ambição dirigiu-o para o fatal encontro com o rei Harold da
Inglaterra na batalha de Stamford Bridge. Foi uma carreira
encharcada de sangue do começo ao fim, mas ao longo do
caminho Harald defendeu seu patrimônio hereditário e
tornou-se um dos governantes mais temidos e mais ricos no
mundo medieval."
"É provável que tenha visitado Vinland", murmurou Jack.
"A Islândia e a Groenlândia eram predominantemente
colonizações nórdicas, descobertas pelos vikings
noruegueses, e um rei como Harald Hardraade gostaria de
exercer sua influência sobre elas. O fator glória também
deve ser considerado. Uma viagem para Vinland teria sido
um feito ousado que aumentaria ainda mais a sua reputação
de guerreiro destemido e aventureiro."
"Ele não seria o único grande homem a tentar isso", disse
Maria. "Os anais da Islândia mencionam um bispo da
Groenlândia que iniciou uma viagem para Vinland. Ele
desapareceu para sempre, sumiu da história."
"Isso não parece se encaixar." Jack parecia perturbado. "Se
Harald fez uma viagem para Vinland, então ele sobreviveu,
retornando para a Noruega a tempo de participar da batalha
em 1066. Ele teria tudo a ganhar em proclamar seu sucesso,
declarando sua pretensão sobre as colônias vikings
ocidentais e exaltando sua coragem. Essa é a matéria-prima
das narrativas épicas, no entanto não há nada disso na
Heimskringla. Tudo o que temos é uma referência secreta
num mapa na catedral de Hereford. Isso não faz sentido."
"Seu tesouro, os bens que ele saqueou com os varegues",
disse Costas. "O que sabemos sobre isso?"
"É uma história fantástica." Maria folheou o livro até
encontrar uma página e deixou-o aberto. "Escutem isto: Seu
acúmulo de tesouros era tão imenso que ninguém na Europa
setentrional havia visto coisa parecida de posse de um só
homem antes. Durante sua estada em Constantinopla,
Harald por três vezes tomou parte na pilhagem de palácios:
era costume então, quando um imperador morria, os
varegues terem a permissão de saquear o palácio — eles
eram designados para esquadrinhar todos os palácios onde os
tesouros do imperador eram mantidos e pegar livremente
tudo sobre o que pudessem pôr as mãos."
"Acho que é o preço que é preciso pagar para manter a
lealdade dos mercenários", disse Costas.
"Isto significa que os varegues não apenas tinham tudo o que
pudessem carregar dos palácios sempre que um imperador
morria, mas também que eles conheciam a localização dos
tesouros que permaneciam fora de vista. Afinal, seu trabalho
principal em Constantinopla consistia em defender o
tesouro imperial. Mas o relato de Snorri sobre o saque aos
palácios é sem dúvida exagerado, algo que agradaria aos
leitores vikings. Os maiores tesouros devem, é claro, ter
permanecido trancados a sete chaves."
"Você está falando sobre a menorá", disse Costas.
Maria concordou com veemência. "Mas espere o resto da
história. Ela fica melhor ainda. Em 1042, depois de mais de
uma década a serviço do imperador, Harald já estava farto de
operações militares. Ele já conseguira toda a fama e saques
que desejava, e estava inclinado agora a reivindicar a
Noruega. Assim, quando do seu último retorno das guerras
para Constantinopla, ele renunciou à chefia da guarda
varegue. O imperador, Miguel Calafates, era um homem
fraco que parece ter concordado com isso, mas a imperatriz
Zoé ficou furiosa. Ela já tinha um ressentimento contra
Harald. Aparentemente ele havia pedido para se casar com
sua bela sobrinha, Maria, mas Zoé recusou. A história
contada depois pelos varegues diz que a própria Zoé
desejava Harald, e foi por essa razão que ela ficou tão
aborrecida quando soube que ele queria partir de
Constantinopla."
"Um triângulo amoroso", zombou Costas. "O Trovão do
Norte finalmente encontrou seu par."
"Harald foi atirado à prisão, mas obteve sua liberdade através
de uma dama misteriosa, talvez outra amante. A história
prossegue contando que Harald convocou seus varegues e
que eles impuseram um castigo terrível ao imperador,
cegaram-no em sua própria cama. Na mesma noite, Harald
irrompeu no quarto de Maria e a raptou. Snorri conta a
seguir: Eles foram até onde estavam as galeras varegues e
pegaram duas delas. Remaram para o Bósforo, onde
chegaram até as correntes de ferro que se estendiam através
do estreito. Harald disse a seus remadores para remarem
com toda a força, e, aos outros, que corressem para a parte
de trás da galera com todos os equipamentos. Dessa maneira,
as galeras passaram por cima das correntes. Logo que a força
cinética foi gasta e eles ficaram empacados em cima das
correntes, Harald disse aos homens para correrem para a
frente, para a proa. A galera de Harald, com o peso,
inclinou-se para a frente e escorregou para fora das
correntes; mas a outra galera ficou presa nas correntes e
quebrou na parte de trás. Muitos tripulantes pereceram, mas
alguns foram salvos do mar."
"É isso aí", disse Jeremy, excitado. "O que eu estava dizendo
ontem. As madeiras que vocês encontraram na corrente no
Chifre de Ouro eram do segundo navio de Harald. Snorri
não diz que ele, na verdade, afundou, o que explica que
você só tenha encontrado a madeira quebrada na corrente.
A caveira com o capacete deve ser de um dos varegues
afogados."
"O que aconteceu com a sua xará?", perguntou Jack a Maria.
"De acordo com Snorri, Maria foi libertada incólume quando
eles alcançaram o mar Negro, e até lhe foi dada uma escolta
para voltar a Constantinopla. Talvez o seu seqüestro tenha
sido a maneira que Harald usou para mostrar o seu desprezo
para Zoé, mas ele já tinha mudado de idéia e estava
planejando casar-se com a filha do rei Iaroslav, Elizabeth,
provavelmente sua namorada em Kiev antes que se juntasse
aos varegues." Maria sorriu para Jack. "Mas outros pensam
que Maria ficou com ele, e foi sua amante e seu verdadeiro
amor até o final."
"Então você acha que a menorá foi roubada na mesma
noite?" Persistiu Costas.
"Sim. Se os varegues tiveram tempo de raptar Maria,
também tiveram tempo de apanhar o maior tesouro proibido
que sabiam que deveria estar em Constantinopla."
"Isso talvez explique o símbolo da menorá no mapa que está
em Hereford." Costas desviou o olhar, perdido em
pensamentos. "Se os vikings estavam apenas interessados no
tesouro como metal precioso, então parece estranho que a
forma da menorá ainda tivesse significado anos mais tarde
quando Richard de Holdingham escreveu aquela inscrição
rúnica. Talvez o fato de ser um tesouro proibido, e não uma
pilhagem de palácio, tivesse dado maior significado para a
menorá. Ela pode ter se tornado um símbolo das proezas de
Harald, sua virilidade, um espólio resultante de vitória como
nos dias de Roma, para ser continuamente proclamado em
altos brados pelos vikings em narrativas épicas e festejos.
Quando eles voltaram para suas casas, a história daquela
última noite em Constantinopla deve ter proporcionado aos
varegues ofertas de drinques ilimitados pelo resto de suas
vidas."
Todos se voltaram para Jeremy, que desviou o olhar e fitou o
computador, depois olhou diretamente para Costas. Esperou
um momento antes de falar, seu tom estava estranhamente
perturbado. "Você provavelmente tem razão. Mas esta pode
ser apenas uma parte da história."
Naquele momento, a voz do piloto chegou pelos alto-
falantes da cabine para anunciar que eles estavam descendo
em Kangerlussuaq, a antiga base aérea dos Estados Unidos
que agora servia como principal centro internacional da
Groenlândia na costa oeste. Jack olhou pela janela e viu que
eles tinham cruzado a borda da calota de gelo da
Groenlândia e estavam agora se aproximando do estreito de
Davis, o amplo canal de oceano entre a Groenlândia
ocidental e o arquipélago ártico do Canadá. Abaixo deles
encontravam-se fiordes sinuosos e extensões de verde que
subitamente faziam que a colonização dessas margens pelos
vikings se tornasse plausível, um pensamento inconcebível
na estéril costa leste. Quando a aeronave se inclinou
lateralmente e virou para o leste, eles se alinharam com o
braço de mar mais comprido de todos, Sondre Stromfjord,
onde se situava a desolada e gélida colônia de Kangerlussuaq
espalhada pelo vale na sua cabeceira. Alguns minutos mais
tarde, o trem de aterrissagem baixou e Jack pôde ver duas
aeronaves estacionadas em compartimentos do antigo
campo de aviação militar no centro do vale; a primeira era
um Antonov NA-74, um jato de transporte que os havia
precedido com o precioso aparelho de Costas, e, a segunda,
o helicóptero Lynx que trazia o logotipo da Universidade
Marítima Internacional.

"Estamos sobrevoando o fiorde gelado agora. Dêem uma
olhada e verão as extremidades dos icebergs através da
névoa."
James Macleod tirou momentaneamente a mão do cyclic e
apontou, adiante de Jack, para os picos entalhados de branco
que pareciam cumes de montanhas distantes através das
nuvens. No compartimento de passageiros, Maria e Jeremy
inclinaram-se para a frente para seguir o olhar de Jack. Com
três horas de diferença horária em relação à Inglaterra, ainda
era de manhã cedo ali, e o sol não chegara a evaporar a
névoa marinha que aparecia quando o ar frio que caía
rapidamente da calota de gelo encontrava o ar mais quente
que subia do oceano. Quando havia sol de verão, era mais
quente a nove mil metros de altura do que sobre a superfície
da calota de gelo. Mas, mesmo assim, a temperatura era de
alguns graus abaixo de zero e todos eles vestiam trajes de
vôo isolantes, bem como capacetes, uma precaução contra
a turbulência quando o helicóptero encontrava as correntes
térmicas de ar sobre a terra exposta e sobre a água ao longo
do contorno da costa.
"Temos quinze minutos até o heliporto ficar desimpedido.
Tempo suficiente para um rápido passeio turístico."
Assim que aterrissaram, Macleod viera encontrá-los na pista
em Kangerlussuaq e os havia escoltado até o helicóptero
Lynx que esperava por eles. Tinham levado pouco menos de
uma hora para voar na direção norte até o fiorde gelado
Ilulissat, na costa oeste da Groenlândia, quase duzentos e
cinqüenta quilômetros ao norte do Círculo Ártico. Eles
haviam seguido um pesado helicóptero de transporte
Chinook baseado fora da remanescente base aérea americana
em Thule, na Groenlândia, um gesto de boas-vindas que era
parte da contribuição do governo dos Estados Unidos para o
projeto da IMU. Costas decidira voar no Chinook para vigiar
o transporte do equipamento, e Jack podia imaginar a
ansiedade do outro consumindo-o enquanto ele ficava
sentado no compartimento de carga observando o fruto do
trabalho de meses suspenso em um cargueiro bem em cima
do vazio. Alguns momentos antes eles tinham observado
quando o Chinook desceu em meio da névoa marinha no
coração do fiorde.
"Foi desse lugar que saiu o iceberg que afundou o Titanic",
disse Macleod; seu pesado sotaque irlandês ficava mais
acentuado no interfone. "Esta é uma das correntes glaciais
que se movem mais rapidamente no mundo." Ele girou o
helicóptero para o leste, ficando de frente para o fiorde, e
voou com velocidade máxima durante alguns minutos, até
que a névoa clareou e permitiu-lhes ver a calota de gelo se
erguendo à frente deles como uma cúpula vasta e rígida. "A
geleira de Ilulissat, o ponto de maior pressão da calota de
gelo; é aqui que a geleira desliza para descarregar gelo dentro
do oceano. Podemos ver onde o deslizamento de gelo
começa agora."
Macleod manejou os controles e virou o Lynx, fazendo um
grande arco, em direção ao oceano. Quando olharam para
fora, eles puderam ver em que ponto as ondulações sem
emenda da calota de gelo começavam a quebrar e produzir
fendas, formando um fluxo ondulado que parecia encrespar-
se em direção ao oeste.
"Acreditem ou não, aquela coisa está se movendo a uma
velocidade incrível, quase doze mil e oitocentos metros por
ano", disse Macleod. "Essas fendas são causadas pela pressão
da geleira quando ela se desloca contra o leito de rocha, em
locais cerca de novecentos metros abaixo. É como um rio
fluindo através de corredeiras. E agora vamos para a parte
divertida."
Ele mergulhou o nariz do helicóptero e eles estavam
subitamente lançando-se em direção à geleira, a visão da
superfície fendida aparecendo aos poucos com suas
concavidades e fissuras. No que parecia ser o último
momento, Macleod nivelou o helicóptero e quase
imediatamente eles foram envolvidos pela névoa marinha, a
geleira apenas fugazmente visível quando o rotor girou, e
afastaram-se da névoa para descobrir porções de branco e
lendas abertas de um azul profundo.
"De fato, estamos a mais de cento e cinqüenta metros acima
da geleira", Macleod lhes asseverou. "Observem a imensidão
sem limites." Durante alguns minutos eles voaram apenas
por instrumentos, enquanto continuavam a mover-se
através da névoa, e depois Macleod empurrou para trás o
cyclic e abaixou o helicóptero até o altímetro indicar apenas
setenta e cinco metros acima do nível do mar. "Aqui
estamos."
Quando ele deixou o Lynx parado no ar, a névoa se abriu e
uma imagem espetacular se materializou diante dos olhos
dos tripulantes. Era uma vasta parede de gelo, que se elevava
quase até a altura do helicóptero e se estendia de cada lado
até onde podiam enxergar. Em vez de uma face abrupta de
gelo compactado, a parede era uma massa fragmentada de
torres e canyons, fendida por faixas de azul onde a água
derretida havia escorrido da superfície e congelado de novo.
A massa inteira parecia inacreditavelmente frágil e instável,
como se o mais leve cutucão pudesse convertê-la em
cascata.
"A extremidade principal da geleira", anunciou Macleod.
"Ou melhor, o conjunto de icebergs que foram separados
dela e bloquearam a ponta do fiorde. A extremidade da
própria geleira está a mais de cinco milhas náuticas a leste
daqui, em direção da calota de gelo, de onde nós viemos."
"É apavorante." A voz de Jeremy chegou com estalidos pelo
interfone, e por uma vez parecia que não tinha palavras para
se expressar. "Então é daqui que vêm os icebergs do
Atlântico Norte?"
"Noventa por cento deles", replicou Macleod. "Vinte bilhões
de toneladas a cada ano, o suficiente para afetar os níveis dos
mares. Aquela parede de gelo pode parecer bem estática,
mas ela começou a aumentar de velocidade recentemente e,
de fato, se move em nossa direção a cerca de cinco metros
por hora. Alguns dos maiores icebergs serão empurrados
mais ou menos intactos, mas quase todos eles soltam crias,
produzindo icebergs menores e pequenas placas bastante
temidas chamadas growlers. Quase dez mil grandes icebergs
saem do fiorde, a cada ano, para a baía de Disko. Eles fazem
um movimento no sentido anti-horário em relação à
corrente em torno da baía de Baffin e depois flutuam para o
sul até os Grandes Recifes da Terra Nova e para o leste até a
Islândia."
"Um deles está dando cria agora", disse Jack subitamente.
Inesperadamente uma enorme placa de gelo separou-se do
precipício bem na frente deles, o barulho do deslocamento
audível mesmo acima do estrondo do rotor do helicóptero.
A placa de gelo escorregou direto para dentro da água e
desapareceu completamente, depois emergiu quase com
toda a sua altura antes de sumir de novo, agitando-se para
cima e para baixo até que apenas um ápice pontudo ficasse
visível acima da mistura de fragmentos de gelo dos icebergs.
"Entendi o que significa os icebergs ficarem com a maior
parte debaixo da água", disse Jeremy com um tom ainda
apavorado. "Os maiores devem se acumular ao longo do
fundo do fiorde."
"Isso é exatamente o que acontece. Algumas vezes eles se
arrastam ao longo do leito do mar, outras vezes se deslocam
aos trambolhões." Macleod puxou uma pequena tela de
vídeo situada no teto acima do assento do piloto e digitou no
teclado, revelando uma imagem da batimetria do fiorde.
Jack assobiou. "Consideravelmente profundo."
"Acima de mil metros."
"Aquele pico debaixo da água que aparece na imagem,
através da foz do fiorde", disse Jack. "Suponho que é onde o
contorno do fiorde alcançou sua extensão máxima, não?"
"Os dinamarqueses que se estabeleceram aqui no século
XVIII lhe deram o nome de Isfjeldsbanken, o limiar",
replicou Macleod. "Uma enorme soleira de sedimento
destruída pela geleira. A sua ponta tem apenas duzentos e
vinte metros de profundidade, de modo que os icebergs
maiores ficam presos nela. Até recentemente, o
congestionamento de icebergs que obstruíam o fiorde
marcava a extremidade do limiar de gelo."
"Mas atualmente o derretimento de gelo ocorre várias
milhas mais perto da calota de gelo em que estamos agora?"
"Correto." Macleod digitou um comando e sobre a tela uma
outra imagem apareceu, mostrando uma foto do fiorde tirada
de satélite. "Cortesia da NASA, uma imagem tirada do
satélite Landsat. A seqüência de linhas vermelhas através
dos fiordes mostra a saída das crias da geleira entre 2001 e
2005. Ao mesmo tempo a geleira acelerou-se
dramaticamente, quase dobrando sua velocidade. E
medições por altimetria a laser, feitas por avião, têm
mostrado que a geleira encolhe mais de quinze metros por
ano."
"Aquecimento global", disse Jeremy.
"Más notícias para o meio ambiente, mas boas para nós."
Macleod fechou a tela e engatou de novo o cyclic, fazendo o
helicóptero dar uma volta em direção a oeste e voando
através da névoa para longe da parede de gelo. "Más notícias
porque sugere que o aquecimento global tem um efeito mais
dramático sobre a calota de gelo do que muitos temiam. Boas
porque isso nos permite trabalhar no próprio fiorde e
realizar pesquisas que nunca antes foram possíveis."
"E agora estamos no verão", disse Jack. "Estou supondo que
isso aumenta a velocidade das crias e a desintegração do gelo
ao longo da parte anterior da geleira, não é?"
"É por isso que eu queria você aqui agora", replicou
Macleod. "Mais alguns dias e estaremos fechando as portas.
Trabalhamos na borda da geleira de várias maneiras."
Vinte minutos mais tarde, Macleod puxou o cyclic para trás
e o Lynx começou a descer sobre a linha de icebergs
pontudos perto da ponta do fiorde. O coração de Jack
começou a acelerar quando ele viu a superestrutura de um
navio surgir fora da névoa. Macleod pegou o
intercomunicador terra-mar, mas, antes de pressionar a
tecla, voltou-se e olhou para Jack.
"E agora chegou o momento de você saber por que eu o fiz
andar metade do mundo para chegar a este lugar."


6
O homem na cela da prisão ergueu lentamente a cabeça e
prestou atenção para detectar qualquer sinal de vida, mas
não ouviu nada. Fazia já mais de cinco anos que ele não
ouvia nada, a não ser os sons de seus carcereiros. Fechou os
olhos e respirou lenta e profundamente, imune ao odor de
fezes, urina e vômito que havia muito tempo impregnara a
estrutura da prisão. Tinha sido enviado para cumprir sua
sentença na pátria de seu avô, em uma prisão vazia
abandonada pelo Gulag, poupando-lhes a preocupação de
colocá-lo em um confinamento solitário. A privação
tensorial não lhe causava receio, seu treinamento o havia
ensinado a excluir a realidade do confinamento e a viver
num mundo de sua própria criação. Vagarosamente pendeu
a cabeça de um lado e depois do outro e em seguida
inclinou-se sobre o tabuleiro de xadrez, a única indulgência
que havia pedido a seus capturadores. Apoiou os cotovelos
sobre a mesa e levantou as mãos unidas, em suas luvas sem
dedos, esfregando-as para combater o frio úmido que
penetrava na cela durante o ano todo. Pela milésima vez ele
estendeu a mão e pegou um pequeno peão branco, com a
forma de um guerreiro viking com cota de malha e escudo,
e colocou-o diante do rei cristão.
"Xeque-mate", ele disse baixinho.
Reclinou-se na cadeira com a lentidão exagerada de um
homem cujos menores movimentos tinham se tornado sua
maior preocupação, era sua maneira de preencher as horas
solitárias de mais um dia. Ele ergueu devagar a mão esquerda
até o rosto e passou o indicador pela cicatriz que ia da órbita
ocular até o maxilar inferior, testando a si mesmo contra a
dor que sentia a cada vez. Do maxilar moveu a mão até a
parede atrás de si, e começou a percorrer com o dedo as
linhas feitas com incisões de grafite, seu ritual de hora em
hora, recitando baixinho as palavras como um estudioso
com um texto sagrado. "Paul Kruger", ele murmurou.
"Hauptsturmführer, Leibstandarte Adolf Hitler. Kurt
Hausser, Sturmbannführer, Panzergrenadier-Division Das
Reich. Otto Lehmann, Brigadeführer, Panzer-Division
Wiking." Ele sabia os nomes de cor, nomes dos verdadeiros
heróis da Grande Guerra Patriótica, cruzados na luta contra
o Leste, os sobreviventes capturados de Kharkov e Kursk e
incontáveis outras batalhas, enviados para cá, mais de meio
século antes pelos russos, em sua última parada antes da
execução miserável no aposento no fim do corredor. Nomes
como o de seu avô. Mas o seu avô tivera mais sorte, durante
um tempo.
Fechou os olhos e ergueu a mão para as runas entalhadas que
cruzavam os nomes, sabendo exatamente onde colocar seus
dois dedos para delineá-las, depois para cima, e então para
baixo, linhas tão profundamente esculpidas que os guardas
soviéticos desistiram de tentar raspá-las décadas atrás. Elas
eram as inscrições que ele gostava de percorrer com os
dedos, o símbolo da ordem de seu avô, Schutzstaffel, a SS.
Ele deixou a mão cair lentamente quando os dedos se
afastaram das linhas e pressionou a orelha contra a parede
fria e úmida, sentindo que estava realmente se comunicando
com os cavaleiros do passado, irmãos em armas que
deixaram sua última marca nessa parede para dar-lhe força,
guiá-lo em sua busca para encontrar o tesouro mais sagrado,
e deixar descansar tudo o que tinha passado diante dele e
falhado.
"Anton Poellner." O homem despertou de um poço de
negrume quando a voz falou em tom alto através da janela
da porta. Ele se apressou a ficar ereto enquanto os ferrolhos
eram tirados e a porta fazia barulho ao abrir-se. Um oficial
com boné de pala mostrava a silhueta entre dois guardas
contra a luz irritante do corredor atrás deles.
"Anton Poellner." O oficial repetiu seu nome, e o homem
na cela levantou a mão contra a luz antes de replicar
lentamente em inglês.
"O que você quer?"
"Por ordem do Tribunal Criminal Internacional para a
Antiga Iugoslávia", disse o oficial, falando em lituano. "Caso
número IT-99-37b, o Promotor Público do Tribunal contra
Anton Poellner, antigo mercenário pago do exército servo-
bósnio. Acusado pelo artigo 7 com base em responsabilidade
criminosa individual, por genocídio e crimes contra a
humanidade." O oficial fez uma pausa, depois ergueu um
documento que trazia na mão. "Sob a convenção de anistia
assinada no ano passado em Haia, o seu caso foi revisto na
Corte de Apelação." O oficial abaixou o papel e falou com
desgosto evidente. "Você está livre para sair."
Ele estalou os dedos e os dois guardas ajudaram o homem a
se erguer, atirando um velho sobretudo soviético sobre ele
enquanto o levantavam. O homem piscou furiosamente
contra a luz enquanto eles o empurravam pela porta da cela,
depois colocaram grilhetas em seus pés pela última vez e o
empurraram pelo corredor. Ele era o último ocupante de
uma prisão condenada, e, enquanto o eco das correntes
ressoava através das celas vazias, era como se os fantasmas
do passado estivessem impulsionando-o, sabendo que ele era
a sua última esperança de que alguém escapasse.
Na última porta eles tiraram as grilhetas de seus pés e o
empurraram, sem dizer palavra, para o mundo exterior.
Estava garoando e inadequadamente frio para um início de
verão, mas o homem levantou seu rosto pálido e sorriu,
enquanto deixava a chuva cair em sua pele. Pegou a mochila
que tinham jogado ao seu lado e começou a andar
lentamente para o portão de saída e a estrada além dele,
retomando o andar com as passadas largas de um homem
acostumado a marchar. Fora do portão, colocou a mochila
nos ombros e enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo,
esperando pelo carro que ele sabia que viria. Minutos depois,
um Mercedes escuro saiu das sombras, a porta traseira do
veículo abriu-se ao parar na sua frente. Sem olhar para a
prisão uma última vez, ele entrou no carro.
"Bem-vindo de volta", disse uma voz em inglês vinda do
assento dianteiro. "Suas instruções."
Enquanto o carro partia, foi-lhe entregue um envelope. O
homem sentiu o maço de papéis dentro dele, mas antes
retirou um objeto que estava solto no fundo. Era um anel de
ouro, lustroso por causa da idade, e quando o segurou sentiu
seus lábios pousarem sobre o símbolo, como faziam desde a
infância, um símbolo tão diferente daquele em sua cela na
prisão, embora tão familiar. Ele deslizou o anel no indicador
de sua mão direita e retirou o maço de papéis. O primeiro
deles era uma imagem de jornal impressa em seu cérebro
por mais de cinco anos, mostrando um homem de idade
usando uma braçadeira com a suástica, deitado em uma poça
de sangue. Ele olhou para o rosto morto e depois para fora,
para o céu sombrio, e murmurou para si mesmo: "Hora do
acerto de contas".

"Lá está ele agora", disse Jack, excitado. "É a primeira vez
que o vejo em mar aberto. É como reencontrar um amigo
perdido há muito tempo, que renasceu."
O Seaquest II tinha sido licenciado apenas três meses antes,
e o projeto no oeste da Groenlândia, no centro do gelo, era
sua primeira excursão oficial como navio de pesquisa em
oceano profundo da Universidade Marítima Internacional.
Desde que seu antecessor fora perdido no mar Negro, seis
meses antes, Jack estivera determinado a encontrar um
substituto, e decidira renomear um navio já reservado para a
IMU em um estaleiro na Finlândia. Enquanto o Seaquest
original e seu navio irmão Sea Venture tinham derivado do
navio de pesquisa russo, classe Akademik, destinado
originalmente para vigilância submarina acústica durante a
Guerra Fria, o Seaquest II se baseava em um conceito
inteiramente novo planejado a partir das especificações da
IMU. Suas características técnicas incluíam um sistema de
posicionamento dinâmico, usando propulsores laterais e
controle de lastro capaz de manter a estabilidade do navio
em praticamente quaisquer condições marítimas, o que era
vital para manter a posição e realizar explorações de busca,
bem como para manter o nível da plataforma para o trabalho
de laboratório. O navio podia lançar veículos operados por
controle remoto e submersíveis, usando guindastes de
convés ou um ancoradouro interno que permitia saída
subaquática. Como todos os navios da IMU, ele tinha uma
capacidade defensiva, com um compartimento retrátil para
alojar armas debaixo da coberta de proa. E, crucial para a
pesquisa polar, um casco resistente a gelo que lhe permitia
singrar o mar através dos pedaços de gelo que obstruíam as
águas da costa norte do Círculo Ártico mesmo no início do
verão.
Jack ainda estava lançando um olhar crítico sobre a
arrumação do convés quando o Lynx pousou no heliporto e
os rotores estremeceram antes de parar por completo.
Enquanto os tripulantes que os esperavam amarravam o
trem de aterrissagem ao convés, Jack tirou seu capacete e
soltou o cinto de segurança. O sol estava evaporando a
névoa marinha e à sua frente ele podia ver todo o
comprimento da superestrutura, brilhando branca na
translúcida luz ártica. Jack estava de novo em seu elemento,
e sua excitação tornou-se visível quando ele se reclinou e
sorriu para Maria e Jeremy. "Bem-vindos ao Seaquest II.
Aqui é onde começa a verdadeira diversão."

James Macleod conduziu-os diretamente do heliporto
através da entrada do hangar e, descendo uma escada no
corredor, para dentro das entranhas do navio. A eles juntou-
se Costas, que fora baixado do Chinook da Força Aérea
Americana quinze minutos antes e estivera atarefado tirando
dos engradados sua aparelhagem na coberta de popa. Seu
aspecto mostrava que ele precisava de uma semana de sono,
mas, com as mangas arregaçada nos braços robustos e novas
manchas de graxa em seu amado macacão, era evidente que
ele não iria perder um instante antes que seu equipamento
estivesse pronto para entrar em operação.
Eles alcançaram o convés inferior e Macleod os introduziu,
através de uma porta, em uma sala de conferência
brilhantemente iluminada, ao mesmo tempo que fazia gestos
para que parassem ao lado de uma tela de projetor à direita
da porta. À frente deles, um grupo heterogêneo de cerca de
trinta homens e mulheres, todos sentados em cadeiras de
plástico; alguns se mantinham bastante absorvidos em suas
conversas e outros curvavam-se sobre laptops e folhas
impressas. Todos eles olharam quando Macleod entrou, e
Jack pôde ver vários homens loiros barbados com a bandeira
dinamarquesa em seus casacos de pele, um par de rostos
nativos da Groenlândia, e um certo número de homens e
mulheres vestindo os suéteres azul-marinho da Força Aérea
Americana. Jack acenou de maneira cortês para um homem
na fila da frente, que fazia parte do contingente da IMU;
sentado languidamente na cadeira e mexendo em suas
costeletas, ele achava-se tão perdido em seus pensamentos
que quase não percebeu o gesto de Jack. Lanowski era um
brilhante engenheiro que se tornara indispensável para a
IMU desde que o haviam roubado do MIT, mas ele tinha um
jeito calculado para irritar quase todos que cruzavam seu
caminho.
"Pessoal, todos vocês devem estar familiarizados com Jack
Howard, meu colega na IMU. Pelo menos através das
notícias na TV." Jack parecia nitidamente desconfortável, e
Macleod apontou para os outros três. "Doutora Maria de
Montijo e seu orientando Jeremy Haverstock, de Oxford,
embora tenha nascido nos Estados Unidos. E Costas, que
vocês já conhecem."
Eles olharam com evidente curiosidade para Jack, um rosto
familiar mesmo para os que não o conheciam pessoalmente.
Costas sorriu para alguns velhos amigos, vários dos quais
chegaram a conhecê-lo muito bem quando ele tomara parte
na apresentação do projeto, algumas semanas antes no
campus da IMU na Cornuália.
"Nós somos uma equipe internacional, como se pode ver",
disse Macleod. "Oficialmente, o projeto se desenvolve em
colaboração com a NASA e a Vigilância Geológica da
Dinamarca e da Groenlândia, e há também um par de
pessoas da Patrulha Internacional do Gelo. Todos nós nos
ocupamos com a nossa própria especialidade, glaciologia,
biologia, paleoclimatologia, mas estamos estabelecendo uma
associação para angariar recursos básicos. A IMU fornece o
navio de pesquisa; a NASA, o satélite que fornece imagens, e
a VGDG, a fotografia aérea e as medições de altitude por
laser. Uma grande parte do trabalho consiste apenas em
monitoração, certificar-se de que as condições do gelo são
suficientemente seguras para obtermos as amostras de que
necessitamos. Com a fusão de verão quase em plena
atividade, estamos trabalhando contra o relógio. Eu quis que
vocês estivessem aqui para podermos nos apresentar e ter
um breve encontro inicial. Se houver perguntas, podem
colocá-las."
"Não quero segurar ninguém, então apenas poucas
perguntas", disse Jack. "A calota de gelo da Groenlândia, o
gelo no interior. Podemos ter um rápido resumo de sua
idade e significado?"
"A maior parte dele data dos últimos duzentos e cinqüenta
mil anos, e muito do gelo em Ilulissat provém dos últimos
cem mil anos", disse Lanowski afastando do rosto os cabelos
que lhe chegavam à altura do ombro. "Ele é um
sobrevivente resistente da última glaciação do período
quaternário."
"E o que isto significa?" perguntou Maria.
"Significa o Período Glacial que todos conhecemos, aquele
que terminou dez mil anos atrás, quando os lençóis de gelo
desapareceram", explicou Lanowski, suspirando
impacientemente. "O período quaternário é um termo
geológico que abarca o recente Período Glacial, que começa
cerca de um milhão e oitocentos mil anos atrás, envolvendo
muitos episódios de avanço e de retração do gelo. Temos
estado em um daqueles períodos quentes durante os últimos
dez mil anos."
"Então, o que torna a Groenlândia tão especial?"
"Há inúmeras geleiras ao redor do mundo que datam do
Período Glacial, e, é claro, há as calotas de gelo polares",
disse Macleod. "Mas a calota de gelo da Groenlândia é o
último remanescente dos lençóis de gelo continental que
cobriam o hemisfério norte até dez mil anos atrás. Trata-se
de uma fantástica janela para o passado, tão excitante para
mim como qualquer de suas descobertas arqueológicas."
"E isto nos traz para o porquê de vocês estarem aqui", disse
Jack.
"Estamos ainda nos primeiros dias, mas os resultados são
muito promissores", disse um dos cientistas dinamarqueses.
"Estamos olhando, sobretudo, para bolhas de ar presas no
gelo quando este se formou, preservando assim um
detalhado registro das condições da atmosfera no Período
Glacial. A parte fronteira que vem se fragmentando está
agora expondo áreas de gelo formadas muito recentemente,
numa onda de frio que precedeu a Grande Fusão dez mil
anos atrás. É uma oportunidade sem paralelo, a primeira vez
que qualquer pesquisa como esta torna-se possível."
"O aquecimento global tem suas vantagens", disse Costas
ironicamente.
"Não podemos fazer o relógio retroceder agora, então vamos
tentar obter todo o conhecimento disto que pudermos",
replicou o dinamarquês.
"Uma pergunta", disse Maria. "Vocês não conseguiriam fazer
com que eu fosse a qualquer lugar perto daquela parede que
está se fragmentando, que acabamos de ver na geleira. Como
é que conseguem suas amostras?"
"Nós perfuramos núcleos, da mesma forma que um técnico
em sedimentologia ou um prospector de petróleo em terra",
disse Macleod. "Cada faixa de gelo representa um período
glaciário, algumas vezes centenas ou milhares de anos. É um
pouco como a dendrocronologia, a descoberta da idade de
uma árvore pela contagem dos anéis." Macleod voltou-se e
olhou atentamente para Jack. "O que nos traz para o porquê
de você estar aqui."
"Ainda estou confusa", insistiu Maria. "Vocês ainda têm de
se aproximar do gelo para perfurar um núcleo."
"Tudo será revelado." Macleod sorriu para ela e começou a ir
em direção à porta, acenando para agradecer ao grupo
reunido e voltando-se para Jack. "Siga-me."

O Seaquest II era um pouco menor que o seu predecessor,
mais econômico em espaço de modo a maximizar a
eficiência do combustível e a resistência, mas, com um
deslocamento de pouco mais de sete mil toneladas, ele ainda
era um dos maiores navios flutuantes de pesquisa, e eles
levaram uns bons cinco minutos para alcançar o convés
superior onde se encontravam as acomodações. Sem se
deter, Macleod apontou para uma fileira de cabines com seus
nomes pintados nas portas, suas bagagens já acomodadas ali
dentro. No final do corredor, eles entraram em um aposento
que ocupava todo o final dianteiro do convés de
acomodações, diretamente abaixo da sala de navegação e da
casa do leme. O layout havia sido idéia de Jack, o que
proporcionava uma sala dedicada ao controle e à observação
para os assessores do projeto, evitando assim os problemas
de partilhar o espaço na ponte de comando com a
tripulação, o que tinham experimentado recentemente no
Sea Venture no Chifre de Ouro. A sala tinha uma cadeira de
diretor colocada num estrado no centro, uma cópia exata da
tela de radar que havia na ponte de comando, quatro
estações de computadores dispostas em arco a partir do
estrado, e assentos para observação com telescópios de alta
potência colocados contra as janelas, uma tela inclinada
contínua que cobria a parte dianteira e as laterais da sala. A
névoa tinha sumido por completo e eles obtiveram uma
vista deslumbrante do mar em direção ao oeste, uma
extensão azul-escura salpicada de fragmentos de branco, a
forma baixa da ilha Disko apenas visível da proa a estibordo
e a costa canadense do estreito de Davis em algum lugar
além do horizonte.
Tinham sido seguidos, desde o convés inferior, pela forma
bamboleante de Lanowski e por um dos cientistas da
Groenlândia, uma mulher esquimó de impressionante
aparência que apontou para a máquina de café quando eles
entraram na sala. Macleod resmungou, depois concordou e
começou a servir o café para todos e a distribuir canecas
fumegantes. Jack apertou a mão do capitão, que tinha
descido os degraus que levavam até a ponte de comando
para cumprimentá-los, um antigo oficial da marinha
canadense que havia passado a vida conduzindo patrulhas do
Ártico para o golfo do México. Jack teria tempo, mais tarde,
para encontrar todos os tripulantes, muitos deles velhos
amigos e veteranos do primeiro Seaquest, pessoas com as
quais sentia uma afinidade especial.
A mulher groenlandesa sentou-se perto de Lanowski na
estação de computação do lado direito da sala, posicionando
seu laptop no canto disponível da escrivaninha e dispondo
seus papéis e livros ordenadamente no chão para dar aos
outros um espaço para ficarem ali. Segundo a linguagem
corporal tratava-se nitidamente de uma aliança
desconfortável, com Lanowski curvado diretamente na
frente da tela da estação principal, rodeado por seus papéis,
sem fazer concessão a ela.
"Eu sabia que devia ter trazido meu próprio hardware",
resmungou Lanowski. "Alguém deveria ter testado essas
coisas antes de instalá-las. Eu posso também processar os
números à mão."
Jack ergueu os olhos para a mulher e ela forçou um sorriso.
"Eu estou interessada na biologia do fundo do mar;
Lanowski faz as simulações", ela disse. "James nos colocou
juntos desde o início do projeto."
Ela lançou para Macleod um olhar malevolente, e ele se
voltou rapidamente para os outros. "Sinto muito. Eu deveria
tê-la apresentado. Esta é a doutora Inuva Nannansuit, do
Levantamento Topográfico Geológico. É natural de Ilulissat,
a cidade no promontório, então ela cresceu com a geleira
em seu quintal. Ela tem sido de uma ajuda fantástica para a
equipe."
"Então, o que temos?", disse Jack.
"Está lá atrás da popa, mas o capitão está virando o navio
para nos proporcionar uma ampla vista na direção de
estibordo. Vai demorar mais uns cinco minutos. Estamos
usando o sistema de posicionamento dinâmico, porque não
queremos que o movimento da água causado pela hélice
principal perturbe o que estamos prestes a ver."
"E aquele iceberg perto da costa, adiante de nós", disse Maria
apontando para a proa do navio. "Ele tem uma faixa preta no
topo. Aquilo é sedimento antigo da geleira?"
"Bem percebido, mas não é", disse Macleod. "Se você olhar
para o iceberg, ele é polido e redondo, como uma escultura,
bem diferente dos icebergs cheios de fendas e de entalhes
que vimos quando sobrevoamos o fiorde."
"Ele deve ter rolado", disse Costas.
"Correto. Vimos isso acontecer na noite passada. Uma das
visões mais apavorantes que se possa imaginar, um quarto de
milhão de toneladas dando uma cambalhota na água. Você
não iria querer ficar em nenhum lugar perto de uma dessas
partes fragmentadas quando isso acontece."
"É claro" disse Maria. "Esse escuro é do fundo do mar!"
"Exatamente. Quando nós chegamos, quinze dias atrás, este
iceberg estava encalhado contra o limiar no lado norte do
fiorde, mas já sabíamos pelo sonar de varredura lateral que a
parte submersa havia sofrido erosão e perdido muito de sua
massa. Era só uma questão de dias antes que ele começasse a
rolar, e nos mantivemos bem afastados. Alguns dos icebergs
se comportam dessa maneira, outros são empurrados
totalmente rijos através do limiar. Mas sempre é possível
dizer se eles se parecem com esculturas de Henry Moore ou
com castelos de gelo da Disneylândia."
"Você quer dizer como aquele", disse Jack.
Eles seguiram o seu olhar para estibordo quando uma vasta
parede de gelo tornou-se visível, distante cerca de
quatrocentos metros e nitidamente mais alta do que a
superestrutura do navio. Ela tinha o mesmo aspecto
contorcido e entalhado que a frente da geleira, com fendas
como veias do mais profundo azul que indicavam onde a
água derretida havia congelado em seu interior, exceto em
uma vasta área plana no centro onde a parede se inclinara
suavemente desde o topo. O iceberg era imenso, pelo menos
meio quilômetro de diâmetro, e bloqueava uma grande
extensão da entrada para o fiorde ao longo da linha do limiar
subaquático.
Eles olharam assustados, e Macleod quebrou o silêncio.
"Lembrem, três quartos daquela coisa estão sob a água.
Vocês estão olhando para um quilômetro cúbico e meio de
água congelada, pelo menos um milhão e meio de
toneladas."
Costas soltou um longo assobio. "Isto manteria os estoques
de gelo de todos os bares do mundo até o próximo século."

"A simples vazão de um dia dessa geleira seria suficiente para
suprir Nova York com água por um ano. Vinte milhões de
toneladas por dia. Estamos falando de impacto total aqui."
"Icebergs planos desse tamanho são bem raros no Ártico",
disse Inuva. "Nós achamos que isto está acontecendo de
novo por causa do aquecimento global, que faz com que a
geleira regrida até um ponto em que a fratura ocorra. Este é
o maior iceberg que já vi em toda a minha vida."
"Por que ele não se dividiu?" perguntou Costas.
"Houve apenas uma ocorrência em que ele se fragmentou,
ali onde se pode ver aquela face polida", disse Macleod. "Mas
o centro, surpreendentemente compacto, gelo glacial sólido,
só pode ser quebrado com explosivos. Ele é ideal para nós.
Aquela face do fragmento que se separou do núcleo de gelo
é relativamente segura para trabalharmos nela. Se olharem
com atenção, poderão ver um par de Zodiacs ali, com a
equipe de perfuração, bem agora."
"Não compreendo." Jeremy tinha estado absorvendo tudo,
tranqüilamente, desde que chegara ao navio, mas agora
havia recuperado sua curiosidade natural. "Como impedir
aquela coisa de cair e esmagá-los?"
"É aqui que as condições realmente trabalham a nosso
favor", disse Macleod, entusiasmado. "Sem a pressão da
península de gelo atrás deles, os icebergs que ficam presos
na soleira são muito mais seguros para se trabalhar. A geleira
é muito mais perigosa para se retirar uma parte central dela,
principalmente agora que está circulando a tal velocidade.
Os icebergs que flutuam pelos fiordes acham-se fora de
questão, porque eles estão se movimentando e, quando se
encontram além do fiorde, não apenas estão se
movimentando, mas também são mais propensos a cair.
Então, um iceberg relativamente recente preso na soleira é
ideal para nós. É uma oportunidade única, mas a janela está
se fechando depressa."
"Há quanto tempo ele está aí?", perguntou Jack.
"Cerca de três meses. Lanowski tentou uma simulação
mostrando o iceberg progredir pelo fiorde e ficar obstruído
contra a soleira. Há alguma chance de ver isto?"
"Você tem sorte." Lanowski murmurou irritado para si
mesmo, enquanto digitava uma seqüência de teclas, e depois
relaxou visivelmente. "Finalmente."
A tela exibia uma simulação isométrica do fiorde em 3-D,
com a geleira em uma extremidade e o arco do limiar na
outra. O iceberg era mostrado pousado perigosamente sobre
a soleira, sua vasta magnitude subaquática era visível agora,
mas com o leito do mar caindo para profundidades maiores
de cada lado.
"Você pode ver a correnteza do canal", disse Inuva. "Aquele
sulco no leito do mar conduzindo em direção à soleira. À
medida que desgastam o fundo, os icebergs pulverizam o
leito do mar, transformando tudo em poeira. Criam um
biótopo estéril, destituído de vida. Mas o material de amostra
que pudemos retirar daqui nos diz algo mais; que ele, na
verdade, beneficia a diversificação das espécies, permitindo
a regeneração da vida, como uma floresta depois de
devastada pelo fogo. E há outros fatores positivos. James
disse que vocês, durante o vôo, viram um iceberg
fragmentando-se. Cada vez que isso acontece, a subida à
superfície gera hospedeiros de nutrientes. Estes foram
campos de pescaria incrivelmente ricos para meus
ancestrais."
"Uma bióloga", resmungou Lanowski. "Era bem o que eu
precisava."
Inuva olhou de modo fixo e penetrante para Lanowski, e
Jack continuou rapidamente. "Quão estável é aquela coisa?"
"Eu criei uma simulação das condições do gelo no fiorde
para o período planejado do projeto, desde duas semanas
atrás até amanhã", disse Lanowski. "Tudo aconteceu
exatamente como eu predisse. Isso deve lhe dar uma idéia
do que estamos vendo agora." Pressionou uma tecla e eles
observaram passar rapidamente na tela algumas dezenas de
imagens diferentes sobre o mesmo cenário de fundo,
mostrando a geleira retrocedendo de maneira alarmante e
uma procissão de icebergs tombando na soleira.
"Há alguns anos isso levaria uma estação inteira. Agora
acontece em duas semanas." Lanowski levantou seus
pequenos óculos redondos e olhou atentamente para Jack.
"No momento, o iceberg está excelente. Há flutuação diurna
na parte limítrofe do encalhamento, cerca de três metros
quando a maré se movimenta para baixo e para cima,
portanto, a abrasão irá retirar gelo suficiente na parte do
fundo para desequilibrar o iceberg. Bem, agora o pior caso
de todo o cenário é um evento de fragmentação especial, em
que é perdido mais gelo debaixo da água do que acima da
superfície, o que faz o iceberg ficar com o pico pesado.
Então, digamos, se, em uma maré alta, tivermos um
terremoto, ou uma tempestade, ou gelo da geleira descendo
para o fiorde e pressionando por detrás, isso poderia
empurrar o iceberg contra a soleira e derrubá-la."
"Quais são as probabilidades disso?"
"Não estamos prognosticando grandes fragmentos de gelo
descendo para o fiorde, pelo menos nos próximos dias. Um
terremoto também está fora de questão. Uma tempestade é
uma possibilidade. Há uma tempestade excêntrica que
poderia afetar o movimento da água contra a soleira."
"Uma piteraq", disse Inuva baixinho.
"Uma o quê?" indagou Costas.
"Uma piteraq. Ela ocorre quando o ar frio desce da calota de
gelo e encontra o ar mais quente do mar."
"É claro. James falou sobre isso quando estávamos voando."
Lanowski os ignorou e continuou. "Mas não houve
nenhuma tempestade dessa magnitude por quase setenta
anos. A última registrada foi em 1938."
"E a fragmentação?" quis saber Jack.
"É aqui que a simulação fracassa", disse Lanowski. "Eu não
consigo prevê-la com antecedência." Ele olhou consternado
para o chão, como se as limitações da ciência fossem um
fracasso pessoal, depois relaxou os ombros e deu a Jack um
olhar de derrotado. "Tudo o que posso dizer é que as
chances aumentam com o calor do verão, sobretudo agora,
com as vinte e quatro horas de luz diurna durante o verão
ártico. Depois de quarenta e oito horas seguindo um curso
particular, eu recomendaria cessar todo o trabalho no
iceberg e advertir o capitão para reposicionar o navio pelo
menos a duas milhas da costa."
Macleod voltou-se para Jack com certa urgência em sua
expressão. "Essa é a maior razão para começarmos." Ele
agradeceu a Inuva e lhe entregou um rádio receptor e
transmissor da cadeira de comando, que ela levou consigo ao
sair pela porta lateral em direção à superfície do convés.
"Enquanto Inuva estabelece a parte final de seu roteiro, acho
que estamos prontos para lhes mostrar de que realmente
trata este projeto." Ele tentou sem resultado chamar a
atenção de Lanowski, em seguida levou-os até uma estação
de trabalho do outro lado da sala, onde um sujeito
grandalhão com camisa xadrez e jeans estava posicionando
um grande tubo de metal, parecido com aqueles usados para
guardar mapas de tamanho descomunal.
"Don Cheney, o mais antigo glaciologista da NASA", disse
Macleod. "Don, mostre-nos o que você conseguiu."
Eles apertaram-se as mãos rapidamente e pararam formando
um arco atrás da mesa e do monitor do computador. Cheney
tirou cuidadosamente parte de um cilindro interno do tubo e
colocou-o sobre a mesa na frente deles, um tubo de plástico
transparente de cerca de um metro de comprimento e dez
centímetros de diâmetro. Sentou-se diante da estação de
trabalho e inclinou-se para a frente, apoiando-se sobre os
cotovelos, batendo no tubo com um lápis e falando à
maneira arrastada do Texas.
"Para quem nunca viu nenhum, este é um núcleo de gelo",
ele começou. "Foi retirado ontem do iceberg. É, sobretudo,
gelo glaciário, o material com aspecto enevoado contendo
minúsculas bolhas mas também faixas azul-claras de água de
gelo derretida. Conseguimos uma faixa de água derretida
com contaminação moderna, hidrocarbonetos provenientes
de emissões de fábricas e de motores. Em algum momento
no século passado aquela geleira se abriu, depois fechou-se
muito rapidamente. Isso acontece. Nós traçamos a linha de
fratura até a superfície do iceberg, é o único ponto
relativamente fraco no núcleo."
"Pensamos em usar explosivos para quebrar o iceberg ao
longo daquela linha, mas rapidamente desistimos da idéia",
disse Macleod. "Isso provavelmente teria destruído o que
encontramos."
"O que é?", indagou Costas.
Cheney puxou o tubo mais um metro para fora do invólucro
e apontou. "Estávamos quase retirando o núcleo ontem e
desativando o projeto, mas então um dos camaradas da
NASA localizou isto."
A parte final do núcleo era totalmente diferente das faixas de
gelo, uma massa de material fibroso preto e marrom de cerca
de meio metro de comprimento.
"Isso não tem nada a ver com o sedimento do leito do mar
na época", explicou Macleod.
"Isso é madeira!", exclamou Costas.
"Correto. Enterrada em uma camada de gelo que tem mil
anos de idade, desde o tempo em que uma outra fenda se
fechou. A estrutura está muito compactada, e um pouco dela
parece carbonizada, não podemos dizer se por causa de fogo
ou por decomposição. Mas achamos que obtivemos uma
seqüência de anéis na árvore de cerca de trinta anos. Tenho
um outro núcleo do mesmo lugar e que foi enviado para a
Cornuália no Embraer que os trouxe esta manhã. Devemos
ter o resultado do laboratório de dendrocronologia da IMU
ainda esta noite."
"Pode ser um tronco de árvore local", disse Costas sacudindo
a cabeça. "Não há árvores deste tamanho crescendo em
lugar nenhum na Groenlândia, e menos ainda é possível
encontrá-las no topo de uma calota de gelo."
Macleod olhou firmemente para Cheney. "Don, mostre-lhes
o que foi escaneado."
Cheney acenou concordando e girou o monitor da estação
de trabalho para que todos pudessem ver claramente.
Digitou um comando e uma imagem parecida com um
escaneamento feito por ultra-som apareceu na tela, com
faixas e manchas em diferentes tons de cinza que
tremulavam para dentro e para fora do foco.
"Uma imagem de alta resolução também tirada pelo sonar",
Cheney falou arrastado. "Ela mostra a parte superior do
iceberg, logo atrás da face fragmentada. Os tons de cinza
devem-se principalmente a diferenças na densidade do gelo,
entre o gelo glaciário formado durante o período quaternário
e o gelo formado por fusão, neve de superfície e gelo que
derreteram e formaram fissuras na geleira para depois
congelar de novo. Mas há algo mais aí dentro, e é enorme."
Ele bateu em uma tecla e um outro escaneamento apareceu
na tela, dessa vez dominado por uma massa negra no centro.
Ele movimentou o cursor vagarosamente através de uma
série de fotografias, mostrando diferentes ângulos enquanto
o sonar se movia da lateral para o topo da geleira. Na
imagem final, espantado, Jack quase deixou cair sua caneca
de café.
"Você deve estar brincando", ele sussurrou.
"Este é o verdadeiro assunto", disse Macleod. "Eu lhe contei
ontem sobre a madeira, por telefone, mas acabamos de
perceber o que era essa imagem quando processamos os
dados poucas horas atrás. Passamos o sonar de novo sobre o
iceberg hoje de manhã, e cada escaneamento vertical dá
uma imagem idêntica a esta."
"Meu Deus", disse Costas. "Isto parece um navio!"
"Não podemos imaginar o que mais poderia ser. Ele tem
cerca de vinte metros de comprimento, com ampla largura e
proa e popa simétricas. Com o escaneamento horizontal ele
parece plano. Parece que não há surpresas debaixo de todo
aquele gelo."
"A auréola que você percebe ao redor dele é água derretida
congelada, circundando o navio como um casulo", disse
Cheney. "Isto é a coisa mais danada de estranha que já se
viu."
"Talvez ele estivesse em chamas quando se incrustou no
gelo", disse Jeremy baixinho.
"Sim, certo", replicou Cheney. "O que quer que seja, nunca
vi nada parecido com isto antes."
"Você tem certeza de que a madeira vem do navio?" Os
olhos de Jack permaneceram fixados na imagem enquanto
falava.
"Certeza absoluta", disse Macleod. "O centro inativo. A
quilha virada para cima, se é isto que ela é."
"E tem mil anos?"
"Sim, a água derretida, congelada ao redor do navio, tem mil
anos de idade", replicou Macleod.
"Então esse navio pode ser o primeiro drakar dos vikings
descoberto no hemisfério ocidental", disse Jack com o
coração acelerado pela excitação. "Eu tinha esperado por
uma coisa quase tão irrealizável como esta quando você me
contou sobre a madeira. Isto poderia ser fantástico, um dos
naufrágios mais surpreendentes jamais encontrado."
"Eu lhe disse que tinha razão em fazê-lo vir até aqui", disse
Costas.
"Nunca duvidei de você."
"Eu sabia como você estava fascinado por uma exploração
viking", disse Macleod. "Pela possibilidade de descobrir um
naufrágio viking no Novo Mundo."
"Os nativos inuit aqui não constroem navios de madeira, e
não há outro desenho da Europa, daquela época, que se
pareça com este", disse Jack. "Isto combina perfeitamente
com a colonização nórdica da Groenlândia naquele período.
Mas como um navio pode ter ido parar em uma geleira,
formada a milhas distante da costa, me escapa
completamente."
"É um motivo que necessita ser examinado com mais
cuidado", disse Macleod sugestivamente.
"Deixe-me ver." Costas passou a mão pela barba e inclinou-
se sobre Cheney, examinando a escala do escaneamento.
"Isto se encontra a cerca de trezentos metros para dentro do
iceberg a partir daquela face dianteira, e a cerca de cinqüenta
metros abaixo do atual nível do mar, está certo? Acho que o
núcleo estará bem compacto e será improvável um
desmoronamento do túnel, mas nós gostaríamos de ir por
dentro da água para evitar introduzir bolsas de ar no interior
do iceberg."
"Pensamos da mesma forma."
"Quais são os riscos?" perguntou Jack. "Quero dizer, as
probabilidades de haver um desmoronamento?"
"Lanowski é o homem das simulações, e ele já disse quase
indo", replicou Macleod. "Tudo o que posso acrescentar é
que é agora ou nunca. Uma vez que este iceberg ultrapassar
a soleira e sair em alto-mar, não haverá mais chance. Tudo
está preparado; temos apenas de seguir adiante."
"Graças a Deus eu não tenho seguro de vida", murmurou
Jack. "Imagine tentar vender a idéia dessa aventura para o
seu corretor."
"Provavelmente isso não é mais perigoso do que mergulhar
dentro de um vulcão ativo", disse Costas tristemente.
"Não. Você não pode. Isto é loucura." O rosto de Maria ficou
paralisado de horror quando ela percebeu o que eles estavam
planejando fazer, e ela olhou de um para outro à espera de
um sinal de que tudo era apenas uma brincadeira. Jack olhou
para ela, desculpando-se, e depois lançou um olhar para
Costas, que sorriu para ele em retorno.
"Ok. Isto está bastante bom para mim." Macleod olhou para
Inuva, que havia devolvido o rádio-receptor e esperava
pacientemente atrás deles. "Enquanto a equipe no iceberg
está posicionando os seus aparelhos, vamos dar um rápido
passeio até a praia."


7

Uma hora mais tarde, a poderosa forma do iceberg apareceu
gradualmente diante deles, uma parede branca entalhada
cortada por faixas translúcidas azuis e verdes. Jack fechou o
zíper de seu traje de sobrevivência cor de laranja, ajustou o
colete salva-vidas e voltou-se para olhar as linhas lustrosas
do Seaquest II desaparecendo atrás da esteira deles. Ao seu
lado encontrava-se Maria, agarrada à corda de segurança, e
Macleod lhe deu um olhar tranqüilizador do lado oposto da
ponte flutuante.
"Este passeio é um pouco tipo montanha-russa, mas Henrik
é um especialista. Ele brincou nessas águas toda a sua vida."
O tripulante dinamarquês sorriu e ficou em pé na frente do
Evinrude 120, na parte externa do navio, segurando a corda
do cabo de atracação esticado em uma mão e o acelerador na
outra. Ele começou a dirigir o Zodiac como se fosse uma
carruagem, mm saltos verticais sobre os fragmentos de gelo
que cobriam o mar, sem fazer esforço, balançando a enorme
máquina de um lado para outro a fim de evitar os growlers
que estavam traiçoeiramente à espreita, logo abaixo da
superfície. Depois de se movimentar por cinco minutos
entre os fragmentos de gelo, eles alcançaram um par de
bóias vermelhas, a entrada para um dique flutuante que
mantinha uma grande área na frente do iceberg livre de
gelo. Quando vagarosamente venceram os últimos cem
metros até o iceberg, viram dois homens subindo na enorme
parede diante deles usando ganchos de ferro e machadinhas
de gelo, suas formas diminutas contra a vasta magnitude do
iceberg. Eles já podiam sentir o frio que irradiava do gelo,
uma aura refrigerada que fez Maria arrepiar-se. Ela insistira
em juntar-se a eles para o passeio, mas agora se sentia
debilitada, como se tivesse se afastado demasiado dentro de
um mundo além de sua experiência.
"O iceberg parece uma coisa viva", disse ela. "Quase como se
respirasse."
"A exalação fria, na verdade, mostra que ele está derretendo,
e depressa", disse Macleod. "Dentro em breve, mesmo a face
do fragmento à nossa frente ficará muito perigosa para se
trabalhar nela."
Eles chegaram a uma doca flutuante que ficava a cerca de
vinte metros do iceberg, a forma balançante de um Aquapod
submersível visível em um dos lados e dois Zodiacs no
outro. Um conjunto emaranhado de cabos estava sendo
baixado da doca para dentro do mar e um grupo de homens
encontrava-se ali perto vestindo E-suits pretos da IMU,
trajes secos próprios para qualquer ambiente, que
prolongariam sua sobrevivência mesmo nessas águas frígidas
se algo desse errado. Depois de alguns instantes, o cabo
parou e uma forma familiar separou-se do grupo, acenando
para eles e indo pela plataforma até o Zodiac.
"Bom trabalho, rapazes. Fiz tudo o que podia aqui."
Com uma agilidade que não correspondia à sua estrutura
corpulenta, Costas pulou da plataforma para o Zodiac,
aterrissando com uma queda estrepitosa nas tábuas em
frente a Jack. Ele os havia precedido, indo meia hora antes
até o iceberg, e estava nitidamente fatigado. Cambaleou e
despiu o E-suit até o peito, sentou-se e procurou acalmar-se
durante um instante, depois vestiu a jaqueta laranja de
proteção contra o vento e o colete salva-vidas que um
tripulante lhe entregou.
"Estou pronto para ir."
O tripulante desatracou o Zodiac e girou rumo à linha do
dique flutuante, dirigindo lentamente para o oceano e depois
mudando subitamente de direção para a direita logo que
passaram pelas bóias da entrada. Cinco minutos depois, o
dique flutuante estava fora de vista e a extremidade norte do
iceberg atrás deles. Macleod propôs ao tripulante para dirigir
por um curto caminho dentro do fiorde e depois diminuir a
velocidade e parar a máquina. Sem o barulho do motor de
popa, repentinamente tudo pareceu sobrenatural, uma ilusão
de serenidade, como se ao cruzar o limiar subaquático eles
tivessem entrado em um mundo de fantasia de gelo, como
se tivessem se tornado uma coisa única junto com os
altaneiros palácios de cristal que os rodeavam.
"Não se iludam", disse Macleod. "Há forças titânicas
operando aqui."
Como numa deixa, o silêncio foi cortado por um tremendo
estrondo seguido por uma onda de choque de percussão
através do ar e por um som intenso e potente, quando uma
parede de gelo deslizou da geleira bastante distante na
extremidade da calota polar. O som parecia ressoar em todos
os icebergs presos no fiorde, um coro sinistro de ecos,
competindo para atingir o Zodiac, vindos de todas as
direções e depois tornando-se gradativamente mais baixos,
como um longo suspiro. No silêncio sobrenatural que se
seguiu, os icebergs ao redor deles pareciam até mesmo mais
aterradores, suas próprias estaturas mais insignificantes e
impotentes.
"O mar com freqüência fica plácido desse jeito no verão",
disse o tripulante. "Mas, ao mesmo tempo, essa também é a
época em que a geleira fica mais ativa. E quanto mais quente
ficar por aqui, maior a probabilidade de ocorrer uma colisão
com o ar frio que vem da calota polar. Isso acontece muito
rapidamente."
Ele apontou para o horizonte do lado leste do fiorde, para
uma faixa de céu sobre o gelo que poderia ser azul-escura ou
cinza-escura, mas a atenção de todos rapidamente desviou-
se para um growler do tamanho de um carro, bem à frente
deles. O pequeno iceberg havia subitamente começado a
balançar de um lado a outro, uma visão alarmante que
parecia desafiar a razão naquele mar gelado. Ele balançava
cada vez mais agressivamente e depois caiu, revelando uma
superfície esculpida e polida, e enviando uma ondulação
progressiva de água para o fiorde. Os fragmentos de gelo
aumentaram repentinamente ao redor deles como um
monte de vidros quebrados, e outros growlers ergueram-se,
desconfortavelmente próximos, saídos das profundezas.
"Isso foi alarmante", disse Maria.
"Vocês ainda não viram nada", replicou Macleod. "Quando
um enorme iceberg gira, às vezes não se sente grande coisa
por aqui, mas uma onda de maré de dez metros pode
alcançar a praia. Você não gostaria de vagabundear pelas
praias por aqui."
"Não fale tão cedo", disse Costas. "Queremos que nosso
iceberg fique tranqüilo e bem-comportado pelo menos
durante as próximas quarenta e oito horas."
Jack olhou de novo para a massa de gelo cheia de rangidos, e
depois para o fiorde e em direção à geleira. Os icebergs que
não estavam presos no limiar pareciam deslizar
majestosamente em direção ao mar aberto, mas os que
estavam dentro era como se estivessem desorganizados,
espremidos e impedidos de se deslocar, suas extremidades
entalhadas ainda em estado rústico e não buriladas depois da
violência de seu nascimento. O poder do lugar era ainda
mais apavorante porque muito do que havia ali permanecia
invisível, como os violentos distúrbios de atividade que
pulsavam ocultos, sem interrupção, nas profundezas, cada
vez que uma placa de gelo caía dentro do oceano, uma
constante expansão de poder nunca visto dessa maneira em
nenhum outro lugar da Terra. Para Jack, isto era uma nova
medida da fragilidade humana frente à natureza, um limite
que ele parecia estender cada vez mais a cada novo projeto.
Macleod fez um aceno para o tripulante, que deu o sinal de
partida e ligou o motor. O Zodiac virou-se em direção ao
mar aberto e depois acelerou indo para a praia, sua esteira
agitando os fragmentos de gelo que se estendiam pelo fiorde
em grandes ondulações. O tripulante encontrou um trecho
de água clara e acelerou bastante, fazendo o Zodiac traçar
um amplo arco em direção ao promontório cheio de
penhascos que assinalava a extremidade norte do fiorde. Jack
segurou-se no cordão de segurança e recostou se na ponte
flutuante onde estava sentado perto da parte anterior da
embarcação, deixando a água fria borrifar seu rosto e
sentindo o gosto forte do sal em sua boca. Fazia vários meses
desde a última vez que tinha mergulhado e sentia falta do
gosto do mar. Ele viu Maria lhe sorrir quando ela se segurou
na corda ao seu lado, e observou quando Macleod e Costas
desviaram a cabeça e puseram seus capuzes para não receber
os borrifos. Jack lembrava de seu último mergulho com
Costas, nas entranhas profundas do vulcão, seis meses antes,
um mergulho que tinha reavivado seu pior trauma. O
mergulho que tinham planejado agora era mais confinante
ainda, e seria um dos mais extraordinários que jamais haviam
empreendido. Os temores ainda estavam presentes, mas sob
controle, e tudo o que ele sentia agora era uma sensação de
entusiasmo irresistível. O projeto do Chifre de Ouro havia
reacendido sua paixão por arqueologia, mas tinha sido
dirigido da ponte de comando de um navio, fora removida
uma etapa crucial para a revelação da história com as suas
próprias mãos. Ele estava com vontade de ir para debaixo da
água de novo, para ser o primeiro a ver e tocar os fabulosos
tesouros perdidos durante séculos nas profundezas do
oceano.
Quando o motor parou, o ruído ensurdecedor na parte
externa à embarcação foi substituído por um coro sinistro de
uivos e latidos, e eles perceberam que o vale adiante tinha
cachorros amarrados a postes, alguns deles ladrando de fome
e outros devorando nacos de carne que lhes haviam sido
deixados em seus cercados enlameados.
"Os groenlandeses ainda usam trenós de cachorros no
inverno", disse Macleod, agora com o capuz puxado para
trás. "Grande parte do terreno é muito desigual para ser
percorrido por um snow-mobile, e a calota polar fica muito
afastada de uma estação de combustível. Eles mantêm os
cachorros presos durante todo o verão e atiram neles
quando ficam muito velhos para trabalhar. Não são animais
aos quais eles se apegam, não são animais de estimação."
"Estou me lembrando que, quando fizeram escavações na
última colônia abandonada pelos groenlandeses nórdicos,
foram encontrados ossos de cachorros com marcas de corte,
devem ter servido para uma refeição final", disse Jack. "Os
ancestrais desses cachorros."
"Talvez seja por isso que estão latindo", disse Costas.
Maria olhou com apreensão para os cachorros depois que os
outros já tinham subido na proa para descer até a praia de
seixos, e Jack estendeu a mão para persuadi-la a juntar-se a
eles. Rapidamente, Macleod os conduziu para um terreno
mais alto, acima da zona de perigo devido aos deslocamentos
de icebergs, depois respondeu a uma chamada em seu rádio
receptor e transmissor e estendeu-o para Maria. Ela falou
brevemente, depois devolveu o aparelho para Macleod e
retomou seu lugar perto de Jack.
"Era Jeremy", informou ela. "Ele permaneceu a bordo para
terminar de analisar o Mappa Mundi. Acredita que
conseguiu algo mais. Pode ser realmente excitante, mas
necessitamos de um pouco mais de tempo."
"Seria bom que sua análise estivesse pronta quando
terminarmos nosso mergulho", disse Jack. "Precisamos
sentar e planejar para onde iremos a partir daqui."
"Eu ainda não posso acreditar que vocês farão isso", disse
Maria olhando com preocupação para ele. "À vezes acho
que você tem vontade de morrer."
"Esta é a primeira vez que participa de um trabalho de
campo com a IMU", sorriu Jack. "Como James disse, você
ainda não viu nada."
Apesar do calor do sol de verão, eles não tiraram o traje de
sobrevivência, fechado até em cima por causa dos insetos, e
seguiram Macleod na praia, pela rocha escarpada e erodida,
em direção à depressão no vale. Não havia vegetação alta,
mas a rocha açoitada pelos ventos dos cumes vizinhos estava
recoberta por viçosos leitos de musgo e grama que
acarpetavam o chão do vale.
"As ruínas à frente são da antiga Sermermiut", disse
Macleod. "Um lugar sagrado para os inuit locais. Pessoas que
viveram aqui há pelo menos quatro mil anos, desde que os
primeiros groenlandeses atravessaram pela primeira vez o
mar gelado vindos do Ártico canadense. A cidade de Ilulissat
fica acima do cume, para o norte, mas só foi fundada em
1741 com a moderna ocupação dinamarquesa da
Groenlândia. Os dinamarqueses a chamavam de Jacobshavn,
mas o nome groenlandês é um pouco mais apropriado."
"O que significa Ilulissat?" perguntou Costas.
"Icebergs."
Costas resmungou, e eles andaram com dificuldade pelo
caminho, passando por uma depressão pantanosa em direção
ao antigo local, afastando as nuvens de mosquitos que
pareciam erguer-se do pântano como uma neblina. "E os
vikings?"
"Para os nórdicos, todo este trecho da costa até a calota polar
era Nordrseta, os campos de caça boreais, um lugar proibido
onde dificilmente foram encontrados quaisquer vestígios de
vikings." Macleod parou, esperando que Costas o alcançasse.
"Os nórdicos só se estabeleciam permanentemente onde
pudessem ter a esperança de conseguir um tradicional estilo
de vida escandinavo, criação de gado e agricultura básica. Na
Groenlândia, isso significava fixar-se nos vales férteis dos
fiordes perto da extremidade sul, onde Erik, o Ruivo, chegou
com sua família no início do século XI. Muitos dos colonos
vieram da Noruega e da Islândia. Conseqüentemente, havia
centenas de propriedades rurais, uma população que chegava
a vários milhares de pessoas, e elas até construíram rústicas
igrejas de pedra quando se converteram ao cristianismo."
"O que aconteceu com elas?" indagou Costas.
"Um dos maiores mistérios do passado", respondeu Macleod.
"Permaneceram durante gerações comerciando marfins de
morsa e peles com a Europa, mas o último contato
conhecido foi no século XV, quando a Igreja Católica enviou
uma expedição para a Groenlândia em 1721, para verificar se
eles ainda eram bons cristãos, crentes em Deus, mas não
encontraram sinais deles."
"Acreditem ou não, os cruzados foram provavelmente um
motivo do desaparecimento", disse Maria.
"Hum?", disse Costas. "Os cruzados?"
"Em 1124, o rei norueguês Sigurd Jorsalfar estabeleceu uma
diocese episcopal na Groenlândia. Isso significava que ele
podia impor taxas aos colonizadores nórdicos, aumentando
muito a miséria deles. Sigurd era conhecido como 'O
Cruzado', um dos numerosos escandinavos que se juntaram
aos cruzados no século XI. Ele teve a audácia de extorquir
uma taxa especial para as cruzadas na Groenlândia, em todas
as partes. Os groenlandeses as pagavam com presas de
morsas e peles de ursos polares."
"Essas coisas devem ter sido úteis em Jerusalém", ironizou
Costas. "Os cruzados foram realmente uma loucura global."
"A Igreja indubitavelmente era um fardo econômico", disse
Macleod. "Mas há quem pense que os nórdicos na
Groenlândia foram destruídos pelos nativos, ou por piratas
ingleses, ou até pela peste negra. Eu acho que as condições
ambientais foram a causa maior. A chamada Pequena Idade
do Gelo do período medieval bloqueou as rotas marítimas
que eram sua linha vital de comunicação com a pátria, com
gelo permanecendo no mar durante todo o verão ao redor
das costas. O frio também deve ter destruído sua agricultura,
e talvez eles fossem incapazes ou não quisessem adaptar-se
ao modo de vida nativo e sobreviver da caça e da pesca."
"Assim, o último dos vikings foi morto por causa da
mudança de clima", comentou Costas. "Não foi um fim
glorioso para um guerreiro de elite, não é?"
"Vamos esperar e ver", murmurou Jack. "Pode ser que os
verdadeiros guerreiros entre eles tivessem se deslocado mais
para o oeste."
As ruínas do antigo local estavam quase irreconhecíveis,
montículos de grama e círculos baixos de rochas não
trabalhadas colocadas no chão, algumas delas quase
absorvidas pelo sedimento aluvial e outras expostas em
trechos de pântanos ricos em turfas. Em uma pequena
plataforma em direção à orla marítima havia uma barraca
baixa e abobadada de cerca de três ou quatro metros e meio
de largura, sua estrutura feita de barbatana de baleia e
coberta com camadas de peles de foca e de couro de boi-
almiscarado. Um fino fragmento de fumaça erguia-se de um
buraco no centro.
"Algumas dessas pedras formam círculos para as tendas e
eram colocadas para protegê-las do vento", explicou
Macleod.
"Podem ser encontradas por todo o Ártico, são a principal
evidência de antigas habitações. As pessoas não viveram
neste local durante gerações, mas ele é um lugar santificado
para os inuit de Ilulissat. Algumas vezes, os mais idosos que
permaneciam próximos dos velhos costumes vinham aqui
para se preparar para morrer. Suas famílias erigiam tendas
tradicionais dentro dos círculos sagrados de pedra de seus
ancestrais, quando sabiam que seu fim estava próximo."
Uma matilha de cães esquimós brancos e magros estava
presa às estacas que rodeavam as tendas, e quando Macleod
levou os companheiros adiante, os cachorros forçaram as
correntes e babaram ameaçadoramente para eles. Maria
parou, mas Jack conduziu-a com cuidado, mantendo-a longe
do alcance das correntes. Os rosnados haviam alertado os
ocupantes da tenda, e uma ponta dela abriu-se revelando
uma mulher groenlandesa que usava um casaco curto
forrado de pele de foca, o cabelo preto preso na nuca e
enfeitado com contas. Quando olharam com atenção,
reconheceram Inuva, que havia deixado o Seaquest II com
um Zodiac, uma hora antes deles. Ela acalmou os animais e
acenou para Macleod, que se ajoelhou e trocou algumas
palavras com a mulher antes que a ponta de pele da tenda se
fechasse de novo.
"Inuva é a filha do grande homem." Macleod virou-se para
os outros e falou baixinho. "Ele conhece dinamarquês, mas
falará apenas em Kalaallisut, o dialeto inuit local, de modo
que Inuva irá traduzir para nós. Seu nome é Kangia, que é
também o nome para fiorde gelado. Ele tem bem mais do
que oitenta anos agora, uma idade muito avançada para esse
povo. Eles levam uma vida árdua. Em sua juventude, ele era
um dos caçadores mais renomados de Ilulissat, aventurando-
se por centenas de milhas ao longo da extremidade da calota
polar com seus cães, remando seu umiak, o barco de peles,
muito além do último assentamento ao norte."
Passaram pela ponta de pele da tenda, enquanto Macleod a
mantinha aberta, depois ele os seguiu para dentro. Os olhos
de Jack ficaram irritados por causa da fumaça acre que subia
do piso da lareira, alimentada por placas de excremento seco
de boi-almiscarado. Macleod fez um sinal para que eles se
sentassem sob a fumaça em um círculo de peles arrumadas
ao redor do fogo. Quando os olhos se acostumaram com a
escuridão, puderam ver que o outro extremo da tenda estava
ocupado por um trenó de madeira, os varões escurecidos
pela idade, lindamente esculpidos com formas harmoniosas
de animais. Sentado no canto, envolto em mantas, havia um
homem inuit idoso, seu rosto coriáceo e sulcado pelo tempo
com o longo cabelo branco espalhado livremente sobre os
ombros. Quando o homem olhou para eles, puderam ver
que seus olhos estavam embaçados por causa da cegueira
provocada pela neve e que sua pele tinha a palidez cinzenta
daqueles que se aproximam da morte. Com grande esforço,
ele começou a falar, e Inuva traduzia os sons leves e com
estalidos da língua nativa da Groenlândia cada vez que ele
fazia uma pausa.
"Meu pai diz que desde tempos imemoriais seu povo tem
vivido aqui, e forasteiros vieram e se foram", disse ela
suavemente. "Agora já chegou quase o momento de ele ir
embora e encontrar os trenós puxados por cachorros de seus
ancestrais, quando eles atravessam rapidamente a calota
polar, com destino a toda a eternidade." O velho estendeu
uma mão mirrada para fora das mantas e pegou uma
fotografia rasgada no trenó ao seu lado, acenando
silenciosamente para Macleod enquanto lhe passava a foto.
"Aqui é onde nós estamos", disse Macleod. "Inuva lhe
contou sobre nosso navio de pesquisa no fiorde, e foi ela
quem me chamou para encontrar Kangia dois dias atrás.
Dêem uma olhada na foto."
Macleod passou a fotografia para Jack, enquanto Maria e
Costas se aproximaram para ver melhor. Era uma imagem
esmaecida, em preto-e-branco, de um grupo de homens
vestidos com roupas polares completas, parados ao lado dos
trenós de madeira carregados com equipamentos e rodeados
por cães.
"Algum tempo antes da Segunda Guerra Mundial, a julgar
pelos equipamentos", disse Jack. "Talvez nos anos 1920 ou
1930." Fie parou e olhou mais atentamente. "Este homem
idoso no centro. Não é Knud Rasmussen? Sei que ele nasceu
em Jacobshavn."
"Kangia era um dos que treinavam os cachorros. Ele é o
rapaz à esquerda."
"Então Kangia conhecia Knud Rasmussen!" Jack fitou com
admiração o velho inuit, depois olhou para Costas. "Um dos
mais célebres exploradores polares, metade dinamarquês,
metade inuit. A primeira pessoa que atravessou toda a calota
polar da Groenlândia."
"Rasmussen era como um pai para Kangia e encorajou-o a
manter os costumes antigos. Kangia o venerava e admirava o
seu respeito pelas tradições nativas. O que é mais do que se
pode dizer em favor desses personagens antigos." Macleod
pegou uma fotografia impermeabilizada do bolso interior de
sua jaqueta e passou-a adiante. "Kangia também me deu esta
foto."
"AhnenerbeV A expressão de Jack tornou-se subitamente
séria.
"Correto. Eu escaneei a foto e fiz algumas pesquisas antes de
você chegar. Uma expedição alemã veio para Jacobshavn em
1938, um ano antes da guerra. Eles precisavam de
treinadores de cachorros, e Kangia era uma escolha óbvia."
A fotografia mostrava dois homens europeus parados diante
de um cenário de rocha e gelo. Pela forma do promontório,
o local era nitidamente Sermermiut, próximo de onde se
encontravam agora, mas a fila de icebergs formava uma
parede contínua ao longo do limiar do fiorde, e a foto tinha
sido tirada mais de cinqüenta anos atrás, antes que a geleira
começasse a involuir. Ambos os homens estavam vestidos
com apetrechos de expedição da época, suéteres grossos,
jaquetas de lã pesadas e calças enfiadas em meias que iam até
os joelhos. O homem à direita era alto e bem-apessoado,
talvez com cerca de 35 anos, com fartos cabelos loiros, mas
estava parado um pouco afastado do outro, como se relutasse
em ser fotografado. O outro homem era baixo, cabelos
pretos, feições contraídas, com uma perna dobrada e a mão
direita apoiada sobre o joelho. Com a mão esquerda segurava
um par de compassos, com calibre para medições, sobre a
cabeça de um jovem inuit, sentado de maneira embaraçada
sobre uma rocha à sua frente, reconhecido como Kangia por
causa da foto anterior. Parecia um caçador posando com seu
troféu, só que a situação era um pouco mais deprimente do
que isso. Em seu braço esquerdo o homem usava uma faixa
vermelha com o símbolo preto da suástica.
Jack olhou para Costas. "Ahnenerbe significa 'Herança
Ancestral'. Era um departamento da SS estabelecido antes da
guerra pelo Reichsführer Heinrich Himmler, o
representante de Hitler. Dedicado à investigação das origens
ancestrais da raça ariana."
"Que diabos estavam eles fazendo aqui?"
"Acredite ou não, provavelmente procurando pela
Atlântida." Jack lançou um olhar irônico para Costas. "Os
nazistas acreditavam que os arianos eram descendentes
diretos dos atlantes. No final dos anos 1930, a Ahnenerbe
enviou expedições pelo mundo todo, para o Tibete, para as
profundezas da América Central, para o Ártico. Eles
acreditavam poder encontrar os mais puros descendentes
dos atlantes nas regiões mais remotas, em áreas afastadas do
resto da humanidade. Uma de suas técnicas era a frenologia,
que media as cabeças procurando os assim chamados
aspectos arianos. É isso que esse retardado mental está
fazendo na foto. A ciência era medieval, mas os
antropólogos genuínos recrutados pela Ahnenerbe tinham
de se curvar às obsessões dementes do Reichsführer. Eles até
a chamavam de Cruzada de Himmler."
Macleod acenou concordando. "Sim", disse ele. "E uma
expedição para a Groenlândia era duplamente bizarra. Os
nazistas também estavam obcecados com a Welteislehre, a
Teoria do Mundo de Gelo, uma fantasia cosmológica
inventada por um austríaco demente na virada do século.
Era uma das teorias esquisitas que ganhou adeptos depois da
Primeira Guerra Mundial, a qual parecia oferecer estrutura e
explicação para um mundo que havia ficado maluco. De
acordo com a teoria, tudo no universo era uma luta perpétua
entre o gelo e o fogo. A raça ariana original tinha nascido
em uma região de gelo e havia se espalhado pelo mundo por
meio de inundações e terremotos. Que lugar melhor para
encontrar evidências dos arianos originais do que a calota
polar da Groenlândia, o último grande remanescente da
Idade do Gelo?"
"Isso teria sido ridículo se não fosse pelo racismo maligno
subjacente à tudo que a Ahnenerbe fazia", disse Jack. "Como
eles contavam para Himmler apenas o que este queria saber,
suas atividades ajudavam a solidificar seu ponto de vista
sobre a superioridade ariana. Lembrem que ele era o
arquiteto-chefe da Solução Final, a destruição dos judeus."
"Então, esses dois sujeitos eram nazistas." Costas havia
pegado a fotografia e a estava examinando junto com Maria.
"De acordo com Kangia, o de cabelo besuntado com a faixa
no braço era uma pessoa completamente sórdida que
discursava constantemente sobre Hitler e tratava os
groenlandeses como cachorros", disse Macleod. "Mas o
outro sujeito parece ter sido mais razoável, tentando
aparentemente se mostrar amigável com Kangia, ressaltando
a sua importância na expedição. Ele estava fascinado pelas
tradições orais dos groenlandeses e prometeu visitá-los
sozinho um dia para registrá-las. Aparentemente tornou-se
um excursionista decente, deslocando-se de trenó puxado
por cachorros, e ganhou o respeito dos groenlandeses. Os
dois alemães se detestavam e raramente conversavam entre
si."
"Você tem alguma idéia de quem eles eram?" Inuva falou
baixinho da beira da cama onde estava sentada, ouvindo,
com a mão na testa de seu pai.
Macleod voltou-se para ela. "Os registros da expedição
desapareceram misteriosamente do quartel-general da
Ahnenerbe durante a deflagração da guerra, de modo que
esta foto e as memórias de Kangia são tudo o que temos para
prosseguir. Eu a escaneei e passei por e-mail para a biblioteca
da IMU ontem. Eles não tiveram condições de identificar o
homem baixo, é um rosto que se parece com o de milhares
de outros assassinos, mas o outro sujeito é uma outra
história."
"É claro. Eu o reconheço agora", exclamou Maria
repentinamente. "O loiro. Não é Rolf Künzl, o renomado
arqueólogo?"
"Correto."
"Um dos fundadores da arqueologia viking", disse Maria,
entusiasmada. "Sua tese de doutorado sobre a colonização
nórdica permanece como uma espécie de referência para o
assunto. Uma carreira precocemente interrompida pela
guerra."
"Então, você sabe o que aconteceu com ele."
"A conspiração de Von Stauffenberg" - replicou Maria.
Macleod concordou. "Ele era um em meio aos inúmeros
estudiosos recrutados à força pela Ahnenerbe para sustentar
as fantasias nazistas sobre a raça ariana original. Künzl não
tinha outra escolha a não ser participar do jogo, muito
embora desprezasse abertamente as facções lunáticas que
compunham a Ahnenerbe, sobretudo os estudiosos
fracassados e malucos que deviam suas carreiras aos
nazistas."
"Os lunáticos dirigiam o asilo", murmurou Costas.
Macleod concordou novamente. "Mas Künzl nunca foi
recrutado para a SS porque ele pertencia a uma velha família
militar prussiana, um oficial da reserva na Wehrmacht, e
conseguiu com adulações escapar dos tentáculos de
Himmler quando a guerra começou. Ele lutou dois anos sob
o comando de Rommel no deserto, alcançando o posto de
coronel e ganhando a Cruz de Ferro, mas depois foi
chamado de volta a Berlim e lhe foi dado um cargo inferior.
Himmler parece tê-lo escolhido para provocar uma
intimidação especial, acusando-o repetidas vezes de ter
roubado registros da expedição para a Groenlândia e
escondido o que tinham achado. Mas Himmler deve ter
perdido a paciência com ele em setembro de 1944, pois
Künzl foi detido e enforcado com uma corda de piano, ao
lado de Stauffenberg, pela tentativa de assassinato de Hitler."
"Um dos mocinhos", murmurou Costas.
"Nenhum dos conspiradores era santo", replicou Macleod.
"Künzl havia sido um dos mais ativos comandantes de
tanques alemães no Africa Korps, e suas mãos estavam sujas
com o sangue de muitos aliados. Ele conhecia a orientação
política racial dos nazistas por causa de seus dias na
Ahnenerbe e, aparentemente, não havia feito nada a
respeito. Mas ele detestava Hitler e queria que a guerra
terminasse antes que destruísse a Alemanha. Se olharem
para o outro homem na fotografia, poderão ver de onde
vinha a repugnância de Künzl pelos nazistas."
Kangia subitamente começou a falar, os tons com estalidos
leves preenchiam a tenda como se um vento suave estivesse
agitando as peles de foca. Procurou a fotografia e Costas
entregou-a a ele, e todos ficaram observando enquanto o
velho passava o dedo pela imagem do homem mais alto.
Inuva inclinou-se atentamente sobre a foto enquanto o pai
falava, e depois olhou para os outros.
"Passados três dias de expedição, eles alcançaram a
extremidade da calota polar, na direção norte a partir daqui,
e descobriram um caminho para subir até o topo do gelo.
Depois de um dia arrastando os trenós através do gelo, eles
foram de repente impedidos de continuar por uma piteraq,
uma tempestade com fortes ventos."
Kangia ouviu sua filha repetir a palavra groenlandesa e
repentinamente ficou animado, com as sombras de seus
braços formando arcos contra a parede da tenda enquanto
ele gesticulava na luz bruxuleante do fogo.
"Era uma tempestade violenta, a pior que meu pai já tinha
visto", disse Inuva. "A expedição estava na extremidade
norte da geleira, onde uma corrente de gelo afluente
começou a deslizar em direção ao fiorde. Os dois alemães
insistiram em atravessá-la rumo à geleira e procuraram
abrigo atrás de um cume de gelo, em uma das sinuosidades
onde a geleira se curvava. Mas os groenlandeses se
recusaram a ir, sabendo que era muito perigoso, e
permaneceram desafiadoramente com os cachorros na
calota polar exposta, amontoando-se atrás dos trenós."
O velho homem juntou os punhos, separou-os enquanto
fazia um som de estalo, e depois falou de novo com a filha.
"Ouviu-se um barulho forte", ela traduziu. "A geleira havia
se separado e os dois homens desapareceram dentro dela.
Eu, Kangia, fui o único bastante corajoso para rastejar em
meio ao vento até a extremidade da fenda, e olhei para
baixo, através da neve em redemoinho, e vi um espetáculo
incrível."
O velho estava seguindo as entonações da filha e acenando
enfaticamente com a cabeça, mas de repente ele tossiu com
dificuldade e deitou sobre a pilha de peles com o rosto cinza
e contraído.
"Ele não tem muito tempo agora." Inuva acariciava
gentilmente o braço de seu pai, e depois olhou para Macleod
desculpando-se. "Acho que vocês devem ir embora."
Macleod concordou lentamente e começou a levantar-se,
mas o velho estendeu o braço vacilante e falou de novo, as
palavras agora eram quase inaudíveis. A filha inclinou-se
para ficar mais perto e depois traduziu de novo.
"Estava muito abaixo, tão na profundeza quanto os icebergs
são altos." Macleod sentou-se enquanto ele falava. "No
fundo da fenda havia a proa de um navio, curvando para
cima com um aspecto alarmante, o madeiramento
escurecido e velho. Eu, Kangia, soube o que era assim que o
vi. A lenda que era contada falava de gigantes revestidos de
aço, Kablunat, que vieram do outro lado do mar e
engastaram um de seus grandes navios pousados sobre o
gelo. Eu, Kangia, ouvi a história de meu avô quando era
menino, dentro desse mesmo círculo, na tenda." O velho
homem parou e tossiu, e Inuva olhou para os outros.
"Nossos ancestrais inuit, os thule, chegaram aqui vindos do
Ártico canadense para se estabelecer, cerca de oitocentos
anos atrás, depois que as pessoas nativas que viviam aqui
tinham morrido. Mas os caçadores thule já tinham vindo
aqui antes disso, e tinham encontrado os gigantes barbados
que viviam em casas de pedra no sul da Groenlândia. Meus
ancestrais os chamavam de Kablunat"
"Meu Deus", sussurrou Jack. "Um navio dentro do gelo. Não
pode ser."
"Espere. Há mais." Inuva levantou a mão e ouviu de novo o
que dizia o velho. "O gelo começou a mover-se debaixo de
mim", ela traduziu. "Eu, Kangia, atirei uma corda e icei os
dois homens. A fenda fechou-se com um estrondo assim
que eles saíram. O navio havia desaparecido no gelo. A
piteraq continuou por muitos dias e nós retornamos para
Ilulissat. Esse foi o fim da expedição. Os alemães navegaram
para sua terra e nunca mais os vi."
O velho procurou algo debaixo das cobertas que Inuva tinha
colocado sobre ele e tirou um pacote envolto em pele
branca de foca. Com as mãos trêmulas estendeu-o e Macleod
o pegou, curvando solenemente a cabeça enquanto fazia
isso. À vista do velho entregou-o para Jack, que segurou
com cuidado o couro macio em suas mãos e olhou de modo
inquisitivo para Macleod.
"É por isso que você tinha de vir pessoalmente", disse
Macleod. "Quando falei com Kangia, dois dias atrás, ele me
contou que tinha um objeto que queria passar adiante. Eu
lhe disse que você era nosso chefe, e ele falou que só você
poderia recebê-lo dele."
Jack olhou para o velho e curvou a cabeça de modo solene,
e depois, com muito cuidado, começou a desembrulhar o
pacote. Maria e Costas aproximaram-se para ver melhor,
enquanto o embrulho de pele de foca era aberto. Maria
suspirou, o rosto pálido por causa da excitação.
"É uma pedra de runa!"
O objeto era uma placa polida verde-escura, um pouco mais
comprida do que a mão de Jack, toscamente quadrada nos
cantos e com a superfície superior plana. Havia três linhas
de runas rusticamente inscritas nela, vários símbolos
reconhecidos por Jack quando ele a levantou em direção à
luz.
"Isso é fantástico", murmurou Maria. "As runas estão escritas
em escandinavo antigo, não há dúvida sobre isso. Há alguns
símbolos estranhos e eu não reconheço as palavras, mas
Jeremy será capaz de ajudar."
"Meu pai me contou a história, mas nunca me mostrou isso",
murmurou Inuva. "Só há uma igual a essa no museu em
Upernavik, a centenas de milhas ao norte daqui, encontrada
em um monte de pedras erigido sobre um túmulo distante
em um lugar chamado Kingigtorssuaq. Ele é o achado viking
mais famoso da Groenlândia, a pedra de runa mais boreal
jamais encontrada no Ártico."
"Espere para ouvir de onde essa vem", disse Macleod.
"Quando Kangia salvou os dois alemães da fenda, eles
estavam lutando por algo, mas o homem mais baixo
escorregou e quase despencou. Kangia o viu golpear o outro
com uma faca, mas o homem deixou-a cair na fenda. Ele
estava furioso por causa de algo mais que havia perdido, mas,
com a tempestade ficando violenta de novo, tornou-se uma
questão de vida ou morte tirá-los dali e a briga foi esquecida.
Antes de eles deixarem a calota polar, Künzl deu esta pedra a
Kangia para que a guardasse. Ele disse que a pedra viera do
navio no gelo. Künzl aparentemente contou aos nazistas que
a havia deixado cair na fenda, mas o homem pequeno
suspeitava que Künzl ainda estava com ela e ficou
examinando seus pertences no meio da noite. Künzl contou
a Kangia que era uma pedra sagrada e que ele nunca deveria
contar ao outro homem que a pedra estava em seu poder.
Kangia detestava o nazista e ficou muito contente em
cumprir sua promessa."
"Künzl deve tê-la traduzido", murmurou Maria. "Ele era o
melhor especialista em runas de sua época, um expert em
escritas nórdicas. Naqueles poucos momentos desesperados
na fenda, ele deve ter lido algo que o fez decidir nunca a
deixar cair nas mãos dos seus desprezados colegas da SS na
Ahnenerbe"
"Künzl disse a Kangia que, se não lhe fosse possível voltar
para a Groenlândia, Kangia deveria manter a pedra oculta
pelo resto de sua vida, e passá-la apenas para alguém em
quem seu coração pudesse confiar. A guerra selou o destino
de Künzl, e agora você é o homem confiável."
Enquanto eles estavam conversando, a mão de Kangia caíra
sobre seu peito e ele havia começado a respirar com sons
desiguais pouco profundos, os olhos semi-fechados e fitando
o teto. Inuva voltou-se e olhou para eles com uma expressão
de urgência. "Agora realmente chegou a hora de irem
embora."
Macleod fez que sim e todos eles se levantaram para sair,
inclinando-se em fila única sob a ponta da pele da entrada.
Jack ficou por último, e antes de sair voltou-se e ajoelhou-se
ao lado do velho, falando tranqüilamente com ele e dizendo
algumas palavras para sua filha. Ele tocou na mão de Kangia
antes de se levantar e seguir Maria para fora, para as ruínas
açoitadas pelo vento da antiga colônia.
"O que você disse a ele?" perguntou Maria.
"Desejei a ele e seus cachorros uma boa viagem através do
gelo, aonde quer que sua jornada os levasse. Disse-lhe que
ele estava certo ao entregar seu tesouro para nós, que
manteríamos sua confiança como sagrada."
Inuva apareceu na entrada da tenda para se despedir.
"O que vai acontecer com ele?" perguntou Maria com voz
suave.
"Depois que o xamã vier, nós o ajudaremos a ir até o alto
despenhadeiro para contemplar o fiorde, até o lugar que
chamamos Kasllingekloften. Nós o deixaremos ali, e amanhã
ele terá partido."
"Você quer dizer que ele se suicida?", perguntou Maria em
voz baixa.
"Em Kaellingekloften nós nos reunimos todos os anos para
ver o sol aparecer pela primeira vez na geleira depois das
semanas de escuridão do inverno, e no mesmo lugar aqueles
que estão cansados da vida pulam para as profundezas
geladas do fiorde para se juntar ao espírito do mundo. Esta é
a maneira tradicional. Meu pai terminou o que tinha de fazer
aqui e agora ele está ansioso para ir para a sua próxima
jornada."
Ela abaixou os olhos e entrou na tenda, fechando a abertura
atrás de si.
Mais acima, em um rochedo, um cachorro ergueu a cabeça
para o oeste e uivou, e depois puxou com força sua corrente
quando os viu, achatando a cabeça como uma hiena e
deixando os dentes à mostra em seu rosnado. Maria
estremeceu e envolveu-se mais em seu casaco,
aproximando-se de Jack enquanto passavam pelo caminho
rochoso em direção ao mar.
"O que é?" ele perguntou.
"Uma antiga lenda nórdica." Ela fez uma pausa antes de
contar, enquanto eles passavam por um trecho pantanoso.
"O temido lobo Fenrir, nascido de uma ninhada monstruosa
gerada por uma giganta, irmão da serpente do mundo
Jormungard e da criatura Hei, guardiã dos mortos. Odin
ouviu uma profecia de que o lobo e seus parentes um dia
destruiriam os deuses, então ele acorrentou Fenrir a uma
rocha. Thar liggr hann til ragnawks, ali ele espera até
Ragnarok, até a prova final no fim do mundo, quando então
descarregará sua vingança sobre os deuses."
"Este é um cachorro de trenó, não um lobo", disse Jack.
"Eu sei. É irracional." Maria lançou um olhar para a figura
distante do cachorro que ficara para trás e voltou-se
rapidamente para seguir pelo caminho. "Mas eu sinto como
se tivesse alcançado a beirada daquele mundo de mito, um
limiar entre o mundo que os vikings conheciam e um
mundo que nem os seus deuses podiam controlar. Os
vikings que vieram para cá devem ter sentido a mesma
coisa, um pressentimento quando olharam por sobre o mar
gelado para o oeste, perguntando-se se o horizonte continha
riquezas e uma nova vida ou o pesadelo de Ragnarok. É
como se eles estivessem sendo avisados de que outros
haviam passado pelo caminho diante de nós e não tinham
voltado."
Jack colocou o braço nos ombros de Maria e estreitou-a,
procurando tranqüilizá-la. "Eu tomaria isto como um bom
presságio. Se Fenrir está aqui, então devemos estar na pista
certa." Ele sorriu e lhe entregou o pacote embrulhado que o
velho lhe havia dado. "De todo modo, as lendas antigas vão
ter de esperar um pouco. Você tem um trabalho feito sob
medida para você. Quanto antes pudermos conseguir a
tradução das runas, melhor será."
"Os groenlandeses nórdicos viram tempestades como
aquelas, sabe, as piteraqs", disse Maria. "Há um fragmento de
um poema, que aparece repetidas vezes, chamado
Norõrsetudrápa, acerca destas terras nórdicas de caça. É algo
como: Fortes rajadas das paredes das montanhas brancas
entrelaçam as águas, e as filhas das ondas, criadas com a
geada, rasgam o manto em pedaços, regozijando-se na
tempestade. Este é praticamente o único escrito que
sobreviveu da Groenlândia nórdica, preservado em uma
narrativa épica da Islândia."
"Não se preocupe", disse Jack. "Seremos cuidadosos."
Poucos minutos mais tarde, eles alcançaram a costa e
subiram no Zodiac que estava à sua espera. Já era quase noite
então, mas, na perpétua luz do sol do verão ártico, era
impossível determinar exatamente a hora do dia; com efeito,
Jack se sentia vagamente desorientado. Depois de ter
ajudado Maria a subir na proa e quando estavam de novo
acomodados nas plataformas flutuantes infláveis, Macleod
fez um sinal ao tripulante e o Evinrude começou a roncar.
Eles fecharam o zíper dos trajes de sobrevivência e
ajustaram o colete salva-vidas quando o tripulante virou em
sentido contrário e depois girou, fazendo um grande arco na
baía; por sua vez, a hélice foi deslocando os fragmentos de
gelo enquanto o Zodiac procurava uma passagem em meio
às placas flutuantes de gelo. Quando rodearam o
promontório na altura da cabeça do fiorde, o iceberg surgiu
dramaticamente, impedindo o progresso da frota de Zodiacs
que estavam alinhados em toda a sua extensão, carregados
com equipamentos e técnicos. Costas examinou a cena com
ansiedade e eles se apressaram em direção ao Seaquest II,
depois Costas relaxou visivelmente e olhou para Jack. Fez
um sinal de polegar para cima e gritou contra o barulho do
motor e do vento, e suas palavras se perderam, exceto o
refrão excitado e familiar que Jack ouvia ao longo de todos
os anos que estavam juntos.
"Está na hora de se aprontar."


8

"Todos os sistemas estão funcionando. Estamos prontos para
ir."
Costas colocou de lado seu telefone de ouvido e sorriu para
Jack. Do lado de fora da cúpula de plexiglas eles podiam ver
dois tripulantes na plataforma soltando as cordas de
travamento, e o Aquapod começou a sacudir
desconfortavelmente na superfície enquanto seguia em
direção ao iceberg. Costas ativou rapidamente os jatos de
água e inverteu o comando do submersível de novo para a
sua posição de descida. Era quase meia-noite, mas, sob o sol
contínuo, a cúpula tinha começado a esquentar, e Jack
procurou o termostato em seu E-suit.
"Não ajuste demais a temperatura." Costas limpou as gotas de
suor da testa. "Vamos esfriar rapidamente assim que
submergirmos."
A atividade agitada na plataforma, de quando eles haviam
partido, agora parecia fazer parte de um outro tempo e lugar,
e eles ouviram quando o último dos Zodiacs que carregava a
tripulação apressou-se para fora da zona de perigo
retornando para o Seaquest II. Agora eles encontravam-se
praticamente sozinhos, o seu último contato humano estava
à espera no DSRV, aninhado contra o iceberg, trinta metros
abaixo. Costas apertou suas correias, verificou o painel de
instrumentos e segurou os controles. Com sua cúpula em
forma de bolha e os tanques tubulares de lastro de cada lado,
o Aquapod para dois ocupantes não era diferente de um
pequeno helicóptero, uma impressão aumentada pelo
sistema multidirecional de propulsão com jatos de água que
lhe proporcionava uma agilidade maior ainda do que a de
seu correspondente no ar.
"Você pode dar adeus à superfície agora", disse Costas.
"Pelo menos ainda teremos a luz do dia quando voltarmos",
murmurou Jack.
"Isto é algo a ser considerado também."
Costas abriu os tanques de lastro e um aquecedor de água
entrou em ação de cada lado do Aquapod, produzindo uma
efervescência enquanto o submersível lentamente se
equilibrava na água e começava a mergulhar. Durante alguns
instantes, quando o nível do mar se ergueu sobre a cúpula à
sua frente, eles ficaram olhando para dois mundos, ambos
assustadores em sua magnitude. Acima deles havia a forma
muito alta do iceberg, familiar agora, embora ainda
excitante, suas nuanças de azul e de verde refratadas através
das partículas de fragmentos de gelo que se acumulavam na
cúpula. Abaixo deles havia um mundo tão variado quanto o
espaço exterior, um mundo que a natureza nunca pretendeu
que eles invadissem. As águas do Ártico eram
espantosamente claras, com visibilidade que se estendia por
cem metros ou mais em todas as direções, e a parede
curvada do iceberg se estendia abaixo deles até onde podiam
enxergar nas profundezas geladas do fiorde. Era uma visão
estupenda, e durante alguns instantes eles a fitaram
estupefatos, em silêncio, enquanto a cúpula deslizava sob a
superfície.
"Merda!" exclamou Costas subitamente. "Assumindo ação
evasiva!"
Costas acionou o propulsor e virou o Aquapod em direção
ao iceberg. Pelo canto do olho, Jack viu o que Costas havia
percebido a tempo. Havia uma agitação rítmica na água
vinda de dentro do fiorde, um redemoinho em câmara lenta
que estava avançando inexoravelmente na direção deles.
Quanto mais desciam, maior ele se mostrava, como um
pesadelo do qual não havia jeito de escapar. Jack lembrou
rapidamente o aviso de Maria sobre o lobo Fenrir e o fim do
mundo, sobre forças que nem os deuses conseguiam
controlar. Eles saíram a jato para baixo até ficarem quase
verticais, mergulhando direto no negrume do abismo.
"Segure-se!", gritou Costas.
Uma parede branca em forma de foice apareceu subitamente
para fora do tumulto, uma aparição que avançou para eles
com velocidade aterradora e depois passou na frente da
cúpula poupando-os por apenas alguns centímetros. Eles
foram jogados violentamente para um lado, e Costas lutou
para impedir que o Aquapod se movesse descontrolado em
espiral, depois endireitou o submersível e o fez parar. Acima
deles puderam vislumbrar a placa gigante de gelo enquanto
ela rolava em direção ao mar aberto, girando para longe até
que apenas uma nuvem de bolhas sobrou para marcar o seu
avanço.
"Essa passou perto", disse Costas.
"Eu pensei que tudo isso tivesse terminado seis meses atrás",
disse Jack com um tom queixoso. "Uma vida tranqüila e
contemplativa cuidando do jardim e escrevendo minhas
memórias."
"Sim, certo", replicou Costas. "De todo modo, precisamos de
um pouco de excitação para provocar uma descarga de
adrenalina para aquilo que vamos fazer em seguida."
Agora que a água estava calma de novo, eles olharam ao
redor, e ambos ficaram calados. Tinham mergulhado até
uma profundidade de quase cem metros e o DSRV estava
agora acima deles, com dois mergulhadores pouco visíveis
do lado de fora e rastos de bolhas prateadas subindo pelo
gelo em direção à superfície. A imensa face do iceberg
ocupava toda a vista na frente deles, porém havia que
considerar o fato de que a essa profundidade todas as cores
haviam desaparecido, com exceção do azul. O iceberg tinha
um matiz surrealista, um brilho azul-celeste que o fazia
parecer uma miragem. Fies podiam perceber imensas
concavidades onde a corrente fizera o gelo sofrer erosão, e
vastas marcas de sedimento e de fragmentos de rocha nos
pontos em que o iceberg roçara contra a lateral do fiorde. E
abaixo deles, muito abaixo, e quase indistinta na escuridão,
eles puderam distinguir uma paisagem sepulcral de seixos
rolados e ondulações, um cume sombrio que descia para
dentro de um espaço infinito de negrume do outro lado. Era
uma paisagem marinha selvagem e cheia de sulcos feitos
pelo gelo, e eles sabiam que era um dos lugares mais
perigosos em todos os oceanos.
"O limiar do fiorde gelado", murmurou Jack. "Podemos ser
os primeiros a vê-lo."
"Apavorante", murmurou Costas.
"Não é um lugar onde eu queira ir", replicou Jack.
"Recebido e entendido." Costas voltou sua atenção para o
painel de instrumentos e injetou uma rajada de ar nas
câmaras flutuadoras, conduzindo o Aquapod em direção ao
iceberg até que ficasse diretamente abaixo do DSRV. "Ben,
aqui é o Aquapod Um, são e salvo. Estaremos com vocês
dentro de cinco minutos. Fim."

O DSRV que equipava o Seaquest II tinha como
característica uma pequena doca interna, um tanque aberto
interior que permitia à cúpula do Aquapod se erguer dentro
de uma câmara na parte traseira do submersível. Quando
Jack olhou para cima, para o bojo do DSRV, observou a
porta corrediça da doca abrir-se e viu a forma vacilante de
uma figura olhando para eles de dentro da câmara. Dois
mergulhadores apareceram de cada lado do Aquapod e
engancharam quatro cabos de ancoragem que lentamente os
içaram. Quando atingiram a superfície e a cúpula se abriu
dentro do espaço restrito, eles foram recebidos pelo rosto
amável de Ben Kershaw, anteriormente da Marinha Real,
que havia estado no meio da ação no mar Negro seis meses
antes e tinha recentemente se tornado o comandante-chefe
de segurança do Seaquest II. Jack esticou-se e pegou a mão
estendida para ajudá-lo a subir, depois o cumprimentou
calorosamente quando se encontrou sobre o passadiço
estreito que rodeava a doca.
"Eu achava que se passaria algum tempo antes que o visse de
novo dentro de um submarino."
"Qualquer trabalho é válido." Ben parecia sério. "Está tudo
bem?"
"Tivemos de fugir de um growler."
"Nós percebemos. Achávamos que vocês eram um caso
perdido. O fiorde tornou-se mais ativo nas últimas vinte e
quatro horas, com mais pedaços grandes e grossos de gelo
como aquele fragmento que saiu da geleira."
"Quero que vocês saiam daqui logo que tivermos ido
embora", disse Jack.
"E se vocês precisarem cair fora?"
Jack foi firme. "Podemos subir até a superfície e acender
uma luz. Temos o rádio-bóia. Não quero ninguém na zona
de perigo se este iceberg se deslocar. Quero que o DSRV
volte ao navio. Já tivemos muitas perdas no último ano, e
não quero pôr a vida de ninguém mais em risco."
"E eu?" Costas lançou a Jack um olhar de falsa indignação
quando saiu do Aquapod e se agachou perto deles.
"Oh, você é dispensável. Já deveria saber disso a esta altura."
"Sim, e há sempre Lanowski que pode assumir meu lugar."
Jack fez uma careta e os outros dois homens riram, todos
eles sentindo um alívio na tensão que experimentavam "Ok,
decisão tomada", disse Jack. "Prometo que vou cuidar de
você como um pai cuida do filho. Agora, vamos começar a
trabalhar."
Jack seguiu Ben através da escotilha que separava a câmara
da doca do compartimento principal do DSRV, sua alta
compleição física obrigando-o a dobrar-se ao meio no
espaço confinado. Ao lado, no piso circular onde o DSRV
podia acoplar-se a um submarino danificado, havia dois
conjuntos idênticos de equipamentos de mergulho, e Costas
parou diante deles para fazer um rápido inventário. Jack
seguiu Ben mais alguns metros até a estação de comando, na
parte dianteira do submersível, e Costas juntou-se a eles logo
em seguida. Eles cumprimentaram o tripulante que estava
sentado na cadeira de piloto com um conjunto de monitores
e o painel de instrumentos à sua frente, depois agacharam-se
de cada lado de Ben, atrás do console de navegação,
enquanto ele ativava a tela.
"Nós plotamos a rota mais adequada", disse Ben. "O ideal
seria vocês entrarem pelo lugar mais raso, mas aqui
estaremos protegidos por uma cadeia de cumes no gelo
contra qualquer fragmento que saia do iceberg. Nós
usaremos nitrox para vocês respirarem, o que lhes dará um
maior tempo de permanência no fundo do que teriam
apenas com ar, a trinta metros de profundidade."
"Umbilical?", perguntou Jack.
"Correto. Vamos conectá-los com os cilindros no DSRV.
Dessa maneira conservarão o gás que já estão carregando
consigo."
"É essencial não deixar que o gás vaze para o interior do
iceberg", disse Jack. "Lanowski foi claro sobre isso."
"Não tenha receio", interrompeu Costas. "Estive brincando
no quartel-general com um pequeno equipamento
eletrônico. Não há problemas com a descarga do gás
expelido quando você mergulha para examinar um
naufrágio, certo? Você pode impedi-lo de se acumular e
danificar o que quer que seja lançando-o através de uma
mangueira que fica boiando acima, deixando-o sair em um
lugar mais alto do que o naufrágio. A dificuldade surge no
sentido contrário, quando de baixo você vai para uma
estrutura que está acima."
"Você o bombeia para fora."
"Certo. Vamos estar conectados com duas mangueiras, uma
que nos traz o nitrox e outra que extrai o gás expelido e o
leva para fora do iceberg. Não tenho certeza de como isso
vai funcionar no frio." Costas esfregou as mãos em
antecipação. "Vai ser divertido tentar."
"Deixe-me adivinhar. Vocês ainda não o testaram!"
"Você não consegue icebergs no canal da Mancha."
Jack desviou-se de Costas e apontou para a tela, que
mostrava no computador uma simulação isométrica do
DSRV junto ao iceberg, com uma linha vermelha pontilhada
subindo em um ângulo de 45 graus a partir do DSRV e
depois se nivelando com uma linha horizontal que
terminava numa massa escura perto do centro do iceberg.
"Eu suponho que vamos atingir dez metros abaixo do nível
do mar tão rapidamente quanto for possível, depois
abandonar o umbilical e trocá-lo pelos respiradores", disse
Jack.
"Correto", replicou Ben. "Gostaríamos de equipá-los com os
últimos respiradores de circuito fechado e mistura de gás,
elaborados pela IMU, mas há um grande perigo de
congelamento e muita coisa pode dar errada. Nessa hora,
acho que a velha tecnologia é melhor. Vocês vão usar os
nossos confiáveis respiradores de circuito semi-fechado,
com uma mistura de oxigênio e nitrox configurada para lhes
dar duração máxima naquela profundidade. O dióxido de
carbono será absorvido, mas não o nitrogênio, então haverá
um aumento no contra-pulmão que precisará encontrar uma
saída. Mas a fração de nitrox é pequena e isto não deverá
acontecer até que saiam do iceberg. Vocês não irão produzir
nenhuma descarga de gás dentro do iceberg."
"Apenas tenham cuidado para se manter acima de dez
metros", acrescentou Costas. "Estaremos respirando acima
de oitenta por cento de oxigênio, e a mistura se torna tóxica
sob pressão inferior a dez metros. No caso de distração e de
uma descida mais profunda, não haverá nem tempo para
perceber, ocorrerá uma convulsão seguida de morte."
"Vocês terão a mistura-padrão de trimix nos cilindros
consoles, nas costas, fornecendo misturas respiratórias para
utilização em profundidades maiores que cento e vinte
metros", disse Ben. "Os reguladores têm uma cobertura anti-
congelamento no primeiro estágio, então devem ser seguros.
Mas este é um sistema de circuito aberto, que produz
descarga de gás dentro do iceberg. Serve estritamente para
emergências."
"Ok", disse Jack. "Agora conte sobre o seu perfurador de
gelo. Nada técnico, só quero saber como operá-lo."
Vinte minutos mais tarde, Jack e Costas sentaram-se de cada
lado do tanque da doca, munidos com os equipamentos
necessários, como mergulhadores se preparando para entrar
no gelo através de um buraco. O Aquapod tinha sido levado
embora dez minutos antes pelos dois mergulhadores que os
assistiram na doca quando chegaram. Agora, os únicos
membros da tripulação que restavam eram Ben e o piloto, e
eles já tinham começado a realizar os procedimentos finais
de checagem para partir em seguida.
"Nós ficaremos aqui até vocês retirarem o umbilical", disse
Ben. "Depois estarão sozinhos."
Jack acenou concordando, enquanto se sentava munido do
equipamento de mergulho, seu cabelo preto marcado onde
havia sido comprimido ao experimentar o capacete. Do
outro lado, Costas, estufado como um balão, lutava para
controlar o regulador de inflar de seu E-suit, e Jack tentou
reprimir um sorriso ante a aparência de seu amigo. Por cima
dos E-suits, os dois homens vestiam respiradores compactos
presos como pequenas mochilas em seus peitos, e nas costas
carregavam consoles amarelos de forma aerodinâmica que
continham três cilindros de alta pressão com oxigênio,
nitrogênio e hélio, bem como pesos integrados. Ben
terminou a segunda checagem completa de todos os
equipamentos e depois se agachou ao lado do tanque entre
os dois homens. "Eu tenho de ser sincero com você, Jack. É
minha obrigação como chefe de segurança. Aquelas
madeiras podem também ser de um antigo barco pesqueiro
de baleias. O risco que vocês vão enfrentar pode ser
demasiado alto."
"Eu sei aonde você quer chegar, Ben, e aprecio isto", disse
Jack. "Mas é um risco calculado. Podemos rir de Lanowski,
mas confio em seu julgamento sobre esse risco."
"Ok, a decisão é de vocês." Ben olhou para Costas, que
aquiesceu firmemente. Sem maiores discussões, Jack e
Costas colocaram seus capacetes amarelos de Kevlar, e Ben
foi até cada um deles fechando os capacetes no pescoço,
ativando as headlamps duplas de ambos os lados e
verificando se os respiradores com os suprimentos de trimix
estavam no lugar. Jack e Costas vestiram as luvas e cuidaram
para que ficassem bem ajustadas para impedir a entrada de
água, depois pressionaram os consoles de controle de
temperatura em seus ombros para assegurar-se de que a
conexão de calor químico para suas mãos estava
funcionando. Finalmente colocaram suas nadadeiras,
perturbando as nuvens de névoa que saíam em redemoinho
do tanque gelado quando encontravam o ar quente do
compartimento. Quando estavam prestes a fechar o visor
dos capacetes, o rosto do outro tripulante apareceu através
da escotilha.
"Mensagem do Seaquest II. Para você, Jack. Algo que tem a
ver com anéis de árvores."
"Leia-a para nós, está bem?" disse Jack.
O tripulante ajoelhou-se segurando um impresso. "Do
Laboratório de Dendrocronologia da IMU, 0212 GMT. A
amostra da madeira retirada no fiorde Ilulissat é de carvalho
escandinavo, possivelmente norueguês. Apresenta extensa
carbonização causada por fogo. Equiparada com a
seqüência de três anéis de árvores do noroeste da Europa
indica a data de 1040 d.C., com um erro de aproximação de
mais ou menos dez anos."
"Viva!" Jack deu um soco no ar com sua mão enluvada.
"Aqui está sua resposta. Eu sabia disso em minhas entranhas
durante todo o tempo. Esta pode ser uma das principais
descobertas arqueológicas deste século."
Olhando para baixo, para a água, Jack franziu os lábios,
depois olhou para Costas com um brilho no olhar. Quando
saíram do DSRV, Jack procurou ver a superfície acima deles
e a luz do sol, a despeito da sensação incômoda de
claustrofobia que sempre experimentava nessas ocasiões,
mas agora ele estava avançando lentamente em direção ao
iceberg para desvendar seus segredos. Apanhou o umbilical
que estava enrolado ao seu lado, as duas mangueiras de
acoplamento unidas como uma coisa só, e conectou o
encaixe que permanecia livre debaixo do queixo no seu
capacete. Observou enquanto Costas fazia o mesmo, depois
os dois homens fecharam com segurança seus visores e
ligaram o intercomunicador. Jack saiu do banco e sentou-se
com as pernas suspensas sobre o abismo, a claridade
espantosa da água fazia-o sentir-se como um pára-quedista
prestes a saltar da aeronave. Ele e Costas já estavam num
outro mundo, o intercomunicador apenas audível entre eles.
Jack fez um sinal de ok para Ben e virou o polegar para baixo
para indicar que estava descendo, depois olhou para Costas.
"Pronto para ir?"
"Pronto para ir."


9

O homem vestido com a sotaina preta caminhava de
maneira confiante pela entrada principal do Palácio
Apostólico, sua roupa de padre jesuíta em total
conformidade com a dos outros suplicantes que se moviam
pela porta de entrada. Ele havia deixado a multidão em São
Pedro para trás, e já tinha passado pelo primeiro cordão de
segurança nas portas de bronze que conduziam para fora da
praça. Agora estava se aproximando do verdadeiro coração
do Vaticano, o quartel-general do Colégio dos Cardeais, o
centro a partir do qual a Santa Sé exercia sua influência bem
além de Roma para todas as partes do globo.
À sua frente, dois guardas suíços estavam parados diante da
porta, resplandecentes em sua elegância vistosa com
alabardas entrecruzadas, uma imagem que poderia ter saído
direto da Renascença, exceto pelas submetralhadoras
Heckler & Koch penduradas discretamente em suas costas.
Um oficial da guarda pegou a identidade do jesuíta e
começou a examiná-la, comparando a barba preta e os olhos
sem expressão com a foto na carteira. Apesar do calor do
início do verão, o rosto estava pálido e contraído, mas era
um semblante de estudioso muito comum dentro das
paredes fechadas dos gabinetes do Vaticano. O oficial voltou
se para um secretário ao seu lado, eles verificaram o nível de
autorização em um computador de mão. O oficial soltou
uma exclamação de surpresa e imediatamente devolveu o
cartão ao jesuíta.
"O senhor está livre para entrar."
Os guardas ergueram as armas e o jesuíta passou por eles,
evitando a habitual revista corporal e o detector de metais.
Caminhou direto ao longo de um corredor no andar térreo,
depois virou à esquerda no final e continuou até chegar a
uma porta decorada de uma capela privada, a entrada
caracterizada por suportes de velas votivas de cada lado. Ele
bateu uma vez e abriu a porta. Na luminosidade da luz de
vela viu um outro homem ajoelhado diante do altar simples
no final da capela. O homem fez o sinal-da-cruz e levantou-
se, depois se voltou para a porta. Era alto e encurvado, com
cabelos brancos, e vestia o traje episcopal completo de
cardeal, com uma cruz de ouro pendurada na frente de sua
sotaina vermelha. Tinha um rosto sem idade, benigno, de
quem havia passado muitos anos em ordens santas, mas com
um traço severo nos olhos. Era uma expressão apropriada
para um homem como ele, um homem cuja ambição o
levara até o limiar do poder supremo na Igreja Católica.
"Eminência." O jesuíta curvou-se ligeiramente, depois
fechou a porta atrás de si.
"Monsenhor."
Os dois homens falavam em inglês, o jesuíta com uma
pronúncia meio arrastada que poderia ser sul-africana e o
cardeal com um leve sotaque do norte da Europa.
"Ele está aqui?"
"Foi o segundo que esteve presente na abertura da câmara.
Nós suspeitamos e ele confessou. A Santa Sé tem técnicas de
persuasão refinadas há séculos."
"E o outro?"
"Ele é a sua próxima tarefa."
O jesuíta adiantou-se e ajoelhou-se na frente do cardeal. Este
rapidamente tirou o santo anel do dedo médio de sua mão
direita e substituiu-o por um outro, um anel pesado, de
superfície plana que brilhou à luz da vela enquanto estendia
a mão. O jesuíta segurou a mão e beijou-a, fechando os
olhos enquanto seus lábios tocavam na forma familiar, e
com a outra mão sentiu o seu próprio anel pendurado no
pescoço debaixo da sotaina. Ele levantou-se, fez o sinal-da-
cruz e afastou-se reverentemente para trás em direção à
porta, sem se voltar, então parou por um momento e ergueu
a mão direita para o cardeal, sussurrando palavras em uma
língua que soava de maneira sobrenatural, palavras nunca
antes murmuradas nesse local sagrado, que pareciam
blasfêmias contra tudo que esse lugar representava.
"Hann til ragnaroks?
O jesuíta fechou a porta da capela atrás de si e começou a
andar pelo longo corredor, seus passos ecoando fora das
paredes do palácio. Saiu em um pátio aberto, erguendo as
mãos em prece quando dois oficiais passaram na direção
oposta, depois se encaminhou para uma entrada
despretensiosa a uma certa distância à frente, do outro lado.
Os sinos de São Pedro subitamente começaram a ressoar
através da atmosfera silenciosa da cidade, afirmando a
soberania da Santa Sé, como faziam desde os dias do Império
Romano. Acima dele, as paredes do pátio emolduravam o
céu, duas grandes aves de rapina circulavam bem acima, e
ele podia ouvir o ruído surdo e prolongado, enfadonho, da
cidade do lado de fora. Passou pela entrada e olhou
rapidamente para trás, depois levantou a sotaina e subiu a
escada para o primeiro andar. No corredor à frente havia
estátuas enfileiradas, quadros de avisos e cartazes
anunciando exposições, mas não se viam pessoas, era dia de
folga do pessoal do museu. O jesuíta foi até uma porta com
luz acesa no interior, bem onde lhe haviam indicado, e
notou a palavra Conservatori escrita acima do lintel.
Ele parou, não por hesitação, mas para apreciar o momento.
Nas sombras permaneceu com a cabeça curvada. Sessenta e
cinco anos antes seus antepassados quase derrubaram estas
paredes, pararam pouco antes de capturar o Vaticano em sua
passagem triunfal por Roma. Agora ele faria alguns acertos,
deixaria sua marca. O jesuíta abriu a mão esquerda e levou-a
ao rosto, passando o dedo indicador pela cicatriz irregular
que pulsava debaixo de sua barba, pressionando-a
fortemente até encolher-se de dor. Ele deslizou de novo sua
mão esquerda para dentro da sotaina, e com a mão direita
bateu três vezes na porta.
"Entre", disse uma voz abafada, em italiano.
O jesuíta abriu a porta e depois a fechou atrás de si. O
aposento estava apinhado de livros e manuscritos, com um
computador no outro extremo. No primeiro plano havia
uma escultura em relevo de pedra fragmentada, e na frente
dela estava sentado um homem de meia-idade vestindo
jeans e uma camisa esporte, inclinado sobre um notebook.
"Monsenhor." O homem terminou o que estava escrevendo
e ergueu o olhar, sua expressão era alerta e inteligente. "Eu
não esperava ser interrompido hoje. O que posso fazer pelo
senhor?"
"O senhor é o chefe responsável pela manutenção do
museu?" O jesuíta falou em italiano.
"Sim, sou eu."
"Esteve presente na descoberta da câmara secreta no Arco
de Tito, junto com o padre O'Connor?"
O outro homem repentinamente pareceu evasivo e atirou
seu notebook ao chão. "Agora todos parecem saber.
Mantivemos segredo pelo bem da Igreja. Desejaria nunca ter
encontrado aquela câmara."
"Eu também."
A Beretta provida de silenciador atirou duas vezes, e o
homem caiu para trás em sua cadeira com uma horrível
expressão de surpresa no rosto. Ele estremeceu, tombou ao
chão e ficou imóvel, com o braço largado desajeitadamente
sobre a testa, os olhos abertos e espantados. O jesuíta tirou a
mão esquerda da sotaina e lentamente ergueu-a até o rosto.
Ele passou o dedo sobre a cicatriz em sua face, repetidas
vezes, com o máximo de força de que era Capaz, fazendo
caretas de prazer ao observar o sangue sair do peito do
homem e acumular-se nas placas frias de pedra debaixo dele.
Haverá mais.

"Ativar a sonda de gelo agora."
Costas voltou-se para Jack enquanto falava pelo inter-
comunicador, e os dois homens trocaram um sinal de ok.
Pela quinta vez Jack lançou um olhar crítico sobre o
equipamento de Costas. Assim que largassem o umbilical
ficariam absolutamente dependentes de seus sistemas de
respiração e um do outro, sem nenhuma outra opção
garantida, nenhuma via de escape de emergência para a
superfície. O equipamento da IMU comportava os mais
recentes métodos e tecnologias disponíveis, com um sólido
sistema de computador de apoio que tinha a tarefa de
calcular a mistura respiratória e a velocidade de subida sem
nenhuma intervenção deles. O sistema havia sido testado
em condições de calor extremo seis meses antes, dentro de
um vulcão submerso, mas era a primeira vez que seria
utilizado em águas tão geladas, quase no ponto de virar gelo.
"Assuma sua posição."
Jack saiu do lugar onde tinha ficado suspenso por uma mão e
agarrou a barra de metal ao lado de Costas. Eles eram como
dois alpinistas subindo em uma vasta parede de gelo,
pareciam pigmeus por causa da imensidão do iceberg.
Abaixo deles, o gelo descia por centenas de metros dentro
do abismo, onde o declive do limiar desviava abruptamente
até profundezas inimagináveis, até um lugar de escuridão
gelada onde nenhum ser humano ousara entrar.
"Há apenas um método seguro", disse Costas. "Ao menor
sinal de movimento no iceberg nós passamos a usar o trimix.
Se este bebê se puser a girar para fora do limiar, nós iremos
para baixo. Lembre que o trimix nos fornece gás respirável
até cento e vinte metros. Isso nos daria pelo menos alguma
margem."
Jack fez outro sinal de ok e verificou as três mangueiras que
alimentavam as aberturas em seu capacete. O nitrox que
estavam respirando agora era a melhor opção nessa
profundidade, sua reduzida carga de nitrogênio permitia
passar mais tempo no fundo do que o ar comprimido, mas a
carga aumentada de oxigênio o tornava mais tóxico abaixo
de trinta metros. Ele era alimentado pelo tubo umbilical que
ficava pendurado debaixo deles e seria levado de volta ao
DSRV, sua imagem tranqüilizadora ainda posicionada alguns
metros abaixo deles. A segunda mangueira levava ao
respirador em seu peito, um sistema independente que seria
ativado quando eles alcançassem dez metros de
profundidade. Com seu cilindro de oxigênio integral a alta
pressão, o sistema poderia sustentá-los durante várias horas,
e era o gás ideal para águas rasas. Como o nitrox umbilical
com seu sistema de ventilação, o respirador não produziria
descarga de gás dentro do iceberg, todo gás exalado seria
reciclado através do sistema. A terceira mangueira levava aos
cilindros de trimix em suas costas, um sistema de gás
variável que substituía o hélio pelo nitrogênio e podia dilatar
seu invólucro de profundidade até o limite máximo possível
para gases respiráveis.
Mas o trimix era uma opção no caso de alguma falha, e iria
produzir descarga de gás dentro do iceberg. Na verdade, eles
sabiam que seu equipamento de segurança era o último
recurso. Se o iceberg se movesse para fora do limiar, sua
enorme massa deslizaria para baixo da água, sua base
mergulharia subitamente centenas de metros nas
profundezas. Se o movimento do gelo não os esmagasse, a
pressão de uma descida repentina dentro do abismo os
mataria instantaneamente.
Jack não quis pensar nessa possibilidade e focalizou a
atenção no estranho dispositivo à sua frente. Eles tinham
acabado de abrir a gaiola protetora que os mantinha diante
do iceberg e haviam prendido a rádio-bóia que planejavam
soltar para a superfície logo que emergissem de novo. A
sonda já estava em parte enfiada, em forma de cunha, dentro
do gelo, tendo sido posicionada antes por dois
mergulhadores que eles tinham visto do Aquapod.
Encostado diretamente no gelo havia um aro de metal com
dois metros de diâmetro, a largura do túnel que o dispositivo
iria escavar. O túnel seria grande apenas o suficiente para
que os dois homens pudessem avançar lado a lado, sem
muito espaço de sobra. O componente superaquecido no
tubo era complementado por um arranjo de facas acionadas
por laser e por microondas que provinham do corpo
principal do dispositivo, um tubo cilíndrico com um metro
de diâmetro diretamente na frente deles. Um pequeno, mas
poderoso jato de água funcionaria como um funil para afastar
a água recém-derretida e impulsionar o dispositivo para a
frente. Na face de trás, acima do trilho de guia, uma tela
LED à prova de água brilhava com um tom verde-vivo.
"Vamos manter o cabo de força ligado ao DSRV por todo o
tempo que pudermos, bem como o cabo de fibra ótica",
disse Costas. "Normalmente o piloto do DSRV será capaz de
ver tudo o que nós vemos na tela, mas, antes que o DSRV se
movimente para ir embora, teremos de soltar o cabo de
força e operar a sonda com a bateria integral." Ele ajustou
uma grande bússola debaixo da tela, depois voltou-se e
examinou Jack através de sua máscara. "Você está bem?"
"Este novo sistema de aquecimento do E-suit está
funcionando maravilhosamente." Jack havia experimentado
um choque de frio quando entrara na água ao sair do DSRV,
e Costas se lembrou do efeito debilitante do rasgo provocado
por um tiro de revólver, que quase terminara com a vida de
seu amigo em um mergulho muito diferente, na profundeza
do mar Morto, seis meses antes.
"Sem a serpentina de tubos a água no túnel ficaria, na
verdade, abaixo de zero", disse Costas alegremente. "A água
da geleira é doce, de modo que gela mais rapidamente do
que a água salgada. Seríamos transformados em gelo antes
que você pudesse dizer uísque com gelo."
"Obrigado pelo pensamento", Jack olhou com algum
ceticismo para a serpentina, uma trepadeira oscilante de
microfilamentos pendurada debaixo deles. Ela se
desenrolaria do equipamento quando eles entrassem e
impediria a água recém-derretida de congelar de novo e
enterrá-los dentro do iceberg.
"Isso deve funcionar", acrescentou Costas. "Em teoria."
"Deixe-me adivinhar. Eu não deveria nem mesmo dizer
isto."
Os olhos de Costas fitaram Jack rapidamente enquanto sua
mão alcançava o ombro e pressionava o canal exterior em
seu console de comunicação. "Ben, estamos a caminho.
Tempo estimado de chegada, com desengate a dez metros
de profundidade, vinte minutos. Fim."
Jack observava as suas nadadeiras enquanto o buraco de
entrada dentro do iceberg ia ficando distante, uma mancha
de azul pouco luminosa obscurecida pelo turbilhão de
microfilamentos aquecidos que se arrastavam atrás deles.
Girando em torno do centro estava o cabo da bateria e o
umbilical que lhes trazia o nitrox e sugava para fora a
descarga de gás usado, sua corda de segurança para o mundo
de fora. Jack ergueu a cabeça e olhou fascinado como o
perfurador esculpia um túnel perfeitamente polido através
do gelo, avançando para cima num ângulo de 45 graus a uma
velocidade de mais de dois metros por minuto. Ele não tinha
a sensação da temperatura da água em seu E-suit, mas a
mudança de leitura no termostato de seu regulador
ambiental revelava a rajada de água quente que estava sendo
lançada para fora do perfurador que impelia a máquina para
dentro do gelo. À frente deles suas lâmpadas iluminavam a
parede do túnel, um deslumbrante espetáculo de brancura,
no entanto Jack sabia que sem a luz artificial eles estariam
entrando em um mundo de total escuridão, cercado por
todos os lados por uma quantidade inimaginável de gelo que
bloqueava os últimos vestígios de raios de sol acima deles.
"Ok", disse Costas. "Alcançamos dez metros de
profundidade da água externa ao iceberg. Vou parar de subir
e desengatar."
Costas ajustou os controles de produção de calor no painel à
sua frente, diminuindo a atuação dos componentes
inferiores de modo que o perfurador derreteria mais gelo
acima e gradualmente ficaria na horizontal. Jack observava o
progresso na tela LED, uma imagem isométrica 3-D do
iceberg, idêntica àquela que Lanowski lhes havia mostrado
no primeiro dia. A imagem tinha sido gerada pela equipe de
superfície usando sonar de ultra-alta freqüência e fora criada
a partir de milhares de pontos de dados onde as ondas
sonoras haviam encontrado uma resistência diferencial
proveniente de fendas congeladas e fissuras no iceberg.
Lanowski tinha demarcado um ponto bem localizado para a
entrada e para o itinerário de modo a minimizar a chance de
seguir uma fissura de água derretida congelada e romper o
iceberg, e até agora o seu planejamento havia dado certo. O
gelo pelo qual haviam passado era todo ele formado pelo
gelo branco nebuloso da geleira, tão duro como uma rocha,
formado mil anos atrás nas profundezas da Idade do Gelo.
Costas reabriu o canal externo no receptor do seu
intercomunicador. "Ben, aqui é Costas. Você está me
ouvindo, câmbio?"
"Costas, aqui é o DSRV, estamos ouvindo você alto e claro,
câmbio."
"Nós alcançamos o ponto de desengate. Câmbio."
"Recebido e entendido. Nós teremos vocês na tela enquanto
se mantiverem conectados. Fiquem sabendo que recebemos
um aviso meteorológico do capitão do Seaquest II. Há algum
distúrbio térmico na extremidade da calota polar, uma massa
de ar frio vinda do leste. Pode não ser nada significativo,
mas o capitão está se afastando cerca de uma milha do fiorde
como medida de segurança. Vocês têm a opção de abortar a
operação. Câmbio."
Jack e Costas se entreolharam através dos visores. "Nós
vamos continuar", replicou Costas. "Estamos a cinqüenta
metros apenas de nosso alvo e não vamos demorar.
Estaremos fora daqui dentro de uma hora. Mas você deve ir
embora agora. Câmbio."
"Recebido e entendido. Enviem para a superfície a rádio-
bóia quando saírem do iceberg, e nós os recolheremos.
Estamos esperando para receber o umbilical. Câmbio."
Costas moveu um interruptor no painel de controle à sua
frente e retirou o cabo de força do perfurador de gelo.
Durante um instante alarmante o dispositivo parou, e Jack
quase pôde ver a água ao seu redor começar a congelar.
Depois a tela LED e o sistema de luz dianteira se reativaram
quando a bateria começou a funcionar e a água a ficar
novamente iluminada.
Os dois homens se viraram um para o outro dentro do
espaço estreito do túnel, seus visores separados por poucos
centímetros. Costas falou então por meio do procedimento
que eles haviam praticado repetidas vezes antes de deixar o
DSRV, cada homem verificando visualmente o outro
enquanto eles prosseguiam metodicamente.
"Engatar respirador."
Jack imitou o que Costas fazia e abriu a válvula de saída do
respirador em seu peito, depois girou o botão sob o seu
capacete que ativava o fluxo de gás dentro da máscara de
borracha de silicone que selava o nariz e a boca. A primeira
entrada de oxigênio nos pulmões causou-lhe um
formigamento nos braços e pernas, um efeito revigorante
que ele apreciava sempre que usava respiradores. Segurou a
mangueira umbilical com a mão direita e com a outra mão
fechou a entrada de nitrox do capacete, e então seu corpo
entalou-se com os cotovelos desajeitadamente contra a
parede do túnel, pressionando Costas. "Desengatar
umbilical."
Simultaneamente, os dois homens puxaram as mangueiras
de nitrox de seus capacetes e jogaram-nas no chão do túnel,
e Costas soltou o cabo de força que estivera segurando.
Enquanto sugavam nos respiradores, os dois homens
observaram o conjunto de tubos do umbilical deslizar atrás
de si e desaparecer na curva do túnel, seguindo o caminho
de entrada em direção ao mar aberto. A trepadeira de
microfilamentos conservava o líquido do túnel ondulado e
oscilante, como se eles estivessem rodeados por uma brisa,
depois o líquido gradualmente tornou-se mais estável,
espalhando-se por toda a extensão do túnel.
"Ben, estamos desengatados. Estaremos fora de alcance de
comunicação assim que atingirmos aquela massa de água
derretida congelada. Esperamos tomar uma bebida quente
quando voltarmos. Câmbio."
"Recebido e entendido. Boa sorte. Fim."
Eles estavam agora completamente isolados do exterior,
dependentes apenas um do outro e do sistema de
equipamentos que cobria seus corpos. Enquanto Jack
observava o umbilical desaparecer, sentiu uma certa aflição,
um sinal de advertência de sua secreta vulnerabilidade como
mergulhador, a claustrofobia que estava sempre à espreita e
com a qual tinha de lutar constantemente. Anos antes ele
quase morrera em uma mina submersa, tendo se salvado
apenas porque partilhara o sistema de respiração com Costas,
e o trauma fora reavivado no labirinto de Atlântida, quando
seu ferimento o deixou fraco e vulnerável. Ele sabia que
Costas estava ciente de sua batalha e a ligação sem palavras
entre os dois homens era uma fonte de força. Jack agarrou o
trilho de guia atrás da sonda e forçou-se a se concentrar na
excitação que o esperava a frente.
"Estamos absolutamente no alvo", disse Costas. "Verifique
nossa tela."
Diretamente à frente deles, a tela LED exibia uma forma
anômala, a imagem criada pela leitura do sonar ao redor da
massa de água derretida no coração do iceberg que havia
iludido Cheney e a equipe da NASA. Mesmo o sonar de
ultra-alta freqüência tinha falhado em penetrar mais além, e
desse ângulo a forma extraordinária que tinha estado tão
clara nas imagens do sonar vertical não era perceptível. No
centro da massa escura havia fios de retícula vermelha onde
o perfurador de gelo tinha tirado amostra da madeira, e
ligeiramente acima uma retícula verde que assinalava o alvo
deles.
"Lembre-se, vamos tirar fotos, pegar tudo que pudermos, e
depois ir embora", disse Costas. "Não há tempo para fazer
ciência hoje."
"Por uma vez estou de acordo com você", disse Jack. "Agora
que temos a data indicada pelos anéis da árvore, tudo de que
preciso é confirmar o que isto é e provar sua origem. Mais
um par de amostras de madeira e caímos fora."
"Enquanto você estiver fazendo isso vou usar o perfurador
para derreter um espaço acima da zona-alvo, apenas
suficientemente grande para girar este bebê e orientá-lo para
voltar para casa. Posso até saborear aquela bebida que Ben
está preparando para nós."
"Vamos fazer isto."
Os dois homens seguraram-se lado a lado atrás do trilho de
guia, enquanto Costas reativava o dispositivo, e segundos
depois ele começou a escavar o túnel em direção à zona-
alvo. O perfurador, agora, era um veículo autônomo, livre
de qualquer corda que o ligasse com o mundo exterior. Ele
os estava levando para a frente como uma espécie de veleiro
em câmara lenta, penetrando cada vez mais no coração do
iceberg. Costas se concentrava em mantê-los acima do
limite de dez metros para impedir a toxicidade do oxigênio.
À medida que progrediam, Jack sentia seu entusiasmo
aumentar, como se o oxigênio e a adrenalina de que ele
necessitara para dominar sua ansiedade o tivessem
preenchido com uma irresistível alegria. As minúsculas
bolhas que davam ao gelo uma opacidade leitosa estavam
efervescendo na água derretida, e Jack subitamente
percebeu que, ao redor deles, as únicas propriedades que
favoreciam a vida tinham sido liberadas das profundezas da
Idade do Gelo. O ar era o mesmo que havia sido respirado
pelos ancestrais humanos mais remotos, aqueles grupos de
caçadores que tinham perambulado pela extremidade dos
lençóis de gelo milhares de anos antes da civilização. Jack
sabia que iria sentir um arrepio de excitação à medida que o
alvo se aproximasse, mas esta era uma sensação inesperada, o
sentimento extraordinário de nadar por um túnel do tempo,
o que seria impossível de ser experimentado em qualquer
outro lugar da Terra.
"É isso aí." Repentinamente o gelo branco à frente do
perfurador tornou-se uma parede tão transparente quanto
vidro, refratando um azul profundo quando suas headlamps
o iluminaram. "Gelo de água derretida", disse Costas. "Esse é
o primeiro que encontramos. Este gelo deve ser de uma
daquelas fendas na geleira que Lanowski nos mostrou."
Ele dirigiu a sonda por mais dois metros à frente até o gelo
claro rodeá-los, e depois parou. Quando o turbilhão do jato
de água diminuiu, Jack percebeu que estavam acima de uma
massa escura logo abaixo do gelo, e ele podia vê-la
curvando-se para cada lado da neblina azul. Mergulhou até o
chão do túnel para observar melhor, sua headlamp
pressionada diretamente contra o gelo.
"Bem, vou ser condenado às penas eternas."
"O que foi?" Costas soltou a sonda e desceu para o lado de
Jack, os corpos se tocando naquele espaço estreito.
"Madeiras de lei", disse Jack, excitado. "Um monte delas. É a
lateral de uma embarcação, um navio de madeira. Posso
distinguir rebites, fileiras de rebites de ferro enferrujado ao
longo das pranchas. E as pranchas estão sobrepostas e presas
com pregos revirados. É isso aí. Conseguimos para nós uma
embarcação viking."
"Impressionante", disse Costas, os olhos brilhando através da
máscara para Jack. "E as madeiras estão pretas, carbonizadas,
como as da amostra analisada, retirada do centro do iceberg.
Toda essa parte de pranchas de madeira foi carbonizada. Essa
embarcação pegou fogo."
"Um navio queimado dentro do gelo", murmurou Jack.
"Você se lembra de Kangia, sua história sobre a antiga lenda
inuit?"
"Ela explica o gelo claro que envolve este navio, a imagem
que eles conseguiram com o sonar", disse Costas. "Não se
trata apenas de água derretida de uma fenda que preencheu
o lugar e congelou. Acho que essa embarcação estava
queimando quando afundou no gelo. O gelo e a neve caindo
sobre as madeiras devem ter extinguido o fogo rapidamente,
mas não antes de derreter esta cavidade na geleira."
"Antes de irmos embora eu quero ter alguma idéia de suas
dimensões", disse Jack.
"O ponto-alvo está oito metros à nossa frente. Isso deve lhe
dar a idéia de que você necessita. Uma vez chegando ali,
vou voltar direto."
Momentos depois, Costas parou de novo. A extremidade de
uma grande madeira enegrecida tinha aparecido no lado
esquerdo do túnel, e ele ajustou o curso do perfurador para
evitar colidir com ela. Quando passaram por perto, puderam
ver que se curvava para cima e estava soberbamente
esculpida com figuras de animais agonizantes e formas
abstratas interligadas em uma ampla faixa ao longo da
beirada.
"Estilo de urnas", disse Jack, excitado. "Graças a Deus que
Maria me deu um curso recapitulando tudo sobre arte viking
na noite passada. Tenho certeza de que isto é norueguês, um
novo estilo desenvolvido em torno da metade do século XI."
Ele voltou-se e olhou através do gelo para o local onde a
madeira se estendia acima deles. "Esta é a base da proa. Dê
uma olhada nisso."
Costas o seguiu e dirigiu a headlamp através do gelo até o
topo da madeira. Ele soltou um assobio baixo através do
regulador quando viu a escultura no topo, uma forma escura
petrificada no gelo, no limite de sua visibilidade, uma cabeça
rosnando com orelhas achatadas que se projetavam por pelo
menos um metro à frente da proa curvada do navio.
"Deve ser Fenrir, o deus-lobo", disse Jack em tom baixo,
lembrando de novo de Maria. "Ele parece ser o guardião
desse lugar."
Quando ambos se voltaram e foram lentamente para a
frente, uma imagem fabulosa revelou-se embaixo deles,
como se estivessem flutuando sobre um quadro de grandes
dimensões, em escala completa, de um naufrágio em uma
exibição de museu. A imagem estava espantosamente nítida,
e de cada lado eles conseguiam perceber pelo menos cinco
metros até que o gelo se tornasse demasiado azul. Algumas
partes da madeira estavam notavelmente intactas, outras
chamuscadas e esmagadas pelo gelo que deve ter caído sobre
o casco antes que a água derretida congelasse e o protegesse.
Jack tirava fotos continuamente com a câmera digital
integrada ao seu capacete, e murmurava descrições técnicas
cada vez que algum elemento novo do navio aparecia.
"Esta é uma construção clássica do oeste da Escandinávia,
completamente compatível com o século XI", disse Jack,
depois de alguns minutos. "É um navio a vela com um casco
mais largo e um calado maior do que as imagens de um
drakar viking apresentadas nos filmes de Hollywood, mas
naquele tempo um navio de guerra, movido a remos, não
era necessário por aqui. Eram bons para deslizar sobre as
ondas a grande velocidade e promover rápidos
desembarques para piratarias, mas eles tinham uma baixa
curvatura de convés e inundavam facilmente em águas
profundas. Você ia querer um barco que pudesse transportar
pessoas e suprimentos através do Atlântico norte, uma vez
que não raro poderia ter de passar semanas no mar."
"Ele foi reparado", disse Costas olhando através do gelo. "Há
uma parte perto da proa onde as pranchas foram trocadas,
onde a carpintaria parece diferente. Talvez tenha colidido
com um iceberg. E olhe, aqui há um remo."
"Este é um remo de pilotagem, um leme lateral", disse Jack,
olhando para o remo perfeitamente preservado no convés
assoalhado e empenado debaixo deles. "Os vikings não
tinham lemes fixos, então um grande remo ficava preso à
popa do navio. Parece que esse foi deliberadamente
guardado a bordo, perto da proa, não da popa. Esta
embarcação não estava no mar quando desapareceu. E há
mais. Dê uma olhada nisto. É incrível."
Quando ultrapassaram a área da proa, eles começaram a ver
formas que não eram madeira de lei, mas itens que pareciam
ter sido dispostos em uma pilha que conduzia a uma
estrutura escura no centro do casco onde deveria existir uma
base de mastro. Havia aglomerados amorfos claramente
identificáveis, quando passaram por eles, como peles e
couros, travessas de madeira ao lado de vários utensílios.
Costas ajustou rapidamente o rumo quando o perfurador de
gelo passou raspando por cima de um grande jarro de
cerâmica quebrado e disposto no meio das peles.
"Uma ânfora." Jack pegou um caco da tampa que tinha
boiado na água derretida e guardou-o dentro do seu E-suit.
"Uma ânfora de vinho do leste do Mediterrâneo, do período
bizantino. Na Groenlândia. Isso é estranho."
"Acho que eles tinham de se manter aquecidos naquelas
noites geladas do Ártico", disse Costas. "De todo jeito, eu
achava que os vikings eram bebedores de cerveja."
"Alguns deles eram muito viajados, lembre-se, e devem ter
adquirido hábitos estrangeiros peculiares." A mente de Jack
estava a toda e ele começava a pensar o impensável. "Posso
estar errado, mas estava pensando..." Naquele momento, um
outro objeto apareceu dentro do túnel de água derretida
abaixo deles, um grande cabo de madeira com a ponta ainda
enfiada no gelo. Costas ajustou o jato de água durante o
tempo necessário para que mais gelo se derretesse ao redor
do objeto, e Jack puxou-o e segurou-o no espaço exíguo
entre eles.
"Nossa mãe!" disse Costas.
Era uma enorme acha-de-armas com uma única lâmina
cortante, presa a um grosso cabo de pelo menos um metro e
meio de comprimento. A extremidade brilhava como ouro e
estava ornada com entalhes de ambos os lados.
"Ela é dourada", murmurou Jack, com a voz rouca pela
excitação. "Isso foi o que preservou o ferro da corrosão.
Uma técnica comum para fazer uma arma parecer de ouro,
mas mantendo sua funcionalidade com o metal mais duro
por baixo."
"Do meu lado da lâmina há símbolos", disse Costas.
"Do meu também." Jack virou o seu lado para uma posição
horizontal a fim de que Costas pudesse ver. A superfície
estava gravada com uma forma grande como um pingente
que respeitava as linhas da extremidade da acha, um longo
pedúnculo baixando em alongamentos simétricos que
ocupavam a largura do metal acima da lâmina. A forma
exterior era simples, mas estava decorada por dentro de
maneira elaborada, com desenhos curvilíneos em espiral e
formas de animais extravagantes; sobressaía-se a cabeça de
um lobo rosnador no ápice da forma. Jack apontou para uma
fileira de símbolos logo acima da lâmina do machado.
"Mjollnir." O que?
"As letras são gregas, mas o nome é nórdico. O símbolo mais
poderoso dos vikings, a arma invencível do maior de seus
deuses, sua única esperança de derrotar o mal na batalha de
Ragnarok. Mjollnir, o martelo de Thor."
"O que é o pássaro acima dele?"
Jack olhou com mais cuidado. "Não posso acreditar no que
estou vendo. Isto é a águia de duas cabeças. Uma cabeça
significa a antiga Roma, a outra a nova Roma,
Constantinopla. Este é o símbolo imperial do imperador
bizantino." Jack fez uma pausa, depois olhou para Costas
através do visor, os olhos iluminados pela admiração.
"Acabamos de encontrar uma das armas mais famosas da
história, uma acha-de-armas da guarda varegue."
"Isso faz sentido. Olhe para isto." Costas virou a acha de
modo que Jack pudesse olhar o outro lado.
"Runas!" O coração de Jack estava disparando, ele sugava o
oxigênio do respirador com dificuldade. "E não apenas runas
antigas quaisquer. Não sou um expert, mas acontece que
conheço isso como a palma de minha mão. Elas são
idênticas àquelas existentes na igreja de Santa Sofia, em
Constantinopla. É a assinatura de Halfdan, o viking que
inscreveu seus símbolos pagãos na catedral mais sagrada da
cristandade oriental em algum momento do século XI."
"Então encontramos a acha-de-armas de Halfdan." A voz de
Costas soava sem emoção, mas a sua expressão era de
incredulidade. "Em um iceberg da Groenlândia. Esse sujeito
certamente viajou muito."
"Há ainda uma coisa que preciso verificar aqui", disse Jack.
"Deveria haver um alicerce para o mastro e uma viga mestra
no centro do casco, mas em vez disso há uma espécie de
estrutura retangular. Estou com uma idéia do que seja, mas
necessito vê-la com meus próprios olhos. Depois sairemos
daqui."
"Recebido e entendido." Costas reativou o jato de água e
começaram a avançar por cima da estrutura escura, alguns
metros à frente deles. Jack segurou a acha por um momento,
mal acreditando no que haviam encontrado, e depois a
colocou sobre os ombros debaixo das correias dos cilindros
de trimix, puxando cuidadosamente o cabo até que a
extremidade da acha dourada ficasse pressionada com
segurança longe do tubo do regulador. Ele voltou-se e
colocou as duas mãos no trilho de guia, olhando
atentamente enquanto a beirada da estrutura retangular
aparecia debaixo deles e começavam a ver o que continha
dentro: uma forma sepulcral e sombria que parecia
completamente diferente de tudo por que tinham passado
antes. Aos pés da estrutura, Jack subitamente viu uma outra
pilha fantástica de artefatos, um capacete cônico dourado no
topo de uma armadura de cota de malha dourada, e abaixo
deles um traje escarlate dobrado com bordado em ouro,
evidentemente um manto. Quando estavam prestes a passar
pelo meio da estrutura, Costas moveu a alavanca do controle
e a sonda parou.
"Estou recebendo uma leitura de aviso no sismógrafo", disse
Costas. "Provavelmente trata-se apenas de uma oscilação no
aparelho, mas preciso parar para ter certeza."
Jack olhou com um desconforto súbito para a luz vermelha
piscando na parte mais baixa da tela. Não podia sentir nada
incomum, mas os microfilamentos que se arrastavam atrás
dele pareceram flutuar por mais tempo que o habitual depois
que o jato de água foi desligado.
"Definitivamente há algo acontecendo", disse Costas.
Exatamente nesse instante houve um chiado horrível,
seguido por uma série de vibrações violentas que fizeram
com que Jack, nervoso, batesse os dentes e sentisse um
tremor incontrolável passar pelo corpo. A água começou a
vibrar, até que tudo o que conseguia ver de Costas e da
sonda de gelo era um borrão sem forma.
"Santa Mãe de Deus, estamos..."
As palavras de Costas eram abafadas por um barulho agudo
aterrador, como se eles estivessem sendo atacados de todos
os lados por espíritos dementes que predissessem a morte.
Lascas de gelo começaram a saltar das paredes do túnel,
girando através da água como estilhaços de metralha. Uma
delas prendeu-se na coxa esquerda de Jack, cortando a
estrutura de Kevlar como se fosse manteiga e fixando-se na
carne. Tudo o que Jack sentiu foi uma dormência, enquanto
observava, em choque, a água se encher com rodopiantes
filamentos vermelhos. Depois houve um brusco rangido e a
sonda de gelo silenciou, toda a sua parte dianteira acabou
esmagada e impossível de ser reconhecida por uma alteração
sísmica no gelo.
Tudo ficou silencioso. Costas tentou freneticamente reativar
a sonda, mas sem êxito. O espaço tinha se tornado mais
estreito, seus corpos estavam comprimidos um contra o
outro com muito pouco espaço para fazer qualquer
movimento. As costas de Jack estavam curvadas na parte do
fundo do túnel com sua máscara facial contra o gelo acima
da misteriosa estrutura retangular embutida abaixo deles.
Com a sonda paralisada, agora a única luz provinha de suas
headlamps. Com um esforço sobre-humano, Jack conseguiu
virar a cabeça para olhar o túnel atrás de si. O que viu
confirmou seu pior medo. O túnel havia sido totalmente
bloqueado, fechado por alguma alteração tectônica no gelo.
O espaço em que eles estavam era apenas um metro maior
que seus corpos e estava diminuindo rapidamente. Jack
observou com horror a água congelar ao redor de seus pés.
Os fragmentos de gelo que pareciam sair do nada refratavam
sua visão como em um caleidoscópio, e ele via Costas como
fragmentado em milhares de formas e de cores. Jack tentou
mover a mão em direção ao amigo, mas já havia resistência
em demasia. Uma terrível onda de certeza passou por ele.
Eles ficariam congelados dentro do gelo antes de morrer, um
pesadelo vivente da pior espécie.
"Estamos afundando!", gritou Costas. "Mude para trimix!"
Jack mal tinha registrado o movimento, mas subitamente ele
tornou-se mais forte, maior do que qualquer coisa que havia
acontecido antes, um balanço brusco gigantesco que o
pressionou firmemente dentro dos fragmentos de gelo e em
contato com a parede do túnel. Com toda a sua força ergueu
o braço através da mistura semi-líquida em vias de
solidificação e alcançou a válvula debaixo de seu capacete,
sentindo que Costas estava tentando fazer o mesmo. Com
uma lentidão agonizante, ele girou a válvula para abri-la,
enquanto Costas fechava seu respirador; após isso Costas
afastou a mão e procurou sua própria válvula. Segundos
depois, as primeiras bolhas de descarga de gás usado
estouraram em meio aos fragmentos de gelo, algumas
juntaram-se com a água, e o resto foi para cima para formar
bolsas de ar contra o teto do túnel. A bolsa de ar aumentou
rapidamente quando Costas começou a soltar ar, e Jack
lentamente ergueu-se até ela enquanto o iceberg rolava. No
instante em que ele subiu à tona, as gotículas de líquido
sobre sua máscara congelaram, uma mistura de água e de
sangue que deu à sua visão um matiz sobrenatural. Ele estava
agora quase completamente paralisado, incapaz de mover
seus membros, e a cada respiração a compressão do gelo
contra seu peito tornava mais difícil inalar. Ele sabia que
tinha pouco tempo. Esticou-se para a direita, mas não
conseguiu ver Costas. O intercomunicador dentro de seu
capacete estava mudo, e tudo o que podia ouvir era o sugar
de sua própria respiração e um terrível romper e triturar ao
longe, o barulho de forças titânicas dentro do iceberg que os
havia enterrado sem esperança de salvação.
Quando Jack começou a perder a consciência, vislumbrou
algo no teto da bolsa de ar, depois percebeu que era um
reflexo de sua própria forma no gelo. Sua respiração tornou-
se pouco profunda, rápida e áspera, e ele sentiu a cabeça
vazia, entrando e saindo da consciência enquanto seu corpo
ansiava por oxigênio. A forma acima dele começou a
assumir um aspecto oscilante e surreal, como se fosse algo
mais do que um simples reflexo. Através do reflexo listrado
de sangue de sua máscara, ele viu um crescente manto
vermelho onde deveria haver um E-suit, e em lugar de um
capacete de mergulho havia um rosto barbado emoldurado
por longos cabelos dourados. Os olhos eram sombras
escuras, escavadas na palidez cinza do rosto, mas eles
pareciam estar perfurando-o. Em seu delírio, Jack viu um
braço estendido, uma mão enegrecida brilhando como ouro
acenava, chamando-o para mais perto. Jack havia
encontrado o que estivera procurando, o antigo guerreiro
que tinha perdido a consciência dentro deste navio, o
fantasma do Valhala que viera levá-lo em seu abraço. Ele
fechou os olhos diante da imagem enquanto uma poderosa
ruptura despedaçou o gelo, parecendo atirá-lo muito além do
presente para um esquecimento misericordioso.


10

A pesada porta de ferro no antigo castelo fechou-se
silenciosamente atrás dos três homens enquanto eles
estavam na escuridão do corredor, os olhos acostumando-se
gradualmente com a tênue luz que vinha da escadaria
adiante. Sem dizer palavra, eles vestiram os mantos
escarlates que haviam sido deixados para seu uso na entrada,
amarraram os cordões enfeitados com ouro na cintura e,
puxando os capuzes sobre a cabeça, caminharam em fila
única para o topo da escada. Os seus movimentos
denotavam uma desenvoltura espontânea, como se tivessem
estado ali muitas vezes antes. Eles se encontravam muito
abaixo dos alicerces do castelo, no interior de um lugar
secreto desbastado na rocha viva nos dias em que os drakar
vikings ainda controlavam os fiordes. Durante gerações, os
únicos passos que ecoaram por esses corredores eram os da
irmandade. Quando os três homens começaram a descer, a
rocha úmida parecia exsudar uma essência do passado, como
se a porosa pedra calcária preservasse dentro de si a
emanação de seus venerados ancestrais, uma comunhão
com o espírito do mundo que parecia arrastá-los para os
verdadeiros portões do próprio Valhala.
No final das escadas, eles entraram em um aposento circular,
seu santuário interior. De início, ficaram subjugados pela
aura, ofuscados por uma dúzia de tochas ligeiramente
espaçadas em volta do aposento, as chamas enviando
colunas de fumaça negra que subiam em espiral para a
cúpula acima em forma de arco. Depois começaram a
distinguir as paredes ao redor, uma arcada de doze pilares
cortados na rocha e um corredor circundante do outro lado.
Sobre cada pilar havia uma terrível acha-de-armas, atada à
rocha com tiras de couro torcidas, as lâminas irradiando a
luz com lampejos de ouro. Acima de cada acha ficava
pendurada a armadura de cota de malha e o capacete cônico,
os visores com seus olhos vazios oscilando para fora e para
dentro das sombras quando as luzes das tochas se moviam
em direção à parede. No chão, em frente aos pilares, havia
doze cadeiras idênticas, suas pesadas estruturas de carvalho
esculpidas com formas de animais girando em turbilhão, e
inscrições rúnicas, e no centro do aposento via-se uma mesa
circular maciça, sua madeira polida e escurecida pelo tempo.
Incrustado na madeira havia um círculo solar com doze
raios, dando coesão à simetria do aposento em relação a um
símbolo esculpido, obscurecido pelas sombras, bem no
vértice do desenho.
Os três homens entraram silenciosamente e assumiram seus
lugares atrás das cadeiras em diferentes pontos ao redor da
mesa, juntando as mãos à sua frente e curvando a cabeça
antes de se sentar. Todas as cadeiras estavam ocupadas agora,
exceto uma, diretamente oposta à entrada, o pilar atrás dela
iluminado por uma tocha dupla e a acha reluzindo como se
tivesse acabado de ser afiada.
A figura de capuz sentada à esquerda da cadeira vazia ficou
em pé devagar e ergueu a mão direita, revelando uma
cicatriz profunda que se prolongava por sua palma. Ele falava
em inglês, a voz grave e profunda. "Herr professor. Sua
Excelência. Senhor presidente. Bem-vindos. O félag está
quase completo."
Ele sentou-se e colocou a mão esquerda sobre a mesa. No
seu dedo indicador havia um anel brilhante, trançado em
ouro com um sinete, a superfície impressa com um símbolo
linear semelhante às runas desenhadas sobre a cadeira atrás
dele.
"Durante trinta gerações até hoje, mantivemos o fogo de
Thor aceso pelo retorno de nosso rei", disse ele. "Agora as
forças que querem nos destruir novamente ameaçam a
santidade do félag. Vamos desencadear todos os poderes à
nossa disposição para salvaguardar nosso tesouro, para
encontrar nossos bens herdados do rei dos reis." Fez um
gesto em direção à cadeira vazia ao seu lado. "Mas, antes que
o conselho se inicie, devemos completar nosso círculo."
Uma figura encapuzada emergiu da reentrância escura do
corredor atrás da cadeira vazia. Sob a luz da tocha dupla seu
manto parecia chamejante, brilhando com o laranja
profundo do fogo. Suas mãos estavam juntas à frente e seu
rosto oculto dentro do capuz.
"Você realizou a tarefa que lhe foi indicada?"
"Ela começou."
"Aproxime-se."
O homem deu um passo à frente, junto ao pilar, até ficar no
mesmo nível que a acha, a lâmina brilhante a apenas alguns
centímetros de sua cabeça. Ele levou a mão direita ao rosto,
puxando o capuz para trás e revelando uma pele pálida e
lábios finos. Uma cicatriz branca entalhada atravessava sua
face desde a órbita do olho até o queixo.
"Você está ligado por juramento a vingar seu avô, nosso
sofrido companheiro que foi o último a ocupar essa cadeira",
disse o homem que estava à mesa. "A luta sangrenta não
terminará até que o último de nossos inimigos esteja morto.
Você procurará se informar do que eles sabem, e extinguir
seu conhecimento junto com eles. Você realizará terrível
vingança. Você honrará o félag e ganhará seu lugar nesta
mesa."
O homem ao lado do pilar passou fortemente o dedo pela
cicatriz em sua face, estremecendo ligeiramente. Inclinou-se
em direção à mesa e a sombra de um sorriso passou por seus
lábios. Ergueu a palma direita até a lâmina e puxou-a
nitidamente para baixo, pressionando a palma fortemente no
aço até o sangue jorrar. Então enfiou a mão sangrenta dentro
de seu manto e tirou um anel de ouro idêntico ao usado pelo
homem que estava à cabeceira da mesa, e em seguida
adiantou-se e sentou-se. Os outros levantaram as mãos em
concordância, revelando anéis idênticos e palmas com
cicatrizes.
Um conduto de fogo acendeu-se subitamente debaixo da
mesa, iluminando o símbolo no centro. Ao redor deles as
chamas brilhavam através do vidro incrustado que formava
o círculo do sol, uma luz laranja que pulsava por sobre as
figuras encapuzadas do outro lado da parede, iluminando as
lâminas das achas e os capacetes vazios com um bruxuleante
brilho laranja. Eles tinham sido reunidos pelos espíritos dos
félag que haviam morrido, a irmandade sagrada, guerreiros
chamados de sua festividade eterna no Valhala para vestir
mais uma vez sua armadura em prontidão para a batalha.
O símbolo era uma árvore da vida. Com sete braços, ela
iluminaria seus caminhos até a revelação final dos fatos no
fim dos tempos, quando eles, por fim, manejariam suas
achas-de-armas ombro a ombro com seu rei.
As doze figuras encapuzadas inclinaram-se para a frente até
seus anéis se tocarem, o sangue de um ungindo os outros,
gotejando por suas mangas e sobre o símbolo no centro da
mesa. Quando seus punhos estavam todos se tocando, a
figura que havia falado primeiro voltou a se manifestar.
"Hann til ragnawks?

Jack parecia estar acordando seu pior pesadelo. Ele
percebeu, de início, que estava consciente quando
reconheceu o som de sua própria respiração, um barulho de
sugar, áspero, seguido pela afobação da exalação de gás usado
de seu regulador de descarga. Tornou-se gradualmente
ciente de seu corpo, a dor atenuada da antiga ferida
provocada por um tiro no quadril e uma dor mais aguda em
sua perna. Parecia que estivera no limbo por uma
eternidade, pairando entre um mundo de sonho e algum
tipo de realidade, mas, quando abriu os olhos e viu o
mostrador digital de horas dentro de seu visor, deu-se conta
de que se haviam passado apenas alguns minutos. A vista
além parecia pura alucinação, um padrão caleidoscópico,
fragmentado, esboçado em trepadeiras vermelhas. Fechou os
olhos e instantaneamente confrontou uma outra imagem,
uma impressão em sua mente que se recusava a ir embora.
Uma forma como um fantasma que se projetava na frente
dele, como se Jack estivesse flutuando sobre seu próprio
corpo envolto em mortalha e enterrado no gelo. A imagem
se afastava quando Jack parecia flutuar mais alto acima dela,
trazendo uma sensação narcótica e irresistível de alívio, mas
algo dentro dele estava lutando desesperadamente para
voltar, como se a imagem de sua própria morte fosse seu
único salva-vidas.
O som áspero de sua descarga de gás usado tornou-se um
redemoinho borbulhante e depois um assobio alto. Jack
abriu os olhos e viu uma linha diagonal atravessando o
centro do seu visor. Ele percebeu que estava deitado
parcialmente dentro da água, e que a visão que tivera alguns
momentos antes era a luz de sua headlamp refratando-se
através de uma mistura de fragmentos de gelo e seu próprio
sangue. A lâmpada agora brilhava acima da água e ele podia
ver uma parede de gelo a apenas alguns centímetros de seu
rosto. Com cuidado virou a cabeça para a direita, ajeitando a
lâmpada até que pudesse ver todo o comprimento de seu
corpo. Ele estava dentro de uma cavidade do tamanho de
um carro pequeno, e na parte superior havia uma bolsa de ar
criada pela descarga de gás. Em lugar da superfície polida da
parede do túnel criado pelo perfurador de gelo, as paredes
eram entalhadas e quebradas, grandes placas de gelo que
pareciam ter sido compactadas de modo violento. Algumas
das placas eram nebulosas e outras quase transparentes,
criando a ilusão de que a câmara se estendia em fissuras e
túneis ao redor do gelo branco.
Por um momento passageiro a mente de Jack vagueou de
novo e ele se sentiu protegido e salvo, como se a câmara que
havia se aberto e que o tinha protegido do impacto
esmagador do gelo fosse sua derradeira salvação. Depois a
realidade voltou e ele sentiu um frio terrível. De alguma
forma o gelo havia arrebentado quando o iceberg tinha
rolado e lhe havia sido dada uma prorrogação, mas esta
poderia ser apenas temporária. À medida que mais água era
deslocada pela descarga de gás usado, ele podia sentir a
mistura de fragmentos de gelo ao redor da parte inferior de
seu corpo engrossar, imobilizando-lhe as pernas. Para seu
horror ele percebeu que estava sendo congelado vivo de
novo, só que dessa vez o fim não seria rápido, mas longo,
uma agonia protelada metade dentro e metade fora da bolsa
de ar, pois sua respiração expelia gás gradualmente e ele
sufocaria com sua própria descarga.
Um barulho estalou ao redor de sua cabeça e lhe deu um
solavanco, trazendo-o de volta à vida. O intercomunicador
soltou um ruído e depois estabilizou-se com sons de
grunhidos e tensões. Parecia inacreditável, um pequeno
milagre. "Jack, você pode me ouvir?"
"Costas." A voz de Jack soava peculiar, estranhamente
distante para os seus próprios ouvidos, e depois ele lembrou
que o trimix continha hélio. "Onde diabos você está?"
"Eu posso vê-lo, mas você não pode me ver. Tente se virar.
Você deve conseguir sair fora da água, senão dessa vez
estamos perdidos."
A voz de Costas era uma medida reasseguradora de
realidade, calma e comedida apesar da situação
desesperadora. Jack reuniu toda a sua energia e ergueu-se
sobre os cotovelos. Ele conseguiu girar o tronco
ligeiramente para a direita e seus braços ficaram livres, mas
seus pés e pernas estavam quase congelados dentro do gelo.
Era como lutar contra lama grudenta e cada vez que ele
puxava parecia apenas que se enterrava ainda mais.
"Isto não adianta", ele arquejou. "Mal posso mover minhas
pernas."
"Você pode alcançar a mochila de cilindros?" "Acho que
sim."
"Ok. Puxe aquela acha e deixe-a no canto perto de sua
cabeça."
Jack fez como Costas o instruíra, puxando a acha pelo cabo
de madeira, com cuidado, de onde ela havia escorregado
atrás das correias do cilindro. Ele mal podia se dar conta de
que estava segurando uma acha-de-armas varegue de um
navio viking, uma descoberta que agora parecia pura
fantasia. Quando por fim retirou a acha, a superfície da
mistura tinha congelado solidamente ao redor do seu peito,
e a umidade de sua descarga de gás usado havia provocado a
formação de uma camada de gelo sobre seu visor.
"Não consigo mais enxergar", ele exclamou, tentando
permanecer racional e calmo para impedir o pânico. "A
pressão vai aumentar aqui, agora que não há mais água para
ser substituída por gelo, e a umidade da minha descarga de
gás está congelando a parte superior do meu corpo também.
Isso pode terminar mais depressa do que pensei."
"Fique deitado de costas e empurre o cabo da acha tão alto
quanto puder acima de sua cabeça. O perfurador de gelo está
enterrado na cavidade, e posso ver os filamentos da
serpentina congelados no gelo debaixo de você. Se
pudermos reativar a bateria, então seremos capazes de
derreter o gelo em sua volta."
Jack segurou a ponta cortante da acha e empurrou-a tão
longe quanto podia, junto a uma saliência de gelo que se
elevava em ângulo ligeiramente mais alto, acima da mistura
de fragmentos de gelo. De início não sentiu resistência, mas,
no limite de seu alcance, a base do cabo atingiu algo sólido.
"Ok. É isso mesmo", disse Costas. "Agora, tente cerca de
quinze centímetros à sua esquerda."
Jack esforçou-se de novo e cutucou o bastão no lugar
indicado. Subitamente sentiu algo ceder, e uma aura verde
tornou-se visível através do gelo do seu visor.
"Ótimo. Você conseguiu. O principal componente do
perfurador foi esmagado quando as coisas ficaram meio
confusas por aqui, mas a serpentina é operada por uma
bateria separada que parece intacta. Tudo que temos de fazer
agora é esperar."
"Como você está?" perguntou Jack quando abaixou o braço,
forçando-se para não pensar no que o rodeava.
"Muito bem. Preso na armadilha da Idade do Gelo. Siga Jack
Howard e veja o mundo."
"Fale seriamente, não posso vê-lo."
"De início eu não consegui compreender. Se o iceberg
tivesse virado, nós estaríamos centenas de metros abaixo,
esmagados sem saber de nada. Depois eu vi a sonda de gelo e
percebi o que havia acontecido. Nós rolamos trezentos e
sessenta graus e voltamos a ficar eretos de novo. Qualquer
que seja a força que estava por trás dessa coisa, ela fez o
iceberg dar uma cambalhota bem sobre o limiar. Suponho
que ele ainda está empacado na extremidade exterior da
soleira, mas escorregou mais para o fundo do que na sua
posição original. Meu aferidor de profundidade mostra cento
e vinte e três metros, quase no limite do nosso gás trimix. Se
o iceberg tivesse flutuado para o mar, ele teria virado de
novo e estaríamos além dessa profundidade, mortos para
sempre. Isso pode acontecer a qualquer momento."
"Um pensamento tranqüilizante."
"Antes de rolarmos... você viu o que eu vi?"
"Era Halfdan. O sujeito cujas runas estão inscritas na acha.
Estávamos diretamente sobre o esquife no centro do navio,
onde seu corpo devia ser queimado. Devemos ser as únicas
pessoas vivas que viram um guerreiro viking em carne e
osso. Fantástico."
"Sim, fantástico. Ele me assombrou. Vamos esperar que não
nos juntemos a ele."
"Você tem algum plano?"
"Vamos fazer isso passo a passo. A primeira coisa é
conseguir descongelar."
Na calmaria que se seguiu, Jack percebeu o total silêncio do
iceberg, quebrado apenas pelo barulho de sua respiração, em
contraste com a ensurdecedora cacofonia de alguns minutos
antes, quando o gelo se rompeu e se dividiu. De alguma
forma, a quietude acentuava a qualidade sepulcral da câmara
e fazia lembrar toda a monstruosidade da situação deles.
Ambos estavam aprisionados no interior de um iceberg,
encerrados dentro de um milhão de toneladas de gelo duro
como rocha, no limite da profundidade de sobrevivência e
com a probabilidade de uma queda fatal no abismo. Jack
começou a sentir-se nervoso, e quando fitou o gelo a poucos
centímetros de sua cabeça começou a experimentar a antiga
claustrofobia ameaçando no limite de sua consciência. A
espreita, logo abaixo dos sentimentos mais superficiais, havia
o receio de que ele seria tomado pelo pânico, como quase
acontecera quando Costas o mantivera avançando pelos
túneis da Atlântida seis meses antes. Ele sabia que as
brincadeiras de Costas mantinham sua mente focalizada, que
o seu amigo o conhecia muito bem, e forçou-se a
concentrar-se em pequenas coisas, nos mínimos passos que
eventualmente poderiam conduzi-los à salvação.
"Consegui movimentar-me", disse Jack. "Posso mover meu
pé."
"Excelente. Tente girar em minha direção."
A camada de gelo do visor de Jack estava começando a
derreter, e agora ele podia ver mais nitidamente. A
serpentina de microfilamentos da sonda estava fazendo seu
trabalho, e a superfície começava a liquefazer-se. Ele
arqueou as costas e flexionou as pernas, causando uma
fisgada de dor e um súbito espasmo de estremecimento. Pela
primeira vez examinou o ferimento em sua coxa esquerda, a
lança de gelo enterrada era apenas visível através do rasgão
em seu E-suit. O gelo havia entorpecido quase toda a dor e
estancado o ferimento, mas, mesmo assim, o sangue perdido
o havia deixado perigosamente vulnerável ao frio. Ele se
ergueu de lado, tirando as pernas fora da água e arrastando-
se até onde podia subir na saliência, depois esfregou o visor
e olhou para a parede talhada de gelo que se encontrava atrás
de si.
A visão com que se defrontou era surrealista. Ele podia ver
Costas, embora fosse uma imagem que desafiava os sentidos.
O amigo parecia estar deitado ali perto, a um fácil alcance,
no entanto estava separado por uma parede transparente de
gelo. A cada minúsculo movimento Costas parecia se
fragmentar em miríades de formas, refratado pelos
numerosos planos no gelo. Jack subitamente vislumbrou o
rosto de Costas, o capacete amarelo, de início, parecendo
grotescamente alongado, mas depois reduzindo-se até se
tornar mais semelhante ao normal.
"Estou separado de você por cerca de um metro", disse
Costas. "Quando recobrei a consciência estava flutuando
dentro de uma fissura. Tentei alcançá-lo, mas só consegui
chegar até aqui. Estou tão próximo de congelar quanto
possível, porém, na verdade, sem solidificar. Isto aqui é gelo
derretido, daquela fenda da geleira acima do navio. É mais
fácil de cortar do que o gelo da geleira. Como você está se
virando com a acha?"
Jack, de súbito, viu um raio de esperança. "Você sabe, usar o
machado é minha principal ocupação fora da temporada de
pesquisa, quando eu desapareço nas florestas. Quando digo
para todos que estou escrevendo. Este exercício me faz
esquecer de tudo."
"Muito bem. Vamos ver o que você é capaz de fazer. Se
você conseguir quebrar e forçar uma passagem, então a água
do seu lado entrará e resolverá o assunto. A serpentina não
derreterá o gelo glacial, mas ela pode manter líquido esse
gelo parcialmente derretido. Há uma bolsa de ar de cerca de
quinze centímetros ao meu redor, provocada pela descarga
de gás usado."
"Para onde vai o resto?"
"Fissuras e fendas acima de mim. O gelo pode parecer sólido,
mas ele é, na verdade, um aglomerado de placas que foram
caindo."
Jack rolou sobre si mesmo até ficar deitado com o rosto para
baixo, por cima da saliência. Com a mão esquerda agarrou a
borda para não escorregar dentro da mistura de água e gelo,
e com a mão direita ergueu-se e pegou a acha. Soltou-se,
deslizando para dentro dos fragmentos de gelo até ficar de
joelhos no fundo com a superfície na altura de seu peito. Ele
lutou para remover suas nadadeiras, puxando-as pelas
correias que as prendiam, depois puxou o machado para
baixo com as duas mãos e girou-o de modo que o corte
ficasse acima dele. Em pé no meio da mistura de fragmentos
de gelo, sua alta estatura curvada sob o teto, ele mal tinha
espaço suficiente para manejar a acha dando pequenas
pancadas, além disso, cada golpe iria exigir um esforço extra,
pois ele lutava para manter o equilíbrio e o momentum.
"Aqui vamos nós." Ele colocou a lâmina da acha no gelo
logo acima do nível da água, na frente do rosto de Costas, e
deu um pequeno balanço. A lâmina estava sem fio, mas o
metal ainda tinha a força de mil anos atrás, e era a força do
impacto que importava mais do que a extremidade cortante.
Quando a acha bateu, ela quebrou um pedaço de gelo e
provocou marcas de fratura como uma teia a partir do ponto
de impacto, reduzindo a visão que Jack tinha de Costas a um
mosaico sem significado. "Eu mal consigo fazer isso",
arquejou Jack. "Dez centímetros a menos de espaço e eu não
conseguiria manter o equilíbrio."
Lenta e deliberadamente, ele começou a cortar o gelo, cada
golpe arrancando um novo pedaço e cada balanço enviando
um choque de dor através de sua perna. Com o esforço
adicional de manter o peso de seus cilindros acima da água,
o seu empenho logo começou a ter efeitos, e ele passou a
respirar o trimix a uma velocidade alarmante. Jack tentou
ignorar a leitura digital dentro de seu visor e focalizar a
atenção na tarefa que tinha pela frente. Ele estava usando
uma técnica-padrão de habitante das florestas, cortando em
forma de cunha acima e abaixo da linha-base. Como cada
pancada aprofundava o buraco, Jack começou a tirar pedaços
mais grossos da parede entre eles, de tal forma que faltavam
apenas alguns centímetros para alcançar Costas e o buraco já
estava grande o suficiente para permitir que ele passasse.
Quando tomou posição para o golpe crítico, suas pernas
subitamente fraquejaram e ele escorregou de novo na
mistura de fragmentos de gelo, deixando cair a acha.
Percebeu então que não havia apenas perdido o equilíbrio,
mas que fora derrubado por uma força maior. Endireitou-se
e viu a superfície da água balançando violentamente, e ouviu
rangidos e estalidos. Repentinamente a água começou a
subir e Jack observou uma fissura escura abrir-se no teto da
câmara.
"A bolsa de ar está indo embora", ele exclamou. "Ela está
escapando para cima." Ergueu a acha para fora da mistura de
gelo e lançou-a mais uma vez contra a abertura, mas sem
resultado. "O buraco já está debaixo da água. Não consigo
um impulso."
Ele deslizou contra a parede de trás da câmara, a acha caiu
de sua mão e Jack ficou olhando, impotente, enquanto o
nível da água subia acima de seu visor e alcançava o teto.
Menos de um minuto depois que o estalido fora ouvido,
tudo o que sobrou foi o tumulto das bolhas que subiam
saídas de sua descarga de gás usado e que rapidamente se
dissipavam através da fenda depois de cada exalação. O leitor
de temperatura em seu visor assinalava dois graus abaixo de
zero, abaixo do ponto de congelamento da água. Ele se dava
conta, com uma certeza que lhe causava náuseas, que a
serpentina nunca conseguiria aquecer a quantidade de água
que agora enchia a câmara, que apenas a parte inferior ao
redor dos filamentos permaneceria líquida.
Os fragmentos de gelo começaram a se formar de novo
diante de seus olhos. Jack sentiu a água endurecer ao redor
dos braços e da cabeça. Estava acontecendo tudo de novo,
um tormento diabólico que ele estava fadado a suportar
repetidas vezes, um pesadelo revivido. Fitou com os olhos
arregalados enquanto o gelo começava a encapsulá-lo mais
uma vez. Começou a hiper-ventilar, como se o seu corpo
quisesse que ele sugasse sua última reserva de trimix e
deslizasse na escuridão, um esquecimento misericordioso
diante do prolongado horror que havia diante de si.
"O seu oxigênio! Corte a mangueira do oxigênio!"
A voz o trouxe de volta para a realidade. Ele percebeu
instantaneamente o que Costas queria dizer. Com
dificuldade, empurrou com força a mão esquerda através da
pasta fluida de água quase congelada e apanhou a faca que
mantinha em uma bainha em seu peito, colocando a
extremidade serrilhada contra as duas mangueiras debaixo de
seu capacete. Por um instante aterrorizante ele esqueceu
qual era a do trimix e qual a do oxigênio; o efeito narcótico
do nitrogênio, a essa pressão, iludia sua mente. Sua cabeça
estava quase imóvel e ele era incapaz de olhar para as
mangueiras. Fechou os olhos e decididamente agarrou a da
esquerda, levando a lâmina para debaixo do ponto em que a
mangueira se ligava ao capacete.
"O que sobrou dentro do seu cilindro de oxigênio irá encher
a câmara o suficiente para clarear o buraco e permitir mais
uma série de pancadas", disse Costas. "Mas, pelo amor de
Deus, não o respire. Oitenta por cento de oxigênio nesta
profundidade seria morte instantânea."
Jack cortou a mangueira e uma fonte aquecida de bolhas
irrompeu na câmara. A água baixou rapidamente até o nível
do peito e ele ergueu-se de novo, a mangueira cortada
dançava e assobiava na frente dele. Puxou a acha para fora da
mistura de gelo e visou o buraco. Com toda a sua força, Jack
deu um impulso em direção ao gelo, libertando um grande
pedaço. Ele podia ver Costas empurrando com toda a sua
força a barreira restante. Jack freneticamente afastou para o
lado o pedaço flutuante de gelo e preparou-se para outra
pancada. Bem nesse momento o assobio do seu oxigênio
vacilou, e o nível de água começou a subir de novo,
inexoravelmente. Ele tinha uma última chance. Mirou acima
da linha fraturada de onde o pedaço de gelo saíra, depois
relaxou completamente, com os olhos colados no lugar do
impacto. Posicionou a acha para trás e levou-a à frente com
toda a força, provocando uma pulverização de fragmentos
de gelo quando a lâmina passou pela água que subia e bateu
com força no gelo. Depois ele caiu bruscamente e começou
a ofegar sem controle, soltando bolhas aquecidas com a
descarga de gás enquanto a água se elevava e o submergia de
novo.
A ponta de uma nadadeira apareceu fora do gelo. Jack sentiu
uma cutucada em seu corpo e houve uma agitação na
superfície. Havia funcionado. Um outro pedaço de gelo
passou flutuando, e uma grande forma escura emergiu ao seu
lado como uma foca curiosa. Os olhos de Costas fitaram
Jack. "Estou contente em vê-lo."
"Graças a Deus você perdeu peso", disse Jack debilmente.
"Eu não reservei um quarto duplo."
Um jato vermelho encheu a água entre eles quando Jack se
virou no espaço confinado. "Como está sua perna?"
perguntou Costas.
"Esta é a menor de minhas preocupações." Jack examinou o
nível da água acima deles. "O seu oxigênio", ele disse com
urgência. "Corte a mangueira e teremos mais alguns
minutos."
"Nada disso", disse Costas. "Minha mangueira foi golpeada
quando o iceberg rolou. O pedaço de gelo que a cortou
quase me decapitou." Ele se mexeu até ficar deitado
paralelamente a Jack e as duas cabeças, agora, olhavam para a
extremidade onde a sonda de gelo estava enterrada. Os
limites confinados da câmara se tornaram ainda mais
aparentes, mal dava para conter os dois e seus equipamentos.
Agora estavam completamente submersos, lascas de gelo
resultantes dos esforços de Jack flutuavam ao redor deles, e
Jack podia ver os filamentos da serpentina emaranhados, na
parte de baixo. Costas inclinou-se para retirar suas nadadeiras
e depois se arrastou para detrás da sonda. "Ela está
lampejando cor de âmbar", ele disse. "A bateria está quase
no fim. Se continuarmos por aqui, ficaremos dentro do gelo.
Permanentemente." Ele escorregou para trás e lutou para
tirar algo do bolso de sua coxa no E-suit. "Aqui, segure isto
para mim." Jack pegou o pequeno pacote, depois olhou para
Costas.
"C-4 explosivo?"
"Você adivinhou. Sempre carrego um pouco em caso de
emergência."
"Você vai nos explodir?"
"Dar umas pancadas no gelo profundo." Costas continuava a
remexer no bolso, depois retirou um mini-detonador
transceptor. "Tenho certeza de que estamos dentro da fenda
da geleira onde Kangia e aqueles nazistas viram o navio. O
gelo transparente é água derretida que fechou a fenda. Ele é
mais fraco do que o gelo da geleira que o circunda, e
fragmentou-se quando o iceberg se deslocou. Esta é a única
chance que temos."
"Qual é a nossa posição de descompressão?"
"Não é boa. Parece que estamos baixando em profundidade.
Deve haver um outro nível de água interno na fenda acima
de nós, abaixo do nível do mar que circunda o iceberg. De
qualquer maneira isto está descendo. Com esta velocidade
estaremos na zona de perigo em menos de cinco minutos."
"Esta é mais ou menos a quantidade de trimix que ainda
temos."
"Se não congelarmos antes. Com a serpentina sem
funcionar, a água já está começando a engrossar. É tempo de
pôr mãos à obra."
De repente, Jack tremeu violentamente. A água era a mais
fria que jamais conhecera, ainda mais fria do que a das
profundezas do oceano. Houve um outro chiado agourento
no gelo, e a lenda acima deles começou a se fechar
perceptivelmente. Costas virou o corpo e olhou para cima,
movendo sua headlamp ao longo da fraca luz prateada das
bolhas de descarga que se alinhavam no teto. "Não era isso
que eu esperava que acontecesse", disse ele baixinho. Um
breve alarme agudo soou vindo da sonda, e a luz cor de
âmbar desapareceu. "Nem era isso." Ele virou-se de novo e
pegou a acha no chão da câmara, estendendo-a para Jack.
"Você alcança mais longe do que eu. Na parte mais larga da
lenda acima da sonda. Preciso que você empurre o C-4 tão
alto quanto puder. Ele já está armado."
Jack segurou o objeto marrom em uma mão e o cabo da acha
na outra. Costas agachou-se, ficando debaixo de Jack, e
depois ergueu-se empurrando as pernas do amigo, forçando
uma nova saída de sangue da coxa de Jack. Este tratou de
ignorar a dor e torceu a parte superior do corpo de modo
que seu visor ficasse diante da fenda acima da sonda. Com o
ímpeto das bolhas que escapavam pelo visor, ele só tinha
uma percepção fugaz da dimensão da fenda, mas parecia
nitidamente uma chaminé estreita que se estendia bem
acima deles, uma fenda entre placas de gelo. Ele empurrou o
C-4 tão para cima quanto podia com sua mão esquerda,
introduzindo-o à força na chaminé. Depois Jack pegou a
acha com muito cuidado e enfiou o cabo de madeira dentro
da chaminé, com Costas impedindo-o de escorregar.
Quando sentiu que havia encontrado resistência, ele
empurrou fortemente para cima, deslocando o C-4 e
pressionando-o tão alto quanto podia para dentro da
chaminé.
"Ok. É o mais alto que consigo alcançar."
Jack caiu prostrado ao lado de Costas, e os dois lutaram
contra os fragmentos congelados até ficar tão longe quanto
possível da chaminé, apertando-se um contra o outro no
canto oposto da câmara. Jack virou a acha ao contrário e
enfiou-a de novo sob as correias, e ambos se inclinaram para
recolocar as nadadeiras. Jack envolveu fortemente Costas
em seus braços, e ficaram visor contra visor. "Aonde quer
que formos dessa vez, estamos indo juntos."
"Semper Fidelis!"
Jack sacudiu a cabeça. "Você nunca deixa de me
surpreender. Latim também."
Costas segurou o transceptor entre eles.
"Pronto?"
"Pronto."
Um violento tremor os sacudiu, acompanhado por um som
agudo e furioso que fez os dentes de Jack baterem. Ao redor
deles o gelo se deslocava em todas as direções, vibrando de
maneira confusa. A cacofonia foi substituída por uma
explosão ensurdecedora e Jack sentiu como se o corpo
estivesse levando milhares de socos. Ele pressionou o visor
firmemente contra o de Costas, protegendo o vidro
vulnerável dos fragmentos de gelo que estavam voando ao
redor deles. Quase simultaneamente suas headlamps
explodiram, e eles ficaram mergulhados em uma escuridão
bizarra e trêmula, quebrada apenas pelo verde borrado das
leituras digitais dentro de seus capacetes. Algo grande
ergueu-se de um dos lados de Jack e por um instante ele
sentiu que estava prestes a ser esmagado, e então, como por
milagre, a coisa passou. Ele experimentou um ataque de
tontura e percebeu que estavam fazendo acrobacias, girando
sem parar em uma agitação de gelo e água, totalmente
impotentes enquanto a fenda da geleira se abria e se
separava.
"Vamos subir!", gritou Costas. "Pelo amor de Deus, não
segure a respiração. Seus pulmões explodiriam dentro de
segundos."
A respiração de Jack começou a ficar apertada. No turbilhão
de redemoinhos não havia referencial, nenhuma referência
visual. Ele forçou-se a se concentrar na leitura digital dentro
de seu visor, seus braços firmemente agarrados em Costas e
suas pernas entrelaçadas. Jack pôde apenas fazer uma leitura
de profundidade de dez metros, eles estavam subindo
vertiginosamente. As imagens lhe deram algo a que se
agarrar, e ele estava vagamente ciente de que o perigo de
embolia pulmonar era devido ao risco da formação de bolhas
pelo mal da descompressão. Eles estavam subindo muito
depressa.
Repentinamente eles chegaram à superfície. Havia luz de
novo, uma luz crepuscular forte, e Jack podia ver além de
Costas um apavorante mundo azul. Eles estavam flutuando
em um vasto caldeirão de gelo, pelo menos da largura e
comprimento do Seaquest II, com paredes brancas
transparentes erguendo-se de todos os lados ao seu redor.
Jack sentiu-se um pigmeu diante daquela enormidade.
Arqueou o pescoço e olhou para a fonte de luz bem acima.
Era uma fina nesga de cinza onde as paredes de gelo quase se
juntavam, uma primeira ligação com o mundo exterior. O
cinza estava entremeado de preto e azul brilhante e parecia
estar passando numa velocidade enorme.
"Deve ser uma daquelas tempestades que chegam da calota
polar", disse Costas. "Foi isso que empurrou o iceberg."
"Uma piteraq!'
Eles se agarraram um ao outro enquanto se balançavam em
círculo no centro do caldeirão de gelo. As luzes de aviso de
descompressão estavam piscando com sua cor de âmbar,
indicando que eles tinham tentado fazer mais do que era
possível e estavam agora sujeitos ao grave perigo das bolhas.
Jack tentou reconhecer alguns sinais, formigamento em um
cotovelo ou uma súbita onda de náusea, ciente de que os
últimos seis meses sem mergulhar haviam reduzido sua
resistência. Ele verificou seu medidor de pressão de trimix e
viu o indicador pairando sobre o zero. "Estou sem ar", ele
disse. "Se houver mais mergulho, vamos ter de dividir o
respirador."
"Enganche em mim."
Jack puxou a mangueira umbilical por cima da mochila de
cilindros de Costas e pressionou a válvula em uma entrada
debaixo de seu capacete. Com um assobio agudo, o capacete
encheu-se de novo com gás respirável, com composição
próxima ao do ar atmosférico depois que o computador
ajustou as proporções levando em conta a profundidade em
que estavam. Jack percebeu que havia estado respirando
com o cilindro vazio, e fechou os olhos para se concentrar
em respirar várias vezes profundamente.
"Isso deve nos dar cerca de dez minutos", disse Costas.
"Preferiria passá-los a dez metros de profundidade para
aumentar a margem de descompressão, mas não podemos
nos dar esse luxo. Vamos ter de nos apressar."
O movimento na água havia parado dramaticamente,
deixando a superfície calma de uma maneira sobrenatural
depois do tumulto que os havia lançado fora da sepultura de
gelo, bem abaixo. "A fenda da geleira deve ter se aberto
quando o iceberg se deslocou, estilhaçando todo o gelo
formado de água derretida dentro dela", disse Costas.
"Depois as paredes se fecharam de novo quando o iceberg
encontrou resistência, provavelmente a extremidade do
limiar em direção ao mar." Ele olhou em volta de novo, o
cenário agora assustadoramente quieto. "Eu tenho um mau
pressentimento sobre isto. Vamos ficar juntos."
Como em resposta ao palpite, o silêncio foi substituído por
um abalo estilhaçante e gelo e água se desintegraram com
um outro som de arrepiar. Jack tornou-se ciente de uma
cortina de gelo ruindo ao redor deles, pontas cortantes que
caíam na água como estilhaços de metralha. Concentrou
toda a sua energia em segurar Costas de maneira firme,
sabendo que o amigo se afogaria caso a mangueira, que era a
única coisa que poderia mantê-lo vivo, se rompesse. Jack
reviu por um instante o corpo no gelo, a sua alucinação,
depois despertou para uma realidade pior. Eles estavam
despencando com uma velocidade angustiante, deslizando
em redemoinhos de gelo triturado, como se estivessem
sendo sugados de volta até onde se encontrava o guerreiro
congelado e o lugar que quase havia sido seu merecido
castigo final. A água precipitava-se a uma tal velocidade que
eles, em sua queda livre, ficavam suspensos ora fora e ora
dentro da água, tombando sem peso contra os pedaços de
gelo estilhaçados à sua volta. Costas puxou Jack para mais
perto, esforçando-se para não ser tragado pela força
centrípeta do redemoinho, e pressionou seu visor contra o
de Jack. "Segure firme. Pode ser que eu consiga reverter o
fluxo."
Repentinamente, a água formou vagalhões ao redor deles e
ambos ficaram profundamente imersos dentro dela. Durante
um instante aterrador, Jack sentiu o ar ser suprimido de seus
pulmões por alguma força que estava trabalhando contra o
redemoinho, impelindo-os de novo para cima. Então, eles
saíram com ímpeto da água, saltando em uma nuvem de
fragmentos de gelo que os atirou para o alto dentro de uma
fenda acima do caldeirão. Eles colidiram com uma parede de
gelo e deslizaram para cima, cada um tentando
desesperadamente agarrar algo para se segurar. Depois
começaram a escorregar para baixo de novo, sem controle,
até que atingiram uma borda que os manteve precariamente
contra a parede. Quando se agacharam, com seus trajes
gotejantes, sobre a plataforma gelada, a nuvem de
fragmentos e de gelo pulverizado caiu novamente no
caldeirão agitado, na base da fenda muito abaixo deles.
"Que diabos foi isso?", arquejou Jack perscrutando
atentamente uma queda livre de pelo menos trinta metros.
"O C-4", disse Costas de modo exuberante. "Nós fomos
impelidos para fora daquela câmara antes que eu tivesse
chance de explodi-lo, mas ele se mostrou útil, no fim das
contas." Ele mostrou o minidetonador transceptor no bolso
de sua coxa. "Muito bem. Estou com frio e com fome.
Vamos sair daqui."
"É melhor fazer isso depressa. Dê uma olhada naquilo."
Com uma fascinação amedrontada, eles observaram
atentamente o abismo de gelo muito abaixo. Ele estava
começando a se estreitar outra vez, as paredes comprimiam
a mistura de gelo e empurravam-na para cima. Quando os
pedaços maiores de gelo eram apanhados no estreitamento,
eles explodiam com uma ressonância perturbadora,
enviando fragmentos letais bem para o alto da fenda. Eles
sabiam que, se fossem agarrados de novo pelo redemoinho,
isso significaria morte instantânea dessa vez, seus corpos
retalhados pelo gelo que voava e depois esmagados quando a
fenda da geleira os pegasse como um moedor de carne.
Inexoravelmente, de modo aterrador, o buraco se estreitava
e estava se fechando em cima deles, avançando como uma
coisa viva, suas entranhas mortais vomitando jatos de gelo
despedaçado e estilhaçado, movendo-se com velocidade
espantosa para a parte de cima da fenda, mesmo durante os
poucos momentos em que ficaram observando.
"É isso aí", gritou Costas acima do estrondo. "Não há
segunda chance desta vez." Eles se apoiaram na borda e
olharam para cima. A luz do céu no topo da fenda estava a
cerca de cinqüenta metros acima e as faixas acinzentadas
que se moviam rapidamente estavam agora claramente
visíveis em um cenário de fundo azul. De repente, a nuvem
se dividiu e surgiu uma forma escura, obscurecendo a fenda,
um holofote ofuscante dirigido diretamente sobre eles.
Depois a forma deu uma guinada violenta, arrastando algo
acorrentado atrás de si, e passou rapidamente sobre a fenda.
"É o Lynx", gritou Costas, excitado. "Eles estão tentando
deixar cair um guincho."
"Eu lhes disse para ficar fora disso. Eles estão abusando da
sorte voando contra esse vento."
"Eles não podem fazer quase nada."
"Não há maneira de eles descerem aquele cabo até aqui.
Devem estar esperando, desejando que consigamos ir até a
entrada da fenda."
Jack olhou para baixo. O espaço aberto estava agora
terrivelmente próximo deles, não mais do que vinte metros
abaixo, os fragmentos do gelo que explodia quase alcançando
a borda. Ele olhou de novo para cima. A fenda era polida
como vidro e não havia onde se agarrar. A euforia que se
manifestara ao ver o helicóptero transformou-se
subitamente em horror. Era um novo pesadelo, um retorno
à situação em que chegara a esbarrar com a morte, anos
atrás, na mina inundada, quando o final do túnel parecia
estar à vista, mas, por mais que tentasse, freneticamente,
nadar em direção à saída, ele parecia permanecer sempre
afastado dela, à mesma distância.
Jack subitamente sentiu como se estivesse sendo
pressionado contra a parede. Olhou de novo para cima,
depois algo tornou-se claro para ele. "A fenda da geleira. Não
se supunha que fosse vertical?"
"Por Deus, o iceberg está rolando!"
Houve um grande balanço brusco quando o iceberg tombou
e tudo ficou silencioso. A fenda havia parado de fechar, não
mais do que dez metros abaixo deles. Através da luz do céu
eles estavam olhando diretamente para o promontório onde
haviam visitado o idoso inuit no dia anterior. Jack se
surpreendeu pensando que este iria ser um dia perfeito e que
o vento estava deixando a terra banhada em uma luz
cintilante. Em seguida sentiu de novo o horror. Eles tinham
de alcançar o alto da fenda ou iriam morrer. Quando o
iceberg rolasse de novo, a luz do céu iria parar debaixo da
água e seriam levados para o abismo ao atingir o limiar,
selando seus destinos em um instante.
"A acha!" Costas o sacudiu. "A acha!"
Jack voltou à realidade. Mantendo o braço esquerdo ao redor
de Costas, com o outro ele soltou a acha das correias. Sua
mão estava pegajosa por causa do sangue que grudara nela ao
esfregar a coxa, e a acha escorregou, sendo resgatada graças à
mão firme de Costas. Eles suspenderam juntos a acha e
depois a vibraram contra a rampa de gelo fazendo um
grande arco acima deles.
"Ela vai agüentar", Jack ofegou. "Puxe-se para cima." Ele
esticou o corpo, suas nadadeiras ainda fincadas na borda,
mas seus cotovelos e joelhos prontos para descobrir
qualquer ondulação no gelo, qualquer coisa que o impedisse
de escorregar. Eles içaram-se segurando no cabo de madeira,
depois sacudiram-no freneticamente até que se soltasse.
Durante alguns segundos ficariam completamente sem ter
onde se segurar, presos apenas pela tensão de seus corpos
contra o gelo. Costas olhou para Jack e fez um gesto de
acordo. Jack deixou a acha deslizar e depois a ergueu, ela fez
um arco acima de suas cabeças, raspando levemente a
parede da fenda, depois se introduziu com força no gelo um
metro e meio acima da cabeça deles. Quando Jack levantou a
cabeça para libertar o machado para um novo golpe, ele viu
um mergulhador vestido de preto pendurado por um cabo
não mais do que cem metros além do iceberg, e percebeu
que o barulho que estava ouvindo era o estrondo das
turbinas do Lynx.
Houve um novo balanço brusco e um ruído surdo e
prolongado vindo da fenda atrás deles. O barulho do
helicóptero foi abafado por um imenso chiado no gelo. As
paredes da fenda se estreitaram. A acha estava erguida, mas
não havia mais espaço para um novo golpe. Mais um balanço
provocou um aumento repentino de fragmentos de gelo
vindos da fenda, caindo sobre eles, depois tudo aconteceu
subitamente. A luz do céu foi obscurecida por causa de uma
agitação da água, um redemoinho que sugava e que se erguia
na direção deles, e, de repente, eles estavam escorregando
sem controle, caindo verticalmente em direção à luz do céu
quando esta incidiu dentro do abismo. Jack colidiu com a
água do mar que entrava no iceberg com um imenso
estrondo, a acha ainda se arrastando atrás dele, depois foi
carregado pela força da água que caía em cascata da boca até
as entranhas da fenda. Os fragmentos de gelo que quase
tinham sido seu castigo merecido os empurraram para fora
do iceberg, impelindo-os em uma queda desvairada bem
quando as paredes de gelo comprimiram-se e selaram a
fenda da geleira pela última vez.
Ainda não tinha terminado. Jack viu uma vasta parede
branca entalhada avançando na direção deles, estendendo-se
até onde sua vista podia alcançar em cada direção. A fenda
da geleira já estava muito abaixo, assinalada apenas por fluxos
de bolhas subindo ao lado do iceberg, evidenciando a
imensidão negra do abismo. Quando o iceberg rolou, Jack
teve a ilusão de estar subindo vertiginosamente, embora seu
corpo lhe dissesse exatamente o oposto. "Isto está nos
puxando para baixo", gritou Costas com a voz distorcida.
"Encha o seu traje de ar e nade!"
Jack pressionou o inflador e começou a mover as nadadeiras
com dificuldade, a mão esquerda agarrada ao ombro de
Costas. O leitor de profundidade mostrava que eles estavam
se movendo muito pouco. Ainda se encontravam sob o
domínio do iceberg, sendo sugados para baixo. Jack olhou
para cima e viu o sol brilhando nas ondas, torturantemente
perto. Ele sentiu de novo um frio na boca do estômago.
Tendo sobrevivido ao iceberg, eles estavam prestes a morrer
dentro do alcance da visão da superfície. Isto não podia estar
acontecendo. Ele começou a hiperventilar, a gastar o
oxigênio que restava no cilindro de Costas. Sua respiração
começou a comprimir-se.
"Estou soltando seus tanques." Costas estava respirando com
dificuldade, uma grande nuvem de bolhas rodeava sua
descarga de gás, e ele movia furiosamente as nadadeiras
enquanto desconectava as mangueiras desnecessárias de Jack
e sacudia a fivela de soltura rápida na sua mochila de
cilindros, enviando o respirador de oxigênio e a mochila
console com os cilindros vazios de trimix para um mergulho
dentro das profundezas. "Vou fazer a mesma coisa com os
meus cilindros", ele arquejou. "De todo modo, só temos
cerca de mais um minuto de ar e isto não está nos fazendo
bem. Fique preparado para desconectar sua mangueira. Pare
de mover as nadadeiras agora e, quando eu der o aviso,
respire cinco vezes profundamente."
"Estou me segurando em você", disse Jack, com a respiração
saindo em arfadas rápidas. "Se você for para baixo, eu vou
com você."
Costas desconectou seu respirador e ele desapareceu de
vista. Com a mão esquerda, Costas sacudiu a fivela de soltura
rápida de sua mochila e manteve-a no lugar, e com a mão
direita encontrou o engate da mangueira debaixo de seu
capacete. Eles já estavam indo verticalmente para baixo,
sugados cada vez mais fundo pelo iceberg que rolava, as suas
chances diminuindo a cada metro que caíam dentro do
abismo.
"Agora!" Jack deu cinco respirações profundas, depois
arrancou o umbilical. Simultaneamente, Costas soltou sua
mangueira e a mochila. Com o braço esquerdo de Jack
apoiado no ombro de Costas, eles começaram a nadar com
determinação para cima, dando grandes impulsos com suas
nadadeiras, Jack ainda agarrando a acha com sua mão direita.
Durante alguns momentos ele se sentiu bem, sua circulação
sanguínea cheia de oxigênio, lembrando de soltar o ar
enquanto subia. Depois a fadiga de sua fuga começou a se
evidenciar e ele sentiu o primeiro sinal de desconforto. Eles
estavam subindo regularmente, um metro a cada dois
segundos, mas faltavam ainda mais de vinte metros para
chegar à superfície. Qualquer pausa na movimentação das
nadadeiras e eles seriam tragados para baixo outra vez. Jack
começou a sugar no vazio, seus pulmões ofegando
instintivamente em busca de mais ar, aspirando cada último
resíduo de ar do capacete.
Suas pernas começaram a falhar, enfraquecidas por falta de
oxigênio. Ele estava começando a desmaiar, dominado pela
exaustão. Não ia conseguir chegar à superfície. Jack parou de
tentar subir, e num último ato de consciência lutou para
libertar-se do aperto de Costas, ao perceber que seu amigo
ainda continuava forte, desesperado para lhe dar alguma
chance de alcançar vivo a superfície.
De repente, Jack experimentou uma sensação estranha, um
leve solavanco. Tinha parado de movimentar as nadadeiras,
mas ainda estava sendo impelido para cima. Ele estava
vagamente ciente de que o iceberg tinha parado de se
mover. Por instinto encontrou a válvula de descarga para
soltar o ar de seu traje e parar de subir verticalmente. Depois
se encontrou na superfície, cego pela luz. Abriu o capacete e
o removeu violentamente, respirando com dificuldade o ar
fresco, todo o seu ser concentrado em reabastecer sua força
vital. Assim que pôde, ele girou e examinou as ondas,
protegendo os olhos contra a luminosidade. Depois de
alguns segundos ansiosos, Jack percebeu uma cabeça de
cabelos emaranhados oscilando nas ondas cerca de três
metros adiante.
"Você está bem?", ele perguntou arquejando.
"Bem, pelo menos aquele pequeno nado resolveu nosso
problema de descompressão." A voz de Costas soava
estranha pelo intercomunicador, anasalada por causa do frio.
Ele olhava para além de Jack, parecendo esquecido do que o
rodeava, completamente concentrado em dois calibradores
que estava segurando fora da água. "Mas há uma pequena
discrepância nas leituras, isso é incrivelmente aborrecido,
preciso consertar isso."
Jack conseguiu sorrir. Ele inclinou a cabeça para trás,
deixando o sol brincar em seu rosto. Podia ouvir o
helicóptero descendo acima dele, e sentir a água espirrando
quando o mergulhador que viera resgatá-los caiu no mar.
Jack abriu um olho e viu a lâmina dourada brilhando nas
ondas ao seu lado, a recompensa que ele tinha se recusado a
largar. Subitamente sua extraordinária descoberta no iceberg
voltou-lhe à memória e uma descarga de adrenalina passou
por ele. Jack fechou os olhos, a mente agora disparando
excitada. Uma onda passou por ele, uma sacudidela
revigorante de frio que deixou água salgada pingando de seus
lábios. O gosto era bom.


11

"Isto é algum machado de gelo que você conseguiu lá
embaixo?"
"Espere até ouvir o que mais nós encontramos."
James Macleod estava acabando de aplicar uma compressa
sobre o ferimento na coxa de Jack. Seu E-suit estava
escorregadio por causa do sangue fresco, mas a compressa
estancou o sangue. Jack inclinou-se para trás, apoiando-se
no anteparo, seu rosto sulcado pelo cansaço, e ajustou o
capacete de vôo e os fones de ouvido. Nos intervalos da
conversa, respirava profundamente no regulador de
oxigênio que lhe havia sido dado assim que fora içado para o
compartimento de carga do Lynx.
"Você não quer ouvir as probabilidades que Lanowski
calculou contra a sobrevivência de vocês."
"Não, não quero." Jack estava totalmente exausto, mas
sentia que tinha de continuar falando para lhes contar o
que havia acontecido.
"Quando a piteraq nos atingiu, ficamos completamente
paralisados. Inuva havia nos contado que ela poderia ser
terrível, mas eu não fazia idéia do que iríamos enfrentar.
Nem conseguimos tirar o helicóptero do hangar. Foi
aterrador, como espíritos gritando acima de nós."
"Nós vimos isso da fenda."
"Quando o iceberg rolou, toda a situação ficou
descontrolada. A onda de deslocamento atingiu a praia e
varreu a tenda onde encontramos Kangia. O xamã local
ainda estava lá. Assim que deixarmos vocês a bordo do
Seaquest II, o helicóptero sairá para fazer uma busca, mas
não há muitas esperanças."
"Inuva?" perguntou Jack.
"Ela está bem. Estava com Lanowski."
Macleod interrompeu a conversa para ajudar o tripulante,
que agia como um controlador de carga, a içar uma outra
figura gotejante através da porta aberta do compartimento de
carga. Segundos depois, Costas estava acomodado, com as
correias presas, ao lado do assento de Jack, vestindo seu
capacete de vôo e sugando agradecido no regulador de
oxigênio que lhe havia sido entregue.
"Você está bem?", perguntou Jack.
Costas sugou mais algumas vezes e depois baixou o
regulador, dando a Jack um olhar aflito.
"Ah, deixe-me adivinhar." Jack olhou de novo com
exagerada simpatia. "O seu perfurador de gelo."
"Meses de pesquisa e de aperfeiçoamentos", disse Costas
tristemente. "E aquele era apenas o protótipo. Terei de
construir o próximo inteiramente a partir do nada."
"Não há pressa no que me diz respeito", replicou Jack.
"Acho que eu acabo de apagar da minha lista o mergulho
dentro de icebergs." Ele se voltou para Macleod. "Qual é o
seu plano de contingência?"
"Quando vimos que o iceberg tinha rolado trezentos e
sessenta graus, pensamos que havia uma chance. Lanowski
se lembrou da antiga fenda acima do navio. Foi tudo idéia
dele, fez um modelo da provável linha de ruptura,
calculando até a carga explosiva de que necessitaríamos para
dinamitá-la e abri-la."
"Você teve que deixar tudo por conta do rapaz", murmurou
Costas.
"Então era isto que Ben estava fazendo", disse Jack. Macleod
acenou concordando. "Ben se ofereceu como voluntário
para levar a carga explosiva para baixo. Ele tentou uma dúzia
de vezes, mas não conseguiu aproximar-se o suficiente da
fenda. O vento estava nos empurrando e tínhamos de lutar
para manter o helicóptero em posição. Depois nós vimos
vocês dentro da fenda. Ele estava tentando enfiar o cabo
quando o iceberg começou a rolar de novo."
"Rapazes, vocês são heróis", disse Costas.
Macleod sacudiu a cabeça e sorriu. "Somos apenas o serviço
secundário. Não sei como conseguiram fazer o que fizeram."
Naquele momento, o controlador de carga içou outra figura
através da porta, e guardou o guindaste com o gancho em
seu lugar. Ben removeu sua máscara e olhou ansiosamente
para Jack e Costas. Ele lhes fez um sinal de ok de
mergulhadores, e eles responderam da mesma forma.
"Ok, Andy." Macleod bateu no anteparo atrás do assento do
piloto. "Precisamos sair daqui antes que a coisa termine de
rolar. Estamos prontos."
"Recebido e entendido."
Os outros prenderam os cintos nos assentos, na parte traseira
do compartimento de carga. Quando o helicóptero lançou-
se à frente e estremeceu ao ganhar velocidade, Costas
estendeu a mão para a acha que estava apoiada nas pernas de
Jack. "A propósito, obrigado por me salvar do congelamento
profundo."
"Eu lhe devia, parece que me lembro de uma pequena ajuda,
algum tempo atrás, dentro de um vulcão."
Costas olhou de um jeito cordial para seu amigo e fez um
gesto de assentimento, seu rosto subitamente marcado pelo
cansaço. Jack recostou-se no assento e respirou
profundamente no regulador, sentindo-se revigorado a cada
respiração, sabendo que o oxigênio estava limpando o seu
sistema respiratório ao retirar o excesso de nitrogênio do
corpo. A sua direita podia ver a imensa forma do iceberg,
que parecia sólido como uma montanha, e à esquerda a
forma cintilante do Seaquest II, mais distante na baía. Ele
estava arrebatado pelo sentimento de entusiasmo que havia
experimentado ao subir à superfície. Durante meses, desde
que haviam voltado do mar Negro, ele se sentira
importunado por uma incerteza secreta de que o prêmio não
mais justificava o risco, que não via mais vantagem nele.
Agora sabia que havia retornado ao lugar a que pertencia.
Fechou os olhos e caiu imediatamente em um sono sem
sonhos.

"Minhas desculpas", disse Lanowski. "Não fiz as contas com
a tempestade."
"Você nos deu todas as advertências", replicou Jack. "Foi
uma opção minha."
Jack e Costas estavam sentados na coberta de proa do
Seaquest II, reclinados contra a balaustrada do ancoradouro
onde, sem cerimônia alguma, o helicóptero os havia baixado
com o guindaste junto com Macleod, alguns minutos antes.
O navio estava mantendo posição na baía de Disko, cerca de
uma milha a oeste da entrada do fiorde, e Jack podia ver a
ponta do iceberg além da balaustrada de estibordo oposta a
eles. Mesmo a esta distância era uma visão apavorante, e eles
tinham sido lembrados de seu poder estupendo, no
helicóptero, quando uma placa maciça de gelo tinha se
separado dentro da baía, enviando uma nova onda de grande
impacto para a costa onde eles haviam desembarcado no dia
anterior para visitar o velho inuit. Eles tinham tido uma
sorte extraordinária pelo fato de o iceberg ter dado uma
volta completa de 360 graus e porque a enorme força da
tempestade havia recolocado o iceberg na posição vertical e
deixado que ele se empoleirasse precariamente na borda
exterior do limiar. Na vez seguinte que rolasse, ele se
movimentaria bruscamente e ficaria daquela maneira,
comprimindo quaisquer bolsas de ar remanescentes até
desaparecerem debaixo de centenas de metros de água do
mar congelada.
Lanowski tinha sido o primeiro da equipe científica a
aparecer na coberta de proa, juntando-se aos membros da
tripulação que tinham controlado o guindaste do helicóptero
e estavam agora ajudando Jack e Costas a tirar os E-suits.
Maria juntou-se rapidamente a eles, e seu olhar de alívio
transformou-se em preocupação quando viu a coxa de Jack.
O médico de bordo já estava em cena, retirando a bandagem
e passando coagulante na ferida.
"Não é tão feio quanto parece." Jack estremeceu quando o
médico fez uma sutura e depois segurou uma ponta
ensangüentada de gelo. "A natureza providenciou sua
própria compressa gelada."
"Você tem muita sorte", disse o médico. "Por pouco não
pegou a artéria femural."
"É fantástico." Lanowski estava sacudindo a cabeça e rindo
consigo mesmo, num mundo só seu. "Enquanto vocês
estavam fora, Inuva e eu esquematizamos onde a expedição
de 1930 deve ter encontrado a embarcação na calota polar.
Agora serei capaz de usar meu quociente de fluxo da geleira
para localizar o ponto onde os vikings arrastaram o navio
sobre o gelo para a pira funerária. Um dos fiordes afluentes
ao norte de Ilulissat, eu diria, onde a calota polar é mais
acessível a partir do mar." Ele levantou os óculos acima do
nariz e olhou atentamente para Jack. "Ter um conhecimento
tão aproximado da data dentro do iceberg é a maior
descoberta de toda a expedição. Isso proporcionará uma
confirmação independente para a minha teoria de fluxo, pela
primeira vez teremos certeza sobre a velocidade do fluxo do
gelo durante os últimos mil anos. Valeu bem o esforço de
vocês. Congratulações."
"Nós encontramos um drakar viking, homem", disse Costas,
exasperado. "Uma das descobertas arqueológicas mais
sensacionais de todos os tempos. Um pouco mais excitante
do que a velocidade de fluxo do gelo glacial."
Lanowski olhou para ele com olhos sonhadores, com a
mente já bem longe em um mundo de figuras e equações.
Ele pegou uma calculadora de bolso e começou a digitar
furiosamente as teclas, olhando para cima ocasionalmente e
murmurando debaixo dos bigodes. Costas sacudiu a cabeça
com descrença, enquanto a figura desajeitada arrastava os
pés, sem dizer palavra, para a sala de computadores no
convés superior.
"Conversa com uma mente de via única."
"Mas uma mente brilhante." Jack sorriu para a figura
gotejante de seu amigo. "É por isso que somos uma equipe.
Eu não conseguiria competir com ele."
Jeremy apareceu ao lado de Maria, e ela o empurrou para a
frente de Jack.
"Estamos traduzindo a pedra de runa que Kangia lhe deu,
aquela que os alemães encontraram na fenda", disse ele
timidamente.
"Brilhante. Conte-nos o que descobriu." "É uma runa do
oeste nórdico, do século XI, bem distinta das runas usadas na
Inglaterra e na Dinamarca naquela época."
"E?"
"Seu nome era Halfdan."
"Nós sabemos. Um veterano da guarda varegue em
Constantinopla." Jack levantou o objeto que tinha estado
apoiado em seus joelhos, e de repente Jeremy o reconheceu.
Ele olhou boquiaberto, enquanto Jack apontava para a
inscrição rúnica na lâmina da acha.
"Cacete!" Jeremy subitamente esqueceu sua timidez. "Elas
são idênticas às runas Halfdan em Santa Sofia, em Istambul."
"Ele é o nosso homem."
"Sujeito alto, no começo da meia-idade, cabelo loiro
comprido e barba", interrompeu Costas. "Um pouco gasto
pela exposição ao tempo e chamuscado nas extremidades,
mas por outro lado em muito bom estado para um camarada
que não foi movido durante mil anos. Acabamos de
encontrá-lo, a meio caminho do Valhala."
"Hum?"
Costas apontou o polegar para a entrada do fiorde. "Dentro
do iceberg. Ele está no gelo. Nós estávamos em cima da
câmara fúnebre quando o iceberg rolou. A pira funerária
deve ter se extinguido quando a embarcação caiu no gelo, e
as chamas lamberam apenas as extremidades. Eu acho que a
runa de pedra repousava sobre o seu corpo."
Um tripulante passou pelos outros e entregou um pedaço de
papel para Jack. Ele o leu rapidamente e depois olhou ao
longe, um sorriso então apareceu em seu rosto. "Eu sabia!"
"O quê?", perguntou Costas.
"Um pressentimento que tive antes de nosso mergulho. Um
pressentimento pessoal, assim não contei a vocês.
Lembram-se da data da dendrocronologia para as madeiras
do navio, 1040, dez anos mais, dez anos menos? Por alguma
razão, tudo que pude pensar a respeito era sobre a fuga de
Harald Hardraade de Constantinopla. Se as narrativas épicas
estão corretas, a fuga ocorreu muito perto de uma data
média, em 1042."
"E?"
"Eu pedi ao laboratório da IMU para fazer uma comparação
entre os fragmentos de madeira que conseguimos da
corrente submersa, encontrada em Constantinopla, e a
madeira que o perfurador de Macleod trouxe do drakar. Uma
verificação completa, identificações das espécies,
características dos anéis das árvores, especificações sobre
fibras e celulose."
"Continue."
"Elas não são apenas da mesma espécie, carvalho
norueguês", disse Jack, excitado. "É incrível. Elas são, de
fato, da mesma árvore. Pranchas cortadas radialmente do
mesmo tronco."
"Pare. Espere um pouco." Costas mantinha uma mão à sua
frente, tentando pôr seus pensamentos em ordem. "Deixe-
me entender isto. Você está sugerindo que um dos navios
que Harald Hardraade usou para escapar de Constantinopla
com a princesa e o tesouro é o mesmo navio que acabamos
de ver aprisionado em um iceberg na Groenlândia?"
Jack deu um estranho olhar para Costas e depois começou a
fazer que sim com a cabeça.
"É claro." Costas estalou os dedos de repente e olhou de
novo para Jack. "O trabalho de reparação no casco." Ele
olhou para os outros. "Nós encontramos uma parte das
pranchas que foram habilmente substituídas perto da proa.
Isso está fotografado. Presumo que tenha sido um dano
provocado por colisão com gelo ou rocha, mas é exatamente
onde a embarcação deve ter se chocado contra a corrente do
ancoradouro quando fugiam de Constantinopla." Ele sacudiu
a cabeça, incrédulo, e voltou-se para Jack. "Então, se esse é
um dos navios de Harald, onde está o tesouro?"
"Eles certamente não iriam colocá-lo em uma pira
funerária", disse Jack. "E não sabemos em que data isso
aconteceu. O Halfdan que vimos era um homem mais
velho, e ele pode ter navegado por aqui anos depois de sua
aventura em Constantinopla, talvez buscando uma nova vida
para si mesmo na colônia da Groenlândia. Nessa época
Harald devia ser o rei da Noruega e o tesouro dos dias em
que era varegue deveria estar seguro em sua fortaleza em
Trondheim."
Naquele momento ouviu-se o estrondo de um choque vindo
da direção do fiorde, seguido por um imenso som de queda
que reverberou através das águas silenciosas. Uma outra
placa gigantesca de gelo tinha se separado do iceberg, caindo
fora de vista nas profundezas e depois emergindo de novo
como uma baleia de superfície flutuando nas águas da baía.
"E o drakar?", Macleod fez um sinal com a cabeça em
direção ao iceberg, com um senso de urgência em sua voz.
"Não temos muito tempo agora. Seria arriscado aproximar-se
dele de novo, mas poderíamos tentar uma nova varredura
por sonar."
Jack levantou a acha de seus joelhos, virando-a até que a luz
do sol brilhasse no dourado da lâmina. Olhou de modo
pensativo para a arma durante um momento, depois fitou
Maria, sabendo que ambos estavam se lembrando da visita
ao velho inuit no dia anterior e da apreensão dela acerca de
Eenrir, o deus-lobo nórdico esculpido na proa, que agora
sabiam ser o espírito guardião do drakar.
"Eu tirei centenas de fotos", replicou Jack. "É suficiente para
uma reconstrução fotogramétrica completa. Não há jeito de
ninguém aproximar-se daquele iceberg de novo. Quando
encontramos Halfdan, ele estava a caminho do Valhala.
Acho que devemos deixá-lo terminar a viagem."
"E a acha?"
Mais uma vez, Jack pegou o cabo em sua mão. "Eu
considerarei Mjollnir como um empréstimo", disse ele. "A
acha acompanhou Halfdan em todas aquelas batalhas lado a
lado com Harald Hardraade, e nos tirou de algumas
dificuldades. Ela ainda representa o que os vikings
chamavam de sorte-de-batalha. Algo me diz que os antigos
deuses nórdicos estão favoravelmente dispostos em relação a
nós, e este é um dos melhores indícios que temos. Se
Halfdan ainda tinha a sua preciosa acha-de-armas dos seus
dias em Constantinopla, então quem sabe o que mais os
vikings poderiam ter trazido de lá."
"Isso me fez lembrar de algo." Costas, de repente, deu um
salto, ficou em pé e procurou alguma coisa dentro do bolso
do seu E-suit. "Tirei isto do gelo bem quando as coisas
estavam ficando descontroladas lá embaixo. Tinha me
esquecido completamente." Retirou o objeto e eles puderam
ver que era uma outra arma, um punhal do tamanho de uma
pequena faca de caça com uma lâmina brilhando como aço e
uma empunhadura decorada. Quando ele a levantou, a
lâmina brilhou, e os tripulantes que estavam andando a esmo
pelo convés agruparam-se ao redor do grupo, prendendo a
respiração de espanto.
"Deixe-me ver isso com mais cuidado", disse Macleod. "Algo
não está certo."
Quando Costas passou o punhal para Macleod, pôde
perceber o que lhe chamara a atenção, e seu espanto tornou-
se descrença.
"Uma suástica", exclamou um dos tripulantes.
Macleod girou o punhal em suas mãos. "Bem como eu
pensava", ele murmurou. "Eles encontraram o drakar. Olhe
para o punho da espada. Uma caveira e ossos cruzados
embaixo, o símbolo da caveira humana. Este é um punhal
nazista, uma arma usada apenas por um membro jurado da
SS."
Fez-se um silêncio chocado e depois uma mulher na
tripulação falou baixinho. "Alguém poderia explicar como
um punhal nazista foi parar em uma embarcação viking
dentro de um iceberg na Groenlândia?"
Macleod devolveu o punhal a Costas e olhou para Jack.
"Acho que chegou o momento de contar para a tripulação a
história inteira."
Naquele momento houve um balanço brusco e súbito no
convés, uma sensação incomum em um navio com um
sistema de estabilização dinâmica de tecnologia de ponta. O
mar permanecia completamente calmo e coberto com uma
névoa da cor do aço depois da tempestade. Em seguida
alguém gritou do parapeito a estibordo. "É o iceberg! Ele está
rolando!"
Todos, com exceção de Jack e Costas, convergiram para o
parapeito oposto para observar a embocadura do fiorde.
Muito embora o navio estivesse afastado mais de uma milha,
o espetáculo era apavorante, uma demonstração empolgante
de uma força da natureza que nenhuma intervenção
humana poderia jamais controlar. Através da névoa eles
viram a imensa face dianteira do iceberg cair para um nível
abaixo do limiar subaquático e rolar por sobre a beirada, as
erupções entalhadas de gelo no topo da geleira sendo
substituídas por ondulações suaves esculpidas pelo mar, na
base do iceberg, e estriadas com o preto do limiar. Quando o
iceberg se estabilizou, Jack e Costas souberam que o drakar
agora estava perdido para sempre no fundo do abismo, o
guerreiro morto em batalha destinado a navegar para o sul ao
longo da antiga rota marinha dos vikings em direção ao
Novo Mundo e encontrar seu lugar de descanso eterno,
quando o iceberg derretesse em algum canto remoto do
Atlântico. O iceberg quase havia sido a tumba deles também,
e Jack se deu conta de que estava se agarrando à acha
enquanto ele e Costas descansavam junto à amurada e
observavam o iceberg sair flutuando majestosamente em
direção ao mar aberto.
A perna de Jack pulsava, e ele se sentia todo dolorido. Ele e
Costas lentamente terminaram de retirar seus E-suits,
estavam ambos dominados pela exaustão. Jack viu Maria e
Jeremy tendo uma discussão acalorada, como se ela estivesse
tentando persuadi-lo de algo, depois se separaram do grupo
que estava ao lado do parapeito a estibordo e voltaram para a
coberta de proa, Jeremy andando lentamente atrás de Maria.
Macleod juntou-se a eles, e Jack olhou atentamente para
Jeremy quando eles se aproximaram.
"Você não nos contou o que diz o resto da runa de pedra."
"Eu estava chegando nisso", Jeremy pegou um computador
de mão de seu bolso, ativou a tela e pigarreou. "Prepare-se
para se surpreender."
"Continue."
"Há três linhas de runas, no total, raspadas no quartzo cor de
ardósia pela mesma mão. Como eu já disse, elas são nórdicas
e do século XI, o que é condizente com a hipótese de o
nosso guerreiro ser o mesmo Halfdan que traçou seu nome
na Santa Sofia em Constantinopla."
"Bem, o que ela diz?"
Jeremy pigarreou de novo. "Tive de acrescentar alguns
conectivos para fazer sentido, mas eis a essência: Halfdan
morreu aqui em conseqüência de ferimentos recebidos na
batalha contra o rei da Inglaterra perto de Yorvik. Halfdan
lutará de novo para Odin em Ragnarok. Harald Sigurdsson,
seu rei, fez estas runas no inverno depois da batalha. O Lobo
leva Halfdan para o Valhala. O Águia navega para o oeste,
para Vinland."
Fez-se um silêncio atordoante. Jack interrompeu-se,
enquanto terminava de despir o seu E-suit, e olhou
fixamente para Jeremy. "Harald Sigurdsson. Este é Harald
Hardraade."
"A inscrição no Mappa Mundi de Hereford sugere que ele
esteve aqui", disse Maria. "Agora temos certeza."
Jeremy concordou. "O Lobo deve ser o nome do navio que
estava no gelo. O Águia, o outro navio, que navegou para
Vinland. Este é o nome da colônia viking em
Newfoundland, o posto avançado viking mais distante no
oeste e o único conhecido na América do Norte."
"Espere um minuto." A mente de Jack estava
repentinamente vacilando, atônita. "Yorvik era o nome
viking para a cidade de York, sete milhas a oeste de
Stamford Bridge. A batalha só pode ser a de Stamford Bridge
em 1066, entre o rei Harold Godwinson da Inglaterra e o rei
Harald Hardraade da Noruega."
"Correto."
"Assim nos relatam os livros de história", replicou Jeremy
baixinho. "Mas lembre que não há relato de primeira mão da
história. Os eventos daquele ano foram completamente
eclipsados pela conquista normanda, e os anais normandos
provavelmente não iriam exaltar uma vitória inglesa. Muito
do que sabemos vem de uma breve menção na Crônica
anglo-saxônica e no Heimskringla, a história semítica dos
reis da Noruega, escrita na Islândia quase dois séculos
depois. A cópia da Crônica que encontramos na biblioteca
de Hereford a menciona, mas apenas em algumas linhas."
"Há nisso muita oportunidade para omissão, até um
encobrimento da verdade", murmurou Costas.
"Meu Deus." Jack afundou contra o parapeito, sua face
gotejando com água do mar e suor. "Então Harald Hardraade
sobreviveu a Stamford Bridge. Isso altera tudo. De alguma
maneira, ele e os guerreiros que sobreviveram vieram até
aqui, nos mesmos dois navios que usou para escapar de
Constantinopla vinte anos antes. Vocês se lembram do
tesouro de Michelgard, aquela referência incrível no mapa
em Hereford? Harald devia ter esse tesouro consigo quando
foi para a Inglaterra, pronto para uma procissão triunfal
através de York e de Londres que nunca aconteceu. Em vez
disso, ele navegou com o tesouro depois da derrota,
levando-o consigo e com os seus seguidores que
sobreviveram, para o oeste, procurando uma terra além dos
limites do mundo viking." Jack ergueu a acha de Halfdan nas
mãos, depois deu um sorriso cansado, mas triunfante. "Acho
que conseguimos mais uma peça de sorte-de-batalha. Eu
sabia que estava certo em vir para cá."
"Então você vai gostar de ficar com isto." Costas estava
lutando para pegar algo no fundo de seu bolso interno, no E-
suit, e retirou um pequeno nódulo de gelo. "Pensei que
tivesse deixado isso cair quando o iceberg rolou, então não o
mencionei. Eu o encontrei desprendido acima da câmara
funerária, perto daquele punhal nazista."
Ele entregou o objeto gotejante para Jack, que o revirou em
seus dedos e depois o passou para Maria. Um aro brilhante
de ouro sobressaía-se do gelo, e Maria o olhou com cuidado.
"É um anel, um desenho viking", ela murmurou. "Ouro
entrelaçado, uma miniatura de uma pulseira ou de um colar.
Mas eu nunca vi nenhum com um sinete como este." Ela
apertou o gelo no calor da palma de sua mão e começou a
esfregá-lo, revelando gradualmente o ouro ali encoberto.
Depois de alguns instantes, levantou-o contra a luz do sol.
"Posso ver a superfície do sinete. Ela tem um desenho
impresso. É..." Sua voz fraquejou, depois ela recuperou a
compostura. "Jack, diga-me que não estou vendo coisas."
Ela passou-lhe o anel e Jack olhou através do gelo que ainda
estava colado ao sinete. A forma que estava embaixo era
imprecisa, refratada pela luz do sol em uma miríade de
formas, mas o contorno era inequívoco.
"A menorá".
Ele fitou a forma de sete braços, o coração se acelerando,
excitado. Algo assombroso estava acontecendo. Primeiro o
navio dentro do gelo provou ser viking, a nave funerária de
um guerreiro varegue. Um homem que havia servido com
Harald Hardraade, cuja última jornada para o extremo
distante do mundo ocorreu em um dos mesmos navios que
Hardraade usou para fugir de Constantinopla, um navio que
havia navegado pelo Chifre de Ouro no mesmo local onde
Jack e Costas estiveram a bordo do Sea Venture apenas
alguns dias antes. E agora isto, uma ligação com um dos
maiores tesouros perdidos da Antiguidade, algo que Jack
supunha ter desaparecido para sempre depois de Stamford
Bridge.
"Não deposite todas as suas esperanças nisso, ainda", disse
Costas baixinho. "Isso pode não ser o que parece."
"O que você quer dizer?"
Costas havia se aproximado de Jack e estava examinando,
dentro do anel, a face interior do sinete. "Como Maria disse,
diga-me que não estou vendo coisas."
Jack sacudiu o anel e soltou um suspiro. Era uma forma tão
familiar quanto a menorá, mas só podia ser moderna. Eles
tinham estado olhando para ela no punhal, apenas alguns
minutos antes. Era uma suástica.
Jack ergueu o olhar lentamente, sua alegria substituída por
uma completa perplexidade. Maria olhou para ele e depois se
voltou para Jeremy, seu rosto endurecido. "Chegou a hora",
disse firmemente para o rapaz. Ela agachou-se entre Jack e
Costas, enquanto Jeremy permanecia em pé, levemente
inquieto e parecendo mais pálido do que de hábito.
"Jack", Maria disse baixinho, "sobre a expedição nazista. Há
mais coisas que você precisa saber. Há forças em jogo aqui
muito mais sombrias do que nós jamais teríamos imaginado,
Jeremy tem algo para lhe dizer."

12

Maria e Jeremy conduziram Jack e Costas através da
imponente entrada oeste da abadia de lona e ao longo das
lajes gastas da nave. Fazia frio lá dentro, era uma pausa
refrescante da atmosfera tépida de verão que havia fora, e a
janela leste acima do altar iluminava o interior com uma luz
magnífica. Parado em uma das laterais, um homem alto e
loiro, com os braços cruzados sobre o peito e uma mão no
queixo, olhava de maneira contemplativa para a janela.
Quando avistou Jack, deu a impressão de saber quem ele era
e apontou para uma porta do lado oposto onde se
encontrava. Jack acenou em reconhecimento e seguiu os
outros dois através de uma entrada baixa, de pedra, para um
pátio aberto do claustro que ficava na parte de trás.
"O padre O'Connor está esperando por nós", disse Jeremy.
"Há muito tempo ele é membro da Comunidade de Iona e
tem um quarto na ala norte, para onde se retira para
pesquisar e escrever quando pode sair do Vaticano."
"Você confia nele?", perguntou Costas, com a voz soando
alto no claustro. "Quero dizer, não sabemos bem quem ele
é."
Maria parou e voltou-se bruscamente para ele. "Você não
estaria aqui se eu não confiasse nele."
"Ok." Costas viu Jack fazendo um gesto para ele mudar de
assunto. "Sinto muito. É que é um longo caminho para vir
até aqui."
"Ele insistiu para nos encontrar aqui." A voz de Maria ainda
estava cortante, e ela parou para pegar seu celular.
"Encontro-me em seguida com vocês. Tenho de fazer uma
chamada urgente. Jeremy conhece o caminho."
Naquela manhã eles voaram no Embraer da IMU da
Groenlândia até Glasgow, na Escócia, e depois pegaram o
helicóptero que estava esperando e voaram cem milhas a
noroeste, para a ilha Mull. Fazia apenas vinte e quatro horas
desde que Jack e Costas tinham escapado dos perigos do
iceberg, e os dois homens dormiram sem emitir um som
durante a maior parte do trajeto. Em Mull, eles tomaram o
caminho de peregrinação bem conhecido para a ilha sagrada
lona, pegando a balsa para atravessar o estreito canal até Port
Ronain, depois subindo pela aldeia até as edificações da
abadia em seu cenário de prados com o mar azul brilhante
atrás. Quando olharam para a abadia, Jeremy explicou que a
construção estava nesse lugar desde o tempo em que São
Columba havia chegado da Irlanda, quase 1500 anos antes;
ela havia sobrevivido aos ataques dos vikings, à Reforma e ao
abandono, e era de novo um mosteiro florescente e um dos
locais mais sagrados das Ilhas Britânicas.
Passaram ao longo da aléia ensolarada do claustro por uma
outra porta baixa, e subiram uma escada de madeira até um
corredor no ático com janelas que davam para a abadia.
Jeremy bateu a uma porta e um momento depois eles
ouviram o ruído de uma tranca sendo aberta e da corrente
sendo retirada.
"Cavalheiros. Bem-vindos."
O padre O'Connor os convidou para entrar, depois trancou
de novo a porta atrás de si. Em lugar de sua sotaina de jesuíta
ele passara a usar um manto marrom simples de monge, e
com o cabelo aparado e a cruz de madeira pendurada em seu
peito, o religioso parecia saído direto da Idade Média. Tinha
a aparência pálida e cansada, mais velha do que quando o
tinham visto três dias antes na Cornuália. O aposento era
pequeno, cheio de livros e papéis empilhados, e eles
puderam ver onde O'Connor tinha estado trabalhando em
um laptop pousado em uma escrivaninha no canto.
Atravessaram o aposento com cuidado e sentaram-se em
cadeiras de madeira colocadas em semicírculo diante da
escrivaninha. Acima da pequena lareira no lado oposto, Jack
reconheceu uma reprodução em escala menor do Mappa
Mundi de Hereford, e sobressaindo-se ao lado dele havia
uma cópia escaneada do exemplar do mapa que Jeremy e
Maria tinham encontrado na escadaria selada na catedral de
Hereford, mostrando a extraordinária imagem do Novo
Mundo no canto esquerdo inferior.
"Vamos direto ao ponto", disse O'Connor. "Foi uma jornada
longa."
"Obrigado", disse Jack. Ele abriu a maleta que estivera
carregando, tirou o punhal nazista e o anel de ouro com o
símbolo da menorá e os colocou na escrivaninha diante de
O'Connor. O homem olhou para os objetos e retrocedeu
ligeiramente, desviando os olhos. Mas depois ergueu o olhar,
fitando Jack.
"Primeiro devo desculpar-me com Jeremy por causa do
fardo que coloquei sobre ele. Confiei nele um ano atrás,
quando veio pela primeira vez para estudar as inscrições
rúnicas em Iona. Eu tinha estado procurando um colega
mais novo, um estudioso que pudesse continuar a pesquisa.
Eu o fiz jurar segredo, mas lhe disse, quando nos
encontramos na Cornuália, que talvez tivesse chegado o
momento em que precisaríamos revelar tudo para você.
Nem mesmo Maria sabia disso até ontem."
"O que quer que seja, o senhor poderia nos ter dito quando
discutimos o Mappa Mundi e a menorá", disse Jack,
impaciente.
"Eu tinha de estar seguro a seu respeito. Acredite-me, estou
do seu lado e temos um inimigo comum."
"Não sei de nenhum inimigo."
O'Connor mudou de posição na cadeira, olhou com aversão
para os objetos diante de si, e depois inclinou se para a
frente sobre os cotovelos. "Vamos começar com os nazistas.
Como provavelmente já adivinhou, você não é o primeiro a
procurar pela menorá."
"Eu nunca achei que fôssemos", disse Costas alegremente.
"Coisas como essas não acontecem. Alguém, em algum
lugar, deve ter procurado por ela. As pessoas nunca
esquecem um tesouro perdido."
O'Connor sorriu fracamente e depois seu semblante se
tornou severo. "Não é tão evidente como parece à primeira
vista. E não é um jogo. A melhor maneira de lhes mostrar
contra o que estamos lutando é lhes contar sobre os
personagens daquela expedição da Ahnenerbe em 1938."
"Nós sabemos sobre Künzl, mas ainda estamos tentando
identificar o sujeito com a braçadeira." Relaxando
ligeiramente, Jack tirou cópias das fotografias que Kangia lhe
dera e lançou-as sobre a escrivaninha.
"Posso ajudá-los a esse respeito", disse O'Connor
calmamente. "Desde o escândalo da omissão do papa Pio XII
em condenar os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial,
o Vaticano tem sido particularmente suscetível quanto a
isto. Há pouco tempo assumi o controle desse assunto como
porta-voz do Vaticano sobre o holocausto. Oficialmente,
nós estabelecemos contato com grupos judeus e detemos
criminosos de guerra sobreviventes. Muitos daqueles que
escaparam da punição estão agora mortos, infelizmente, mas
ainda tentamos fazer coisas que são necessárias pelo bem da
história."
"Não posso imaginar nenhum deles fazendo isso passando
por São Pedro", disse Costas, de modo implacável.
"Deus fará o julgamento final", replicou O'Connor. "Mas
certamente há um lugar especial no inferno para aqueles que
assassinam crianças."
Eles ouviram uma batida na porta e O'Connor levantou-se e
olhou através do visor antes de destrancá-la e deixar Maria
entrar. Ela sentou-se na cadeira vazia perto de Jack e eles a
fitaram com olhos esperançosos. Parecia pálida e distraída.
"Eu estava certa", disse ela. "Acabei de falar com um velho
amigo que trabalha no Centro do Holocausto Wiesenthal em
Berlim." Jack subitamente lembrou-se das origens judaicas
de Maria, as raízes sefarditas de seu pai. "O nosso nazista era
um estudante fracassado em Heidelberg, com pretensões de
se tornar um famoso antropólogo. Juntou-se à SS em 1933.
Depois da expedição da Ahnenerbe, ele se ofereceu como
voluntário para as Totenkopfverbände da SS, as unidades da
Caveira. Aquelas que dirigiam os campos de concentração.
Seu nome era Andrius Reksnys."
"Não era alemão?", perguntou Jack.
"Lituano", ela replicou.
"Havia muitos fora da Alemanha querendo atender ao
chamado de Himmler", disse O'Connor. O celular de Maria
tocou, ela olhou para eles desculpando-se e desapareceu
rapidamente pela porta. O'Connor digitou em seu laptop e
clicou em uma série de Websites. "Eu conheço esse
homem", disse baixinho. "Aqui está ele."
Virou a tela para que todos pudessem ver e leu de um
documento escaneado, traduzindo do alemão.

O Comandante da Polícia de Segurança e do Serviço de
Segurança, Berlim,
5 de novembro de 1941 55 cópias
(51ª. cópia)
Relatório URSS da Situação Operacional N- 129a
Einsatzgruppe D
Local: Nikolaiev, Ucrânia
Adendo ao Relatório No. 129 relativo à atividade dos
Einsatzkommandos em libertar locais de judeus e
extermínio de grupos guerrilheiros. SS-Sturmbannführer
Andrius Reksnys executou pessoalmente 341 judeus.
Revisão total para as duas últimas semanas: 32,108.
"Einsatzgruppen." O'Connor expressava as palavras com
repugnância. "O esquadrão da morte móvel de Himmler.
Responsável por assassinar mais de um milhão de judeus
soviéticos, entre outros."
"Como esse monstro escapou da perseguição?" perguntou
Jack.
"A história de sempre." Havia um vestígio de fúria na voz de
O'Connor. "De modo chocante, poucos dos
Einsatzkommandos foram levados aos tribunais. No violento
ataque final da Rússia em 1945, Reksnys disfarçou-se como
um soldado raso da Wehrmacht e voou para o oeste para
entregar-se aos britânicos. Houve suspeitas durante seu
interrogatório, mas nada concreto. Quando foi solto em
1947, sob o nome de Schmidt, ele recuperou seu filho de
um orfanato e foi para a Austrália. Juntos, eles fizeram
fortuna com mineração de opalas perto de Darwin. Depois,
em meados de 1960, ele vendeu seu negócio sem aviso e
desapareceu."
"E o filho?", perguntou Jack. "Certamente ele era muito
jovem para ter estado na guerra."
"Pieter Reksnys tinha seis anos de idade em 1941", replicou
O'Connor. "Mas há o relato de uma testemunha ocular, um
sobrevivente judeu, no julgamento do Einsatzgruppen, em
Nuremberg em 1947, que mencionava um menino com
uniforme da Juventude Hitlerista acompanhando o
Sturmbannführer Reksnys em seu trabalho. É um relato de
arrepiar, um dos piores do julgamento. Aparentemente, o
menino recarregava a Luger de seu pai entre cada série de
execuções, e até efetuava algumas ele mesmo. Foi esse relato
que praticamente estabeleceu a conexão quando a Interpol
envolveu-se no assunto nos anos 1990, e conduziu à pista de
Andrius e Pieter Reksnys no México, onde o filho dirigia
um cartel de antiguidades e drogas. Ele agora está no início
de seus setenta anos e ainda se encontra no México."
"Por que demorou tanto?", perguntou Costas, incrédulo.
"Por que levou tanto tempo para identificá-los?"
"Contrariamente à versão de Hollywood, caçar criminosos
de guerra nazistas nunca foi uma prioridade no Ocidente
depois do final dos anos 1940", replicou O'Connor. "As
principais agências de inteligência, a CIA e a SIS britânica,
ficaram completamente envolvidas na espionagem da
Guerra Fria. Elas sabiam tudo sobre Eichmann e Mengele e
os outros nazistas que escaparam para a América do Sul e
Central, mas poucos acreditaram que eles constituíam uma
ameaça. Apenas os israelenses fizeram sérios esforços para
levar alguns deles aos tribunais."
"E agora nós colhemos as recompensas", murmurou Costas.
"Não completamente." O'Connor abriu uma gaveta e
colocou uma fotografia encapada em plástico sobre a mesa.
"Vocês provavelmente não se lembrarão disso. Uma nota ao
pé de uma página de jornal, cerca de oito anos atrás, mas
atualmente é o nazista morto de maior importância desde
Eichmann."
A foto era uma imagem chocante de um homem morto,
deitado de costas em uma poça de sangue, os olhos e a boca
escancarados e o rosto contorcido de dor. Tratava-se de um
homem já de idade, com roupas pretas, e seu braço direito
estava apoiado sobre a testa; visível através da mancha de
sangue havia uma braçadeira vermelha com uma suástica
preta.
"Ele usava aquela braçadeira na privacidade de sua casa",
disse O'Connor. "Um nazista irredutível até o final. Caso
vocês não tenham percebido, esse é Andrius Reksnys.
Atiraram em seu estômago para se assegurarem de uma
morte lenta, para lhe dar tempo de ficar realmente assustado
com o que viria em seguida."
"Mossad?", perguntou Costas.
"Há ligação com os israelenses", replicou O'Connor
baixinho. "Mas esta foi uma operação independente."
"O que você está dizendo?"
O rosto de O'Connor estava branco. Ele falava friamente.
"Andrius Reksnys era um adepto inescrupuloso do demônio.
Todos os esforços da lei internacional falharam em levá-lo a
julgamento. Ele merecia enfrentar o julgamento da
humanidade, bem tomo o de Deus."
"Você está dizendo que o Vaticano comanda um esquadrão
da morte?", disse Costas, incrédulo.
"A Santa Sé não se limita apenas à orientação espiritual",
disse O'Connor. "Durante séculos nossa sobrevivência
dependeu de força no mundo dos homens, de poder para
persuadir o relutante a submeter-se a Deus. Olhe para a
minha própria ordem, os jesuítas. Ou os cruzados. Ou a
Inquisição. Durante séculos, o Vaticano supervisionou a
rede de inteligência secreta de maior sucesso no mundo, e
nunca desistiu de usá-la."
"Os cruzados de modo algum foram um episódio glorioso,
mesmo se a intenção estivesse correta no início",
resmungou Costas. "Não posso imaginar que o saque de
Constantinopla era bem o que o papa tinha em mente."
"Você ficaria surpreso", disse O'Connor. "O papado sempre
teve de resistir para não ser arrastado demais para dentro do
mundo secular, perdendo de vista o plano espiritual que une
todos os cristãos. No tempo da quarta cruzada, o Vaticano
havia desenvolvido um problema real com a Igreja do
Oriente, cismáticos que ele encarava como heréticos. Isto
transformou-se em hostilidade, e, como todas as
hostilidades, levou os antagonistas a perder a razão. Alguns
partidários do saque de Constantinopla até transformaram a
pilhagem em um propósito real de Deus para a cruzada,
punição aos bizantinos por se desviar do verdadeiro
caminho."
"O sentimento foi retribuído na mesma moeda", acrescentou
Jeremy. "A testemunha ocular Niketas Choniates chamou os
cruzados de precursores do Anticristo, principais agentes de
seus feitos premeditados e impiedosos."
"A Santa Sé sempre encarou a tentação a partir do lado
sombrio", continuou O'Connor. "Aqueles que lutam contra
o demônio podem facilmente acabar fazendo o trabalho do
diabo. Os cruzados eram o último desafio da Idade Média, e
nem sempre o superamos. Tendências monstruosas têm
explodido dentro da história em nossos momentos de
fraqueza. Há aqueles entre nós que sentem que temos um
débito por ter falhado em impedir o maior mal de todos, o
holocausto nazista."
"Então a morte de Reksnys não tem nada a ver com a
menorá", disse Jack.
O'Connor fez uma pausa, depois levantou-se. "Temo ter
confundido vocês. A morte dele tem tudo a ver com a
menorá. Por favor, acompanhem a história comigo."
Houve outra batida na porta, e O'Connor fez Maria entrar de
novo. Ela sentou-se, dedilhando seu celular. "Tive notícias
de Hereford", disse ela parecendo séria. "Notícias fantásticas.
Minha equipe do Instituto Oxford terminou de desenterrar
os manuscritos da escada selada. É surpreendente, o maior
tesouro de manuscritos anglo-saxões jamais descoberto. É
como encontrar uma biblioteca romana na Villa dei Papiri
em Herculano, e vai ser um enorme trabalho juntar todas as
partes de novo." Ela olhou para Jeremy, que se inclinava
para a frente, extasiado. "A menos que esteja muito
apressado para voltar aos Estados Unidos, haverá trabalho
em tempo integral esperando depois disso tudo."
"Sim, por favor", disse Jeremy.
"Então por que você está com essa cara?", perguntou Costas.
"É por causa de outra coisa que eles encontraram." Maria
subitamente pareceu tensa. "Bem no fundo da escada,
enterrado debaixo de todos os papéis e velinos, havia o
esqueleto de um homem, um homem alto, vestido com uma
sotaina de monge. Centenas de anos de idade, medieval.
Seus membros estavam retorcidos como se ele tivesse sido
atirado lá dentro. E a parte de trás da caveira estava
despedaçada."
Fez-se um silêncio atordoado, e O'Connor deu alguns passos
em direção ao Mappa Mundi na parede, antes de voltar o
rosto para eles. "É como eu suspeitei. Na primavera de 1299,
Richard de Holdingham, cartógrafo, veio para este mesmo
lugar, para a ilha lona. Ele estava acompanhando seu mestre
doente, Jacobus de Voragine, arcebispo de Gênova, em sua
jornada final. Mais tarde, Richard foi para o sul, para
Hereford, supervisionar a conclusão do mapa que havia
iniciado quinze anos antes. Havia erros nas inscrições que
ele desejava corrigir. Havia deixado um exemplar do mapa,
um croqui para os monges de Hereford trabalharem, e quem
fazia as iluminuras não tinha muita instrução. E agora
sabemos, pelo seu próprio exemplar pessoal, aquele que
Jeremy e Maria encontraram, que ele queria adicionar mais
coisas, que havia um acréscimo secreto que ele queria fazer
no canto esquerdo inferior do mapa, onde os monges depois
acrescentaram uma inscrição nomeando-o como
cartógrafo." O'Connor parou diante da lareira, pensando
profundamente. "Sabemos que ele passou sua última noite
no palácio do bispo Swinfield em Bromyard, e que andou
pela última vez no caminho para Hereford como um
peregrino. Depois disso desapareceu da história. As
correções nunca foram feitas. Nunca mais se ouviu falar
nele."
"O senhor acha que ele foi assassinado?", perguntou Maria,
trêmula.
"Não tenho dúvida a respeito."
"Senti-me tão próxima dele", Maria sussurrou, sua voz
sacudida pela emoção e as mãos agarrando a cadeira. "Eu
estudei seu mapa a vida toda, e nunca me senti tão perto
dele quanto naquela noite na catedral. Era quase como se ele
estivesse ali."
"Um assassinato?" Costas pareceu confuso. "E o que esse
sujeito estava fazendo em Iona? Alguém pode me contar o
que se passa aqui?"
"Sim", disse O'Connor abrindo uma gaveta. "Ouça-me."
Alguns minutos depois, O'Connor sentou-se de novo na
cadeira e deixou os outros estudarem os mapas que ele
estava lhes mostrando. Aberto sobre a escrivaninha havia
um grande mapa em escala do norte da Grã-Bretanha, e ao
lado ele havia colocado um plano da batalha de Stamford
Bridge em 1066. No mapa maior tinha traçado uma linha
desde a costa de Yorkshire, perto de Stamford Bridge, para
cima até a ponta norte da Escócia e para baixo na direção da
costa oeste até a ilha Mull.
"Então Harald Hardraade veio aqui para lona, depois da
batalha." A mente de Jack estava vacilando enquanto lutava
para compreender o que O'Connor tinha acabado de lhes
dizer. Ele sentou-se em sua cadeira e os outros o imitaram
"Ele deve ter ficado numa situação infernal", disse Costas.
"Bastante má para que os soldados ingleses que lutaram
contra ele assumissem que ele tinha morrido no campo de
batalha."
"Foi um milagre ele sobreviver à jornada", replicou
O'Connor. "Ele foi bem cuidado depois. Havia cerca de
trinta de seus guerreiros no total, quase todos gravemente
feridos, muitos da antiga guarda varegue. Eles foram
conduzidos em duas grandes embarcações a remo por servos
leais. Alguns morreram no caminho, outros em Iona."
As partes estavam começando a se encaixar na mente de
Jack. "Quando Harald finalmente deixou lona para navegar
para o oeste, havia um contingente de soldados que foram
deixados para trás, seguidores leais que esperavam o retorno
de seu rei."
O'Connor olhou para Jack de modo astuto e confirmou.
"Eles chamavam a si mesmos um félag" ele disse. "Um termo
nórdico antigo para uma irmandade, uma sociedade secreta."
"E quem fazia parte do félag?", perguntou Jack
"De início eram alguns dos companheiros de Harald,
sobreviventes feridos de Stamford Bridge que vieram com
ele para a ilha sagrada, mas escolheram ficar para trás quando
seu rei navegou para o oeste. Eram homens mais jovens,
guerreiros que Harald havia educado desde os dias da guarda
varegue, homens que ainda tinham ambição e fogo dentro
de si para dar à causa. Entre eles podiam estar vários dos
próprios filhos de Harald. Rapidamente agruparam outros ao
seu redor, nunca mais do que vinte. A intenção que haviam
jurado era manter a chama ardendo pelo retorno de seu rei,
fazer tudo que estava em seu poder para garantir que um
verdadeiro viking mais uma vez governasse a Inglaterra."
"Isso não era muito realista depois de 1066", disse Jack.
"Eles odiavam os normandos e os sucessores franceses da
dinastia Plantageneta. Depois de poucas gerações, a causa
dos félag tornou-se a causa dos ingleses. Lembrem-se, já
havia muito sangue viking na Inglaterra, entre aqueles que
se chamavam anglo-saxões. O rei viking Canuto governou a
Inglaterra no tempo em que Harald era jovem, e havia
enormes áreas de terras onde as invasões dos vikings haviam
propiciado a formação de colônias e casamentos entre
pessoas de raças diferentes: na Ânglia Oriental, na
Nortúmbria, aqui nas ilhas ocidentais. Então era natural que
os ingleses, outrora os inimigos dos vikings de Harald, em
Stamford Bridge, se unissem com eles na causa comum
contra os normandos."
"Eles não podiam de maneira realista ter esperado o retorno
de Harald."
O'Connor sacudiu a cabeça. "Isto se tornou um suporte
místico, uma força de ligação que fez do félag uma das
sociedades secretas de maior sucesso na Idade Média.
Aqueles poucos companheiros originais tinham jurado para
seu rei que nunca revelariam sua sobrevivência ou sua ida
para o oeste, para que os normandos não o seguissem ou
fizessem represálias. Depois de poucas gerações, quando o
retorno do rei nesta vida tornou-se impossível, eles
começaram a procurar juntar-se a Harald na grande batalha
de Ragnarok, a prova final entre o bem e o mal na mitologia
nórdica. Mais uma vez ficariam ombro a ombro com seu
soberano, empunhando achas-de-armas ao seu lado,
vencendo seus inimigos e espalhando o medo como haviam
feito nos dias de glória dos varegues. Seu mantra sagrado, o
juramento que os ligava na irmandade, tornou-se hann til
Ragnaroks, a expressão nórdica antiga para 'até Ragnarok',
até nos encontrarmos no final dos tempos."
"Assim o nome Harald Hardraade passou para a história."
"Não exatamente." O'Connor foi até a estante de livros e
entregou um volume para Jack. "Geoffrey de Monmouth,
Historia Regum Britanniae, História dos reis da Bretanha.
Um best-seller medieval, a maior parte imaginária."
"E?"
"O livro responsável pela lenda romântica do rei Artur."
"Bom Deus", murmurou Jack. "É claro. O único e futuro rei.
"Geoffrey era um dos félag, um par de gerações depois da
morte de Harald. Eles haviam jurado nunca mencionar o
nome de seu rei, mas na metade do século XII o félag tinha
começado a entrar na sociedade inglesa. Diante da opressão
normanda tornou-se um expediente para expandir a fantasia
de um antigo rei britânico, um líder heróico que um dia
voltaria para libertar seu povo. Descontando a ficção
romântica, você terá alguns fatos sólidos."
"Em lugar de rei Artur, leia Harald Hardraade", murmurou
Jack. "No lugar de Cavaleiros da Távola Redonda, leia guarda
varegue."
"É o que você disse sobre a Atlântida", acrescentou Costas.
"Atrás de cada mito há alguma realidade."
"Sim, mas as pessoas têm debatido o mito da Atlântida
durante eras", replicou Jack. "Este é um acontecimento
inesperado." Ele voltou-se para O'Connor. "Então, os félag
não eram todos apenas místicos?"
"De jeito nenhum. Ao desposar a causa inglesa, eles
ganharam adeptos facilmente, e, à medida que as gerações
passavam, o félag chegou a representar a maior e a melhor
parte dentre aqueles que pretendiam ter raízes vikings e
anglo-saxônicas. Eles tinham pouca esperança de se infiltrar
na aristocracia normanda, de modo que na época que o
último dos varegues originais morreu, muitos dos félag eram
clérigos, pagãos disfarçados. A Igreja era o único lugar onde
os ingleses de sangue viking e anglo-saxão ainda podiam
exercer poder, e o félag a utilizava para maior vantagem
própria. No final do século XII, sua influência alcançava
Roma, e seus membros incluíam clérigos na Europa com
conexões inglesas, jacobus de Voragine, o mestre de Richard
de Holdingham e um dos clérigos mais antigos na Itália, era
o filho bastardo de uma mãe inglesa que afirmava descender
do rei Canuto. Em várias ocasiões, o félag teve até membros
no Colégio de Cardeais no Vaticano."
"Então Richard de Holdingham era um dos félag", disse
Maria com a voz baixinha.
"Ele foi o último félag verdadeiro, descendente direto de
Hardraade."
"Félag verdadeiro?"
O'Connor fez uma pausa, claramente perturbado. "Logo no
início houve um cisma, um lado sombrio. Você pode
comparar isso à luta na Igreja, da qual falávamos há pouco,
contra a tentação do diabo. Não sabemos quando aconteceu
ou quem foi, mas IH uive alguém que viu a menorá com
seus próprios olhos, um dos companheiros originais que
havia escolhido ficar para trás. I 'in Judas em meio aos félag.
A menorá já tinha sido um símbolo secreto de realeza para o
próprio Harald, valendo muito mais para seu prestígio do
que o seu peso em ouro. Depois da partida de Harald, o seu
valor como um símbolo do félag tornou-se ainda mais
elevado, uma outra parte do ritual que os mantinha juntos.
Mas, onde alguns viam uma causa sagrada, outros viam ouro.
Isto atraiu cobiça, ganância."
"Como o Santo Graal", sugeriu Costas. "Para alguns uma
busca mística, uma alegoria de alguma grande revelação
sobre o cristianismo. Para outros, um cálice dourado."
"Exatamente. Para aqueles que não podiam resistir, a busca
pelo tesouro de Harald tornou-se soberana, uma obsessão.
Secretamente, eles estabeleceram sua própria irmandade, seu
próprio félag, com a única intenção de encontrar a menorá.
Aqueles que permaneceram verdadeiros sentiram a força
maligna no meio deles. Informações preciosas sobre a
viagem de Harald retornaram do outro lado do oceano
ocidental, informações que puderam ser escondidas daqueles
que as utilizariam com más intenções. O conhecimento era
sempre confiado a um único homem, que o transmitiria para
o próximo indicado, do mestre para o aprendiz, durante
todo o tempo que a linhagem pudesse ser sustentada."
"Estou começando a compreender", disse Jack lentamente.
"Jacobus de Voragine, Richard de Holdingham."
O'Connor confirmou. "Eles foram os últimos. De algum
modo, a linhagem foi sustentada por uma centena de anos
em seguida às suas grandes crises, em 1170. Naquele ano
Thomas Becket, arcebispo de Canterbury, foi assassinado
pelos seguidores do rei Henrique II em sua própria catedral.
A supremacia de Becket havia sido o período de maior
poder para o verdadeiro félag, e sua morte foi o início do
fim."
"Thomas Becket era um membro do félag?, perguntou Jack,
atônito.
"E o mantenedor do conhecimento", disse O'Connor. "Os
cavaleiros que o abateram não estavam apenas procurando
vingança para Henrique II."
"Eles conseguiram o que queriam?"
"Ele recusou-se a voltar atrás, e em sua ira eles o
assassinaram. Os cavaleiros foram ultrajados na Inglaterra e
juntaram-se à terceira cruzada, para buscar ostensivamente
absolvição por seu crime. Ficaram conhecidos como os
Cavaleiros da Mão Ensangüentada, porque todos aqueles
homens tinham cicatrizes atravessando-lhes a palma da mão
onde se haviam cortado para firmar um pacto de sangue. Sua
busca havia adquirido sua própria mística, seus próprios
rituais, embora sua fidelidade à causa de Harald Hardraade
fosse apenas um pretexto. Eles começaram a procurar os
outros tesouros judeus que Harald havia deixado para trás
quando escapou de Bizâncio com seus companheiros
varegues. A mesa de ouro do Templo Judaico, a Mesa do Pão
da Proposição." "Mas isso era em Constantinopla."
O'Connor aquiesceu. "Antes que pudessem chegar lá, os
cavaleiros foram todos massacrados por Saladino e seus
guerreiros muçulmanos diante das paredes de Jerusalém.
Mas alguém conseguiu chegar em Constantinopla, uma
geração mais tarde, em 1204."
"Essa é a data da quarta cruzada", disse Costas. "Aquela que
estávamos procurando no Chifre de Ouro. Os grilhões e
tudo."
Repentinamente fazia frio no aposento da cela, uma brisa
fria penetrando através de um buraco na janela. A mente de
Jack estava acelerando. "Espere aí. O saque de
Constantinopla. Aquele foi Balduíno de Flandres. Você está
dizendo..."
"Foi ele, o próprio. Quando jovem, Balduíno havia estado
em Roma, e tinha visto o Arco de Tito na praça pública. O
arco havia se tornado um local de peregrinação para os félag,
um santuário sagrado. Richard de Holdingham
indubitavelmente esteve ali. Eles não apenas viram a
imagem da menorá, mas também os outros tesouros sendo
carregados pelos soldados romanos. Sabiam qual era o
aspecto da mesa de ouro. Balduíno não se afastou da cruzada
para Constantinopla por acidente, apenas para fazer o
trabalho sujo dos venezianos. Mas outros, aqueles félag
verdadeiros, conheciam a intenção de Balduíno e foram para
lá em segredo antes dele. Eles ainda eram varegues na guarda
imperial em Constantinopla, homens para quem o nome de
Hardraade era santificado, uma lenda dos dias gloriosos.
Estavam dispostos a pegar o tesouro que sobrara e afundá-lo
em uma localização secreta no ancoradouro antes que os
cruzados chegassem. Todos os varegues morreram no cerco,
e a localização foi perdida."
"Heureca", murmurou Costas. "Não é mau para nós. Talvez
Maurice Hiebermeyer tenha algo para procurar no Chifre de
Ouro, afinal de contas."
"Na época da quarta cruzada, o cisma no félag havia se
transformado em uma hostilidade sangrenta sem reservas",
continuou O'Connor. "Procurou-se vingar a morte de
Thomas Becket, e o ciclo recomeçou. Mesmo aqueles que
ainda defendiam a causa verdadeira perderam de vista sua
nobreza e viviam temendo por suas vidas. Como muitas
sociedades secretas, eles haviam se voltado para si mesmos e
começaram a se autodestruir. Richard de Holdingham devia
saber que era um homem marcado desde que voltara de
lona, uma vez que ele tinha colocado o corpo de seu mestre
em meio a tochas na embarcação, cumprindo o ritual félag
consagrado, enviando-o para o Valhala no mesmo lugar que
seu rei saiu para navegar. Seus inimigos sabiam que Jacobus
devia ter passado o conhecimento para Richard antes de
morrer. Richard não tinha aprendiz. Seu último ato havia
sido ter sua inscrição no Mappa Mundi, a transferência de
seu segredo para o futuro, para ser descoberto e decifrado
por alguém quando as trevas passassem. E, com a morte de
Richard, a linhagem terminou."
"Você acha que ele cedeu nos momentos finais, quando
ficou diante da morte na Biblioteca Acorrentada?",
perguntou Jack.
Maria olhou para ele, seu rosto pleno de emoção. "Ele tinha
o espírito de Thomas Becket dentro de si. Deve ter
percebido que ia morrer, não importava o que fizesse. Acho
que ele foi forte até o fim. Felizmente seu atacante deve ter
falhado em reconhecer o que valia aquele exemplar do
mapa, ou talvez Richard tinha tido tempo de escondê-lo na
biblioteca durante os instantes antes de ser atacado."
"Ele nunca poderia ter adivinhado que se passariam mais de
setecentos anos", murmurou Jack.
"E eu temo que as trevas ainda estejam conosco", disse
O'Connor.
"Bem!" Costas estava girando o anel, e o segurou no alto no
meio deles com o símbolo da menorá claramente visível.
Ele apontou com a outra mão para a suástica no punhal. "E
agora a questão realmente importante. Como vamos passar
do misterioso assassinato medieval para esses bandidos do
século XX?"


13

Jack sentou-se extasiado no aposento de livros alinhados da
velha abadia, surpreso com o que ouvia. Pensamentos
amontoavam-se em sua mente, e ele lutava para separá-los.
Estivera ciente de que estavam na pista de Hardraade desde
a revelação do mapa, que um fio ligava sua descoberta no
Chifre de Ouro de Istambul à embarcação dentro do gelo na
Groenlândia, mas nunca poderia ter adivinhado que a ilha
sagrada lona fosse um outro elo na corrente. E agora
O'Connor estava contando outra história, que progredia
além da excitação da descoberta para um mundo de trevas e
de perigo.
"Com o fim das cruzadas, e o surgimento do Império
Otomano, qualquer esperança de encontrar o tesouro
remanescente em Constantinopla parecia perdido",
prosseguiu O'Connor. "Para o oeste, todo o contato com a
Groenlândia rompeu-se, e a terra prometida descoberta
pelos vikings foi esquecida. Na época das viagens européias
de descoberta, no final do século XV, o último dos
Cavaleiros da Mão Ensangüentada estava morto fazia tempo.
No entanto, o mito persistiu, passado de pai para filho no
maior segredo pelos descendentes dos félag através da
Europa e eventualmente na América. No século XIX, todos a
quem a história foi transmitida pensaram tratar-se de
fantasia, não mais histórica do que as histórias do rei Artur e
da Távola Redonda, e mantinham sua promessa apenas para
sustentar uma lenda romântica. Depois, de algum modo, a
história alcançou os ouvidos de um inventor austríaco
pirado, obcecado com a Teoria do Mundo de Gelo."
"Ouvimos falar disso", interrompeu Costas. "A razão pela
qual os nazistas foram para a Groenlândia."
"Então esse personagem redescobriu o félag?, perguntou
Jack.
"Um de seus colaboradores, um empreendedor lituano
chamado Piotr Reksnys, pai de Andrius. Um indivíduo
sórdido."
Costas fez uma careta. "Que família!"
"A época era perfeita", continuou O'Connor. "As primeiras
décadas do século XX viram um ressurgimento de interesse
pelos vikings e a herança nórdica, na Alemanha e através do
norte da Europa. Depois da insanidade da Primeira Guerra
Mundial, o félag se tornou um movimento para apoiar a
idéia da supremacia racial em meio a um povo que havia
perdido seu rumo. As sociedades secretas floresceram e
começaram a atrair os assassinos e fantasistas que sonhavam
com um novo Reich na Europa. Elas levaram à formação da
sociedade mais hedionda de todas, a Schutzstaffel de
Himmler, a SS, acrescida com uma ilustre e inventada
ascendência nórdica e alguns rituais. A idéia de um félag
reconstituído se ajustava perfeitamente a esse mundo
maligno, só que, de modo distinto dessas outras
organizações, o félag tinha alguma ressonância histórica."
"E uma meta diferente", comentou Jack.
"A menorá", disse O'Connor. "Eles tinham todas as pompas
de uma sociedade suprema, mas isto era apenas para
exibição. Estavam obcecados em encontrar a menorá."
Costas pegou o anel. "Então era sobre isto?"
O'Connor brandiu a mão descartando o que Costas dissera.
"Isso é uma fraude. Reksnys inventou que esses anéis eram
uma espécie de herança antiga, forjados com o ouro do
tesouro de Harald, mas não era verdade. Eles são fabricações
típicas da época. Reksnys sabia que os reis vikings gostavam
de dar anéis, deixando como herança colares de prata e
pulseiras para os seus seguidores fiéis. Como os nazistas, ele
era obcecado pelas óperas de Wagner, com o Ciclo do Anel,
o Nibelungenlied, a lenda de Ragnarok e a queda dos deuses
nórdicos. Reksnys reviveu o mantra da antiga irmandade,
hann til Ragnamks. Eles eram fost-broedralag, irmãos
jurados, e chamavam a si mesmos de companheiros de
sofrimento, o antigo nome viking para remador. Devia
haver doze deles, e Reksnys até mesmo remodelou um
castelo na Noruega e persuadiu o mais importante daqueles
irmãos de que o castelo havia sido um antigo lugar de
encontro dos félag, o qual estava abarrotado com armaduras
e achas-de-armas vikings forjadas, supostamente deixadas
pelos precursores varegues. Ele até reconstituiu a forma mais
extrema de punição usada pelos nórdicos, reservando-a para
os membros do félag que se afastassem de seu juramento de
lealdade."
Maria parecia horrorizada. "Você está falando da águia de
sangue?"
O'Connor aquiesceu. "A embarcação de Harald se chamava
Águia. O guardião dos félag era a águia gigante Hraesvdg. O
ritual da águia de sangue devia ser realizado em seu nome,
como um rito de sacrifício."
"Era o equivalente nórdico de enforcamento, estripamento e
esquartejamento", disse Jeremy. "Apenas sem o
enforcamento e o esquartejamento."
"O contorno de uma águia era esculpido nas costas da
vítima, enquanto ainda estava viva", disse Maria baixinho.
"Depois eles tiravam as costelas e arrancavam os pulmões."
"Deus todo-poderoso." Até mesmo Costas estava sem
palavras.
"Eles ainda não o tinham usado com alguém deles", disse
O'Connor. "Mas no julgamento do Einsatzgruppen um dos
judeus sobreviventes mencionou um boato sobre um dos
oficiais SS ter feito algo parecido com isso em um grupo de
prisioneiros, usando seu punhal cerimonial." O'Connor
olhou para o objeto em cima de sua escrivaninha com
desgosto. "Mesmo entre os horrores do holocausto, havia
alguns em que era difícil acreditar, e ninguém fora deixado
vivo para confirmá-los. Mas eles tinham sido usados na área
de operações de Reksnys."
"Eu realmente estou começando a gostar desse cara",
murmurou Costas.
"E havia um outro aspecto, algo que marcava os félag para
onde quer que fossem." O'Connor fez uma pausa. "Eles
faziam um corte transversal na palma da mão, um sinal de
lealdade sangüínea. Acreditavam ser os Cavaleiros da Mão
Ensangüentada, renascidos."
"A SS, a Ahnenerbe, a busca das civilizações arianas
perdidas, da Atlântida", murmurou Jack. "Isto tudo era um
pretexto perfeito para o félag, um disfarce para atingir sua
meta."
O'Connor concordou. "Andrius Reksnys, o filho, era um
nazista fanático. O retrato que o velho inuit fez dele é típico.
Um sádico real e amedrontador. Mas ele era um dos
membros mais fanáticos do félag, imerso na obsessão desde a
infância."
"Por quê?", perguntou Jack.
"Porque não se tratava apenas de algo místico. Havia uma
meta, uma busca. Eles imaginaram que Harald Hardraade
devia ter se dirigido para a Groenlândia. Então estudaram as
Sagas groenlandesas e a Saga de Erik, o Ruivo, que mostram
que o nordrset, a região norte que começa ao redor da baía
de Disko, teria sido o posto de concentração de tropas para
futuras viagens para o oeste. Quando ouviram que o
explorador Knud Rasmussen estava planejando uma
expedição à calota polar groenlandesa em Ilulissat, eles
aproveitaram a chance. Na época, Himmler tinha se tornado
obcecado pela Teoria do Mundo de Gelo e uma civilização
polar perdida, e não houve problemas para autorizar uma
equipe da SS Ahnenerbe a se juntar à expedição de
Rasmussen."
"E Rolf Künzl? Como ele se encaixa nisso?"
"Era completamente inocente em relação às metas do félag.
Foi ele quem mapeou a viagem descrita nas narrativas
épicas. Ele era o expert mundial dos vikings no Ocidente, o
companheiro ideal de Reksnys. Eles o usaram. E quando
souberam que Künzl havia encontrado um indício no gelo,
algo que depois escondeu, ele foi condenado."
"A pedra de runa na embarcação", disse Costas.
O'Connor aquiesceu de novo. "Künzl era suficientemente
esperto para saber que havia encontrado algo de significado
grandioso, e o fato de que Reksnys estava tão desesperado
para pôr as mãos sobre o achado bastava para ele. Künzl
detestava Reksnys e os nazistas com igual fervor. Então
decidiu dar a pedra de runa para o velho inuit guardá-la.
Künzl não sabia nada sobre os félag, mas havia começado a
desconfiar que estava lidando com algo mais do que apenas a
loucura nazista. Ele e Reksnys haviam lutado naquela fenda
da geleira, e daquele momento em diante deve ter se dado
conta de que essa era uma hostilidade sangrenta, um duelo
até a morte. Essa sempre foi a fraqueza do velho félag. Os
assassinos de Thomas Becket e de Richard de Holdingham
sabiam que seus segredos iam com eles para o túmulo. Na
sua sede de vingança, os assassinos perderam as metas de
vista. Depois que a guerra começou, Künzl ficou a salvo
enquanto estava lutando no Africa Korps, mas, quando ele
foi detido com os conspiradores de Von Stauffenberg,
Andrius Reksnys finalmente teve sua chance. Usou sua
considerável perícia para tentar extrair o que pudesse de
Künzl com tortura nas câmaras da Gestapo. Ele falhou, e em
sua raiva deixou-o ser executado junto com os outros. Deve
ter suposto que Künzl, o grande estudioso, teria deixado
algum registro escrito, mas descobriu que ele havia
destruído todos os seus papéis pessoais, e que todos os
registros da expedição tinham desaparecido do quartel-
general da Ahnenerbe no início da guerra."
"Uma pergunta", disse Maria baixinho. "A menorá teria
significado tudo para os nazistas. O símbolo derradeiro do
domínio sobre a raça que estavam determinados a destruir.
Eles a teriam empunhado como triunfo, da maneira que os
romanos fizeram com os judeus dois mil anos antes. O que
Reksnys teria feito se tivesse encontrado a menorá?"
O'Connor levantou-se de novo e olhou pensativo para o
mapa. "A busca pela menorá era mantida em segredo, nem
mesmo Himmler tinha conhecimento do fato. Se Himmler
tivesse descoberto algo sobre a menorá e os félag, que a
busca lhe estava sendo ocultada, então Reksnys
provavelmente teria sofrido o mesmo destino que Künzl.
Para responder sua questão, devemos nos deslocar para os
dias de hoje. Não estamos lidando com neonazistas aqui.
Nada tão banal. O félag ainda está conosco, tão forte como
sempre foi. E a menorá tem ainda mais poder hoje do que
nos dias sombrios da década de 1940. Eles podiam levar todo
mundo a pagar-lhes resgate por ela. A Igreja Católica, o
Estado judeu, os Estados árabes. Grupos extremistas de todos
os credos."
"Oferecê-la em leilão pelo maior lance", murmurou Costas.
"Então é realmente de cobiça que se trata e não de
ideologia", disse Maria.
"Foi isso que provocou o cisma no félag quase mil anos
atrás", replicou O'Connor com a cara fechada. "Cobiça e
poder."
"Como você sabe de tudo isso?" Costas deixou escapar.
"Quero dizer, se é tudo tão secreto, como um historiador
jesuíta no Vaticano tem acesso a esse tipo de informação?"
"Esta era para ser minha última revelação." O'Connor
respirou profundamente, subiu a manga direita de sua
sotaina e estendeu a mão em direção a eles, com a palma à
mostra. Todos soltaram um suspiro de espanto. Atravessada
diagonalmente havia uma cicatriz branca entalhada.
"A mão ensangüentada", sussurrou Maria. "Eu pensava que
esse fosse apenas um ferimento antigo."
"Vocês podem relaxar." O'Connor abaixou a manga e
afundou-se na cadeira. "Não sou mais um deles. Meu avô era
um inventor americano que fazia parte do círculo da Teoria
do Mundo de Gelo, não menos excêntrico do que seu
fundador, mas provavelmente um pouco menos doido."
"Meu Deus", exclamou Maria. "Você nunca me contou
sobre isso. Pensei que em sua família todos fossem
acadêmicos."
"Foi um período estranho", disse baixinho O'Connor,
olhando para o chão. "O mundo começou a enlouquecer
algumas décadas antes da Primeira Guerra Mundial, e ainda
não estamos fora dessa loucura." Ele ergueu o olhar e sorriu
debilmente para Maria. "Meu avô era um cientista, mas
meteu-se em uma porção de facções tolas, como muitos
acadêmicos de seu tempo, e praticamente deixou essa
obsessão em especial consumi-lo. Como meu pai antes de
mim, prestei juramento ao félag em minha juventude, passei
através de todo o ritual de iniciação. Eu detestava aquilo,
odiava os falsos rituais e, assim que descobri a conexão
nazista, decidi cair fora. Descobri minha vocação como
jesuíta, e não podia conciliar isso com ser membro do félag.
O félag sempre professou ser pagão, desprezar o cristianismo
mesmo quando trabalhava com ele. Acredito que eles
esperavam que eu retornasse para o rebanho, viam-me
como um recurso futuro e útil dentro da Igreja. Eles
concordaram em me deixar sair com um voto de silêncio.
Esse é um voto que agora quebrei."
"Mas você não está atado por seus rituais absurdos", disse
Jack.
"De fato." O'Connor olhou para baixo e depois fitou Jack
diretamente. "Mas eu alimentei o fogo da vingança. Ao
longo dos anos, juntei tudo que pude sobre Andrius
Reksnys. Eu meramente desprezava o félag, mas com
Reksnys era diferente. Quanto mais eu descobria sobre suas
atividades assassinas com o Einsatzgruppen, mais
determinado me tornava para trazê-lo diante da justiça,
mesmo se isso significasse quebrar o meu voto de silêncio. A
memória de Rolf Künzl me fez seguir adiante. Eu me
apropriei do credo da antiga guarda varegue, de um dos
primeiros félag, de que o nosso destino é predeterminado,
que Ragnarok é inevitável, assim, o que importa é nossa
conduta neste mundo. Esta foi minha única herança dos
velhos costumes. Um tanto em desacordo com a minha
vocação jesuíta, mas colocou-me em ligação com a nobreza
do primeiro félag e deu-me forças."
"Você não pode ter feito tudo sozinho", disse Jack. "Outra
pessoa atirou em Reksnys."
"Assim que entrei no Vaticano, eu trouxe um pequeno
grupo de companheiros confiáveis para a Igreja. Um deles
está aqui na abadia hoje. Vocês talvez o tenham visto na
igreja. Jeremy era para ser um outro. Nós nos aproximamos
para reunir evidências suficientes contra Reksnys, mas não
ficamos próximos o bastante. Tínhamos resolvido que ele
deveria experimentar o horror antes da morte."
"Você despertou de novo o ciclo de hostilidade sangrenta",
murmurou Maria.
"Às vezes a justiça é mais bem servida pelos velhos
costumes."
"E o félag sabe quem você é?"
"Anteriormente eu lhes contei que o félag, em seu apogeu,
no século XI, infiltrou-se no Vaticano. Hoje novamente há
uma pessoa, agora entre os meus superiores, que sabe sobre
a menorá, que descobriu sobre a nossa busca."
"Como?" perguntou Costas.
"Uma pessoa bem informada."
Jack experimentou um arrepio de certeza. "Eu sei de quem
se trata. Isto tem me incomodado desde o Chifre de Ouro. O
segundo oficial do Sea Venture, o estoniano recém-
contratado. Ele estava escutando da ponte de comando
quando discutimos sobre a menorá pela primeira vez."
"Ele esteve AWOL dois dias atrás", disse Costas, chateado.
"Não íamos incomodá-lo com isso, Jack, mas Tom York me
contou quando lhe telefonei esta manhã."
O'Connor aquiesceu desoladamente e continuou. "Eu sabia
que a Santa Sé faria tudo que estivesse em seu poder para
impedir que a localização da menorá fosse revelada, mas
depois percebi que havia mais do que isso em jogo. O félag
faria de tudo para saber o que nós sabemos, para se opor e
nos destruir e continuarem a busca eles mesmos. E há um
deles que devemos temer mais que todos."
"Quem?", perguntou Jack.
"O neto. Andrius Reksnys está morto, seu filho Pieter está
hibernando em algum lugar da América Central. O neto
ainda está livre. Creio que ele é agora um membro jurado do
félag. Ele é um matador. Herdou o gene da família."
"Tal avô, tal neto", disse Jack baixinho.
"O pai, Pieter, não é melhor", disse O'Connor. "Lembre-se
de sua educação precoce na frente russa. Mas ele parece
estar completamente empenhado em dirigir sua organização
criminosa na América Central. O neto é quem preocupa. Ele
é o guerreiro do félag, o homem de frente. Cresceu imerso
em todos os rituais, e o félag tornou-se o seu credo.
Acreditou em tudo o que eu rejeitei. Tem usado muitos
pseudônimos, mais recentemente Poellner, Anton Poellner.
Entre os félag, ele chama a si mesmo Loki, o nome de um
deus nórdico particularmente sórdido. Seu absurdo credo
guerreiro o levou a se exercitar como um mercenário, e ele
deixou um rastro de sangue através dos conflitos nos Bálcãs.
Ele aperfeiçoou suas habilidades como terrorista num campo
de treinamento no leste do mar Negro, em Abecásia."
"Acho que sabemos onde fica", disse Costas.
"Quando seu avô foi assassinado, ele seguiu com uma
violência particularmente assassina para Kosovo e baixou sua
guarda. Foi detido pelo SAS e condenado em Haia como
criminoso de guerra. Cinco anos atrás foi enviado para a
prisão perpétua na Lituânia, o país que ele afirma ser sua
pátria. Abriram uma prisão desativada do Gulag
especialmente para ele, um lugar onde oficiais capturados da
SS foram mantidos durante anos depois da guerra antes de
serem executados. Então, há um mês, um novo juiz decidiu
que a evidência contra ele era insuficiente, e o colocaram
em liberdade." Os lábios de O'Connor tremeram de
desgosto. "Ele era apenas uma criança quando eu abandonei
o félag, mas ainda posso lembrar de seu rosto. Seu pai havia
se recusado a cortar a palma de sua mão antes que chegasse
o momento certo, então Loki agitou-se com raiva e cortou o
próprio rosto com um machado. Ele escarnecia de mim com
aquilo, enfiando seu dedo bem dentro da ferida até que eu
gritasse. Isso costumava me dar pesadelos. E agora ele está
de volta. Ele sabe que fui eu quem perseguiu o seu avô. É a
hostilidade sangrenta que o impele. Agora, o pouco tempo
que temos é precioso."
Jack olhou para O'Connor. "O que fará agora?"
"Vou ficar aqui. Roma é muito arriscada."
"O que o senhor quer dizer?"
"Algo mais aconteceu." O'Connor parecia preocupado, o
rosto voltado para o solo. "Eu queria pô-lo a par do contexto
antes de lhe dizer. Há um outro assassinato. Um recente
dessa vez."
"Onde?"
"No Vaticano. Faz dois dias. A polícia acredita que foi algo
realizado pela máfia, porque a vítima estava na frente de
batalha contra o mercado negro de antiguidades."
"Quem era ele?"
"O chefe da Conservação."
"Você quer dizer o homem que, junto com o senhor, esteve
na câmara secreta no Arco de Tito?"
"Alberto Bellini. Um dos grandes estudiosos modernos da
escultura romana. Uma grande perda. A única pessoa na
Santa Sé em quem eu podia confiar."
"O senhor acha..."
"Eu não acho. Eu sei. Alberto era um homem que assumia
estar envolvido na guerra pública contra a máfia, que
precisava de guardas armados cada vez que saía do Vaticano,
mas que não teve força interior quando ficou trancado em
um aposento com aqueles que o confrontaram. Ele me
confessou que, na noite antes de seu assassinato, eles o
haviam obrigado a contar a nossa descoberta noturna no
arco e o nosso interesse pela menorá. Isso me colocou na
linha de fogo. E quer dizer que vocês também. Estou com
medo."
"Você sabe quem está por trás de tudo isto no Vaticano?"
"Há uma espécie de Inquisição interna, dirigida pelos
cardeais. Isso sempre existiu. Mas esta é mais sinistra, muito
perversa, como pude perceber. Não tenho certeza de quem
se trata, mas faço uma idéia. O félag vem mudando desde
que o abandonei, mais de quarenta anos atrás. Sei quem são
alguns deles. O juiz que libertou Loki dos crimes de guerra é
um." O'Connor de novo agarrou sua cadeira com fúria.
"Tudo o que posso dizer agora é que ele é
surpreendentemente poderoso dentro do Vaticano. Ele pode
me esmagar por um capricho. Não tenho nada para atribuir
com certeza a ele, mas tenho o suficiente para chamar a
atenção sobre suas atividades quando eu for a público a
respeito deste assunto. Do que tenho certeza é que não foi a
máfia que assassinou Alberto. Vocês provavelmente podem
adivinhar quem eu acho que seja, e ele não vai parar por aí."
"Há alguma coisa que você possa fazer agora?"
"Acho que estou a salvo aqui, por enquanto. A ilha sagrada
ainda mantém alguma santidade, mesmo entre os novos
félag. Mas a situação toda se tornou muito complexa para
lidarmos com ela sozinhos. A hostilidade sangrenta deve ser
uma coisa do passado. Estamos falando aqui de assassinato,
claro e simples. E se, de alguma forma, eles puserem a mão
sobre a menorá, se ela ainda existe, então o estranho
assassinato parecerá um assunto trivial. O Oriente Médio irá
se inflamar como nunca antes, se o grande símbolo da fé
judaica for acrescentado a tudo isso. Ninguém sairá ileso,
judeus, árabes, a Igreja Católica."
"O senhor tem alguma documentação?"
"Está tudo aqui." O'Connor passou de leve a mão pela pasta
em sua cadeira. "Uma cópia impressa. Não posso confiá-la a
um computador. Loki é a chave. Ele trabalha sozinho, com
horrível rapidez. Seus mestres são os grandes e os bons,
juízes, altos membros da Igreja, políticos. Já estão longe os
dias em que os félag podiam todos vestir capacetes e
empunhar achas-de-armas, por mais que fantasiem sobre
isso. Não há outros como Loki. Se pudermos detê-lo, então
teremos o tempo de que precisamos."
"Interpol."
O'Connor aquiesceu. "Posso me valer de algumas
influências. Temos alguns amigos em altos postos. Uma
autorização para uma captura internacional, um alerta de
segurança global. Mas eu preciso de tempo, pelo menos dois
dias para reunir um dossiê. Seria um horrível tiro pela
culatra se a solicitação fosse rejeitada, a não ser que a história
da busca pela menorá também se tornasse pública."
"Isso nos dá um prazo apertado", disse Jack, pensativo. "Dois
dias ou todos vão começar a se comportar de maneira
descontrolada. Essa é uma meta das mais difíceis."
"Algo me faz confiar em você."
"Deixe-me ajudá-lo, Patrick." Maria inclinou-se para a frente
em sua cadeira, olhando para O'Connor e depois para Jack.
"Acho que fiz tudo o que podia por você no Seaquest II,
Jack. Eu estava pensando em ficar aqui, de todo jeito, e dar
mais uma olhada naquela pedra de runa, ver se há algo que
deixamos passar. Mas isso é mais importante. O padre
O'Connor precisa de toda a ajuda que puder obter."
"Posso me beneficiar de sua ajuda", disse O'Connor. "Nós
trabalhamos bem juntos no passado."
"Você é bem-vinda para ficar conosco, Maria", disse Jack.
"Mais do que bem-vinda. Eu deveria ter deixado isso mais
claro."
"Jeremy pode assumir o papel de expert na expedição",
replicou Maria. "Se ainda há algo mais a ver com vikings e o
Novo Mundo, ele é o nosso homem."
"Ok", disse Jack, uma vacilação ansiosa passou por seu rosto.
"Apenas trate de ter cuidado."

O'Connor tinha uma última coisa para lhes mostrar.
Conduziu Jack e Maria até uma área gramada do lado de fora
em frente à abadia, deixando Costas e Jeremy atrás, no
claustro, para escanear de novo o mapa de Hereford que
tinha acabado de chegar. Através da névoa do começo da
noite que agora envolvia a ilha, Jack vislumbrou os
afloramentos rochosos que surgiam nos arredores, uma
imagem inalterada desde os dias dos vikings. O'Connor os
levou ao longo do pavimento com pedras arredondadas de
Sràid nam Marbh, a Rua dos Mortos, passando por Reilig
Odhráin, o consagrado cemitério dos reis. No caminho, Jack
parou ao lado da grande cruz de pedra de São Martin, sua
forma exposta às intempéries, ainda em pé onde tinha sido
erigida mais de mil anos antes. Pôs a mão sobre a pedra e
sentiu a sinuosidade da serpente esculpida no granito quase
dois séculos antes da batalha de Stamford Bridge, quando os
piratas do norte não eram senão boatos distantes para os
monges da ilha. Ele sentiu um arrepio por estar nas
imediações, a mesma excitação que o possuíra ao ver a
embarcação dentro do gelo. Harald Hardraade passara por
aquele caminho, vira aquela cruz. Jack repentinamente
vislumbrou uma imagem do rei ferido sendo carregado num
esquife para a abadia e os seus seguidores machucados
afastando-se do navio encalhado no canal abaixo. Sentiu que
havia perseguido Hardraade por toda parte, no Chifre de
Ouro, no fiorde gelado, mas nunca se sentiu tão perto dele,
nunca teve tanta certeza de que o rastro à frente os estava
arrastando para seguir o grande rei dentro do desconhecido.
Eles caminharam em silêncio, perdidos em seus próprios
pensamentos, digerindo o que se havia passado antes. Meia
hora mais tarde, alcançaram o lado ocidental da ilha, uma
ampla baía ornada com praias douradas. O'Connor os levou
até uma duna e encontrou um lugar para se sentar, com Jack
e Maria de cada lado. A névoa havia se erguido para revelar
uma longa vista aberta para o oeste, os profundos raios cor
de laranja do pôr do sol assinalando o seu caminho em
direção ao horizonte. O'Connor acendeu um cachimbo,
dando algumas baforadas, depois começou a falar
calmamente.
"Aqui é Carnus Cül an t'Saimh, a baía nas Costas do
Oceano", ele disse. "Depois de dias à beira da morte, eles
trouxeram Harald para este lugar, temerosos de que uma
palavra sobre sua sobrevivência transpirasse para os
normandos. Eles trouxeram seus navios, o Águia e o Lobo, e
empurraram-nos para a praia. Então encheram-nos com
provisões e colocaram Harald em sua liteira no centro do
Lobo. Halfdan, o Destemido, seu companheiro mais antigo,
jazia gravemente ferido aos seus pés, pronto para morrer se
seu rei começasse a declinar."
"Wergild", murmurou Maria. "Um homem podia entregar a
sua vida para Odin para salvar a vida de seu senhor."
"Os monges os ajudaram a puxar as embarcações para o raso.
Aqueles do grupo de Harald que ainda estavam bem e
capazes manejaram os barcos, arrastando os longos remos
através das cavilhas. Os mastros estavam armados e as velas
desfraldadas. Daqui Harald e seus companheiros de remo
navegaram para a história, observados pelos monges de lona
e o pequeno grupo de fiéis que havia ficado para trás para
manter o fogo aceso."
"Para onde foram os navios?" perguntou Maria.
O'Connor fez uma pausa, tirou o cachimbo da boca e
apontou-o em direção ao horizonte ocidental, depois recitou
tranqüilamente de memória:

But now farewell. I am going a long way.
With these thou seêst — if indeed I go —
(For all my mind is clouded with a doubt)
To the island-valley of Avilion;
Where falls not hail, or rain or any snow,
Nor ever wind blows loudly; but it lies
Deep-meadowed, happy, fair with orchard-lawns
And bowery hollows crowned with summer sea,
Where I will heal me of my grievous wound.

So said he, and the barge with oar and sail
Moved from the brink, like some full-breasted swan
That, fluting a wild carol ere her death,
Ruffles her pure cold plume, and takes the flood
With swarthy webs. Long stood Sir Bedivere
Revolving many memories, till the hull
Looked one black dot against the verge of dawn,
And on the mere the wailing died away.

"Tennyson, A morte de Artur", exclamou Jack, sacudindo a
cabeça, maravilhado. "Uma bela visão vitoriana da morte,
mas se o que você diz é verdade, a versão romântica da
lenda de Artur tem tudo a ver com essa situação."
"Substitua Avalon por Vinland e você terá a terra prometida,
o paraíso terrestre", disse O'Connor. "A história da
descoberta do Novo Mundo de Leif Ericsson teria penetrado
na corte de Harald muito antes de sua decisão de invadir a
Inglaterra e teria intrigado um homem tão viajado. Ele
estivera sedentário durante anos, exceto por viagens
guerreiras ocasionais para a Dinamarca e a Suécia, e deve ter
experimentado a sede de correr o mundo. Talvez tivesse
planejado uma expedição através do oceano ocidental
mesmo antes de Stamford Bridge. Ele queria uma última
aventura, uma última grande viagem que o levasse a uma
descoberta, algo que lhe desse a glória de seus dias de
juventude com a guarda varegue. Com sua derrota em
Stamford Bridge, a viagem se tornava imperativa. Os relatos
haviam sugerido uma terra de grande abundância, de viçosos
prados e florestas sem fim para a construção de navios, as
duas coisas que os vikings cobiçavam acima de tudo. E não
havia por que voltar para a Noruega. Seu prestígio ficaria
abalado se ele retornasse vivo, ao passo que a morte lhe
asseguraria seu lugar entre os heróis. O Heimskringla até
registra que seu exército remanescente na Noruega jurou
fidelidade eterna a ele depois que as notícias de sua derrota
chegaram, mesmo quando pensaram que estivesse morto."
"E ele tinha seu tesouro", disse Jack.
"Cofres de tesouros", disse O'Connor. "Certamente não
estavam indo para o Novo Mundo em busca de ouro. Eles já
tinham tanto que nem necessitavam de lastro extra. Moedas
de prata, dezenas de milhares delas, dirhams árabes,
centavos ingleses de Canuto e Ethelred, moedas do império
de Harald e outras. Colares de prata e de ouro, peças de
herança tradicional de seus ancestrais. E todos os saques de
Harald de seus dias com os varegues no Mediterrâneo,
alguns deles derretidos, outros ainda intactos. Relicários
religiosos de valor inestimável e jóias antigas. E, para coroar
tudo isto, o maior tesouro do reino de Harald, o tesouro que
havia sido dignificado por suas façanhas ao escapar de
Constantinopla, que chegara a valer muito mais do que seu
peso em ouro."
"A menorá", murmurou Jack.
"Se Vinland é o local de colonização dos vikings em L'Anse
aux Meadows, em Newfoundland, então fica bem na direção
oeste a partir daqui, a mais de duas mil milhas de mar
aberto", disse Maria. "Assim, o que a nossa embarcação
estava fazendo na baía de Baffin, em Ilulissat?"
"Isto se encontra nas sagas", replicou Jack. "Leif Ericsson
encontrou Vinland navegando primeiro para a costa oeste da
Groenlândia, depois atravessando para Helluland e
Markland. Esses locais correspondem à ilha Baffin e
Labrador, e o ponto de parada na Groenlândia deve ter sido
na baía de Disko, no ponto menos largo do estreito de
Davis. Harald estava seguindo a melhor recomendação
disponível sobre a navegação."
"Isto é o que Künzl deve ter planejado em 1930", disse
O'Connor.
"Então eles enfrentaram o vento em Ilulissat?", perguntou
Maria.
"Provavelmente foram forçados a permanecer na grande
massa de gelo flutuante que obstruía o mar. Devem ter
chegado no outono. A luz ficava escassa e as embarcações
congeladas por causa do líquido pulverizado. Macleod diz
que a neve parcialmente derretida começa a se formar em
outubro, e quando endurece ela pode cortar madeiras como
um serrote. Atravessar o vento deve ter sido árduo, mas eles
eram homens fortes acostumados com coisas difíceis.
Provavelmente alguns dos vikings groenlandeses locais
estavam com eles, habitantes das colônias ao sul,
empregados como guias e caçadores. Eu não ficaria surpreso
de eles terem acampado na mesma baía ao lado do fiorde
gelado onde nos encontramos com Kangia, entre os círculos
de pedra que protegiam a antiga tenda."
"Devia ser especialmente difícil para os feridos", disse Maria.
"Muitos devem ter morrido na viagem e no acampamento.
Na época em que Halfdan morreu, acho que o número deles
estava tão reduzido que foram facilmente capazes de
dispensar uma das embarcações para o sepultamento, o
Lobo, o navio que você viu no gelo. Não havia braços
suficientes para dirigir dois navios."
"Então como a notícia voltou?", perguntou Maria. "Dois
séculos mais tarde, Richard de Holdingham sabia que eles
tinham alcançado Vinland, estava bastante confiante para
desenhá-la em seu mapa. A arqueologia indica que L'Anse
aux Meadows teve vida bastante curta, foi abandonada bem
antes de 1066, então não parece que eles fizessem viagens
regulares para adquirir suprimentos e essas viagens
pudessem ter passado as informações."
"Jack estava certo sobre os groenlandeses", replicou
O'Connor. "Eles tinham simpatia por Harald, um
companheiro norueguês, principalmente quando
perceberam que ele não tinha a intenção de subjugá-los e
permanecer ali. Ele os fez jurar segredo, e a prata que lhes
deu manteve seu comércio com o Velho Mundo próspero
durante as gerações futuras. Sabemos disso porque o félag
enviou uma expedição em busca de Harald, várias gerações
mais tarde. Erik Gnupsson, bispo da Groenlândia e um dos
félag, convenceu seus paroquianos de que ele era um
seguidor leal de Harald, e tomou conhecimento disto que
acabei de contar. Disseram-lhe que Harald prometera deixar
uma indicação do caminho em Vinland se ele e seus
companheiros decidissem navegar para o sul. Devem ter
contado isso para Richard no maior dos segredos, mas nada,
além disso. Erik Gnupsson navegou para Vinland, mas
nunca mais se ouviu falar dele. Não houve outra expedição e
a localização de Vinland ficou perdida para a história.
Mesmo para os groenlandeses ela se tornou uma espécie de
Avalon, uma terra prometida mítica» dirigida pelo antigo e
futuro rei."
"Isto me lembra algo", disse Maria. "A história do rei Artur.
E sua rainha, Guinevere. A menorá não foi a única coisa que
Harald roubou de Constantinopla."
"Ah. Eu estava me perguntando quando você iria perguntar
isso." O'Connor bateu seu cachimbo sobre a areia e sorriu
para ela, seus olhos se encontraram. "A lenda conta que
Harald estava interessado em uma mulher de cabelos curtos,
vestida com uma túnica e calças compridas de homem. A
história nos relata que, anos antes, Harald havia libertado a
princesa e a mandara de volta para Constantinopla depois da
fuga. Mas nós sabemos que sua xará nunca foi seqüestrada,
ela era uma participante voluntária. Foi Maria quem libertou
Harald e seus soldados da guarda varegue da prisão na noite
anterior à fuga deles. Ela ficou com Harald e enfrentou com
ele todas as dificuldades, durante todo o tempo de seu
casamento de conveniência com a princesa Elizabeth de
Kiev, ajudando-o em tudo que era preciso em seu caminho
para a monarquia. Ela o amansou, tornou-se a verdadeira
luz-guia de sua vida. E em sua última tentativa para alcançar
o poder, para conquistar a Inglaterra em 1066, Maria o
acompanhou, até um reino onde ela poderia ao menos ter
assumido seu direito hereditário de princesa. Harald
planejava instalá-la como sua consorte, torná-la rainha da
Inglaterra."
"Harald tinha cinqüenta e um anos em 1066; ela talvez fosse
dez anos mais jovem", disse Maria. "Havia alguma outra
mulher em um dos navios quando eles partiram para
Vinland?"
"Maria era a única."
"Não era o melhor planejamento para estabelecer uma nova
colônia."
"A mentalidade viking", sorriu Jack. "Roube o que precisar
quando chegar ao local. E lembrem-se, era quase certo que
estivessem meio desesperados por causa da dor e da
exaustão, incapazes de pensar direito. Muitos deles
provavelmente acreditaram que estavam indo para o
Valhala."
A órbita do sol começou a mergulhar no oceano, a oeste,
lançando um brilho laranja sobre os leitos de rocha erodida
que se sobressaíam das rampas de cada lado da baía. Olharam
silenciosamente para o mar, absorvendo a irradiação muda
do anoitecer. "Contam que a ilha sagrada é banhada pela luz
brilhante dos anjos", disse O'Connor. "É uma luz que se vê
em lugares como este, onde o céu e a terra parecem se
encontrar, e em lugares onde a crosta da presença humana
tem sido removida até a rocha que está debaixo ficar
exposta. O coração do Fórum em Roma, o monte Sião em
Jerusalém."
"Os dois lugares onde a menorá esteve", disse Maria.
"Foi o que pensei", murmurou O'Connor.
Jack inclinou-se para a frente, os olhos repentinamente
brilhantes enquanto fitava o horizonte. "A menorá esteve
aqui, com Harald, neste mesmo lugar", ele disse. "Desde que
vi Halfdan no gelo, eu sabia que estávamos na pista certa,
quase como se alguma coisa quisesse que fosse assim. Tudo
de que precisamos agora é de algum indício, algo mais
concreto acerca de para onde eles foram depois de deixar o
fiorde gelado."
O'Connor olhou para Jack de modo penetrante, acendendo
seu cachimbo de novo. "Halfdan lhe deu sua sorte-de-
batalha, lembra? Ele passou a chama adiante. De alguma
forma penso que há mais à nossa frente."
Eles estavam começando a se levantar quando Jeremy veio
em sua direção quase aos saltos ao longo da areia, e puderam
ver também a figura corpulenta de Costas a uma certa
distância do jovem. Jeremy parou na frente deles,
ruborizado e excitado, seu entusiasmo de volta com força
total.
"Bem, o que é?", disse Jack amigavelmente. "Alguma outra
coisa que você tem mantido escondida?"
"Não exatamente." Jeremy estava se esforçando para
recuperar o fôlego. "O Mappa Mundi. Enquanto vocês
estavam no iceberg. Eu sabia."
"Acalme-se", disse Jack. "Não se afobe."
Jeremy ficou de joelhos e tirou uma folha enrolada de sua
maleta, depois respirou profundamente várias vezes e
começou a recuperar a calma. "Perdão. Mas esta é a coisa
mais excitante até agora."
"Então?"
"Aquelas horas que passei em minha cabine. Evitando vocês
todos", disse Jeremy desculpando-se. "Bem, eu estava
estudando com atenção a versão digital do mapa que
encontramos em Hereford. O exemplar de Richard, com
resolução de mil e duzentos pontos por polegada. Alguma
coisa estava me incomodando, algo que eu achava que tinha
visto quando Maria e eu desenrolamos o mapa pela primeira
vez no aposento da catedral." "Continue."
"Pedi ao nosso laboratório de imagem em Oxford para fazer
um escaneamento multiespectral. Dêem uma olhada."
Jack pegou a folha e a desenrolou em seu colo. Era uma
imagem ampliada do canto esquerdo inferior do exemplar do
Mappa Mundi, mostrando uma imagem extraordinária de
Vinland e do Novo Mundo que eles examinaram pela
primeira vez na Cornuália alguns dias antes, com uma
inscrição que se referia a Leif Ericsson e outra, a Harald
Hardraade e ao tesouro de Michelgard. Jack de repente
notou o que Jeremy queria dizer. "Há um outro desenho por
baixo!"
"Aqui está ele, isolado e aumentado. Costas me ajudou a
fazê-lo." Jeremy lhe entregou uma outra folha, e Maria e
O'Connor se debruçaram para olhar. Era um traçado linear e
simples, uma profunda forma em U com a linha curvando-se
e voltando-se para trás de cada lado e diminuindo, e dois
círculos irregulares na frente.
"É Vinland!", exclamou Maria. "É exatamente a mesma
imagem que foi superposta no mapa, apenas em uma escala
maior. A forma em U é a baía, e Vinland está assinalada na
cabeça da baía no mapa superposto. Eu estive na colônia
viking em L'Anse aux Meadows, em Newfoundland, no ano
passado. O sítio arqueológico situa-se na cabeça da baía,
exatamente onde Vinland está assinalada aqui, e estes são os
promontórios que se estendem de cada lado até o estreito de
Belle Isle. Aqueles círculos são as ilhotas da costa. Pequena
Ilha Sagrada e Grande Ilha Sagrada. Elas deviam representar
sinais cruciais para os vikings."
"Isto é que é tão fantástico", disse Jeremy.
"O que você quer dizer?", perguntou Jack.
"Dê uma boa olhada na ilha maior." Jeremy lhe estendeu
uma lente de aumento. "Ali, onde parece haver um borrão."
Jack deslocou o desenho para o lado e olhou de novo para a
imagem escaneada. "Posso ver o sinal de uma cruz,
definitivamente trata-se de uma cruz", murmurou Jack. "E
essa mancha ao lado. São letras?"
"Runas."
A excitação de Jack crescia. "Tradução?"
"Há duas linhas", disse Jeremy. "Mesmo com a imagem
ampliada mal consigo lê-las, mas tenho quase certeza. A
primeira linha diz Haraldi konungi, Harald o rei. A segunda
linha tem duas palavras, ouro e Michelgard, o ouro de
Michelgard. Trata-se de Constantinopla, é claro."
"Bom Deus."
"Richard de Holdingham deve ter feito este esboço ao
começar, mas depois pensou melhor. O desenho é muito
exato, revela muitas coisas. Então, ele o riscou e desenhou
um mapa genérico mostrando Vinland, com a inscrição de
Leif Ericsson. Depois pensou de novo e, apesar de tudo,
decidiu acrescentar uma referência a Harald Hardraade, a de
que ele havia estado nesses lugares com o tesouro de
Michelgard."
"O primeiro croqui está nos contando algo", murmurou Jack.
"Está nos contando algo incrivelmente preciso."
"A cruz marca o local." O'Connor sorriu abertamente, pela
primeira vez desde que o conheciam. "Isto subitamente faz
tudo valer a pena."
Costas surgiu de repente saindo de trás de uma duna,
parecendo ligeiramente agitado depois de sua marcha a
passos largos pela ilha. "O helicóptero voltou", ele ofegava
quando se juntou aos companheiros. "Macleod quer saber
se vocês vão retornar ao Seaquest II ou voltar para Istambul.
Estão parados na baía de Disko aguardando instruções. Eles
estão programados para navegar para o norte e prosseguir
com as pesquisas na extremidade da calota polar, e alguns
cientistas estão nitidamente ansiosos para partir." Costas
subitamente percebeu a folha de papel no colo de Jack e
ajoelhou-se para olhar mais de perto. "Um mapa do tesouro.
É o meu favorito. Onde ele está?"
Jack olhou para Costas com um brilho familiar nos olhos, e
depois apontou o dedo para a órbita incandescente cor de
laranja no horizonte.
"Em direção a oeste, cerca de duas mil e trezentas milhas.
Você pode dizer a Macleod para desenterrar uma cópia de
Sagas de Vinland que deixei com ele. Lá se encontra como
estabelecer uma rota para Vinland."
O'Connor levantou-se. "Parece que está na hora de vocês
irem embora, não é?" Ele apertou a mão de Jack. "Não sei
aonde meu caminho irá me conduzir", ele disse. "Faça
apenas uma coisa por mim, pode ser, Jack?"
"Pode dizer."
"Descubra o que aconteceu com a menorá."
Jack sorriu e colocou a outra mão sobre o ombro de
O'Connor. "Faremos o melhor que pudermos. As coisas
estão indo muito bem desde que Halfdan emprestou-me sua
acha. Acho que essas descobertas podem ter sido um pouco
por conta da sorte-de-batalha." Subitamente Jack tornou-se
muito sério. "E você deve tomar o maior cuidado."


14

Trinta e seis horas mais tarde, Jack estava deitado em uma
escuridão de breu no chão de terra do outro lado do
Atlântico, protegido em um saco de dormir e separado da
umidade por um isolante térmico. Deslocou suas roupas
enroladas, à guisa de travesseiro, para uma posição mais
confortável e olhou para dentro da escuridão. Ao seu lado,
Costas roncava sonoramente, e ele podia ouvir um sussurro
ocasional de Jeremy perto de seus pés. Ele havia aproveitado
a oportunidade para passar a noite em uma pousada viking
reconstruída, uma estrutura de paredes grossas, com a forma
de um bloco, feita inteiramente com terra e uma camada de
cobertura de torrões de turfa, no mesmo local onde Leif
Ericsson e seu grupo de aventureiros nórdicos ergueram seu
primeiro abrigo rústico nas costas da América do Norte, mil
anos antes. Mas para Jack foi uma noite agitada, repleta de
sonhos mal-definidos. Sua mente ainda estava cheia do
relato extraordinário que O'Connor lhes fizera em Iona, no
dia anterior, de uma sociedade secreta que havia existido
durante séculos e viera associar-se com o pior horror dos
tempos modernos. Cada vez que Jack adormecia, as mesmas
imagens penetravam em sua mente, deuses-lobos mostrando
os dentes e águias girando, os sete braços do candelabro e a
pavorosa suástica, imagens que não pareciam mais ser
fragmentos deslocados da história, mas que se entrelaçavam
para contar uma história cheia de potência e perigo.
Jack acordou com uma caneca fumegante de café perto de
seu rosto. Costas lhe deu um pontapé gentil e inclinou o
rosto não barbeado para o amigo. "Saia da cama", ele disse
alegremente. "Nós só conseguimos este lugar para o período
da manhã. O pessoal do Parks Canadá precisa abri-lo para
um grupo de turistas ao meio-dia."
Jack resmungou e levantou-se rapidamente, colocando os
jeans, o suéter azul de pescador e amarrando as botas.
Vacilou enquanto esfregava o ferimento na coxa, sua
herança do iceberg. Com a entrada da luz do sol através da
abertura baixa, ele podia ver Jeremy enrolando o isolante
térmico e o saco de dormir. Haviam chegado na noite
anterior quando já estava escuro, e pela primeira vez Jack
podia apreciar as dimensões do seu alojamento: alongado e
baixo, construído inteiramente de terra com torrões de turfa
em cima de uma estrutura de madeira, com chão de barro
batido e telhado coberto de piche. Jack avaliou que a
construção poderia ter acomodado vinte ou trinta pessoas,
vários grupos familiares aglomerados ao redor de núcleos
igualmente espaçados ao longo do aposento. Devia ter sido
um lugar úmido, escuro, fétido e sem distinção de classe
social durante os longos meses de inverno. Ele podia
compreender por que os vikings sempre ansiavam pelo ar
livre e o mar, durante os meses de verão, conduzindo seus
rebanhos e embarcando em longas viagens de pirataria e
exploração.
Jack tomou o café e saiu pela entrada para o mundo exterior,
piscando ao encontrar a luminosidade da manhã ensolarada.
Na grama, a pouca distância, estava o helicóptero Sea King
branco e vermelho da Guarda Costeira Canadense, um
Sikorsky S-61N que os havia trazido para a remota península
norte de Newfoundland, na baía de Goose, em Labrador, o
campo de aviação mais próximo onde o jato Embraer da
IMU conseguira aterrissar. Jack virou-se de costas para o
helicóptero e olhou ao seu redor. A construção comprida
era uma de três edificações cobertas com torrões de turfa
reconstruídas ao lado da colônia viking original, a poucos
metros do prado onde as três habitações comunais e uma
oficina de ferreiro primitiva tinham sido desenterradas por
arqueólogos noruegueses que haviam descoberto o local em
1960. Eles tinham encontrado apenas baixas saliências
estreitas e compridas onde antes havia paredes de torrões de
turfa, marcas antigas de buracos de postes e covas de fogo e
um punhado escasso de artefatos, mas era o suficiente para
provar conclusivamente que os vikings tinham estado ali.
Jack olhou através do viçoso pasto até o litoral, e, além, para
as ilhotas rochosas com sua vegetação esparsa defronte do
horizonte norte. O local não tinha nenhum dos esplendores
de uma antiga sepultura ou uma cidade perdida, mas havia
sido uma das maiores descobertas de todos os tempos, uma
prova irrefutável de que aventureiros do Velho Mundo
tinham visitado a América quinhentos anos antes de
Cristóvão Colombo. Era a primeira colônia européia
conhecida na América do Norte além da Groenlândia, o
primeiro lugar onde haviam fundido ferro no Novo Mundo.
E agora Jack sabia que eles estavam habilitados a abrir um
capítulo inteiramente novo na história do local, um episódio
que nem poderia ter sido sonhado antes da descoberta do
Mappa Mundi. Quando terminou o café, sentiu a escuridão
da noite ir embora e começou a tremer de excitação.
"É difícil acreditar que Iona fica a mais de duas mil milhas
em direção ao leste." Jeremy apareceu com os cabelos
desgrenhados através da porta de entrada da habitação e
parou ao lado de Jack esfregando os olhos e segurando um
café. "Mas aqui parece inalterado, não é? Este deve ter sido
um terreno familiar para os vikings."
"Isto deve ser uma casa de turfa até para você", disse Jack
com malícia no olhar.
"Minha mãe era canadense, da Nova Escócia", replicou
Jeremy. "Visitar este local quando era criança foi o que me
inspirou a estudar arqueologia nórdica. É espantoso como
são poucas as pessoas que visitam este lugar, muito embora
seja classificado como Patrimônio Mundial da UNESCO.
Leia alguns livros de história e você ainda ficará pensando
que o envolvimento com a América do Norte começou com
John Cabot em 1497."
"Mas os vikings não ficavam no mesmo lugar por muito
tempo." Costas havia escutado as palavras de Jeremy,
enquanto juntava os sacos de dormir fora da habitação, e
veio juntar-se a eles. "Eu achava que L'Anse aux Meadows
fosse mais um posto avançado, um acampamento sazonal."
Jeremy aquiesceu. "Se nos restringirmos apenas à
arqueologia, este local foi ocupado no máximo durante
poucas estações, depois, talvez, visitado esporadicamente
alguns anos mais tarde. As três habitações comunais podem
ter acomodado acima de cem pessoas, então, talvez tenha
havido uma tentativa de estabelecer uma colônia
permanente. Havia mulheres aqui também, e animais
domésticos. Mas isto não durou. Estamos falando de algo em
torno do ano 1000 d.C., talvez um pouco mais tarde. A
Islândia foi colonizada a partir da Noruega perto do final do
século IX, a Groenlândia por Erik, o Ruivo, cerca de um
século mais tarde, então, provavelmente, foi daí que os
colonizadores vieram. O estilo de casa feita com torrões de
turfa é típico da Islândia e da Groenlândia daquele período.
Leif Ericsson era o filho de Erik, o Ruivo, como o nome
indica."
"Eles provavelmente estavam testando os limites de seu
mundo", refletiu Jack. "Os fenícios fizeram o mesmo. Os
postos avançados mais distantes dos fenícios datam dos
períodos mais iniciais de exploração e todos tinham vida
curta. Mogador no oeste da África, Cornuália na Grã-
Bretanha. Um potencial atraente de comércio, mas bastante
distante e vulnerável demais para durar muito tempo. Parece
que aqui a história se repete."
"Esse é um bom modelo", disse Jeremy passando a mão
pelos cabelos. "As escavações feitas aqui nos anos 1970
revelaram muitas evidências de trabalho em madeira, para
preparação de cepos e pranchas adequados para a construção
de navios. É um pouco difícil de imaginar agora, mas havia
densas florestas de árvores que perdiam as folhas no inverno
e se erguiam eretas nos prados. Isto devia parecer uma mina
de ouro para os islandeses e groenlandeses, que não tinham
florestas próprias e precisavam importar madeiras grandes da
Escandinávia. Eles reparavam seus navios aqui e podem até
ter construído novas embarcações, mas a maior parte da
madeira era provavelmente enviada para a Groenlândia e a
Islândia."
"Estou perplexo", disse Costas. "Com toda aquela madeira,
mais a grande pastagem e a pesca, por que eles não
estabeleceram uma colônia permanente?"
"Scraelings", disse Jack.
"Quem?"
"O nome nórdico para as pessoas nativas, os índios",
replicou Jeremy. "Significa patifes, e isso explica a atitude
viking. Havia uma população bastante grande em
Newfoundland naquela época, e suas canoas de guerra, arcos
e flechas faziam que eles fossem mais do que um simples
jogo para os vikings. A arqueologia não nos fornece muita
informação, mas as sagas nos contam histórias hediondas.
Quando Leif Ericsson chegou pela primeira vez, as relações
com os nativos podem ter sido tensas desde o princípio.
Logo ocorreram confrontações, choques violentos. O
assassinato ocasional de um lado ou de outro pode ter se
transformado em guerra total, com mais grupos distantes
juntando-se aos nativos e os vikings sendo logo dominados
pela pura força de um contingente maior de inimigos. Eles
provavelmente tinham de centralizar toda a sua energia para
proteger este local, para construir uma paliçada de madeira
ao redor de suas habitações. Seria impossível cuidar de
animais domésticos, ou mesmo caçar e pescar, e, com seu
estado de saúde enfraquecido, a defesa teria sido mais
importante. Eles seriam incapazes de derrubar as árvores e
preparar a madeira para mandar de volta à pátria, que era o
principal motivo pelo qual estavam aqui. As sagas nos
contam que Thorvold, o irmão de Leif, foi morto por uma
flecha, e isso pode ter sido o sinal para pôr fim à colônia."
"Isso se parece com a história dos colonos puritanos na
América, em Jamestown", disse Jack. "Confinados por
nativos hostis, torturados por doenças e fome."
"Há uma história ainda mais tenebrosa", Jeremy tirou uma
brochura usada de seu bolso. "Estas são as Sagas de Vinland,
passadas de boca em boca e finalmente escritas na Islândia
no século XIII. Elas são difíceis de ser lidas como história,
são algumas vezes contraditórias e confusas, mas a
descoberta deste local prova que se baseiam em viagens
reais. De acordo com as Sagas groenlandesas, um outro
escrito de Erik, o Ruivo, sua irmã Freydis organizou uma
expedição para Leifsbúõir, 'Casas de Leif', o nome que eles
davam à colônia Vinland. Era formada por dois navios: um
com cerca de trinta groenlandeses, o outro com mais ou
menos o mesmo número de islandeses. Assim que
desembarcaram, houve algum tipo de disputa, talvez
envolvendo mulheres, alguma hostilidade profundamente
enraizada, que levou Freydis e os groenlandeses a lutar com
furor frenético e assassinar todos os islandeses com uma
violência medonha. A própria Freydis assassinou as cinco
mulheres islandesas, e provavelmente seus filhos também.
Se isso realmente aconteceu, esse feito sombrio com certeza
ocorreu à noite, dentro de uma dessas casas comunais."
"Hostilidade sangrenta", murmurou Jack lembrando de seu
sono perturbado. "Espero que esta não seja a herança mais
permanente dos vikings."
"Temos datas confiáveis para quaisquer desses
acontecimentos?" perguntou Costas.
"As datas fornecidas por carbono 14 parecem corretas para a
fundação da colônia, em torno de 1000 d.C., sendo que a
outra expedição contada nas sagas ocorreu mais ou menos
durante os quinze anos seguintes. A expedição de Freydis
pode ter sido a última."
"Até Harald Hardraade."
"É isto que vamos descobrir aqui." Jack esfregou as mãos
diante da expectativa, e olhou para o mapa compacto que
Jeremy tinha colocado ao lado de sua maleta. "Chegou o
momento de olharmos para aquele mapa de novo."

Vinte minutos mais tarde, eles estavam parados na praia, a
poucas centenas de metros do sítio arqueológico. Atrás deles
ficava a suave ondulação dos prados que cercavam a colônia
viking, e de cada lado a costa fazia curvas ao redor dos
campos baixos invadidos pela maré da baía. Ao lado deles,
dois tripulantes da Guarda Costeira Canadense estavam
preparando uma leve embarcação inflável Zodiac que
haviam trazido do helicóptero. Jack protegeu os olhos e
fitou o mar. A luz era transparente, com a claridade que eles
tinham visto no fiorde gelado, e a brisa trazia consigo um
resquício de ar frio que emanava do gelo, ao norte, mesmo
em junho. Por um instante, Jack se pegou pensando no
iceberg, distante no fiorde, perguntando-se se ele havia
finalmente derretido em algum lugar perto dessas costas e
colocado Halfdan para descansar na trilha de seus
companheiros. Afastou o pensamento e o focalizou sobre a
massa rochosa baixa que era visível a alguns quilômetros da
praia.
"A Grande Ilha Sagrada", ele murmurou. "Por causa dela
viemos para cá."
"Não há dúvida sobre a identificação." Jeremy estava
segurando uma cópia do croqui feito por Richard de
Holdingham e comparando-o com a fotocópia do mapa do
almirantado local. "Pelo que Maria me ensinou, Richard era
um estudioso esmerado e teria transcrito o mapa tão
precisamente quanto podia, copiando-o, provavelmente, de
um croqui original que de alguma forma chegou até ele
vindo da Groenlândia." Subitamente deixou o croqui de lado
e correu até uma elevação próxima, onde uma nuvem de
vapor subia de um pequeno fogão de acampamento.
"Então, o que exatamente estamos procurando?", perguntou
Costas. "Cerâmica, moedas, a estranha acha enferrujada?"
Jack sorriu para o amigo. "Nada disso. Oito anos de
escavações em L'Anse aux Meadows nos anos 1960 deram
como resultado exatamente quatro artefatos nórdicos. Um
pino de bronze, uma lâmpada a óleo de pedra, uma rosca em
espiral e um fragmento de metal dourado. E isto em uma
comunidade que deveria ter cerca de cem pessoas e ficou
aqui durante vários anos. Os nórdicos pegavam o que
deixavam cair e não jogavam nada fora. Se Harald Hardraade
decidiu deixar algo, podemos encontrá-lo. Senão,
certamente não acharemos nada."
Jeremy veio andando com cuidado pela grama carregando
duas tigelas de madeira e colheres e as deu para Jack e
Costas. "Eu mesmo as esculpi quando era criança", disse
orgulhosamente. "São cópias exatas de tigelas nórdicas da
Groenlândia. E o que há dentro delas também é autêntico."
Costas examinou com suspeita a massa grossa em sua tigela e
a remexeu com a colher. "Parece bem velha", ele disse. "E
cheira a resina de usina. Isto é comida?"
"É minha própria receita." Jeremy fingiu ignorá-lo. "Baseada
na análise dos locais de lixo dos nórdicos. Farinha grossa de
cevada, amendoim e casca de pinheiro. Uma espécie de
mingau. É muito bom, na verdade."
"Onde está o seu?"
"Não dá para esperar. Comam já."
"Muito bem." Costas cheirou sua colher e deu uma lambida
para experimentar. "Deus todo-poderoso. Uma gororoba, é
tudo o que se pode dizer."
"Isso é tudo que vão conseguir. A experiência viking
completa. A comida moderna não é permitida em L'Anse
aux Meadows."
Costas resmungou, e Jeremy voltou-se para Jack, que havia
rapidamente terminado o que tinha na tigela e estava de
novo olhando para o mapa.
"Este era o lugar sem volta", disse Jack. "Se de fato vieram
até este lugar distante, nenhum dos homens de Harald
voltou vivo para casa. Tinham uma passagem só de ida para
o fim do mundo."
"E os seus guias?" perguntou Costas de boca cheia, lançando
um olhar maldoso sobre Jeremy.
"Duvido que algum dos groenlandeses tenha acompanhado
Harald até aqui", replicou Jack. "Sem uma embarcação de
sobra, depois do sepultamento de Halfdan, eles não teriam
como retornar, e mesmo em Ilulissat precisariam esperar
para ser resgatados pelos caçadores nórdicos e pescadores
que iam até Norõrseta no verão."
"Ajudem-me a lembrar", disse Costas. "Nós estamos aqui por
causa do mapa e da descrição de Vinland fazendo referência
a Harald Hardraade no Mappa Mundi. Como a informação
de que Harald esteve aqui voltou para a Inglaterra, para os
félag e Richard de Holdingham tantos anos mais tarde?"
"Pelo que O'Connor estava nos contando, aquele bispo que
veio para a Groenlândia no início do século XII, e que era
membro do félag, deu um jeito de persuadir os nórdicos
locais a relatar a expedição de Harald. Os guias que voltaram
do fiorde gelado para a colônia ocidental na Groenlândia
devem ter contado sobre a partida de Harald para Vinland, e
a historia provavelmente passou de geração a geração. Se a
historia da Islândia é algo a ser contado, os groenlandeses
devem ter uma rica tradição de sagas, algumas delas
transmitidas de maneira secreta. Nenhuma das sagas
sobreviveu ao misterioso desaparecimento dos
groenlandeses poucos séculos mais tarde."
"E aquela cruz no mapa, o xis que marca o local?", quis saber
Costas. "Se aquele sinal realmente marca algo ali, como os
groenlandeses ficaram sabendo?"
"É fácil", disse Jeremy. "Os nórdicos deixavam marcas nos
caminhos, indicações para a navegação. Elas eram essenciais
para retraçar as viagens em uma área tão grande e tão pouco
explorada. Alguns dos montes de pedras ao redor da baía de
Baffin, atribuídos aos inuit, podem de fato ter sido erguidos
pelos nórdicos. As Sagas groenlandesas até nos contam
como Thorvold, aquele que foi morto pelos índios, ergueu
uma quilha de navio como um marco, em um promontório,
em algum lugar na direção nordeste daqui. Ele se tornou
conhecido como Kjalarnes, o cabo da Quilha."
"Então você está sugerindo que a Grande Ilha Sagrada era
um marco conhecido."
"Acho que ela era mais do que isto", disse Jack. "Porque o
fato de a ilha estar destacada de maneira tão precisa no mapa
sugere algo mais, algo estreitamente associado com o
progresso de Harald. Isto é apenas uma suposição, mas eu
imagino que Harald prometeu aos guias groenlandeses, antes
de deixar Ilulissat, que deixaria algum marco assinalando seu
progresso. Um lugar óbvio para os groenlandeses sugerirem
era o seu próprio marco de navegação para Leifsbúôir, na
Grande Ilha Sagrada, um local que Harald poderia facilmente
encontrar. Os groenlandeses podem nunca se ter aventurado
até aqui para descobrir se ele o havia feito mesmo, mas a
memória da promessa de Harald sobrevivia."
"Vamos ver se o marco está esperando por nós, então."
Costas deu para Jeremy a tigela vazia, depois fez um gesto
em direção à mochila. "Você tem um pouco de licor de mel
ou cerveja para fazer essa coisa descer?"
"Receio que você esteja sem sorte. Mas o que consegui é
também autêntico. É uma espécie de iogurte líquido
fermentado, feito de leite de vaca e que eles deixam em
tonel aberto durante algumas semanas. É melhor quando
servido quente. Se você me der um minuto com o fogão..."
Costas já estava a meio caminho da praia, deixando para trás
o seu pedido e erguendo as mãos defensivamente. Jack
sorriu para Jeremy e moveu a cabeça em direção ao Zodiac.
"Acho que o café-da-manhã terminou." Alguns momentos
mais tarde, eles estavam fechando os zíperes de seus trajes
de sobrevivência e vestindo os coletes salva-vidas que lhes
haviam sido entregues por Costas para a viagem. Ajudaram a
empurrar o barco até um ponto e depois pularam para
dentro, sentando-se nos pontões enquanto um dos
tripulantes acionava a manivela na parte externa do barco.
Enquanto se movimentavam vagarosamente através da baía,
eles se voltaram e observaram a linha da costa afastando-se.
"A maré está alta", Jeremy gritou acima do barulho do
motor. "Quando ela está baixando, toda esta baía se torna
terra seca. Os vikings pegavam salmão colocando armadilhas
na maré baixa, depois voltavam na maré alta seguinte. Os
homens de Harald não tiveram problemas para estocar
alimento."
O tripulante acelerou quando deixaram a baía, e eles saíram
do lugar raso e transparente para o resplendor verde-escuro
do mar aberto. A sua frente, a ilha ficou subitamente
iluminada por um feixe brilhante de luz do sol que saía de
uma abertura entre as nuvens que começavam a encher o
céu.
"Um fragmento de Mjollnir" disse Jeremy. O que?
"Os nórdicos acreditavam que raios e feixes de luz eram
fragmentos arremessados de Mjollnir. O martelo de Thor",
gritou Jeremy. "É em geral um bom presságio."
"Não conte mais nenhum agouro nórdico", replicou Costas.
"Estou começando a sonhar com cachorros-lobos e águias de
sangue."
"Não se preocupe." Jack sorriu para Costas através dos
borrifos. "Você vai superar isto. E logo terá os pés de novo
apoiados firmemente sobre o solo."


15

Vinte minutos mais tarde, eles estavam parados no lado
protegido contra o vento na Grande Ilha Sagrada, no pico
mais ao norte de Newfoundland, despindo os trajes de
sobrevivência que deixaram com o tripulante ao lado do
Zodiac. A ilha adiante deles tinha cerca de um quilômetro
de comprimento e meio de largura, e era formada de
afloramentos rochosos intercalados com áreas de lamaçal e
prados. Em vários pontos ela se erguia em cumes baixos que
Jack estava inspecionando com um binóculo leve.
"Meu esporte favorito", Costas suspirou alegremente, e deu
um chute com suas botas de marcha. "Uma caça ao tesouro."
"Não há equipamentos sofisticados desta vez." Jack abaixou
os óculos e olhou para Costas enquanto amarrava as botas.
"O terreno é inútil para um estudo de geofísica, e aquilo que
estamos procurando provavelmente não vai se mostrar. De
todo jeito é a única maneira pela qual sempre encontrei um
tesouro."
"Então, o que estamos procurando?"
"Algo no ponto mais alto, ou um ponto proeminente do lado
do mar. Mas a sua sugestão é melhor que a minha. Um
monte de pedras erigido como um marco, ou camadas de
pedras dispostas no chão de maneira muito regular e que
podem ser de uma pilha que se desmanchou. Mas, se for um
marco de madeira como aquela quilha descrita na saga, então
provavelmente estamos sem sorte."
Os três se espalharam por uma área de cerca de vinte metros
e começaram a subir para o centro da ilha, Jack no meio dos
dois. O terreno não era difícil de atravessar, mas tratava-se
de uma mistura desagradável de rochas e de terra
encharcada que os fez lembrar sua caminhada através de
lona poucos dias antes. Depois de escalar a primeira pequena
elevação, Costas parou subitamente e olhou para o chão.
Jack percebeu seu movimento e correu até ele. "Conseguiu
algo?"
"É sobre os vikings de Harald."
"Continue." Jack relaxou e olhou cheio de expectativa para
Costas.
"Nenhuma mulher. Quero dizer, além da dama de Harald, e
ela obviamente era proibida aos outros".
"Maria disse isso. Mas lembre que eles não estavam
planejando estabelecer uma colônia. De acordo com seus
propósitos, estavam indo de uma batalha para outra, para sua
derradeira prova final. Se encontrassem algo no caminho,
ótimo, se não, eles tinham um objetivo maior. Além do
mais, dificilmente estariam em boas condições físicas e
mentais."
"Você está preocupado com ela?" perguntou Costas. "Maria,
quero dizer?"
Jack ficou em silêncio por um instante, depois replicou. "Ela
sabe cuidar de si. É O'Connor que está na linha de fogo."
Duas horas mais tarde, eles tinham percorrido a ilha toda e
não haviam encontrado nada. Jack perdera de vista os outros
dois e encontrou-se vagando ao longo da costa rochosa no
lado oeste da ilha. Começava a sentir-se deslocado, e a
lembrança de seus sonhos perturbados da noite anterior
estava passando por sua mente. Pela primeira vez ele se
perguntou seriamente se tinham chegado ao final de sua
trilha. Para os arqueólogos que haviam seguido os vikings
antes, este local desolado açoitado pelos ventos fora um
cenário de triunfo, de euforia, que fazia até os minúsculos
fragmentos de resíduos nórdicos em L'Anse aux Mcadows
parecerem tão excitantes como o tesouro do rei
Tutankhamon. No entanto, a trilha havia terminado. Nada
conclusivo fora encontrado mais para o oeste ou para o sul,
nenhuma evidência de exploração ou de colônia viking.
Jack agachou-se na praia, encontrou um seixo achatado e
atirou-o longe para dentro do mar, observando os respingos
até desaparecerem. Talvez este fosse realmente o fim do
mundo nórdico, o marco de delimitação da vida após a
morte. Quem sabe fora aqui que encontraram sua batalha
mística no fim dos tempos, seu Ragnarok. Desde Iona, Jack
sentira uma extraordinária afinidade com Harald Hardraade,
como se este fosse seu companheiro espiritual, presente do
outro lado da linha divisória. Maria lhe contara que os
nórdicos acreditavam que aqueles que sentiam sede de
correr o mundo seguiam os atalhos deixados por seus
ancestrais, por seus companheiros espirituais, e Jack
começava a experimentar a sensação de estar sendo
arrastado por esta outra presença. Agora, subitamente,
sentia-se abandonado na ilha deserta, girando em um
nevoeiro de incerteza, sem nenhuma pista para seguir de
imediato.
Talvez isto fosse exatamente o que o próprio Harald sentira
neste ponto. Jack pensou de novo no mapa, no navio dentro
do gelo, na grande acha de Halfdan. Não era tudo fantasia.
Isto realmente acontecera. Devia haver algo mais ali. Ele
pressionou a mão contra a rocha sólida da ilha, desejando
desistir de seus segredos. Lembrou de novo da acha. "A
sorte-de-batalha", sussurrou para si mesmo. Depois se
levantou e andou a passos largos resolutamente de volta para
os cumes baixos da ilha, percebendo os outros dois juntos
em uma placa de rocha que descia em direção à praia leste.
Jack os alcançou em poucos minutos, depois lhes passou sua
garrafa de água antes de ele mesmo tomar um gole. "Temos
uma hora antes que comece a maré cheia e devemos ir
embora. Alguma sugestão?"
"Acabei de dizer para Costas", disse Jeremy. "Há algo me
incomodando. Algo a respeito daquele mapa." O jovem tirou
o mapa de Richard de Holdingham e colocou-o sobre a
rocha, depois se sentou e ficou olhando para ele com as
mãos entrelaçadas acima da cabeça. Subitamente deu um
pulo. "Tenho sido um estúpido", exclamou. "O que eu disse
sobre Richard, como ele era meticuloso. Olhe atentamente
para este croqui. Não é uma cruz, um xis. Isto é o símbolo
do martelo de Thor, a haste com os dois braços formando
uma ponta no topo."
"Legal", disse Costas com o rosto inexpressivo. "Mas no que
isso nos ajuda?"
"Vamos supor que eles encontraram uma rocha com aquela
forma, e colocaram seu monte de pedras ali. Talvez não
fosse o melhor local para um sinal de advertência, mas isto é
exatamente o que um nórdico teria feito. Seria uma afronta
para Thor ignorá-lo."
"Acabo de encontrá-lo", exclamou Costas de repente.
"Dêem uma olhada ao redor de seus pés."
Os três olharam para baixo e perceberam que a placa sobre a
qual estavam em pé possuía uma regularidade peculiar em
sua forma. Eles não a teriam notado sem algum tipo de
sugestão, mas quando andaram ao redor dela puderam ver
em um dos ângulos uma clara semelhança com o símbolo do
martelo de Thor.
"Muito bem", disse Jeremy, excitado. "O que temos depois
dessa marcação são provavelmente runas. Olhem debaixo de
quaisquer saliências que puderem encontrar, em qualquer
lugar abrigado."
Ele pulou para um dos lados da placa e começou a trabalhar
ao longo da extremidade, examinando a superfície gasta do
granito com muito cuidado. Depois de apenas alguns
segundos, inclinou-se debaixo de uma saliência e ouviu-se
um grito abafado de alegria. Jack pulou para perto dele, e
Jeremy pegou sua mão e pressionou-a contra o lado inferior
da placa. "Você pode senti-la?"
Jack movimentou as mãos sobre a rocha bruta e úmida e
começou a sentir depressões lineares interligadas, como
linhas escavadas. "Sim!"
"Você tem uma lanterna?"
Costas chegou até onde eles estavam e pôs uma mini-
lanterna Maglite nas mãos de Jeremy. Ele se agachou
debaixo da saliência e iluminou a rocha. "Duas runas", ele
disse. "Uma é a terceira runa do futhark o som TH. Com
apenas duas runas aqui, sugiro que não estamos olhando para
as letras de uma palavra, e sim para o significado simbólico
da runa, que neste caso é águia."
"Águia", disse Jack, excitado. "Será que isso significa o navio
de Harald?"
"A segunda se liga a ela", disse Jeremy. "É melhor você dar
uma olhada." Ele se ergueu e passou a lanterna para Jack, que
se agachou e tomou o lugar de Jeremy debaixo da rocha.
Jack iluminou direto para cima e viu os sete braços, símbolo
da menorá. Fitou a rocha como se estivesse paralisado, quase
sem respirar. Mal podia acreditar no que via. O próprio
Harald Hardraade devia ter estado nesse mesmo lugar,
olhando para as marcas que seus homens haviam feito,
talvez a última pessoa que as tinha visto até agora. A rocha
escavada com as antigas inscrições rúnicas parecia-se com a
superfície das pedras esculpidas que Jack vira dois dias antes
em lona, embora ele tivesse visto o símbolo da menorá
esculpido em pedra apenas no Arco de Tito, em Roma. A
imagem que olhava agora parecia desafiar todos os
parâmetros convencionais da história. Era incrível. Ele tinha
que piscar com força para lembrar-se de que estava a
milhares de milhas longe de lona e de Roma, do outro lado
do Atlântico.
Quando Jack saiu de debaixo da rocha, mostrava um amplo
sorriso, e bateu nas costas de Jeremy enquanto lhe apertava
a mão. "Isto está indo muito bem", ele disse. "Muito bem
mesmo. Congratulações, Jeremy."
"O que as runas significam?", perguntou Costas.
"O Águia, o navio de Harald, mais o símbolo de seu
tesouro", replicou Jack.
"Harald esteve aqui."
"Algo assim."
"Então isso realmente aconteceu." Jeremy deixou-se cair na
grama ao lado da rocha, exultante, mas esgotado. "Isto
reescreve completamente os livros de história. Vinland não
era apenas um obscuro posto avançado, mas um lugar
visitado pelo maior dos reis da era viking."
"E ele foi além", murmurou Jack.
"O que aconteceu aqui?" indagou Costas observando
atentamente, de mau humor, a praia baixa que estava
começando a ficar enlameada com a chuva. "Quero dizer, se
este lugar esquecido por Deus era um verdadeiro paraíso
para os nórdicos, por que Harald não ficou aqui?"
"Os nórdicos acreditavam piamente no mundo dos espíritos"
disse Jeremy. "A barreira entre o mundo deles e o mundo
dos espíritos era porosa, facilmente violada. O deus-lobo, o
deus-águia, o malvado deus Loki, qualquer um deles podia
aparecer no mundo real com vários disfarces visíveis apenas
para aqueles com seid, uma espécie de segunda visão. Os
espíritos da morte podiam assombrar um local. Talvez
Harald e seus homens tenham sentido uma presença
maligna quando chegaram aqui."
"Não é preciso ter uma segunda visão", disse Costas. "Mesmo
depois de meio século ainda devia haver todos os esqueletos,
sobretudo se eles ficaram presos dentro das habitações
comunais."
"Os homens de Harald provavelmente se sentiram
compelidos a reunir os ossos e cremá-los, e depois queimar e
enterrar tudo que pudessem", disse Jeremy. "E estas runas
possivelmente têm um significado duplo, uma magia
protetora para manter os espíritos deste lugar na baía, e
defender Harald e seus homens do que havia adiante. Elas
eram um feitiço rúnico, uma galdrastafir" Ele se levantou e
procurou debaixo da saliência passando os dedos sobre as
linhas escavadas na rocha. "Uma runa pode ser o bico da
águia, uma outra o dente de um lobo, uma terceira o martelo
de Thor."
"E uma pode ser a menorá", acrescentou Jack baixinho.
"Quanto mais a vejo, mais acredito que a menorá se tornou a
própria runa de Harald, não apenas um símbolo de sua
proeza e realização, mas também uma espécie de talismã,
algo relacionado com o seu próprio destino."
"Sua sobrevivência em Stamford Bridge poderia se parecer
um pouco com um pequeno milagre", disse Jack, "Como um
guerreiro viking, Harald teria esperado por uma morte
gloriosa em batalha, mas o fato de ter sido poupado pode ter
sugerido que uma batalha maior ainda o esperava. Em seu
estado semi-demente, é possível que ele e seus homens já
tivessem cruzado o limite para dentro do mundo dos
espíritos, mas acreditassem estar vendo presságios de seus
próprios destinos na prova final de Ragnarok."
"Lembrem o que disse o padre O'Connor", replicou Jeremy.
"Os nórdicos acreditavam em predestinação, no fato de que
o destino se fixa no nascimento. Talvez Harald sentisse que
o seu ainda estava por vir, e estava sendo dirigido para
diante, para morrer uma morte condizente com a imagem
suprema do herói nórdico."
"Muito bem, rapazes, vocês me deixaram desorientado",
disse Costas. "Tudo o que quero saber é para onde vamos
daqui."
Jack aquiesceu e pareceu sério. "Bem, uma coisa que eles
tinham condições de fazer aqui era se reabastecer com água
e comida e realizar algum reparo necessário no navio. Uma
das primeiras coisas que os arqueólogos encontraram nos
anos 1960 foi uma oficina de ferreiro, onde o ferro local era
derretido e transformado em rebites. E algumas daquelas
lascas de madeira encontradas perto da praia podem ter sido
deixadas pelos homens de Harald, quando faziam
substituições de pranchas do casco."
"E então para onde ir? Leste ou sul?"
"Ir para o oeste pelo estuário do São Lourenço significaria
percorrer uma grande distância contra o fluxo do rio", disse
Jeremy. "E ir mais adiante naquela direção os deixaria
aterrorizados ao alcançar a extremidade do mundo e
mergulhar dentro de Ginnungagap, o grande abismo."
"Não seria exatamente o glorioso fim que eles tinham em
mente", disse Costas. "Então estamos falando em ir para o
sul?"
Jack concordou, depois voltou-se e agachou-se de costas
para a rocha enquanto tirava um computador de mão de sua
mochila. Ele olhou para Jeremy. "É a minha vez de me
desculpar por esconder algo. Eu já estou um passo à frente."
Levantou a tela e ativou o computador, e Costas e Jeremy
agacharam-se ao seu lado. Depois de alguns segundos, a
imagem isométrica de um drakar apareceu na tela.
"Lanowski me mandou este e-mail ontem, tarde da noite,
depois que vocês dois estavam dormindo", disse Jack. "É
uma imagem em 3-D do nosso navio viking dentro do gelo,
baseada em dados fotogramétricos que conseguimos dentro
do iceberg. Supondo que o Lobo e o Águia fossem
embarcações irmãs, isto nos dá uma boa idéia da aparência
do drakar que trouxe Harald e seus homens para Vinland."
Jack movimentou a imagem para lhes proporcionar vistas
isométricas diferentes, e deu alguns doses para revelar
detalhes. Viram um navio bem-proporcionado com um
único mastro de vela quadrada, com viga mestra mais ampla
do que na maioria dos navios, a proa e a popa erguendo-se
simetricamente. Eles podiam observar que cada carreira de
tábuas do casco havia sido feita de várias pranchas, a
extremidade inferior de cada uma sobrepondo-se ao exterior
da que estava abaixo e presa a ela por rebites e pregos bem
colocados. A quilha era funda, com as pranchas inferiores
em ângulos abruptos, dando à embarcação boa resistência
contra as correntes laterais. Abaixo das amuradas havia
remos igualmente espaçados, e na popa um remo de
pilotagem em um bojo projetado, exatamente como Costas e
Jack tinham visto no navio dentro do gelo. Lanowski tinha
omitido a escultura soberba que havia adornado cada haste
da proa, mas desfraldada na popa havia uma bandeira branca
que, sob um exame atento, revelava o logotipo da IMU e
uma imagem araneiforme de um candelabro com sete
braços.
"Meu Deus", murmurou Costas. "O sujeito teve senso de
humor, afinal de contas."
"Depois de passar o inverno no fiorde gelado, eles devem ter
tido de reparar seu navio para a viagem ao sul", disse Jack.
"Lembrem que o navio era uma embarcação respeitável
pelos padrões vikings, o mesmo navio que Harald usara para
escapar do Chifre de Ouro vinte e cinco anos antes. Eles
possivelmente tiveram o seu trabalho de reparo
interrompido ao irem para o alternar outra vez depois de
sobreviver à viagem desde lona, e depois ao ficarem presos
no gelo durante todo o inverno."
"De qual estação do ano estamos falando?"
"Os paleoclimatologistas da equipe de Macleod ficaram bem
excitados com os núcleos de gelo que trouxeram do iceberg
onde o navio estava preso. Ao que parece, o inverno de
1066 a 1067 na Groenlândia foi particularmente duro,
prognosticando a Pequena Idade do Gelo do período
medieval. Deve ter sido em maio ou mesmo no início de
junho, antes que o estreito de Davis ficasse livre do gelo
flutuante."
"Uma vez que decidiram fixar-se em um navio, o Águia, eles
podiam usar as pranchas do outro navio para fazer reparos",
disse Costas.
"Foi exatamente o que Lanowski encontrou quando estudou
as fotos", disse Jack. "Vigas mestras e até uma parte da quilha
foram removidas da área da proa."
"E o material de calafetagem?"
"Eles só podiam sobreviver no inverno caçando e pescando
no gelo", disse Jack. "Estou convencido de que havia
groenlandeses nórdicos com eles, homens que eles tinham
levado a bordo da colônia ocidental da Groenlândia para
servir de guias. Eles mostrariam aos homens de Harald como
cobrir as madeiras com gordura de baleia, de modo a lacrá-
las e protegê-las de moluscos que furam os cascos, e fazer
cordas com os bigodes e as peles de morsa."
"E eles devem ter-lhes dito que não havia esperança em
navegar para o norte", sugeriu Costas.
"Em teoria, os vikings poderiam ter navegado pela passagem
norte-oeste através do Ártico para o estreito de Bering, mas
não há evidências de que tenham ido para o oeste, para a
baía de Baffin", replicou Jeremy. "Há uma pequena
quantidade de artefatos nórdicos em sítios inuit, ao norte,
até a ilha Ellesmere, na extremidade da calota polar, mas eles
foram recolhidos por caçadores inuit de naufrágios ou de
colônias nórdicas abandonadas na Groenlândia. Isso se
parece com as evidências colhidas pela condenada expedição
de Franklin para encontrar a passagem norte-oeste em 1845,
uma dispersão torturante de achados absorvidos por uma
outra cultura."
"É uma espécie de assombração", murmurou Costas. "Por
toda parte onde passamos, é como se estivéssemos na trilha
dos vikings, no entanto, é como se eles não tivessem estado
bem aqui. Acho que estou começando a acreditar naquele
mundo dos espíritos."
Jack virou de novo a cabeça para a linha da costa atrás deles
e a localização de L'Anse aux Meadows. Em sua imaginação
ele via o navio viking, com a vela enrolada, içada e
impressionante na maré baixa do estuário. "Você pode ter
certeza de que estiveram aqui. E lembre-se do nosso drakar
dentro do gelo."
"Então concordamos que eles alcançaram este lugar em,
digamos, fim de julho de 1067?", perguntou Jeremy.
"Uma vez que o gelo flutuante se foi e o clima se estabilizou,
seria uma passagem relativamente fácil através do estreito de
Davis, vindo de Ilulissat, e pela costa da ilha Baffin e
Labrador até este local, seguindo a rota indicada pelos
groenlandeses", disse Jack. "Fora dessa rota é uma passagem
em meio a icebergs, mas eles poderiam ter reunido
remadores bem preparados para abrir um caminho que os
manteria longe da área de perigo. É provável que tenham
tido um vento estável e favorável durante todo o caminho,
na popa ou no quadrante. Mesmo em mares turbulentos,
uma embarcação como essa seria capaz de superar
tempestades; ela era bastante flexível para curvar-se com as
ondulações do mar, e tinha um bordo livre bastante alto para
impedir que o casco afundasse sob o peso do gelo. E os
nórdicos eram navegadores extremamente hábeis. Eles
tinham uma espécie de pedra do sol, um feldspato refrativo
que captava a luz polarizada em tempo nublado e lhes
indicava onde estava o sol, mas na maior parte do tempo
navegavam com base em seus sentidos, por causa de um
conhecimento íntimo do mar e das estrelas. Se Harald fosse
alguma vez apanhado por um desses perenes nevoeiros desta
costa, ele se manteria em curso pelo cheiro da terra, a lufada
de vento com o perfume das florestas de pinheiros."
"E você realmente pensa que Vinland era sua terra
prometida?" insistiu Costas, olhando com ar de dúvida para a
praia. "Isto parece desolado e medonho para mim."
"Não é assim que deve ter parecido para os primeiros vikings
que vieram até aqui. Neste lugar há todos os ingredientes
para uma vida boa." Jack fez uma pausa, e olhou pensativo
para o continente. "Mas na época de Harald havia trevas
pairando sobre o continente, uma mortalha lançada pelos
crimes cometidos por Freydis. Os groenlandeses deviam
conhecer esses crimes e podem até ter advertido Harald para
se manter afastado. Meio século depois dos eventos descritos
nas sagas, Vinland pode ter adquirido uma reputação sinistra,
um lugar para onde as pessoas iam, mas de onde raramente
retornavam. Os nórdicos eram os aventureiros mais valentes
da região, contudo formavam um grupo bem supersticioso, e
para eles este local era maligno, amaldiçoado. Eles não
teriam desejado ficar aqui."
"E aqui havia os scraelings?
Jack concordou. "A essa altura, os homens de Harald
possivelmente se limitavam a um total de trinta, talvez
apenas a metade disso, bem abaixo do número de pessoas
que o navio comportava. Devem ter ficado sabendo dos
scraelings pelos groenlandeses nórdicos. Provocar qualquer
tipo de confrontação teria sido suicídio. Com certeza eles
entraram de maneira despercebida na baía, sem serem
impedidos, pegaram a madeira e o ferro de que precisavam,
tiraram resina de pinheiro para calafetar, mataram alguns
veados para fazer vestimentas e para comer, apanharam toda
a quantidade de peixes e carne e frutas silvestres que podiam
carregar. O seu último ato deve ter sido queimar e aplainar o
lugar que ocuparam e depois parar na ilha para deixar sua
marca, antes de seguir para Leifsbúõir, indo embora para
sempre."
"E então se dirigiram para o sul", disse Costas.
"Pela costa de Newfoundland, através da Nova Escócia,
talvez ao longo da costa oriental dos Estados Unidos", disse
Jack. "Você se lembra do programa de simulação que
Mustafá fez para ilustrar o êxodo do mar Negro, o progresso
diário dos refugiados da Atlântida? Eu pedi a Lanowski que o
usasse para ilustrar o progresso de um navio viking ao longo
dessa rota, incluindo tudo o que sabemos sobre o drakar, a
estação provável e as condições do tempo no século XI. O
nosso novo capitão canadense do Seaquest II conhece essas
águas como a palma de sua mão e pôde acrescentar sua
valiosa experiência. Os vikings eram como os antigos
marinheiros mediterrâneos. Eles mediam seu progresso em
corridas diárias, doegr. Com a preponderância de correntes e
ventos atrás deles, eles teriam feito um rápido progresso para
o sul. Num prazo de três semanas poderiam ter rodeado a
faixa de terra da Flórida e alcançado o Caribe."
"O Caribe?" Costas assobiou. "Incrível."
"É apenas uma conjetura", disse Jack. "Para onde quer que
tenham ido, eles devem ter desembarcado em terra para se
reabastecer com água e alimento, talvez uma semana ou dez
dias depois que deixaram este lugar. Vamos supor que, assim
que desembarcaram, encontraram nativos outra vez, e não
se sentiram encorajados a tentar permanecer mais tempo.
Então, depois de outra semana ou dez dias, eles estavam em
um lugar oposto a este, a Geórgia e a Flórida. A linha da
costa deve ter parecido crescentemente inóspita, um terreno
não familiar de vegetação tropical e arbustos densos. Mas o
retorno não seria fácil contra as correntes e os ventos, apesar
da total confiança em sua vela, e muito poucos estavam
aptos a manejar os remos para manter um ritmo de avanço.
Com desespero crescente, podem ter continuado para o sul.
Isto é pura especulação, é claro, mas eles podem mesmo ter
navegado através de Florida Keys, indo até o Caribe. Se isso
aconteceu, é possível que os ventos predominantes os
tenham levado para a direção sul-oeste, e mesmo para um
local tão distante como a América Central."
"Considerando a saída de Constantinopla, esse é um
caminho danado de comprido."
Jack de repente lembrou seus preciosos dias com Katya em
Istambul, seis meses antes, os dois absorvidos no passado
labiríntico da cidade, suas discussões sobre como as aléias
remotas da história podiam conduzir às mais extraordinárias
aventuras de descoberta. Por um instante, ele sentiu uma
pontada de arrependimento, mas depois foi dominado por
uma onda de excitação. "Um caminho bem longo, de fato",
disse ele. "Mas olhe onde estamos agora, como estamos
longe da pátria deles. A presença viking aqui em L'Anse aux
Meadows está totalmente documentada, corroborada pela
arqueologia. Tudo é possível."
"Meio enlouquecidos por causa da sede e do cansaço, alguns
deles ainda estropiados por seus ferimentos em Stamford
Bridge", murmurou Jeremy. "Esta é uma imagem incrível.
Eles devem ter ficado aterrorizados, mas estimulados,
temerosos de a qualquer momento chegar inesperadamente
ao fim do mundo, mas aproximando-se a cada dia de
Ragnarok, da prova final onde se juntariam à corajosa
batalha de Odin e Thor pela última vez, com suas grandes
achas-de-armas. Para nós o trópico parece benigno, mas para
os vikings ele deve ter sido uma visão do inferno, um
aglomerado de aura vermelha que parecia arrastá-los para
mais perto de seu destino."
Costas levantou-se e olhou para o nordeste, através do
estreito em direção à praia de Labrador e o mar aberto do
Atlântico. As nuvens estavam se formando e a névoa
marinha começava a esconder a costa. De repente, ele
apontou para uma forma branca no horizonte que aparecia e
desaparecia na cerração. "É o Seaquest II", gritou ele,
excitado. "E o Lynx está a caminho."
Jack olhou para o mar. Ele arriscara um pouco sua reputação
ao persuadir Macleod a parar com o projeto do fiorde gelado
e navegar para o sul para encontrá-los, esperando que eles
fossem para algum lugar mais distante depois de L'Anse aux
Meadows. Normalmente, Jack nunca exercia alguma
autoridade sobre seus colegas dos demais departamentos da
IMU, e felizmente Macleod havia desenvolvido um forte
interesse pela arqueologia depois de ter trazido Jack primeiro
para Ilulissat. Mas as condições para pegar núcleos de gelo se
tornaram rapidamente insustentáveis à medida que o verão
progredia, e tinham surgido sérios rumores de desagrado
entre os cientistas convidados. Jack pressionou os lábios e
durante os momentos seguintes ficou observando enquanto
a mancha escura do helicóptero se tornava reconhecível e o
estrondo do seu rotor enchia a baía. O aparelho ficou
ociosamente suspenso, e depois desceu sobre os apoios na
parte rasa perto do Zodiac. Depois que a turbina parou, eles
observaram as figuras de Ben e Andy, protegidos com
capacetes, emergirem e caminharem para cumprimentar os
dois guardas costeiros canadenses.
"Para onde vamos daqui?", perguntou Costas. "Parece que a
trilha está bem ampla."
"Precisamos de algo mais", disse Jack, com a testa franzida.
"Eu esperava que houvesse algo mais, algum pequeno
indício. Mas de qualquer forma não há nada para se seguir
adiante. Isso significa que posso voltar para onde está o
padre O'Connor e dar-lhe o sinal para soltar sua história para
a imprensa e a Interpol. Ele e Maria, por ora, devem ter
acabado de compilar o dossiê sobre os félag, e não
obtivemos o suficiente aqui para justificar retardar a nossa
volta. Enquanto a descoberta da menorá parecia provável, a
preocupação dominante de O'Connor era que chegássemos
antes ao local para impedir que ela caísse em mãos erradas.
Agora devemos nos concentrar completamente em deter
aquele personagem Loki. A vida de O'Connor pode
depender disso."
"Eu não quero estar presente quando você tiver de dizer a
Macleod para dar meia-volta e retornar para o fiorde gelado."
Costas agachou-se para ajustar as botas e inclinou-se contra a
beirada coberta de grama debaixo da placa de rocha.
Subitamente ouviram um som de queda e um fluxo de
imprecações em grego. Onde Costas havia estado, tudo que
eles puderam ver eram suas botas que emergiam de um
montículo de grama.
"Você está bem?", Jack deu a volta e examinou ansiosamente
o buraco escuro que havia se formado debaixo da rocha. Ele
e Jeremy começaram freneticamente a retirar os torrões de
terra e as pedras que haviam prendido as pernas de Costas.
"Apenas o costumeiro orgulho ferido." A voz estava abafada
e foi seguida por um silêncio. "Mas nós encontramos um
novo amigo."
Quando a parte superior do corpo de Costas apareceu, eles se
depararam com uma visão assombrosa. Na pequena
cavidade, na frente de seu rosto, havia um esqueleto
humano agachado. Recobrindo os ossos viam-se os restos
esfarrapados de uma roupa de pele de animal, e o crânio
ainda mostrava tufos de longos cabelos brancos.
Jeremy inclinou-se para a frente, ainda agachado, para um
olhar mais cuidadoso. "Minha paleopatologia está um pouco
enferrujada, mas eu diria que é um homem, talvez no fim da
meia-idade."
"Scraeling?" perguntou Costas.
Jeremy sacudiu a cabeça. "A fisionomia é européia. E este
sujeito é alto, bem mais de um metro e oitenta. Ele pode ser
um dos primeiros exploradores ingleses ou franceses, mas eu
diria que esses ossos são mais velhos ainda, realmente
velhos. Acho que encontramos um nórdico."
Jack fechou os olhos e oscilou ligeiramente. Bem que
poderia ser. Jack rezou para que sua sorte se mantivesse.
"Aquelas são feridas feitas nos ossos", disse Costas.
"Eu vi algumas como essas antes, em sepultamentos de
guerreiros vikings, na Inglaterra", disse Jeremy. "Ferimentos
de batalha causados por achas e espadas. Não são do tipo das
que ocorrem num confronto com os scraelings, que não têm
armas com beiradas de metal. Este sujeito foi bem
severamente cortado. Há algumas cicatrizes estranhas que
podem ser ferimentos posteriores, particularmente aquelas
marcas de argolas ao redor de seus punhos, como se ele
tivesse sido agrilhoado. Mas todos os ferimentos de batalha
que posso ver parecem bem curados, muito tempo antes de
ele morrer."
Jack olhou pensativo para o esqueleto. "Vocês estão
pensando o mesmo que eu?"
"Lembre que havia outros nórdicos por aqui", advertiu
Jeremy. "Mas é possível, apenas possível, que tenhamos
encontrado um dos homens de Harald, um outro para
juntar-se com Halfdan. A coisa que me deixa perplexo é a
idade dos ferimentos. Se ele morreu em sua viagem vindo
do fiorde gelado, as marcas de talhos nos ferimentos obtidos
em Stamford Bridge, no outono anterior, ainda seriam
recentes nos ossos. Estas foram curadas anos antes, talvez
décadas."
"E isto não é um sepultamento", disse Jack. "Este camarada
arrastou-se até aqui e enfiou-se dentro do buraco com
aquelas pedras. É por isso que seus ossos não saíram daí de
dentro."
"Isto pode ajudar." A voz abafada de Costas chegou de
debaixo da pedra, onde ele tinha espremido a parte superior
do seu corpo no espaço diante do esqueleto e estava
tateando com cuidado, no escuro, debaixo da caixa torácica.
Ergueu cuidadosamente dois objetos e estendeu o maior.
Jack o pegou sem pensar, sua mente ainda concentrada no
enigma confuso do esqueleto. "Bem, o que é isso?"
Costas emergiu para ver os outros dois fitando boquiabertos
o objeto na mão de Jack. Era um pingente liso, do tamanho
de um pires pequeno, e estava esculpido em uma lustrosa
pedra verde, sem dúvida jade. A superfície ondulada e
curvilínea parecia um desenho abstrato, mas, quando
olharam atentamente, puderam distinguir olhos, um bico,
asas estilizadas.
"Santo Deus", Jeremy sussurrou. "É o deus-águia maia."
Costas rastejou para fora e limpou-se. "Maia", ele disse de
modo fleumático. "México, o Iucatã. Templos na selva e
sacrifícios humanos. Estou certo?"
"Impossível." Jack limpou com cuidado uma película de
sujeira dos dois discos de prata que formavam os olhos da
águia. Ele olhou para os outros, sacudiu a cabeça e passou o
pingente para Jeremy. "É impossível. Diga-me que não estou
vendo coisas."
"São duas moedas", disse Jeremy calmamente. "Muito bem.
Vamos ser imparciais a respeito disso. A da esquerda é uma
moeda viking da Inglaterra, um centavo quadrifólio do rei
Canuto. Olhem, é possível ler CNUT REX ANGLO, com o
busto coroado." Ele virou o pingente. "Podem ver no lado
oposto. ARNCETEL OEO, cunhado por um homem
chamado Arncetel em York. Canuto reinou de 1016 a 1035,
mas suas moedas eram valiosas por causa de sua pureza e
foram encontradas em tesouros escondidos através da
Escandinávia pelo menos até o período de 1066."
"E a outra?", perguntou Costas.
"Aquela é romana. É assunto seu, Jack."
Jeremy devolveu o pingente e Jack olhou atentamente a
moeda da direita. "É um denário de prata do imperador
Vespasiano" ele disse. "IMP CAESAR VESPASIANUS AUG.
Um retrato particularmente excelente da cabeça de
Vespasiano, com verruga e tudo, além da coroa de louros."
"Você me deixou desconcertado de novo", disse Costas.
"Você disse Vespasiano? O imperador romano?"
"Moedas romanas antigas, de ouro ou prata, algumas vezes
eram encontradas nos tesouros guardados dos vikings", disse
Jeremy. "Saqueadas de antigas tesourarias, trazidas como
curiosidade pelos varegues que vinham do Mediterrâneo."
Jack ergueu as sobrancelhas, depois virou o pingente.
Limpou o reverso da moeda delicadamente com o dedo, e
depois sufocou um suspiro. "Bom Deus. É uma moeda
Judaea Capta. Uma das moedas cunhadas a mando de
Vespasiano, depois da conquista romana da Judéia, em 70 ou
71 d.C." Virou o pingente para a luz e eles puderam ver
claramente a figura de uma mulher sentada diante de um
legionário romano típico, e abaixo deles a única palavra
gravada IVDAEA.
"Não é atrás disso que estamos?" perguntou Costas. "Quero
dizer, o tesouro perdido do Templo de Jerusalém?"
"Posso estar loucamente errado", disse Jack com entusiasmo,
"mas acho que conseguimos duas moedas do tesouro de
Harald Hardraade. Como elas entraram na formação desse
pingente é um completo mistério. Aconteceu algo
extraordinário, algo que trouxe este homem de volta para cá,
anos depois, de volta a um lugar onde viera da primeira vez
com o navio de Harald. E sim, é atrás disso que estamos. Isto
é fantástico. Esta moeda pode ter sido cunhada com a prata
saqueada do Templo junto com a menorá. Quem sabe ela até
foi tocada pelo próprio imperador Vespasiano. Pode ter sido
por pura coincidência que Harald tivesse essa moeda em seu
tesouro, mas eu duvido. Harald conhecia sua história, havia
estado em Jerusalém. Em sua própria mente e naquela de
seus seguidores, qualquer coisa associada com a menorá e o
tesouro do Templo podia acrescentar esplendor ao seu
nome. Eu realmente sinto neste momento que estamos nas
pegadas de Harald. Este é o nosso melhor achado até agora,
talvez seja o mais perto que jamais chegaremos da própria
menorá."
"Talvez não seja ainda o melhor achado", disse Costas com
uma piscadela. "Dê uma olhada nisto." Ele estendeu a mão
nas sombras debaixo da rocha e pegou um segundo objeto
que havia encontrado com o esqueleto. "Acho que é uma
outra pedra de runa."
Muito excitado, Jeremy pegou a lâmina de rocha e a
examinou atentamente. Um lado havia sido grosseiramente
alisado e estava coberto com linhas apagadas. "Semelhante à
pedra de runa encontrada pelos nazistas no drakar", ele
murmurou. "O mesmo futhark básico daquele período, mas
traçado por uma mão diferente. As runas foram realmente
apenas raspadas na superfície, talvez tenha sido o último ato
desse sujeito enquanto ele estava agachado debaixo da
rocha."
"Pode ser que ele tenha voltado para cá para fazer isso, para
deixar um registro", disse Costas. "Talvez estivesse
mantendo a promessa que Harald fez para os
groenlandeses."
"Há algo legível?", indagou Jack.
"É mais fácil para mim transliterar as runas em nórdico
antigo, usando o alfabeto-padrão." Jeremy puxou um
caderno de anotações de sua mochila, e eles ficaram
observando enquanto ele escrevia rapidamente uma linha
clara de símbolos numa página, regressando ocasionalmente
para fazer correções.

Par var oroefi ok strandir langar ok saudar. Rak Pá skip
Peirra um haf innan. Sandar hvitir vioa Par sem Prier fóru
ok ósoebratt.

"Não consigo ler a primeira linha completamente, mas ela
tem a palavra doegr, corridas, e a runa para o número vinte.
Eu acho que significa que eles navegaram vinte corridas, ao
longo de uma costa com praias compridas e areias. Depois
seu navio, o skip, dirigiu-se por toda parte pelo oceano
interior, um haf innan. Em seguida eles chegaram a uma
terra plana, coberta com florestas, com extensas areias
brancas por onde quer que andassem, e inclinando-se
suavemente em direção ao mar. As duas últimas linhas
também não estão claras, mas a primeira delas parece falar
de uma terra de fogo e luz."
"É exatamente como você disse, Jack", exclamou Costas.
"Vinte corridas, vinte dias, os levam ao longo da orla
marítima ao leste. É uma costa com grandes extensões de
praias e areias, sobretudo quando você chega à Flórida. O
oceano interno. Isso soa exatamente como sendo o Caribe."
"Navegaram por toda parte", falou Jack com uma excitação
crescente. "Julho, agosto, é o início da estação de furacões.
Eles podem ter sido levados pelos ventos direto através do
mar, podem ter perdido todo o sentido de onde estavam."
"Depois a terra plana coberta com florestas", disse Jeremy.
"Quando eu era pequeno, nós navegamos pela península do
Iucatã, no México. É isto exatamente o que se vê. Ela é
incrivelmente plana, um platô de pedra calcária apenas
alguns metros acima do nível do mar, coberta com arbustos
densos e floresta virgem e rodeada por praias brancas e
brilhantes."
"E quente como o inferno durante o verão", acrescentou
Costas. "Uma terra de fogo e de luz."
"Isto não é apenas uma suposição desvairada. Tudo está
começando a se ajustar." Jack ergueu o pingente de jade,
depois olhou intensamente para Jeremy. "E o que tem na
linha final?"
Jeremy soltou um profundo suspiro e fitou Jack, seu rosto
ruborizado pela excitação. "Eu consegui entender três
palavras. A primeira é a palavra nórdica para o mundo dos
mortos, o abismo cheio de água na extremidade do mundo,
Ginnungagap. A segunda é Ragnarok. A terceira, nunca a vi
antes no nórdico antigo. É um nome próprio, o nome de um
local. Ukilabnal, ou algo próximo a isto. Parece que Harald e
seus homens atingiram o dia de ajuste de contas nesse lugar,
sua prova final na beirada do mundo dos mortos."
"Isso não foi assim para o nosso amigo." Costas apontou com
o polegar para o esqueleto. "Aposto que ele desejava ter ido
para o Valhala junto com seus companheiros."
"Esse nome significa alguma coisa para você?", perguntou
Jack.
"Oh, sim." A voz de Jeremy estava rouca, e mal conseguia
pronunciar as palavras. "Antropologia 101. Felizmente meu
orientador, antes de eu me formar, obrigou-me a manter
minhas opções em aberto. Introdução à Civilização da
América Central."
"Continue."
"No século XI, Uukil-abnal era o nome de Chichén Itzá, o
maior centro cerimonial dos maias, exatamente no centro da
selva do Iucatã."
"Nossa! Quem diria!"
Costas soltou um suspiro de satisfação. "Por fim." Ele
levantou-se, arqueou as pernas fortemente onde elas haviam
ficado presas e olhou com desgosto para a garoa que o
envolvia. "Vocês, rapazes com sangue viking, podem ter
algum tipo de atração por todo esse mistério, mas ele apenas
me deixa frio." Voltou-se para Ben e Andy, que estavam
andando por perto, e sorriu amplamente para eles.
"Aprontem as malas, rapazes. Estamos indo para o México."


16

Maria teve o primeiro pressentimento de que algo estava
errado logo antes da meia-noite. Ela estava debruçada sobre
um laptop em uma cela de monge, a três portas do estúdio
do padre O'Connor, no claustro medieval na ilha Iona.
Tinham decidido trabalhar até tarde e encerrar o assunto,
dois longos dias depois de ela ter acenado para Jack e aos
demais no helicóptero. Ela estivera olhando para a fotografia
pregada na parede à sua frente, a extraordinária imagem do
pingente que Jack lhe enviara por e-mail de L'Anse aux
Meadows no dia anterior. Maria estava cheia de vontade de
voltar, de juntar-se a Jack de novo. Pela terceira e última vez
estava trabalhando sobre o documento que ela e O'Connor
tinham preparado sobre os félag, esforçando-se para manter
os olhos focalizados na tela. Em alguns minutos poderia
copiar o arquivo para O'Connor e ir ter com ele para uma
correção final, e eles o passariam por e-mail para o seu
contato da Interpol, na Áustria. Sentia-se cansada, esgotada
como nunca, mas estava começando a sentir um certo
alívio. Ainda não se encontravam fora de perigo, mas pelo
menos ela tinha persuadido O'Connor a deixar o mosteiro na
manhã seguinte e acompanhá-la para a segurança do
Seaquest II.
O primeiro sinal havia sido um som surdo e abafado no
corredor. Não um motivo óbvio para alarme, mas Maria
estava irritadiça por causa do cansaço e do nervosismo. Ela
se voltou para a porta, ligeiramente entreaberta, e o corredor
escuro depois dela. Tudo havia ficado quieto de novo. Ela
tinha começado a se acostumar com o silêncio do mosteiro,
mas algo estava diferente. Sentiu um súbito arrepio, um
pressentimento de medo.
Então, sem aviso, a porta se escancarou. Uma mão enluvada
apareceu e agarrou a porta antes que ela batesse contra a
parede. Depois uma figura negra avançou sobre ela com a
velocidade de um raio, a cabeça abaixada. Maria não teve
tempo de reagir. Uma mão estapeou sua cabeça e torceu de
maneira selvagem sua orelha, enquanto a outra tampava-lhe
a boca. A mesa foi arremessada contra a parede e um pé
esmagou o seu laptop. Ela foi violentamente puxada para
trás, através da porta e para o corredor. A mão estava úmida
contra sua boca, grudenta e quente. Sua orelha foi torcida de
novo e ela ficou cega pela dor, os olhos cheios de água,
incapaz de respirar. Subitamente ela foi solta e atirada com o
rosto para a frente contra a parede, as mãos presas atrás de si.
Uma fita adesiva lhe foi passada pela boca e punhos. O
assaltante mantinha o corpo pressionado contra o dela e
puxou-lhe o cabelo para trás. Maria podia sentir a aspereza
de sua pele contra a dela, o cheiro metálico de seu hálito.
Durante um momento horrível não houve nenhum
movimento. Maria começou a tremer descontroladamente.
Sua respiração voltou, aos poucos, e ela passou a inspirar
penosamente pelo nariz. Sentia-se claustrofóbica, quase
sufocando. O seu assaltante resfolegou, puxou-a para o lado
até ela quase cair, depois arrastou-a aos solavancos por uma
porta aberta e segurou-a firmemente por trás. Ela sentia o
hálito dele contra sua orelha, o cheiro repugnante.
"Fale sobre isto." As palavras eram gritadas dentro de sua
orelha, o sotaque indefinido. Maria piscou fortemente para
limpar os olhos. Ela estava no estúdio de O'Connor. Através
da obscuridade distinguia a vela na cornija da lareira, a cópia
do Mappa Mundi na parede de trás. A chama estava
bruxuleando na tinta do mar Vermelho, e parecia estar
lançando uma aura vermelha sobre o resto do mapa. Maria
sentiu a cabeça vazia, estava prestes a desmaiar. Piscou de
novo, tentando desesperadamente clarear o túnel vermelho
ao redor de sua visão. Ela via a vela sobre a escrivaninha,
aquela que tinha acendido para ele uma hora antes. Olhou
para baixo. Sua respiração saía em movimentos rápidos.
Então ela parou.
Havia alguém no chão. Ela sentiu os joelhos dobrarem, e seu
assaltante puxou-a para cima, apertando-a até ela sentir
vontade de vomitar.
Ela olhou para baixo novamente.
Padre O'Connor.
Seu coração deu um solavanco de horror. A vela lançava
uma sombra no chão, e, de início, tudo o que ela viu foi uma
forma escura. Depois começou a distinguir sua cabeça. Sua
boca estava coberta com fita adesiva, os olhos bem abertos.
Ela se esforçou para fazer um barulho, para falar com ele,
mas seu assaltante tampou-lhe o nariz. Certamente
O'Connor devia vê-la, devia perceber que ela estava
tentando comunicar-se. Permanecia imóvel, o olhar fixo.
Ele estava deitado de bruços, a cabeça debaixo da
escrivaninha, os braços e as pernas bem abertos. Vestia sua
sotaina marrom de monge.
Então ela se deu conta. A cor do mapa. A umidade grudenta
em seu rosto. O gosto metálico.
Era sangue.
Ela olhou outra vez para O'Connor. Algo estava
terrivelmente errado. O escuro em suas costas não era
absolutamente sua sotaina. Então ela soube, com uma
certeza enjoativa.
A águia de sangue.
Ela olhou freneticamente de um lado para o outro, os olhos
se ajustando à escuridão. Havia sangue por toda parte.
Encharcando o resto da sotaina, formando uma poça debaixo
do corpo do padre, esguichado e salpicado sobre a
escrivaninha e os livros, em traços arroxeados e manchados
sobre o teto.
Ela olhou outra vez. Podia ver o buraco escancarado, a
forma. De ombro a ombro, e para baixo nas costas. As asas e
a cauda. Em cada lado ela via coisas demasiado medonhas
para serem registradas. Massas informes de carne sangrenta.
Série de ossos rachados, a caixa torácica. Pilhas de órgãos em
forma de bulbos, como sobras não aproveitadas de uma rês
abatida no balcão de um açougueiro.
Maria gritou, mas nenhum som saiu de sua boca.
O assaltante empurrou a mão debaixo do queixo de Maria e
comprimiu sua face com muita força contra a dela. Ela mal
podia ver o rosto dele, o sorriso ofensivo, os olhos
desbotados e assassinos, as manchas de sangue seco. Ele
começou a esfregar o seu rosto contra o dela, a barba dele
raspava-lhe a pele como se fosse lixa, pressionando-a cada
vez mais com a maciez de uma cicatriz que ia da órbita até o
maxilar, enquanto ofegava pesadamente, arreganhando os
dentes de maneira obscena para a carnificina no chão. Ela
podia sentir a excitação dele, cheirar a adrenalina. Sua mente
começou a se fechar, procurando o esquecimento em face
do horror.
"Isto foi pelo meu avô", sussurrou a voz. "O'Connor estava
consciente quando cortei fora seus pulmões. Ele sabia o que
estava acontecendo. A hostilidade sangrenta terminou.
Agora chegou a hora de reivindicar meu prêmio."
Ele a puxou pelas pernas e arrastou-a de novo através da
porta. A última coisa que ela sentiu foi a dor pulsante em seu
rosto, o seu próprio sangue misturando-se com o de
O'Connor. Depois só houve escuridão.

Jack manobrou o Zodiac com habilidade em direção à praia,
permitindo que a embarcação deslizasse com o seu próprio
peso dentro da depressão entre as ondas e depois ativando o
motor até que o barco ficasse na crista da onda seguinte.
Acima deles o céu estava salpicado de nuvens altas
movendo-se rapidamente em direção ao sul, e eles eram
impelidos por um forte vento que se dirigia à praia e que se
tinha fortalecido durante toda a manhã, erguendo ondas
rápidas. O ar apresentava a mesma qualidade translúcida que
eles tinham visto no Ártico, mas nem o vento podia
disfarçar a intensidade abrasadora do sol quando este os
envolvia, o clarão cegando seus olhos desacostumados. Atrás
deles, as ondas de arrebentação por cima dos recifes
acentuavam a forma lustrosa do Seaquest II, que estava
mantendo posição em águas profundas a uma milha da praia.
Para Jack era divertido sentir o borrifo do mar de novo,
depois de cinco dias confinado durante a longa viagem para
o sul desde Newfoundland ao longo do mar que beirava o
leste dos Estados Unidos indo para o Caribe. Era a mesma
coisa onde quer que estivesse, no Ártico, no Chifre de Ouro,
na praia de lona ou na Grande Ilha Sagrada, uma exaltação
que invadia sua alma cada vez que experimentava o gosto do
mar. Ficou em pé, a mão esquerda segurando o acelerador e
a direita o cabo de atracação da proa, e fez um gesto para que
os outros dois viessem para a frente e ficassem prontos.
Logo antes de entrar na arrebentação, ele desligou o motor
de popa e ergueu-o, deixando a hélice fora da água. Costas e
Jeremy pularam na água, de cada lado, segurando o Zodiac
contra o movimento de fluxo e refluxo das ondas de
arrebentação até que ele fosse empurrado por um
redemoinho para perto de um banco de areia. Giraram o
Zodiac até que a proa apontasse para as ondas e esperaram
enquanto Jack atirava a âncora. Assim que se asseguraram de
que tudo estava sob controle, eles se dirigiram à praia, os
macacões de mergulho pretos da IMU encharcados da água
quente do oceano e os cabelos emaranhados e ensopados.
Eles se encontraram em uma praia estreita, tendo atrás uma
linha contínua de selva espinhosa, os troncos retorcidos e
fragmentos espalhados de corais mortos e a herança de
madeiras flutuantes deixadas pelo severo furacão do ano
anterior.
"Arbustos xerófitos", disse Jeremy, ofegante. "Bem-vindos
ao Iucatã. Não é realmente uma floresta tropical, mas uma
selva no verdadeiro sentido da palavra."
"Solo improdutivo, você quer dizer." Costas arriscou alguns
passos dentro da vegetação rasteira e emaranhada, e saiu
depressa, retirando de maneira irritada uma teia de aranha e
mosquitos-pólvora do rosto. "Troco a Groenlândia pelo
Caribe qualquer dia, mas como uma civilização conseguiu
desenvolver-se aqui está além de minha compreensão."
"A chave para o desenvolvimento maia era a água fresca."
Jeremy conduziu Costas ao longo da praia até que chegaram
à fonte do banco de areia, um canal de água
extraordinariamente clara com cerca de três metros de
largura que cortava a selva e fluía para o mar. "O lugar está
cheio disso. Alguns desses rios se desenvolvem
subterraneamente, através de um espantoso sistema de
cavernas' que estão bem afastadas da costa. Vou poder lhe
mostrar isso ainda hoje."
"Você já esteve aqui?"
"Fiz viagens para pesquisa científica de campo quando era
estudante. Transpirando na selva, medindo ruínas cobertas
de vegetação, sendo devorado vivo."
"Você deveria aprender a mergulhar", disse Costas
secamente.
"Isto é o que Jack estava me dizendo. Ele disse que você é
um instrutor de mergulho com técnica avançada, um dos
melhores. Talvez eu queira aprender quando tudo isso tiver
terminado."
"Será um prazer. Eu só não faço idéia de como mergulhar
dentro de um iceberg."
"Vou deixar a emoção da descoberta para os seus
camaradas." Jeremy sorriu. "Eu só estou nisso por causa da
arqueologia."
"Qual era aquele lugar, o nome maia que havia na runa que
estava com meu amigo debaixo daquele monte de pedras?"
Costas limpou o suor que estava começando a lhe escorrer
pelo rosto.
"Uukil-abnal", replicou Jeremy. "O nome que no século XI
era dado a Chichén Itzá, o sítio arqueológico mais famoso do
Iucatã. Uma cidade fantástica e enorme sobressaindo-se na
selva. Pirâmides e tudo mais. Acho que vai ser a nossa
próxima parada."
Jack apareceu depois de ter ancorado o Zodiac na
rebentação, e eles começaram a despir seus macacões de
mergulho até a cintura.
"Bela praia", comentou Costas. "Mas um pouco desolada."
"Cortês chegou aqui em 1519", replicou Jack. "Mas os
conquistadores deram uma olhada e deixaram este lugar
completamente de lado. Eles só conquistaram o interior do
Iucatã anos mais tarde."
"Posso ver por quê." Costas esforçou-se para tirar a parte de
cima de seu macacão de mergulho, depois recuou quando
uma rajada de vento jogou areia em cima dele. "Então você
acha que Harald Hardraade esteve aqui?"
"Lanowski fez um cálculo bem ajustado dos locais onde o
drakar pode ter encontrado terra firme pela primeira vez
depois de ter sido empurrado pelo noroeste estivo vindo de
Florida Keys", disse Jack. "Nós escolhemos este lugar em
especial por causa do rio. Os vikings deviam estar
desesperados para encontrar água fresca, e teriam sido
capazes de arrastar seu drakar para a enseada. Também a
margem do rio é um bom lugar para seguir um caminho
maia para o interior."
"Aqui podia até ter sido uma praia de desembarque dos
maias, um ancoradouro", acrescentou Jeremy. "Muitas das
maiores povoações maias estão bem longe do oceano, mas
eles eram competentes marinheiros. Eu vi quadros
mostrando grandes canoas de guerra que eram
tranqüilamente do tamanho de um drakar nórdico."
"Não era exatamente o que Harald e seus homens estavam
esperando", disse Costas.
"Se eles estavam apreensivos acerca dos scraelings, esses
camaradas daqui os fariam tremer na base, os intrépidos
vikings, guerreiros ou não", replicou Jeremy. "Os vikings
podem ter sonhado com a prova final em Ragnarok, mas,
uma vez que perceberam a realidade do que os aguardava,
eles podem ter pensado melhor."
"Provavelmente não havia escolha nessa etapa", disse Jack.
"O navio deles devia estar em frangalhos depois da viagem e
a fome provavelmente os estaria consumindo. Eles estavam
fadados a fazer uma parada por aqui. Meu palpite é que
começaram a se embrenhar na selva."
"Eu estava querendo perguntar", disse Costas. "Aquele
sujeito, Pieter Reksnys, o filho do nazista, pai de Loki. Ele
também não acabou vindo para o México?"
"Aparentemente, quando O'Connor era um missionário
jesuíta na América Central, nos anos 1960, ele ficou
sabendo tudo sobre o paradeiro de Reksnys." Jack levantou a
mão até os olhos, protegendo-os do clarão do sol. "Mas
O'Connor estava evitando chamar a atenção sobre si
próprio, então evitou um encontro. Havia um preço por
sua cabeça entre os félag, mesmo então. Ao que parece,
quando Andrius Reksnys e seu filho venderam a mina de
opala na Austrália, eles foram primeiro para a Costa Rica. Ela
eira um abrigo para nazistas fugitivos. Depois, quando a
caçada aos nazistas começou a diminuir, no final dos anos
1960, o Reksnys mais velho voltou para a Europa, para o
remoto castelo em Obersaltsburg, onde o alvejaram cinco
anos atrás."
"O velho homem morto, na foto dos jornais, com a suástica
na braçadeira."
"Correto."
"O'Connor disse mais alguma coisa a respeito disso?"
"Não quando falei com ele", disse Jack. "O'Connor não quis
revelar quem eles usaram, e nós não precisamos saber.
Talvez ele mude de opinião. Mas disse que não sentia
arrependimento. Acho que ele acreditou que era seu dever,
como um dos primeiros membros do félag, fazer correções e
cuidar para que a justiça agarrasse os Reksnys."
"Isso é justo."
"O jovem Reksnys, Pieter, aquele que ajudava seu pai
Andrius a realizar as execuções SS, tinha dinheiro mais do
que suficiente para retirar-se e devotar-se a proporcionar a
seu próprio filho a mesma visão distorcida do mundo. Mas,
como muitas dessas figuras, ele não conseguia manter seus
dedos longe do crime organizado, sobretudo nessa área onde
todos acabam entrando."
"Drogas? Armas?", perguntou Costas.
"Ele meteu o nariz em toda parte, mas interessou-se cada
vez mais pelo mercado negro de antiguidades, excluindo
praticamente todo o resto. Isto se tornou sua obsessão, e era
altamente lucrativo. Desde os anos 1960 havia grande
demanda na América e na Europa por antiguidades da
América Central, por cerâmica decorada, ouro, jade, pedra
esculpida. Segundo O'Connor, Reksnys já tinha posto os
olhos sobre o Iucatã mesmo antes de se abrir o comércio
para investidores estrangeiros."
"Ele está aqui?", perguntou Costas olhando para a selva.
"Bem debaixo de nossos narizes?"
"Este lugar era como uma mina de ouro não explorada.
Mesmo agora, as autoridades mexicanas têm grandes
problemas para policiar a área, especialmente as rotas da
selva, que pertencem a estrangeiros como Reksnys. E, assim
como a máfia, que dirige a indústria de turismo, sujeitos
como Reksnys têm inúmeras conexões entre os políticos e a
polícia. Há uma corrupção infernal aqui. Existem
literalmente centenas de lugares maias não localizados em
mapas, através da selva, para serem explorados à vontade se
os poucos policiais corretos e os arqueólogos puderem ser
mantidos ocupados."
"Alguém tem alguma idéia de onde Reksnys opera?"
"Ele é muito esquivo, mora entrincheirado em local
afastado. Mas sabemos que é proprietário de uma grande
área de selva no norte do Iucatã, entre a costa onde estamos
agora e um lugar no interior de Chichén Itzá."
Costas assobiou. "Parece uma incrível coincidência."
"Não há jeito de os félag terem estabelecido contato com o
Iucatã, a não ser por puras conjecturas. A única pista que
temos para este local é o pingente de jade de L'Anse aux
Meadows, e não há evidências de que alguém o tenha
encontrado antes de nós. Mas se há algo aqui, se Harald e
seus homens realmente estiveram aqui, então Reksnys pode
ter se deparado com esse achado por pura sorte.
Provavelmente ele tem mais homens a seu serviço do que a
soma dos arqueólogos existentes em todo o Iucatã. Minha
esperança é que, se chegarmos a alguma coisa, isso ocorra
em uma das zonas arqueológicas policiadas e não aqui na
selva."
"Então a menorá seria sua peça predileta", murmurou Costas.
"Não apenas como um artefato sagrado para os félag, mas de
um ponto de vista profissional. Ele sabe exatamente como
comercializá-la pela oferta mais alta."
"Esta é a única coisa que realmente assusta O'Connor. E
lembrem que não estamos falando apenas de colecionadores
particulares. Uma vez mais o mundo terá de combater um
nazista influenciando o curso da história judaica."
"Como Maria está se saindo?"
O rosto de Jack se iluminou por um instante. "Deve estar
esperneando por ter perdido a agitação em L'Anse aux
Meadows, mas planejando juntar-se a nós, a menos que não
encontremos nada. Eu ficaria contente em vê-la longe de
Iona."
"E aqui conosco."
"Há homens demais por aqui."
"Você sabe que ela é muito próxima ao padre O'Connor."
"Eu sei".
"Eu quero dizer muito íntima."
"Eu sei." Jack fez uma pausa. "Acho que começou depois
daquela conferência em Oxford, antes que eles nos
mostrassem o Mappa Mundi".
"Algo além daquela força maligna no Vaticano pode estar
tentando atingi-lo."
"O'Connor tem andado na corda bamba de muitas maneiras.
Mas Maria foi sempre muito discreta." Jack fez outra pausa e
olhou para baixo. "De todo jeito, ela é uma de minhas mais
velhas amigas. Eu a conheci antes mesmo de ter a honra de
ser apresentado a vocês."
"Foi o destino", disse Costas. "Onde você estaria sem a
minha assistência técnica? Nunca cruzei com alguém mais
incompetente com computadores. E eu estaria empacado
em alguma prisão sem janelas em Silicon Valley, ganhando
toneladas de dinheiro, mas sem um pingo de diversão."
Tentando pegar um mosquito, ele deu um tapa violento em
seu pescoço, e desviou a cabeça quando o vento soprou um
redemoinho de areia que os atingiu como a rajada de uma
fornalha. "Nada de icebergs, nada de férias na praia."
"E sem psicopata assassino em sua cola", replicou Jack. "Eu
apenas confio em Deus que O'Connor contate a Interpol
antes de Loki encontrá-lo."
"Qual é o seu plano de retirada se tudo der errado?"
Jack lançou um olhar atormentado para Costas quando eles
começaram a puxar o Zodiac de novo para a arrebentação.
"Eu não tenho um plano."
Três horas mais tarde, depois de um percurso acidentado ao
longo do caminho na selva, eles chegaram à entrada de
Chichén Itzá, cerca de sessenta quilômetros para o interior
partindo da praia. As ruínas da antiga cidade cobriam uma
vasta área, embora apenas o recinto central houvesse sido
desobstruído da selva e restaurado. Estruturas de pedra
calcária cinza erigiam-se acima de três abóbadas à frente,
mas Jack sabia que ao redor deles havia ruínas submersas na
vegetação rasteira que tinha sepultado a cidade durante
séculos depois que fora abandonada. Algumas das imagens
pareciam surpreendentemente familiares, pirâmides e
templos com colunatas, mas outras não, plataformas para
sacrifícios, terríveis esculturas humanas e animais híbridos,
imagens que pareciam de um outro planeta. Era sinistro,
como se algo não se encaixasse, como se eles estivessem
entrando em um cenário de filme do antigo Egito ou da
Mesopotâmia, no qual fora feita uma tentativa para se ter
uma precisão histórica, mas muita coisa houvesse sido
deixada para a imaginação de um roteirista que se baseara em
alguma ficção científica particularmente lúgubre.
Jack estava no banco da frente de um veículo de quatro
rodas que lhes fora cedido pelas autoridades arqueológicas
mexicanas, e quando abriu a porta foi cumprimentado por
um oficial que os introduziu no local. Poucos dias antes, um
tremor de terra tinha causado preocupações sobre a
estabilidade das antigas estruturas, e o local havia sido
fechado para os turistas enquanto avaliações eram realizadas.
Jack agradeceu ao oficial e encontrou um lugar na sombra
para abrir o mapa. Costas juntou-se a ele. Eles estavam
usando short, camiseta e botas para selva, mas o calor do
verão era opressivo e Costas já estava gotejando de suor.
"Pensando com carinho no nosso iceberg?", perguntou Jack
divertindo-se.
"De jeito nenhum", Costas estufou-se, mas parecia aflito e
acalorado debaixo de seu chapéu panamá. "Você se lembra
que eu sou grego? O calor está no sangue."
"Muito bem."
Jeremy foi até eles depois de conversar em espanhol com o
oficial, e apontou para uma rota no mapa. "Eu fui obrigado a
passar um verão aqui antes de me formar em um
treinamento de projeto de campo, antes que conseguisse me
safar", disse ele com pesar. "Vou tentar fazer um relato
equilibrado, mas devo lhes dizer que este lugar me dá
pesadelos. Os vikings foram terapia depois disso."
"Que período de tempo estamos procurando?", perguntou
Costas.
"Os maias formaram uma das grandes civilizações primitivas,
como vocês sabem", disse Jeremy. "Eles floresceram aqui em
torno de 300 a 900 d.C., que abrange o período do final do
Império Romano até a era viking. Mas, lá pelo meio do
século XI, este local foi dominado pelos toltecas, uma casta
guerreira do norte. Os maias ainda estavam aqui, mas eles se
tornaram a classe social mais baixa, escravizados e
brutalizados. Os toltecas assolaram o Iucatã mais ou menos
na mesma época que Harald estava deixando a guarda
varegue. Muito do que se vê aqui não é maia, mas data do
período tolteca."
Eles caminharam ao longo de uma picada sob a abóbada da
selva, passando por um iguana ocasional e um bando de
macacos com rabos enrolados, seus guinchos competindo
com os gritos roucos dos tucanos, e pássaros pretos de olhar
maligno. O calor era inacreditável, muito mais úmido do que
Jack havia experimentado em sítios arqueológicos no
Mediterrâneo, e ele se esforçava para imaginar pessoas que
viviam uma vida normal em um lugar tão distante dos
melhores efeitos do mar. Depois de alguns minutos, eles se
depararam com um recinto amplo e gramado rodeado por
colossais construções em pedra. Era uma visão
extraordinária, a imagem característica de uma antiga
civilização da América Central, dominada por um templo
imponente que se erguia em degraus enfileirados como uma
pirâmide.
"Não tente me dizer que essas pessoas não eram
influenciadas pelos egípcios", disse Costas enxugando o suor
do rosto.
"Esta é a pirâmide Kukulkan, o ponto principal de Chichén
Itzá." Jeremy os deixou passar pela pirâmide enquanto
falava. "Mas aquela construção lá adiante é onde a maior
parte dos sacrifícios ocorria", disse ele. "O Templo dos
Guerreiros. Pode-se ver o altar de pedra no alto, onde as
vítimas vivas eram amarradas e seus corações extraídos
violentamente."
"Delicioso", resmungou Costas. "Mas acho que todo esse tipo
de coisas era exagerado pelos espanhóis."
"Nada disso." Jeremy os levou para o lado norte do recinto,
passando por uma estrutura onde Jack viu um hieróglifo
esculpido em uma pedra que parecia estranhamente familiar.
Jeremy o viu hesitar e o chamou. "O deus-águia. É
exatamente o mesmo que há no pingente de jade de L'Anse
aux Meadows. Tenho certeza de que veio daqui." Ele parou
ao lado da construção seguinte, uma ampla plataforma de
pedra quase da sua altura, e esperou que os outros dois o
alcançassem. "Vocês perguntaram sobre sacrifício. Este local
é um dos meus favoritos. É chamado Tzompantli, a
Plataforma das Cabeças. As cabeças em decomposição dos
inimigos eram mostradas aqui e, apenas no caso de que
necessitem ser lembrados, eles as esculpiam ao redor da
beirada." Eles viram que as laterais da plataforma estavam
cobertas com centenas de cabeças com olhares sinistros, os
maxilares abertos e os olhos arregalados de terror e angústia.
"Para coroar tudo, é preciso imaginar que todas as
construções aqui, a pirâmide e o Templo dos Guerreiros, esta
plataforma, estavam pintadas de vermelho."
"Com sangue humano, eu presumo." Costas passou o dedo
sobre uma das cabeças e fez uma careta. "Eu sei que tivemos
nossos episódios ruins, o Coliseu romano, a Inquisição
espanhola e tudo mais, mas genocídio e assassinato em
massa nunca foram institucionalizados, nunca fizeram parte
do nosso modo de vida. Para essas pessoas era normal. Se
você nascesse aqui, então deveria ser sacrificado. Havia algo
profundamente disfuncional nessa sociedade."
"Os maias desenvolveram um enorme progresso", replicou
Jeremy com cuidado. "Uma arte e uma arquitetura
surpreendentes, uma organização econômica fenomenal.
Estados que competiriam facilmente com as primeiras
cidades-Estado do Oriente Próximo."
"Quatro mil anos antes dos maias", disse Jack.
"E os maias não tinham bronze", acrescentou Costas.
"Ou ferro, ou rodas."
"Certo." Jeremy sorriu de um jeito esquisito. "Esta sociedade
foi o apogeu do que estava acontecendo na América antes da
conquista espanhola. Mas tudo se tornou titica de galinha
quando os toltecas apareceram. Eles eram guerreiros
terríveis da antiga América Central, os SS da época. Tudo
que escutaram sobre os astecas, aqueles relatos de sacrifícios
em massa registrados pelos conquistadores espanhóis no
século XVI, multipliquem várias vezes e regressem
quinhentos anos atrás. Imaginem o coração das trevas, o
apocalypse now, este é o local. Os próprios maias não eram
exatamente contrários ao sacrifício humano, mas quando os
toltecas chegaram, eles transformaram este local num campo
de morte."
"Não é de admirar que Reksnys tenha se estabelecido aqui",
murmurou Costas. "Ele devia sentir-se em casa."
"O fato é que para os europeus medievais este local deve ter
parecido uma visão do inferno", disse Jack. "Para os vikings,
ele teria ultrapassado seus piores pesadelos sobre o fim do
mundo, sobre Ragnarok. Para qualquer prisioneiro trazido
para cá, isso significava uma passagem apenas de ida para o
inferno de Dante."
"Há algo mais que eu queria que vissem", disse Jeremy
caminhando vivamente. "Sigam-me." Eles passaram pela
Plataforma das Cabeças e saíram do recinto central, depois
seguiram Jeremy por um amplo caminho cerimonial que
descia em declive pouco inclinado, através da selva, em
direção ao norte. Após cerca de duzentos metros, eles
subiram uma ladeira rochosa irregular e pararam à beira de
uma plataforma erodida. A frente deles havia um vasto
buraco de escoamento de água, com cerca de cinqüenta
metros de largura e vinte de profundidade, sua borda se
salientava em meio a folhagens viçosas e as paredes de
calcário recuavam para o interior através de uma série de
saliências estriadas. A poça no fundo era de um verde fétido
e estava coberta por uma densa camada de algas e vegetação
caída. Não havia ponto de acesso para a água e eles podiam
perceber que qualquer infeliz que escorregasse da plataforma
não conseguiria escapar.
"O Cenote de Sacrifício em Chichén Itzá", murmurou Jack.
"Sempre quis vê-lo."
"Cenote?" indagou Costas.
"É um termo espanhol para a palavra maia dzonot, que
significa Poço Sagrado, Poço de Sacrifício", explicou Jeremy.
"Eu estava falando sobre isso na praia. Todo o Iucatã era
antigamente um recife de coral, depois tornou-se um platô
de pedra calcária durante a Idade do Gelo, quando o nível do
mar baixou. Durante milhares de anos a água da chuva
impregnou o calcário e formou um grande labirinto de
cavernas e túneis, preenchidos com estalactites e
estalagmites. Depois, no fim da Idade do Gelo, oito mil anos
atrás, o nível do mar subiu de novo e o sistema foi
inundado. Cavernas com tetos que permaneceram acima da
água finalmente desmoronaram, criando buracos de
escoamento como este."
"E os tremores de terra?"
"Nós estamos exatamente ao sul de um local que sofreu um
grande impacto de meteorito, a cratera de Chicxulub, que
fica por baixo de uma grande área do norte do Iucatã."
"Aquele impacto que destruiu os dinossauros?" perguntou
Costas olhando ao seu redor simulando alarme. "Existe algo
ruim que não aconteceu aqui?"
Jeremy sorriu. "O desastre dos dinossauros é verdadeiro. A
beirada é assinalada por um anel de cenotes, muitos deles
desmoronaram e se transformaram em buracos de
escoamento. Ninguém, na verdade, sabe por que, mas a
cratera que fica por debaixo tem uma espécie de efeito
desestabilizante sobre a pedra calcária."
"Um paraíso para mergulhadores de caverna."
"Isto é incrível", entusiasmou-se Jeremy. "Mergulhadores
exploraram cinqüenta sistemas, ao longo de cem
quilômetros. Alguns deles são rios subterrâneos que correm
para o mar. Debaixo do calcário, o rio é um cristal límpido, é
como nadar em um aquário cheio de formações de calcita
espetaculares. Mas também é letal. Ele me impediu de
aprender a mergulhar quando estive aqui como estudante.
Mais mergulhadores morreram aqui do que em qualquer
outro lugar do mundo."
"Os toltecas teriam aprovado", disse Jack.
"Deixe-me adivinhar", disse Costas. "Eles também
sacrificaram humanos aqui."
"O Poço de Sacrifício foi dragado pela primeira vez para
procurar artefatos nos anos 1930, mas depois, nos anos
1950, ele foi um dos primeiros sítios arqueológicos a ser
explorado usando mergulhadores", replicou Jack. "Houve
outras expedições. Cousteau esteve aqui. Os depósitos mais
profundos ainda estão inexplorados, mas um grande número
de artefatos foi encontrado, tais como vasilhas de cerâmica,
ouro, jade. Quase todos eles foram atirados intactos para
dentro do poço, depositados ritualisticamente. E foram
encontrados esqueletos humanos. Centenas deles."
"A história se repete por todo o Iucatã", acrescentou Jeremy.
"Cenotes eram a fonte de água fresca para os maias, mas
também eram entradas para o inferno. Eles sacrificavam
guerreiros, donzelas, crianças. Aquela pequena construção
mais adiante é a temazcal, uma espécie de sauna onde as
vítimas eram ritualmente purificadas. As saliências de pedra
pelas quais acabamos de passar eram os assentos dos
espectadores, onde a elite tolteca podia sentar-se e assistir."
"Acho que a variedade é o tempero da vida", murmurou
Costas com repugnância. "Depois de ter visto milhares de
corações removidos violentamente ali atrás no templo,
pode-se desejar uma mudança de cenário."
Um oficial apareceu suando e ofegando atrás deles no
caminho processional, acenando com um celular e pedindo
para Jeremy pegá-lo. Jeremy hesitou, sabendo que havia sido
considerado equivocadamente o líder do grupo. Ele olhou
para Jack, que sorriu e lhe fez um gesto para ir em frente.
Quando Jeremy subiu com o oficial para encontrar um lugar
melhor para atender à chamada, Jack se voltou e examinou
com cuidado a beirada da plataforma. A poça parecia
estranhamente benigna, mas por um instante sua respiração
se contraiu quando sentiu o horror das vítimas, mil anos
atrás, colocadas na beirada do inferno.
"Você diz que ainda há material aí embaixo?" Costas
enxugou o brilho do suor do rosto, depois olhou de modo
inquisitivo para Jack.
"A maioria dos artefatos e dos ossos que estavam por cima
foi retirada, mas ainda há depósitos profundamente
enterrados onde se podem encontrar os objetos mais
pesados."
"Você está pensando o mesmo que eu?"
"Seu perfurador que funciona abaixo do fundo do mar",
replicou Jack com um sorriso. "Talvez, se as coisas derem
certo no Chifre de Ouro, possamos abordar as autoridades
mexicanas e sugerir umas operações por aqui."
"Você acha que há alguma chance?"
Jack esfregou o queixo e semicerrou os olhos para se
defender do clarão da rocha. "Pelo que Jeremy andou nos
contando, este é o lugar onde troféus de guerra podem ter
sido apresentados aos deuses. Vamos imaginar que Harald e
sua tripulação desembarcaram em algum lugar ao norte
daqui, depois foram capturados."
"Céus, espero que não", disse Costas. "Isto seria uma enorme
decepção depois de tudo pelo que passaram."
"Para os vikings que não tiveram a sorte de morrer em
batalha, havia apenas um destino. Os guerreiros teriam seus
corações extirpados violentamente ali no templo. Quaisquer
servos que sobrevivessem podiam ser escravizados. Talvez o
seu amigo, de alguma forma, tenha feito uma viagem
comprida e difícil para voltar ao monte de pedras erigido
como marco."
"As cicatrizes em seus punhos e tornozelos", disse Costas.
"Grilhões."
Jack aquiesceu. "Outros podem ter sido trazidos para este
lugar para serem sacrificados. Uma procissão espetacular do
templo até o cenote, o clímax de um ritual de vitória.
Exatamente como o triunfo do imperador romano. Aniquilar
os vikings teria sido um grande negócio para os toltecas, a
vitória sobre os gigantes loiros e barbados com suas terríveis
armas de ferro. Eles chegaram aqui como deuses
estrangeiros, e os toltecas os venceram. Os espólios de
guerra devem ter sido apresentados aos deuses."
"A menorá teria sido um sacrifício bem espetacular."
"Quanto você calcula que ela pesava? Cento e cinqüenta,
talvez cento e setenta e cinco quilos?"
"Esta é uma tremenda quantidade de ouro para jogar fora."
"É uma tremenda quantidade." Jack olhou para o verde na
poça debaixo deles, depois de novo para Costas. "E os
toltecas realmente gostavam do seu ouro."
Jeremy reapareceu sobre o cume do calcário e começou a
descer na direção deles. O jovem estava cambaleando
ligeiramente e sentou-se pesadamente sobre a rocha. Eles
podiam ver que Jeremy estava com o rosto pálido.
"O calor está lhe fazendo mal." Costas olhou preocupado
para ele e lhe estendeu sua garrafa de água. "Beba isto e
vamos para a sombra."
"Não é isso." A voz de Jeremy estava rouca, quase inaudível,
e ele deixou a garrafa escorregar por entre os dedos. "Acabei
de falar com Ben. Receio ter más notícias." Ele olhou para
Jack com o rosto aflito. "As piores."
Jack sentiu um aperto de horror no estômago. Tentou
preparar-se. Havia confiado que eles derrotariam as
dificuldades.
"A ligação era de lona", Jeremy parecia desnorteado,
enxugando o suor de seus olhos. Sua voz era apenas um
sussurro. "É sobre o padre O'Connor. Ele foi assassinado. E
Maria desapareceu.


17


Mais tarde, quanto tempo se passara ela não podia dizer,
Maria recobrou consciência de um aterrador abismo de
trevas, sua mente tentando com dificuldade sair de um
horror esquecido que a havia arrastado implacavelmente. Ela
se sentia inacreditavelmente exausta, gastara a energia em
sua luta contra o demônio sem rosto de seus sonhos, no
entanto sentia-se também subjugada pelo entorpecimento
que se segue ao sono profundo. Pelo que parecia uma
eternidade ficou deitada imóvel, entrando e saindo da
consciência, esperando que seu corpo respondesse. Ela se
dava conta da respiração e sentia a dureza da superfície
debaixo de si, o pescoço rígido. Encontrava-se deitada em
posição fetal sobre o lado direito. Estava escuro, mas não tão
negro quanto em seus sonhos. Pelo canto do olho viu o
tremeluzir de uma vela. A parede à sua frente estava coberta
de formas, cores. Ela via manchas vermelhas.
Sua respiração parou. Ela ficou rígida. O estúdio de
O'Connor. Fechou os olhos bem apertados, ansiando outra
vez pelas trevas, qualquer coisa que pudesse apagar uma
realidade em que mal podia acreditar, um horror que ela
tentava desesperadamente repelir para dentro de seus
sonhos.
Maria sentiu uma dor ardente em sua face esquerda. Um
leve toque parecia passar por ela, a alusão de uma brisa.
Repentinamente emitiu um grito agudo e sentou-se
assustada, com o coração batendo descompassado e o sangue
martelando em seus ouvidos, fora de si, esfregando o rosto
enquanto engatinhava para trás. Ela bateu em uma parede,
respirava com grandes aspirações profundas e desiguais,
depois ouviu o esvoaçar de asas baixando sobre ela e
desaparecendo em direção ao alto.
Ergueu a mão e sentiu uma umidade pegajosa em sua
bochecha, depois olhou para cima. A vela revelou um teto
pontudo, muito alto, feito de pequenos blocos de pedra
cobertos com porções de reboco. Parecia antigo, decadente.
No ápice, ela pôde distinguir uma série de figuras pretas
penduradas em fileira.
Eles estiveram se alimentando dela.
Começou a ter enjôos, segurando os braços apertados contra
o estômago e inclinando-se para um lado. Sentiu o hálito
metálico de novo. Tentou levantar-se, com repetidas ânsias
de vômito, desesperada por algo para reparar a repugnância
que sentia, a mácula de morte e violação que dominava
completamente todos os seus pensamentos, isso era tudo
que podia lembrar do que havia se passado antes.
Ela desistiu, tentou se acalmar, estava ofegante. Fechou os
olhos, a bochecha sangrando fortemente pressionada contra
a parede úmida, procurando recuperar as forças
desesperadamente. Ela transpirava muito, o suor escorria
pelo sangue endurecido em sua face. Olhou para baixo.
Estava vestindo apenas suas calças caqui e uma camiseta
rasgada e suja. Alguém havia arrancado seu suéter. Seu
relógio havia sumido. Ela estava queimando, febril. De
súbito, sentiu-se terrivelmente desidratada, desesperada por
uma bebida, e começou a lamber o suor e o sangue em seus
lábios.
Esforçou-se para se endireitar de novo, engoliu forte e
forçou-se a olhar em volta. Tudo parecia úmido, coberto
com um limo esverdeado. Ela se encontrava em um
aposento retangular de cerca de dez metros de comprimento
e cinco de largura. Havia uma espécie de via de acesso em
uma extremidade, uma abertura profunda na escuridão.
Maria pensou nas construções que conhecia em lona, a
antiga capela no lado norte, o refeitório. Rapidamente ela os
descartou. O chão onde se encontrava era de rocha natural,
de pedra calcária pela aparência, polida em alguns lugares,
mas nada como o leito de rocha em Iona. No centro havia
uma placa de madeira, como uma tampa, como se ali fosse
um poço. A tampa parecia feita de uma exótica madeira
dura, mais escura ainda do que um carvalho antigo. Na outra
extremidade do aposento encontrava-se um amontoado de
pedra e cal que havia caído, atravancando o espaço do teto
até o chão. Dos remendos brancos na alvenaria ela podia ver
onde as pedras tinham sido recentemente removidas,
atiradas sobre o chão. Onde a parede de alvenaria se
projetava, ela estava coberta com tábuas de madeira, uma
tela rústica protetora que se estendia do outro lado, por três
metros mais ou menos em direção ao centro do aposento.
Maria levantou-se com as costas apoiadas na parede,
sentindo-se como se estivesse alcoolizada e sem firmeza.
Ficou parada por um instante enquanto uma onda de tontura
passava, depois, de maneira hesitante, caminhou para onde
havia visto as manchas de cor. O calor estava sufocante, era
como caminhar em uma sauna. Uma coisa era certa, ela não
estava mais nas ilhas ocidentais da Escócia. As paredes
pareciam tão antigas quanto as do mosteiro, mas todo o resto
lhe dizia que ela havia sido levada para algum lugar
inacreditavelmente afastado de lona. Era uma possibilidade
que sua mente simplesmente se recusava a analisar mais.
Cambaleou até a parede oposta. A simples vela que
proporcionava a única iluminação estava em uma pequena
pedra plana diante dela. Maria a pegou, lançando sombras
em uma dança enlouquecida ao redor do aposento, depois a
segurou com ambas as mãos para parar de sacudi-la e
examinou a parede.
Sua boca abriu-se de espanto.
Piscou fortemente. Ela sabia que seu corpo quase não tinha
mais reservas de energia, que estivera sem comer e beber
por horas, dias. Ela podia estar alucinando. Olhou de novo.
As manchas vermelhas estavam ali, de fato. Eram de sangue.
Mas não sangue de verdade como no estúdio de O'Connor.
Este era um horror de um tipo diferente. Ela viu sangue
espirrando de pescoços, sangue jorrando de corpos, sangue
derramando em uma rampa cor de chumbo em direção a
uma ladeira cheia de degraus.
Era um afresco, uma parede pintada com barbaridades
inimagináveis, uma execução em massa. Vítimas nuas
estavam sendo levadas para um templo no alto. Lá em cima,
elas eram retalhadas e mantidas no chão do altar, as mãos do
carrasco mergulhavam em suas vísceras, uma outra figura
erguia no alto um coração extirpado. Maria sentiu seu
estômago ficar convulsionado de novo. O executor era um
gigante medonho, estava despido até a cintura e tinha uma
testa larga e achatada e um nariz aquilino, usava uma tanga e
um elaborado adorno de cabeça. Acima dele havia símbolos
estilizados. Jaguares, pássaros, monstros exóticos. O que
estava diretamente acima do executor pareceu subitamente
familiar. Maria lembrou-se do momento que o pesadelo
havia começado, quando ainda estava em seu estúdio em
lona examinando a figura do deus-águia no pingente que
Jack lhe enviara.
Ela piscou fortemente tentando registrar o que estava vendo.
Deu alguns passos vacilantes para trás, a vela oscilando em
suas mãos. A direita ela podia ver as vítimas reunidas como
prisioneiros depois de uma batalha. A pintura na parede era
nitidamente uma narrativa, uma progressão de cenas em
uma história, indo da direita para a esquerda. Ela olhou de
novo para o teto. Tentou pôr em ordem seus pensamentos,
pensar como alguém cuja mente estivesse altamente
treinada. Como se fosse em outra vida, ela lembrou seus
anos com um professor orientador, quando, junto com Jack,
assistira a aulas sobre a história da arquitetura, no tempo em
que ainda não eram formados. Uma abóbada apoiada em
modilhões. Uma grande civilização havia construído todas as
suas abóbadas dessa maneira, nunca havia aprendido a fazer
um arco. Uma civilização famosa por sua arquitetura, infame
por sua crueldade.
Maria olhou outra vez para a parede. Abóbadas apoiadas em
modilhões. Cenas narrativas da direita para a esquerda.
guerreiros medonhos com testas achatadas. Os símbolos,
hieróglifos. Sacrifício humano em um altar de templo,
sacrifícios em escala prodigiosa. Ela começou a pensar no
inacreditável.
Os maias.
Cambaleou para trás, atingida por uma onda de vertigem,
depois reuniu suas forças e deu alguns passos para a direita,
até parar ao lado da tampa de madeira. Maria segurou a vela
contra a parede. Ela estava parada entre duas cenas, as
primeiras da pintura. A cena do início mostrava um combate
naval com longas canoas repletas de guerreiros, uma delas
com uma vela quadrada. A cena seguinte exibia uma batalha
sangrenta, dessa vez em terra. Guerreiros vestidos de
maneira idêntica à do executor estavam lutando com outros
guerreiros, aqueles que logo seriam feitos prisioneiros. Todos
tinham as testas achatadas, mas os vencidos eram ainda
maiores, gigantes. Todos estavam de peitos nus. Em
primeiro plano havia mortos de ambos os lados, alguns
desmembrados, outros dentro de um rio, aparentemente
subterrâneo. Os vitoriosos seguravam clavas e maças, os
vencidos, espadas e achas.
Maria se imobilizou. Espadas e achas.
Ela olhou mais de perto. Começou a tremer e obrigou-se a
firmar a vela. As cabeças inclinadas dos vencidos não
mostravam testas, mas o protetor de nariz dos capacetes.
Embora despidos até a cintura, usavam perneiras, não os
saiotes e as tangas dos vencedores. Tinham barba. E eram
loiros. Eles carregavam espadas largas e enormes e achas de
uma única lâmina.
Achas-de-armas varegues.
Maria cambaleou. Era como se estivesse sonhando o
capítulo final da história que a absorvera nos últimos dias,
um capítulo tão extraordinário que só podia ser fantasia. Ela
desejava que Jack estivesse ali, perto dela, sua calma, a voz
tranqüilizante dizendo-lhe que tudo isso era material de
ficção. Olhou de novo para a cena de sacrifício, para o altar e
o executor, onde a parede parecia estar esvaindo-se em
sangue. Ficou tonta de novo e agachou-se contra a outra
parede, fechando fortemente os olhos, tentando com
desespero acordar outra vez em sua cela em Iona, sentir a
respiração quente e firme de alguém ao seu lado.

"Doutora De Montijo. É bondade sua ter vindo. Os efeitos da
droga vão diminuir em breve." Uma voz dirigia-se a ela, uma
voz real. "Você está no México."
Maria sacudiu-se, já semi-acordada. "Sim", disse ela, a palavra
saiu-lhe antes mesmo que registrasse o que estava
acontecendo. "Eu sei."
"Como?" A voz soou aguda, irritada. Maria tentou levantar-
se, mas escorregou contra a parede na qual havia estado
apoiada. Não conseguia ver nada, sua visão cegada por uma
tocha que incidia diretamente em seu rosto.
Sua boca estava completamente seca, e sua voz era um
grasnido. "Eu descobri."
A tocha abaixou-se e Maria viu um homem baixo, rijo,
parado diante dela, o cabelo preto alisado para trás. Supôs
que ele tivesse cerca de setenta anos, o cabelo era
obviamente tingido, embora seu físico fosse de um homem
trinta anos mais jovem. Os olhos tinham um tom cinza
desbotado.
A verdade ficou clara para Maria. Olhou para ele com
repugnante certeza, mal podendo acreditar que se
encontrava, finalmente, em sua presença. Tudo o mais, seu
estado assustador, mesmo a morte de O'Connor desapareceu
de sua mente. Era ele. Ela lutou para controlar suas emoções,
para manter-se fria. Subitamente estava plenamente
acordada. "Pieter Reksnys. Vejo que seu pai lhe ensinou
muito bem. Lituano, acho? A raça vencedora."
Uma mão moveu-se rapidamente e agarrou o pescoço de
Maria como um torniquete, mostrando uma agilidade
surpreendente para um homem de sua idade. Ele a puxou
em sua direção e levantou-a, segurando-a quase acima do
solo. Através da dor sufocante, Maria sentiu algo familiar,
um repelente cheiro em seu hálito, um odor conhecido.
"Nunca fale outra vez de meu pai, sua judia", disse ele com
tom agudo. "E não pense que ele foi o único que puxou o
gatilho, na época. Eu me divertia muito com as crianças."
Deixou Maria cair e parou muito próximo enquanto ela
tossia, com ânsia de vômito. "Eu só queria que o meu
próprio filho já tivesse nascido na época. Teria deixado seu
avô orgulhoso."
Ele chutou Maria para que virasse e ficasse de costas,
esfregando ostensivamente seu sapato no chão depois disso.
Maria viu uma outra figura avançando para ela. Sua cabeça
mantinha-se abaixada e as mãos entrelaçavam-se e
separavam-se. Seus movimentos repulsivos eram familiares.
Ele a agarrou pelos cabelos e arrastou-a por sobre a tampa de
madeira, chutando esta com força para o lado e empurrando
Maria para o buraco. Ela não conseguia enxergar nada a não
ser trevas, uma abertura profunda que deixou passar uma
rajada de ar mais frio, como se houvesse água em algum
lugar bem abaixo.
"Não se preocupe." Ela foi puxada para cima até ficar de pé e
ver a horrível cicatriz. "Eu reservei a águia de sangue para o
seu namorado. Quando eu a atirar no inferno você nem
morrerá. Pelo menos era isso o que os toltecas diziam para as
suas vítimas." A voz era rouca, asquerosa, menos refinada
que a de seu pai. Ele fez como se fosse empurrá-la e depois a
puxou de volta com brutalidade. "Meu tipo de gente." Ele
riu, um cacarejo alto, insano, depois atirou-a para o chão.
"Por enquanto você pode ser de alguma utilidade para o
félag. Aproveite suas pequenas férias em seu refúgio
enquanto pode."
"O verdadeiro félag morreu setecentos anos atrás." Maria
ergueu a cabeça e tentou fitar Loki. "Os homens de Harald
Hardraade nunca teriam admitido uma escória como você.
Eles nem o considerariam digno de uma hostilidade
sangrenta."
Loki quis atacar Maria, mas Reksnys o segurou, impedindo-
o. "Ainda não", ele murmurou. Voltou-se para Maria,
desculpando-se com um jeito zombeteiro. "Meu filho ainda
tem essas noções românticas. Ele pensa que está na SS."
"É muito fraco para isso."
Loki fez menção de atacá-la de novo e mais uma vez
Reksnys o segurou. "O nosso félag era um meio para um fim.
Nada mais, nada menos. E parece provável que riremos por
último no que se refere a Harald Hardraade."
Loki mostrou os dentes e deu meia-volta afastando-se
abruptamente. Dirigiu-se rapidamente para fora saindo pela
entrada lateral do aposento. Maria rastejou de novo até a
parede. Reksnys lhe deu uma pequena garrafa de água.
"Então agora nos conhecemos. Preciso de auxílio de um
especialista. Você vai me ajudar."
Reksnys pegou uma câmera digital e apontou-a para ela.
Maria começou a perder os sentidos, caindo no chão, depois
olhou para Reksnys e lembrou o que ele e seu filho haviam
feito. O'Connor havia garantido que fosse feita justiça contra
o pai de Reksnys, arriscara sua vida nisso e pagara o preço
derradeiro. Ela devia a ele fazer tudo que estivesse em seu
alcance para terminar aquele trabalho. E devia isso também a
si mesma.
Ela seria forte.

Jack estava parado pensativo na sala de controle do Seaquest
II, bebendo um café e observando uma chuva distante no
mar. O céu estava coberto de ameaçadoras nuvens
cinzentas; as altas nuvens que eles tinham visto na praia,
naquela manhã, tinham sido substituídas por uma massa
escura que vinha do Caribe. Quando o sol brilhava através
dela, cortinas de luz dependuravam-se e entrelaçavam-se,
misturando-se no céu como as luzes do norte que tinham
visto na Groenlândia, mas pesadas com o presságio do tempo
que iria fazer.
"Parece que vamos pegar um pouco de chuva." O capitão
canadense do Seaquest II subiu até onde estava Jack,
examinando atentamente o mar com seus binóculos.
"Estamos quase entrando na estação dos furacões. Como
precaução, estou encerrando as atividades. Começamos a
nos distanciar da costa e vou prender o helicóptero no
hangar."
Jack resmungou. Não eram as notícias que ele desejava
ouvir. "Obrigado. Faça o que tem de fazer."
O capitão se afastou para a ponte de comando e James
Macleod levantou-se do console de computador onde
estivera avaliando dados do fiorde gelado. Todos no
aposento estavam cientes da presença de Jack, mas haviam
se mantido à distância. Alguns deles tinham estado no
primeiro Seaquest e se lembravam da perda de Peter Howe
no mar Negro, de como Jack havia assumido pessoalmente a
responsabilidade. Maria tinha sido muitíssimo popular entre
a tripulação, bem como entre os cientistas, durante a estada
deles no fiorde gelado. Até mesmo Lanowski estava calado,
e passava de modo calmo para Jack uma série de dados,
impressos pelo computador, sobre o drakar no iceberg que
havia corrigido a partir das imagens fotogramétricas.
Macleod foi para o lado de Jack perto da janela. "Quanto
tempo você acha que ficaremos aqui?", perguntou baixinho.
Jack voltou-se e olhou para ele com o rosto cansado e
distante, depois fitou o mar novamente. "Eu não sei, James.
Não sei exatamente." Ele pressionou os lábios e pôs o café de
lado. Eles tinham voltado a bordo já fazia quase seis horas e
ainda não havia nenhuma palavra de Iona. Tudo o que
tinham para prosseguir na busca era uma breve mensagem,
por telefone, para o quartel-general da IMU, enviada pelo
companheiro de O'Connor, o homem que Jack lembrava ter
visto rapidamente no mosteiro. Ao que parecia a polícia
estava mantendo o assassinato completamente encoberto, e
nada vazara para os meios de comunicação. Mas não havia
dúvidas sobre os fatos. O padre O'Connor estava morto, e
Maria desaparecera.
"Devemos assumir que ela foi seqüestrada." Ben estava
dentro do alcance da conversa deles e fora postar-se do
outro lado de Jack. "Enquanto não há um corpo, é assim que
devemos considerar."
"Eu sei." Jack soltou o ar violentamente, depois se afastou do
parapeito com as mãos nos quadris, o seu jeito habitual havia
voltado. "Precisamos nos prender a isso. Temos de supor
que logo teremos mais notícias. Até lá não há nada que
possamos fazer. Devemos manter uma situação normal."
Olhou para Macleod, com uma expressão soturna, mas
determinada. "Aqui está sua resposta. Meu plano depois de
visitar Chichén Itzá era conferir toda a evidência possível
sobre o norte do Iucatã, da segunda metade do século XI até
a época em que Harald pode ter estado aqui. Pinturas nas
paredes, hieróglifos, estruturas. Qualquer coisa que possa
proporcionar uma pista." Apontou para Jeremy, de costas
para eles, curvado sobre uma tela no canto e rodeado por
livros abertos. "Designei Jeremy para verificar isto desde o
momento que voltamos."
"Ele está muito abalado", murmurou Macleod.
"Ele venerava O'Connor", disse Jack calmamente. "E Maria é
sua orientadora. Para alguém como ele, isso é como puxar o
tapete de debaixo de seus pés."
"Ele agora tem a nós", replicou Macleod.
"É um bom rapaz", disse Jack.
Costas tinha estado digitando na estação de trabalho perto de
Jeremy, e inclinou-se na cadeira quando eles olharam para
lá. "Jack, há algo aqui para examinar com interesse. Eu pulei
os trâmites usuais e entrei em contato com o sujeito da IMU
responsável pelo Caribe, Jim Hales, e Grand Cayman. Você
sabe que ele é um velho camarada meu do laboratório de
pesquisa de submersíveis da Marinha dos Estados Unidos.
Ele foi direto para a cidade do México e os responsáveis nos
deram o sinal verde para ir a Chichén Itzá. É espantoso
como esse sujeito se livra da burocracia. Em qualquer
momento que você quiser iniciar um projeto naquele
cenote, eu tenho os números de telefones de contato."
"Isso soa como um plano." Jack encontrou o olhar de Costas
e soube que ambos sentiam a necessidade de se manter
numa atitude positiva, ir em frente. "Vou fazer um pedido
para termos prioridade para usar o perfurador que funciona
abaixo do fundo do mar depois que ele tiver terminado o
trabalho no Chifre de Ouro. Jeremy, você está conosco
nisso?"
Jeremy olhou para eles, pálido e distraído. "Hum? Se Maria
me deixar." Ele subitamente se conteve, e a sala ficou
silenciosa.
"Ela deixará", disse Jack com firmeza.
Jeremy tentou com dificuldade manter uma expressão
corajosa. "De todo jeito não tenho certeza de que o Poço de
Sacrifício seja o lugar onde quero ter minha primeira
experiência de mergulho em água profunda."
"Não se preocupe." Costas colocou a mão sobre o ombro de
Jeremy. "Vamos primeiro mergulhar onde há alguns corais."
Uma luz vermelha começou a acender no meio da sala. Ben
olhou para Jack com o rosto profundamente sério. "Para a
ponte de comando." Os dois homens saíram rapidamente da
sala de controle e subiram a escada, seguidos por Costas. O
capitão estava atarefado e ocupado junto com o oficial-chefe
em olhar pelo binóculo, mas imediatamente fez um gesto
em direção à sala de mapas. "Mensagem prioritária no canal
de segurança." Ben foi o primeiro a entrar na sala e pegou o
rádio-receptor, falando rapidamente e depois colocando-o
de lado. "Era do quartel-general da IMU. Há uma mensagem
por e-mail. Ela é dirigida a vocês em um site de segurança e
nos deram uma senha."
Costas já estava sentado ao computador na mesa de mapas.
"Ok. Estamos conectados. Endereço?" Ben o leu e Costas
digitou no teclado. "Senha?"
Ben hesitou, depois olhou para Jack. "Menorá."
Costas soltou um assobio baixo. "Bem, isto revela o jogo."
Os nós dos dedos de Jack estavam brancos quando ele
agarrou a cadeira de Costas, e sua voz soava rouca. "Nós
supúnhamos com quem estávamos nos defrontando. Esse e-
mail confirma nossas suspeitas."
"Ele está endereçado a você, Jack." Costas inclinou-se para o
lado para deixar Jack ler o curto e-mail que apareceu na tela.

Para: Jack Howard
Você e Kazantzakis devem vir pelo Zodiac esta madrugada,
à uma hora, no local de desembarque na praia que visitaram
esta manhã. Tragam equipamentos para mergulhar em
caverna. Vocês mesmos vendarão seus olhos e esperarão
nossa chegada. Qualquer tentativa de envolver segurança ou
estabelecer contato com alguém e sua colega será executada.

"Maria está viva", respirou Jack, aliviado. "Graças a Deus."
"O local de desembarque na praia", murmurou Ben. "Não me
surpreende que eles soubessem onde estávamos.
Provavelmente foram informados pela polícia mexicana. Se
foi Reksnys quem enviou o e-mail, ele deve ter olhos
espreitando por toda parte ao longo dessa costa."
"E equipamento para caverna", murmurou Costas. "O que
diabos significa isto? Eu não vou mergulhar na caverna
enquanto estiver chovendo. Todos os bolsões de ar vão ser
alagados."
"Eles devem ter encontrado algo", disse Jack.
"Aquela senha?"
"Espero realmente que não."
"Maria está em algum lugar por aqui, perto de nós", disse
Ben. "Eles devem tê-la trazido de lona para cá. Reksnys tem
um jato particular, e seu próprio esconderijo na selva. Essa é
uma das poucas coisas que você não disfarça de uma
vigilância por satélite. E ele deve ter sido informado que o
Seaquest II estava vindo para cá mesmo antes de eles
chegarem a Iona."
"Suponho que o ataque tenha sido feito por um só homem",
disse Jack desoladamente.
"Loki."
"Eles nos enviaram uma foto. É melhor nos prepararmos."
Costas clicou em um anexo abaixo da mensagem, e uma
cena começou a surgir. A foto fora tirada com flash dentro
de uma espécie de aposento com um chão de pedras
irregulares e velhas paredes cobertas com algo esverdeado.
Quando a imagem se abriu, eles puderam ver uma figura
caída no chão, uma mulher. Era aterrorizante, uma imagem
de tortura, o tipo de cena que vazava do Iraque e buracos do
inferno inenarráveis do Terceiro Mundo. Ela estava imunda,
usando uma roupa parcialmente rasgada no peito. O cabelo
preto enrodilhado no pescoço, e os braços com manchas
verdes do chão. Ela tinha tentado olhar para a câmera, mas
desistira na hora do flash. Os olhos apresentavam-se
inchados e fechados, a boca estava salpicada de branco, e ela
tinha uma escoriação horrenda na bochecha da qual gotejava
sangue e pus.
Jack sentiu um choque brusco ao reconhecê-la. "Maria." Ele
se sentiu mal fisicamente. Suas mãos escorregaram de trás da
cadeira e ele sentou-se pesadamente em um banco que havia
ao lado. Olhou de novo para a imagem. Seu horror
transformou-se em fúria, em raiva descontrolada.
O capitão apareceu na porta. "Mensagem de Iona. Há um
policial judicial que tem licença para falar conosco." O
capitão olhou para a tela, com hesitação.
"Estou indo." A voz de Jack era fria, sem emoção.
Dez minutos depois, Jack estava de volta à sala de controle.
Apenas Jeremy se encontrava ali. Macleod e Lanowski
haviam ido para o convés da ponte de comando alguns
minutos antes. Jeremy estava silencioso diante da tela,
trabalhando quietamente, ocupado em imprimir imagens da
web e anotando endereços das páginas de arte tolteca.
Acima dele, a janela estava pontilhada com as primeiras
gotas de chuva e Jack pôde ver que o tempo estava piorando
rapidamente. Ele parou, sentindo-se completamente
esgotado pelo que acabara de ouvir, olhou de novo para
Jeremy e depois caminhou em meio aos consoles. Puxou
uma cadeira e virou-a para sentar-se de costas para a janela,
depois examinou com cuidado as imagens de Jeremy.
"Bom trabalho", ele disse baixinho. "Eu nunca conseguiria
interpretar esse material. Não estudei arqueologia da
América Central como você."
"Eu fiz uma descoberta realmente interessante." Jeremy
passou uma folha de papel para Jack. "Você se lembra da
antiga profecia asteca sobre o retorno do rei-deus
Quetzalcóatl? Quando os espanhóis chegaram a
Tenochtitlán, no México Central, em 1519, o imperador
Montezuma pensou que Cortês fosse Quetzalcóatl. Essa foi
uma das razões por que a conquista espanhola ocorreu tão
rapidamente."
"Continue."
"Bem, Quetzalcóatl era um tolteca, um rei semi-lendário. De
acordo com a lenda asteca no tempo de Montezuma, ele
havia sido exilado do seu reino cinco séculos antes, e
prometera retornar da terra do sol nascente."
"Cinco séculos antes", refletiu Jack. "Isso o coloca no século
XI, diretamente no nosso período."
"Certo. A terra do sol nascente, na direção leste a partir da
área central asteca, no vale do México, era quase certamente
a península do Iucatã. Há alguma confirmação histórica
sobre isso, porque foi mais ou menos na época que os
toltecas invadiram Chichén Itzá."
Jack olhou firme para Jeremy, ia começar a falar, depois
resolveu deixá-lo continuar.
"As coisas ficam realmente intrigantes quando você olha
para as fontes maias", disse Jeremy.
"O que sabemos dos últimos anos dos maias provém,
sobretudo, dos Livros de Chilam Balam o Profeta Jaguar,
escritos na maior parte por escribas locais em alfabeto latino
depois da conquista espanhola. Cada um deles é relacionado
a uma comunidade diferente no Iucatã norte, um pouco
como as sagas na Islândia. Uma das profecias mais
extraordinárias refere-se à chegada de homens barbados do
leste."
"Você está me acompanhando? Muitos estudiosos
descartaram isso como um embelezamento posterior do
livro. Alguns dos livros não foram escritos até o século
XVIII ou XIX. Mas um outro livro acaba de ser encontrado,
dentre todos os lugares possíveis, logo nos arquivos do
Vaticano em Roma. Ele parece ser o primeiro de todos os
livros conhecidos, em parte registrado em escrita maia, e,
aparentemente, foi confiscado pelos primeiros jesuítas
missionários no Iucatã no século XVI. O livro contém
lendas e profecias da comunidade ao norte de Chichén Itzá.
Há a mesma história de homens barbados, mas com uma
alteração. Nessa narrativa eles têm um rei, e ele luta uma
grande batalha contra os opressores dos maias,
presumivelmente os toltecas. Depois ele desaparece no
mundo de baixo, e os maias esperam o seu retorno. Esta
pode ser a origem da profecia Quetzalcóatl dos astecas,
exceto que na história maia ele é chamado Wukub Kaqix, a
monstruosa divindade-pássaro, o deus-águia."
Jack olhou para a figura do pingente de jade pregada ao lado
do monitor. "Há uma bela imagem-modelo disponível."
"Mas também é o nome do navio de Harald Hardraade, o
Águia. Nas sagas nórdicas há alguns indícios de que, quando
os vikings vão para a guerra sem intenção de retornar,
queimam suas embarcações; eles às vezes cortam a proa dos
navios e as carregam como estandartes de batalha. Este era o
sinal de que lutariam até a morte, de que tinham apenas
passagem de ida para o Valhala. Era uma maneira de
provocar medo nos corações de seus inimigos. Talvez tenha
sido isto que aconteceu aqui, e os maias locais perceberam."
"Fantástico. Isto é fantástico, Jeremy. Isto é exatamente o
que estávamos procurando." Subitamente Jack inclinou-se
para a frente e pôs a cabeça entre as mãos, toda aparência de
bonomia desaparecera. Ele não podia mais esconder os fatos
de Jeremy. "Há algo que preciso lhe contar. Tivemos
notícias de Iona."
"Eu sei." Jeremy falou suavemente, e pôs de lado o livro que
estava segurando. Jack olhou para ele. Jeremy parecia muito
mais velho que o entusiástico estudante recém-formado que
ele conhecera uma semana antes. "Eu soube no momento
em que ouvi que O'Connor tinha sido assassinado. Ele me
falou disso, preparou-me para isso. Eu sei o que aconteceu
em lona." Jeremy fez uma pausa, tentou falar, depois as
palavras saíram como um sussurro rouco. "A águia de
sangue?


18

Já passava da meia-noite, provavelmente era quase uma hora
da madrugada. A escuridão se fazia sentir quando Jack e
Costas saíram sem fazer barulho do Seaquest II e dirigiram o
Zodiac para a praia, alcançando o local do encontro pouco
antes da hora marcada. Tudo o que Jack podia ouvir agora
era o barulho incessante da chuva, o som que subia num
crescendo e caía de novo enquanto a água do temporal os
encharcava. A umidade era implacável. Jack sabia que estava
em um veículo pequeno, possivelmente um de quatro rodas
pelo barulho que fazia, curvado no assento de trás ao lado de
Costas. Por um tempo que pareceu uma eternidade, mas que
deve ter sido de apenas meia hora, eles ficaram pulando e
colidindo entre si em uma trilha bastante acidentada rumo a
algum lugar dentro da selva. O ferimento na coxa de Jack
latejava. Eles tinham seguido as instruções escrupulosamente
e esperado vendados atrás do Zodiac com seus
equipamentos de mergulho. O seqüestrador tinha chegado
sem dizer palavra, apressando-os para dentro do veículo sem
revelar nada sobre si mesmo ou para onde estavam indo. Era
enervante, mas Jack sentia-se seguro tendo Costas
chocando-se ao seu lado e praguejando a cada sulco e
buraco.
Desde que haviam recebido o e-mail com o ultimato, Jack
soubera que eles ficariam sozinhos, que deveriam seguir as
ordens dos seqüestradores de Maria e confiar na sorte. O que
quer que os aguardasse, parecia certo que envolveria
mergulho. E com o caminho que estavam tomando agora,
supor que fosse em algum lugar afastado da costa parecia
plausível. Cenotes, rios subterrâneos. A chuva estava
começando a irritar Jack. Com uma tempestade dessas, as
águas de inundações poderiam ser perigosamente altas,
preenchendo as cavernas subterrâneas. E, por estarem perto
do mar, as correntes de água fresca que tornavam o Iucatã
parecido com um favo de mel possivelmente se tornariam
traiçoeiramente fortes, sugando a água da chuva através dos
labirintos de canais calcários e ejetando-a para o mar.
O veículo parou e Jack voltou rapidamente para a realidade.
Ele foi puxado pela porta e guiado através de um solo
acidentado, escorregando na vegetação molhada. A chuva
era torrencial, martelando seus sentidos. Depois encontrou-
se dentro de uma espécie de abrigo, fora da chuva, mas com
vapor quente. Costas chocou-se atrás dele, e Jack ouviu
quando seus equipamentos foram retirados. Em seguida,
empurraram-no de novo para a frente. Sua venda foi tirada,
fazendo-o piscar e vacilar. Com movimentos rudes
colocaram-lhe uma fita adesiva ao redor dos pulsos. Ele
estava em algum lugar escuro, com luz de vela. Avistou
Costas próximo, à sua esquerda, e um homem diante deles.
Jack imediatamente soube quem era. Pieter Reksnys era o
retrato escarrado de seu pai Andrius, o homem que Jack
havia visto na foto da equipe SS Ahnenerbe na Groenlândia,
a foto que Kangia tinha dado a Macleod.
Kangia. O fiorde gelado. Tudo isso parecia estar a um zilhão
de milhas distante, antes que atravessassem uma fronteira
para chegar até aqui, a este lugar onde o inferno e seus
demônios pareciam ser muito mais do que apenas um
pesadelo medieval.
Jack olhou ao seu redor. Eles estavam em um aposento, uma
sala de pedra, talvez de alguma igreja muito antiga. O local
era tão quente como uma sala de caldeiras, e Jack estava
molhado de suor. O teto era alto, sustentado sobre
modilhões. Havia um buraco circular no chão. A parede ao
seu lado estava pintada, centelhas vívidas de cores reveladas
pela luz da vela.
Então ele viu Maria.
Ele tinha tentado se preparar, olhara para a fotografia
enviada por e-mail antes que eles deixassem o Seaquest II,
mas a realidade ainda era chocante. Ela estava sentada,
apoiada na parede oposta ao mural, atordoada, oscilando
ligeiramente, as pernas e os pulsos estavam amarrados
juntos. A boca estava coberta com fita adesiva. A face exibia
vários arranhões e estava inchada, e na bochecha via-se uma
ferida causada por espancamento. Seus olhos se
encontraram.
Jack tentou controlar sua raiva. "Ele fez isso a você?"
Maria olhou para ele suplicante, depois sacudiu a cabeça,
apontando para alguém atrás de Jack. Ele virou-se e viu a
outra pessoa além deles no aposento, o homem que os havia
apanhado na praia. Devia ser Loki. O mesmo cabelo alisado
para trás, a magreza, as feições maldosas, os olhos
desbotados. Tal pai, tal filho. Loki arreganhou os dentes
quando viu que Jack olhava para ele, voltou-se para a luz,
passou um dedo pela bochecha pressionando-a. Então Jack
lembrou a descrição de O'Connor. A cicatriz.
Costas ficara olhando horrorizado para Maria, e então de
repente lançou-se contra Loki. A resposta foi
pavorosamente flexível, rápida e natural como a de um
animal de caça. Loki imobilizou Costas com um golpe de
luta-livre e estava puxando sua cabeça para cima e de um
lado para o outro. Levantando-o do chão sem fazer força,
apesar do peso maior de Costas.
"Solte-o." Jack ouviu a voz de Reksnys pela primeira vez,
áspera e dissonante, um sotaque indefinido com um toque
do Leste europeu. Loki obedeceu a seu pai e empurrou
Costas para longe. Jack fitou Loki. Este era o assassino
implacável descrito por O'Connor, um operador
independente que gostava de trabalhar sozinho, no entanto,
ele era totalmente subserviente a seu pai. A raiva não era a
sua única fraqueza.
Costas ergueu-se, fazendo ostensivamente caretas de
repugnância, limpando seu ombro com as costas da mão no
lugar em que Loki o segurara. Loki olhou com sarcasmo e
retirou-se para um canto distante do aposento para ficar à
espreita. Reksnys puxou uma pistola, imediatamente
reconhecida por Jack como sendo uma Luger da época
nazista, e apontou-a para as pernas de Maria.
"Primeiro um joelho, depois o outro. Depois trato do meu
assunto." Sua voz tinha uma aspereza repelente. "Ou vocês
param com as tolices."
De início, não houve reação de Costas, depois uma
aquiescência carrancuda. Maria tinha ficado como uma folha
branca à vista da pistola, e a fitava estupidificada.
Reksnys voltou-se para Jack. "Eu quero que você examine
aquela parede pintada. Com muito cuidado."
Jack olhou impassível para ele. Depois se voltou para Maria,
que concordou debilmente, resmungando através da fita
adesiva em sua boca, encorajando-o. Jack lançou a Reksnys
um olhar de desprezo e depois se virou para o mural. Ele era
bidimensional, sem profundidade. Outrora tinha sido uma
deslumbrante explosão de cores, marrons profundos,
vermelhos e verdes, num fundo azul e amarelo. Jack
imediatamente captou a seqüência narrativa, os vitoriosos e
os vencidos. À direita ele viu uma mescla de embarcações,
guerreiros vestidos de maneira elaborada com as testas
achatadas, embarcações com os remos dispostos
simetricamente. Uma embarcação com a vela quadrada,
guerreiros diferentes.
Uma vela quadrada.
A cena seguinte era uma batalha feroz na selva. Alguns
lutavam em terra firme, outros em um rio de correnteza
rápida e parecia que estavam debaixo do solo. Corpos
mutilados jaziam por toda parte. Os vitoriosos carregavam
atlatls, lanças e escudos quadrados com a figura de um deus
da guerra. Eram comandados por um guerreiro-águia, um
gigante musculoso que usava uma máscara de águia com um
olho fixo, asas nas costas e grandes e violentas garras nos
pés. Seus guerreiros traziam ornatos para a cabeça feitos com
pele de jaguar, braceletes nos tornozelos e nos pulsos,
pesados colares de jade e pingentes nas orelhas. Lutavam
com clavas e caíam sobre suas vítimas com olhos
enfurecidos e aterradores. Os oponentes tinham escudos
redondos e vermelhos, proteções para a cabeça diferentes, e
armas diferentes também.
Jack examinou de novo as armas com atenção. Ele olhou
para Maria de soslaio. A amiga devia ter ficado paralisada por
esta cena, olhando para ela quando estava deitada no chão,
antes da chegada deles. Ela também devia ter visto o que ele
acabara de ver. Maria acenou para ele quase
imperceptivelmente. Ela tinha visto. Ele voltou-se.
Agora ele compreendia.
Jack não demonstrou nada em sua expressão. Ele se moveu
para a esquerda. Os guerreiros capturados estavam no chão,
alguns deitados de costas, outros ajoelhados. Alguns estavam
agrilhoados, homens que não estavam vestidos como
guerreiros, servos capturados sendo levados para servir
como escravos pessoais por cada um dos guerreiros
vitoriosos. Jack pensou no esqueleto viking em L'Anse aux
Meadows, no homem que de alguma maneira fez a longa e
difícil viagem de três mil milhas para o norte, que quase
viajou de volta para o seu próprio mundo. Era desse pesadelo
que ele estava fugindo.
A cena seguinte dominava a pintura. Jack viu imagens
horrendas de morte, de mutilação. No topo de uma
plataforma construída em terraços estava parado um rei-
sacerdote usando a máscara do deus-águia. Ele estava dando
as sentenças para aqueles vencidos na batalha. No degrau
inferior havia prisioneiros sofrendo torturas, as unhas de
seus dedos sendo arrancadas. Alguns degraus acima, um
prisioneiro erguia as mãos pedindo misericórdia em vão e
um outro estava estendido nos degraus, desmaiado,
sangrando profusamente pelos dedos. No topo, o sacerdote
mergulhava uma faca no peito da vítima, arrancando-lhe o
coração, a alma ascendendo do altar para o céu numa trilha
sangrenta. Uma cabeça cortada repousava em um leito de
folhas, e outras caíam em uma cascata de sangue pelos
degraus. Ao redor de tudo isso havia fogo, piras flamejantes
de incenso. O ritual não era restrito aos infelizes prisioneiros
de guerra. Debaixo de uma divindade com cara de caveira,
os guerreiros toltecas ofereciam seu próprio sangue saído de
ferimentos auto-infligidos, derramando-se sobre seus
corpos. Em uma mesa de pedra ao lado do rei havia Ires
mulheres magnificamente enfeitadas e com as cabeças
raspadas, e uma serva lhes oferecia um instrumento para
fazer sair sangue. Uma mulher estava puxando uma corda
enfeitada com pregos por um buraco feito em sua língua. Ao
lado dela um nobre fazia a mesma coisa através de seu pênis.
Jack virou-se. Reksnys olhava de soslaio para ele desfrutando
suas reações. "Eu mesmo encontrei esta construção, anos
atrás, quando adquiri esta terra", disse ele. "É um templo na
selva, um aposento onde se realizavam sacrifícios acima de
um cenote sagrado." Ele acenou a cabeça em direção ao
buraco negro no centro do chão. "Percorri esta selva
durante anos, procurando por um achado como este. O que
eu descobri é realmente notável. Nós, no félag,
suspeitávamos da existência de uma coisa como esta, mas
nunca havia evidência."
"Evidência de quê?" perguntou Jack.
Reksnys ignorou-o. "Nossas fontes nos contaram que você
estava procurando a menorá."
"Fontes", disse Jack com escárnio. "Você quer dizer que
torturou o padre O'Connor."
"O'Connor foi de grande auxílio para nós", replicou Reksnys
com a voz subitamente aguda. "Mas não da maneira que
você pensa. No Vaticano ele se tornou menos cuidadoso.
Penetrar no Arco de Tito foi um passo demasiado ousado.
O'Connor tinha um superior que informava tudo o que ele
fazia. Nós já sabíamos sobre esta mulher."
Ele apontou Maria com a cabeça e, ao ver o meio sorriso de
Jack, de repente estreitou os olhos. "Esta informação lhe é
inútil agora. Não haverá conseqüências se eu lhe contar ou
não, e estou apenas partilhando a história de minha
descoberta com você como um companheiro arqueólogo."
Jack olhou de um lado para outro. "Não vejo nenhum
arqueólogo aqui."
Reksnys fingiu não ter ouvido. "Soubemos que você foi até a
Groenlândia. É claro que sabemos sobre o navio dentro do
gelo, descoberto por meu pai com a expedição da
Ahnenerbe em 1930. Pouco antes de morrer, ele me contou
a história completa, como Künzl roubou a pedra de runa
dele e tentou matá-lo com sua adaga da SS na fenda.
Felizmente meu pai tinha uma memória fotográfica e pôde
reproduzir os símbolos para um conhecedor de runas, em
nosso proveito, mais tarde, depois da guerra."
"Tenho certeza de que a memória de todas as mulheres e
crianças que ele assassinou na frente oriental o mantinham
acordado de noite", disse Jack de maneira extremamente
fria.
"Apenas para contá-las." Reksnys resfolegou, depois
continuou. "Algo me fez lembrar deste pequeno templo,
algo sobre um vislumbre que tive anos atrás sobre aquela
cena de batalha, o aparecimento de guerreiros vindos do
mar. Quando eu o encontrei, o templo estava tragado pela
selva e cheio de entulho. Nenhum dos maias locais se
aproximava deste lugar. Algo absurdo a respeito de um deus-
águia, o retorno de um rei. Eu me lembrei de Harald
Hardraade, a menorá. O principal sonho dos félag. Era
apenas possível. Limpei o templo sozinho, pedra por pedra."
Ele parecia contente consigo mesmo de um modo infantil.
"Isso tem sido um passatempo muito satisfatório."
"Não faça joguinhos comigo", disse Jack friamente, olhando
de novo para trás. "Isto é mais do que um passatempo. É
uma obsessão. E é ilegal."
Reksnys olhou zangado para Jack e estalou os dedos. Loki
aproximou-se como um raio, ficando frente a frente com
Jack, empurrando-o para trás, a cicatriz lívida em sua face
voltada para ele. Loki estava nitidamente acostumado a
intimidar os que eram mais fracos do que ele, mas Jack era
uma cabeça mais alto e olhava para Loki desdenhosamente.
"Basta." Reksnys vociferou o comando e Loki gritou palavras
ásperas com as mãos se entrelaçando e se afastando, os olhos
voltados para seu pai como um cachorro fitando o dono.
"Vai haver tempo para isso mais tarde." Loki foi embora
rapidamente, e Reksnys voltou-se para o mural. "E agora a
razão pela qual você está aqui." Ele caminhou e levantou o
grande painel de madeira no lado esquerdo da parede, junto
ao entulho. "Aqui."
Era a cena final. Uma procissão estava sendo guiada para
longe da base do templo. Era a única cena que não estava
encharcada de sangue, embora as figuras fossem mais
espalhafatosas ainda, mais extravagantemente ornadas do
que antes. Algumas eram humanas, outras sobrenaturais.
Músicos cantavam e batiam o ritmo com trombetas, cabaças
e chocalhos. Uma carapaça de tartaruga aberta revelava um
deus vertendo líquido de um jarro. Outros emergiam de uma
carapaça de caranguejo, das mandíbulas de uma serpente.
Guerreiros e mulheres moviam-se em meio a filas de
portadores de tochas. Um jaguar comia um coração humano.
Uma comitiva de mascarados fazia representações,
contorcendo-se, serpenteando de um lado para outro, um
deles vestido como crocodilo e um outro como caranguejo,
com enormes pinças erguidas bem no alto. Um time de
jogadores de bola, com cinturões protetores e joelheiras,
colidiam entre si, um deles sendo levado de volta para o
templo por um sacerdote que praticava sacrifícios. Acima da
procissão viam-se postes onde haviam sido espetadas
caveiras humanas. Algumas estavam esfoladas, caveiras
lúbricas como as esculturas em Chichén Itzá. Outras eram
vítimas mais recentes, com o cabelo e a carne ainda
revestindo-as. Cabelos amarelos. Barbas.
Diante do cortejo havia um espaço que Reksnys deixara
coberto com um tecido protetor. Mas conduzindo até ele
havia uma fileira de mulheres vestidas de branco, com as
testas achatadas e cabelos vermelhos atados atrás, adornadas
com imensos penteados e penas verdes do pássaro sagrado
quetzal, caindo em tranças pelas costas.
Era uma procissão triunfal. Uma outra imagem passou como
um flash pela mente de Jack, uma imagem que parecia
inacreditavelmente distante do mundo do Iucatã. O Arco de
Tito em Roma. A procissão através do Fórum. O triunfo de
Vespasiano sobre os judeus.
Jack deu alguns passos para a esquerda, os olhos de Loki
seguiram-no com cuidado. A representação final ainda
estava em parte escondida pelo entulho, mas era bastante
clara. Tratava-se de uma forma abstrata, como um caldeirão,
sua extremidade assinalando o fim do caminho processional.
Eram as mandíbulas do mundo de baixo, gigantescas,
escancaradas, ávidas por sacrifícios.
Chichén Itzá. O Cenote de Sacrifício.
Reksnys foi para perto do tecido e colocou a mão no canto
inferior. "Acredito que isto é onde nos encontramos agora."
Ele falava com Jack como se fossem colegas arqueólogos. "O
mundo de baixo, o fim da procissão. Todos sabemos quem
foram os vencedores. Acredito que a procissão da vitória
terminou onde estamos parados agora, na entrada para este
cenote abaixo de nós." Ele falou de modo confiante, com a
convicção incondicional do ignorante. Jack encontrou o
olhar de Maria de novo. Dessa vez ela sacudiu a cabeça. Jack
olhou de novo. Ele percebeu que não havia nada na pintura
para identificar o lugar. Poderia ser uma das dezenas de
locais cerimoniais dos toltecas. A única conexão que eles
tinham com Chichén Itzá era a inscrição na runa de pedra
de L'Anse aux Meadows. E isso Reksnys não sabia, estava
em segurança, trancada a chave, a bordo do Seaquest II.
"Eu descobri o que você estava a ponto de encontrar apenas
três dias atrás, logo antes de o félag cobrar sua vingança
daquele que nos traiu. Uma feliz coincidência para a sua
colega que está aqui." Reksnys sacudiu sua pistola em
direção a Maria. "Soubemos que o seu navio estava no
Caribe e supusemos que nossos caminhos estavam
convergindo. Eu pensei que poderíamos nos beneficiar da
sua perícia. Esta é a única razão pela qual meu filho não
praticou sua arte sobre ela também."
Reksnys ficou de costas para a parede, depois com um
rápido movimento levantou o tecido.
Fez-se um silêncio espantado. Jack sentiu seu queixo cair,
depois recobrou a compostura. Algo que Maria dissera uma
vez voltou a ele, algo sobre a erudição rabínica.
Traçado pelo dedo divino. Traçado por um dedo de fogo.
Era a menorá.
Sete braços, sete hastes amarelas brilhando como se
estivessem em chamas, irradiando esplendor como raios de
luz. Na frente da procissão triunfal, erguida diante do Poço
de Sacrifício.
Jack olhou para Maria, que fitava a imagem em transe, como
se estivesse retirando forças dela.
Abruptamente, Reksnys deixou o tecido cair, escondendo a
imagem, e soltou um riso rouco. "Chocado?"
"Eu percebi que você não olhou para ela", disse Jack
friamente. "Ou não conseguiu."
"Eu a desprezo. Não desejo olhar, eu mesmo, para esse
objeto. Ele é um meio para um fim." Reksnys acenou para
Loki, que puxou Maria e apertou-a contra si. Reksnys
manteve-a à distância de seu braço, cutucando-a com o cano
de sua Luger, um olhar de aversão em seu rosto. Depois ele
encostou a arma na parte estreita de suas costas apontando-a
para baixo. "Eu sei exatamente como fazê-lo. Uma morte
lenta, prolongada. Tenho muita experiência com esse tipo de
coisa." Ele apontou com a cabeça para os respiradores e as
mochilas de mergulho colocadas ao lado do buraco no chão.
Olhou para Jack. "Você é o mais famoso explorador mundial
debaixo d'água, não?" Sua voz saía com desprezo e escárnio.
"Agora você e seu amigo irão para o mundo de baixo
descobrir o que desejo."


19
Jack bateu na água com um som retumbante, e o eco
ressoou pelas paredes da caverna. Costas o havia precedido e
já estava pondo em funcionamento um reconhecedor
subaquático, o arco de luz da sua headlamp iluminava agora
um dos lados. Jack rapidamente liberou o mosquetão
colocado na corda e deu um puxão. A corda começou a
subir, e Jack seguiu o brilho do metal do mosquetão
enquanto este era içado pelo estreito feixe de luz até o
buraco no teto calcário quase vinte metros acima. Ele e
Costas haviam se equipado no aposento antigo apenas alguns
minutos antes, vestindo o equipamento que Reksnys lhes
ordenara trazer do Seaquest II. Jack recusou-se a divulgar
qualquer um de seus pensamentos sobre a parede pintada, e
Maria tinha permanecido obstinadamente calada no
aposento mesmo depois que a fita adesiva fora retirada de
sua boca.
Jack estava convencido de que a cena com a menorá
mostrava o Poço de Sacrifício em Chichén Itzá, não neste
local. No entanto, todas as indicações eram de que Reksnys
tinha razão em pensar que o túnel diante deles continha
alguma pista sobre a última parada de Harald Hardraade. A
localização do templo acima da caverna, a representação da
batalha na selva com o rio correndo abaixo dele, um local de
tradição maia.
Não houve oportunidade de estabelecer contato com a
equipe de segurança, que ficara de prontidão desde que ele e
Costas haviam deixado o Zodiac duas horas antes. Jack sabia
que o Lynx estava no ar em algum lugar a pouca distância da
praia, mas Ben e Andy não podiam fazer nada até que Jack e
Costas tivessem encontrado uma maneira de enviar por
rádio suas coordenadas e confirmar que a situação de Maria
era bastante segura para uma intervenção. Jack tinha lançado
a Maria um olhar tranqüilizador antes de colocar seu
capacete, havia permanecido frio e sereno enquanto Loki o
introduzia pelo buraco. Mas sua mente estava tumultuada,
acelerada, cheia de adrenalina diante da perspectiva do que
poderia haver adiante, embora examinasse todas as
possibilidades que poderiam ocorrer se voltassem de mãos
vazias. No momento as opções eram poucas e nada boas.
A voz de Costas chegou pelo intercomunicador. "Há um rio
subaquático correndo de um extremo a outro no fundo desta
câmara, cerca de oito metros abaixo de você. A corrente é
bem perigosa. Não são exatamente condições de mergulho
recomendadas em caverna."
"Recebido e entendido", replicou Jack flutuando na
superfície e seguindo a área de luz que assinalava o avanço
de Costas. Ele testou o seu compensador de flutuabilidade e
rodou um sistema de verificação no computador que
controlava o seu suprimento de gás. Eles estavam usando
respiradores de circuito semi-fechado, sistemas de misturas
variáveis de gás que lhes possibilitavam ir até profundidades
maiores que aquela permitida pelo oxigênio puro ou pelo ar.
Era uma precaução, porque não esperavam que o sistema da
caverna excedesse a profundidade máxima de trinta metros,
típica dos cenotes do Iucatã.
"Lembre-me acerca do cálcio carbonato", disse Jack.
Costas foi para a superfície ao lado de Jack inflando o colete
de flutuação em sua mochila e ajustando o intercomunicador
no capacete. "Pedra calcária dissolvida", ele disse. "Durante a
Idade do Gelo, tudo aqui estava acima da água. Foi quando as
estalactites e estalagmites que agora estão debaixo da água se
formaram. Depois, no fim da Idade do Gelo, o nível do mar
subiu e as cavernas ficaram inundadas. Deixe algo acima da
água em uma dessas cavernas e ele ficará revestido de
calcário. Jogue-o na água e ele permanecerá como novo.
Estamos descendo em água doce, cerca de quinze metros
abaixo, quando nos deparamos com água salgada."
Jack olhou para cima para o fino feixe de luz que fluía do
teto, e para as perigosas paredes laterais que ele mal pudera
examinar ao descer. A corda e o dispositivo que haviam
usado para descê-los agora tinham sido puxados de novo,
para esperar seu retorno. Ele pensou em Maria e respirou
profundamente no respirador. Fez um sinal de ok para
Costas. "Certo. Vamos continuar avançando." Esvaziaram o
ar de seus coletes e foram para debaixo da superfície, com
Jack seguindo Costas logo acima da corrente. Fazia mais frio
do que no mar, justificando seus macacões de mergulho
completos, mas era refrescante depois do calor tórrido lá de
cima. Ambos tinham headlamps triplas em seus capacetes, e
os feixes de luz revelaram uma cena impressionante quando
eles chegaram mais perto. As estalagmites erigiam-se da base
da caverna em agrupamentos, revestindo as cavernas e as
grutas. A água era clara como cristal, a mais clara que Jack
jamais vira, tremeluzindo com cores pastéis. Eles desceram
mais e flutuaram na corrente, os braços esticados e as
nadadeiras estendidas para mantê-los estáveis. Segundos
depois, passaram impetuosamente sob uma saliência para
dentro de um túnel escuro, deixando para trás a luz sombria
da entrada do aposento.
"Quando não está chovendo, este túnel fica parcialmente
acima da água", disse Costas. "Pode-se notar a linha da água
nas paredes ao nosso lado, com uma nova formação de
cálcio sobre elas. Parece que normalmente havia espaço
suficiente para uma pequena canoa ou jangada."
Costas pegou um lightstick do tamanho de um lápis, dobrou-
o para misturar as substâncias químicas e jogou-o dentro de
uma fenda. Jack observou o brilho esverdeado desaparecer
atrás deles e Costas pegou mais meia dúzia de lightsticks.
"Suponho que vamos querer voltar por este caminho", disse
ele. "A corrente enfraquece perto do teto, de modo que não
haverá problema."
Jack virou-se e viu uma abóbada de rocha sem nenhuma das
ondulações reveladoras das bolsas de ar. Eles tinham
avançado pelo menos duzentos metros desde a entrada,
talvez mais. "Algum palpite sobre quanto falta?", ele
perguntou.
"Calculo que estamos procurando por outra câmara, de
algum modo acessível a partir da câmara de entrada. Se este
túnel mergulhar para baixo da linha da água, então estamos
na trilha errada." Enquanto Costas falava, a passagem
começou a fazer exatamente o oposto, erguendo-se e
alargando-se, e seus feixes de luz refletiam o lado inferior de
um poço de água que se expandia acima deles até onde
podiam enxergar. "Ei!, rápido."
Eles subiram à superfície e olharam ao redor, intimidados.
Encontravam-se dentro de uma outra caverna enorme, com
pelo menos cinqüenta metros de largura, estendendo-se em
uma grande cúpula que atingia o chão da selva. Era como
Jack imaginava que o cenote sagrado em Chichén Itzá devia
ser, antes que o teto de pedra calcária cedesse.
Diferentemente da entrada da outra câmara, esta estava
escura como breu, sem abertura visível para a superfície.
Nadaram lentamente através do poço, com suas luzes
refletindo formas fantásticas que os deslumbravam como
esculturas no gelo. Estalagmites surgiam das profundezas
como respiradouros vulcânicos sob o mar, algumas delas
unindo-se a estalactites para formar colunas contínuas como
os pilares de alguma grande catedral. Eles podiam perceber a
força da natureza ainda trabalhando. A água da chuva
infiltrando-se pelo teto de pedra calcária e gotejando nas
formações expostas, adicionando um novo esplendor de
minerais em um processo que começara milhares de anos
antes que a história humana tocasse esse lugar pela primeira
vez.
No centro havia uma ilhota, do tipo que parecia ser
resultado inteiramente de crescimento calcário. A superfície
era feita de um arranjo de formas que lembrava uma cidadela
fantástica. Enormes trepadeiras penduravam-se sobre ela
vindas bem de cima, as raízes fossilizadas de árvores mortas
havia muito tempo.
Quando a rampa para a ilhota se tornou visível, Costas foi até
o fundo, cerca de oito metros abaixo. Ele subitamente
parecia estar sendo puxado para um lado, e Jack o viu agarrar
uma estalagmite e içar-se para a rampa até libertar-se da
correnteza e poder nadar livremente.
"Isso foi assustador." Costas parou cerca de cinco metros
abaixo de Jack, para recuperar o fôlego. "Nunca seremos
capazes de nadar contra essa corrente. Dê uma olhada à
direita e verá para onde ela vai."
Jack olhou com atenção para um ponto diretamente oposto
à entrada do túnel. Ele pôde ver uma leve perturbação onde
o rio subaquático passava com ímpeto através da câmara,
saindo sob uma saliência perto da base da caverna cerca de
vinte metros à frente. Era um buraco negro, um lugar
proibido sem nenhum sinal de luz adiante. Jack percebeu
como chegara perto de perder Costas. Fechou os olhos e
praguejou consigo mesmo. Como era freqüente em
mergulho, era a decisão casual e as condições
enganosamente benignas que quase sempre tinham
conseqüências fatais. Jack não havia pensado duas vezes
quando Costas decidiu descer, embora o perigo fosse tão
grande quanto aquele que tinham enfrentado no iceberg ou
nos túneis da Atlântida. E em mergulho em cavernas
raramente havia uma segunda chance, não havia retorno
depois de uma iniciativa errada.
"Jack, encontrei algo." Costas estava um pouco acima na
rampa, mas a parte superior de seu corpo estava entalada em
uma fissura. Jack mergulhou para perto dele, mantendo um
olhar cauteloso sobre a corrente poucos metros abaixo.
Costas emergiu em uma nuvem de sedimento fino e
estendeu um objeto para Jack. "Dê uma olhada nisso."
Era um osso de maxilar humano. Um osso pequeno, de
criança. Estava escurecido pela idade, mas perfeitamente
preservado. Costas estendeu o resto do crânio para o
companheiro, e Jack pôde ver as órbitas dos olhos, as linhas
onde os ossos do crânio ainda não tinham se fundido. "Eles
estão por toda parte", disse Costas. "Centenas deles." Jack
olhou ao redor. Deitados sobre os sedimentos, empilhados
nas bases das estalagmites, fazendo caretas debaixo das
saliências. Crânios, ossos de pernas, costelas. Ele estendeu a
mão para o sedimento e puxou para fora um pequeno
pingente de jade, modelado como o maxilar escancarado de
algum animal mítico, como a imagem do mundo de baixo na
parede pintada no templo. Deu uma olhada através das águas
translúcidas para o buraco negro onde o rio desaparecia, e de
repente sentiu uma certeza deprimente.
"Sacrifício humano", disse ele. "Os toltecas deviam descer
junto com suas vítimas pelo buraco no teto exatamente
onde estávamos, depois remar até esta câmara. Aqui era o
limite de seu mundo de baixo, o mais próximo desse mundo
que podiam chegar. Quando a corrente estava forte, depois
de uma tempestade, eles podiam atirar suas vítimas dentro
das próprias entranhas do mundo de baixo, observá-las
serem sugadas dentro do buraco negro e para fora da
existência terrestre. Este deve ter sido o último lugar de
sacrifício."
"Parece que não somos capazes de ir além daqui",
murmurou Costas. "Estou começando a ansiar pelos vikings
de novo."
"Você pode estar com sorte."
"O que quer dizer?"
"Rampa acima, cerca de três metros. Na extremidade da
ilha."
Havia um esqueleto distinto dos outros, com desgaste
diferente nos dentes. Ele havia sido perversamente
esmagado, como se a vítima tivesse sofrido um golpe
violento na face. Mas não era o esqueleto que havia atraído
o interesse de Jack. Era o que estava usando.
Um capacete de metal dourado, em forma de cone, com
uma longa proteção de nariz.
O coração de Jack começou a acelerar. Ele deslizou com
suavidade até o fundo, levantando nuvens de sedimento
fino. Potes maias, intactos. Mais ossos humanos. Um disco
brilhante, de ouro, coberto com hieróglifos. Uma
empunhadura que sobressaía de um facão, coberta por uma
camada de ferro. Uma empunhadura de espada. Ao lado dela
um longo bastão de madeira, um brilho de metal na
extremidade.
Com uma excitação crescente, Jack arrastou-se para fora da
água, Costas atrás dele. Os dois homens livraram-se
rapidamente dos respiradores e das nadadeiras e os
guardaram num canto. Com os capacetes removidos, eles
podiam ouvir o barulho da caverna, a água gotejando no
poço, o bater de asas de morcegos, sons sinistros
aumentados e distorcidos pelo eco. Escalaram até uma
plataforma plana e examinaram a ilha subterrânea. Ela tinha
cerca de dez metros de diâmetro, elevando-se em forma de
cone no meio, coberta de uma acreção macia. O centro era
formado por uma única e gigantesca estalagmite, erguendo-
se do chão da caverna até perto do teto, onde a queda do
cálcio infiltrado havia sido maior. Ao redor viam-se
estalagmites que se haviam formado mais recentemente à
medida que a estrutura do teto mudava, algumas abaixo das
raízes de árvores calcificadas que estavam dependuradas ao
redor delas como uma fantástica mortalha.
Jack estava carregando um farolete, e circulou-o pela ilha
antes de colocar a mão na estalagmite mais próxima. Ela
tinha uma forma peculiar, parecendo quase se curvar acima
deles; a julgar pela aparência, não era mais extraordinária do
que qualquer outra coisa que estavam vendo ao redor.
"Meu Deus." A voz de Jack estava vibrando, ecoando.
"O que é?"
Jack deu uns passos cambaleantes para trás, depois incidiu o
farolete sobre a estalagmite. Ele lembrava o que Jeremy
sugerira quando falaram pela última vez. Sua voz estava
tensa por causa do assombro. "Lembra do nosso drakar
dentro do gelo?"
Costas seguiu seu olhar, perplexo, e depois ofegou. O topo
da estalagmite tinha uma forma de bulbo que se prolongava
em curva. Eles estavam olhando para a proa de um navio
viking, os detalhes de sua superfície perdidos debaixo de um
milênio de acreção, mas a forma era inequívoca. Era uma
visão espantosa.
"Eles devem tê-la trazido consigo do navio", murmurou
Jack. "Erigiram-na aqui, um último estandarte de batalha."
Ele dirigiu o farolete para a forma bulbosa no topo. "O
Aguiar
"Olhe dos dois lados", exclamou Costas. "Eu posso estar
eirado, mas adio que é um muro de proteção."
Jack viu uma linha de solidificação de cerca de um metro de
altura estendida em arco diante da entrada da caverna.
Costas tinha razão. A linha de junção das duas superfícies
estava ondulando com uma regularidade chocante, feita com
semicírculos idênticos, cada um com a extensão de uma
mão. Três de um lado do pilar da proa e quatro do outro.
Eles pareciam ter estado cobertos de gelo. Abaixo deles
havia longas formas quadradas que poderiam ter sido vigas,
talvez uma viga mestra recuperada do navio. Jack lembrou-
se de Jeremy contando-lhe sobre defesas vikings construídas
com vigas de navio. Ele olhou para o muro, para o espaço
atrás deste, a partir do qual os defensores deveriam ter
oferecido resistência. Era a visão mais espantosa de todas.
Contra o baluarte estava a forma espectral de um homem,
apoiado em suas costas, os membros separados. Ele já fora
uma caveira, mas agora estava coberto com uma camada tão
grossa de sedimentos que parecia estar coberto de carne de
novo, como uma das formas de gesso dos corpos da Pompéia
romana.
Estava usando um capacete. A forma cônica, a proteção de
nariz, apenas distinguível na acreção. Havia um escudo,
emergindo em um ângulo como se tivesse sido marretado. O
homem tinha sido alto, pelo menos da altura de Jack.
Jack o fitava, paralisado.
Podia ser ele?
Ele inclinou-se de novo sobre o muro de proteção
fossilizado, sua voz rouca de emoção. "Na parede pintada,
havia aquele rio debaixo da batalha na selva. Eu acho que é
onde estamos agora. Acho também que foi onde o drama
final foi interpretado. O último lugar onde esteve Harald
Hardraade."
"Você acha que os inimigos na pintura eram realmente
vikings?"
"A imagem da menorá aponta para isto."
"Então foi até aqui que Harald avançou por mar."
"Vamos imaginar uma dúzia deles, não muitos mais", disse
Jack. "O tamanho do exército vencido que se vê na pintura
foi provavelmente um exagero, uma maneira de fazer a
vitória parecer maior." Ele fez uma pausa para reunir seus
pensamentos. "Eles entraram para o interior com tudo que
puderam trazer, suas armas e armaduras, seus tesouros, tudo
que podiam facilmente recuperar e carregar do navio para
construir um refúgio. Um pouco como Cortês e seu
pequeno bando de conquistadores centenas de anos mais
tarde, somente que com a intenção de jamais retornar."
"Então eles dão de cara com os habitantes locais."
"Os maias ficam deslumbrados, pensam que eles são deuses,
salvadores que chegaram para libertá-los dos toltecas. Mas as
notícias se espalham até os toltecas, até o chefe supremo de
Chichén Itzá. Ele envia um exército e há uma batalha
desesperada na selva. Os poucos sobreviventes procuram um
refúgio, um lugar seguro final. Rorke's Drift, o Álamo. No
Iucatã, se o que se quer é um lugar seguro, é preciso ir para o
subterrâneo. Eles descobrem o templo na selva, talvez
tenham sido enviados para cá pelos maias. Percorrem seu
caminho pela rota do sacrifício. Iluminam o caminho com
tochas ardentes, talvez queimem seu madeiramento na ilha.
Guerreiros vikings totalmente preparados para a batalha,
prontos para defender sua muralha de proteção no fim do
mundo, envoltos em fogo. Mas duvido que os toltecas
tenham ficado amedrontados. Assim que os toltecas os
encontram e os seguem, trata-se apenas de uma questão de
tempo antes de eles serem completamente dominados."
"Espero que, para o bem deles, não tenham sido feitos
prisioneiros."
"O único sobre o qual sabemos algo é o seu amigo de L'Anse
aux Meadows. Provavelmente um servo. Jeremy contou-me
que os toltecas às vezes pegavam os servos de seus inimigos
para ser seus escravos, uma maneira de caracterizar o seu
domínio sobre os vencidos. Pode-se ver isso na parede
pintada. Talvez ele fosse um desertor. Alguns dos vikings
deviam estar semi-loucos, morrendo de fome. Talvez ele
tenha contado aos toltecas sobre este lugar. Talvez tenha
escapado anos mais tarde e a viagem de volta a L'Anse aux
Meadows seria uma espécie de reparação. Nunca saberemos.
Mas ele não foi o único a sobreviver. A julgar pela pintura,
vários dos guerreiros de Harald passaram pelo horror
derradeiro, foram levados a Chichén Itzá para sacrifício."
"Com a menorá."
Jack lembrou de repente a imagem de tirar o fôlego que
tinham visto na pintura, a irradiação flamejante. "Reksnys
está errado. Estou convencido de que a menorá não está
aqui. Os toltecas podem ter deixado aqui armas vikings
como oferendas, mas acho que eles tiraram a menorá do
local de batalha e a levaram consigo. Sabemos que os
toltecas não ofereceram todos os tesouros de Harald para os
deuses, porque temos aquelas duas moedas incorporadas ao
pingente de jade de L'Anse aux Meadows."
"O que nos deixa com um problema."
"Reksnys vai ficar desapontado."
"Não podemos voltar de mãos vazias", disse Costas. "No
melhor dos casos estaremos ganhando tempo, mas
provavelmente não muito. As chances são de que
voltaríamos para aquele buraco de novo, mortos antes de
atingirmos a água. Como o próprio Reksnys disse, Maria só
está viva por causa de um capricho. Assim que ele descobrir
que não temos a menorá, seremos eliminados. Estas pessoas
são sempre assim." Costas olhou para Jack. "Ele permitirá
que o temperamento do filho se manifeste."
"Eles podiam tentar nos seguir aqui embaixo."
"Loki poderia. Havia no aposento um par de velhos
equipamentos de mergulho, equipamentos que Reksnys
trouxera antes de aparecer a oportunidade de nos utilizar, e
Loki poderia facilmente seguir a trilha de luzes através do
túnel. Mas se ele decidir vir atrás de nós é porque está
furioso. Isso significaria a morte para Maria."
"Você está pensando o mesmo que eu?"
"Não temos escolha alguma."
"Esses sistemas de rios subaquáticos sempre se elevam em
algum lugar", Costas disse tristemente. "Mas poderiam ser
milhas."
"Poderia ser menos."
Cinco minutos depois eles se sentaram, completamente
equipados, em um lugar raso, suas luzes acesas de novo nos
capacetes. Acostumados com a ressonância do aposento,
suas vozes soavam baixas e distantes através do
intercomunicador. Costas terminou de examinar o
respirador de Jack, depois olhou atentamente para ele.
"Você está pronto para enfrentar isto?"
"Todas as outras opções estão excluídas. Não há saída da
caverna."
"Ok. Estamos procurando luz natural, qualquer vestígio.
Agora já passam das cinco da manhã, então logo virá a
aurora. Vamos deixar a corrente nos levar. Pelo menos
teremos certeza de que sairemos em algum lugar. Podemos
ir?"
"Vamos lá."
Eles deslizaram para a água e desceram em direção à
escuridão. Depois que haviam tomado a decisão, Jack não se
permitiu pensar em nada além da natureza prática das coisas
que eles estavam executando. Poucos minutos antes, isto
tinha parecido morte certa, uma via de mão única que quase
matara Costas. Agora haviam resolvido segui-la. Ele olhou
para a escuridão escancarada do túnel à frente. Sua mente
não aceitava a possibilidade de fracasso. Este lugar tinha
todos os ingredientes de seu pior pesadelo, e esta era a única
maneira de enfrentá-lo. Ele se manteria concentrado.
Pensou em Maria.
Subitamente foram tragados pela correnteza. O corpo de
Jack havia sido virado e ele lutava para se endireitar,
levemente ciente da enorme velocidade, as estalagmites
luminosas aparecendo e desaparecendo como gigantescas
sentinelas brancas de cada lado. Então se viram no túnel,
girando loucamente, escuridão por toda volta. O túnel
parecia correr por linhas sinuosas e rodar como uma besta
selvagem, procurando um caminho por entre as obstruções
de calcita, listavam completamente à mercê da correnteza,
confiando que o fluxo os impediria de ir de encontro às
paredes calcárias. Jack forçou a cabeça para a frente até seu
corpo alinhar-se com o túnel. Costas estava à sua esquerda, e
ambos estenderam os braços numa tentativa desesperada
para usar as mãos como hidrofólios. Formas bulbosas
apareciam saídas do nada, reveladas pelo feixe de luz de suas
headlamps, e depois de passarem a apenas alguns
centímetros desapareciam atrás deles. Subitamente, Jack
tornou-se cônscio de uma bifurcação adiante deles, um
alargamento no túnel dividido por uma coluna, um pilar
branco contra o qual iriam colidir a uma velocidade
espantosa.
"O lado direito do túnel!", gritou Costas. "Posso ver luz!"
Jack desviou repentinamente as mãos para a direita,
obrigando seu corpo a seguir o fluxo principal da corrente.
Isso não serviu de nada. No último segundo ele puxou
violentamente as mãos para evitar esmagá-las contra a
coluna e ambos entraram pelo lado esquerdo do túnel, uma
cova estreita e escura com paredes lisas como numa queda
no gelo. Jack bateu violentamente em Costas e sentiu uma
dor torturante em sua coxa, no lugar de seu ferimento.
Durante um instante aterrador ele estava de novo dentro do
iceberg. "Curva errada", gritou Costas. Jack agarrou-se a ele,
podia ver seu rosto atrás do visor, desvairado. "Este é um
canal lateral", exclamou Costas. "O canal principal estava
fluindo em direção à superfície. Eu vi luz."
A corrente no canal começou a mover-se em círculos,
depois diminuiu de velocidade. Mesmo assim era impossível
nadar contra ela, e eles estavam sendo puxados para baixo,
inexoravelmente. Tentaram agarrar-se às paredes, sem
sucesso. De repente tudo ficou distorcido, enevoado, algo
que Jack havia visto no fiorde gelado quando a água fresca
de gelo derretido da geleira formava uma camada acima da
água do mar. Era uma luz fraca, fugidia, e a mudança nos
índices de refração estavam deixando seus sentidos
confusos. Começou a sentir-se desorientado.
"Droga", exclamou Costas. "Isto corresponde a uma variação
no grau de salinidade. Estamos abaixo do nível do mar."
Era como se eles tivessem passado para uma outra dimensão,
para dentro de um mundo mais escuro. As formações de
cálcio haviam desaparecido agora, e a vista à frente era
desoladora, medonha. O fluxo intenso e direcional da luz
parecia estreitar o túnel, aumentando o desconforto de Jack.
O túnel era elíptico, com cerca de cinco metros de largura,
mas o teto havia baixado e um profundo leito de cascalho
erguia-se do chão. Eles ainda estavam descendo, suas luzes
perfurando um buraco na escuridão. "Quarenta metros de
profundidade", disse Costas. "Os sistemas de cavernas no
Iucatã atingem, no máximo, cinqüenta metros. Vamos ter de
voltar logo para cima." Jack olhou para o seu medidor de
profundidade. Quarenta e seis metros. Cinqüenta e dois
metros. O teto e o chão estavam quase convergindo, e os
dois homens estavam entalados ali agora, fazendo buracos
no cascalho para conseguir espaço. Então, chegaram a uma
parada, levantando uma nuvem de sedimento. Jack dirigiu
sua headlamp para a fenda à frente, uma fresta a apenas
alguns centímetros acima do cascalho. Era um beco sem
saída. Eles estavam presos em uma armadilha.
Costas se colocou ao lado de Jack, seu respirador chocando-
se contra o teto e seu corpo comprimido contra o cascalho.
"Algo não está certo", disse ele. "Estamos sendo puxados
para baixo por uma corrente, e isso deve dar em algum lugar.
E este monte de cascalho se curva nos lados, modelado por
um movimento de água. Deve haver uma saída."
Ele empurrou-se para o lado direito do monte de cascalho e
para dentro de um estreito canal no fundo, enfiando-se ali
até que apenas suas nadadeiras aparecessem. Jack fechou os
olhos, depois os abriu de novo, concentrado-se em
pequenas coisas, como a forma de um fóssil na pedra calcária
a apenas poucos centímetros do seu rosto. Olhou para baixo
na direção em que Costas havia desaparecido. Ele podia ver
que a fenda estava livre de sedimento. Varrida pela corrente.
Costas tinha razão.
"Jack, siga-me." Ele passou a seguir as instruções, enfiando as
mãos dentro do cascalho e içando-se na lateral do túnel.
Sentia o fluxo de água e via a luz à frente. "Isso vai para
cima", disse Costas, excitado. Jack seguiu lentamente,
comprimindo-se contra o seixo rolado que lhe obstruía a
passagem. Quase não havia espaço para se mover, e ele só
podia executar um movimento sinuoso, colidindo a mochila
do respirador contra as paredes de pedra. O túnel à frente
era mais estreito ainda, como um cano de drenagem, liso e
cilíndrico onde a corrente o desgastara, mas com apenas um
metro de diâmetro. Jack nunca havia estado em um espaço
tão estreito. Era mais do que claustrofóbico. Não havia jeito
de eles voltarem, com a corrente pressionando-os por trás, e
qualquer bloqueio no túnel agora selaria seus destinos. As
nadadeiras de Costas estavam poucos centímetros à sua
frente. Jack examinou seu medidor de profundidade e
permaneceu concentrado. Fitou a rocha que estava bem
perto de seu rosto, depois o medidor de profundidade.
Quarenta e um metros. Trinta e sete metros. Eles estavam
subindo, lenta, mas seguramente. Depois o túnel deu uma
virada pronunciada para cima e eles se encontraram em uma
câmara, um vasto espaço preenchido com formas sombrias,
grandes colunas que se elevavam como gigantes vestidos de
branco, chamando-os com gestos para fora do mundo de
baixo. Bem acima, Jack podia ver uma luz fraca, esverdeada,
distinta dos feixes brancos de suas headlamps. Fechou os
olhos de novo, uma onda de alívio passando através dele, o
coração batendo não com medo, mas com alegria. Ele
ergueu-se ao lado de Costas na câmara, a água era tão clara
que eles pareciam estar suspensos no meio do ar como
figuras de alguma cena de apoteose. Depois subiram ao topo
da caverna, apenas dez metros abaixo da superfície da água,
atingindo a fenda na rocha de onde podiam ver brilhar a luz
da aurora.
Mas ainda não havia acabado. A fenda era estreita e apertada,
mal dava para um deles. Não havia outra saída da câmara.
"Por que isto sempre parece acontecer quando mergulho
com você?", perguntou Costas. "Da próxima vez vamos
mergulhar em mar aberto para variar."
"Se houver uma próxima vez." Jack olhou para a brecha
escura aberta abaixo deles, depois para a fenda acima. Ele
podia ver folhagens, as formas oscilantes de árvores
beirando a superfície da água. Seu coração ainda estava
batendo, mas não mais com excitação. Este era um lugar
ridículo para morrer.
"Teremos que nadar para lá", disse Costas. "Você vai
primeiro."
"De jeito nenhum. Você terá de contrair-se e eu posso
ajudar empurrando-o através da fenda."
Costas tirou as correias de seu respirador e deixou-as
dependuradas abaixo dele. Empurrou o corpo até onde pôde
dentro da fissura, cerca de dois metros acima de Jack, depois
abriu o capacete e deixou cair o equipamento. Passou por
Jack, mergulhando verticalmente e desaparecendo no
negrume. Jack arrastou-se atrás de Costas e tentou empurrá-
lo pelas pernas. Nada aconteceu. Ele sentiu-se subitamente
impotente, aterrorizado com a possibilidade de que pudesse
observar seu amigo morrer, apenas a poucos metros da
superfície, preso por suas pernas. Então Costas deu um forte
impulso com as nadadeiras e saiu com ímpeto para cima.
Jack fez uma pausa para recuperar o fôlego, desamarrou as
correias de seu respirador e deixou-as dependuradas ao seu
lado, respirou profundamente cinco vezes e depois abriu o
capacete e deixou o equipamento cair. Içou-se através da
rocha, os olhos abertos para a cerração indistinta da luz do
dia através da água, e conseguiu sair fora. Outro impulso de
suas nadadeiras e atingiu a superfície em um emaranhado de
algas verdes. Em um pequeno poço sob folhagens e
vegetação rasteira.
Costas estava ofegando num canto do poço, parecendo o
monstro da lagoa negra. Ele limpou o limo do rosto,
mergulhou a cabeça e sacudiu-a violentamente, depois se
levantou fora da água e ofereceu uma mão para Jack. "É bom
você se limpar, se não quiser apavorar os nativos."
Depois que Jack saiu e se sacudiu, Costas procurou no bolso
de cima de seu macacão e retirou um dispositivo metálico
fino, do tamanho de uma calculadora de bolso. Deu-lhe uma
batidinha na frente que fez saltar uma antena, e depois
aproximou o dispositivo do ouvido.
"Às vezes você se parece com uma maleta de truques",
arquejou Jack.
"Um guia GPS combinado com um rádio-receptor e
transmissor" revelou Costas. "Tudo que preciso fazer agora é
ativar o sinal rádio-telefônico de SOS e Ben nos localizará.
Posso tentar estabelecer uma conexão de rádio e falar com
ele quando soubermos qual é a situação."
Eles tinham subido ao lado de uma trilha acidentada na
selva. Estava chovendo, uma alternância de chuva torrencial
com garoa. Costas ativou a bússola em seu dispositivo e
rapidamente escolheu uma direção. Dez minutos depois eles
moveram-se lentamente sobre a cúpula de calcário que
cobria o cenote e aproximaram-se do templo de pequena
altura. O jipe que os havia trazido estava no final da trilha.
Jack viu um menino, um maia local, brincando na estrada,
mas ele não os tinha visto. Rodearam a construção
furtivamente e cada um ficou de um lado da entrada, com as
costas contra a parede, à escuta. Não conseguiam ouvir nada.
Jack podia sentir o sal de seu suor juntando-se com a água
no rosto. Ele olhou para Costas e aquiesceu. Os dois homens
entraram pelas laterais no aposento, mantendo-se nas
sombras, pressionando os olhos para enxergar com a luz da
vela. Não havia sinal de Maria ou de Loki. O único ocupante
era um homem sentado no tanque de mergulho, de costas
para eles, limpando uma pistola. Jack fez um gesto para
Costas e voltou para a entrada, vigilante. Costas rastejou até
o homem e colocou o braço em torno de seu pescoço,
tampando-lhe a boca. A pistola caiu com um estrépito.
Costas puxou o homem para perto e falou com rispidez.
"Onde é mesmo que estávamos?"


20

Vinte minutos depois, o barulho da chuva foi sobrepujado
pelo ruído ensurdecedor dos motores do Lynx quando ele
pairou suspenso, varrendo o chão da selva com a corrente
de ar. Dois homens estavam dependurados, descendo com
guinchos através da densa folhagem, e logo atrás deles vinha
uma caixa vermelha de primeiros socorros. Assim que se
encontraram a salvo no chão, o Lynx inclinou-se para a
frente e desapareceu de novo nas nuvens. Jack correu de
onde estava abrigado para tirar a caixa da vegetação rasteira e
depois foi rapidamente ajudar Ben.
"Não sabíamos o que esperar", gritou Ben acima do barulho
do aguaceiro, colocando no coldre a pistola que trazia
engatilhada na mão. "Quando Costas nos enviou por rádio as
coordenadas GPS, nós estávamos apenas a cerca de três
milhas de vocês, voando num padrão de busca para o
interior da costa. O disfarce que imaginamos foi que essa era
uma vistoria aérea de relíquias arqueológicas a pouca
distância da costa. Jeremy veio junto como o único
arqueólogo a bordo. E só porque ele insistiu. Não é muito
conveniente voar sem ser convidado no espaço aéreo
mexicano, cheio de armas, sobretudo à noite; por isso, estou
só com a minha pistola Glock. Mas agora os encontramos, o
Lynx voltou para pegar uni lime completo de segurança e
nós contatamos a polícia."
"Loki desapareceu", gritou Jack. "Obedeceu às ordens de seu
pai para nos seguir na caverna. Levou Maria consigo. Não
confiou em nós. Mas Reksnys é todo seu."
"Vou ter de realizar uma varredura de perímetro, isto é
prioritário."
Jeremy moveu-se em meio à vegetação do local onde havia
aterrissado com os óculos cobertos de vapor e chutando um
monte de trepadeiras. Jack os conduziu através da vegetação
entrelaçada, para longe da trilha, depois direto até o templo.
Na entrada eles sacudiram a água e Jeremy limpou os óculos.
Lá dentro, Costas estava parado com a Luger apontada para
uma forma amordaçada e deitada no chão com o rosto para
baixo, os pulsos e a boca firmemente presos com fita
adesiva. Jeremy saltou, passando por eles, e foi até a parede
pintada olhando cuidadosamente a imagem da menorá,
agora revelada, e para a cena de batalha. "Vikings", ele
entusiasmou-se, os óculos enchendo-se de vapor de novo.
"Vocês estavam certos. Fantástico. E olhe. Tenho certeza de
que esta é uma mulher."
"Há tempo para isto depois." Jack fez um gesto para Costas,
que lhe deu a Luger enquanto Ben ajoelhava-se sobre
Reksnys e amarrava os pulsos presos com mais uma tira de
plástico. "Costas precisa de ajuda para operar o guincho,
Jeremy." Jack passou-lhe a pistola. "Você sabe manejar isto?"
"Passei seis meses na ROTC em Stanford", disse Jeremy
tirando os óculos de novo. "Um mal compreendido senso de
dever depois do 11 de setembro. Isto realmente não é o tipo
de coisa que me agrada."
Jack aquiesceu. "Lembre quem é esse cara. Lembre do que
ele fez para O'Connor e Maria."
"Meu avô trouxe um destes da guerra." Jeremy recolocou os
óculos e pegou a Luger, puxou a culatra para examinar a
câmara e depois a soltou. Ele ajoelhou-se e apertou a Luger
nas costas de Reksnys, puxando sua cabeça brutalmente para
trás e inclinando-se em sua orelha. "Meu amigo Costas
contou-me que você ameaçou Maria com isto. Uma morte
longa, muito lenta." Ele puxou Reksnys para que ficasse em
pé e empurrou-o para a porta, desaparecendo com ele na
chuva. Ben olhou para Jack. "Acho que não temos que nos
preocupar com ele."
"Ok. Vou descer para buscar Maria" disse Jack.
"Não sozinho."
"Não há outra possibilidade. Não temos como recuperar os
respiradores agora. Reksnys tinha aqui dois equipamentos de
mergulho como medida de segurança. E Loki levou um.
Parece que ele usou o regulador octopus para permitir que
Maria respirasse no mesmo tanque. O equipamento que nos
restou não tem um octopus, e de todo o jeito o tanque não
tem ar suficiente que possa ser compartilhado por mim e
Costas para ir e voltar da caverna."
"Eu posso entrar em contato com o Lynx e conseguir um
equipamento do navio por transporte aéreo."
"Não há tempo. Temos tido sorte até agora." Jack ergueu o
cilindro de ar e o colocou nas costas, e ajustou ao mesmo
tempo a jaqueta de estabilização em seu tórax. "Loki vai ficar
furioso. Teria feito melhor se tivesse ficado aqui, e ele sabe
disso. O cara é independente. Seu pai é um brigão malignos,
mas em comparação é um amador. Loki fica dividido entre
obedecer cegamente a toda a tolice do félag, e os seus
instintos malvados. Foi forçado a ir para um lugar onde ele
não fica no controle como gosta. Essa é nossa chance. Mas
também significa que ele vai ser imprevisível. E tenho de
agir agora. Não quero que ele volte para a câmara abaixo de
nós e descubra o que aconteceu. Maria não duraria nem um
segundo. Se ela ainda estiver viva."
"Você não tem uma arma."
"Vou improvisar."
"Farolete?"
"Costas e eu deixamos lightsticks químicos para assinalar o
caminho."
"Boa sorte." Jack resmungou quando Ben passou a corda sob
os seus braços. Costas verificou o ar e o cinto com os pesos,
depois segurou Jack pelos ombros, olhando-o direto nos
olhos. "Sorte-de-batalha", ele disse.
"Sorte-de-batalha." Jack ajustou a máscara, sentou-se na
beirada do buraco e depois deu um impulso em direção ao
poço escuro abaixo de si. Costas e Ben imediatamente
começaram a descê-lo. Jack estava concentrado, todo o seu
ser aplicado em seu objetivo. Ele atingiu a água com o
regulador na boca e imediatamente mergulhou em direção
ao túnel, seguindo a trilha de lightsticks que tinham deixado
cair no chão da caverna apenas uma hora antes. O túnel
parecia menos opressivo agora, e quando olhou à frente ele
viu a extraordinária luminosidade das paredes de calcita
onde elas estavam iluminadas pelos lightsticks, formações
fantásticas de estalagmites e estalactites que apareciam
indistintamente de cada lado como esculturas abstratas de
gelo.
Dez minutos depois de entrar na água, ele viu o poço de luz
à frente que assinalava a última câmara. A luz era diferente,
mais intensa do que a iluminação química. Jack alcançou a
extremidade da câmara, as bolhas de sua descarga de gás
usado cascateando ao longo do teto acima dele, e com
cuidado subiu para a superfície, colocando apenas a cabeça
para fora da água. No centro da caverna, ele podia ver as
bizarras formações de cálcio da ilhota, a cerca de vinte
metros à sua frente. A luz estava vindo do lado oposto da
ilhota e brilhava dirigindo um feixe largo contra o teto.
As bolhas de seu regulador poderiam denunciá-lo. Por um
momento Jack maldisse sua decisão de livrar-se de seus
respiradores no rio subaquático. Teria de nadar na superfície,
esperando não ser percebido.
Tirou a máscara e a prendeu na jaqueta, depois olhou ao
redor procurando algo com que escurecer o rosto, algo para
absorver o clarão se um farolete fosse apontado em sua
direção. Estendeu o braço com cuidado e esfregou com a
mão uma superfície plana bem diante dele. Cheirou a mão e
franziu o nariz. Nitrato de potássio. Excremento de
morcego. Ele pegou mais um pouquinho da rocha e esfregou
por todo o rosto, tomando cuidado para não fazer barulho.
Jack inflou o colete estabilizador, soprando ar no bocal para
evitar o ruído do alimentador de baixa pressão do seu
regulador, depois começou a nadar lentamente em direção à
ilhota.
Alcançou o meio do caminho. Podia sentir a força do rio
subaquático, muito mais forte agora do que quando ele e
Costas decidiram segui-lo. Uma luz girando em volta passou
por seu rosto. Ele gelou. Ela girou de novo, e Jack
recomeçou a nadar. Se fosse descoberto agora, não teria
nenhuma chance. Supôs que Loki estava armado. Tudo
dependia da surpresa.
Jack atingiu a extremidade da ilhota. Ouviu uma voz do
outro lado, aumentada e distorcida na câmara, mas
inequivocamente masculina. Um tom ameaçador e ríspido.
Jack tirou o tanque e as nadadeiras e aproximou-se
silenciosamente do lugar onde ele se lembrava de ter
mergulhado com Costas e de terem visto a primeira pista
extraordinária. Alcançou o lugar raso. O objeto se destacou
facilmente, liberado da acreção, tão bem preservado na água
fresca como aquele que ele tinha encontrado no gelo. Jack
saiu da água, gotejando e enegrecido em seu macacão de
mergulho, e pegou o objeto.
Uma acha-de-armas varegue.
Jack caminhou rapidamente até os contornos salientes da
acreção, grato por estar usando botas de neoprene que
aderiam bem à superfície. Passou pelo muro de proteção
viking fossilizado, a estrutura arqueada da proa do navio, a
forma fantasmagórica do guerreiro capturado. Do topo olhou
para o outro lado da ilhota. Loki estava lá, distante não mais
de dez metros. Ele estava parado de costas para Jack, com as
pernas abertas sobre Maria, que se encontrava deitada de
costas olhando para cima de maneira desafiadora. Loki
segurava uma pistola na mão esquerda, uma Browning High
Power. Na outra mão apontava uma lâmina contra o coração
dela, uma espada. Era a espada varegue que Jack e Costas
tinham visto na água perto da acha.
Jack sentiu um arrepio de horror. A história nunca havia
realmente cessado neste lugar. Ele estava assistindo a algo
enraizado na pedra do Iucatã, impossível de exorcizar. Um
sacrifício humano.
Com uma velocidade relampejante, Jack lançou-se sobre
Loki, brandindo com força a acha, atingindo violentamente
o braço esquerdo de Loki com um único golpe. A pistola
voou para a água ainda presa na mão, girando juntas e
desaparecendo na escuridão. Loki paralisou-se chocado,
depois se virou para encarar Jack com o rosto contraído de
surpresa e raiva. O coto estava jorrando sangue. Ele deixou
cair a espada, cambaleou, ergueu a outra mão até o rosto,
depois cambaleou outra vez e apanhou a espada.
Repentinamente explodiu em ação, arremetendo contra Jack
com uma confusão terrível de velocidade e metal
flamejante. Jack quase foi pego de surpresa, mal teve tempo
de levantar a acha. Aço colidindo com aço, chocando-se
com estrondo, triturando, reverberando um som que não
ecoava no local havia mil anos. O corpo de Jack estremecia
ao aparar os golpes, mas ele sustentava a luta. Era apenas
uma questão de tempo antes que seu oponente falhasse.
Loki já estava muito fraco para impedir o corpo de ir junto
com a espada, balançando, girando quando ele se esforçava
para recuperar o equilíbrio. Ele ficou parado de novo,
tomado por uma fúria de dor, chorando e ofegando,
incitando Jack com a ponta da espada, cambaleando para trás
e se aproximando da beirada da água.
A raiva de Loki havia lançado a sombra de sua própria ruína.
Ele poderia ter permanecido na superfície com seu pai,
deixar a mente governar, preservar sua eficiência letal.
Jack avaliou o peso que tinha em sua mão, exatamente como
havia feito uma vez antes, quando uma outra acha de cabo
longo e com uma única lâmina tinha salvado suas vidas
dentro do iceberg.
Sorte-de-batalha.
Endireitou-se e deu dois passos à frente. Quando girou a
acha, pensou ter visto runas cintilando diante de si, runas no
lugar onde o nome de Halfdan estava escrito na outra acha,
runas que começavam com a mesma letra nórdica.
A acha-de-armas de um poderoso rei. O trovão do Norte.
A acha veio cortando o ar e atingiu Loki no lado da cabeça,
depois pulou da mão de Jack e foi dando cambalhotas para
dentro da água acima do rio subaquático. A cabeça de Loki
oscilou para trás e depois para a frente como a de uma
marionete. Durante um instante aterrador ele pareceu não
ter sido atingido. Em seguida a cicatriz de seu rosto dividiu-
se, separou-se aberta através da órbita do olho. Jack podia
ver os ossos dos maxilares e os dentes, exibindo caretas
horríveis como nas caveiras esculpidas em Chichén Itzá.
Então surgiu o sangue, denso, caindo em gotas que se
espalharam rocha abaixo.
Loki deu um passo à frente, depois escorregou no sangue,
caindo pesadamente, a cabeça batendo forte contra a lateral
de uma estalagmite. Ele ergueu-se tendo seu único braço
como apoio, e ficou oscilando, cambaleante. O lado de seu
rosto apresentava-se agora completamente fendido e o globo
ocular estava pendurado para fora. A respiração era
desarmônica, errática, e ele gemia horrivelmente. Jack podia
ver onde a acha havia cortado profundamente seu cérebro.
Loki cambaleou uma última vez e caiu na água com
estrondo, levando consigo a espada. Durante um momento
ele ficou boiando no meio da água, seu único olho fitando
Jack cegamente, ainda vivo, tentando já sem forças agarrar-
se à superfície. Depois caiu mais profundamente e a
correnteza o levou, arrastando-o para as trevas, fora de vista,
sugado pelo mundo de baixo.
Ele se fora.
Jack deslizou para perto de Maria e eles ficaram na beirada
do poço. Ele estava tremendo com a adrenalina depois do
choque. A mulher agarrava-se ferozmente a ele. A agitação
na água acalmou-se e o único som era o gotejar da água de
chuva infiltrando-se pelo teto, o som aumentado na caverna,
mas suavemente rítmico depois do eco do choque dos aços.
Quando o tremor de Jack diminuiu, Maria olhou para a água
cristalina a alguns centímetros de seu rosto. Ela a alcançou e
puxou algo para fora, um pedaço de rocha polida livre da
acreção. Eles podiam ver inscrições em sua superfície,
rabiscos. Ambos se sentaram.
"É uma pedra de runa", sussurrou Maria.
"Você consegue lê-la?"
"Ela é grosseira, executada a toda pressa", murmurou Maria.
"Como a última coisa escrita no diário de uma expedição
condenada."
"Tente." Jack parecia exausto, sua voz era um mero sussurro.
Maria fez uma pausa, murmurou algumas palavras para si
mesma, depois leu em voz alta. "Apenas Ulf, Finn e Halldor
sobraram. Os scraelings se apoderaram da outra câmara.
Thor nos protege. Hann til ragnamks."
Jack se sentia despojado de emoção, muito esgotado para
responder. Tudo que pôde fazer foi estender a mão e tocar a
pedra gotejante.
"Talvez o próprio Harald tenha rabiscado isto, seu último ato
antes que os toltecas o pegassem", disse Maria. "Foi como se
a batalha de Stamford Bridge se repetisse, só que dessa vez
foi realmente o fim." Olhou de novo para as formas
espectrais na plataforma atrás de si, depois para a escuridão
na água onde Loki desaparecera. Ela estremeceu de maneira
involuntária. "Eles foram até onde era humanamente
possível ir, direto para a entrada do inferno."
"Eu posso sentir o que eles sentiram", murmurou Jack. "Nós
estamos no limiar do mundo dos espíritos aqui, no próprio
limite. Algo em mim quer seguir por aquela passagem, ir
atrás de Loki. É como uma força maligna me puxando para
lá, querendo que eu aceite o desafio. Sinto-me tão próximo
de Harald como jamais me senti, realmente próximo." Jack
olhou ao redor, para as sombras bruxuleantes nas paredes da
caverna, depois se sacudiu e levantou o tanque de ar de
Loki, de onde ele o havia deixado, perto da beirada da água,
para as costas de Maria. "E eu sei que este não é um lugar
onde desejamos ficar."
"Isto ainda não acabou", disse Maria.
"Você tem bastante ar. Há uma linha de sinalizadores até a
entrada. É muito fácil. Eu vou estar logo atrás de você."
"Eu não quis dizer isto."
Jack deu um ajuste final às correias em seu ombro. Jogou
água em seu rosto para limpar as manchas escuras e sentou-
se ao lado dela. Maria começou a falar, lentamente de início,
de maneira hesitante, depois fluindo com facilidade, como
se estivesse contando algo que nunca contara antes, mas que
havia repetido inúmeras vezes em sua mente. Durante os
minutos seguintes, Jack ouviu a história mais pavorosa que
jamais poderia ter imaginado, uma história que fazia os
monstros do mundo de baixo parecerem tão poderosos
como aparentavam para os vikings, que parecia dar forma ao
mal à espreita nesse lugar transformando-o em uma força
demasiado nociva para ficar incontestada.

Vinte minutos depois, Jack içou-se para fora do buraco do
poço no aposento com a pintura. Costas agachou-se na
frente dele, ofegante depois de ter operado o guincho. Maria
estava sentada, seu corpo gotejando água no chão de pedra
poucos metros adiante. Apesar do calor, ela tremia
ligeiramente, e Costas lhe passou uma toalha e uma jaqueta
da IMU junto com uma garrafa de água. Assim que viu que
ela estava a salvo, Jack se virou e dirigiu-se a Costas.
"Qual é a nossa posição?"
"Os mexicanos estão aqui", ofegou Costas. "Chegaram dois
caras em um jipe há dez minutos. Eles são judiciales, sujeitos
em trajes simples. Bastante repulsivos, se quer a minha
opinião. Disseram que um helicóptero está a caminho.
Aparentemente toda esta área é território de Reksnys, mas
estamos bem afastados de seu complexo principal. Parece
que ele não confiava em ninguém, nem mesmo em seus
próprios seguranças, a ponto de não contar sobre este local.
Alguns nativos vivem na selva, maias, mas eles estão do
nosso lado. Assim que mais policiais chegarem e o Lynx
voltar do Seaquest II com uma equipe de segurança
completa, poderemos relaxar. Ben está realizando uma
grande varredura do perímetro enquanto conversamos."
Jack moveu a cabeça em direção ao buraco. "Você
provavelmente percebeu que o nosso amigo Loki não se
juntou a nós."
Costas ergueu as sobrancelhas. "Permanentemente?"
"Ele foi tentar um recorde de resistência de mergulho em
caverna. Sem ar."
"O mundo de baixo tolteca", disse Costas baixinho. "Não é
um lugar onde eu queira passar a eternidade."
Jack puxou Costas de lado e conversou com ele na
escuridão, no fundo do aposento, falando muito
concentrado. Costas, ocasionalmente, olhava para Maria
com a expressão cada vez mais severa. Depois de alguns
minutos, Jack fez um gesto para Maria juntar-se a eles.
Costas lhe passou algo envolto em tecido que ela verificou
rapidamente e escondeu dentro de sua jaqueta.
Jeremy apareceu de repente na entrada, sem ar e desvairado.
"Rápido. Pelo amor de Deus. Reksnys escapou. Ele pegou
uma criança local. Está ameaçando matá-la."
"Como diabos..."
"A polícia mexicana o desamarrou, depois ele e o menino
desapareceram, saíram correndo."
"Droga."
Houve uma repentina agitação do lado de fora e Reksnys
apareceu, empurrando à frente um menino de cerca de
cinco anos, os pais perturbados suplicando em espanhol
atrás dele. Jeremy afastou os pais para trás enquanto Reksnys
mantinha um cinto de couro ao redor da garganta do
menino. Ele se exibiu na frente deles, com a cabeça erguida
e um olhar de escárnio, depois arrastou o menino, como se
fosse um animal, para o centro do aposento.
"Posso quebrar seu pequeno pescoço em um segundo.
Apenas assim." Ele estalou os dedos de sua mão livre. Então
pareceu esquecer a audiência e falou com uma alegria quase
infantil. Subitamente olhou ao redor. "Onde está meu filho?"
"Saiu para nadar."
Reksnys não conseguiu assimilar o que Costas havia dito e
puxou o menino para perto de si. "Cómo te llamas?"
O menino estava demasiado aterrorizado para replicar.
Reksnys levantou o menino até diante de seu rosto. "Cómo
te llamas!"
O menino sussurrou em meio às lágrimas. "Daniel."
"Daniel." Reksnys deixou o menino descer e puxou-o de
novo contra si, o cinto bem apertado ao redor de seu
pescoço. "Um nome interessante para um maia. Quando eu
era jovem, conheci alguns meninos com esse nome. Daniel,
Doron, Menachem. E também havia algumas menininhas
com eles. Mas não durante muito tempo." Reksnys olhou
com escárnio de novo, depois fitou Maria cheio de suspeitas,
enquanto ela se afastava dos outros e dava alguns passos em
direção à parede, até o lugar onde havia recuperado a
consciência depois do pesadelo de sua vinda de Iona. Ela
parou encarando Reksnys, as pernas ligeiramente afastadas.
"Eu acho", ela disse, "que antigamente você achava muito
mais fácil usar isto."
Lenta mas deliberadamente, ela levantou a Luger e a
apontou para a cabeça de Reksnys, ambas as mãos segurando
a coronha e o indicador esquerdo tocando no gatilho.
Jeremy fitava Maria, chocado.
Reksnys olhou de novo com escárnio. "Você não sabe como
usá-lo."
Ela soltou o fecho de segurança do lado esquerdo da arma.
"Oh, eu sei sim."
"Ela não está carregada."
"Jack?" disse Maria sem mover os olhos.
Jack pegou uma pequena caixa com as palavras Parabellum
nove milímetros impressas em um dos lados e mostrou o
interior semi-vazio. "Nós encontramos isto em seu bolso",
ele disse. "Você se lembra?"
Reksnys estava desdenhoso. "Solte a arma ou o menino
morre."
Maria começou a recitar as palavras que havia memorizado
quando criança. "Relatório da Situação Operacional da URSS,
No. 29ª", ela disse baixinho. "Localização Einsatzgruppe D.:
Nikolaiev, na Ucrânia. Adendo ao Relatório No. 129
referente à atividade dos binsatzkommandos liberando os
locais de judeus e exterminando os grupos partidários. O SS-
Sturmbannführer Andrius Reksnys executou pessoalmente
341 judeus. Total corrigido para as duas últimas semanas:
32.108."
Fez-se um silêncio espantado. Maria mantinha a Luger
levantada na altura da cabeça de Reksnys. Ele permanecia
perfeitamente imóvel, olhando para ela com fria
repugnância, o cinto esticado e movendo-se ligeiramente
contra o pescoço do menino.
"14 de maio de 1943", continuou Maria. "Uma bela manhã
de primavera. As flores estavam desabrochando por toda
parte, os pássaros cantavam. A última alinhada na frente da
vala era uma jovem família, um pai, uma mãe grávida e
quatro crianças pequenas. Você se lembra? O seu pai deixou
você matar as crianças."
"Impossível." Reksnys cuspiu as palavras, olhando de
maneira conspiratória para os outros. "Esta mulher está
louca. Não havia testemunhas. Nunca houve."
"Era sua primeira vez", continuou Maria, de modo prático.
"Você não tinha muita experiência com a Luger. Três dias
depois, a criança mais jovem arrastou-se para fora de entre
os corpos, uma bala alojada em seu crânio. Uma doce
menininha, chorando indefesa sob o sol de primavera."
Lágrimas estavam escorrendo pelas faces de Maria, mas sua
voz não vacilava. "Uma soldada alemã a encontrou-a e teve
pena dela. Ela ficou em sua unidade durante todo o caminho
de volta para Berlim, sendo cuidada pelos alemães, os
homens enojados com o que a SS havia feito. Quando eles
foram todos mortos em ação, a menina foi resgatada por um
soldado inglês. Anos mais tarde, ela casou-se com um
diplomata espanhol e teve uma filha. Na última primavera eu
a trouxe de volta para Nikolaiev, para ficar mais uma vez
naquele prado encantador, com seus irmãos e irmãs, seus
amados pai e mãe. Ela contou que eles a tinham perdido,
tinham ficado desesperados para achá-la e protegê-la." Maria
conteve-se com dificuldade, enxugando suas lágrimas, mas
olhando de maneira inflexível para o cano da arma. "Aquela
menininha era minha mãe."
"Tolice." Reksnys puxou o menino para si, seus olhos
movimentando-se de um lado para o outro, a voz
repentinamente demente e bem aguda. "Não acreditem em
uma palavra do que ela diz. Ela é uma judia."
O aposento estava mortalmente silencioso. Reksnys
subitamente parecia nervoso, começou a tremer, a face
pálida e o suor escorrendo. Ele empurrou o menino. Jack o
agarrou e o levou às pressas para a entrada. Reksnys
cambaleou e depois se endireitou, tentando recuperar a
compostura. "Você já tem o menino." Ele passou as mãos
trêmulas pelos cabelos, alisando-o para trás. O homem
estava lutando para fazer sua voz parece normal de novo,
para soar conciliatória. "Agora é hora de acabar com essa
tolice. Você já tem o que quer. A polícia nunca vai
conseguir me acusar de nada. Todos podemos ir embora.
Onde está meu filho?"
"Em uma viagem sem volta para o inferno", disse Costas.
"Onde está o meu filho?" Reksnys não conseguia
compreender, os olhos injetados de sangue e pasmados,
acometidos de pânico. Houve um outro silêncio, e ele
olhava freneticamente de um rosto a outro, depois
cambaleou para o lado. "Não."
Maria mirou a arma, lenta e deliberadamente, mantendo-a o
tempo todo apontada para a cabeça de Reksnys. Sua voz
estava fria, sem emoção. "Ajoelhe-se. Rosto para a parede."
Reksnys perdeu o controle. Caiu de joelhos com os lábios
tremendo e os olhos transfigurados de terror. Uma mancha
escura apareceu em suas calças e espalhou-se pelas pernas.
"Não, eu lhe imploro. Não isto."
"Eu sou uma judia", falou Maria baixinho.
Ouviu-se um estalo amortecido. A cabeça de Reksnys
moveu-se para trás e ele caiu ao chão, tomado de espasmos.
Uma golfada de sangue jorrou. Durante um instante esteve
consciente, os olhos bem abertos, as pernas contraindo-se
horrivelmente. Depois ficou imóvel. A mancha de sangue
na parede começou a escorrer, filetes vermelhos que
tingiam as cores esmaecidas das cenas de sacrifício e fluíam
em seguida até o chão para juntar-se à poça que se havia
formado.
Reksnys começou a se mexer de novo. Todos olharam
consternados. Ele parecia estar de novo tomado de
espasmos, arrastando-se como uma boneca de trapos,
movendo-se em direção a Maria. Ela deixou a arma cair e
desmaiou, aparentemente paralisada. Jack a agarrou,
puxando-a para longe. De repente, o chão sacudiu
violentamente. Jack mal pôde se dar conta do que estava
acontecendo. Depois lembrou-se. Chichén Itzá. O tremor
de terra alguns dias antes. Reksnys não voltou à vida de
novo. Terremoto.
Uma fenda apareceu na parede, dividindo a pintura. Uma
cacofonia de arrebentar os ouvidos ressoou pela caverna
abaixo. Jack ficou ciente de uma investida frenética para a
entrada, de arrastar Maria para fora, de ver as águas subirem
num grande movimento de onda atrás de si e de recuar de
novo para o buraco da caverna que havia ali quando o
templo ainda existia.
Mais tarde observou enquanto Maria abria os olhos. Ele viu a
água escorrendo de seu rosto, viu a luz do sol aparecendo
por entre a abóbada de vegetação emaranhada acima, ouviu
os pássaros gritando. Jack respirou profundamente,
saboreando a corrente de ar frio e limpo que se seguiu à
chuva. Ele pensou na mãe de Maria, em O'Connor.
Tudo terminara.


21

"São vinte e três metros desde a beirada da plataforma até a
superfície da água, alguns centímetros a mais ou a menos.
Vamos precisar equipar um guindaste bastante elaborado
para receber a maquinaria operacional."
"Se eles conseguiram fazê-lo nos anos 1950, podemos
também fazer o mesmo agora. Confio na sua
engenhosidade."
"Como sempre, eu apenas fiz o plano da coisa."
Costas puxou uma grande cópia heliográfica de um tubo de
papelão e desenrolou-a em cima do calcário quente,
prendendo um cano com o telêmetro a laser que estava
segurando. Jack resignava-se a fazer uma exposição técnica
detalhada, mas então foi salvo pelo aparecimento de Jeremy
e Maria no final do caminho processional.
"Almoço." Jeremy pulou para a rocha carregando uma
pequena geladeira, e inclinou-se sob a lona
impermeabilizada que eles tinham montado para se proteger
do sol. Haviam se passado dois dias inteiros desde que a
tempestade tinha caído, e o ar ainda estava limpo e fresco,
mas naquela manhã o calor havia retornado como para uma
desforra, e a umidade era sufocante.
Jeremy abriu a geladeira e espalhou a comida e a bebida
sobre a mesa quando Jack chegou perto. Cosias estava
resmungando para si mesmo na beirada da rocha, mas
desistiu à vista da comida e enrolou a cópia heliográfica. Os
homens se sentaram com Maria recostada na rocha atrás
deles.
"O que você tem para mim desta vez?", perguntou Costas.
"Alguma iguaria tolteca? Coração humano em conserva,
talvez?"
Jeremy falou entre dois bocados. "Nada disso. Apenas uma
antiga e boa comida mexicana." Ele voltou-se para Jack. "Os
turistas vão voltar esta tarde." Ele engoliu a comida e tomou
um grande gole de água. "O tremor que nos atingiu na selva
quase não foi registrado aqui, então eles pensam que este
local é seguro. É danado de quente para trabalhar aqui, de
todo jeito." Ele partiu um outro pedaço de pão, e fez um
gesto em direção ao buraco profundo do Poço de Sacrifício,
debaixo da plataforma onde Jack e Costas tinham estado.
"Nós realmente vamos fazer isto?"
"Mais tarde neste ano", disse Jack. "Tenho certeza de que
ainda há um material fabuloso aqui embaixo."
"Eu já planejei tudo." Costas estava brilhando de suor
debaixo de seu chapéu panamá, a boca cheia de comida.
"Venham para cá quando tiverem terminado e eu lhes
mostrarei."
"Eu teria gostado de ver o lugar da última resistência de
Harald, o local que vocês encontraram", disse Jeremy. "Lá
no outro cenote."
"Acho que não vai dar", murmurou Jack. "A entrada está
bloqueada com centenas de toneladas de pedras, e na outra
direção teria de lutar contra uma corrente impossível. Nós
encontramos o lugar da última batalha de Harald, o seu
Ragnarok, e isto basta. Algo me diz que eu estaria forçando a
minha sorte se voltasse lá de novo."
"É um lugar sombrio." Maria estremeceu. "Você não ia
querer ir até lá."
"Trata-se apenas de um bando de estalagmites, de todo
jeito", disse Costas.
Jeremy examinou de maneira incerta a superfície esverdeada
do buraco de escoamento na frente deles. "Se vocês estão
pensando em me mandar para baixo neste buraco aqui como
alternativa, não contem comigo. Este lugar já me assombra
bastante como ele é."
"Você pode pelo menos vir conosco na expedição como
fornecedor de comida."
"Maria?" Jeremy estendeu o pescoço por cima da mesa para
olhar para ela. "A biblioteca Hereford, quero saber. Será que
posso ausentar-me durante meu contrato?"
Maria colocou sua garrafa de água de lado e deu um sorriso
cansado. Jack ficara observando-a cuidadosamente do outro
lado da mesa. Ela estivera dormindo ou descansando quase
todo o tempo desde a morte de Reksnys. A equipe médica
do Seaquest II tratara do ferimento em seu rosto, que estava
agora coberto com gaze branca. Não ficaria cicatriz, o que
seria uma herança pavorosa. Psicologicamente era um outro
assunto. Jack sabia, por experiência própria, que a perda de
O'Connor a atingiria mais duramente quando ela voltasse
para casa, com tempo para refletir. E, apenas dois dias atrás,
Maria estivera com uma arma apontada para a cabeça do
homem que havia ordenado o assassinato, e que a havia
traumatizado muito tempo antes que ela encontrasse
O'Connor. Jack a via sob nova luz desde que ela havia
revelado a terrível verdade sobre o passado de sua família.
Jack tinha conhecido a mãe dela anos antes, quando ele e
Maria eram estudantes, e tinha suposto que ela era sefardi
como seu marido. Ele nunca teria adivinhado o seu
passado. Como muitos sobreviventes do holocausto, a mãe
de Maria encontrara uma maneira de bloquear o horror em
sua memória e só havia deixado que ele a dominasse quando
soube que estava morrendo. Isto explicava a força de Maria,
mas também sua inquietação, sua relutância em se
comprometer com alguém. Expor o trauma que ela havia
internalizado durante toda a vida iria transformá-la. A prova
final com Reksnys havia dado um certo desfecho ao
problema, trazendo sua própria hostilidade sangrenta a um
fim, mas tinha sido uma experiência chocante e deixara
Maria abalada. Afortunadamente, a polícia mexicana ficara
feliz de mudar de lado quando viu quem estava ganhando, e
Maria tinha se transformado em heroína por ter salvado a
vida do menininho. Apenas Jack, Costas e Jeremy foram
testemunhas da cena final.
Maria fitou Jeremy. "O trabalho tem o seu nome nele, mas,
se passar mais tempo com esses sujeitos da IMU, você será
fisgado para sempre." Ela lhe deu um outro sorriso cansado e
depois olhou para Jack. "Quais são as últimas novas sobre a
menorá?"
"Estive pensando sobre a simetria da história", replicou Jack.
Costas lançou um olhar alarmado e contraiu-se. "Oh, não.
Filosofia, não. Está na hora de voltar às minhas cópias
heliográficas."
"Não. Espere. É importante, talvez seja a chave da história
inteira." Costas sentou-se pesadamente enquanto Jack punha
em ordem seus pensamentos. "Pensei nisso quando vi a
pintura da procissão tolteca para o Poço de Sacrifício, tão
incrivelmente similar à procissão romana pelo Arco de Tito
mil anos antes. Pense em todos os lugares diferentes onde a
menorá esteve, em todas as culturas diferentes. O símbolo
supremo do povo judeu, só perdendo, em importância, para
a Arca da Aliança. Então ela é seqüestrada pelos imperadores
romanos e torna-se um objeto de prestígio para eles
também. Depois os bizantinos. Em seguida Harald
Hardraade e os vikings. A cada vez ela poderia ter sido
derretida, mas não foi. Para os romanos ela representava um
símbolo de conquista, de superioridade. Para os bizantinos
tratava-se de um dos tesouros acumulados às escondidas que
os ligavam à antiga Roma, às antigas virtudes. Para Harald
Hardraade ela era um símbolo da sua proeza pessoal, e então
tornou-se algo mais místico, quase um talismã. Nessa época,
o seu significado judaico original já estava perdido, mas ela
ainda tinha um significado quase sobrenatural, o poder de
moldar o destino dos homens."
Costas estivera ouvindo atentamente. "A quarta cruzada, o
saque de Constantinopla", ele disse. "É isto aí. Todo aquele
material que estávamos procurando, as antigas obras de arte.
Algumas delas têm valor de prestígio como você diz,
transformado dentro de uma cultura diferente. Os Cavalos
de São Marcos em Veneza, originalmente uma antiga
escultura, mas depois o símbolo de uma cidade-Estado
medieval, algo que os seus autores nunca poderiam sonhar
que fosse possível."
"Você captou o significado que quero dar."
"E o outro material, as obras de arte abandonadas no Chifre
de Ouro. Nenhum valor de prestígio."
"Ou o simbolismo de que era perigoso, indesejável. Para os
cruzados, como para o Vaticano, o poder simbólico da
menorá completou um ciclo inteiro, de volta às suas origens
judaicas. É por isso que eu acreditava que havia uma chance
de encontrá-la no Chifre de Ouro."
"Então, depois dos vikings nos deslocamos para os toltecas",
disse Costas. "Percebo para onde você está se dirigindo."
"Os toltecas eram grandes em matéria de símbolos de
vitória, símbolos de proezas e domínio", disse Jack.
"Realmente grandes. Basta olhar para a arquitetura deste
lugar, a escultura. E eles gostavam do seu ouro. Talvez não
tenham oferecido a menorá aos deuses no final da procissão,
mas a tenham escondido em outro lugar, algo para ser
mostrado apenas nas cerimônias mais sagradas. Pense no
imperador Vespasiano mil anos antes, na procissão triunfal
no Fórum de Roma. Como os toltecas, ele sacrificou seus
prisioneiros de guerra, os judeus capturados. Ele podia ter
sacrificado seu tesouro também, fundindo-o para que se
transformasse em moedas. Em lugar disso, ele o trancou no
Templo da Paz."
"O Templo dos Guerreiros", murmurou Jeremy. "Este era o
lugar mais sagrado dos toltecas, mas certamente não um
templo de paz. Ele era mais como o castelo de Wewelburg,
na Bavária, o quartel-general da SS."
"Não era exatamente o que Vespasiano tinha em mente",
disse Maria.
Costas estava concordando entusiasticamente. "Pensando
em uma forma diferente de fazer as coisas. Eu gosto disso."
"Você vê?" sorriu Jack. "Não é muito diferente da
engenharia. Você pode trabalhar sem imaginação, e pode
também ter momentos de genialidade."
"Acho que você está se referindo a Jeremy."
Maria estava ainda concentrada em seus pensamentos.
"Então, quando os toltecas morreram, a menorá desapareceu
da história, assim como pensávamos que ela tinha sumido
com o fim do império Romano", disse ela.
"A trilha ficou sem saída", concordou Jack. "Alguma pista?"
Jack olhou para Jeremy, que o fitou de maneira inexpressiva
e depois de repente pareceu distraído. Ele procurou com sua
mão livre dentro de uma mochila sobre a mesa e tirou um
livro. "Aquilo que você estava dizendo. Acabei de ter uma
idéia. É algo que encontrei quando estava procurando
indícios em textos maias. Eu não conseguia pensar em uma
conexão enquanto lia, mas ela subitamente ficou clara para
mim. É possível, apenas possível."
"Não comece de novo." Costas olhou para Jeremy fingindo
horror. "Você não vai nos aparecer com uma outra
sociedade secreta."
"Não tenha medo." Jeremy acabou de comer seu pão e
limpou a boca, depois tomou um gole de água. "Vocês
lembram que os espanhóis levaram anos para conquistar o
Iucatã, muito mais tempo do que para subjugar o México
central? O Iucatã foi o primeiro lugar onde Cortês
desembarcou, mas ele não ficou por lá durante muito
tempo."
"Não tinha ouro", sugeriu Costas.
"Certo. Mas ele pode ter perdido a sua grande chance ali.
Talvez o maior tesouro de todos." "Continue", disse Jack.
"Vocês não vão acreditar nisso, mas o último dos reis maias
só foi conquistado em 1697", enfatizou Jeremy. "E ele era
um descendente direto dos reis deste lugar, de Chichén
Itzá."
Jack olhou espantado. "Mas isto aconteceu quase dois
séculos depois de Cortês!"
"Eu pensava que Chichén Itzá já estava destruída,
abandonada antes que os espanhóis chegassem",
interrompeu Costas.
"Várias décadas antes de Cortês, no século XV." Jeremy
concordou. "Os toltecas já tinham ido embora muito tempo
antes, destruídos em alguma terrível batalha sangrenta dois
séculos antes. Eles foram substituídos por uma dinastia maia
mais civilizada chamada Itzá, o povo que deu seu nome ao
local. O que aconteceu aqui nos dias finais está encoberto
em mistério, mas, quando os maias finalmente abandonaram
os templos, saíram daqui para sempre, desapareceram dentro
da selva e vaguearam ao redor durante anos como as tribos
perdidas de Israel."
"Possivelmente sofreram um colapso coletivo", refletiu
Costas. "Vivendo durante séculos em um turbilhão pavoroso
de violência, todo aquele terror e sacrifício os abalou. Eles
finalmente arrebentaram."
Jeremy riu. "Bem, o que quer que tenha acontecido, eles
finalmente foram para o lago Petén, mais de quatrocentos
quilômetros ao sul, para onde hoje é a Guatemala. Uma selva
impenetrável, tão longe dos espanhóis quanto puderam
conseguir. Remaram até uma ilha remota e fundaram uma
nova cidade. Tah Itzá. Durante gerações eles permaneceram
tranqüilos e ignorados, exceto por alguns missionários. Tah
Itzá chegou a ter uma reputação mística. Para alguns
espanhóis era uma fortaleza apavorante na selva, um
baluarte de guerreiros ferozes que praticavam rituais
satânicos, um inferno sobre a Terra. Para outros era um lugar
de riquezas inenarráveis que só podia ser alcançado depois
de grandes sofrimentos, uma espécie de Shangri-lá, ou
Avalon."
"De novo o rei Artur", murmurou Costas. "Eu duvido que
Tennyson tivesse ousado sonhar em colocar sua Avalon na
selva mexicana."
"Eles podiam ter levado seu tesouro consigo", murmurou
Jack. "Apesar de terem se transformado num povo
derrotado, uma sombra de sua glória anterior, eles teriam
salvado o que pudessem de Chichén Itzá. Como os israelitas,
eles teriam mantido consigo suas posses mais sagradas, sua
riqueza maior."
"Talvez associassem a menorá com o deus-águia, com o
retorno do rei", disse Maria. "Aquela referência que Jeremy
encontrou nos Livros de Chilam Balam sugere que os maias
têm certa lembrança de Harald e dos vikings. Lembrem o
que Reksnys disse sobre os maias locais de hoje, sua
relutância em descer ao cenote debaixo do templo. Talvez
Harald tenha sido transformado em uma espécie de deus
salvador mítico, lutando pelos maias contra os toltecas
opressores. É possível que, duzentos anos depois de Harald
morrer, algum intrépido maia tenha salvado a menorá do
inferno tolteca e a tenha levado para uma outra cultura."
"Se eles já não a tivessem sacrificado", disse Jack.
"Ou derretido."
"O que sabemos vem de um manuscrito revelado no México
só recentemente, no final dos anos 1980", continuou
Jeremy. "Trata-se de uma história incrível, o relato de um
missionário jesuíta, padre Andrés de Avendano y Loyola,
que alcançou Tah Itzá em 1695. Avendano era um homem
de intelecto excepcional e muita resistência física, com
grande força moral e senso de propósito. Ele ficou fascinado
pelo povo que o enviaram para converter, interessado por
seu modo de vida bem como em convertê-lo. Os primeiros
missionários tiveram uma má recepção ali, mas sem
estudiosos como Avendano não saberíamos nada desses
povos, e populações inteiras ficariam esquecidas. O padre
O'Connor fazia parte dessa tradição de estudiosos."
"Duvido que Patrick soubesse algo sobre isso", murmurou
Maria.
Jeremy abriu o livro. "Segundo seu próprio relato, Avendano
chegou naquele ano na costa do lago Petén acompanhado
por dois franciscanos e dez maias convertidos. Do leste,
através do lago, eles se depararam com uma vista
espetacular." Jeremy leu uma passagem. "Uma grande frota
de canoas cuneiformes, todas elas adornadas com muitas
flores e tocando muita música com baquetas, tambores e
flautas de madeira. E sentado em uma canoa maior do que as
outras estava o rei de Itzá, que era o lorde Kanek, que
significa a serpente de vinte estrelas."
"Isto parece impressionante", murmurou Costas. "Havia
algum ouro?"
"O que Avendano viu era o que fazia parte de toda a fantasia
dos espanhóis sobre o Novo Mundo, o tipo de coisa pela
qual os conquistadores venderam suas almas, dois séculos
antes, mas nunca chegaram a ver. Pode-se dizer que
Avendano ficou desarmado. Seus instintos como jesuíta
estavam obscurecidos pelo entusiasmo que levou os
espanhóis à conquista, como um tubarão quando cheira
sangue."
Jack sorriu. "Continue."
"O último dos reis maias surgiu diante deles. Ouçam isto.

Ele usava uma coroa de ouro, e em suas orelhas argolas de
ouro das quais pingentes de ouro iam até os ombros. Tinha
braçadeiras de ouro puro em seus braços e anéis de ouro em
seus dedos, e suas sandálias azuis estavam cobertas com
sinos de ouro."

Costas assobiou. "Ele estava curvado sob o peso do ouro."
Jeremy fechou o livro. "Avendano não conseguiu converter
os Itzá. Dois anos depois a cidade caiu nas mãos dos
espanhóis."
"Você disse que eles levaram seu tesouro consigo de
Chichén Itzá?" perguntou Costas.
"É o que conta a história."
"Para um povo vencido, esta é uma tremenda quantidade de
ouro."
"É apenas uma idéia."
Jack acenava a cabeça lentamente. "Se os maias eram tão
reservados sobre seus textos sagrados, e aqueles Livros de
Chilam Balam haviam profetizado a chegada de homens
barbados do leste, então eles podiam ter escondido outros
tesouros não revelados. Com os espanhóis procurando em
toda parte por ouro, uma fortaleza em uma ilha dentro de
um lago, bem no interior da selva, parece justificada."
"E talvez fosse apenas ouro, puro e simples", disse Costas.
"Todo aquele valor de prestígio, todo o significado que a
menorá tinha para os odiados toltecas, desaparecera. Uma
vez que os maias alcançaram seu refúgio, talvez a tenham
derretido."
"E então isso completa o círculo", disse Maria suavemente.
"O que você quer dizer?", perguntou Costas.
"Pense acerca disso. Os espanhóis conquistam a última
fortaleza de Itzá. Eles finalmente conseguem seu ouro maia.
Só que o ouro não é maia, absolutamente. E o que fazem
com isso? Eles não vão apenas sentar com o seu tesouro no
meio da selva."
"Eles o mandaram para a terra natal", disse Jeremy.
"Eles o derretem de novo, o transformam em moedas e o
enviam com os comboios de riquezas para Cadiz e Sevilha",
disse Maria. "Centenas de quilos de ouro, um presente
espetacular. Ele vai direto para os cofres do rei espanhol. E
para a outra grande potência por detrás dos conquistadores."
"A Igreja Católica", murmurou Jack. "E um pouco daquela
riqueza infiltra-se de novo na fonte de influência da Igreja,
no Vaticano em Roma."
"Espere aí", disse Costas. "Você está me confundindo de
novo."
"Você não percebe?", os olhos de Maria estavam iluminados.
"Se estivermos certos, a menorá nunca foi, de fato, perdida.
Trezentos anos atrás, o ouro que foi primeiro fundido em
uma forma sagrada, em Israel, retornou para as terras de suas
primeiras crenças, transformado em barras de ouro e
artefatos sagrados para uma nova ordem mundial. Talvez isto
estivesse óbvio o tempo todo, nos esplendores de ouro de
São Pedro, nos relicários de ouro do tesouro do Vaticano,
nos inumeráveis embelezamentos e artefatos nas igrejas da
cristandade que receberam dádivas da mãe Igreja."
"Talvez certa quantidade disso tenha retornado para
Jerusalém", disse Jeremy. "Vocês lembram a saga sobre
Harald Hardraade oferecendo, como presentes, tesouros
para o Santuário de Cristo em Jerusalém? A história que
atingiu seu clímax com os cruzados, de envolvimento
ocidental na Terra Santa, não era apenas uma história de
pilhagem e ganância. Talvez, apenas talvez, um pouco do
ouro de Itzá achou o seu caminho de volta, nos últimos
séculos, para as sombras do Monte do Templo em Jerusalém,
e ali se encontra até hoje."
Costas subitamente pareceu desanimado, e olhou para a sua
cópia heliográfica na rocha ao lado do cenote. "Meu
perfurador debaixo do leito do mar. Todos os meus planos.
Nós estamos dizendo o que eu acho que estamos dizendo?"
"Tudo isso são apenas conjeturas", murmurou Maria.
"E não temos nada para provar que Harald esteve aqui algum
dia", disse Costas. "A parede pintada desapareceu, o local da
última estada de Harald está sepultado para sempre.
Ninguém acreditaria em nós."
"Nós temos isto." Maria tirou o pedaço de pedra polida do
bolso de seu short, a pedra de runa que ela tinha encontrado
dentro do cenote.

"Ela, de fato, não menciona Harald", disse Costas. "E a pedra
não é local, ela se parece mais com um xisto que eles
provavelmente pegaram em L'Anse aux Meadows."
"Mas nós sabemos", disse Maria.
"Vou ficar com a teoria maia." Jeremy ainda estava
refletindo sobre a menorá. "É melhor do que tentar imaginar
o que fazer com a menorá se a encontrarmos."
Jack levantou-se, caminhou até a plataforma onde se
realizavam os sacrifícios e olhou atentamente para o verde
impenetrável da água. Depois voltou as costas para o cenote
e soltou um rádio-receptor de seu cinto. "A menorá, afinal
de contas, pode estar no Poço de Sacrifício. Ou pode ter
alcançado o fim da jornada. Mas antes mesmo de pensar em
um outro projeto, eu tenho uma pequena dívida para pagar a
um velho amigo. Algo que tem a ver com a sorte-de-
batalha" Ele olhou para Maria. "E precisamos sair daqui."


22

Quatro dias depois, Jack estava agachado perto da proa do
Seaquest II, tampando as orelhas contra o barulho do
redemoinho causado pela hélice do navio, quando recebeu
uma chamada de Maurice Hiebermeyer direto de Istambul.
Depois de se esforçar por alguns instantes para ouvir, ele se
levantou e caminhou até Costas, que estava parado ao lado
de Maria e Jeremy, ambos sentados em um banco atrás do
heliporto.
"Entendi." Jack pressionava o receptor contra o ouvido.
"Prepare tudo e eu o verei amanhã à noite no Chifre de
Ouro. E obrigado por cuidar da escavação, Maurice. Grande
trabalho. Eu lhe devo uma."
Jack fechou a tampa do rádio-receptor e passou por entre as
cordas que estavam colocadas no convés para prender o
helicóptero Lynx ao casco do navio quando estacionado. O
Seaquest II estava se dirigindo de volta para o Ártico para
retomar o projeto científico no fiorde gelado de Ilulissat, e
vários cientistas que tinham desembarcado durante o seu
desvio para o Caribe estavam voltando a bordo. O navio
encontrava-se agora a menos de cem milhas náuticas a leste
de Newfoundland, e o último vôo do helicóptero estava
sendo esperado um pouco depois naquela mesma tarde.
Apesar de algumas ondas altas, o mar estava seguro e o céu
claro, mas, à medida que eles navegavam para o norte, o ar
ia se tornando mais frio e isto parecia mais pronunciado
depois dos dias passados na selva fétida do Iucatã. Tanto
Maria quanto Jeremy vestiam anoraques da IMU e estavam
aconchegados atrás da amurada para se proteger do vento.
"Era Maurice Hiebermeyer", disse Jack. "Há grandes
novidades. Eles finalmente conseguiram artefatos
descartados como coisas sem valor depois do cerco de
Constantinopla em 1204."
"A Cruzada do Ouro?" perguntou Costas esperançoso.
Jack sorriu. "Uma colossal estátua revestida de bronze do
imperador Vespasiano, com uma inscrição de uma
dedicatória que mostra que ela foi originalmente erguida no
Fórum da Paz, em Roma, depois do triunfo sobre os judeus.
Não é exatamente o que tínhamos em mente, mas a
arqueologia é assim."
"É o que eu queria ouvir." Costas suspirou contente. "Meu
perfurador debaixo do fundo do mar mostrou-se melhor do
que se esperava. De qualquer forma, que eu me lembre
havia uma grande lista de itens pilhados do Templo Judaico
além da menorá. Nós os encontraremos. Tenham fé na
tecnologia da IMU."
"Isso deverá esperar por enquanto", disse Jack. "Maurice
estava louco para me contar sobre um achado no deserto
egípcio desde que voltamos da Atlântida, e eu finalmente
me compadeci dele. É incrível."
"Não é um outro papiro", disse Costas. "O último nos causou
muitos problemas."
"Este é romano", informou Jack. "Apenas um fragmento,
mas ele contém um indício fantástico."
"Uma nova caça ao tesouro?"
"Já ouviu falar em Alexandre, o Grande?"
Costas viu o brilho familiar nos olhos de Jack. "Ok. É o tipo
de arqueologia de que eu gosto. Pode contar comigo. Só não
quero icebergs."
"Negócio fechado." Jack sorriu e voltou-se para Maria e
Jeremy, mas sua expressão mudou ao ver o rosto triste da
amiga. "Eu eslava querendo perguntar, Maria", disse ele de
modo gentil. "Sobre a sua herança ucraniana. Eu sei que a
população judaica de lá era asquenaze, mas você tem alguma
pista sobre algo anterior? Estou apenas tentando entender a
sua paixão pelos vikings."
Maria ficou aliviada e deu um sorriso triste para Jack.
"Depois de enterrar minha mãe no ano passado, passei vários
dias em Kiev e fui à catedral de Santa Sofia, onde estudei as
famosas pinturas de parede. Os reis e as rainhas que
governaram Kiev na época dos vikings, comerciantes e
guerreiros que desceram os rios em longos navios vindos do
Norte. Loiros, barbados, incrivelmente altos, a própria
imagem de Harald Hardraade e sua corte."
"Varegues", murmurou Jack. "Os Rus."
"Antes de morrer, minha mãe contou-me pela primeira vez
algo sobre sua família. Uma história de casamento dentro da
família em um passado distante, ou uma lenda familiar de
que éramos descendentes da nobreza de Rus."
"Eu achava isso", sorriu Jack.
"Parece que eu sou o único que não tem uma gota de sangue
viking", disse Costas.
"Não conte com isso. A inscrição de Halfdan em Santa Sofia
não é a única evidência de vikings naquela parte do mundo.
Há uma outra inscrição rúnica em uma antiga escultura em
Atenas. Parece que Harald e seus rapazes também se
divertiram um pouco na Grécia. Eles estiveram um pouco
por toda parte."
Costas estava olhando para um esboço de mapa que havia
feito da aventura deles. "Pelo menos no hemisfério
ocidental."
Jack ficou sério de novo. "Eu também falei com o chefe de
segurança da IMU no Reino Unido", disse ele dirigindo-se
aos três. "Como precaução, logo antes de ter sido
seqüestrada por Loki, Maria passou por e-mail o penúltimo
rascunho do dossiê, que ela estava ajudando O'Connor a
preparar, para o chefe de segurança da IMU. Enquanto
conversamos, a Interpol está promovendo um certo número
de detenções de pessoas altamente posicionadas. Ao que
parece, o félag esteve fortemente envolvido com o crime
internacional, lavagem de dinheiro, drogas e armas, o
mercado negro de antiguidades. Um deles esteve até
implicado em um audacioso roubo no sítio romano de
Herculano, na baía de Nápoles, bem debaixo do nariz das
autoridades italianas. O nosso amigo Reksnys não era o
único a usar o poder do félag para encher os próprios
bolsos."
"Parece existir um longo caminho desde os ideais heróicos
de Harald Hardraade", murmurou Costas.
"O félag moderno não tem nada a ver com isso." A voz de
Jeremy tinha uma certa rispidez. "Eram pura e simplesmente
uma organização criminosa. Eles tinham quase tanta
legitimidade histórica quanto os nazistas."
"Aparentemente, o dossiê que você e O'Connor compilaram
foi crucial, a conexão que faltava e que permitiu que a
Interpol juntasse todos esses personagens!", disse Jack para
Maria. "E agora que eles estão implicados em assassinatos,
acho que não ouviremos falar dos félag por um bom tempo."
"E aquele personagem sombrio no Vaticano?" quis saber
Costas.
Jack fez um gesto com a cabeça, e um lampejo de
preocupação passou por seu rosto. "Essa é a única exceção,
receio. Reksnys quase o denunciou quando estava se
gabando sobre o seu informante lá no templo, mas ele se
deteve. O'Connor suspeitava de quem fosse, mas queria ter
mais certeza antes de nos contar. Seu assassinato impediu
isso. Essa foi uma pequena vitória de Loki. Mas, seja quem
for, vocês podem ter certeza de que agora deve estar
apagando seus traços, mantendo um perfil muito limpo até
que as investigações cessem. Enquanto isso, podemos
descobrir mais nos registros de O'Connor, algum indício
sobre quem ele é."
"Eu vou voltar para lona para terminar o trabalho", os olhos
de Maria cobriram-se de sombras, e ela forçou um sorriso
através das lágrimas. "Pelo menos o padre O'Connor
manteve sua honra até o fim. Vocês se lembram do que ele
disse sobre os vikings? Seu destino é predeterminado, então
o que importa é a sua conduta na vida, seu comportamento
determinado. Assim, você pode entrar no Valhala e ficar
junto com os deuses na batalha final de Ragnarok sabendo
que manteve sua honra e a de seus irmãos intacta."
"Ele era alguém que Hardraade ficaria contente em ter ao
seu lado", disse Jeremy.
"Que desperdício." Maria abaixou o olhar de novo, sua voz
rouca por causa da emoção. "Todo aquele conhecimento,
toda aquela humanidade."
"A sabedoria diz respeito à persistência", disse Jack com
gentileza, colocando a mão no ombro dela. "É passar o
conhecimento para a geração seguinte, sabendo que pode
fornecer a base para novas descobertas, revelações que só
com dificuldade se pode imaginar." Olhou para Jeremy.
"Acho que o padre O'Connor fez isto."
"Por falar nisso..." Jeremy olhou para Jack com uma súbita
explosão de entusiasmo, e bateu de leve em um pacote que
estava em seus joelhos. "Recebi isto da baía de Goose, em
Labrador, pelo último vôo do helicóptero. Eu queria ver a
coisa real com os meus próprios olhos antes de contar para
vocês."
Jack sorriu calorosamente. "Acho que ainda não ouvimos de
você o final."
"Vocês se lembram daquela tarde com o velho inuit, quando
ele falava sobre o desaparecimento da Groenlândia nórdica
no século XIV? Aquele relato final assombroso de como os
scraelings tinham dominado toda a colônia ocidental?"
"Continue."
"A biblioteca Hereford mostrou-se melhor do que eu
esperava. Excepcional!" Jeremy apertou o pacote, seu rosto
vermelho de excitação. "Isto é com o que os estudiosos
nórdicos sonharam durante anos, uma descoberta tão
fabulosa quanto qualquer tesouro perdido de Harald.
Encontrado no monte de entulho com todo o resto do
material antigo naquela escadaria abandonada."
"Conte-nos", disse Jack.
Jeremy tirou o papel-bolha que envolvia o pacote e revelou
o velho couro que encadernava um livro antigo. "É
fenomenal!" Ele voltou-se para Maria. "A saga perdida da
colônia groenlandesa ocidental, Vestribygõ uma Saga.
Escrita no século XIV."
Maria inalou o ar com súbita excitação, e olhou atentamente
por sobre o ombro de Jeremy enquanto ele abria a última
página do volume medieval com extremo cuidado.
"Ele dá algum detalhe sobre o que aconteceu?" perguntou
Costas.
"Certamente que sim." Maria estivera examinando as linhas
enquanto Jeremy falava. "Agora você já deve estar bem
familiarizado com isso." Ela apontou para duas palavras no
centro da página, e Costas observou atentamente. "Haraldi
konungi, nosso verdadeiro rei", disse Maria. "Harald
Sigurdsson."
Costas assobiou. "Harald Hardraade! Os groenlandeses se
lembravam dele quase três séculos depois que ele partiu!"
"E olhe o símbolo depois do seu nome."
"Não me diga. A menorá." Costas sorriu enquanto todos eles
examinavam o símbolo, como uma runa, no meio das letras
latinas do texto. "Parece que conseguimos um círculo
completo. Constantinopla, lona, o fiorde em Vinland, o
Iucatã, e agora de novo para a catedral antiga e mofada que
deu início a tudo isto."
"Isto encerra um círculo, mas depois conduz a algo mais
fantástico", disse Jeremy. "Esperem até ouvir o que diz o
texto."
Maria traduzia lentamente enquanto seguia as linhas com o
dedo. "Anno Domini 1332. Os governantes do Vestribygõ
decidiram seguir seu verdadeiro rei Harald Sigurdsson para o
Norõrseta, e através do mar para o oeste." Ela ergueu o
olhar. "Eles estavam fugindo da opressão da Igreja, por causa
do tributo que havia sido imposto para as cruzadas no século
XIV. Os groenlandeses nórdicos eram pagãos por natureza.
Para eles, Harald Hardraade era o seu verdadeiro rei, não um
distante pontífice em Roma."
"Então para onde eles foram?", perguntou Costas.
Maria continuou, seu dedo mais abaixo na página. "Para o
norte, para o grande fiorde gelado onde Halfdan, o
Destemido, começou a jornada em seu navio para o
Valhala."
"Santo Deus", murmurou Jack. "Ele de fato menciona
Halfdan e o drakar." Ele olhou para Costas. "O iceberg não
foi apenas um sonho, afinal."
"Foi mais um pesadelo."
"Eles contaram cento e vinte pessoas, homens, mulheres e
crianças, e, depois de equipar seus navios com provisões,
partiram na direção nordeste, para nunca mais serem vistos.
Eles eram conduzidos por Erling Sigvatsson, Bjarni Tordsson
e Eindride Oddson."
"Eu conheço esses nomes", disse Maria, excitada. "Eles estão
na runa de pedra de Kingigtorssuaq, encontrada no século
XIX em uma ilha ao norte do fiorde gelado. A única outra
runa encontrada na Groenlândia até a descoberta do drakar"
"Algumas vezes realmente todas as peças se encaixam",
murmurou Jack balançando a cabeça com admiração.
"Então você está dizendo que Bjarni e todos esses indivíduos
deixaram os refúgios na Groenlândia em direção à passagem
nordeste?", indagou Costas.
"É isso que se deduz da saga."
"Há alguma chance de que eles tenham conseguido?"
"Não há razão para não terem se saído bem", disse Jack.
"Eles sempre foram os marinheiros mais calejados. Olhe para
onde Harald e sua exausta tripulação foram parar depois de
Stamford Bridge. Eles quase circunavegaram o hemisfério
ocidental. Se as passagens através da baía de Baffin para o
mar Beaufort não tivessem gelo no verão de 1333, então os
groenlandeses poderiam tê-las atravessado."
"Vikings no Pacífico no século XIV", refletiu Jeremy.
"Muito mais que as antigas viagens chinesas de descoberta.
Os vikings mereciam ganhar o prêmio."
"Eu acho que você podia pedir a alguns de seus colegas
antropólogos para fazer uns testes de DNA", murmurou
Costas.
"É uma idéia fantástica", disse Jack."Estivemos o tempo todo
procurando o próprio Harald, seu tesouro. Mas talvez o seu
maior legado tenha sido a sobrevivência desses povos, os
povos do mundo nórdico que estiveram mais perto de seu
caminho. Sua breve passagem pelas terras deles pode ter sido
o farol luminoso que os salvou de um fim miserável em
todos aqueles anos posteriores."
"Se este foi o seu legado, não posso deixar de pensar que isso
o deixaria tão satisfeito como suas grandes vitórias", disse
Maria olhando para Jack. "Uma maneira de garantir que o
melhor de sua gente vivesse vidas heróicas com honra até o
final."
Jeremy fechou o livro e o envolveu com o papel-bolha
protetor, e depois ele e Maria ficaram em pé entre Costas e
Jack. Por um momento todos olharam por sobre a proa para
o leste, onde os raios da tarde estavam brincando ao longe
sobre as ondas do Atlântico. Para Jack, o horizonte distante
do Velho Mundo parecia atraí-lo, repleto do esplendor da
história, no entanto as praias do Novo Mundo e os mares
longínquos tinham, agora, uma fascinação que ele nunca
sonharia possível apenas alguns dias antes. Sua mente voltou
para o Chifre de Ouro em Constantinopla, e uma vaga de
excitação o atravessou quando ele pensou em tudo o que
haviam feito.
Costas segurava o pingente de jade que tinham encontrado
com o esqueleto debaixo da pilha de pedras e examinava as
duas moedas de prata encaixadas nos olhos. Depois de um
instante, ergueu o olhar para Jack, sua expressão
ligeiramente reflexiva. "Então, isso foi tudo que
conseguimos do tesouro de Harald?"
"Uma moeda viking, outra romana." O rosto de Jack
enrugou-se com um sorriso. "Acho que isso é muito bom,
vocês não? Em si mesmas não são mais do que fragmentos
deslocados da história, mas colocadas juntas elas contam
uma história fantástica, algo que eu nunca acreditaria que
fosse possível antes disso tudo. Nós realmente encontramos
o tesouro de Harald. Estas moedas valem todo o ouro do
mundo."
"Uma última pergunta", disse Costas. "A princesa bizantina,
o outro tesouro de Harald que veio de Constantinopla. A
xará de Maria. Você acredita, de fato, que ela ficou com ele
até o fim? Eu fantasio sua sobrevivência, tornando-se uma
rainha terrível dos toltecas. Isto certamente adicionaria
algum tempero à história."
"Como se precisássemos de tempero depois de tudo isso",
disse Jeremy.
"Você pensou ter visto uma mulher na parede pintada, uma
viking", disse Costas para Jeremy, que subitamente
aquiesceu como se lembrasse.
"Para mim, esta é a lenda das valquírias", disse Maria.
"Cavaleiras do mundo dos espíritos que escolhem os mortos
na batalha pelo Valhala, a quem depois servem no grande
salão de lestas. Eu acho que Maria ficou com Harald até o
final, uma princesa guerreira, sua companheira de
sofrimento. Ela o teria acompanhado na outra vida. Era o
costume viking. Eu penso que ela está lá em cima agora,
festejando junto com ele o restante de sua nobre comunhão,
o verdadeiro félag"
"Maria, rainha das Valquírias", disse Costas, sem emoção.
"Do que eu vi, isso lhe convém."
Jack deu um largo sorriso. "É o momento de enviar mais
alguém para juntar-se a eles."
O navio havia reduzido a velocidade e agora estava parado
na água, com os últimos movimentos de onda de sua esteira
desfazendo-se ao sul. O capitão chegou da ponte de
comando, fazendo ruído pelo passadiço, e juntou-se a eles
no convés. "Estamos posicionados, Jack", disse ele. "Quando
você quiser."
Jack acenou com a cabeça, olhou de modo apreciador para o
mar e depois voltou-se para uma forma envolvida em uma
manta no convés atrás de si. Tirou a manta com cuidado e
um objeto deslumbrante apareceu. Era a magnífica acha
varegue que tinham trazido do drakar. A arma de estimação
de Halfdan que tinha salvado Jack e Costas de morte certa
no gelo. Era a primeira vez que Jack segurava a acha desde
que tinham sido içados depois de sua difícil experiência, e
ele sentiu um formigamento percorrer-lhe a espinha ao
segurar o cabo de carvalho e erguer o aço dourado da arma
até ficar à altura de seus olhos. Girou-a lentamente,
revelando a forma em pingente do martelo de Thor,
Mjollnir, com a cabeça de lobo no ápice, e acima dele a
águia de duas cabeças de Roma e Constantinopla, tudo
realçado em ouro. Passou a mão do outro lado, pelos
símbolos rúnicos do próprio Halfdan, sinais feitos mil anos
antes, quando este servia seu amado líder na glória dos dias
da guarda varegue, na maior cidade que o mundo jamais viu.
Os outros se aproximaram de Jack sem falar e puseram as
mãos ao redor do cabo. "Sorte-de-batalha", disse Costas.
"Sorte-de-batalha", repetiu Jack baixinho.
A mente de Jack voltou num lampejo para o Chifre de Ouro,
onde estivera apenas poucas semanas antes, para a
extraordinária aventura que os trouxera até ali. Pensou de
novo no padre O'Connor, em tudo o que ele fez para ocultar
o lado sombrio da história de modo a não provocar danos e
no terrível preço que pagara por isso.
Uma névoa marinha havia começado a rodeá-los, separando
o navio e as ondas cinzentas do mundo exterior, como se
eles tivessem sido apanhados em uma trama do tempo. Logo
acima do horizonte a oeste ficava Vinland, o distante posto
avançado dos vikings. Durante um instante passageiro, Jack
pensou ter visto uma proa fantasma de um drakar deslizando
na névoa, a proa curva esculpida com a forma entrelaçada
que eles tinham visto no gelo. Era como se estivessem
posicionados no lugar onde a realidade tornou-se mito, onde
o mundo dos vikings terminava e começava o mundo dos
espíritos, uma jornada nas trevas e no terror, mais pavorosa
do que Harald e seus homens poderiam ter imaginado.
Jack sentiu o peso da acha em suas mãos, depois ergueu o
aço frio e tocou-o com os lábios. Em algum lugar perto dali,
o que sobrara do iceberg iria libertar Halfdan e seu longo
navio dentro da torrente, a mesma corrente que havia
levado seu amado rei para a prova final do fim dos tempos.
Halfdan precisaria estar bem preparado, equipado para
sentir-se orgulhoso ao lado dos companheiros de batalhas
com os quais havia lutado quando os varegues não tinham
iguais no mundo dos homens.
Jack deu um passo adiante e com um movimento gracioso
abaixou a lâmina da acha atrás de si e girou o cabo bem alto
no céu, soltando-o no último momento, quando o peso o
arrastava para a frente. A acha descreveu um alto arco acima
da proa e começou a cair, iluminada por um raio de sol
através da névoa e desaparecendo em um deslumbrante
tumulto de luz. Era como uma caprichosa descarga de raio,
um clarão giratório de energia da época dos heróis. Depois
ela dividiu o mar e desapareceu, deixando apenas uma faixa
ondulada que logo sumiu no meio das ondas. Jack sentiu-se
estranhamente aliviado, como se um peso fosse retirado de
sua alma; então inclinou-se sobre o parapeito da proa e
olhou para a superfície cinzenta do mar enquanto os outros
se aproximavam. Ele pegou-se falando as palavras
santificadas do nórdico antigo, palavras que tinham perdido
seus tons sinistros e falavam de uma história mais
extraordinária do que poderia ter imaginado.
"Hann til ragnaroks"

Nota do Autor

A menorá. O magnífico sustentáculo de ouro do Templo
Judaico em Jerusalém, pilhado pelos romanos em 70 d.C.,
permanece como um dos maiores tesouros perdidos da
historia, na mesma categoria que o Santo Graal e a Arca da
Aliança. A única descrição conhecida da menorá do Templo
encontra-se no Arco de Tito, em Roma, o ponto de partida
para a ilustração da capa deste livro. A procissão triunfal
exibida no arco é vividamente descrita por Josefo, uma
testemunha judaica e confidente do imperador Vespasiano.
Entre os espólios do Templo havia um sustentáculo feito de
ouro: "Presa a um pedestal havia uma haste central, da qual
se estendiam braços mais finos, dispostos à maneira de um
tridente, uma lamparina ornamentada estava presa à
extremidade de cada braço; destes havia sete, indicando a
honra atribuída àquele número pelos judeus" (Guerra dos
Judeus, VII, 149-50). Josefo fala pouco sobre o destino dos
prisioneiros judeus — descreve apenas a execução de seu
líder, Simão —, mas ele afirma que pelo menos alguns dos
espólios sobreviveram sem ser derretidos: em seu novo
Templo da Paz, Vespasiano "reuniu os vasos de ouro do
Templo Judaico dos quais ele se orgulhava" (VII, 161-2). Um
outro tesouro proporcionou ouro para as famosas moedas
"Judaea Capta", cujo verso mostrava uma mulher judia
subjugada sob um estandarte romano e abaixo a palavra
IVDAEA.
Não há outras descrições de testemunhas da menorá do
Templo. No entanto, evidências obrigatórias de que ela
sobreviveu — talvez removida para um aposento secreto, tal
como aquele recentemente descoberto no próprio Arco de
Tito — são fornecidas pelo historiador Procópio
(aproximadamente 500-562 d.C.) em seu relato de primeira
mão sobre os espólios apreendidos pelo general bizantino
Belisário, quando ele derrotou os vândalos de Cartago em
534 d.C. Esses espólios incluíam objetos pilhados pelo rei
vândalo Giseric, quando ele saqueou Roma em 455 d.C., "os
tesouros dos judeus, que Tito, o filho de Vespasiano, junto
com alguns outros, tinha levado para Roma depois da
conquista de Jerusalém" (História das Guerras, IV, ix, 4-11).
De acordo com Procópio, Belisário levou os tesouros para
Constantinopla — a atual Istambul — e os exibiu no
hipódromo para o imperador Justiniano. Procópio então
afirma que um judeu persuadiu Justiniano a restituí-los para
"os santuários dos cristãos em Jerusalém". O fato de que
Procópio descreva a chegada dos tesouros em
Constantinopla sugere que o relato é autêntico, como se
muitos de seus supostos leitores tivessem testemunhado o
triunfo, mas sua história do retorno dos objetos a Jerusalém
parece implausível e ser apenas um embelezamento típico
para destacar as virtudes cristãs de Justiniano. Não há
evidência confiável de que a menorá tivesse voltado para
Jerusalém depois de 70 d.C.

A quarta cruzada. Os tesouros perdidos do Templo Judaico,
portanto, podem ter sobrevivido escondidos em
Constantinopla durante o período medieval. A
sobrevivência de muitas outras antiguidades na cidade é
atestada pela lista de objetos destruídos ou pilhados pelos
cruzados em 1204, inclusive a famosa quadriga, enviada para
Veneza para tornar-se os Cavalos de São Marcos. Alguns dos
cruzados já tinham ido em peregrinação para Roma, e é
possível que seu líder, Balduíno de Flandres, tivesse visto a
extraordinária imagem no Arco de Tito e lido Procópio.
Relatos contemporâneos do saque de Constantinopla estão
escondidos sob piedosas justificativas, mas pode ser que a
verdade seja de que a fascinação pela pilhagem mostrou ser
muito grande, e Balduíno precisava desesperadamente
encontrar um meio de pagar os venezianos por
transportarem seus cruzados de navio para a Terra Santa.

Harald Hardraade. Se os tesouros dos judeus sobreviveram
ou não em Constantinopla até o fim de 1204 é uma questão
aberta. Um século e meio antes da quarta cruzada, a lendária
guarda varegue do imperador bizantino havia sido conduzida
pela figura altaneira de Harald Sigurdsson, conhecido na
história como Hardraade, "o Severo", "o Implacável". Harald
era um mercenário viking, o filho exilado de um rei da
Noruega, que voltaria para reclamar o trono e se tornaria o
mais temido de todos os líderes militares nórdicos. Durante
os anos com os varegues, ele se transformou em um
moderno Belisário, realizando operações militares para o
imperador na Sicília e no norte da África e reunindo uma
enorme fortuna pessoal. Para os sarracenos ele era "O
Trovão do Norte", e teve sucesso onde a quarta cruzada não
conseguiu: entrou em Jerusalém, pacificou a Terra Santa,
banhou-se no rio Jordão e deu tesouros para o santuário na
sepultura de Cristo. A expedição para Jerusalém
provavelmente ocorreu em 1036 ou 1037, tornando Harald
Hardraade o primeiro e mais bem-sucedido de todos os
cruzados, embora no interesse do imperador bizantino e não
no da Igreja do Ocidente.
De volta a Constantinopla, permitiram que Harald tomasse
parte em "pilhagens de palácios" e ficasse com os tesouros
como uma recompensa por seus esforços, e então, em uma
certa noite de 1042, ele seqüestrou Maria, a sobrinha da
imperatriz Zoe — com quem desejava se casar, mas sua tia
havia impedido a união —, e escapou com seus
companheiros varegues em dois navios pelo grande canal
que se ligava com o Chifre de Ouro, o ancoradouro de
Constantinopla. O único relato dessa fuga diz que Maria
voltou à cidade logo depois de eles estarem a salvo, mas
talvez ela tenha acompanhado Harald de volta para a
Noruega e pelo resto de sua vida extraordinária, inclusive
durante o seu casamento com a princesa Elizabeth de Kiev e
seu relacionamento com pelo menos uma outra mulher,
Thora, que deu à luz seu filho e herdeiro Olaf. De acordo
com sua biografia, Harald tinha uma "filha", muito
estranhamente chamada Maria, que o acompanhou em sua
última viagem e que teria morrido de repente, "No mesmo
dia e na mesma hora que seu pai foi morto" (Saga do Rei
Harald, Heimskringla 98).
Quase tudo que sabemos sobre Harald Hardraade vem de
Heimskringla, um relato sobre os reis nórdicos escrito no
começo do século XIII pelo poeta e historiador islandês
Snorri Sturluson (1179-1241). Imagens de águias e de lobos
existem em abundância nas passagens em verso incluídas no
texto. O Heimskringla e umas poucas sentenças na Crônica
anglo-saxônica fornecem praticamente tudo que sabemos
sobre a batalha de Stamford Bridge perto de York, onde um
exército norueguês sob o comando de Harald foi derrotado
em 25 de setembro de 1066 pelo rei inglês Harold
Godwinsson, que por sua vez foi derrotado poucas semanas
depois pelos normandos. Stamford Bridge foi uma catástrofe
para os nórdicos, e para muitos assinalou o fim da era viking;
dos 300 navios que navegaram para a Inglaterra, dizem que
apenas 24 retornaram. A última descrição de Harald
Hardraade vivo é dele lutando "com as duas mãos" no auge
da batalha, manejando talvez a grande acha-de-armas dos
varegues, rodeado por sua leal guarda.
Dois companheiros varegues de Harald que escaparam com
ele de Constantinopla foram Halldor e Ulf, ambos islandeses.
Um outro pode ter sido Halfdan, cuja inscrição rúnica está
na igreja de Santa Sofia em Istambul. Fragmentos da
corrente que atravessava o Chifre de Ouro ainda existem.
Outras evidências para as proezas de Harald são ilusórias,
mas há o suficiente para dar consistência à vida contada no
Heimskringla. Em Jerusalém, ao pé da igreja do Santo
Sepulcro, eu vi uma cruz de peregrino esculpida na rocha
que parecia ter a forma de Mjollnir, o Martelo de Thor, um
símbolo que permaneceu poderoso para os nórdicos sob o
domínio da Igreja em lugares tão distantes como a Islândia e
a Groenlândia, mantido vivo junto com todas as lendas de
Loki, Fenrir e Valhala.

O Mappa Mundi. O maravilhoso mapa do século XIII
descrito no capítulo 2 pode ser visto hoje em um museu
construído para ele próximo da catedral de Hereford, ao lado
da famosa Biblioteca Acorrentada. Na época em que visitei a
catedral pela primeira vez, quando menino, a biblioteca
ainda se localizava na sala de documentos acima da ala norte
do transepto, onde arquivos e tesouros ficavam armazenados
no tempo em que o mapa estava sendo desenhado. A
aparente ausência da escada em espiral no canto nordeste do
transepto, que conduzia para a galeria acima, sempre me
pareceu estranha, por isso foi nesse lugar que coloquei a
descoberta fictícia de uma sala neste livro. Richard de
Holdingham foi um personagem histórico verdadeiro, cujo
nome se encontra no canto esquerdo inferior do mapa,
embora se saiba muito pouco sobre a sua vida. Eu o imaginei
"aprendiz", no félag imaginário, de Jacobus de Voragine, o
arcebispo de Gênova, também um personagem da vida real.
A ausência de Richard na dedicatória do mapa é revelada
pela indicação errada da Europa e da África, um erro patente
que um estudioso do seu calibre certamente não teria
tolerado.

Um félag, ou uma irmandade, era uma instituição viking, e
podia ser formado por um bando de guerreiros que deviam
obediência a um senhor, ligados por juramentos de lealdade.
Inimigos jurados podiam sofrer o mortal blódõrn, a "águia
sangrenta". Snorri Sturluson, o biógrafo dos reis nórdicos no
século XIII, descreveu como uma vítima era morta tendo
uma águia esculpida em suas costas por um inimigo, "que
enfiava sua espada dentro do corpo perto da espinha.
Cortava fora todas as costelas até os quadris e arrancava os
pulmões". A idéia de um félag secreto na Inglaterra medieval
baseia-se na antipatia dos ingleses pelos seus chefes
supremos normandos, e na herança nórdica que
permaneceu forte nos lugares da Grã-Bretanha onde os
vikings tinham se estabelecido. Uma região onde sua
influência mostrava-se mais evidente eram as ilhas
ocidentais da Escócia, e na ilha sagrada de lona hoje é
possível ver as lápides de túmulos de senhores vikings entre
as antigas relíquias cristãs do mosteiro.

A fascinação dos nazistas pelos vikings é bem conhecida. O
derradeiro félag nazista foi a SS, completo com a infame
insígnia da dupla runa sig. A missão da SS tornou-se subjugar
a Europa oriental, as terras outrora governadas pelos reis
vikings de Rus e Kiev, onde as atividades da SS
Einsatzgruppen — alguns de seus membros foram
recrutados localmente — incluíram o assassinato de mais de
um milhão de judeus ucranianos. O "Relatório da Situação
Operacional da URSS N- 129a" do Einsatzgruppen citado
nos capítulos 9 e 22, é um suplemento imaginário ao
verdadeiro Relatório N- 129, com o fraseado alterado apenas
para incluir a menção ao Reksnys fictício e sua carreira de
assassino. A atrocidade nazista neste romance se baseia em
minha visita ao desfiladeiro de Babi lar em Kiev, local em
que milhares de famílias judias foram despidas e assassinadas
a tiros, e em imagens e relatos de testemunhas no museu da
Grande Guerra Patriótica, em Kiev. Hoje Babi Iar é um
bonito parque infantil, elevando-se acima dele uma
gigantesca escultura em pedra da menorá.
O SS Ahnenerbe, o "Departamento da Herança Ancestral",
existia como foi descrito no romance. Nos últimos anos,
novas evidências extraordinárias apareceram relativas às
atividades da Ahnenerbe nos anos de 1930, inclusive
expedições para a América do Sul e o Tibete, onde os
cientistas nazistas faziam medições de crânios. Eles
acreditavam que populações remotas poderiam preservar
evidências de uma raça ariana superior, uma raça que eles
associavam com a lenda da Atlântida e com o bizarro
Welteislehre, a "Teoria do Mundo de Gelo". Heinrich
Himmler, criador da SS, acreditava que o lugar de origem da
raça ariana era a Islândia, e expedições Ahnenerbe foram
enviadas para lá em 1936 e 1938. A expedição Ahnenerbe
para Ilulissat neste romance é fictícia, bem como os seus
dois membros, mas a Groenlândia fica muito perto da
Islândia e Himmler deve indubitavelmente ter ficado
intrigado pelos relatos do famoso explorador groenlandês
Knud Rasmussen e seus estudos sobre a cultura inuit.

O fiorde de Ilulissat, um Patrimônio Mundial da UNESCO,
junto com L'Anse aux Meadows e Chichén Itzá,
proporciona uma das mais claras indicações do aquecimento
global de hoje, e tem sido intensamente estudado por
glaciologistas e climatologistas. O antigo local inuit de
Sermermiut, "o lugar do povo da geleira", existe como foi
descrito neste livro, junto com Kaellingekloften, a "garganta
suicida". A descrição do iceberg se baseia em minha própria
experiência no fiorde em Ilulissat, e em mergulhos debaixo
de gelo em águas canadenses. Os mergulhadores têm
entrado dentro de fissuras naturais em icebergs, e a
tecnologia existe para o tipo de penetração descrito no
romance.
Madeira de lei, têxteis e metal dourado podem sobreviver
quase indefinidamente no gelo. A idéia de que um guerreiro
nórdico pudesse ser preservado desta forma veio de corpos
extraordinariamente bem preservados de dois membros da
infeliz expedição de Sir John Franklin ao Ártico canadense
em 1845, exumados de subsolo permanentemente
congelado na ilha Beechey em 1984. Para os nórdicos,
embarcações de sepultamento faziam parte de um rito
funerário bem estabelecido. A queima de um navio é
excelentemente descrita pelo viajante árabe do século X, Ibn
Fadlan, que testemunhou o funeral de um comandante
originário de Rus no rio Volga, no qual uma mulher se
juntou ao seu senhor numa pira. Snorri Sturluson nos dá um
outro relato em que um navio em chamas cheio de armas e
de corpos foi lançado para o alto-mar depois de uma batalha,
carregando consigo o senhor viking mortalmente ferido que
havia supervisionado a construção de sua própria pira
funerária.
A imagem do navio no gelo foi tirada dos espetaculares
navios de sepultamento, Gokstad e Oseberg, na Noruega,
embora o navio fictício de Harald fosse um projeto mais
prático. De acordo com Snorri Sturluson, os dois navios em
que Harald fugiu de Constantinopla eram "galeras varegues",
longos navios a remo (A Saga do Rei Harald, Heimskringla
15). A melhor evidência para tipos de navios vikings data
quase exatamente da época da viagem imaginária neste
romance e veio de um grupo de navios afundados nos anos
1070 perto de Shuldelev, na Dinamarca, para restringir a
entrada para o fiorde de Roskilde. Um deles era uma
embarcação resistente com casco profundo apropriado para
navegar em mar aberto. A possibilidade de viagens nórdicas
para a América foi amplamente demonstrada por modernos
experimentos, incluindo uma regata de réplicas de navios
vikings para L'Anse aux Meadows para celebrar o milésimo
aniversário da chegada de Leif Ericsson no Novo Mundo.

A colônia viking mais ao norte na Groenlândia era
Vestribygõ, a "colônia ocidental", localizada a cerca de
quinhentas milhas ao sul do fiorde de Ilulissat. No entanto, a
região do fiorde mais ao norte, Norõrseta, era freqüentada
pelos nórdicos e vital para a sua economia. A única pedra de
runa encontrada na Noruega vem da ilha Kingigtorssuaq,
quase a quatrocentas milhas ao norte do fiorde, e pode ser
vista hoje no museu nas cercanias de Upernavik. Ela foi
colocada em uma pilha de pedras por três aventureiros
nórdicos — Erling, Bjarne e Eindride —, provavelmente no
início do século XIV. Minhas próprias explorações ao longo
dessa costa sugerem que locais remotos podem conter mais
evidências da atividade nórdica. É um fato extraordinário
que caçadores nórdicos nesse ambiente hostil — procurando
marfim de morsa, baleia, esconderijos de ursos polares e
presas de narvais, o "chifre de unicórnio" visto em mapas
medievais — tenham ajudado a pagar as cruzadas, por meio
de uma taxa imposta pelo rei norueguês Sigurd Jorsalfar, "o
Cruzado", estabelecido como autoridade episcopal na
Groenlândia em 1124. A Igreja exerceu uma forte influência
sobre os groenlandeses, e a impossibilidade de pagar à Igreja
pode muito bem ter sido um fator no desaparecimento dos
nórdicos da Groenlândia em torno do século XV.
Restam poucas dúvidas de que os exploradores nórdicos
tenham navegado ao redor da baía de Baffin e dentro de
Lancaster Sound, o início da Passagem Noroeste para o mar
de Beaufort e o oceano Pacífico. Artefatos nórdicos
dispersos foram encontrados através do Ártico canadense,
alguns indubitavelmente tirados pelos inuit de colônias
nórdicas abandonadas na Groenlândia, mas outros que
refletem contatos escandinavos e exploração. Nenhum
navio viking foi ainda encontrado nessas águas, contudo,
uma extraordinária descoberta próxima à calota polar pode
sugerir um naufrágio. Na minúscula ilha Scraeling, um
rochedo infecundo na altura da ilha Ellesmere — cerca de
oitocentas milhas ao norte de Ilulissat —, um sítio inuit
revelou mais de cinqüenta artefatos, que incluíam roupas de
lã, fragmentos de corrente de cota de malha, rebites de
navio, facas e lâminas de lanças, um projeto de carpintaria,
fragmentos de madeira de barril e uma peça de jogo. A
análise feita com carbono 14 sugere uma data próxima ao
final do período nórdico na Groenlândia, semelhante à data
da pedra de runa Kingigtorssuaq. A comparação pode ser
feita com o local de subsolo permanentemente congelado
encontrado por Franklin na ilha Beechey durante sua
tentativa para descobrir a Passagem Noroeste, em 1845.
Apesar da "Pequena Idade do Gelo" do período medieval, a
análise de núcleos de gelo da Groenlândia sugere que havia
períodos de aquecimento — um no início do século XIV —,
quando as águas entre as ilhas e o Ártico canadense podem
ter ficado claras. Deve permanecer em aberto a possibilidade
de que os vikings descobriram a Passagem Noroeste,
seguindo a rota dos primeiros caçadores inuit, e de que os
últimos nórdicos, ao abandonarem a Groenlândia, tomaram
este caminho.

O que é certo é que os vikings navegaram mais de mil
milhas para o sul da Groenlândia para estabelecer a primeira
colônia européia conhecida nas praias da América do Norte,
num lugar que eles chamaram Vinland — talvez "Terra de
Meadows" em lugar de "Terra das Vinhas", como
comumente se supõe —, quase quinhentos anos antes de
Cristóvão Colombo. O principal interesse deles era
provavelmente a madeira de lei, que quase não existia na
Groenlândia. O sítio de L'Anse aux Meadows em
Newfoundland, identificado por muitos como Leifsbúõir nas
sagas nórdicas, é uma das mais extraordinárias descobertas
arqueológicas de todos os tempos. A "Grande Ilha Sagrada"
pode ter sido um marco de navegação — há pilhas de pedras
em terra firme que podem ser nórdicas e a história da quilha
levantada no cabo Kjalarnes vem da Saga de Eric —, embora
nenhuma evidência tenha sido encontrada até agora. Hoje, o
local de L'Anse aux Meadows é mantido pelo Parks Canadá,
e é possível visitar a comprida casa reconstruída perto do
local das três construções antigas e de uma oficina de
ferreiro desenterrada durante os anos 1960. A evidência
indica uma colônia de curta duração estabelecida em torno
de 1000 d.C. A história de Freydis e seus assassinatos
violentos vieram da Saga de Eric e das Sagas groenlandesas,
as duas fontes escritas sobre Vinland, e pode ter acontecido
que a mortalha lançada por esses eventos tenha dissuadido
os nórdicos a continuar na colônia, junto com a ameaça de
ataques dos scraelings — os índios nativos "canalhas" — e a
maior disponibilidade de madeira de lei ao longo da costa de
Labrador para o norte.

O único artefato nórdico autêntico descoberto nas
Américas, ao sul de L'Anse aux Meadows é uma moeda gasta
desenterrada de um sítio arqueológico índio ao lado da baía
de Penobscot, no Maine. Ela foi identificada como uma
moeda norueguesa do rei Olaf, o filho e sucessor de Haraki
Hardraade, que tinha estado com ele na Inglaterra em 1066,
e pode datar do mesmo ano da viagem fictícia deste
romance. Nenhuma moeda viking foi encontrada em
L'Anse aux Meadows ou na Groenlândia, e como essa
moeda veio a ser perdida a quase mil milhas além do
assentamento da última colônia viking conhecida, é um
mistério.

Não existem evidências de que marinheiros do outro lado do
Atlântico alcançaram as praias do Iucatã, no México, antes
dos espanhóis no início do século XVI. No entanto, dizem
que o profeta maia Chilam Balam, "Profeta Jaguar", predisse
a chegada dos "homens barbados, os homens do leste". Os
Livros de Chilam Balam foram escritos, sobretudo, depois da
conquista espanhola, o que levou à suposição de que a
profecia tenha sido um embelezamento posterior, mas
permanece a possibilidade de que ela era genuína e estava
inserida na memória de estrangeiros que chegaram antes dos
espanhóis. Conhece-se apenas um grupo de "homens
barbados, homens do leste" que visitou o Novo Mundo antes
do século XV, e esse era nórdico; e a evidência sugere que a
exploração nórdica para o oeste e para o sul da Groenlândia
alcançou sua maior extensão durante o século XI.
O templo fictício com a parede pintada, no meio da selva,
baseou-se numa notável descoberta feita por dois
americanos aventureiros no Iucatã em 1946, em um local
que veio a ser conhecido como Bonampak, a palavra maia
para "paredes pintadas". Dentro de uma construção
sustentada por modilhões, coberta por vegetação, eles
encontraram em uma parede pintada uma narrativa de
extraordinário poder, que mostrava uma batalha na selva, a
tortura e execução de prisioneiros, e celebrações de vitória,
inclusive as damas maias vestidas de branco arrancando
sangue de suas línguas. As pinturas datam do apogeu do
período maia, em torno de 800 d.C., mas uma outra pintura
no Templo dos Guerreiros em Chichén Itzá tem sua origem
na época em que os toltecas arrebataram o poder no século
XI. Ela exibe guerreiros toltecas carregando canoas e
explorando as costas maias, uma grande batalha
desenvolvida em terra e o ritual de sacrifício do coração dos
líderes maias capturados.
Quando visitamos as ruínas de Chichén Itzá hoje em dia,
contam-nos, provavelmente, que as histórias de sacrifícios
humanos foram exageradas pelos espanhóis, ou que só os
toltecas os praticavam, não os maias, cujos descendentes
ainda ocupam o Iucatã. Cada um pode chegar à sua própria
conclusão na Plataforma dos Esqueletos, onde podem ser
vistas fileiras esculpidas de cabeças decapitadas, quando se
caminha em direção ao altar de sacrifício no Templo dos
Guerreiros, e depois olhar ao longo do caminho cerimonial
que leva ao cenote sagrado, o Poço de Sacrifício. Muitas das
representações de tortura e de execução na arte asteca e
maia são anteriores à chegada dos espanhóis, e as últimas
técnicas da ciência forense estão, quase literalmente,
adicionando carne humana à pintura: arqueólogos no
México descobriram que os solos dos templos astecas estão
infiltrados de ferro, de albumina e material genético
compatível com sangue humano.
No Iucatã, a evidência mais impressionante vem da
arqueologia subaquática. O Poço de Sacrifício, desobstruído
em 1904-11 e escavado por mergulhadores em 1960,
continha centenas de esqueletos humanos — homens,
mulheres e crianças —, bem como um tesouro em artefatos:
discos de ouro, pingentes de jade esculpidos, um crânio
humano transformado em incensário, uma faca de sacrifício,
numerosas estatuetas de madeira para oferendas em
cumprimento de votos e diversas outras oferendas. A
história é similar àquela de outros cenotes no Iucatã,
inclusive algumas no círculo de depressões de escoamento
que se formaram devido ao impacto de um enorme
meteorito na costa norte. Muitos desses cenotes
permanecem enterrados e são vulneráveis a pilhagens. O
cenote fictício neste livro tem como base minha própria
experiência na exploração desses locais, e, sobretudo, em
mergulhos nas cavernas espetaculares e nas passagens de
Dos Ojos, "Caverna do Morcego", perto do litoral maia de
Tulum.
A história dos últimos dias dos reis maias, quase dois séculos
depois da conquista espanhola, baseia-se no relato do padre
Andrés de Avendano y Loyola (Narração de duas viagens
para Petén, feitas para a conversão dos pagãos Ytzaex e
Cehaches), que foi testemunha dessa extraordinária cena
perto do lago Petén na selva remota, em 1695 ou 1696. Um
fragmento posterior desse relato apareceu em 1988 e é
citado no capítulo 21. A verdadeira fonte do ouro maia,
como descrita por Avendano e encontrada pelos
arqueólogos no Poço de Sacrifício em Chichén Itzá,
permanece um mistério.

O francês arcaico citado no capítulo 2 é a inscrição que hoje
se vê no canto esquerdo inferior do Mappa Mundi de
Hereford. A Bíblia citada no capítulo 4 é uma abreviação do
Êxodo: 31-40, versão do Rei Jaime. No capítulo 5, as duas
citações da Saga do Rei Harald, parte do Heimskringla
escrito por Snorri Sturluson, foram traduzidas por Magnus
Magnusson e Hermann Pálsson (Penguin, 1966). A poesia
no capítulo 13 é da Morte de Artur por Alfred, Lord
Tennyson (1809-92). No capítulo 15, a sentença em nórdico
antigo descrevendo a viagem por mar de Harald é fictícia,
mas as frases que a compõem foram tiradas literalmente da
Saga de Eric do século XIII, descrevendo as viagens nórdicas
para Vinland. A frase em nórdico antigo bar liggr hann til
rugnaroks, "ali ele jaz até o fim do mundo", vem do poema
Edda (Gylfaginning 34), também escrito pelo prolífico
Snorri Sturluson, em algum momento do início do século
XIII.
A citação no início do livro é de Josefo, A Guerra dos
Judeus, VII, 148-62, traduzida do grego por H. St J.
Thackeray (Edição Loeb, Harvard University Press).
As duas moedas de prata descritas no capítulo 15 — e uma
delas no Prólogo — existem de verdade. Elas podem ser
vistas, junto com outras imagens deste livro, em
www.davidgibbins.com



Atlantis

David Gibbins


Agradecimentos

Meus sinceros agradecimentos à meu agente, Luigi Bonomi,
a meus editores Harriet Evans e Bill Massey, e a Jane Heller.
Também para Amanda Preston, Amélia Cummins, Vanessa
Forbes, Gaia Banks, Jenny Bateman e Catherine Cobain. A
meus amigos, colegas e instituições que me auxiliaram a
fazer do trabalho de campo uma aventura e tornar a
verdadeira arqueologia tão excitante quanto a ficção. A Ann
Verrinder Gibbins, que me levou ao Cáucaso e à Ásia
Central, e depois me proporcionou o refúgio perfeito para
escrever. Ao papai, Alan e Hugh, e a Zebedee e Suzie. A
Angie e a nossa amada filha Molly, que chegou quando este
livro era apenas uma idéia e tem me visto por intermédio
dele.

Mapa atual do Mediterrâneo


"Um poderoso império dominava antigamente a maior parte
do mundo. Seus soberanos viviam em uma vasta cidadela,
com vista para o mar, um enorme labirinto de corredores,
algo nunca visto anteriormente. Eles eram artesãos
habilidosos com ouro e marfim e toureiros destemidos. Mas
então, por ter desafiado Posêidon, o deus dos mares, em um
imenso dilúvio, a cidadela foi tragada pelas águas e seu povo
nunca mais foi visto!"

Prólogo

O ancião arrastou os pés até uma parada e levantou a cabeça,
tão atemorizado como da primeira vez em que parou diante
do templo. Nada que se assemelhasse a isso havia sido
construído na Atenas onde havia nascido. Muito acima dele
a entrada monumental parecia sustentar todo o peso dos
céus, seus pilares colossais lançando uma sombra iluminada
pela lua, muito além dos limites do templo, na vastidão
pouco luminosa do deserto. À frente, não muito distintas,
apareciam fileiras de imensas colunas, elevando-se em
antecâmaras em forma de cavernas, suas superfícies polidas
cobertas com inscrições hieroglíficas e formas humanas
muito grandes, visíveis apenas sob a luz de tochas
crepitantes. A única pista do que havia do outro lado era
uma brisa fria, sussurrante, que trazia consigo o odor
bolorento de incenso, como se alguém tivesse acabado de
abrir as portas de uma câmara funerária havia muito fechada.
O ancião estremeceu sem querer, sua conduta filosófica
dando lugar, momentaneamente, a um medo irracional do
desconhecido, um temor do poder dos deuses que ele não
podia aplacar e os quais não estavam interessados no bem-
estar de seu povo.
- Aproxime-se, grego.
As palavras assobiaram através das trevas enquanto o auxiliar
acendia sua tocha em um dos fogos que havia na porta da
entrada, a chama tremeluzente revelando o físico de alguém
magro e gracioso vestido apenas com uma tanga. À medida
que se locomovia silenciosamente adiante, a chama
flutuante era o único sinal de seu progresso. Como sempre,
ele parou na entrada do santuário interior e esperou
impacientemente pelo ancião, cuja forma encurvada seguia-
o através da antecâmara. O auxiliar não sentia nada além de
desprezo por esse heleno, esse grego, com sua cabeça calva
e barba desgrenhada, com suas perguntas intermináveis, que
o fazia esperar no templo, todas as noites, muito além do
horário estabelecido. Ao escrever nos pergaminhos, o grego
realizava um ato particularmente reservado aos sacerdotes.
Agora, o desprezo do auxiliar tinha se transformado em
aversão. Naquela mesma manhã seu irmão Seth havia
voltado de Náucratis, o ativo porto próximo ao local onde as
águas barrentas da enchente do Nilo desembocam no
Grande Mar do Meio. Seth parecia abatido e desolado. Eles
haviam confiado um lote de roupas, da loja de seu pai em
Fayum, a um mercador grego que agora alegava tê-lo
perdido em um naufrágio. Os dois irmãos já estavam
bastante desconfiados, achando que o grego, com astúcia,
iria explorá-los em sua ignorância comercial. Nas
circunstâncias atuais, seu presságio se transformara em ódio.
Esta havia sido a última esperança de eles escaparem de uma
vida de trabalho penoso no templo, condenados a uma
existência pouco melhor do que a dos babuínos e gatos que
espreitavam nos nichos escuros atrás das colunas.
O auxiliar examinou maldosamente o ancião enquanto este
se aproximava. Legislador, era como eles o chamavam. "Eu
lhe mostrarei", o auxiliar sussurrou para si mesmo, "o que
meus deuses pensam de suas leis, seu grego."
A cena no santuário interior contrastava enormemente com
o esplendor proibido da antecâmara. Milhares de pontos de
luz, como pirilampos na noite, emergiam de lâmpadas
cerâmicas de óleo ao redor de uma câmara escavada na
rocha natural. Do teto pendiam elaborados incensários em
bronze, os finos vestígios de fumaça formavam uma camada
de neblina por toda a sala.
As paredes estavam cheias de vãos, como os nichos
funerários de uma necrópole: só que aqui eles não estavam
preenchidos com cadáveres cobertos com mortalhas e urnas
cinerárias, mas sim com jarras altas, abertas no topo, repletas
de rolos de papiro. À medida que os dois homens desciam a
escadaria, o cheiro desagradável de incenso se tornou mais
forte e o silêncio foi quebrado por um murmúrio que ia
ficando mais distinto a cada passo. Um pouco adiante, dois
pilares encimados com duas águias serviam como batentes
para as grandes portas de bronze que se abriam em direção a
eles.
Diante deles, a começar da entrada, havia fileiras ordenadas
de homens, alguns sentados com as pernas cruzadas em
esteiras de palha e vestindo apenas tangas, todos inclinados
sobre escrivaninhas baixas. Alguns copiavam de rolos que
ficavam ao seu lado, outros transcreviam ditados feitos por
sacerdotes vestidos de preto, suas recitações baixas
produzindo o canto suavemente, ondulante que tinham
ouvido quando se aproximavam do local. Este era o
scriptorium, a câmara da sabedoria, um vasto repositório de
conhecimento escrito e memorizado que passava de um
sacerdote a outro desde os primórdios da história, mesmo
antes dos construtores das pirâmides.
O auxiliar retirou-se para as sombras do poço da escadaria.
Não lhe era permitido entrar na câmara, e agora começava a
longa espera até que chegasse o momento de escoltar o
grego para fora. Mas nessa noite, em vez de passar o tempo
com um ressentimento mal-humorado, ele saboreou uma
tremenda satisfação com a lembrança dos eventos
planejados para a ocasião.
Na ânsia de entrar, o ancião foi abrindo caminho entre as
fileiras. Essa era a sua última noite no templo, sua última
chance de penetrar no mistério que o obcecava desde sua
visita anterior. Na manhã seguinte iria ter início o longo mês
dedicado ao Festival de Thoth, quando todos os recém-
chegados seriam impedidos de adentrar o templo. Ele sabia
que um estrangeiro nunca mais conseguiria uma audiência
com o sumo sacerdote.
Em sua pressa, o grego tropeçou na sala, deixando cair seu
rolo de pergaminho e canetas com um ruído que
momentaneamente distraiu os escribas de seu trabalho. Ele
resmungou aborrecido e relanceou o olhar em volta,
desculpando-se antes de recolher seus pertences e dirigir-se
com seu andar arrastado, por entre os homens ali sentados,
rumo a um anexo do outro lado da câmara. Esgueirou-se
rapidamente por sob uma porta baixa e sentou-se em uma
esteira de palha, sabendo tão-só por causa de suas visitas
anteriores que haveria uma outra pessoa sentada diante dele.
- Sólon, o Legislador, eu sou Amenhotep, o sumo
sacerdote.
A voz era apenas audível, pouco mais que um sussurro, e
soava tão velha quanto os deuses. De novo ele falou.
- Você vem ao meu templo em Sais, e eu o recebo. Você
procura conhecimento, e eu dou o que os deuses quiserem
conceder.
Terminadas as saudações formais, o grego rapidamente
ajeitou seu manto branco sobre as pernas e preparou seu
pergaminho. Da escuridão Amenhotep inclinou-se para a
frente, apenas o suficiente para que seu rosto pudesse ser
percebido através de um oscilante feixe de luz. Sólon o vira
muitas vezes antes, mas essa visão ainda fazia sua alma
estremecer. Ele parecia desencorporado, uma esfera
luminosa suspensa na escuridão, como um espectro olhando
de soslaio da beira do mundo subterrâneo. Era o rosto de um
homem jovem suspenso no tempo, como que mumificado; a
pele era esticada e translúcida, quase como um pergaminho,
e os olhos, sem expressão, tinham o brilho opaco da
cegueira.
Amenhotep já era velho antes de Sólon nascer. Dizia-se que
tinha sido visitado por Homero, no tempo do bisavô de
Sólon, e que fora aquele a contar sobre o cerco de Tróia,
sobre Agamenon, Heitor e Helena, e sobre as viagens de
Ulisses. Sólon gostaria de indagar sobre estes e outros
assuntos, mas ao fazer isso violaria sua promessa de não
interrogar o velho sacerdote.
Sólon inclinou-se para a frente atentamente, determinado a
nada deixar escapar nessa última visita. Por fim, Amenhotep
falou outra vez, sua voz não mais do que uma exalação
espectral.
- Legislador, diga-me a respeito do que falei ontem.
Sólon rapidamente desenrolou seu pergaminho, examinando
as linhas escritas de maneira concentrada. Depois de um
instante começou a ler, traduzindo o grego que estava em
seu manuscrito para a linguagem egípcia que falavam agora.
- Um poderoso império dominava antigamente a maior parte
do mundo. - Ele perscrutou atentamente a escuridão. - Seus
soberanos viviam em uma vasta cidadela, com vista para o
mar, um enorme labirinto de corredores, algo nunca visto
antes. Eles eram artesãos habilidosos com ouro e marfim e
toureiros destemidos. Mas então, por ter desafiado Posêidon,
o deus dos mares, em um imenso dilúvio a cidadela foi
tragada pelas águas, seu povo nunca mais foi visto. - Sólon
parou de ler e olhou cheio de expectativa. - Foi aqui que o
senhor parou.
Depois do que pareceu um silêncio interminável, o velho
sacerdote falou de novo, seus lábios mal se movendo e a voz
apenas um pouco mais alta que um murmúrio.
- Esta noite, Legislador, lhe direi muitas coisas. Mas primeiro
vou falar desse mundo perdido, a cidade orgulhosa derrotada
pelos deuses, essa cidade chamada Atlântida.
Muitas horas depois, o grego deixou a caneta de lado, sua
mão doendo de tanto escrever, e enrolou o pergaminho.
Amenhotep havia terminado. Agora era a noite de lua cheia,
o início do Festival de Thoth, e os sacerdotes deviam
preparar o templo antes que os suplicantes chegassem ao
amanhecer.
- O que lhe contei, Legislador, estava aqui, e em nenhum
outro lugar, - sussurrou Amenhotep, seu dedo encurvado
batendo vagarosamente na própria cabeça. - Por antigo
decreto, nós que não podemos deixar esse templo, nós
sumos sacerdotes, devemos conservar essa sabedoria como
nosso tesouro. É somente por ordem do astrólogo, o vidente
do templo, que você pode estar aqui, por uma vontade do
divino Osíris. - O velho sacerdote inclinou-se para a frente,
com um vestígio de sorriso nos lábios. - E, Legislador,
lembre-se: eu não falo por enigmas, como seus oráculos
gregos, mas pode haver enigmas naquilo que relato. Eu
expresso uma verdade transmitida, não uma verdade
inventada por mim. Agora vá.
Enquanto o rosto cadavérico recuava para dentro da
escuridão, Sólon levantou-se vagarosamente, hesitando por
um momento e olhando para trás uma última vez antes de
sair para o scriptorium, agora vazio, e encaminhar-se em
direção à luz do archote na entrada.
Um alvorecer estriado de rosa coloria o céu oriental, seu
tênue brilho tingindo o luar que ainda dançava sobre as
águas do Nilo. O velho grego estava sozinho, o auxiliar o
deixara, como de hábito, fora do recinto do templo. Ele
suspirou com satisfação enquanto passava pelas colunas do
templo - a parte alta delas era em formato de folhas de
palmeira e muito diferente das formas gregas simples - e
lançou um último olhar para o Lago Sagrado com seus
obeliscos de falanges sinistras, esfinges com cabeças
humanas e estátuas colossais de faraós. Ele estava contente
de deixar tudo isso para trás e andava com prazer pelos
caminhos poeirentos em direção à aldeia construída com
tijolos de barro onde temporariamente residia. Em suas mãos
agarrava o pergaminho precioso, e de seu ombro pendia uma
sacola pesada contendo uma bolsa cheia de dinheiro. Na
manhã seguinte, antes de partir, faria sua oferenda de ouro à
deusa Neith, como havia prometido a Amenhotep quando
conversaram pela primeira vez.
Ele ainda estava perdido em devaneios a respeito do que
ouvira. Uma Idade de Ouro, uma era de esplendor que
mesmo os faraós não poderiam ter imaginado. Uma raça que
dominava a fundo todas as artes, em fogo, pedra e metal. E,
no entanto, eram homens e não gigantes como os ciclopes
que construíram as antigas muralhas da Acrópole. Haviam
encontrado o fruto divino e o furtado. Sua cidadela
resplandecia como o Monte Olimpo. Eles ousaram desafiar
os deuses e os deuses os abateram.
No entanto eles não pereceram.
Em seu devaneio, não percebeu duas formas escuras que
saíram furtivamente de trás de uma parede quando ele
estava entrando na aldeia. O golpe atingiu-o sem que ele se
desse conta do que estava acontecendo. Quando caiu ao
chão, e a escuridão desceu sobre ele, percebeu vagamente
mãos que lhe arrancavam a sacola dos ombros. Um dos
vultos agarrou-lhe o pergaminho das mãos e rasgou-o em
tiras, atirando os fragmentos para longe, o que os fez
espalharem-se em um beco cheio de lixo. Os dois vultos
desapareceram tão silenciosamente quanto chegaram,
deixando o grego inconsciente e sangrando no meio da
imundície.
Quando voltou a si, ele não se lembrava daquela última noite
no templo. Nos anos seguintes raramente falava do tempo
que passou em Sais e nunca mais escreveu. A sabedoria de
Amenhotep nunca mais sairia do santuário do templo, e
parecia estar perdida para sempre quando os últimos
sacerdotes morreram e o lodo do Nilo recobriu o templo e a
chave para decifrar os mais profundos mistérios do passado.

1

- Nunca vi nada semelhante a isto!
As palavras eram de um mergulhador que acabara de
emergir atrás da popa do navio de pesquisa, sua voz
esbaforida por causa da excitação. Depois de nadar até a
escada de cordas, removeu os pés-de-pato e a máscara e
passou-os para o chefe da embarcação que esperava por ele.
Içou-se cuidadosamente para fora da água e os pesados
cilindros fizeram com que momentaneamente perdesse o
equilíbrio, mas um puxão de cima ajudou-o a subir são e
salvo para o convés. Sua figura gotejante foi logo rodeada
pelos outros membros da equipe que aguardavam na
plataforma de mergulho.
Jack Howard desceu da ponte de comando e sorriu para seu
amigo. Ele ainda achava surpreendente que uma figura tão
corpulenta pudesse ser tão ágil debaixo d'água. Enquanto
tratava de pôr em ordem o equipamento de mergulho, no
convés perto da popa, ele disse em voz alta e com o tom
zombeteiro que fazia parte da brincadeira deles havia anos:
- Nós pensamos que você tivesse nadado de volta a Atenas
para beber um gim-tônica à beira da piscina do seu pai. O
que você encontrou, o tesouro perdido da Rainha de Sabá?
Costas Kazantzakis sacudiu a cabeça impacientemente
enquanto avançava ao longo da balaustrada em direção a
Jack.
Estava por demais agitado até mesmo para se preocupar em
tirar seu equipamento.
- Não, - ele ofegou. - A coisa é séria. Dê uma olhada nisso
aqui.
Jack silenciosamente rezou para que as novidades fossem
boas. Costas tinha feito um mergulho solitário para
investigar um banco de areia que entupia o topo do vulcão
submerso, e os dois mergulhadores que o haviam seguido
logo estariam emergindo, depois da parada para a
descompressão. Não haveria mais mergulhos naquela
temporada.
Costas destravou um mosquetão e, ao passar pela caixa onde
guardavam a câmera de vídeo subaquática, pressionou o
botão de replay. Os outros membros da equipe agruparam-se
atrás do inglês grandalhão enquanto ele abria o minúsculo
monitor LCD e ativava o vídeo. Depois de alguns instantes,
o sorriso cético de Jack deu lugar a um olhar de puro
assombro.
A cena subaquática estava iluminada com holofotes
poderosos que clareavam as trevas a uma profundidade de
quase cem metros. Dois mergulhadores, ajoelhados no solo
oceânico, manuseavam uma espécie de aspirador, um largo
tubo alimentado por uma mangueira de ar de baixa pressão
que ia sugando o lodo que cobria o local. Um mergulhador
esforçava-se para manter o equipamento na posição
enquanto o outro lançava sedimentos para cima, em direção
à boca do tubo, ato que ia revelando artefatos, exatamente
como um arqueólogo em terra faria usando uma colher de
pedreiro.
Quando a câmera deu um close, o objeto que chamara a
atenção dos mergulhadores apareceu de maneira dramática.
A forma escura inclinada que se tornou visível não era
rocha, mas uma densa massa de placas de metal sobrepostas
umas sobre as outras como telhas.
- Lingotes em forma de couro de boi, - disse Jack muito
excitado. - Centenas deles. E há uma camada almofadada de
galhos amortecedores de choques, assim como Homero
descreveu no navio de Ulisses.
Cada placa tinha cerca de um metro de comprimento com
cantos salientes, cuja forma lembrava o couro esfolado e
esticado de um boi. Eles eram lingotes de cobre
característicos da Idade do Bronze, com mais de três mil e
quinhentos anos de idade.
- Assemelha-se a um tipo mais antigo, - arriscou um dos
estudantes da equipe. - Século XVI antes de Cristo?
- Sem dúvida, - disse Jack. - E também foram colocados em
fileiras, sugerindo que o casco do navio pode estar
preservado por baixo. Esse pode ser o navio mais antigo
jamais descoberto.
A excitação de Jack aumentava à medida que a câmera
percorria o declive. Entre os lingotes e os mergulhadores
apareciam, de maneira indistinta, três enormes jarros de
cerâmica, cada um da altura de um homem e com mais de
um metro de circunferência. Eram idênticos aos jarros que
Jack vira nos almoxarifados de Cnossos, em Creta. Dentro
deles, pilhas de cálices pintados com polvos e belos motivos
marinhos, suas formas sinuosas em harmonia com as
ondulações do fundo do mar.
Eram, sem dúvida, cerâmicas dos minoanos, a notável
civilização da ilha que floresceu na época dos primeiros
reinados do Egito, mas depois desapareceu subitamente, por
volta de 1400 a.C. Cnossos, o lendário labirinto do
Minotauro, foi uma das descobertas mais sensacionais do
último século. Seguindo de perto as pegadas de Heinrich
Schliemann, escavador de Tróia, o arqueólogo inglês Arthur
Evans iniciou uma viagem para provar que a lenda de Teseu,
príncipe de Atenas, e sua amada Ariadne, estava tão
fundamentada em eventos reais quanto a Guerra de Tróia. O
vasto palácio ao sul de Heraklion era a chave para uma
civilização perdida chamada minoana por causa do nome de
seu lendário rei. O labirinto de corredores e aposentos deu
extraordinária credibilidade à história da batalha de Teseu
com o Minotauro e mostrou que os mitos dos gregos,
séculos mais tarde, estavam mais próximos da história real
do que qualquer pessoa ousaria pensar.
- Sim!, - Jack esmurrou o ar com sua mão livre, a discrição
habitual dando lugar à emoção de uma descoberta
verdadeiramente significativa. Era o clímax de anos de
paixão sincera, a realização de um sonho que o perseguia
desde sua infância. Uma descoberta que iria rivalizar com a
tumba de Tutancâmon, a descoberta que asseguraria à sua
equipe um lugar de vanguarda nos anais da arqueologia.
Para Jack essas imagens eram suficientes. No entanto havia
mais, muito mais, e ele ficou transfigurado diante da tela. A
câmera se moveu lentamente até os mergulhadores em um
pequeno banco de areia debaixo do agrupamento de
lingotes.
- Provavelmente é o compartimento da popa, - Costas
apontava para a tela. - Bem atrás desse parapeito há uma
fileira de âncoras de pedra e um leme de madeira.
Bem na frente havia uma área de luz de um amarelo tênue,
semelhante ao reflexo dos holofotes sobre o sedimento na
água. Quando a câmera fez um dose, houve um suspiro
coletivo de espanto.
- Isso não é areia, - sussurrou um pesquisador.
- É ouro!
Agora eles sabiam para o que estavam olhando, a imagem
era de um esplendor insuperável. No centro havia um
magnífico cálice de ouro esculpido para o próprio rei Minos.
Ele era decorado em relevo com uma elaborada cena de
tourada. Ao lado havia uma estátua de ouro de uma mulher
em tamanho natural, seus braços levantados em súplica e os
cabelos entrelaçados com serpentes. Os seios desnudos
haviam sido lindamente esculpidos em marfim, e uma linha
curva bruxuleante e colorida mostrava onde seu pescoço
estava enfeitado com jóias. Abrigadas na frente havia uma
coleção de espadas de bronze com empunhadura de ouro, as
lâminas decoradas com cenas de batalha esculpidas em prata
incrustada e esmalte azul.
O reflexo mais brilhante vinha da área bem em frente aos
mergulhadores. Qualquer movimento de mão parecia
revelar um novo objeto cintilante. Jack pôde distinguir
barras de ouro, brasões reais, jóias e delicadas coroas de
folhas entrelaçadas, tudo isso misturado como se tivessem
estado antes dentro de um cofre de tesouros.
A cena mudou rápido de direção, desaparecendo na parte
superior da tela, que repentinamente ficou branca. No
silêncio impressionante que se seguiu, Jack abaixou a câmera
e ergueu a cabeça bem devagar.
- Acho que vamos em frente, - disse calmamente.
Jack havia arriscado sua reputação em uma proposta bastante
arrojada. Na década depois de ter completado seu doutorado,
ele ficou obcecado em descobrir uma ruína minoana, um
achado que consolidaria sua teoria sobre a supremacia
marítima dos minoanos na Idade do Bronze. Ele se
convencera que o local mais provável era um grupo de
recifes e ilhotas cerca de setenta milhas náuticas a noroeste
de Cnossos.
Durante semanas, porém, eles procuraram em vão. Alguns
dias antes suas esperanças haviam sido renovadas e depois
destruídas pela descoberta de um naufrágio romano, em um
mergulho que Jack esperava que fosse o último da
temporada. O dia de hoje deveria ser empregado para avaliar
o novo equipamento para o próximo projeto. Mais uma vez
a sorte de Jack persistiu.
- Você se importa de me dar uma mão?
Costas deixou-se cair exausto ao lado da balaustrada da popa,
no Seaquest, com o equipamento ainda desafivelado e a água
em seu rosto agora misturada com gotas de suor. O sol de
fim de tarde do mar Egeu o banhava em luz. Ele levantou o
olhar para o corpo magro que se elevava acima dele. Jack era
um ilustre descendente de uma das mais antigas famílias
inglesas e sua cortesia natural era o único sinal de uma
linhagem privilegiada. Seu pai havia sido um aventureiro que
tinha escapado de sua classe social e usado sua fortuna para
levar a família a locais remotos ao redor do mundo. Sua
educação não convencional fez de Jack um forasteiro, um
homem muito à vontade em sua própria companhia, não
devendo nada a ninguém. Ele era um líder nato que
impunha respeito na ponte de comando e na coberta de
proa.
- O que você faria sem mim?, - perguntou Jack com um
sorriso enquanto retirava os tanques do dorso de Costas.
Filho de um magnata grego que era dono de uma companhia
de navegação, Costas havia desprezado uma vida de playboy
e optado por freqüentar a Stanford e o MIT durante dez
anos, tornando-se um expert em tecnologia submersível.
Rodeado por uma grande confusão de ferramentas e
instrumentos que apenas ele podia manejar, Costas não raro
fazia surgir, como por encanto, extraordinárias invenções
como algum Caractacus Pott moderno. Sua paixão pelo
desafio combinava com a natureza gregária que lhe era
própria, uma capacidade vital numa profissão em que o
trabalho de equipe era essencial.
Os dois homens se conheceram em uma base da OTAN em
Izmir, na Turquia, quando Jack foi prestar auxílio à Escola de
Inteligência Naval e Costas era um consultor civil para o
UNANTSUB, o instituto de pesquisa da luta anti-submarina
das Organizações das Nações Unidas. Alguns anos mais
tarde, Jack convidou Costas para juntar-se a ele na
Universidade Marítima Internacional (IMU), a instituição de
pesquisa que havia sido seu lar por mais de dez anos.
Naquela época, como diretor de operações de campo na
IMU, Jack viu sua área de atividade crescer e passou a se
ocupar de quatro navios e mais de duzentas pessoas, e,
apesar de uma função igualmente crescente no
departamento de engenharia, Costas sempre parecia
encontrar uma maneira de se juntar a Jack quando as coisas
se tornavam estimulantes.
- Obrigado, Jack. - Costas se levantou lentamente,
demasiado cansado para dizer algo mais. Ele batia na altura
dos ombros de Jack, tinha um tronco em forma de barril e
antebraços herdados de gerações de pescadores de esponjas
e de marinheiros, com uma personalidade que se adaptava a
isso. Este projeto também era importante para ele, e
repentinamente se sentiu esgotado pela excitação da
descoberta. Fora ele a pôr em marcha essa expedição,
usando as conexões de seu pai com o governo grego.
Embora estivessem agora em águas internacionais, o suporte
da Marinha helênica havia sido inestimável, pelo menos
pelo fato de supri-los com os cilindros de gás purificado,
essenciais para o mergulho com trimix.
- Ah! Quase esqueci. - O rosto bronzeado de Costas abriu-se
em um sorriso enquanto ele pegava algo em sua jaqueta de
compensação. - No caso de você pensar que eu fraudei a
coisa toda.
Ele tirou um pacote envolto em um neopreno protetor e o
estendeu a Jack, com um brilho triunfante em seus olhos.
Jack estava despreparado para o peso do objeto e por um
momento sua mão titubeou ao segurá-lo. Ele desfez o
embrulho e ofegou atônito.
Tratava-se de um disco sólido de metal cujo diâmetro era do
tamanho da sua mão e sua superfície, tão resplandecente
como se fosse novo em folha. Indubitavelmente ele tinha a
cor de ouro puro, um ouro refinado até a pureza do metal
em barra.
Diferentemente de seus colegas acadêmicos, Jack nunca
fingiu não sentir atração por tesouros, e por um instante
deixou que a emoção de segurar vários quilos de ouro
tomasse conta dele. Enquanto segurava o disco e o movia
em direção ao sol, o objeto produziu um deslumbrante
lampejo luminoso, como se estivesse liberando uma grande
explosão de energia confinada durante milênios.
Ele ficou ainda mais alegre quando viu o sol refletir certas
marcações na superfície. Abaixou o disco até a sombra de
Costas e passou os dedos sobre os entalhes, todos eles
executados de maneira primorosa em um lado convexo.
No centro havia um dispositivo retilíneo curioso, como uma
grande letra H, com uma pequena linha saindo do meio da
linha transversal, para baixo, e quatro linhas prolongando-se
como dentes de um pente de ambos os lados. Ao redor da
borda do disco havia três aros concêntricos, cada um deles
dividido em vinte compartimentos. Cada um dos
compartimentos continha um símbolo diferente gravado em
metal. Para Jack o círculo exterior assemelhava-se a
pictogramas, símbolos que transmitiam o significado de uma
palavra ou frase. Em um relance ele identificou uma cabeça
humana, a figura de um homem andando, uma espécie de
remo de pá larga, uma canoa e um feixe de milho. Os
compartimentos interiores estavam alinhados com os da
beirada, mas continham, em vez desses símbolos, sinais
lineares. Cada um deles era diferente, porém pareciam mais
letras do alfabeto do que pictografias.
Costas se levantou e observou Jack examinar o disco,
totalmente absorto. Seus olhos brilhavam como Costas
jamais havia visto. Jack estava entrando em contato com a
Idade dos Heróis, uma época escondida em mitos e lendas,
embora fosse um período que havia sido revelado de forma
espetacular através de enormes palácios e cidadelas, por
sublimes obras de arte e armas de guerra, brilhantemente
afiadas. Ele estava iniciando uma comunhão com os antigos
de uma maneira que só era possível através de um naufrágio,
segurando um artefato de valor inestimável que não havia
sido arremessado, mas sim guardado até o momento da
catástrofe. No entanto era um artefato envolto em mistério,
um enigma que ele sabia que o seduziria sem descanso até
que todos os seus segredos fossem revelados.
Jack girou o disco várias vezes e examinou as inscrições de
novo, voltando sua mente para os cursos de história da
escrita que freqüentara na escola. Ele havia visto algo
parecido antes. Fez uma anotação de cabeça para enviar um
e-mail ao professor James Dillen, seu antigo mentor na
Universidade de Cambridge e a principal autoridade mundial
em manuscritos antigos da Grécia.
Jack devolveu o disco a Costas. Durante um momento os
dois homens se olharam, com os olhos brilhando de
excitação. Jack apressou-se em juntar-se à equipe que agora
vestia o equipamento necessário ao lado da escada da popa.
A visão de todo aquele ouro havia redobrado seu fervor. O
maior perigo para a arqueologia se encontrava nas águas
internacionais, uma área livre, sem jurisdição de nenhum
país. Todas as tentativas para impor uma lei global para o
oceano haviam falhado. Os problemas para policiar essa área
imensa pareciam intransponíveis. No entanto, os avanços na
tecnologia significavam que submersíveis operados por
dispositivos de controle remoto, do tipo usado para
descobrir o Titanic, eram agora pouco mais caros do que um
carro. A exploração em águas profundas, antes privilégio de
algumas instituições, agora estava aberta a todos que
quisessem tentar, o que ocasionou a destruição
indiscriminada de locais históricos. Saqueadores
profissionais, com tecnologia avançada, estavam dilapidando
o fundo do oceano sem que nenhum registro fosse feito para
a posteridade, e os artefatos iam desaparecendo para sempre
nas mãos de colecionadores particulares. Mas as equipes da
IMU não lutavam apenas contra operadores legítimos.
Antigüidades saqueadas tinham grande valor no submundo
do crime.
Jack deu uma olhada no cronômetro da plataforma e sentiu
uma onda familiar de adrenalina percorrê-lo quando
sinalizou sua intenção de mergulhar. Ele começou a reunir
seu equipamento cuidadosamente, ajustando seu
computador de mergulho e checando a pressão de seus
cilindros, com uma conduta metódica e profissional como se
não houvesse nada de especial naquele dia.
Na verdade, mal podia conter sua excitação.

2

Maurice Hiebermeyer levantou-se e enxugou a fronte,
detendo momentaneamente o brilho do suor que escorria
para o rosto. Olhou para o relógio. Era quase meio-dia, quase
hora de interromper o trabalho, e o calor do deserto estava
insuportável. Ele estremeceu ao se arquear, percebendo de
repente as fortes dores nas costas por ter passado mais de
cinco horas curvado sobre uma vala empoeirada.
Lentamente dirigiu-se até o centro do local para sua
inspeção habitual ao fim do dia. Com um chapéu de aba
larga, pequenos óculos redondos e shorts que iam até os
joelhos, ele fazia uma figura bastante cômica, como um
construtor de império dos tempos antigos, uma imagem que
não estava à altura da sua posição como um dos mais
importantes egiptólogos do mundo.
Ele examinou em silêncio a escavação, seus pensamentos
acompanhados pelos sons familiares produzidos pelos
enxadões e o chiado ocasional de um carrinho de mão. Pode
ser que aqui não haja o mesmo glamour do Vale dos Reis,
ele refletiu, mas tem muito mais artefatos. Tinha dispendido
anos em pesquisas infrutíferas antes que a tumba de
Tutancâmon fosse descoberta; aqui eles estavam literalmente
afundados até os joelhos em múmias, com centenas já
descobertas e muitas mais sendo encontradas a cada dia, à
medida que a areia ia sendo removida de novas galerias.
Hiebermeyer caminhou até a fossa profunda onde tudo
havia começado. Observou atentamente a beirada de um
labirinto subterrâneo, uma confusão de túneis cortados na
rocha alinhados com nichos onde os mortos haviam
permanecido tranqüilos durante séculos, escapando aos
ladrões de tumbas que destruíram muitas sepulturas reais.
Um camelo teimoso havia exposto as catacumbas; o infeliz
animal tinha saído da trilha e sumira nas areias diante dos
olhos de seu dono. O condutor correu até o local do
desaparecimento e recuou horrorizado quando viu, situados
muito abaixo, no buraco aberto pelo camelo, inúmeros
corpos enfileirados, suas faces fitando-o como que
desaprovadoramente por ter perturbado seu sagrado lugar de
repouso.
- Estas pessoas são, muito provavelmente, seus ancestrais, -
disse Maurice Hiebermeyer ao condutor de camelos, após
ter se deslocado duzentos quilômetros ao sul, do Instituto de
Arqueologia, em Alexandria, até o oásis no deserto. As
escavações provaram que ele tinha razão. Os rostos que
tanto aterrorizaram o condutor eram, na verdade, pinturas
extraordinárias. Algumas tinham uma qualidade tal que seria
ultrapassada apenas na Renascença Italiana. No entanto, elas
eram o fruto do trabalho de artesãos e não de algum antigo
grande mestre, e as múmias não eram de nobres, e sim de
pessoas comuns. Muitas delas haviam vivido não no tempo
dos faraós, mas nos séculos em que o Egito estava sob as
ordens dos gregos e Roma governava. Era uma época de
prosperidade crescente, quando a introdução de cunhagem
de moedas espalhou riquezas e possibilitou que a nova classe
média se desse ao luxo de revestir as múmias em ouro e
realizar rituais de sepultamento elaborados. Eles haviam
vivido em Fayum, o oásis fértil que se estendia por sessenta
quilômetros à leste da necrópole em direção ao Nilo.
Esses sepultamentos representavam uma seção transversal da
vida dessas pessoas muito mais significativa do que os de
uma necrópole real, refletiu Maurice, e eles contavam
histórias tão fascinantes como as de um Ramsés ou
Tutancâmon mumificados. Só nessa manhã ele havia feito
escavações de uma família de alfaiates, um homem chamado
Seth, seu pai e seu irmão. Cenas coloridas da vida do templo
adornavam a embalagem rígida, o envoltório de linho e
gesso que formava o peitoral sobre seus caixões. As
inscrições mostravam que os dois irmãos haviam sido
humildes auxiliares no templo de Neith, em Sais, mas
tinham tido sorte e iniciaram um negócio com seu pai, um
comércio de roupas com os gregos. A julgar pelas oferendas
valiosas nos envoltórios das múmias e as máscaras de folhas
de ouro que cobriam suas faces, eles haviam feito grandes
progressos.
- Doutor Hiebermeyer, acho que o senhor deve ver isto
aqui.
Era a voz de uma de suas supervisoras de valas mais
experiente, uma estudante egípcia formada que, ele
esperava, algum dia o substituiria como diretora do instituto.
Aysha Farouk emergiu de um dos lados da fossa, seu rosto
bonito, de pele escura, era uma imagem do passado, como se
um dos retratos de múmia houvesse repentinamente
revivido.
- O senhor terá de descer.
Maurice Hiebermeyer substituiu seu chapéu por um
capacete de segurança amarelo e desceu a escada devagar,
ajudado por um dos felás empregados como trabalhadores
no local. Aysha estava debruçada sobre uma múmia em um
nicho de arenito situado a pouca distância da superfície. Era
uma das sepulturas que haviam sido avariadas pela queda do
camelo, e Hiebermeyer podia ver onde o caixão de terracota
arrebentara, danificando igualmente a múmia que estava em
seu interior.
Eles estavam na parte mais antiga do terreno, um
agrupamento não profundo de galerias que formavam o
centro da necrópole. Hiebermeyer esperava fervorosamente
que a estudante houvesse encontrado algo que provasse sua
teoria: que esse complexo necrotério havia sido iniciado no
século VI a.C, mais de dois séculos antes que Alexandre, o
Grande, conquistasse o Egito.
- Muito bem. O que temos aqui? - O sotaque alemão
acrescentava autoridade à sua voz.
Afastando-se da escada, ele encolheu-se com cuidado ao
lado de sua assistente para não danificar ainda mais a múmia.
Ambos usavam máscaras cirúrgicas, uma proteção contra
vírus e bactérias que porventura estivessem adormecidos nas
faixas que envolviam a múmia e que poderiam reviver no
calor e umidade dos pulmões. Ele fechou os olhos e inclinou
levemente a cabeça, um ato de piedade que realizava cada
vez que abria uma câmara mortuária. Depois que o morto
contasse sua história, ele cuidava para que fosse enterrado de
novo de modo a continuar sua viagem através da outra vida.
Quando Hiebermeyer se ajeitou, Aysha ajustou a lâmpada e
iluminou o caixão, afastando cuidadosamente os lados do
rasgão que abria, como uma grande ferida, o ventre da
múmia.
- Espere até eu dar uma limpada nisso.
Aysha trabalhava com a precisão de um cirurgião, seus
dedos manipulando com destreza os pincéis e instrumentos
dentários, esmeradamente dispostos em uma bandeja ao lado
dela. Depois de alguns minutos em que removeu o entulho
do seu trabalho anterior, ela recolocou seus instrumentos no
lugar e avançou com cautela até a parte superior do caixão,
deixando espaço para que Hiebermeyer pudesse se
aproximar e olhar.
Ele lançou um olhar profissional sobre os objetos que ela
havia removido da gaze embebida de resina que envolvia a
múmia, seu aroma ainda penetrante depois de séculos.
Identificou rapidamente um ba dourado, o símbolo alado da
alma, lado a lado com amuletos protetores com formatos de
cobras. No centro da bandeja havia um amuleto de Qebeh-
sennuef, o guardião dos intestinos. Ao lado se encontrava
um requintado broche de faiança representando um deus
águia, com suas asas estendidas, feito de material de silicato
queimado até atingir um matiz esverdeado lustroso.
Hiebermeyer deslocou sua constituição corpulenta ao longo
da prateleira até que se equilibrasse diretamente sobre a
incisão no invólucro. O corpo estava virado para o leste para
saudar o sol levante em renascimento simbólico, uma
tradição que remontava à pré-história. Debaixo do
envoltório rasgado ele podia ver o torso cor de ferrugem da
própria múmia, a pele esticada e semelhante ao pergaminho
sobre a caixa torácica. As múmias na necrópole não haviam
sido preparadas da mesma maneira que os faraós, cujos
corpos eram eviscerados e preenchidos com sais
embalsamadores; aqui as condições dessecantes do deserto
haviam feito a maior parte do trabalho, e os embalsamadores
haviam removido apenas os intestinos. Durante o período
romano até mesmo esse processo fora abandonado. As
características preservativas do deserto eram uma dádiva de
Deus para os arqueólogos, tão notáveis quanto os locais
aquáticos, e Hiebermeyer ficava não raro surpreso com os
materiais orgânicos delicados que haviam sobrevivido por
milhares de anos em condições quase perfeitas.
- O senhor está vendo? - Aysha não conseguia mais conter
sua excitação. - Bem aqui, debaixo da sua mão direita.
- Ah! Sim. - Os olhos de Hiebermeyer foram subitamente
atraídos por uma borda rasgada no envoltório da múmia, sua
extremidade esfarrapada apoiada sobre a pélvis.
O material estava coberto com uma escrita espaçada de
maneira elegante. Este fato em si não era uma novidade; os
antigos egípcios eram arquivistas infatigáveis, anotando
abundantes registros nos papéis que fabricavam juntando
fibras de hastes de papiros. Papiros descartados também se
revelavam excelentes envoltórios de múmias e eram
coletados e reciclados pelos técnicos das funerárias. Estas
sobras estavam entre os achados mais preciosos da
necrópole, e era por essa razão que Hiebermeyer havia
proposto uma escavação tão ampla.
No momento ele estava menos interessado no que o escrito
relatava do que na possibilidade de determinar a idade da
múmia com base no estilo e na linguagem do manuscrito.
Ele podia compreender a excitação de Aysha. A múmia
rasgada oferecia uma rara oportunidade para que pudessem
determinar, lá mesmo onde se encontravam, a época em
que ela vivera. Normalmente eles teriam que esperar
durante semanas enquanto os conservadores do museu, em
Alexandria, removessem os envoltórios de maneira
meticulosa.
- O manuscrito está em grego, - disse Aysha, seu entusiasmo
sobrepujando sua deferência. Ela estava agora curvada ao
lado do egiptólogo, seu cabelo roçando contra o ombro dele
enquanto se movia em direção ao papiro.
Hiebermeyer concordou com a cabeça. Ela estava certa. Era
sem dúvida um manuscrito fluente do grego antigo, bem
diferente do hierático, do período faraônico, e do copta da
região de Fayum na época dos gregos e romanos.
Ele ficou desconcertado. Como um fragmento de um texto
grego poderia ter se incorporado em uma múmia do século
V ou VI a.C.? Os gregos obtiveram a permissão de
estabelecer uma colônia de comércio mercantil em
Náucratis, no braço Canopo do Nilo, no século VII a.C, mas
a sua movimentação no interior do país havia sido
estritamente controlada. Eles não se tornaram influentes no
Egito até a conquista de Alexandre, o Grande, em 332 a.C., e
era inconcebível que registros egípcios tivessem sido
mantidos em grego antes daquela data.
Hiebermeyer sentiu-se de repente vazio. Um documento
grego em Fayum deveria datar provavelmente do tempo dos
Ptolomeus, a dinastia macedônica que se iniciou com o
general de Alexandre, Ptolomeu I Sóter, e terminou com o
suicídio de Cleópatra e a tomada de posse romana em 30
a.C. Será que ele havia errado tanto ao estabelecer a data
dessa primeira parte da necrópole? Voltou-se para Aysha,
seu rosto sem expressão mascarando um crescente
desapontamento.
- Não estou certo de gostar do que estou vendo. Vou dar
uma olhada mais cuidadosa.
Ele puxou a lâmpada, que estava no canto, para mais perto
da múmia. Usando um pincel da bandeja de Aysha,
delicadamente escovou um dos cantos do papiro, o que
revelou um manuscrito tão viçoso como se tivesse sido
escrito naquele dia. Pegou sua lupa e prendeu a respiração
enquanto examinava a escrita. As letras eram pequenas e
contínuas, não interrompidas por pontuação. Ele sabia que
levaria tempo e seria preciso muita paciência antes que uma
tradução completa pudesse ser feita.
O importante agora era identificar o estilo. Hiebermeyer
tivera a sorte de estudar com o professor James Dillen, um
renomado lingüista cujo ensino deixara uma impressão tão
indelével que ele ainda era capaz de se lembrar de cada
detalhe, mesmo mais de duas décadas depois de ter estudado
a caligrafia grega antiga.
Depois de alguns instantes seu rosto se abriu em um sorriso
e ele voltou-se para Aysha.
- Podemos ficar tranqüilos. É de um período antigo, estou
certo disso. Provavelmente do século VI antes de Cristo.
Ele fechou os olhos com alívio, enquanto ela lhe dava um
rápido abraço esquecendo, momentaneamente, a reserva
habitual que havia entre estudante e professor. Aysha já
tinha adivinhado a época; sua tese de mestrado havia sido
sobre as inscrições de Atenas em grego arcaico e ela era mais
entendida do que Hiebermeyer nessa questão, mas quis
deixar para ele o triunfo da descoberta, a satisfação de provar
sua hipótese sobre o estabelecimento antigo da necrópole.
Com os pensamentos agitados, Hiebermeyer observou
atentamente o papiro mais uma vez. Seu espaçamento
apertado deixava claro que o manuscrito contínuo não era
um livro administrativo, não se tratava de uma mera lista de
nomes e números. Não era o tipo de documento que seria
produzido pelos mercadores de Náucratis. Será que havia
outros gregos no Egito naquele período? Hiebermeyer tinha
conhecimento apenas de visitas ocasionais feitas por
estudiosos que raras vezes haviam tido acesso aos arquivos
do templo. Heródoto de Halicarnasso, o Pai da História,
visitara os sacerdotes no século V a.C., e eles lhe contaram
muitas coisas surpreendentes sobre o mundo antes do
conflito entre os gregos e os persas, que era o tema principal
do seu livro. Gregos mais antigos também haviam visitado o
templo, políticos e letrados atenienses, mas suas visitas eram
apenas lembradas parcialmente e nenhum de seus relatos
subsistiu em primeira mão.
Hiebermeyer não ousou expressar em voz alta seus
pensamentos para Aysha, ciente do embaraço que poderia
ser causado por um anúncio prematuro que se espalharia
como fogo em material inflamável no meio de jornalistas
ansiosos. Mas ele se continha com dificuldade. Teriam eles
encontrado alguma chave para a história antiga havia muito
tempo perdida?
Quase toda a literatura que sobreviveu da Antigüidade era
conhecida apenas através de cópias medievais, de
manuscritos meticulosamente transcritos por monges nos
mosteiros depois da queda do Império Romano no
Ocidente. Muitos dos manuscritos antigos foram arruinados
por decomposição ou destruídos por invasores e fanáticos
religiosos. Durante anos os estudiosos esperaram por algo
improvável: que o deserto do Egito revelasse textos
perdidos, documentos que pudessem provocar uma
reviravolta na história antiga. Sonhavam, sobretudo, com
algo que conseguisse preservar a sabedoria dos sacerdotes
estudiosos do Egito. O templo scriptoria visitado por
Heródoto e seus predecessores preservara uma tradição
intacta de conhecimento que remontava aos primórdios da
história registrada, milhares de anos antes.
Hiebermeyer pesquisou, de maneira excitada, várias
possibilidades. Seria este um relato de primeira mão da
perambulação dos judeus, um documento que deveria ser
colocado lado a lado com o Antigo Testamento? Ou um
registro do final da Idade do Bronze, da realidade por detrás
da Guerra de Tróia? O manuscrito poderia ainda relatar uma
história anterior, uma que mostrasse que os egípcios fizeram
mais do que simplesmente negociar com a Creta da Idade do
Bronze e que, na verdade, construíram os grandes palácios.
Um rei Minos egípcio? Hiebermeyer achou essa idéia
altamente atraente.
Ele foi trazido de volta à terra por Aysha, que havia
continuado a limpar o papiro e agora o chamava para perto
da múmia.
- Olhe para isto.
Aysha tinha trabalhado ao longo da borda do papiro, onde
algo se salientava do envoltório não danificado. Ela levantou
com cuidado uma aba do linho e apontou com o pincel.
- É uma espécie de símbolo, - ela disse.
O texto havia sido interrompido por um desenho retilíneo
estranho, parte dele ainda escondido sob o envoltório.
Parecia-se com o final de um rastelo de jardim com quatro
braços projetados.
- O que o senhor acha disso?
- Não sei. - Hiebermeyer fez uma pausa, ansioso por não
parecer perdido na frente de sua aluna. - Pode ser alguma
forma de dispositivo numérico, talvez derivado do
cuneiforme. - Ele estava se lembrando de símbolos em
forma de cunha impressos em tabletes de argila feitos pelos
primeiros escribas do Oriente Próximo.
- Olhe aqui. Isto pode nos dar uma pista. - Ele se inclinou
até que seu rosto ficasse a poucos centímetros da múmia,
soprando com cuidado a poeira que havia no texto que
continuava debaixo do símbolo. Entre o símbolo e o texto
havia uma única palavra, suas letras em grego maiores do
que a escrita contínua do restante do papiro.
- Acho que posso lê-la, - ele murmurou. - Tire a agenda do
meu bolso de trás e escreva as letras à medida que eu for
ditando.
Ela fez como lhe havia sido indicado e agachou-se ao lado
do caixão segurando o lápis, orgulhosa de que Hiebermeyer
confiasse em sua habilidade para fazer a transcrição.
- O.k. Vamos a isso. - Ele fez uma pausa e pegou sua lupa. -
A primeira letra é Alfa. - Mudou de posição para enxergar
melhor. - Depois Tau. Em seguida Alfa de novo. Não,
apague isto. Lambda. Agora outro Alfa.
Apesar da penumbra do nicho, o suor estava escorrendo de
sua fronte. Ele se afastou levemente para trás, preocupado
em não molhar o papiro.
- Nu. Depois Tau de novo. Acho que é um lota. Sim,
definitivamente. E agora a letra final. - Sem tirar os olhos do
papiro ele pegou uma pequena pinça na bandeja e usou-a
para levantar um pedaço do envoltório que encobria o final
da palavra. Assoprou delicadamente o texto outra vez.
- Sigma. Sim, Sigma. E terminou. - Hiebermeyer se
endireitou. - Então, o que temos?
Na verdade, ele soube desde o instante em que vira a
palavra, mas sua mente recusou-se a registrar aquilo que lhe
aparecia como óbvio. Isto estava além de seus sonhos mais
desvairados, uma possibilidade tão enterrada em fantasias
que muitos estudiosos simplesmente se recusariam a
reconhecê-la.
Ambos olharam para a agenda embaraçados, a singular
palavra os paralisava como que por mágica, tudo o mais
subitamente pareceu apagado e sem significado.
- Atlântida! - A voz de Hiebermeyer era pouco mais que um
murmúrio.
Ele se virou, piscou fortemente, e voltou-se de novo. A
palavra continuava ali. Sua mente, de repente, entrou em
um frenesi de especulação, trazendo à tona tudo o que ele
conhecia para tentar dar sentido ao que via.
Anos de erudição lhe diziam para iniciar com o que fosse
menos controverso, para tentar trabalhar primeiro com seu
achado dentro da estrutura estabelecida.
Atlântida. Ele fitou o vazio. Para os antigos a história podia
ter ocupado a parte final do seu mito da criação, quando a
Época dos Gigantes cedeu lugar à Primeira Era dos Homens.
Talvez o papiro fosse um relato dessa lendária idade de ouro,
uma Atlântida enraizada não na história, mas no mito.
Hiebermeyer olhou para dentro do caixão e sacudiu a cabeça
sem dizer palavra. Isto não podia estar certo. O local, a data.
Era demasiada coincidência. Seu instinto nunca lhe falhara,
e agora ele o sentia de modo mais forte do que nunca.
O mundo familiar e previsível de múmias e faraós,
sacerdotes e templos, parecia desmoronar diante de seus
olhos. Tudo o que podia pensar era sobre o enorme
dispêndio de esforço e de imaginação que havia sido gasto
na reconstrução do passado antigo, um edifício que
inesperadamente parecia muito frágil e precário.
Era engraçado, ele refletiu, mas aquele camelo pode ter sido
responsável pela maior descoberta arqueológica jamais feita.
- Aysha, quero que você prepare este caixão para ser
removido imediatamente. Preencha a cavidade com espuma
e feche com lacre. - Ele agora era de novo o diretor, a
imensa responsabilidade da sua descoberta se sobrepondo à
excitação pueril dos últimos minutos. - Quero que este
caixão saia no caminhão que vai para Alexandria ainda hoje,
e quero que você vá com ele. Providencie a escolta habitual,
mas nada de especial, porque não quero atrair atenção
indevida.
Eles estavam constantemente preocupados com a ameaça
representada pelos modernos ladrões de tumbas, por aqueles
que reviravam o lixo e pelos gatunos de estrada que ficavam
espreitando o local, escondidos no meio das dunas, e que
tinham se tornado progressivamente audaciosos em suas
tentativas para furtar até a menor bagatela.
- E, Aysha, - disse ele, com o rosto terrivelmente sério: - Sei
que posso confiar em você para não deixar vazar nenhuma
informação sobre tudo isto para ninguém, nem mesmo para
os nossos companheiros e amigos na equipe.
Hiebermeyer deixou Aysha entregue à sua tarefa e agarrou-
se à escada para subir, o extraordinário acontecimento
dramático da descoberta contribuindo subitamente para o
seu cansaço. Caminhou pelo local, meio que ziguezagueando
sob a claridade do sol, esquecido dos escavadores que ainda
esperavam, respeitosos, por sua inspeção. Ele entrou na
barraca do diretor e sentou-se pesadamente diante do
telefone via satélite. Depois de secar o rosto e fechar os
olhos por um instante, recompôs-se e ligou o aparelho.
Discou um número e logo uma voz chegou através do fone
de ouvido, falhando no início, mas bastante nítida depois
que a antena foi ajustada.
- Boa tarde, você ligou para a Universidade Marítima
Internacional. Como posso ajudá-lo?
Hiebermeyer respondeu rapidamente, sua voz rouca de
excitação.
- Alô, aqui fala Maurice Hiebermeyer chamando do Egito.
Trata-se de prioridade máxima. Ligue-me imediatamente
com Jack Howard.


3

As águas do velho porto ondulavam suavemente no cais,
cada onda alongando-se em linhas de algas marinhas
flutuantes até onde a vista podia alcançar. De lado a lado da
bacia, fileiras de barcos de pesca se agitavam ligeiramente e
brilhavam ao sol do meio-dia. Jack Howard levantou-se e foi
até a balaustrada, o cabelo negro agitado pela brisa e o
aspecto bronzeado refletiam os meses passados no mar em
busca de um naufrágio da Idade do Bronze. Ele encostou-se
no parapeito e fitou as águas cintilantes. Este havia sido
outrora o porto de Alexandria, seu esplendor rivalizando
com Cartago e a própria Roma. Daqui partia o comboio de
navios mercantes transportando cereais, enormes frotas que
carregavam a colheita generosa do Egito para um milhão de
pessoas em Roma. Daqui, também, mercadores ricos
enviavam arcas com ouro e prata através do deserto para o
mar Vermelho e além; na volta traziam as riquezas do Leste,
olíbano e mirra, lápis-lazúli, safiras, carapaça de tartaruga,
seda e ópio, carregadas por audaciosos marinheiros que
ousavam navegar na rota da monção, da Arábia até a
longínqua Índia.
Jack olhou para o revestimento de pedra maciça dez metros
abaixo. Dois mil anos atrás havia sido uma das maravilhas do
mundo, o fabuloso Farol de Alexandria. Fora inaugurado por
Ptolomeu II Filadelfo em 285 a.C, apenas cinqüenta anos
depois que Alexandre, o Grande, fundou a cidade. Com cem
metros de altura era maior do que a Grande Pirâmide em
Giza. Mesmo hoje em dia, mais de seis séculos depois que o
farol foi derrubado por um terremoto, suas fundações
permanecem como uma das maravilhas da Antigüidade. As
paredes foram transformadas em uma fortaleza medieval e
agora servem como quartel-general do Instituto de
Arqueologia em Alexandria, o principal centro para o estudo
do Egito durante o período greco-romano.
Os restos do farol ainda iluminam o píer do porto. Logo
abaixo da superfície há uma grande confusão de blocos e
colunas, suas formas maciças intercaladas com estátuas
espalhadas de reis e rainhas, deuses e esfinges. O próprio
Jack descobriu a figura mais impressionante que ali havia,
uma forma colossal quebrada, no fundo do mar, parecida
com Ozimandias, Rei dos Reis, a imagem tombada de
Ramsés II evocada de maneira tão célebre por Shelley. Jack
havia argumentado que as estátuas deveriam ser registradas e
deixadas tranqüilas como sua cópia poética no deserto.
Ele ficou contente ao ver uma fila se formando no porto
submarino, testemunho do sucesso do parque subaquático.
Ao lado do porto o horizonte era dominado pela futurista
Biblioteca Alexandrina, a biblioteca reconstituída dos
antigos, que formava um elo mais distante com as glórias do
passado.
- Jack! - A porta da sala de conferência se abriu e uma figura
corpulenta adiantou-se até a sacada. Jack voltou-se para
saudar o recém-chegado.
- O mestre professor doutor Hiebermeyer! - Jack sorriu e
estendeu a mão. Os dois homens haviam sido
contemporâneos em Cambridge, e sua rivalidade alimentou
a paixão compartilhada pelo mundo antigo. Jack sabia que a
formalidade ocasional de Hiebermeyer mascarava uma
mente sumamente receptiva, e Hiebermeyer, por sua vez,
sabia como romper a reserva do outro. Depois de tantos
projetos em conjunto, em outras partes do mundo, Jack
esperava ansiosamente trocar idéias de novo com seu antigo
tutor e companheiro. Hiebermeyer havia mudado pouco
desde os dias de estudante, e as discórdias entre eles sobre a
influência do Egito na civilização grega eram partes
integrantes daquela amizade.
Atrás de Hiebermeyer encontrava-se um homem mais
velho vestido imaculadamente com um terno claro e leve e
uma gravata-borboleta, os olhos surpreendentemente
aguçados debaixo de uma cabeleira branca. Jack deu alguns
passos e apertou a mão de seu mentor, o professor James
Dillen.
Dillen ficou de lado e introduziu mais duas pessoas através
da porta.
- Jack, acho que você ainda não conhece a doutora
Svetlanova.
Seus olhos verdes penetrantes ficavam quase na mesma
altura que os dele e ela sorriu enquanto lhe apertava a mão.
- Por favor, me chame de Katya. - Seu inglês tinha um leve
sotaque, mas era impecável, o resultado de dez anos de
estudo na América e na Inglaterra depois que lhe fora
permitido sair da União Soviética. Jack conhecia sua
reputação, mas não imaginara que pudesse sentir uma
atração tão imediata. Normalmente ele era capaz de se
concentrar completamente sobre a excitação de uma nova
descoberta, mas isto era outra coisa. Jack não conseguia tirar
os olhos dela.
Seu longo cabelo negro balançou quando ela se voltou para
apresentar sua colega.
- E esta é minha assistente, Olga Ivanovna Bortsev, do
Instituto de Paleografia de Moscou.
Contrastando com a roupa elegante de Katya Svetlanova,
Olga vestia-se de maneira mais rústica. Lembrava uma das
heroínas da propaganda da Grande Guerra Patriótica, pensou
Jack, bonita e destemida com a força de um homem. Ela
estava se debatendo debaixo de uma pilha de livros, mas
olhou-o bem nos olhos quando ele lhe ofereceu a mão.
Terminadas as formalidades, Dillen os acompanhou até a sala
de conferência. Ele deveria conduzir a reunião,
Hiebermeyer havia desistido do seu papel habitual como
diretor do instituto em respeito ao status do homem mais
velho.
Sentaram-se ao redor da mesa. Olga arrumou sua pilha de
livros de modo ordenado ao lado de Katya e depois se
retirou para uma das cadeiras enfileiradas ao longo da parede
da sala.
Hiebermeyer começou a falar, andando de lá para cá e
ilustrando seus relatos com slides. Ele passou rapidamente
pelas circunstâncias da descoberta e descreveu como o
caixão havia sido removido para Alexandria apenas dois dias
antes. Desde a chegada do caixão, os conservadores do
museu haviam trabalhado intensamente para separar a
múmia do envoltório e libertar o papiro. Ele confirmou que
não havia nenhum outro fragmento de escrita, que o papiro
era apenas alguns centímetros mais extenso do que a parte
que ficara visível durante a escavação.
O resultado foi colocado na frente deles sob um painel de
vidro em cima da mesa, uma folha irregular de mais ou
menos trinta centímetros de comprimento e quinze de
largura, sua superfície inteiramente coberta pela escrita,
exceto por uma lacuna no meio.
- É uma extraordinária coincidência que o camelo tenha
colocado sua pata bem aqui, - disse Katya.
- É espantosa a freqüência com que este tipo de coisa
acontece em arqueologia. - Jack olhou para ela e ambos
sorriram.
- Muitas das grandes descobertas são feitas por acaso, -
continuou Hiebermeyer, esquecido dos outros dois. - E
lembrem-se, temos mais centenas de múmias para abrir.
Este é precisamente o tipo de descoberta pela qual eu
esperava e pode haver muitas mais.
- Uma perspectiva fabulosa, - concordou Katya.
Dillen inclinou-se para a frente para pegar o controle
remoto do projetor. Ele ajeitou uma pilha de papéis que
havia tirado de sua pasta enquanto Hiebermeyer estava
falando.
- Amigos e colegas, - disse ele, examinando lentamente os
rostos esperançosos. - Todos sabemos por que estamos aqui.
A atenção deles se deslocou para a tela na outra extremidade
da sala. A imagem de uma necrópole deserta foi substituída
por um close-up do papiro. A palavra que tanto havia
pasmado Hiebermeyer no deserto agora preenchia a tela.
- Atlântida, - sussurrou Jack.
- Devo lhes pedir paciência. - Dillen examinou os rostos ao
seu redor, ciente de quão desesperados eles estavam para
ouvir a tradução do texto que ele e Katya haviam feito. -
Antes de falar, proponho que a doutora Svetlanova nos dê
um relato da história conhecida da Atlântida. Katya, se você
quiser...
- Com prazer, professor.
Katya e Dillen haviam se tornado amigos quando ela era
uma colega que gozava a licença de um ano sabático, sob sua
orientação, em Cambridge. Recentemente tinham estado
juntos em Atenas quando a cidade foi devastada por um
grande terremoto que, abrindo uma fenda na Acrópole,
revelou um agrupamento de câmaras talhadas na rocha que
continham o arquivo havia muito perdido da cidade antiga.
Katya e Dillen assumiram a responsabilidade pela publicação
de textos que relatavam a exploração grega do outro lado do
Mediterrâneo. Fazia poucas semanas que seus rostos
apareceram nas primeiras páginas dos jornais do mundo
inteiro, depois de uma conferência de imprensa em que
revelaram como uma expedição de aventureiros gregos e
egípcios havia navegado através do oceano Índico até o mar
do Sul da China.
Katya também era uma das maiores autoridades mundiais
sobre a lenda da Atlântida, e havia trazido consigo cópias de
textos antigos relevantes. Ela pegou dois pequenos livros e
abriu-os nas páginas marcadas.
- Senhores, gostaria em primeiro lugar de expressar meu
prazer por ter sido convidada para este simpósio. Esta é uma
grande honra para o Instituto de Paleografia de Moscou. Que
o espírito de cooperação internacional continue por muito
tempo.
Houve um murmúrio de aprovação ao redor da mesa.
- Serei breve. Primeiro, vocês podem, na prática, esquecer
tudo o que ouviram sobre a Atlântida.
Katya assumiu um comportamento sério de estudiosa, a
malícia em seus olhos havia desaparecido, e Jack se viu
completamente concentrado no que ela dizia.
- Vocês podem pensar que a Atlântida foi apenas uma lenda,
preservada em mito ao redor do mundo, algum episódio
distante na história mais ou menos lembrado por muitas
culturas diferentes.
- Como a história do Grande Dilúvio, - interveio Jack.
- Exatamente. - Ela fixou os olhos como que estranhamente
distraída. - Mas vocês estariam enganados. Há apenas uma
fonte. - Ela pegou os dois pequenos livros enquanto falava. -
O antigo filósofo grego Platão.
Os outros se recostaram para ouvir.
- Platão viveu em Atenas de 427 a 347 antes de Cristo, uma
geração depois de Heródoto, - ela contou. - Quando jovem,
Platão teria conhecido o orador Péricles, assistido às peças
de Eurípides, Esquilo e Aristófanes, teria visto os grandes
templos sendo erigidos na Acrópole. Estes foram os dias
gloriosos da Grécia clássica, o maior período de civilização
jamais conhecido. - Katya colocou os livros abertos sobre a
mesa. - Estes dois livros são Timeu e Crítias. São diálogos
imaginários entre homens com esses nomes e Sócrates, o
mentor de Platão cuja sabedoria sobrevive apenas através
dos escritos de seu discípulo.
"Aqui, em uma conversa fictícia, Crítias conta a Sócrates
sobre uma poderosa civilização, que surgiu do oceano
Atlântico nove mil anos antes. Os atlantes eram
descendentes de Posêidon, o deus dos mares. Crítias está
fazendo uma preleção para Sócrates."
"Havia uma ilha situada defronte ao Estreito que é chamado
por vocês os Pilares de Hércules, a ilha era maior do que a
Líbia e a Ásia juntas. Nesta ilha da Atlântida havia um
grande e maravilhoso império que governava a ilha inteira e
várias outras, e ainda partes do continente, e, além disso, os
homens da Atlântida dominaram as partes da Líbia dentro
das Colunas de Hércules até o Egito, e a Europa até a
Tirrênia. Este vasto poder, reunido em um só, esforçou-se
por conquistar de uma vez nosso país e o seu e toda a região
dentro do Estreito."
Katya pegou o segundo volume, olhando-o brevemente.
- A Líbia era o nome antigo da África, Tirrênia era a Itália
central e os Pilares de Hércules, o Estreito de Gibraltar. Mas
Platão não era nem geógrafo nem historiador. O seu tema
era uma guerra monumental entre os atenienses e os
atlantes, que os atenienses naturalmente ganharam, mas só
depois de enfrentarem o mais extremo perigo.
Ela olhou outra vez para o texto.
- E agora o clímax, o ponto essencial da lenda. Estas poucas
sentenças finais atormentaram os estudiosos por mais de
dois mil anos e conduziram a mais becos sem saída do que
posso enumerar.
"Mas, mais tarde, ocorreram violentos terremotos e dilúvios
e em um único dia e uma única noite de desdita todos os
nossos guerreiros belicosos, em grande número, afundaram
dentro da terra, e a ilha da Atlântida dessa maneira
desapareceu para sempre nas profundezas do oceano."
Katya fechou o livro e fitou Jack de modo zombeteiro.
- O que você esperava encontrar na Atlântida?
Jack hesitou de maneira não habitual, ciente de que pela
primeira vez seria julgado por sua erudição.
- A Atlântida sempre significou muito mais do que uma
simples civilização perdida, - ele replicou. - Para os antigos
ela representava uma fascinação com a desgraça, com a
grandeza condenada pela arrogância e insolência. Cada era
teve sua fantasia sobre a Atlântida, sempre se referindo a um
mundo de esplendor inimaginável ofuscando toda a história.
Para os nazistas ela foi o local de nascimento do Übermann,
a pátria ariana original, o que estimulou uma procura
demente, ao redor do mundo, por descendentes racialmente
puros. Para outros foi um Jardim do Éden, um Paraíso
Perdido.
Katya concordou com um aceno de cabeça e falou
calmamente.
- Se existe alguma verdade nessa história, se o papiro nos der
mais pistas, então seremos capazes de solucionar um dos
maiores mistérios da história antiga.
Houve uma pausa em que a assembléia reunida se
entreolhou, expressando antecipação e ansiedade mal
contidas em seus rostos.
- Obrigado, Katya. - Dillen levantou-se, sentindo-se mais
confortável para falar em pé. Ele era um consumado orador,
habituado a ter sob controle a completa atenção de sua
audiência. - Eu sugiro que a história da Atlântida não é uma
história, mas uma alegoria. A intenção de Platão era extrair
uma série de lições morais. No Timeu, a ordem triunfa sobre
o caos na formação do Cosmos. Em Crítias, os homens
autodisciplinados, que mostravam moderação e respeito
pelas leis, triunfam sobre os homens orgulhosos e
presunçosos. O conflito entre Atlântida e Atenas foi
inventado para mostrar que os gregos sempre tinham sido
homens de determinação que sairiam, em última análise,
vitoriosos em qualquer guerra. Mesmo Aristóteles, discípulo
de Platão, pensava que a Atlântida nunca existira.
Dillen apoiou as mãos sobre a mesa e inclinou-se para a
frente.
- Sugiro que a Atlântida é uma fábula política. O relato de
Platão de como ele chegou até a história é uma ficção
extravagante, como a introdução de Swift às Viagens de
Gulliver, onde ele indica uma fonte que é plausível, mas que
nunca pôde ser verificada.
Dillen estava representando o advogado do diabo,
reconheceu Jack. Ele sempre apreciara as habilidades
retóricas de seu antigo professor, um reflexo dos anos
passados nas maiores universidades do mundo.
- Seria útil se o senhor pudesse nos relembrar sobre a fonte
de Platão, - disse Hiebermeyer.
- É claro, - Dillen releu suas anotações. - Crítias era o avô de
Platão, e dizia que o seu próprio avô ouvira a história da
Atlântida de Sólon, o famoso legislador ateniense. Sólon, por
sua vez, a ouvira de um idoso sacerdote egípcio em Sais, no
delta do Nilo.
Jack efetuou um cálculo mental rápido.
- Sólon viveu de 640 a 560 antes de Cristo. Ele só foi
admitido no templo por ser um sábio respeitado. Se
assumirmos, então, que ele visitou o Egito já idoso, mas não
demasiado idoso para viajar, isto situaria o encontro por
volta do início do século VI antes de Cristo, quer dizer, 590
ou 580 antes de Cristo. No caso de estarmos lidando com
fatos e não com ficção, eu gostaria de fazer uma pergunta.
Como é possível que uma história tão notável seja tão pouco
conhecida? Heródoto visitou o Egito na metade do século V
antes de Cristo, quase meio século antes da época de Platão.
Ele era um pesquisador infatigável, um tagarela que
investigava cada fragmento de trivialidade e seu trabalho
sobreviveu integralmente. No entanto, ele não menciona a
Atlântida. Por quê?
O olhar de Dillen abrangeu a todos, um de cada vez. Ele
sentou-se. Depois de uma pausa, Hiebermeyer se levantou e
caminhou atrás das cadeiras.
- Acho que sou capaz de responder à sua pergunta. - Fez
uma breve pausa. - No nosso mundo tendemos a pensar
sobre o conhecimento histórico como propriedade
universal. Há exceções, é claro, e todos sabemos que a
história pode ser manipulada, mas em geral pouco do
significado dela pode ser mantido escondido durante muito
tempo. Bem, no antigo Egito não foi assim.
Os outros escutavam atentamente.
- Diferentemente da Grécia e do Oriente Próximo, cujas
culturas foram completamente destruídas por invasões, o
Egito tem uma tradição intacta que remonta ao início da
Idade do Bronze, até o período dinástico inicial, por volta de
3100 antes de Cristo. Alguns acreditam mesmo que ela
remonta à chegada dos primeiros agricultores, quase quatro
mil anos mais cedo.
Houve um murmúrio de interesse entre os assistentes.
- No entanto, no tempo de Sólon, o acesso a esse
conhecimento antigo se tornara muito difícil. Era como se
ele tivesse sido dividido em fragmentos que se integravam
como em um jogo de quebra-cabeça, que depois foram
embrulhados em pacotes pequenos e separados. -
Hiebermeyer fez uma pausa, contente com a metáfora. - Ele
chegou a ficar em muitos templos diferentes, dedicado a
muitos deuses diferentes. Os sacerdotes guardavam sua
parcela de conhecimento avidamente, como um tesouro.
Ele só podia ser revelado à estrangeiros por meio de
intervenção divina, através de algum sinal dos deuses.
Estranhamente, - ele acrescentou com um piscar de olhos, -
estes sinais apareciam com maior freqüência quando o
pretendente oferecia um benefício, em geral ouro.
- Então, você podia comprar conhecimento?, - perguntou
Jack.
- Sim, mas apenas quando as circunstâncias fossem corretas,
no dia certo do mês, longe dos dias de festivais religiosos, de
acordo com uma série de outros sinais e presságios. A não
ser que tudo estivesse rigorosamente certo, um pretendente
seria mandado embora, mesmo se chegasse com um navio
cheio de ouro.
- Então a história da Atlântida só podia ser conhecida em um
templo, e contada a apenas um grego.
- É isso mesmo, - Hiebermeyer concordou solenemente
com Jack. - Apenas poucos gregos entraram dentro de
templos scriptoria. Os sacerdotes suspeitavam de homens
como Heródoto, que eram muito inquisidores e
indiscriminados, viajando de templo em templo. Algumas
vezes Heródoto recebia informações erradas, histórias que
haviam sido exageradas e falsificadas. Ele era, como vocês
ingleses dizem, ludibriado.
"O conhecimento mais precioso era muito sagrado para ser
confiado ao papel. Ele era transmitido de boca em boca, de
um sumo sacerdote para outro. Muito desse conhecimento
morreu com os últimos sacerdotes quando os gregos
fecharam os templos. O pouco registrado em papel perdeu-
se sob os romanos, quando a Livraria Real de Alexandria foi
queimada durante a guerra civil, em 48 antes de Cristo, e a
Livraria Filial teve o mesmo fim sob o império de Teodósio,
que ordenou a destruição de todos os templos pagãos
remanescentes, em 391 depois de Cristo. Nós já sabemos um
pouco do que foi perdido, a partir de referências em textos
antigos que sobreviveram. A Geografia de Píteas, o
Navegador. A História do Mundo do imperador Cláudio. Os
volumes extraviados de Galeno e de Celso. Grande obras de
história e de ciência, compêndios de conhecimento
farmacêutico que teriam provocado um enorme avanço na
medicina. Mal podemos imaginar o conhecimento secreto
dos egípcios que seguiu o mesmo caminho."
Hiebermeyer sentou-se e Katya voltou a falar.
- Eu gostaria de propor uma hipótese alternativa. Sugiro que
Platão estava dizendo a verdade sobre sua fonte. No entanto,
por alguma razão Sólon não escreveu um relato de sua visita.
Será que foi proibido de fazê-lo pelos sacerdotes? -Katya
pegou os livros e continuou. - Acredito que Platão pegou os
poucos fatos que tinha e enfeitou-os para servir a seus
propósitos. Aqui, concordo em parte com o professor
Dillen. Platão exagerou para fazer da Atlântida um local mais
remoto e atemorizador, adaptando-a em uma época distante.
Assim, ele coloca a história em um passado remoto, torna a
Atlântida semelhante aos maiores territórios que pôde
imaginar, e a situa no oceano ocidental, além dos limites do
mundo antigo. - Ela olhou para Jack. - Há uma teoria sobre a
Atlântida, amplamente aceita pelos arqueólogos. Temos
sorte de ter um de seus ilustres proponentes entre nós hoje.
Doutor Howard?
Jack já estava pressionando o controle remoto para
encontrar um mapa do mar Egeu com a ilha de Creta
destacando-se no centro.
- Isto só se torna plausível se reduzirmos a escala, - ele
afirmou. - Se estabelecermos novecentos anos em vez de
nove mil anos antes de Sólon, chegaremos a 1600 antes de
Cristo. Este foi o período das grandes civilizações da Idade
do Bronze, o Novo Reino do Egito, os cananeus da Sírio-
Palestina, os hititas da Anatólia, os micênios da Grécia, os
minoanos de Creta. Este é o único contexto possível para a
história da Atlântida. - Jack apontou um indicador a laser
para o mapa. - E acredito que a única localização possível
seja Creta. - Ele olhou para Hiebermeyer. - Para muitos
egípcios do tempo dos faraós, Creta era o limite setentrional
até onde se aventuravam. A partir do sul ela é uma terra
majestosa, um longo contorno de costa com montanhas
como pano de fundo, no entanto os egípcios deviam saber
que se tratava de uma ilha por causa das expedições que
empreenderam ao palácio de Cnossos na costa setentrional.
- E o oceano Atlântico? - perguntou Hiebermeyer.
- Você pode esquecê-lo, - disse Jack. - Nos dias de Platão, o
mar a oeste de Gibraltar era desconhecido, um vasto oceano
que conduzia à extremidade ígnea do mundo. Então foi para
lá que Platão transferiu a Atlântida. Seus leitores dificilmente
ficariam intimidados por uma ilha no Mediterrâneo.
- E a palavra Atlântida.
- O deus do mar, Posêidon, tinha um filho, Atlas, o colosso
com músculos superdesenvolvidos que carregava a abóbada
celeste em seus ombros. O oceano Atlântico era o oceano de
Atlas e não da Atlântida. O termo Atlântico apareceu pela
primeira vez em Heródoto, e, portanto, era de uso corrente
quando Platão estava escrevendo. - Jack fez uma pausa e
olhou para os outros. - Antes de ver o papiro, eu teria
argumentado que Platão inventou a palavra Atlântida, um
nome plausível para um continente perdido no oceano de
Atlas. Sabemos, por meio das inscrições, que os egípcios se
referem aos minoanos e aos micênios como povos de Keftiu,
povos do Norte, que vinham em navios trazendo tributos.
Eu teria sugerido que Keftiu, não Atlântida, deveria ser o
nome para o continente perdido no relato original. Agora
não tenho tanta certeza. Se este papiro data, em verdade, de
antes da época de Platão, então ele certamente não inventou
a palavra.
Depois de um breve silêncio, Katya falou de novo.
- Será que a guerra entre os atenienses e o atlantes era, na
verdade, uma guerra entre os micênios e os minoanos?
- Acredito que sim, - replicou Jack. - A Acrópole de Atenas
pode ter sido a mais impressionante de todas as fortalezas
dos micênios antes que fosse demolida para dar lugar às
construções do período clássico. Logo depois de 1500 antes
de Cristo os guerreiros micênios controlaram Cnossos em
Creta e mantiveram esse domínio até que o palácio fosse
destruído pelo fogo e pela violência cem anos mais tarde. O
ponto de vista convencional é que os micênios eram
belicosos, os minoanos, pacíficos. A posse ocorreu depois
que os minoanos foram devastados por uma catástrofe
natural.
- Pode haver uma pista sobre isso na lenda de Teseu e o
Minotauro, - refletiu Katya. - Teseu, o príncipe de Atenas,
cortejou Ariadne, filha do rei Minos de Cnossos, mas, antes
de conseguir sua mão, ele devia enfrentar o Minotauro no
Labirinto. O Minotauro era metade touro, metade homem,
certamente uma representação da força dos minoanos nas
armas.
Hiebermeyer acrescentou:
- A Idade do Bronze foi redescoberta por homens que
acreditavam que as lendas continham uma semente de
verdade. Sir Arthur Evans em Cnossos, Heinrich
Schliemann em Tróia e Micenas. Ambos entendiam que as
guerras de Tróia na Ilíada e na Odisséia de Homero, escritas
no século VIII antes de Cristo, preservaram a memória dos
eventos tumultuados que levaram ao colapso da civilização
da Idade do Bronze.
- Isto conduz à minha conclusão, - disse Jack. - Platão não
teria sabido nada da Creta da Idade do Bronze, que foi
esquecida na Idade das Trevas, precedente ao período
clássico. No entanto, há mais pormenores na história
rememorativa dos minoanos, detalhes que Platão nunca
poderia ter conhecido. Katya, você permite?
Jack pegou os dois livros que a doutora empurrou em sua
direção, atraindo o olhar dela enquanto o fazia. Ele folheou
um e o deixou aberto no final.
- Aqui está: a Atlântida era o caminho para as outras ilhas, e
delas você podia passar para todo o continente fronteiro.
Exatamente assim é que Creta era vista pelo Egito, as outras
ilhas sendo Dodecaneso e os arquipélagos Cicládicos no
Egeu e o continente da Grécia e da Ásia Menor. E ainda há
mais. - Ele abriu o outro livro e leu uma nova passagem. - A
Atlântida era muito alta e escarpada do lado do mar, e
rodeava uma grande planície circundada por montanhas.
Jack deu grandes passos até a tela que agora exibia um mapa
de Creta em grande escala.
- É exatamente esta a aparência da costa sul de Creta e da
grande planície de Mesara.
Jack voltou para o lugar onde havia deixado os livros sobre a
mesa.
- E finalmente os próprios atlantes. Eles estavam divididos
em dez regiões administrativas relativamente independentes
sob a primazia da metrópole real. - Ele girou e apontou para
o mapa. - Os arqueólogos acreditam que a Creta dos
minoanos estava dividida em doze ou mais domínios feudais
com palácios, semi-autônomos, sendo Cnossos o mais
importante.
Jack pressionou o controle remoto para revelar uma imagem
espetacular do palácio desenterrado em Cnossos com a sala
do trono restaurada.
- Esta certamente é a esplêndida cidade capital na metade do
caminho ao longo da costa. - Ele passou rapidamente por
vários slides até chegar a um close-up do sistema de
drenagem do palácio. - E do mesmo modo que os minoanos
eram excelentes engenheiros hidráulicos, os atlantes
construíam cisternas, algumas abertas aos céus, outras
cobertas por telhados, para usar nos invernos como banhos
quentes; havia banhos para os reis e para as outras pessoas,
para os cavalos e o gado. E depois o touro. - Jack pressionou
o seletor e apareceu uma nova vista de Cnossos, desta vez
mostrando uma magnífica escultura de chifres de touro, ao
lado do pátio. Ele leu mais uma vez: - Havia touros que eram
enormes, e os reis, deixados sozinhos no templo de
Posêidon, depois de oferecerem preces ao deus para que
pudessem capturar uma vitima que fosse aceitável para eles,
caçavam os touros, sem armas, mas com bastões e laços.
Jack voltou-se para a tela e mostrou novos slides.
- Uma parede de Cnossos pintada com um touro e um
acrobata pulando. Um vaso de libação feito de pedra com a
forma de uma cabeça de touro. Uma taça de ouro com uma
cena de caçada de touro. Uma fossa escavada contendo
centenas de chifres de touro, descoberta recentemente
debaixo do pátio principal do palácio. - Jack sentou-se e
olhou para os outros. - E há um elemento final nessa
história.
A imagem se transformou em uma vista aérea da ilha de
Thera, uma que Jack havia tirado do helicóptero do Seaquest
apenas alguns dias antes. O contorno recortado da cratera
podia ser visto nitidamente, a vasta bacia rodeada por
despenhadeiros espetaculares elevando-se acima das casas
brancas das povoações modernas.
- O único vulcão do Egeu é um dos maiores do mundo. Em
algum momento, na metade do segundo milênio antes de
Cristo, aquele vulcão entrou em erupção. Dezoito
quilômetros de rocha foram lançados a oitenta quilômetros
de altura e a centenas de quilômetros para o sul e ao leste do
Mediterrâneo, sombreando o céu durante dias. O abalo
sacudiu construções no Egito.
Hiebermeyer citou de memória o Antigo Testamento:
- E o Senhor disse a Moisés, estenda a mão para o céu e
sobre toda a terra do Egito haverá uma escuridão que se
poderá apalpar. E Moisés estendeu a mão para o céu e uma
densa treva cobriu a terra do Egito durante três dias.
- As cinzas cobriram toda Creta e destruíram a agricultura
durante uma geração, - continuou Jack. - Marés com ondas
imensas, tsunamis, danificaram a praia setentrional
devastando os palácios. Houve fortes terremotos. A
população remanescente não conseguiu medir forças com os
micênios quando estes chegaram à procura das abundantes
colheitas.
Depois de um breve silêncio, Katya falou.
- Então, os egípcios ouviram um barulho muito forte. O céu
escureceu. Alguns poucos sobreviventes chegaram ao Egito
contando histórias aterrorizantes de um dilúvio. Os homens
de Keftiu não mais vieram com seus tributos. A Atlântida
não submergiu debaixo das ondas, mas, mais precisamente,
ela desapareceu para sempre do mundo egípcio. - Ela ergueu
a cabeça e olhou para Jack, que sorriu.
- Eu terminei minha exposição, - disse ele.
Durante essa discussão Dillen permaneceu em silêncio. Ele
sabia que os outros estavam intensamente cientes de sua
presença, cônscios de que sua tradução do fragmento de
papiro podia ter revelado segredos que iriam subverter tudo
em que eles acreditavam. Agora olhavam para ele cheios de
expectativa, enquanto Jack reiniciava o projetor para mostrar
a primeira imagem. A tela exibia novamente o close-up do
manuscrito em grego antigo.
- Vocês estão prontos? - Dillen perguntou ao grupo.
Ouviu-se um murmúrio de aquiescência. A atmosfera na sala
ficou perceptivelmente mais tensa. Dillen abriu sua pasta,
tirou um grande pergaminho e desenrolou-o na frente deles.
Jack escureceu as luzes principais e acendeu uma lâmpada
fluorescente sobre o fragmento rasgado de papiro antigo no
centro da mesa.

4

O objeto da atenção deles foi revelado em cada detalhe, a
antiga folha escrita aparecia quase luminosa sob a protetora
placa de vidro. Todos puxaram as cadeiras para a frente e
seus rostos surgiam das trevas de maneira indistinta no
limite da área iluminada.
- Primeiro, o material.
Dillen entregou, para que todos examinassem, uma pequena
caixa de plástico contendo a amostra de um fragmento
removido para análise, quando a múmia fora desembrulhada.
- Sem dúvida alguma é papiro, Cyperus papyrus. Ê possível
perceber o padrão de linhas cruzadas onde as fibras da haste
foram alisadas e grudadas.
- O papiro desapareceu quase completamente do Egito por
volta do século II depois de Cristo, - disse Hiebermeyer. -
Extinguiu-se por causa da obsessão egípcia em manter
registros. Eles eram brilhantes na irrigação e na arquitetura,
mas falharam, por alguma razão, em manter a plantação dos
canteiros de papiro ao longo do Nilo. - Ele falava com um
rubor de excitação. - E posso revelar agora que os primeiros
papiros conhecidos datam de 4000 antes de Cristo, quase mil
anos antes de qualquer achado anterior. Ele foi descoberto
no princípio deste ano, durante minhas escavações no
templo de Neith, em Sais, no delta do Nilo.
Houve um murmúrio de excitação ao redor da mesa. Katya
inclinou-se para a frente.
- Então, vamos ao manuscrito. Temos um método que é
antigo, mas pode estabelecer a data de qualquer época até o
século II depois de Cristo. Podemos ter uma precisão maior
do que essa?
Hiebermeyer sacudiu a cabeça.
- Não se utilizarmos apenas o material. Poderíamos tentar
estabelecer esta data usando carbono 14, mas os isótopos
radioativos seriam provavelmente contaminados por algum
outro material orgânico existente nas faixas que envolvem a
múmia. E fazer uso de uma amostra maior significaria
destruir o papiro.
- Isto é, obviamente, inaceitável. - Dillen assumiu o controle
da discussão. - Mas temos a evidência do próprio
manuscrito. Se Maurice não o reconhecesse, não estaríamos
aqui hoje.
- Os primeiros indícios foram detectados por minha
pesquisadora Aysha Farouk.. - Hiebermeyer olhou ao redor
da mesa. - Acredito que o papiro e o sepultamento foram
feitos na mesma época. O papiro não era um pedaço de
algum manuscrito antigo, mas sim um documento que
acabara de ser escrito. A clareza das letras comprova isso.
Dillen prendeu com tachinhas os quatro cantos do seu
manuscrito sobre a mesa, permitindo que todos vissem que
ele estava coberto com símbolos copiados do papiro. Ele
havia agrupado letras idênticas, pares de letras e palavras. Era
uma maneira de analisar a regularidade do estilo, algo
familiar aos que haviam estudado com ele.
Ele apontou para oito linhas de escrita contínua na parte
inferior do manuscrito.
- Maurice estava certo ao identificá-las como uma forma
antiga de escrita grega, de uma época anterior ao importante
período clássico do século V antes de Cristo. - Ergueu os
olhos e fez uma pausa. - Ele estava certo, mas eu posso ser
mais preciso ainda.
Dillen deslocou a mão até um grupo de letras na parte
superior.
- Os gregos adotaram o alfabeto dos fenícios no início do
primeiro milênio antes de Cristo. Algumas das letras fenícias
permaneceram inalteradas, outras mudaram de forma com o
passar do tempo. O alfabeto grego só alcançou sua forma
definitiva perto do fim do século VI antes de Cristo. - Pegou
o indicador a laser e apontou-o para o canto superior direito
do manuscrito. - Agora olhem para isto.
Uma letra idêntica havia sido sublinhada em certo número
de palavras copiadas do papiro. Ela se parecia com a letra A
tombada para a esquerda, a linha transversal se estendendo
para ambos os lados como os braços estendidos em um
desenho.
Jack falou excitadamente:
- A letra A fenícia.
- Correto. - Dillen puxou sua cadeira para mais perto da
mesa. - A forma fenícia desaparece em torno da metade do
século VI antes de Cristo. Por esta razão e por causa do
vocabulário e do estilo, sugiro como data o começo do
século. Talvez o ano 600 ou, o mais tardar, o ano 580 antes
de Cristo.
Ouviu-se um suspiro coletivo.
- Até onde você está convencido disto? - perguntou Jack.
- Estou tão confiante quanto sempre estive.
- E agora posso revelar nossa evidência mais importante para
a datação da múmia, - anunciou Hiebermeyer de maneira
triunfal. - Um amuleto de ouro em forma de coração, ib,
debaixo de um disco solar, re, formando juntos uma
representação simbólica do faraó Ápries, nome de
nascimento Wah-Ib-Re. O amuleto pode ter sido um
presente pessoal para o ocupante da tumba, um bem valioso
levado para a vida após a morte. Ápries foi um faraó da
Vigésima Sexta Dinastia, que governou de 595 a 568 antes
de Cristo.
- Fantástico, - exclamou Katya. - Fora uns poucos
fragmentos não temos manuscritos gregos originais de antes
do século V antes de Cristo. Este data de apenas um século
depois de Homero, apenas poucas gerações antes que os
gregos começassem a usar o novo alfabeto. Este é o achado
epigráfico mais importante em décadas. - Ela fez uma pausa
para ordenar seus pensamentos. - Minha pergunta é esta: o
que um papiro com escrita grega estava fazendo no Egito no
século VI antes de Cristo, mais de duzentos anos antes da
chegada de Alexandre, o Grande?
Dillen olhou ao redor da mesa.
- Eu não usarei de rodeios por mais tempo. Acredito que
temos um fragmento do último trabalho de Sólon, o
Legislador, o relato de sua visita ao sumo sacerdote em Sais.
Encontramos a fonte da história da Atlântida de Platão.

Meia hora mais tarde eles se agruparam na varanda para
apreciar o Grande Porto. Dillen estava fumando seu
cachimbo e observando afetuosamente Jack e Katya
conversarem, um pouco afastados dos demais. Não era a
primeira vez que ele via isto, mas talvez Jack tivesse
encontrado, finalmente, alguém sério. Alguns anos antes,
Dillen percebera o potencial de um estudante indomável
que não possuía as credenciais de uma educação
convencional; fora ele quem estimulara Jack a passar uma
temporada em um serviço militar de inteligência com a
condição de retornar e fazer carreira na arqueologia. Um
outro antigo estudante, Efram Jacobovich, providenciou
uma doação de sua fortuna, obtida com software, que
financiou toda a pesquisa da IMU, e Dillen deleitou-se, em
silêncio, com a oportunidade que isso lhe deu de se
envolver com as aventuras de Jack.
Jack desculpou-se para ir fazer uma chamada via satélite ao
Seaquest, colocando brevemente a mão sobre o braço de
Katya e dirigindo-se para a porta. A sua excitação com a
descoberta do papiro competia com a necessidade de se
manter informado sobre a escavação no naufrágio. Fazia
apenas dois dias que Costas havia descoberto o disco de
ouro, embora o local já estivesse revelando riquezas que
ameaçavam eclipsar até mesmo esse achado.
Durante uma pausa na conversa enquanto Jack estava fora,
os outros integrantes da equipe se entretiveram com uma
tevê colocada em um nicho da parede. Era uma reportagem
da CNN sobre um novo ataque terrorista na antiga União
Soviética, um carro-bomba devastador explodira na capital
da República da Geórgia. Assim como outras atrocidades
recentes, esse não havia sido um trabalho de fanáticos mas
um calculado ato de vingança pessoal, mais um horrível
episódio em um mundo onde uma ideologia extremista
estava sendo substituída por ganância e vendeta como a
principal causa da instabilidade mundial. Esta era uma
situação que preocupava bastante aqueles que se
encontravam na varanda, as antigüidades roubadas estavam
sendo usadas para facilitar transações e os operadores do
mercado negro se mostravam cada vez mais audaciosos em
suas tentativas para adquirir os tesouros de maior valor.
Quando retornou, Jack retomou a conversa que estivera
tendo com Katya. Ela havia revelado pouco sobre seus
antecedentes, mas tinha confessado sua ânsia de se envolver
mais do que sua posição atual permitia na batalha contra o
roubo de antigüidades. Jack descobriu que posições de
prestígio haviam sido oferecidas a ela no Ocidente, mas que
Katya preferira permanecer na Rússia, na vanguarda do
problema, apesar da burocracia corrupta e da eterna ameaça
de chantagem e represália.
Hiebermeyer e Dillen juntaram-se a eles e a discussão voltou
ao papiro.
- Eu sempre fiquei perplexo com o fato de Sólon não deixar
nenhum relato sobre sua visita ao Egito, - disse Katya. - Ele
era um escritor muito proeminente, o mais erudito de
Atenas em seus dias.
- Será que esse documento foi escrito dentro do próprio
recinto do templo? - Jack olhou de maneira inquiridora para
Hiebermeyer, que estava limpando os óculos e transpirava
visivelmente.
- Provavelmente, embora tais ocasiões devessem ter sido
poucas e distantes uma da outra. - Hiebermeyer recolocou
os óculos e enxugou a fronte. - Para os egípcios a arte de
escrever era um dom divino de Thoth, escriba dos deuses.
Tornando-a sagrada, os sacerdotes podiam manter o
conhecimento sob seu controle. E qualquer escrito feito por
um estrangeiro, em um templo, seria considerado sacrílego.
- Nesse caso, ele não seria popular, - comentou Jack.
Hiebermeyer sacudiu a cabeça.
- Ele teria sido recebido com suspeita por aqueles que
desaprovavam a decisão do sumo sacerdote de revelar seu
conhecimento. Os guardiões do templo se ofenderiam com
sua presença por ele ser um estrangeiro, o que daria a
impressão de desafiar os deuses. - Hiebermeyer se esforçou
para tirar a jaqueta e arregaçou as mangas. - E os gregos não
eram exatamente muito populares. Os faraós haviam
permitido, fazia pouco tempo, que eles estabelecessem um
posto comercial em Náucratis, no delta. Eles eram
comerciantes astutos, experientes, por causa do seu
comércio com os fenícios, ao passo que o Egito se mantivera
fechado ao mundo exterior durante anos. Os egípcios que
confiaram suas mercadorias aos mercadores gregos
ignoravam as duras realidades do comércio. Aqueles que não
tiraram proveito imediatamente sentiram que haviam sido
enganados e traídos. Havia muito ressentimento entre eles.
- Então, o que você está sugerindo, - interrompeu Jack, - é
que Sólon, na verdade, fez esse relato mas que, de alguma
maneira, o escrito foi retirado dele e destruído?
Hiebermeyer concordou com a cabeça.
- Isso é possível. Você pode imaginar o tipo de estudioso
que ele era. Sincero de um modo obsessivo, fazendo poucas
concessões para os que estavam à sua volta. E ingênuo a
respeito do mundo real. Devia estar carregando uma bolsa
cheia de ouro, e o pessoal do templo ficou sabendo. Ele deve
ter sido uma presa fácil naquelas caminhadas durante a
noite, através do deserto, do recinto do templo até a cidade
onde se hospedava.
- Então, o que estamos dizendo é que Sólon é atacado
traiçoeiramente e roubado no deserto. Seu pergaminho é
rasgado e jogado fora. Pouco depois alguns pedaços são
reunidos e usados de novo como envoltório de múmias. O
ataque ocorre depois da última visita de Sólon ao templo, e
dessa forma o manuscrito todo fica perdido.
- E o que aconteceu depois disso, - continuou Hiebermeyer,
- é que ele foi tão perversamente surrado que pôde apenas
lembrar fragmentos do ocorrido, talvez nada sobre sua
última visita ao templo. Já é um homem idoso e sua
memória está diminuída. De volta à Grécia ele nunca mais
escreve, e está muito envergonhado para admitir o quanto
perdeu por causa de sua própria estupidez. Ele apenas conta
uma versão falsificada do que consegue lembrar para poucos
amigos.
Dillen ouviu com visível satisfação enquanto seus dois
antigos alunos desenvolviam esse argumento. Uma reunião
como esta significava mais do que a soma de suas partes; o
encontro de intelectos provocava o aparecimento de novas
idéias e linhas de raciocínio.
- Eu mesmo cheguei a uma conclusão semelhante lendo os
textos, - disse Dillen, - comparando a história de Platão com
o papiro. Vocês verão em breve o que quero dizer. Vamos
nos reunir novamente.
Voltaram para a sala de conferência, a fria umidade das
paredes era refrescante depois do calor causticante que fazia
lá fora. Todos olharam esperançosamente enquanto Dillen
se acomodava diante do fragmento do papiro.
- Tenho a impressão de que esta é a transcrição de um
ditado. O texto foi escrito apressadamente e a composição
não está particularmente elegante. Ela é apenas um pedaço
do manuscrito original, que pode ter tido milhares de linhas.
O que subsistiu equivale a dois curtos parágrafos separados
por um vazio da largura de seis linhas. No centro encontra-
se este símbolo seguido pela palavra Atlântida.
- Eu já vi isto em algum lugar anteriormente, - Jack estava se
inclinando sobre a mesa e observando atentamente o
símbolo no centro do papiro.
- Sim, você já o viu. - Dillen olhou brevemente para suas
anotações. - Mas vou deixar isto para um pouco mais tarde,
se você não se incomodar. Não há dúvida alguma de que isso
foi escrito por Sólon no templo scriptorium, em Sais,
sentado diante do sumo sacerdote.
- Seu nome era Amenhotep. - Hiebermeyer estava de novo
rubro de excitação. - No mês passado, durante nossa
escavação no templo de Neith, encontramos uma lista
fragmentada de sacerdotes durante a Vigésima Sexta
Dinastia. De acordo com a cronologia, Amenhotep tinha
mais de cem anos quando Sólon o visitou. Existe até uma
estátua dele. Ela está no British Museum.
Hiebermeyer estendeu a mão e deu uma leve pancada no
projetor multimídia, revelando uma figura em pose egípcia
clássica segurando um modelo de relicário nãos*. O rosto
parecia, ao mesmo tempo, jovem e eterno, ocultando mais
do que revelava, mas com a expressão triste de um homem
idoso que passou por tudo que lhe fora dado passar antes que
a morte o levasse.
- Será, - Katya interrompeu, - que o vazio no texto
representa uma pausa no ditado, que a escrita de cima
representa o fim de um relato, talvez de um dia de audiência
com o sacerdote, e a escrita debaixo o começo de um outro?
- É exatamente isto, - Dillen sorriu. - A palavra Atlântida é
um título, o início de um novo capítulo. - Seus dedos
digitaram no laptop que ele havia conectado com o projetor
multimídia. Agora eles podiam seguir uma imagem
digitalmente aumentada do texto grego lado a lado com as
palavras inglesas. Dillen começou a ler a tradução sobre a
qual ele e Katya haviam trabalhado desde sua chegada no dia
anterior.
- E em suas cidadelas existiam touros, tantos que eles
abarrotavam os pátios e os corredores estreitos, e os homens
dançavam com eles. E depois, no tempo do Faraó Tutmósis,
os deuses atingiram a terra com um poderoso estrondo e as
trevas cobriram-na, e Posêidon lançou uma onda poderosa e
impetuosa que destruiu completamente tudo por onde
passou. Esse foi o fim do reino da ilha de Keftiu. E depois
vamos ouvir sobre um outro reino poderoso, o da cidadela
desaparecida que chamavam Atlântida.
- E agora a segunda parte, - continuou Dillen. Bateu em uma
tecla e apareceu a imagem do pergaminho que estava abaixo
do espaço vazio. - Lembrem-se, que este material é bem
grosseiro. Sólon estava traduzindo do egípcio para o grego
enquanto escrevia. Então, para nós ele é relativamente
direto, com poucas frases complexas ou palavras obscuras.
Mas existe um problema.
Dillen olhou para a tela e todos seguiram seu olhar. Ele foi
ate o fim do texto e eles viram que as palavras se tornavam
menores onde o papiro fora rasgado. Enquanto o primeiro
parágrafo havia sido bem conservado, o segundo estava
progressivamente mutilado, à medida que as beiradas
rasgadas convergiam para uma forma em V. As últimas
linhas continham apenas fragmentos de palavras.
Katya começou a ler.
- Atlântida. - Seu sotaque acrescentava ênfase às sílabas,
ajudando, de certa maneira, a tornar familiar a realidade
daquilo que tinham diante de si.
- A primeira sentença não é controversa. - Ela focalizava a
tela e falava em voz baixa.
- Dia ton neson mechri hou he thalatta stenoutai. - As
vogais soavam quase como chinês, à medida que ela recriava
o ritmo da antiga língua.
- Através das ilhas até os estreitos do mar. Passada a Catarata
de Bos.
Hiebermeyer, perplexo, franziu as sobrancelhas.
- Meu grego é bom o suficiente para saber que katarraktes
significa uma catarata ou queda d'água, - disse ele. - A
palavra era usada para descrever as correntezas da parte alta
do Nilo. Como pode referir-se ao mar?
Dillen foi até a tela.
- Nesse ponto, nós começamos a perder palavras inteiras do
texto.
Katya leu de novo.
- E depois vinte dromoi ao longo da margem situada ao sul.
- Um dromos equivalia a sessenta estádios, - comentou
Dillen. - Cerca de cinqüenta milhas náuticas.
- Isso era, de fato, altamente variável, - disse Jack. Dromos
significa 'correr', a distância que uma embarcação podia
navegar em um dia enquanto havia sol.
- Provavelmente essa medida variava de um local para outro,
- Hiebermeyer refletiu. - De acordo com os ventos, as
correntezas e a época do ano, levando em conta as
mudanças climáticas sazonais e as horas de luz do dia.
- Precisamente. Uma corrida era uma indicação de quanto
tempo levaria para ir de A até B em condições favoráveis.
- Sob o alto bucranion*, o signo do touro, - continuou Katya.
- Ou, chifres do touro, - sugeriu Dillen.
- Fascinante, - disse Hiebermeyer quase para si mesmo. -
Um dos símbolos mais sugestivos da pré-história. Nós já os
vimos nas fotos que Jack tirou em Cnossos. Eles também
aparecem em santuários neolíticos e em todos os palácios da
Idade do Bronze no Oriente Próximo. Mesmo mais tarde, no
período romano, o bucranium é encontrado em toda parte
na arte grandiosa.
Katya assentiu.
- O texto se torna fragmentado agora, mas o professor e eu
concordamos em relação ao significado. Será mais fácil
entenderem se virem onde a ruptura ocorre.
Ela transformou o projetor em retroprojetor, ao mesmo
tempo que colocava uma folha transparente na placa de
vidro. A tela mostrava as palavras escritas de forma esmerada
debaixo da forma em V da parte inferior do papiro.
- Depois você chega à cidadela. E mais abaixo está situada
uma vasta planície dourada, as bacias profundas, os lagos
salgados, até onde os olhos podem alcançar. E duzentas
existências atrás Posêidon descarregou sua vingança sobre os
atlantes por ousarem viver como deuses. A catarata
desmoronou, a grande porta de ouro da cidadela foi cerrada
para sempre, e a Atlântida foi tragada pelas ondas. - Ela fez
uma pausa. - Acreditamos que estas últimas sentenças eram
uma forma de ligar a história com a destruição da terra de
Keftiu. Talvez o tema do sumo sacerdote fosse a fúria do
deus do mar, a vingança de Posêidon contra os homens por
causa de sua arrogância.
Ela apontou o indicador a laser para a tela.
- A parte seguinte era, provavelmente, o início de uma
descrição detalhada da Atlântida. Infelizmente há apenas
algumas palavras desconectadas. Aqui, achamos, está escrito
casa dourada ou muralha dourada. E aqui vocês podem ler,
nitidamente, as letras gregas que indicam pirâmide. A frase
completa se traduz como imensas pirâmides de pedra? Ela
olhou de maneira interrogativa para Hiebermeyer, que
estava demasiado atordoado para fazer algum comentário e
podia apenas olhar estupidamente para a tela.
- E depois estas palavras finais. - Ela apontou para a ponta
rasgada do documento. - Morada dos deuses, talvez salão dos
deuses, que de novo é kata houkeros, que significa sob o
signo do touro. E aqui termina o texto.
Hiebermeyer foi o primeiro a falar, sua voz tremendo de
excitação.
- Certamente isso decide o assunto. A viagem através das
ilhas até um lugar onde o mar se estreita. Isso só pode
significar para o oeste a partir do Egito, passando pela Sicília
até o Estreito de Gibraltar. - Ele bateu com a mão sobre a
mesa enquanto afirmava. - A Atlântida ficava no oceano
Atlântico, afinal!
- E a catarata? - perguntou Jack. - O Estreito de Gibraltar não
se parece com uma torrente enfurecida.
- E a vasta planície dourada, e os lagos salgados, -
acrescentou Katya. - No Atlântico, tudo o que você teria é o
mar de um lado, altas montanhas ou deserto do outro.
- A costa sul também é desconcertante, - disse Jack. - Uma
vez que não há uma costa sul evidente para o Atlântico, isto
implicaria que a Atlântida ficava no Mediterrâneo, e
dificilmente posso imaginar uma cidadela na costa estéril do
Saara ocidental.
Dillen desprendeu o retroprojetor e preparou o projetor para
exibir slides, recarregando as imagens digitais. Uma série de
montanhas cobertas de neve ocupou a tela, com um
complexo de ruínas aninhadas entre terraços verdejantes no
primeiro plano.
- Jack tinha razão ao associar a Atlântida de Platão com a
Creta da Idade do Bronze. A primeira parte do texto referia-
se claramente aos minoanos e à erupção do Thera. O
problema é que Creta não era a Atlântida.
Katya aquiesceu lentamente.
- O relato de Platão é uma combinação.
- Exatamente. - Dillen ficou em pé atrás de sua cadeira,
gesticulando enquanto falava. - Temos fragmentos de duas
histórias diferentes. Uma descreve o fim de Creta da Idade
do Bronze, a terra de Keftiu. A outra é sobre uma civilização
muito mais antiga, a da Atlântida.
- A diferença de datas não é ambígua. - Hiebermeyer
enxugou o rosto enquanto falava. - O primeiro parágrafo do
papiro situa a destruição de Keftiu no reinado de Tutmósis.
Ele era um faraó da Décima Primeira Dinastia, no final do
século XVI antes de Cristo, exatamente na época em que o
Thera entrou em erupção. E para a Atlântida 'duzentas
existências', no segundo parágrafo, é, de fato, um cálculo
razoavelmente preciso, a duração de uma existência
significava cerca de vinte e cinco anos para os historiadores
egípcios. - Ele fez um rápido cálculo mental. - Cinco mil
anos antes de Sólon, então mais ou menos 5600 antes de
Cristo.
- Incrível. - Jack sacudiu a cabeça descrente. - Toda uma
época antes das primeiras cidades-Estado. O sexto milênio
antes de Cristo ainda era o período neolítico, quando a
agricultura era uma novidade na Europa.
- Estou confusa com um detalhe, - disse Katya. - Se essas
histórias são tão diferentes, como pode o símbolo do touro
figurar de maneira tão destacada nos dois relatos?
- Isto não é um problema, - disse Jack. - O touro não era um
símbolo apenas minoano. Desde o início do período
neolítico ele representava força, virilidade, domínio sobre a
terra. Os arados de bois eram vitais para os antigos
fazendeiros. Os símbolos do touro estão em toda parte nas
comunidades agrícolas da região.
Dillen olhou de modo pensativo para o papiro.
- Acredito que descobrimos a base para dois mil e
quinhentos anos de especulação mal orientada. No fim de
seu relato sobre Keftiu, o sumo sacerdote, Amenhotep,
assinalou sua intenção para o próximo encontro com Sólon,
dando uma amostra do que estava por vir. Queria manter
Sólon em um estado de grande expectativa, para assegurar
que ele voltasse, dia após dia, até a data-limite permitida pelo
calendário do templo. Talvez ele estivesse interessado
naquela bolsa cheia de ouro, ou em doações mais generosas.
Penso que temos aqui uma antecipação da história da
Atlântida, na sentença final do relato de Keftiu.
Jack imediatamente captou a intenção de seu mentor.
- Você quer dizer que na confusão de Sólon a palavra
Atlântida pode ter substituído Keftiu sempre que ele
recordava a história da destruição dos minoanos.
- Você adivinhou, - aquiesceu Dillen. - Não há nada no
relato de Platão para sugerir que Sólon se lembrava de
alguma coisa da segunda parte do texto. Nem da catarata,
nem da vasta também não lembrava das pirâmides, que seria
difícil de esquecer. Alguém deve tê-lo espancado com muita
força naquela última noite.
O sol agora estava se pondo, seus raios lançando um matiz
rosa sobre as águas do Grande Porto situado abaixo. Eles
haviam retornado para a sala de conferência para uma última
sessão depois de uma pausa ao meio-dia. Nenhum deles
mostrava qualquer sinal de cansaço, apesar das horas que
gastaram em torno da mesa com o precioso documento.
Todos se mostraram estimulados pelo êxtase da descoberta
que revelava uma chave para o passado, capaz de mudar
todo o quadro da origem da civilização.
Dillen recostou-se na cadeira e falou.
- E, Jack, em relação àquele símbolo que você disse que já
havia visto...
Naquele momento houve uma batida sonora na porta e um
jovem adentrou o recinto.
- Perdão, professor, mas isso é muito urgente. Doutor
Howard.
Jack levantou-se rapidamente e pegou o celular que o rapaz
lhe estendia, indo até a balaustrada em frente ao mar de
modo a deixar os demais fora do alcance da sua voz.
- Aqui é Howard.
- Jack, aqui é Costas. Estamos em Alerta Vermelho. Você
deve retornar imediatamente ao Seaquest.


5

Jack soltou os comandos e o helicóptero Lynx ainda
permaneceu parado no ar, o zumbido normal do rotor
reduzido a um barulho de trepidação. Ajustou o áudio em
seu fone de ouvido enquanto diminuía aos poucos a pressão
que ativava o pedal esquerdo, provocando ao mesmo tempo,
na hélice traseira, um repentino solavanco de forma a
colocar o helicóptero inclinado lateralmente, para poder
apreciar a vista espetacular lá embaixo. Ele se voltou para
Costas e ambos olharam atentamente para fora através das
portas laterais abertas.
Cerca de mil metros abaixo ficava o fogo que arde
lentamente no coração do Thera. Estavam pairando sobre os
restos inundados de uma caldeira gigantesca, uma vasta
concha escavada com as beiradas denteadas projetando-se
acima do mar. Ao redor deles despenhadeiros se erigiam de
forma abrupta. Diretamente abaixo se encontrava Nea
Kameni, "Novo Queimado", sua superfície ressecada e sem
vida. No centro havia intrigantes colunas de fumaça onde o
vulcão mais uma vez estava atravessando a crosta da Terra.
Isto era um sinal de advertência, pensou Jack, um prenúncio
de destruição, como um touro resfolegando e batendo com
as patas antes de um ataque violento.
Uma voz desincorporada chegou através do
intercomunicador, uma voz que Jack estava achando cada
vez mais irresistível.
- É impressionante, - disse Katya. - As placas da África e da
Eurásia atritaram-se aqui para produzir mais terremotos e
vulcões do que em qualquer outro lugar sobre a Terra. Não
admira que os deuses gregos tivessem uma sina tão violenta.
Estabelecer uma civilização aqui é como construir uma
cidade sobre a falha de San Andreas.
- Sem dúvida, - replicou Costas. - Mas sem as placas
tectônicas o calcário nunca se transformaria em mármore.
Não haveria templos, nenhuma escultura. - Ele fez um
gesto em direção aos despenhadeiros. - E as cinzas
vulcânicas? Que material incrível! Os romanos descobriram
que, se adicionassem a ela argamassa de oxido de cálcio, eles
obteriam um concreto que se assentava debaixo d'água.
- É verdade, - Katya concedeu. - Os restos vulcânicos
também produzem um solo incrivelmente fértil. As
planícies ao redor do Etna e do Vesúvio eram o estômago do
mundo antigo.
Jack sorriu para si mesmo. Costas era um galanteador e ele e
Katya tinham descoberto uma paixão compartilhada por
geologia que havia dominado a conversa durante todo o
caminho desde Alexandria.
O Lynx estava voando de volta para o Museu Marítimo em
Cartago quando Costas recebeu um sinal de emergência de
Tom York, o capitão do Seaquest. Costas informou a Jack de
imediato e desviou para o sul em direção ao Egito. Naquela
tarde, ao lado do porto, ele observou enquanto Jack se
despediu rapidamente de Dillen e Hiebermeyer, qualquer
desapontamento que eles pudessem sentir estava mascarado
pela ansiedade claramente estampada em seus rostos.
Jack ficara sabendo que Katya era uma mergulhadora
experiente, assim, quando na varanda ela se aproximou e
perguntou-lhe se podia se associar a ele, Jack não viu motivo
para recusar.
- É uma oportunidade de me juntar à equipe que está à
frente da escavação, - ela havia dito, - para experienciar em
primeira mão quais são os problemas com que os modernos
arqueólogos se defrontam.
Enquanto isso, sua assistente Olga voltaria, por causa de um
negócio urgente, a Moscou.
- Aqui está ele.
O helicóptero se inclinou para a frente, dirigindo o olhar
deles para o horizonte oriental. Eles não viam mais Thera e
podiam apenas discernir o Seaquest no nevoeiro distante. À
medida que se aproximavam, o azul profundo do
Mediterrâneo escureceu como que pela passagem de uma
nuvem. Costas explicou que era por causa de um vulcão
submerso, seu cume se levantando do abismo como um atol
gigante.
Jack deu uma leve pancada no intercomunicador.
- Não era aqui que eu esperava encontrar um lugar onde algo
importante aconteceu, - disse ele. - O cume do vulcão está
trinta metros debaixo da água, em uma região muito
profunda para ter sido um recife. Alguma outra coisa fez
naufragar nosso navio minoano.
Agora eles estavam diretamente sobre o Seaquest e
começaram a descer para o heliporto na popa. As marcas de
aterrissagem se tornaram mais visíveis quando o altímetro
marcou uma altitude abaixo de mil e quinhentos metros.
- Mas tivemos muita sorte do navio afundar naquele local,
em uma profundidade que possibilita o trabalho dos nossos
mergulhadores. É o único lugar, num raio de muitos
quilômetros, onde o fundo do mar está a uma profundidade
menor do que quinhentos metros.
A voz de Katya chegou pelo intercomunicador.
- Você disse que o navio afundou no século XVI antes de
Cristo. Isto pode ser apenas uma suposição, mas poderia ter
sido pela erupção do Thera?
- Certamente, - exultou Jack. - E, de forma estranha, isto
também explica o seu excelente estado de preservação. O
navio afundou com um dilúvio repentino e submergiu até
cerca de setenta metros abaixo do cume.
Costas falou de novo.
- Provavelmente houve um terremoto alguns dias antes de o
vulcão entrar em atividade. Sabemos que os minoanos foram
avisados com antecedência e conseguiram partir com a
maior parte de seus pertences.
Jack concordou.
- A descarga explosiva teria destruído tudo por quilômetros à
sua volta, - continuou Costas. - Mas isso foi apenas o
começo. A agitação da água dentro da caldeira teria
repercutido de modo horrível, causando tsunamis de cem
metros. Eles estavam bastante próximos do Thera e as ondas
teriam perdido pouco da sua força. Elas romperiam qualquer
navio em seu caminho em pedacinhos, deixando apenas
fragmentos destroçados. Nosso navio naufragado subsistiu
no fundo do oceano apenas por ter entalado em uma fenda
abaixo da profundidade das oscilações das ondas.
O helicóptero pairou a cerca de cem metros acima do
Seaquest enquanto Jack esperava permissão para aterrissar.
Ele aproveitou a oportunidade para avaliar de maneira crítica
o navio que era seu orgulho e sua alegria. Além do heliporto
e dos barcos infláveis havia três andares de acomodações
capazes de abrigar vinte cientistas e uma tripulação de trinta
pessoas. Com 75 metros, o Seaquest tinha quase o dobro do
comprimento do Calypso de Cousteau. Ele havia sido
construído nos estaleiros da Finlândia que fabricaram as
famosas embarcações da classe Akademic para o Instituto
Oceanográfico Russo. Como aquelas embarcações, o navio
tinha proa e empuxos laterais para capacidade de
posicionamento dinâmico, permitindo-lhe conservar-se em
uma posição precisa acima do fundo do mar, e um sistema
automático de distribuição de lastro para manter a
estabilidade através da regulagem do fluxo de água nos seus
tanques de lastro. O navio já estava em uso há mais de dez
anos e deveria sofrer um reaparelhamento, mas ainda era
moderno e vital para a pesquisa da IMU e a exploração ao
redor do mundo.
Quando ele empurrou a alavanca de comando para a frente,
sua atenção foi atraída por uma silhueta escura no horizonte.
Era um outro navio, de porte inferior e sinistro, parado a
vários quilômetros da proa do Seaquest.
Todos sabiam para o que estavam olhando. Esta tinha sido a
razão pela qual Jack havia sido chamado de volta de
Alexandria com tanta urgência. Katya e Costas ficaram em
silêncio, suas mentes desviando-se da excitação causada
pelos documentos arqueológicos e se voltando para os sérios
problemas do presente. Jack cerrou os maxilares com firme
determinação enquanto fazia um pouso perfeito dentro do
círculo laranja do heliporto. Sua segurança calma camuflava
a raiva que se espalhava dentro dele. Sabia que sua escavação
seria descoberta, mas não esperava que fosse tão cedo. Seus
oponentes tinham acesso ao ex-satélite de vigilância russo,
capaz de distinguir o rosto de um homem de uma altura
orbital de quatrocentos quilômetros. O Seaquest estava
totalmente exposto no céu de verão sem nuvens do
Mediterrâneo, e o fato de ele ter ficado parado por vários
dias havia obviamente despertado interesse.
- Examine isto. Chegou ontem antes que eu fosse buscá-lo.
Costas conduziu Jack e Katya através do labirinto de mesas
no laboratório de conservação do Seaquest. As lâmpadas de
tungstênio suspensas sobre os cavaletes lançavam um facho
de luz brilhante sobre a cena. Um grupo de técnicos,
vestidos de branco, estava ocupado limpando e registrando
dezenas de artefatos preciosos que nos últimos dois dias
tinham vindo do navio minoano naufragado, preparando-os
para a conservação antes de serem exibidos. Aos fundos do
laboratório Costas parou ao lado de uma bancada baixa e
com cuidado ergueu a cobertura que protegia um objeto de
cerca de um metro de comprimento.
Katya susteve a respiração com grande surpresa. Era uma
cabeça de touro em tamanho natural, a carne negra feita de
esteatita do Egito, os olhos, de lápis-lazúli do Afeganistão, e
os chifres, de ouro sólido incrustado de rubis cintilantes da
Índia. Um buraco na boca mostrava tratar-se de um ríton,
um vaso côncavo de libação para oferendas aos deuses. Um
objeto tão suntuoso quanto este devia ter sido usado apenas
pelos sumos sacerdotes nas cerimônias mais sagradas do
mundo minoano.
- Ele é maravilhoso, - murmurou Katya. - Picasso teria
gostado dele.
- Uma peça decorativa brilhante para a exposição, - disse
Costas.
- No museu marítimo? - Perguntou Katya.
- Jack reservou uma antiga embarcação de guerra, em um
barracão, para armazenar os achados tão estimados do seu
navio minoano naufragado. Ele está quase cheio e a
escavação mal começou.
A base mediterrânea da IMU era o antigo lugar de Cartago
na Tunísia, onde o porto de guerra circular dos fenícios
havia sido magnificamente reconstruído. Os barracões
usados antigamente para navios a remo agora abrigavam os
achados de muitos navios antigos naufragados.
Jack subitamente agitou-se com raiva. Era inconcebível que
um artefato inestimável como aquele pudesse cair nas mãos
do submundo do crime. Mesmo o refúgio seguro do museu
não era mais uma opção. Desde o momento em que aquela
silhueta aparecera no horizonte, as freqüentes viagens de ida
e volta do helicóptero foram abandonadas. O Lynx tinha
uma capacidade acima do normal, o que, na prática, lhe
permitia escapar de qualquer outra aeronave do tipo autogiro
em distâncias curtas, mas ele era tão vulnerável quanto
qualquer aeronave subsônica aos mísseis teleguiados por
laser e enviados de um navio. Seus inimigos localizariam o
local do desastre com um GPS e recuperariam o material do
naufrágio usando veículos submersíveis operados por
controle remoto. Qualquer tripulação sobrevivente poderia
ser sumariamente executada e os artefatos desapareceriam
para sempre após o saque do agressor.
Era uma forma nova e letal de pirataria em alto-mar.
Jack e seus companheiros se dirigiram até a cabine do
comandante. Tom York, o comandante do navio, era um
sujeito forte, um inglês de cabelos prateados que havia
encerrado uma carreira brilhante na Marinha de Guerra
como capitão de porta-aviões de aeronaves tipo jumpjet*. À
sua frente estava sentado um homem robusto e de boa
aparência cujo físico havia sido exercitado como o de um
jogador internacional de rúgbi em sua Nova Zelândia natal.
Peter Howe passara vinte anos na Marinha Real e no Serviço
Aéreo Especial da Austrália e agora era o oficial-chefe de
segurança da IMU. Na noite anterior ele pegara um vôo ao
sair do centro de operações da IMU em Cornwall, na
Inglaterra. Howe havia sido companheiro de Jack desde os
tempos de escola e todos os três tinham servido juntos no
serviço de inteligência naval.
- Eu não consegui preparar nosso equipamento de
alpinismo. - Howe lançou um olhar pesaroso para Jack.
- Sem problemas. - O rosto de Jack se abriu em um sorriso. -
Vou conseguir um fretamento aéreo. Encontraremos uma
montanha para subir quando isto tudo terminar.
Sobre a mesa havia um transceptor UHF e um mapa do Egeu
usado por almirantes. Costas e Katya se espremeram ao lado
de York e Howe. Jack permaneceu em pé, a compleição
forte obstruindo a porta, e sua fala soou breve e precisa.
- E então, o que aconteceu?
- Trata-se de um novato, - disse Howe. - Seu nome é Aslan.
Katya estremeceu visivelmente, os olhos arregalados e sem
querer acreditar.
- Aslan! - Sua voz era apenas audível.
- Você conhece esse homem? - perguntou Jack.
- Sim, eu o conheço. - Ela falava de maneira hesitante. -
Aslan, significa Leão. Ele é... - Ela vacilava, seu rosto estava
pálido. - Ele é um líder militar, um gângster. O pior.
- Do Cazaquistão, para ser preciso. - Tom York pegou uma
fotografia e jogou-a sobre o mapa. - Recebi isto por e-mail da
agência de imprensa da IMU, em Londres, alguns minutos
atrás.
A foto exibia um grupo de homens em uniformes de
combate e roupas islâmicas típicas. O pano de fundo era um
panorama de aspecto estéril, com desfiladeiros ressecados
pelo sol e acúmulo de pedras na base dos penhascos. Eles
seguravam rifles Kalashnikovs, e no chão à sua frente havia
altas pilhas de armas russas, desde metralhadoras de calibre
pesado até lançadores de granadas RPG.
Não era tanto o arsenal abundante que chamava a atenção
deles, tais imagens eram lugar-comum desde os primeiros
dias dos mujahedin no Afeganistão; tratava-se da figura que
estava sentada no centro. O homem era de um tamanho
impressionante, suas mãos agarravam os joelhos e os
cotovelos se projetavam para fora de maneira desafiadora.
Em contraste com os uniformes caquis que o rodeavam, ele
vestia um manto branco esvoaçante e um fez bem ajustado.
Uma sugestão de bigode aparecia de cada lado da boca. O
rosto mostrava feições agradáveis, até mesmo bonitas, com o
nariz arqueado e as maçãs do rosto salientes como era
comum nos nômades da Ásia Central. Os olhos, em suas
órbitas afundadas, eram muito negros e fitavam de maneira
penetrante.
- Aslan, - disse York. - Seu nome verdadeiro é Piotr
Alexandrovich Nazarbetov. O pai era da Mongólia, a mãe é
do Quirguistão. Estava baseado no Cazaquistão, mas tem
uma praça forte no mar Negro em Abkházia, a província
separatista da República da Geórgia. Um ex-acadêmico
soviético e ex-professor de História da Arte na Universidade
de Bishkek, você acreditaria?
Howe aquiesceu. Esta era sua especialidade.
- Pessoas de todos os tipos têm sido seduzidas pelos enormes
lucros do crime nesta parte do mundo. E isso leva alguém
especializado em história da arte a conhecer o valor das
antigüidades e onde encontrá-las. - Ele olhou para os recém-
chegados. - Creio que todos vocês estão familiarizados com a
situação no Cazaquistão. - Ele mostrou um mapa que estava
atrás dele. - É sempre a mesma história. O Cazaquistão
obtém a independência após o colapso da União Soviética.
Mas o governo constituído pelo Partido Comunista anterior
está no controle. A corrupção é predominante, a
democracia, uma farsa. Apesar das reservas de petróleo e do
investimento estrangeiro, há um colapso progressivo na
segurança interna. Uma rebelião popular dá aos russos uma
desculpa para enviarem uma armada, que se retira depois de
uma guerra sangrenta. As forças nacionalistas ficam
severamente enfraquecidas, e o local vira uma anarquia.
- E depois chegam os chefes militares, - completou Costas.
- Correto. Os insurgentes que antes lutaram juntos contra os
russos agora competem entre si para preencher o espaço
vazio. Os idealistas dos primeiros dias são substituídos por
assassinos e extremistas religiosos. Os mais cruéis assassinos
e saqueadores cruzam o país. Eles dividem territórios para si
mesmos como se fossem barões medievais, dirigindo seus
próprios exércitos e enriquecendo com dinheiro de drogas e
armas.
- Eu li em algum lugar que o Cazaquistão é agora o maior
produtor mundial de ópio e de heroína, - disse Costas.
Howe concordou.
- E este homem controla a maior parte desse comércio. De
acordo com o que dizem, ele é um anfitrião encantador para
os jornalistas seus convidados, um estudioso que coleciona
arte e antigüidades em um escala prodigiosa. - Fez uma pausa
e olhou ao redor da mesa. - E é também um assassino
psicopata.
- Há quanto tempo ele tem estado nos observando? -
perguntou Jack.
- Eles apareceram dentro do nosso alcance visual há vinte e
quatro horas, instantes antes de Costas telefonar para você
em Alexandria, - respondeu York. - O SATSURV já havia
nos avisado sobre uma possível intromissão hostil, uma
embarcação com aspecto de navio de guerra que não
respondia a nenhum sinal de chamada internacional.
- Foi quando vocês mudaram de posição. - O Seaquest agora
estava distante duas milhas náuticas do atol onde se dera o
naufrágio.
- Fizemos isto depois de colocarmos minas de bolhas de ar
no local, - replicou York.
Katya olhou de maneira interrogativa para Jack.
- É uma inovação da IMU, - ele explicou. - Minas miniaturas
de contato, do tamanho de bolas de pingue-pongue, unidas
por monofilamentos como uma tela de bolhas. Elas são
colocadas em funcionamento por sensores fotoelétricos que
podem distinguir o movimento de mergulhadores e de
submersíveis.
Costas desviou o olhar para York.
- Quais são suas opções?
- O que quer que façamos agora pode ser sem propósito. - A
voz de York era fria e destituída de emoção. - Recebemos
um ultimato.
Ele entregou a Jack uma folha de papel que havia acabado de
chegar por e-mail. Jack examinou rapidamente o texto, seu
rosto não deixando transparecer o tumulto que sentia no
interior.
- Seaquest, aqui é o Vultura. Partam dentro de dezoito horas
ou serão aniquilados.
Costas observou atentamente o papel.
- Não dá para brincar, não é?
Como um aviso houve um terrível som acelerado,
semelhante ao de um jato voando baixo, seguido por um
estrondo ensurdecedor na proa a estibordo. Tom York
voltou-se rapidamente para a portinhola mais próxima no
momento exato em que uma coluna de água muito violenta
batia contra a vidraça deixando-a borrifada. A bomba não os
atingira por pouco.
- Seus bastardos, - disse York por entre dentes cerrados,
com a raiva de um oficial naval profissional impotente para
responder da mesma forma.
Naquele momento o transceptor começou a emitir ruídos, e
furiosamente York acionou o intercomunicador para que
todos pudessem ouvir.
- Aqui é o Seaquest, - a voz de York estava quase
descontrolada, era praticamente um rosnado. - Deixem
claras suas intenções. Câmbio.
Depois de alguns momentos chegou uma voz pelo
intercomunicador, sua fala arrastada, os tons guturais eram
obviamente russos.
- Boa tarde, capitão York, major Howe e doutor Howard,
estou certo? Nossas felicitações. Aqui é o Vultura. - Houve
uma pausa. - Vocês foram avisados!
York desligou o aparelho receptor com desgosto e abriu uma
tampa ao seu lado. Antes de fazer baixar a alavanca que
havia lá dentro, ele olhou para Jack, sua voz estava agora
friamente serena.
- Vamos batalhar por posições.
A buzina elétrica soou e depois de alguns minutos o
Seaquest havia se transformado de uma embarcação de
pesquisa em um navio de guerra. O equipamento de
mergulho, que não raro se amontoava desordenadamente no
convés, havia sido guardado tão logo o Vultura aparecera em
cena. Agora, no porão, na frente da cabine do convés, um
grupo de técnicos em seus macacões brancos antichamas
estava preparando uma série de armas do Seaquest, entre as
quais uma Breda L70 dupla, 40 milímetros, modificada de
acordo com especificações da IMU. A sucessora dos
renomados Bofors, armas antiaéreas da Segunda Guerra
Mundial, a Fast Forty tinha um mecanismo alimentado de
maneira dupla que atirava explosivos de alta potência e
projéteis que penetravam em couraças blindadas a uma
velocidade de 900 tiros por minuto. O compartimento que
continha a arma ficava escondido em um alojamento retrátil
que se elevava momentos antes do uso.
Na parte debaixo do convés todo o pessoal dispensável
estava reunido ao lado do submersível de fuga Netuno II. O
submersível atingiria rapidamente as águas do território
grego e se encontraria com uma fragata da marinha grega
que sairia de Creta dentro de uma hora. Ele também levaria
o ríton e outros artefatos que haviam subido do naufrágio
depois que o último helicóptero voara para Cartago.
York rapidamente conduziu o grupo por meio de um
elevador até um ponto bem abaixo da linha da água, e a
porta que se abriu revelou uma antepara de metal curvo cuja
aparência era a de um disco voador preso no casco do navio.
York olhou para Katya.
- O módulo de comando. - Ele bateu na superfície lustrosa. -
Tem uma espessura de vinte centímetros de aço reforçado
com titânio. Esta unidade destacável pode impelir-se para
fora do Seaquest e sair sem ser detectada, graças à mesma
tecnologia de ação secreta que usamos para o submersível de
fuga.
- Penso nele como um gigantesco assento que pode ser
ejetado, - sorriu Costas. - Como o módulo de comando dos
antigos foguetes sobre a velha lua de Saturno.
- Desde que ele não nos envie para o espaço, - disse Katya.
York falou em um intercomunicador e a escotilha circular se
abriu. Uma luz vermelha suave, vinda das baterias dos
painéis de controle do outro lado, lançava um brilho sinistro
no interior. Eles se abaixaram para passar e York puxou a
escotilha atrás deles, girando a roda central até que os braços
que prendiam a escotilha se fechassem completamente.
Imediatamente à frente deles, vários tripulantes estavam
ocupados preparando munição para armas de pequeno porte,
inserindo balas nos pentes e montando armas. Katya foi até
lá e pegou um rifle e um pente, carregando-o habilmente e
armando o gatilho da arma.
- Este é um Enfield SA80 Mark 2, - anunciou ela. - Uma
arma da armada britânica. Pente com trinta balas, calibre
5,56 milímetros. Coronha tipo Bullpup, na frente do pente,
versátil para espaços pequenos. - Examinou atentamente ao
redor. - O infravermelho de quatro alcances é um excelente
recurso, mas dê-me o novo Kalashnikov AK102 qualquer
dia. - Ela removeu o pente para balas e checou que a câmara
estivesse vazia antes de recolocar a arma no armeiro.
Ainda em seu elegante vestido negro que havia usado na
conferência, Katya parecia uma figura algo incongruente
com o local, refletiu Jack, mas ela obviamente mostrava
habilidades mais do que adequadas para lutar em uma
batalha.
- Você é uma dama notável, - disse Costas. - Primeiro uma
especialista mundial em manuscritos gregos antigos, agora
uma instrutora militar em armas de pequeno porte.
- De onde eu venho, - Katya respondeu, - é a segunda
qualificação que conta.
Enquanto se dirigiam para o arsenal, York olhou para Jack.
- Devemos decidir nosso método de ação agora.
Jack concordou.
York os conduziu por um pequeno lance de escadas até uma
plataforma de cerca de cinco metros. Ele se dirigiu até um
semicírculo de cadeiras giratórias diante de uma bateria de
estações de trabalho distribuídas ao longo de uma superfície.
- O terminal de controle da ponte de comando, - disse York
para Katya. - Ele serve como um comando central e uma
ponte de comando de realidade virtual, permitindo que
naveguemos o Seaquest usando a vigilância e os sistemas de
visualização da parte superior do navio.
Acima deles uma tela côncava exibia uma reprodução digital
panorâmica da vista da ponte de comando do Seaquest. As
câmaras estavam equipadas com sensores infravermelhos e
de visualização térmica, de modo que mesmo ao anoitecer
eles ainda podiam distinguir a forma baixa do Vultura e a
marca de fogo desbotada de sua torre rotatória blindada, na
parte anterior, de onde saíam os canos de canhão.
York voltou-se para Howe.
- Peter deseja rever nossas opções de segurança.
Peter Howe olhou tristemente para os outros.
- Eu não vou fazer rodeios. Nossa condição é ruim,
realmente ruim. Estamos enfrentando um navio de guerra
especialmente construído, armado até os dentes com o que
há de mais moderno, capaz de derrotar e fugir de
praticamente qualquer navio ou embarcação da guarda
costeira designada para lidar com este tipo de ameaça.
Jack voltou-se para Katya.
- A orientação política da IMU consiste em confiar nas
nações amigas nesse tipo de situação. A presença de navios
de guerra e aeronaves não raro é suficientemente
intimidadora mesmo que eles estejam fora das águas
territoriais e sejam legalmente incapazes de intervir.
Howe bateu em uma tecla e a tela acima deles mostrou o
mapa do mar Egeu usado por almirantes.
- Os gregos não podem deter o Vultura ou afugentá-lo.
Mesmo entre as ilhas ao norte ele pode encontrar uma rota
mais do que seis milhas náuticas longe da praia, e os estreitos
dentro do mar Negro são considerados águas internacionais.
Os russos se asseguraram disso. O Vultura tem um retorno
desimpedido para o seu porto natal em Abkházia.
Howe apontou um indicador luminoso para a posição atual
deles na parte inferior do mapa.
- Durante esta noite a Marinha helênica terá fragatas
posicionadas aqui, aqui e aqui. - Ele iluminou ao norte e a
oeste do vulcão submerso. - O ponto mais perto é logo
abaixo das seis milhas náuticas a sudeste do Thera, quase
dentro do alcance visual do Seaquest. Mas eles não se
aproximarão mais do que isto.
- Por que não? - perguntou Katya.
- Por causa de uma coisa maravilhosa chamada política. -
Howe virou-se para olhá-los. - Estamos em águas disputadas.
Poucas milhas ao leste existem ilhotas desabitadas
reivindicadas tanto por turcos como por gregos. A disputa
levou-os a uma ameaça de guerra. Nós informamos os turcos
sobre o Vultura, mas a política determina que o seu foco são
os gregos, não alguns cazaques renegados. A mera presença
de navios de guerra gregos nesta área é suficiente para pôr o
Comando Turco de Defesa Marítima em alerta máximo.
Uma hora atrás quatro aeronaves F16 da Força Aérea Turca
sobrevoaram um perímetro de uma extensão de cinco
milhas ao leste. Os gregos e os turcos sempre foram amigos
da IMU, mas agora eles estão impotentes para intervir.
Howe mudou a imagem e a tela voltou a exibir a vista
exterior do Seaquest.
York levantou-se e começou a andar entre as cadeiras, as
mãos firmemente agarradas atrás das costas.
- Não podemos nunca lutar contra o Vultura com a
esperança de ganhar. Não podemos contar com ajuda
externa. Nossa única opção é aceder aos seus pedidos,
abandonar imediatamente o lugar e desistir do navio
naufragado. Como capitão devo pôr a segurança da
tripulação em primeiro lugar.
- Podemos tentar negociar, - propôs Costas.
- Isto está fora de questão! - York bateu com força sobre o
painel de controle, demonstrando a tensão vivida nas
últimas horas. - Estas pessoas só querem negociar frente a
frente e em seus próprios termos. Aquele que for até o
Vultura imediatamente se tornará um refém. Eu não
arriscarei a vida de nem um único membro da minha
tripulação nas mãos desses assassinos.
- Deixe-me tentar.
Todos eles olharam para Katya, seu rosto se mostrava
impassível.
- Eu sou a única opção de vocês, - ela disse calmamente. -
Eu sou de um partido neutro. Aslan não teria nada a ganhar
me prendendo como refém e teria tudo a perder nas suas
relações com o governo russo. - Ela fez uma pausa, depois
falou com voz mais forte. - As mulheres são respeitadas no
meio de seu povo. E minha família tem influência. Posso
mencionar alguns nomes que serão de grande interesse para
ele.
Houve um grande silêncio enquanto os outros digeriam suas
palavras. Jack tentava não deixar suas emoções se
imiscuírem enquanto considerava todas as possibilidades.
Ele queria evitar colocá-la em perigo, mas sabia que ela tinha
razão. A expressão dela confirmava que ele tinha pouca
escolha.
- Está bem, - Jack levantou-se. - Eu convidei Katya para nos
acompanhar, então a responsabilidade é minha. Escolham
um canal seguro e coloquem-me em contato com o Vultura!


5

Jack levantou o binóculo e posicionou-o até focalizar a
mancha longínqua que era o único ponto de referência
entre o mar e o céu. Muito embora estivesse escuro agora,
ele podia distinguir cada detalhe do navio distante, o realce
ótico intensificando a luz disponível para dar uma imagem
tão clara como se fosse de dia. Ele até podia ler as letras do
alfabeto cirílico abaixo da proa.
Vultura. Quão apropriado, ele pensou. O navio era
exatamente isto, um urubu horrendo à espreita, ao redor da
zona de extermínio, até o momento certo de agarrar a presa
e devorar os frutos do trabalho alheio.
Tom York colocou-se ao lado do companheiro.
- Projeto 911, - disse ele, seguindo o olhar de Jack. - Os
russos os chamam de navios de escolta, o equivalente às
corvetas e fragatas no código da OTAN. Este é o último,
produzido depois dos eventos de 2002 para patrulhamento
antiterrorista. Quase do mesmo tamanho de nossos navios
classe Sea, porém um pouco mais sofisticados. Todo o
maquinado é feito com uma outra liga. Turbinas de diesel-
gás GT de duas toneladas produzindo 52.000 cavalos-vapor
para uma velocidade de cruzeiro de 36 nós. Turbojatos
propulsores capazes de atingir, por meio de hidrofólios,
velocidades de 60 nós, acima da superfície da água, são
quase tão rápidos quanto uma aeronave leve. O Vultura é
um dentre meia dúzia de navios que foram postos fora de
uso quando a Marinha russa passou pela última redução em
sua frota. O Tratado de Oslo exige que a Federação Russa
venda navios de guerra excedentes apenas para governos
reconhecidos pelas Nações Unidas, então o Vultura deve ter
sido adquirido em algum negócio obscuro antes que ele
deixasse o estaleiro.
Jack mirou o binóculo nos turbojatos acoplados de cada lado
da popa do Vultura, depois o moveu ligeiramente para
incluir a torre rotatória blindada, na parte anterior, com seu
cano de canhão dirigido diretamente para eles.
York percebeu seu movimento.
- Canhão automático Tulamahzadov, 130 milímetros.
Calibragem do alcance de tiro por GPS computadorizado que
faz ajustes instantâneos conforme o impacto. Capacidade de
atirar um projétil que pode penetrar em casco destituído de
urânio e que abriria um buraco na cabine de comando do
Seaquest a uma distância de vinte milhas.
Eles estavam em pé no heliporto do Seaquest, a brisa fria
fazendo tremular suavemente a bandeira da IMU na popa.
Observaram ansiosamente enquanto Katya, agora vestida de
maneira mais apropriada, com um macacão especial da IMU,
dirigiu um dos Zodiacs do Seaquest na escuridão, o duplo 90
cavalos-vapor, com capacidade para transportá-la até o
Vultura em questão de minutos. Antes que ela descesse as
escadas, Jack a havia chamado de lado e, tranqüilamente,
repassara mais uma vez a operação do Zodiac e repetira as
instruções de Howe e de York sobre seu possível curso de
ação se tudo desse errado.
Ela tinha partido havia apenas vinte minutos e já a espera
parecia interminável. Costas decidiu fazer uma
teleconferência com Dillen e Hiebermeyer para ocupar a
mente de Jack de modo mais produtivo, e os dois homens
entraram na sala de navegação atrás da ponte de comando
do Seaquest.
Costas deu um comando e o monitor na frente deles se pôs a
funcionar, revelando duas figuras tão nitidamente como se
elas estivessem sentadas do lado oposto da mesa. Jack
aproximou-se de Costas para que a imagem deles fosse
projetada de maneira similar. Eles iam perder a perícia de
Katya, mas uma teleconferência parecia ser a maneira óbvia
de decidir o modo de proceder. Dillen e Hiebermeyer
tinham ficado em Alexandria para esperar notícias do
Seaquest, e Costas já os havia posto à par sobre a ameaça
apresentada pelo Vultura.
- Professor. Maurice. Saudações.
- É bom vê-lo de novo, Jack, - disse Dillen. - Eu gostaria de
recomeçar onde havíamos parado, com estes símbolos.
Tocando uma tecla eles tiveram acesso a um conjunto de
imagens que haviam sido escaneadas antes. No canto
inferior direito do monitor eles viam agora a descoberta
triunfante de Costas, o extraordinário disco de ouro do
naufrágio do navio minoano. Os estranhos símbolos, na
superfície, haviam sido aumentados digitalmente para que
pudessem estudá-los com maior cuidado.
Hiebermeyer inclinou-se para a frente.
- Você disse que já havia visto antes este desenho central,
Jack.
- Sim. E aqueles símbolos circundando a beirada, as
pequenas cabeças e remos de pá larga e assim por diante. Eu
me dei conta de repente de onde eles estavam, quando
voávamos saindo de Alexandria. Os discos de Phaistos.
Costas olhou de modo inquiridor enquanto Jack chamava, à
tela do computador, a imagem de dois discos de cerâmica,
ambos parecendo idênticos e cobertos por uma faixa em
espiral de símbolos em miniatura. Um dos símbolos se
parecia de maneira extraordinária com o desenho no papiro
e no disco de ouro. O resto parecia sobrenatural,
especialmente as pequenas cabeças com narizes encurvados
e cabelos cortados como os indígenas da tribo dos moicanos.
- Asteca? - arriscou Costas.
- Bela tentativa, mas não, - replicou Jack. - De muito mais
perto de casa. Da Creta minoana.
- O disco à esquerda foi encontrado perto do palácio de
Phaistos quase cem anos atrás. - Dillen pressionou uma tecla
enquanto falava, o projetor mostrou repentinamente a
imagem de um amplo átrio de pedra de onde se tinha a visão
panorâmica de uma planície com montanhas cobertas de
neve ao fundo. Depois de um instante a imagem voltou para
os discos. - Ele é de argila, cerca de dezesseis centímetros de
diâmetro, e os símbolos estão impressos nos dois lados.
Muitos são idênticos, gravados com o mesmo molde.
Dillen aumentou o disco do lado direito.
- Este surgiu durante as escavações francesas do ano passado.
- Data? - perguntou Hiebermeyer.
- O palácio foi abandonado no século XVI antes de Cristo,
depois da erupção do Thera. Ao contrário de Cnossos, ele
nunca foi habitado de novo. Então, os discos podem ter sido
perdidos na mesma época que a do naufrágio que vocês
estão investigando.
- Mas eles podem datar de antes, - sugeriu Jack.
- De muito antes. - A voz de Dillen tinha agora um familiar
tom impaciente que denotava excitação. - Costas, o que
você conhece sobre datação termoluminescente?
Costas pareceu perplexo, mas replicou com entusiasmo.
- Se você enterrar cristais minerais eles absorvem
gradualmente isótopos radioativos do material que os rodeia
até atingir o mesmo nível de radiação. Se depois aquecer o
mineral, os elétrons aprisionados são emitidos como
termoluminescência. - Costas começou a adivinhar para
onde as questões estavam levando. - Quando você queima a
argila, ela emite TL* armazenada, fazendo com que o
medidor de TL volte ao zero. Enterre a cerâmica e de novo
ela começa a reabsorver isótopos em uma certa proporção.
Se conhecer esta proporção, bem como o nível de TL do
sedimento circundante, você pode datar a argila
esquentando-a e medindo a emissão de TL.
- Como isso se faz precisamente? - perguntou Dillen.
- Os últimos refinamentos em luminescência estimulada
oticamente nos permitem retroceder por quinhentos anos, -
replicou Costas. - Esta é a data para o material queimado na
fornalha dos primeiros lugares habitados pelo homem de
Neandertal na Europa. Para a cerâmica queimada em forno,
que apareceu pela primeira vez no quinto milênio antes de
Cristo no Oriente Próximo, a combinação TL-OSL pode
datar um fragmento de algumas centenas de anos se as
condições estiverem corretas.
Costas desenvolveu uma perícia formidável em ciência
arqueológica desde que se juntou à IMU, estimulado por
suas convicções de que muitas das questões que Jack
colocava sobre o passado distante poderiam um dia ser
resolvidas por uma ciência sólida.
- O segundo disco, o que foi descoberto no ano passado, foi
queimado. - Dillen pegou uma folha de papel enquanto
falava. - Um fragmento foi enviado ao Laboratório de
Termoluminescência de Oxford para análise, usando uma
nova técnica de estrôncio que pode determinar a data da
queima com uma maior precisão. Acabo de receber os
resultados.
Os outros olharam cheios de expectativa.
- Com uma probabilidade de erro de cem anos para mais ou
para menos, este disco foi queimado em 5500 antes de
Cristo.
Ouviu-se um suspiro coletivo de grande surpresa.
- Impossível, - ofegou Hiebermeyer.
- Isto é apenas pouco antes do naufrágio que estamos
escavando, - murmurou Costas.
- Apenas quatro mil anos antes, - disse Jack calmamente.
- Dois milênios e meio antes do palácio de Cnossos, -
Hiebermeyer ainda estava sacudindo a cabeça. - Apenas
alguns séculos depois que os primeiros agricultores
chegaram a Creta. E se isto está escrito, então esta é a
primeira escrita conhecida durante dois mil anos. O
cuneiforme do Oriente Próximo e os hieróglifos egípcios
não aparecem até o final do quarto milênio antes de Cristo.
- Parece incrível, - replicou Dillen. - Mas logo vocês verão
por que estou convencido de que é verdade.
Jack e Costas olharam atentamente a tela enquanto Dillen
colocava um CD-ROM em seu laptop e o ligava ao projetor
multimídia. Os desenhos dos discos de cerâmica foram
substituídos por símbolos dispostos em colunas, cada uma
diante de grupos aglomerados como palavras. Eles podiam
ver que Dillen havia aplicado a mesma técnica de análise
que usara para estudar o manuscrito grego no papiro.
Jack reativou o módulo de teleconferência e de novo
ficaram face a face com Dillen e Hiebermeyer, distantes
duas mil milhas em Alexandria.
- Estes são símbolos dos discos de Phaistos, - disse Jack.
- Correto. - Dillen pressionou uma tecla e os dois discos
reapareceram, dessa vez no canto esquerdo inferior. - O fato
que mais deixou os estudiosos confusos é que os discos são,
na verdade, idênticos, exceto em um aspecto crucial. - Ele
moveu o cursor para iluminar vários aspectos. - Por um lado,
no que eu chamo de anverso, os dois discos têm exatamente
cento e vinte e três símbolos. Ambos estão divididos em
trinta e um arranjos, cada um deles compreendendo de dois
a sete símbolos. O menu, podemos chamar assim, é o
mesmo, compreendendo quarenta e cinco símbolos
diferentes. E a freqüência é idêntica. Desse modo, a cabeça
de um índio da tribo dos moicanos aparece treze vezes, o
homem marchando seis vezes, o couro de boi esfolado onze
vezes, e assim por diante. É a mesma história no reverso,
exceto o fato de que contém trinta palavras e cento e
dezoito símbolos.
- Porém a ordem e os arranjos são diferentes, - assinalou
Jack.
- Precisamente. Olhe para o primeiro disco. O homem
andando mais árvore, três vezes. O disco solar mais a cabeça
do índio da tribo dos moicanos, oito vezes. E duas vezes
toda a seqüência de flecha, bastão, remo de pá larga, canoa,
couro de boi e cabeça humana. Nenhum desses arranjos
ocorre no segundo disco.
- É estranho, - murmurou Costas.
- Acredito que os discos foram mantidos juntos como um
par, um legível e o outro sem significado. Seja quem for que
tenha feito isto estava tentando sugerir que os tipos, o
número e a freqüência dos símbolos eram o que importava,
e não suas associações. Foi um artifício, uma maneira de
distrair a atenção do arranjo dos símbolos, de dissuadir o
curioso de procurar significado na seqüência.
- Mas certamente existe um significado nisso, - interrompeu
Costas com impaciência. Ele pressionou o mouse para
iluminar combinações no primeiro disco. - Canoa ao lado de
remo de pá larga. Homem andando. Homem da tribo dos
moicanos sempre olhando na mesma direção. Feixe de
milho. O símbolo circular, provavelmente o Sol, em metade
dos arranjos. É uma espécie de viagem, talvez não uma
viagem real, mas uma jornada através do ano, mostrando o
ciclo das estações.
Dillen sorriu.
- Esta é precisamente a linha adotada pelos estudiosos que
acreditam que o primeiro disco contém uma mensagem, que
ele não é apenas decorativo. Ele parece oferecer mais
significado do que o segundo disco, a seqüência de imagens
é mais lógica.
- Mas, e daí?
- Porém isto pode fazer parte do artifício. O criador do
primeiro disco pode ter emparelhado deliberadamente
símbolos que parecem combinar, como o remo de pá larga e
a canoa, na esperança de que as pessoas tentariam decifrar os
discos dessa maneira
- Mas certamente remo de pá larga e canoa combinam, -
protestou Costas.
- Só se você assumir que eles são pictogramas, nesse caso
remo de pá larga significa remo de pá larga, canoa significa
canoa. Combinar remo de pá larga com canoa significa andar
por água, viajar por mar, movimento.
- Os pictogramas foram a primeira forma de escrita, -
acrescentou Hiebermeyer. - Mas mesmo os primeiros
hieróglifos egípcios não eram todos pictogramas.
- Um símbolo também pode ser um fonograma, em que o
objeto representa um som, não uma coisa ou uma ação, -
continuou Dillen. - Em inglês podemos usar um remo de pá
larga para representar a letra P, ou a sílaba pa?
Costas concordou lentamente.
- Então você quer dizer que os símbolos podem ser uma
espécie de alfabeto?
- Sim, embora não no sentido estrito da palavra. A primeira
versão do nosso alfabeto foi a língua hebraica do Norte,
precursora do alfabeto fenício do segundo milênio antes de
Cristo. O aspecto inovador era um símbolo diferente para os
sons de cada uma das principais vogais e das consoantes. Os
sistemas anteriores tendiam a ser silábicos, cada símbolo
representando uma vogal e uma consoante. É assim que
interpretamos a escrita linear A dos minoanos e a linear B
dos micênios. - Dillen pressionou uma tecla e a tela voltou a
exibir o disco de ouro. - O que nos traz de volta para o
achado no naufrágio.
A imagem foi ampliada para mostrar o misterioso símbolo
profundamente gravado no centro do disco de ouro. Depois
de uma pausa juntou-se a ele uma outra imagem, uma placa
preta irregular coberta com três faixas de escrita
primorosamente espaçadas.
- A Pedra de Roseta? - Hiebermeyer parecia perplexo.
- Como você sabe, a armada de Napoleão na campanha do
Egito em 1804 incluía uma legião de estudiosos e de
desenhistas. Esta foi a sua descoberta mais sensacional,
encontrada perto da antiga Sais no braço Roseta do Nilo. -
Dillen iluminava cada parte do texto, alternadamente,
começando do alto. - Hieróglifos egípcios. Egípcio popular.
Grego helênico. Vinte anos mais tarde um filólogo chamado
Champollion percebeu que estas eram traduções da mesma
narrativa, um decreto trilíngüe editado por Ptolomeu V em
196 antes de Cristo, quando os gregos controlavam o Egito.
Champollion utilizou o seu conhecimento do grego antigo
para traduzir os outros dois textos. A Pedra de Roseta era a
chave para decifrar os hieróglifos. - Dillen pressionou uma
tecla e a pedra desapareceu, a tela voltou a exibir a imagem
do disco de ouro. - Ignorem o desenho no centro, por
enquanto, e concentrem-se nos símbolos ao redor da
beirada. - Ele iluminou cada uma das três faixas
alternadamente, do exterior para o interior. - Linear B dos
micênios. Linear A dos minoanos. Os símbolos de Phaistos.
Jack já havia adivinhado até aí, mas a confirmação ainda fez
seu coração disparar com excitação.
- Senhores, temos a nossa própria Pedra de Roseta.
Durante os minutos seguintes, Dillen explicou que os
micênios que controlaram Creta, depois da erupção do
Thera, originalmente não possuíam escrita própria e haviam
tomado emprestado os símbolos linear A dos marinheiros
minoanos que comerciavam com o continente grego. Sua
escrita, linear B, foi brilhantemente decifrada, logo depois da
Segunda Guerra Mundial, como uma versão antiga do grego.
Mas a linguagem dos minoanos permaneceu um mistério até
o início daquele ano, quando o maior esconderijo de tábuas
com escrita linear A foi descoberto em Cnossos. Por muita
sorte, várias das tábuas eram bilíngües e tinham também a
escrita linear B. Agora o disco de ouro oferecia a
extraordinária possibilidade de também decifrar os símbolos
dos discos de Phaistos.
- Não há símbolos de Phaistos em Cnossos e não há texto
bilíngüe para eles, - explicou Dillen. - Eu supus que ela seria
uma linguagem perdida, uma bem diferente do minoano ou
do grego micênio.
Os outros ouviam sem interromper enquanto Dillen
trabalhava metodicamente com os símbolos linear A e linear
B no disco de ouro, mostrando sua consistência com outros
exemplos de escrita da Creta da Idade do Bronze. Ele havia
disposto todos os símbolos em fileiras e em colunas para
estudar sua concordância.
- Eu comecei com o primeiro dos discos de Phaistos, aquele
encontrado cem anos atrás, - disse Dillen. - Assim como
vocês, pensei que este, provavelmente, seria mais
inteligível.
Dillen digitou no teclado e todos os trinta e quatro grupos de
símbolos do lado anverso apareceram com a respectiva
tradução fonética debaixo deles.
- Aqui está, leitura feita do centro para fora seguindo a
direção do homem caminhando e os símbolos de rosto,
como a lógica parece ditar.
Jack examinou rapidamente as linhas.
- Não reconheço nenhuma palavra linear nem vejo
nenhuma das combinações familiares de sílabas.
- Temo que você esteja certo. - Dillen pressionou as teclas
de novo e um outro dos trinta e quatro arranjos apareceu na
parte inferior da tela. - Aqui está uma leitura feita de trás
para a frente, em espiral da beirada para o centro. É a mesma
história. Absolutamente nada.
A tela ficou vazia e houve um breve silêncio.
- E o segundo disco? - perguntou Jack.
A expressão de Dillen revelou muito pouco, apenas um
vestígio de sorriso traindo sua excitação. Ele pressionou as
teclas e repetiu o exercício.
- Aqui está, em espiral para fora.
O coração de Jack quase sofreu um colapso quando
novamente não reconheceu nada nas palavras. Depois
começou a ver pares que pareciam estranhamente
familiares.
- Há alguma coisa aqui, mas não está muito claro.
Dillen permitiu que ele olhasse durante mais um instante
para a tela.
- De volta para o anterior, - ele estimulou.
Jack olhou para a tela de novo mais atentamente e de
repente bateu com força a mão sobre a mesa.
- É claro!
Dillen não pôde se conter por mais tempo e sorriu
abertamente, enquanto pressionava mais uma vez a tecla e a
seqüência aparecia na ordem inversa. Jack inspirou de modo
audível quando percebeu, de imediato, aquilo que eles
estavam procurando.
- Extraordinário, - ele murmurou. - Este disco data de mais
de dois mil anos antes do início da Idade do Bronze. No
entanto esta é a linguagem da escrita linear A, a linguagem
de Creta na época do naufrágio que estamos escavando. - Ele
mal podia acreditar no que estava dizendo. - Ele é minoano.
Naquele momento o intercomunicador emitiu um estalido
no Seaquest e interrompeu a conversa.
- Jack, venha imediatamente até o tombadilho. Há atividade
no Vultura. - O tom de voz de Tom York demonstrava
urgência.
Jack levantou-se imediatamente sem dizer palavra e correu
até a ponte de comando, com Costas logo atrás dele. Depois
de alguns segundos os dois homens estavam ao lado de York
e de Howe, seu olhar dirigido para a luz fraca das lâmpadas
distantes no horizonte.
No mar à frente havia uma ligeira agitação, um turbilhão de
gotículas que rapidamente foi reconhecido como o Zodiac
do Seaquest. Logo eles puderam distinguir Katya ao volante,
seu cabelo comprido esvoaçando ao vento. Jack segurou
com força o parapeito e as ansiedades das últimas horas
foram subitamente substituídas por uma sensação de alívio.
Graças a Deus ela estava bem.
Costas olhou para o amigo com afeto. Ele o conhecia muito
bem para saber que toda a vida emocional de Jack estava
rapidamente sendo envolvida pela pesquisa deles.
À medida que o barco se aproximava e os motores
diminuíam seu funcionamento, o ar preencheu-se com um
novo som, o ruído abafado de motores diesel à distância.
Jack agarrou o telescópio noturno e ajustou-o mirando o
horizonte. A estrutura cinzenta do Vultura ocupou a
imagem, que revelou seu casco baixo e ameaçador. De
repente uma onda branca apareceu na popa, um vagalhão
gigante tornou-se brilhante pela fosforescência provocada
pelo deslocamento do navio. Vagarosa e indolentemente,
como o despertar de um animal que não tem nada a temer, o
Vultura fez uma grande curva e desapareceu na escuridão, e
seu rastro permaneceu como a fumaça de um foguete
mesmo depois do navio ter sido engolido pela noite.
Jack abaixou o telescópio e olhou para a silhueta que acabava
de pular graciosamente sobre o parapeito. Ela sorriu e
acenou. Jack falou em voz baixa, suas palavras audíveis
apenas para Costas ao seu lado.
- Katya, você é um anjo.

7

O helicóptero abaixou rápido sobre as montanhas costeiras
da Turquia ocidental, seu rotor reverberando nas baías
profundas que recortavam a costa. Para o leste a aura rosada
da nova aurora revelava os contornos escarpados do platô da
Anatólia, e através do Egeu as formas fantasmagóricas das
ilhas mal podiam ser vistas através da bruma da manhã.
Jack soltou a coluna de controle do Lynx e ligou o piloto
automático. O helicóptero infalivelmente seguiria o curso
que ele havia planejado no seu computador náutico,
conduzindo-os para o seu destino programado, quase
quinhentas milhas náuticas em direção ao nordeste.
Uma voz familiar chegou pelo intercomunicador.
- Há algo que eu não compreendo sobre o disco de ouro, -
disse Costas. - Estou admitindo que ele foi feito por volta de
1600 antes de Cristo, pouco antes do naufrágio. No entanto,
o único paralelo para aqueles símbolos, que estão na faixa
exterior, data de quatro mil anos antes, no segundo disco de
Phaistos, de Creta.
Katya se juntou a eles.
- É espantoso que a linguagem da Creta da Idade do Bronze
já fosse falada pelos primeiros colonos neolíticos na ilha. A
decifração do professor Dillen revolucionará nosso retrato
sobre as origens da civilização grega.
Jack ainda se sentia orgulhoso pelo sucesso de Katya ao
neutralizar o confronto com o Vultura na noite anterior. A
libertação deles tinha sido uma espécie de pequeno milagre
e ele sabia disso. Ela disse que mostrara para Aslan retratos
do naufrágio romano que Jack havia tirado durante o
mergulho da semana anterior e o havia convencido de que
tudo o que fora encontrado eram ânforas de cerâmica, que
não valia à pena se interessar pelo navio naufragado e que o
Seaquest se encontrava na região apenas para testar um novo
equipamento de mapeamento.
Jack estava certo de que Katya não contara tudo, de que
havia mais do que ela queria ou era capaz de dizer. Tinha-
lhe feito inúmeras perguntas, mas ela permanecera de boca
fechada. Ele conhecia muito bem o mundo sombrio dos
acordos e contra-acordos, das permutas que a máfia fazia e
do suborno no qual os cidadãos da antiga União Soviética
eram obrigados a operar. Katya podia certamente ter feito o
seu próprio acordo com eles.
A ansiedade corrosiva escondida durante a teleconferência
enquanto ela ficara fora, tinha se transformado em um
enorme prazer em dar prosseguimento aos trabalhos.
Quando voltou, Katya recusou-se a descansar e juntou-se a
Jack e Costas enquanto eles estudavam atentamente o plano
do naufrágio e o estágio seguinte da escavação; embora tarde
da noite, o entusiasmo agora os motivava, uma vez que
sabiam não haver impedimentos a que o projeto seguisse seu
curso.
Foi só a garantia de Katya de que o Vultura não iria retornar
que havia persuadido Jack a empreender esse vôo matinal.
Esta deveria ser uma visita de rotina, uma inspeção planejada
ao irmão do Seaquest, o navio Sea Venture, no mar Negro,
mas agora havia um estímulo especial em razão dos relatos
de uma descoberta que começara na costa norte da Turquia.
- O que nenhum de vocês sabe, - disse Jack, - é que agora
temos uma data confiável para o disco de ouro. Ela chegou
por e-mail enquanto vocês dormiam. - Ele entregou um
pedaço de papel a Costas, que estava no assento do co-
piloto. Depois de um instante ouviu-se um grito de alegria.
- Data por hidratação! Eles conseguiram! - Costas, sempre
mais à vontade com as certezas da ciência do que com as
teorias que parecem nunca conseguir chegar a qualquer
conclusão exata, estava em seu elemento. - É uma técnica
refinada na IMU, - explicou ele a Katya. - Alguns minerais
absorvem uma quantidade minúscula de água em sua
superfície com o passar do tempo. A hidratação da crosta se
desenvolve de novo em superfícies que foram cinzeladas ou
formadas pelo homem, e assim pode ser usada para datar
pedras e artefatos de metal.
- O exemplo clássico é a obsidiana, - acrescentou Jack. - A
pedra vulcânica vítrea é encontrada no Egeu apenas na ilha
de Meios. Utensílios de obsidiana, encontrados em locais
onde caçadores se reuniam no continente grego, foram
datados por hidratação em 12000 antes de Cristo, a fase final
da Idade do Gelo. Esta é a primeira evidência de comércio
marítimo no mundo antigo.
- A datação por hidratação do ouro só foi possível mediante
um equipamento de alta precisão, - disse Costas. - A IMU
ganhou a liderança nesse tipo de pesquisa em razão do
número de vezes que encontramos ouro.
- Qual é a data? - perguntou Katya.
- As três faixas de símbolos foram impressas no meio do
segundo milênio antes de Cristo. A data estimada é 1600
antes de Cristo, podendo haver um erro de cem anos a mais
ou a menos.
- Isto coincide com o naufrágio! - Exclamou Katya.
- Dificilmente poderia ser muito antes, - salientou Jack. - A
faixa interior está escrita em micênio linear B, que só foi
desenvolvido em torno daquela época.
- Mas esta é apenas a data dos símbolos, a data em que eles
foram gravados no metal. Ela vem da hidratação da crosta
nos próprios símbolos. - Costas falou com uma excitação mal
contida. - O próprio disco é mais velho. Muito mais velho. E
o símbolo central encontrava-se no molde original. Alguém
quer adivinhar? - Ele mal parou de falar.
- Ele data de 6000 antes de Cristo.

Era uma brilhante manhã de domingo, a vista estendia-se
desimpedida em todas as direções. Eles estavam
sobrevoando o promontório noroeste da Turquia em direção
a Dardanelos, o estreito canal que divide a Europa da Ásia.
Para o oeste ele se amplia no mar de Mármara antes de se
reduzir no Bósforo, o estreito que conduz ao mar Negro.
Jack fez um leve ajuste no piloto automático e olhou sobre o
ombro de Costas. Galípoli estava claramente visível, a
grande faixa de terra que se sobressaía no Egeu e definia a
costa norte de Dardanelos. Imediatamente abaixo deles
situava-se a planície de Hissarlik, local da lendária Tróia. Eles
estavam em um vórtice da história, um lugar onde o mar e a
terra se estreitavam para dirigir para um ponto focal os
imensos deslocamentos de pessoas do sul para o norte e do
leste para o oeste, do tempo dos primeiros hominídeos até o
aparecimento do Islã. A paisagem tranqüila contradizia a
verdade dos conflitos sangrentos que essa movimentação
gerou, desde o cerco de Tróia até a carnificina em Galípoli
três mil anos mais tarde, durante a Primeira Guerra Mundial.
Para Jack e Costas esta não era uma terra de fantasmas, mas
um território familiar que os fazia lembrar de um feito
revolucionário e brilhante. Nessa região haviam realizado a
sua primeira escavação juntos, quando ambos estavam
estacionados na base da OTAN em Izmir. Um fazendeiro,
enquanto arava, havia descoberto algumas madeiras
escurecidas e fragmentos de armadura de bronze entre a
costa atual e as ruínas de Tróia. A escavação que fizeram
mostrou que o local era o contorno da costa na Idade do
Bronze, invadida pelo lodo, e revelou que os restos
carbonizados eram de uma série de galeras de guerra
queimadas em uma conflagração em torno de 1150 a.C.
Havia sido uma descoberta sensacional, os primeiros
artefatos encontrados da própria Guerra de Tróia, uma
revelação que fez os estudiosos olharem mais uma vez para
as lendas outrora descartadas como meias verdades. Para
Jack foi um ponto decisivo, a experiência que reacendeu sua
paixão pela arqueologia e pelos mistérios não solucionados
do passado.
- O.k., vamos tirar isso a limpo. - Costas estava tentando
juntar as revelações extraordinárias dos últimos dias em uma
espécie de todo coerente. - Primeiro é encontrado no Egito
um papiro que mostra que Platão não estava inventando a
lenda da Atlântida. O registro havia sido ditado para um
grego chamado Sólon por um sacerdote egípcio por volta de
580 antes de Cristo. A história era quase
incomensuravelmente antiga, datando de milhares de anos
antes do tempo dos faraós.
- O papiro também mostrou que a história de Platão é cheia
de imprecisões, - lembrou Jack. - O relato nunca chegou ao
mundo exterior porque ele foi roubado e perdido. O que
sobreviveu foi adulterado, uma mistura da descrição da
destruição dos minoanos, no meio do segundo milênio antes
de Cristo, com o que Sólon podia lembrar da Atlântida. A
confusão de Sólon induziu os estudiosos a equiparar a
história da Atlântida com a erupção do Thera e a destruição
dos palácios em Creta.
- Essa era a única interpretação plausível, - disse Jack. -
Sabemos agora que a Atlântida era uma espécie de cidadela,
não um continente ou uma ilha. Localizava-se à beira da
água, com um amplo vale e altas montanhas no interior. Ela
estava de alguma forma encimada por um símbolo de touro.
A alguns dias de caminhada havia uma catarata, e entre esta
e o Egito situava-se um mar cheio de ilhas. Em alguma época
entre sete ou oito mil anos atrás a Atlântida desapareceu
debaixo da água.
- E agora temos esse extraordinário mistério dos discos, -
disse Katya.
- O elo entre o papiro e os discos é aquele símbolo. Ele é
exatamente o mesmo, como a letra H com quatro braços de
cada lado.
- Acho que podemos seguramente chamá-lo de símbolo da
Atlântida, - declarou Katya.
- Ele é o único que não mostra concordância com um
símbolo linear A ou linear B, - disse Jack. - Pode se tratar de
um logograma que representa a própria Atlântida, como o
touro de Cnossos dos minoanos ou a coruja da Atenas
clássica.
- Uma coisa que me confunde, - disse Costas, - é o porquê
dos discos de argila e o disco de ouro terem sido feitos.
Maurice Hiebermeyer disse que o conhecimento sagrado era
passado oralmente de um sumo sacerdote a outro para
assegurar que permanecesse não corrompido, para mantê-lo
secreto. Então, por que eles precisavam de um decodificador
na forma desses discos?
- Eu tenho uma teoria acerca disso, - disse Jack.
Uma luz vermelha de aviso piscou no painel de
instrumentos. Jack mudou os controles para manuais e
engatou os dois tanques auxiliares de combustível
necessários para um vôo longo. Em seguida, revertendo para
o piloto automático, inseriu um CD-ROM no console e
puxou uma tela pequena do teto da cabine. Ela mostrava
uma longa procissão de escaleres deixando a cidade, os
habitantes observando das varandas das moradias dispostas
em terraços, ao longo da costa.
- O famoso afresco da marinha, encontrado nos anos 1960
na Casa do Almirante perto de Akrotiri, em Thera, era
usualmente interpretado como representando uma ocasião
cerimonial, talvez a consagração de um novo sumo
sacerdote.
Jack pressionou uma tecla e a imagem mudou para uma
fotografia aérea mostrando camadas de paredes em ruínas e
balaustradas projetando-se de um lado de um desfiladeiro.
- O terremoto que danificou o Partenon no ano passado
também desalojou o lado do desfiladeiro na costa do Paleo
Kameni, "Velho Queimado", a segunda maior ilhota do
grupo de ilhas de Thera. Ele expôs os restos do que parecia
ser um mosteiro no topo do desfiladeiro. Muito do que
sabemos sobre a religião minoana vem dos chamados
santuários situados sobre picos, recintos sagrados cercados
nos topos das colinas e montanhas de Creta. Agora
acreditamos que a ilha de Thera era o maior dentre todos
esses santuários.
- A casa dos deuses, a entrada dos mundos subterrâneos, -
propôs Costas.
- Algo assim, - replicou Jack. - O próprio santuário foi
destruído em pequenos fragmentos quando o Thera entrou
em erupção. Mas havia também uma comunidade religiosa,
enterrada sob cinzas e pedras-pomes, do outro lado da
caldeira.
- E a sua teoria sobre os discos? Perguntou Costas.
- Vou chegar lá, - disse Jack. - Primeiro vamos considerar o
nosso navio naufragado. A melhor suposição é de que o
naufrágio foi causado pela erupção do Thera, ele submergiu
com o choque de uma onda antes da explosão principal.
Os outros dois murmuraram um assentimento.
- Tenho para mim, no entanto que ele era mais do que
apenas um rico navio mercante. Pensem no carregamento.
Cálices de ouro e colares. Estátuas em ouro e marfim,
algumas quase em tamanho natural. Altares de libação
esculpidos em raro pórfiro egípcio. Os rítons de cabeça de
touro. Muito mais riqueza do que seria normalmente
confiada a um simples carregamento.
- O que você está sugerindo? - perguntou Costas.
- Acho que nós encontramos o tesouro dos sumos
sacerdotes de Thera, o repositório mais sagrado da
civilização da Idade do Bronze. Acredito que os discos eram
as propriedades mais cobiçadas dos sumos sacerdotes. O
disco de ouro era o mais antigo, exposto apenas nas
cerimônias mais sagradas, e originalmente só tinha o
símbolo central. Já o disco de argila, o mais antigo dos dois
discos Phaistos, era uma tábua de registro e não um objeto
venerado. Ele continha uma chave para o conhecimento,
mas estava escrito em símbolos antigos que somente os
sacerdotes podiam decifrar. Em seguida aos terremotos de
advertência, temendo um apocalipse iminente, o sumo
sacerdote ordenou que esses símbolos fossem gravados ao
redor da beirada do disco de ouro. Eles formavam um léxico,
uma concordância dos antigos símbolos no disco de argila
com as escritas predominantes linear A e B. Qualquer
letrado minoano perceberia que os arranjos silábicos eram
uma versão ancestral de sua própria linguagem.
- Então, era uma apólice de seguro, - sugeriu Katya. - Um
livro de código para a leitura do disco de argila no caso de
todos os sumos sacerdotes virem a morrer.
- Sim, - Jack voltou-se para ela. - Juntamente com o
magnífico ríton em forma de cabeça de touro, os
mergulhadores voltaram com um monte de varetas em
marfim e ébano, primorosamente gravadas com imagens das
grandes deusas-mãe. Achamos que elas eram os bastões
sagrados dos minoanos, peças rituais como os bastões dos
bispos e cardeais. A meu ver essas peças acompanhavam o
próprio sumo sacerdote quando ele escapou do santuário da
ilha.
- E os discos de Phaistos?
- Ao mesmo tempo que mandou gravar os símbolos no
disco de ouro, o sumo sacerdote ordenou que fosse feita
uma réplica do antigo disco de argila, aquele que parecia
conter um texto similar, mas que de fato não tinha
significado. Como o professor Dillen disse, a réplica era uma
maneira de impedir os estranhos de procurar significado
demais nos símbolos. Apenas os sacerdotes teriam
conhecimento do verdadeiro sentido do texto e teriam
acesso à concordância no disco de ouro.
- Como eles foram parar em Phaistos? - perguntou Costas.
- Acho que originalmente eles estavam no mesmo
repositório que o disco de ouro, no mesmo almoxarifado no
templo da ilha de Thera, - disse Jack. - O sumo sacerdote os
enviou em um primeiro carregamento que alcançou Creta
com segurança. A cidade de Phaistos deve ter dado a
impressão de ser um refúgio óbvio, muito acima do mar e
protegida do vulcão, ao norte, pelo Monte Ida.
- É um centro religioso, - acrescentou Katya.
- Próximo ao palácio se encontra Hagia Triadha, um
complexo de ruínas que há muito deixa os arqueólogos
perplexos. Foi onde ambos os discos foram descobertos com
um intervalo de cem anos. Atualmente achamos que ele era
uma espécie de seminário, um centro de treinamento de
sacerdotes que seriam depois enviados aos santuários
localizados sobre picos.
- Mas Phaistos e Hagia Triadha foram ambas destruídas na
época da erupção, - exclamou Katya. - Arrasadas por um
terremoto e nunca mais reocupadas, os discos foram
enterrados nas ruínas apenas alguns dias depois de chegarem
de Thera.
- Eu tenho uma última pergunta, - disse Costas. - Como o
sumo sacerdote do templo de Sais no delta do Nilo veio a
saber da Atlântida, quase mil anos depois da erupção do
Thera e da perda desses discos?
- Acho que os egípcios conheciam a história através da
mesma fonte que remontava à pré-história, ela sobreviveu
separadamente em cada civilização. Ela era sagrada,
transmitida escrupulosamente sem embelezamento ou
correção, como mostrado pelos detalhes idênticos do
símbolo da Atlântida tanto no papiro como nos discos.
- Temos que agradecer a Sólon, o Legislador, pela conexão, -
disse Katya. - Se ele não tivesse copiado minuciosamente
aquele símbolo ao lado da palavra grega Atlântida talvez não
estivéssemos aqui.
- Os discos de Phaistos não tinham valor, eram feitos de
cerâmica, - refletiu Costas, - valiam apenas pelos símbolos.
Mas o disco encontrado no naufrágio é de ouro puro, talvez
o maior lingote que sobreviveu desde a pré-história. - Ele se
virou em seu assento e olhou de modo penetrante para Jack.
- Meu pressentimento é de que existem mais coisas aqui do
que parece à primeira vista. Acho que o nosso pesa-papéis
de ouro, de alguma maneira, irá desvendar um mistério
ainda maior.
Haviam passado o mar de Mármara e estavam sobrevoando
o Bósforo. O ar claro do Egeu havia se transformado em um
nevoeiro de poluição causado pela expansão de Istambul.
Eles mal podiam distinguir o Chifre de Ouro, a pequena baía
onde os colonos gregos fundaram Bizâncio no século VIII
a.C. Ao lado dela uma floresta de minaretes sobressaía na
bruma da manhã. No promontório puderam distinguir o
palácio de Topkapi, outrora o próprio símbolo da decadência
oriental e agora um dos excelentes museus arqueológicos do
mundo. De frente para o mar situavam-se as grandes
muralhas de Constantinopla, capital do Império Bizantino,
que manteve Roma viva no leste até que a cidade caiu sob o
domínio dos turcos em 1453.
- Ela é uma das minhas cidades favoritas, - disse Jack. -
Assim que você consegue se orientar dentro dela, ela lhe
oferece a história mais rica que possa imaginar.
- Quando isto terminar, eu gostaria que você me levasse até
lá, - disse Katya.
Mais adiante estava o mar Negro, uma costa muito ampla de
ambos os lados do Bósforo, aparentemente se estendendo
até o infinito. O GPS mostrou a etapa final da viagem
diretamente em direção ao leste até uma posição cerca de
dez milhas náuticas ao norte do porto turco de Trabzon.
Jack sintonizou o canal da IMU no retransmissor VHF e
ligou o misturador de freqüências, escolhendo a combinação
adequada para entrar em contato com a tripulação do Sea
Venture.
Momentos mais tarde uma luz azul piscou no canto direito
inferior da tela acima do console central.
- E-mail chegando, - disse Costas.
Jack clicou o mouse duas vezes e esperou enquanto aparecia
o endereço.
- É do professor Dillen. Talvez seja a sua tradução do disco
de Phaistos.
De seu assento traseiro, Katya inclinou-se para a frente, e
eles esperaram em silenciosa expectativa. Logo todas as
palavras estavam visíveis na tela.

Meu caro Jack,
Desde o nosso telefonema na noite passada, trabalhei tão
rápido quanto possível para completar a tradução. Contei
com a cooperação de colegas ao redor do mundo. O arquivo
linear A encontrado em Cnossos no ano passado foi dividido
entre muitos estudiosos diferentes para ser examinado, e
você sabe quão protecionistas os acadêmicos podem ser com
seus dados inéditos - lembre do trabalho que tivemos para
obter acesso aos Manuscritos do Mar Morto quando
começamos nossa pesquisa sobre Sodoma e Gomorra.
Felizmente muitos dos estudiosos da epigrafia minoana são
antigos alunos meus. Apenas o anverso do segundo disco é
significativo. A tentativa para esconder o verdadeiro texto é
maior do que pensávamos.
Nosso símbolo misterioso aparece duas vezes e eu o traduzi
simplesmente como Atlântida. Eis o texto:

Abaixo do signo do touro repousa o deus águia com as asas
estendidas. (Perto de) seu rabo (está) a Atlântida cercada de
paredes de ouro, a maior porta de ouro da (cidadela?). (As)
pontas de suas asas tocam o nascer e o pôr-do-sol. (No)
nascer do sol (está) a montanha de fogo e de metal. (Aqui
está) o salão dos sumos sacerdotes [Sala do trono? Câmara de
audiência?]. Acima (aqui está) a Atlântida. (Aqui está) a
deusa-mãe. (Aqui é) o lugar (dos) deuses (e) o depósito (do)
conhecimento.

Não sei o que fazer com isto. Será um enigma? Maurice e eu
estamos ansiosos para saber o que você pensa a respeito.
Seu sempre amigo,
James Dillen.

Eles leram a tradução várias vezes em silêncio. Costas foi o
primeiro a falar, sua mente, como sempre, procurando
praticidade onde os outros vislumbravam apenas mistério.
- Isto não é um enigma. É o mapa de um tesouro.



8

- Jack! Bem-vindo a bordo!
A voz sobressaiu-se à barulheira da turbina do motor do
Rolls-Royce Gem, enquanto eles desaceleravam. Jack
acabara de sair da aeronave pisando no flutuador inflável,
uma modificação naval da configuração usual do trem de
aterrissagem com rodas, o que permitia que os helicópteros
da IMU pousassem na água. Ele apressou-se em ir apertar a
mão estendida de Malcolm Macleod, inclinando-se para
baixo enquanto o rotor diminuía a velocidade para parar.
Costas e Katya o seguiam de perto. Quando eles desceram,
vários tripulantes correram até o Lynx para amarrá-lo ao
tombadilho e começaram a descarregar as malas de
equipamentos do compartimento de carga.
O Sea Venture diferia do Seaquest apenas quanto à variedade
de equipamentos adequados para o seu desempenho como
navio-chefe de pesquisa da IMU em mar profundo.
Recentemente, a IMU havia conduzido a primeira inspeção
submersível tripulada na Mariana Trench situada no Pacífico
ocidental. Seu papel atual no mar Negro começou com uma
análise sedimentológica de rotina, mas havia agora tomado
uma nova e surpreendente dimensão.
- Sigam-me até o console da ponte de comando.
Malcolm Macleod conduziu-os para baixo da mesma tela de
forma côncava que eles tinham no Seaquest. Macleod era
equivalente a Jack no departamento de oceanografia, um
homem cuja perícia Jack havia aprendido a respeitar muito
através dos inúmeros projetos em que colaboraram ao redor
do mundo.
O escocês ruivo e corpulento sentou-se na cadeira do
operador ao lado do console.
- Bem-vindos ao Sea Venture. Acredito que sua inspeção
pode esperar até que eu lhes mostre o que encontrei.
Jack aquiesceu.
- Vá em frente.
- Vocês ouviram falar sobre a crise de salinidade de Messina?
Jack e Costas concordaram, mas Katya pareceu perplexa.
- O.k. Vou contar para esclarecer nossa nova colega sobre o
assunto. - Macleod sorriu para Katya. - Foi assim chamada
depois que depósitos foram encontrados perto do Estreito de
Messina, na Sicília. No início de 1970 o navio de perfuração
em águas profundas, o Glomar Challenger, pegou amostras
na parte central do Mediterrâneo. Abaixo do solo do oceano
eles encontraram uma imensa camada de material volátil
compactado, atingindo em certos locais três quilômetros de
espessura. Ela se formou durante o último Mioceno, a era
geológica mais recente antes da nossa, cerca de cinco
milhões e meio de anos atrás.
- Volátil? - perguntou Katya.
- Principalmente sal-gema, sal de rocha comum, o material
deixado quando a água do mar evapora. Acima e abaixo é
tudo calcário argiloso, sedimentos marinhos normais de
argila e carbonato de cálcio. A camada de sal formou-se ao
mesmo tempo através do Mediterrâneo.
- O que isto significa?
- Significa que o Mediterrâneo evaporou.
Katya pareceu incrédula.
- O Mediterrâneo evaporou? Ele todo?
Macleod aquiesceu.
- O que precipitou isto foi uma imensa queda na temperatura
atmosférica, um período de tempo mais frio do que o da
nossa recente Idade do Gelo. O gelo polar se alastrou por
inúmeros oceanos do mundo, fazendo com que o nível do
mar baixasse até quinhentos metros. O Mediterrâneo ficou
fechado e começou a secar, finalmente deixando apenas
lodo salobro na parte mais profunda das bacias.
- Como o mar Morto, - sugeriu Katya.
- Ainda mais salino; de fato, não era mais líquido.
Demasiado salgado para muitas formas de vida, por isso a
escassez de fósseis no local. Enormes áreas ficaram desertas.
- Quando ele se encheu de novo?
- Quase dois mil anos mais tarde. Deve ter sido um processo
dramático, o resultado de uma fusão maciça de gelo nos
pólos. Os primeiros gotejamentos do Atlântico deveriam
tornar-se torrentes, a maior queda d'água de todos os
tempos, centenas de vezes maior que as cataratas do Niágara,
esculpindo o Estreito de Gibraltar até sua profundidade atual.
- De que maneira isto é importante para o mar Negro? -
perguntou Katya.
- A crise de salinidade de Messina é um fato cientificamente
estabelecido. - Macleod olhou sutilmente para Jack. - Isso
ajudará a acreditar no inacreditável, que é o que vou lhes
contar em seguida.
Eles reuniram-se atrás da estação do veículo de bordo do Sea
Venture, operado por controle remoto, do outro lado do
console. Macleod convidou Katya para sentar-se frente à tela
e mostrou-lhe como usar o joystick.
- Pense nisso como sendo um simulador de vôo. Use o
joystick para voar da maneira que quiser, para cima ou para
baixo, para os lados ou para trás. O controle de velocidade é
o mostrador que está ao lado da sua mão esquerda.
Macleod pôs sua mão sobre a de Katya e executou uma volta
completa no sentido dos ponteiros de um relógio, puxando o
joystick em círculo e inclinando-o ao máximo para baixo. A
tela de vídeo, em formato grande, permaneceu
completamente escura, mas o indicador de direção girou
360 graus. O instrumento de profundidade indicava 135
metros e um conjunto de coordenadas GPS mostrava a
posição do ROV com uma precisão de desvio de menos de
meio metro.
Macleod puxou o joystck de volta ao seu alinhamento
padrão.
- Um giro em queda livre seguido por uma perfeita
recuperação. - Ele sorriu para Jack, que lembrava bem de
seus combates aéreos a curta distância, por meio de ROV,
quando haviam treinado juntos nas Bermudas usando as
instalações com equipamentos para pesquisa em oceano
profundo da IMU.
- Os ROVs já têm sido amplamente utilizados por equipes
científicas há duas décadas, - explicou Macleod. - Mas nos
últimos anos a tecnologia tornou-se progressivamente
refinada. Para a inspeção exploratória usamos AUVs,
veículos operados de maneira autônoma, que têm conjuntos
de sensores com múltiplas aplicações incluindo vídeo e um
sonar de abrangência lateral. Assim que um alvo é
identificado nós preparamos ROVs de controle direto. O
Mark 7 da IMU que estamos operando aqui não é muito
maior do que uma pasta para papéis, é bastante pequeno para
penetrar em um respiradouro subaquático.
- Você pode girar um desses equipamentos em um espaço
muito pequeno, - acrescentou Costas. - E o controle da
radiofreqüência pelo Doppler significa que ele pode andar
até quinze milhas náuticas horizontalmente ou ir direto para
o abismo mais profundo.
- Estamos quase lá, - interrompeu Macleod. - Ativando os
refletores.
Ele inclinou o joystick, o que acionou vários interruptores
no painel do console. Repentinamente a tela se iluminou, o
negrume foi substituído por uma luz fraca e brilhante
emitida por pequenos pontos.
- Lodo, - explicou Macleod. - Nossas luzes estão refletindo
partículas que foram agitadas na água.
Começaram a distinguir algo mais substancial, um fundo
sombrio que gradualmente tornou-se uma visão mais clara.
Era o solo do oceano, um deserto cinzento sem traços
característicos. Macleod ligou o radar do ROV de relevo do
terreno, que mostrou o solo oceânico inclinando-se 30 graus
a partir do sul.
- Profundidade 148 metros.
Uma estrutura estranha, como uma torre, subitamente
tornou-se visível, e Macleod parou o ROV a alguns metros
dela.
- Mais um dos aparelhos engenhosos de Costas. Uma
escavadora operada por controle remoto, capaz de perfurar
partes duras, cem metros abaixo do solo oceânico, ou
transportar grandes volumes de sedimentos.
Com a mão livre Macleod pegou algo dentro de uma caixa ao
lado de seu assento.
- E foi isto que encontramos logo abaixo do solo oceânico.
Ele passou para Katya um pequeno objeto negro do tamanho
do seu punho. Ela o sopesou em sua mão e lançou um olhar
zombeteiro.
- Um seixo de praia?
- Um objeto polido à beira-mar. Ao longo de todo este
declive nós encontramos evidências de um antigo litoral,
cento e cinqüenta metros de profundidade e dez milhas
náuticas da costa. Mais surpreendente ainda é sua data. Esta
é uma das descobertas mais notáveis que jamais fizemos.
Macleod escolheu dentre uma série de coordenadas GPS e a
imagem da tela começou a se mover, o solo do mar
iluminado por holofotes mostrando pouca alteração
enquanto o ROV se mantinha na mesma profundidade do
contorno da praia.
- Eu o coloquei no piloto automático. Faltam quinze
minutos até o alvo.
Katya devolveu o seixo enegrecido.
- Será que isto poderia estar associado com a crise de
salinidade de Messina?
- Nós certamente o situaríamos antes da chegada dos
humanos - ou melhor, hominídeos - nesta região, dois
milhões de anos atrás.
- Mas?
- Mas estaríamos errados. Totalmente errados. Contornos da
costa submersos são, em geral, comuns em nossa linha de
trabalho, mas este é uma grande novidade. Sigam-me e vou
lhes mostrar.
Macleod fez o download de um mapa isométrico gerado por
computador do mar Negro e do Bósforo.
- A relação entre o Mediterrâneo e o mar Negro é uma
espécie de microcosmos da relação entre o Atlântico e o
Mediterrâneo, - ele explicou. - O Bósforo tem apenas cem
metros de profundidade. Qualquer rebaixamento do
Mediterrâneo, abaixo daquela profundidade, e ele se torna
uma ponte de terra, isolando o mar Negro. Foram estas
condições que permitiram aos primeiros hominídeos da
Europa mudarem-se da Ásia. - Ele movimentou o cursor
para destacar o sistema de três rios que levam ao mar.
- Quando o Bósforo era uma ponte de terra, a evaporação fez
com que o mar Negro baixasse, da mesma forma que o
Mediterrâneo durante a crise de salinidade. Mas o mar
Negro foi de novo preenchido pela afluência de três rios, o
Danúbio, o Dnieper e o Don. Alcançou-se uma média em
que a taxa de evaporação igualava a taxa de afluência. Daí em
diante houve uma mudança em relação à salinidade, e o mar
Negro se tornou, conseqüentemente, um vasto lago de água
fresca.
Macleod pressionou uma tecla e o computador começou a
simular os eventos que estava descrevendo, mostrando o
Bósforo se tornar seco e o mar Negro baixar até um ponto
cerca de 150 metros abaixo do atual nível do mar e 50
metros abaixo do solo do Bósforo onde seu nível era
mantido pela afluência dos rios.
Ele girou a cadeira e olhou para os outros.
- Agora a surpresa. Esta não é uma imagem do início do
Plistoceno, das profundezas da Idade do Gelo. Vocês estão
olhando para o mar Negro como ele era menos de dez mil
anos atrás.
Katya pareceu assombrada.
- Você quer dizer depois da Idade do Gelo?
Macleod concordou vigorosamente com a cabeça.
- A glaciação mais recente chegou ao ponto máximo cerca
de vinte mil anos atrás. Acreditamos que o mar Negro foi
separado algum tempo antes disso, e que já havia baixado os
cento e cinqüenta metros. Nossa praia foi o litoral durante os
doze mil anos subseqüentes.
- Então, o que aconteceu?
- Repetiu-se a crise de salinidade de Messina. As geleiras
derreteram, o Mediterrâneo subiu, apareceram cascatas
sobre o Bósforo. A causa imediata pode ter sido uma fase de
recuo cerca de sete mil anos atrás no lençol de gelo da
Antártida Ocidental. Acreditamos que levou apenas um ano
para o mar Negro alcançar seu nível atual. Com um fluxo
pleno de quase vinte quilômetros cúbicos vertidos por dia,
resultando em um aumento de cerca de quarenta
centímetros por dia ou três metros por semana.
Jack apontou para a parte inferior do mapa.
- Você poderia nos dar um close-up disto?
- Certamente. - Macleod digitou uma seqüência e a tela
mostrou um close da costa norte da Turquia. O mapeamento
isométrico do terreno continuava a apresentar a topografia
da terra antes da inundação.
Jack moveu-se para a frente enquanto falava.
- Estamos atualmente onze milhas náuticas distantes da costa
norte da Turquia, digamos dezoito quilômetros, e a
profundidade do mar abaixo de nós é de cerca de cento e
cinqüenta metros. Uma inclinação constante em relação ao
litoral atual significaria um aumento de cerca de dez metros
para cada quilômetro e meio em direção ao interior.
Digamos uma proporção de um para cento e cinqüenta. Este
é um declive bastante suave, pouco perceptível. Se o mar
levantou tão depressa quanto você indicou, então estamos
olhando para trezentos ou quatrocentos metros de água
afluindo por semana, ou seja, cinqüenta metros por dia.
- Ou até mais, - disse Macleod. - Antes da inundação, muito
do que se situa abaixo de nós estava apenas a alguns metros
acima do nível do mar, com uma inclinação mais forte na
proximidade da costa atual, quando começa a subir o platô
da Anatólia. Em poucas semanas vastas áreas teriam sido
inundadas.
Jack olhou para o mapa durante alguns instantes, em
silêncio.
- Estamos falando do período neolítico inicial, o primeiro
período de exploração agrícola, - ele refletiu. - Quais teriam
sido as prováveis condições daqui?
Macleod sorriu.
- Nossos paleoclimatologistas têm feito horas extras
trabalhando sobre isto. Eles fizeram uma série de simulações
com todas as variáveis possíveis para reconstruir as
condições ambientais entre o final do Plistoceno e a
inundação.
- E?
- Eles acreditam que esta era a região mais fértil do Oriente
Próximo.
Katya assobiou baixinho.
- Esse poderia ser um quadro completamente novo da
história da humanidade. Uma faixa de terra com uma largura
de vinte quilômetros, centenas de quilômetros de
comprimento, em uma das áreas-chave para o
desenvolvimento da civilização. E nunca antes explorada
pelos arqueólogos.
Macleod estava estremecendo de excitação.
- E agora a razão pela qual vocês estão aqui. É hora de voltar
ao monitor do ROV.
O fundo do oceano estava agora mais ondulado, com rochas
ocasionais aflorando e sulcos de depressões onde outrora
haviam existido ravinas e vales de rios. A medida de
profundidade mostrava que o ROV estava acima da
superfície de terra submersa, uns quinze metros acima e um
quilômetro para dentro da antiga costa. As coordenadas GPS
estavam começando a convergir com os alvos programados
por Macleod.
- O mar Negro deveria ser um paraíso dos arqueólogos, -
disse Jack. - Os cem metros superiores têm baixo teor de sal,
uma relíquia do lago de água fresca e um resultado da
afluência de rios. As perfuratrizes marinhas, tais como o
molusco que fura o casco dos navios, chamado Teredo
novalis, requerem um ambiente mais salino, assim os
madeiramentos antigos podem sobreviver aqui em
condições em que não são corrompidos. Sempre sonhei em
encontrar um trirreme, um antigo barco de guerra
guarnecido de remos.
- Mas é um pesadelo para os biólogos, - contou Macleod. -
Abaixo de cem metros a água está envenenada com gás
sulfídrico, o resultado de uma alteração química da água do
mar quando as bactérias a usam para digerir enormes
quantidades de matéria orgânica que chega com a afluência
dos rios. E nas profundezas do abismo é ainda pior. Quando
as águas altamente salinas do Mediterrâneo caíram como
uma cachoeira sobre o Bósforo, elas afundaram quase
duzentos metros até a parte mais profunda do oceano. Ainda
estão lá, uma camada estagnada com uma espessura de
duzentos metros, incapaz de acolher qualquer vida. É uma
das condições ambientais mais nocivas do mundo.
- Na base da OTAN em Izmir interroguei um tripulante de
submarino que havia desertado da esquadra soviética do mar
Negro, - murmurou Costas. - Um engenheiro que havia
trabalhado em sondagens ultra-secretas do fundo do mar.
Ele afirmava ter visto navios naufragados imponentemente
assentados sobre o solo oceânico com seu conjunto de cabos
intactos. Ele me mostrou uma foto onde até se podia
distinguir cadáveres humanos, uma confusão de formas
espectrais envolvidas em salmoura. É uma das coisas mais
assombrosas que jamais vi.
- Quase tão notável quanto esta.
Uma luz vermelha piscou no canto direito inferior da tela
quando a posição do GPS convergiu. Quase
simultaneamente o solo oceânico se transformou em uma
cena tão extraordinária que eles ficaram sem respirar.
Diretamente à frente do ROV o holofote refletiu um
complexo de construções baixas, seus tetos horizontais
fundindo-se uns com os outros como em um povoado
indígena. Escadas de cordas conectavam as salas de baixo
com as de cima. Tudo estava coberto com uma camada
fantasmagórica de lama semelhante à cinza de uma erupção
vulcânica. Era uma imagem assombrada e desoladora,
embora fizesse seus corações se acelerarem de excitação.
- Fantástico, - exclamou Jack. - Podemos olhar mais de
perto?
- Vou me aproximar até onde estávamos quando lhe
telefonei ontem.
Macleod mudou o controle para manual e dirigiu o ROV até
uma entrada no topo de um dos tetos. Manuseando com
cuidado o joystick ele entrou na construção, movimentando
vagarosamente a câmera pelas paredes. Elas estavam
decoradas com desenhos esculpidos apenas visíveis na
escuridão, ungulados de pescoço comprido, talvez cabras
selvagens, bem como leões e tigres saltando com os
membros estendidos.
- Almofariz hidráulico, - murmurou Costas.
- O quê? - perguntou Jack distraidamente.
- Só assim estas paredes poderiam ter sobrevivido sob a água.
A mistura deve conter um agente hidráulico de ligação. Eles
tinham acesso ao pó vulcânico.
No lado oposto da sala submersa havia uma forma que podia
ser instantaneamente reconhecida por qualquer estudante da
pré-história. Era a forma em U de chifres de touro, esculpida
em tamanho maior que o real e incrustada em um amplo
pedestal similar a um altar.
- Isto é quase do período neolítico. Não há dúvida. - Jack
estava muito entusiasmado, sua atenção completamente
focalizada nas extraordinárias imagens que via à sua frente. -
Este é um relicário familiar, exatamente como um que foi
escavado mais de trinta anos atrás em Çatal Hüyük.
- Onde? - perguntou Costas.
- Na Turquia central, na planície de Konya, cerca de
quatrocentos quilômetros ao sul daqui. Provavelmente a
primeira cidade do mundo, uma comunidade agrícola
estabelecida dez mil anos atrás, no início da agricultura.
Uma conglomeração bem compacta de construções de tijolo
de barro com estruturas de madeira como estas.
- Um local único, - disse Katya.
- Até agora. Isto muda tudo.
- Há mais coisas, - disse Macleod. - Muito mais. O sonar
mostra anomalias como estas ao longo da costa antiga até
onde pudemos inspecionar, cerca de trinta quilômetros de
cada lado. Elas ocorrem a cada dois quilômetros e cada uma
é indubitavelmente uma nova aldeia ou propriedade rural.
- É surpreendente. - A mente de Jack estava acelerada. - Esta
região deve ter sido incrivelmente produtiva, sustentando
uma população maior do que a região fértil da Mesopotâmia
e do Oriente. - Ele olhou para Macleod com um amplo
sorriso no rosto. - Para um especialista em ventos
hidrotermais em oceano profundo, você fez um trabalho
satisfatório para um dia de serviço.


9

O Sea Venture deixou um rastro de espuma branca enquanto
ia rumo ao sul a partir de sua posição acima da antiga costa
submersa. O céu estava claro, mas o mar escuro oferecia um
contraste que se opunha ao azul profundo do Mediterrâneo.
Mais adiante apareciam indistintamente as florestas em
declive ao norte da Turquia e a crista do platô da Anatólia, a
cordilheira que marcava o início da região montanhosa da
Ásia Menor.
Assim que o ROV foi recuperado, o Sea Venture dirigiu-se
rapidamente em direção a sua base de abastecimento em
Trabzon, o porto no mar Negro cujas construções caiadas se
aninhavam contra a costa em direção ao sul. Katya estava
aproveitando a primeira oportunidade de relaxar desde a sua
chegada em Alexandria, três dias antes, seu cabelo
esvoaçando na brisa enquanto tirava a roupa e ficava em um
biquíni que deixava muito pouco para a imaginação. Ao lado
dela, no tombadilho, Jack estava achando difícil se
concentrar em sua conversa com Costas e Macleod.
Costas estava dando sua opinião a Macleod sobre o melhor
meio de mapear a aldeia neolítica submersa, evocando seu
sucesso com a fotocartografia no navio minoano naufragado.
Eles haviam concordado que o Seaquest se juntaria ao Sea
Venture no mar Negro o mais depressa possível, o
equipamento e a perícia deles eram essenciais para uma
investigação completa. Um outro navio já saíra de Cartago
para auxiliar no local do naufrágio e poderia agora ser
controlado do Seaquest.
- Se o mar estava subindo quarenta centímetros por dia
depois que se abriu uma fenda no Bósforo, - disse Costas, sua
voz elevando-se acima do ruído do vento, - então isso teria
sido bastante óbvio para a população costeira. Depois de
alguns dias eles teriam adivinhado que o prognóstico, a
longo prazo, não era bom.
- Certo, - concordou Macleod. - A aldeia neolítica está dez
metros mais alta do que a linha da antiga costa. Eles teriam
cerca de um mês para abandonar o local. Isto explicaria a
ausência de artefatos nas salas que vimos.
- Este poderia ser o dilúvio bíblico? - arriscou Costas.
- Na verdade, cada civilização tem um mito sobre o dilúvio,
mas a maioria deles deve estar mais relacionada com
inundações provocadas por rios e não ocasionadas por algum
dilúvio oceânico, - disse Jack. - Inundações catastróficas
produzidas por rios eram mais prováveis nos tempos antigos,
antes que as pessoas aprendessem a construir aterros e canais
para controlar as águas.
- Esta sempre pareceu ser a base mais provável para o épico
de Gilgamesh - disse Katya. - Uma história sobre dilúvio
escrita em doze tabuletas de argila por volta de 2000 antes
de Cristo, descobertas nas ruínas de Nínive no Iraque.
Gilgamesh era um rei sumério de Uruk, na margem esquerda
do rio Eufrates, um lugar que foi estabelecido antes do fim
do sexto milênio antes de Cristo.
- O dilúvio bíblico pode ter tido uma origem diferente, -
acrescentou Macleod. - A IMU tem examinado a costa
mediterrânea de Israel e já encontrou evidências de
atividade humana que datam do final da Idade do Gelo, na
época da grande fusão do gelo, doze mil anos atrás. A cinco
quilômetros longe da costa encontramos instrumentos de
pedra e montes de cascos de animais onde caçadores
paleolíticos se reuniam antes que a região ficasse submersa.
- Você está sugerindo que os israelitas do Antigo
Testamento conservaram alguma memória desses eventos? -
perguntou Costas.
- A tradição oral pode sobreviver milhares de anos,
sobretudo em uma sociedade firmemente unida. Porém
alguns de nossos agricultores que se deslocaram do mar
Negro poderiam ter se estabelecido em Israel.
- Não se esqueçam da Arca de Noé, - disse Jack. - Uma
grande embarcação construída após avisos de um dilúvio.
Pares de cada espécie de animal para procriação. Pense nos
nossos agricultores do mar Negro. O mar teria sido sua
principal rota de fuga e eles devem ter levado consigo tantos
animais quantos conseguiram, em pares, para procriar a fim
de iniciar uma nova população.
- Acredito que eles não possuíam embarcações grandes
naquela época, - disse Costas.
- Os construtores navais da era neolítica podiam construir
longas embarcações capazes de transportar várias toneladas
de carga. Os primeiros agricultores em Chipre possuíam bois
selvagens gigantes, os ancestrais do gado de hoje, bem como
porcos e veados. Nenhuma dessas espécies era nativa e só
poderiam ter sido levadas por embarcações. Isso aconteceu
por volta de 9000 antes de Cristo. Provavelmente o mesmo
aconteceu em Creta mil anos depois.
Costas coçou o queixo pensativamente.
- Então, a história de Noé pode conter um grão de verdade,
não uma arca enorme, mas muitas embarcações menores
transportando agricultores e um conjunto de animais
domésticos do mar Negro.
Jack concordou.
- Esta é uma idéia atraente.
Os motores do Sea Venture desaceleraram quando ele se
dirigiu para a entrada do porto em Trabzon. Do lado leste do
cais eles podiam ver as silhuetas cinzentas de dois "classe
Dogan FBP-57", dois barcos de ataque rápido que faziam
parte da resposta da Marinha turca à crescente epidemia de
contrabando no mar Negro. Os turcos assumiram uma
posição inflexível, lutando de forma dura e imediata e
atirando para matar. Jack sentiu-se tranqüilizado pelo que
via, sabendo que seus contatos na Marinha turca
assegurariam uma resposta rápida se eles encontrassem
qualquer problema nas águas territoriais.
Eles estavam parados perto da balaustrada no tombadilho
superior quando o Sea Venture se deslocou lentamente para
o cais ocidental. Costas observou com cuidado as ladeiras
cheias de florestas acima da cidade.
- Para onde eles foram depois do dilúvio? Eles não seriam
capazes de praticar a agricultura aqui.
- Tiveram que fazer uma grande viagem para o interior, -
concordou Jack. - E era uma população considerável, pelo
menos dez mil pessoas, a julgar pelo número de
estabelecimentos que vimos através da leitura do sonar.
- Então eles se dividiram.
- Pode ter havido um êxodo organizado dirigido por alguma
autoridade central, a fim de assegurar uma oportunidade
maior de encontrar um novo território, um que fosse mais
adequado para a população inteira. Alguns foram para o sul
por aquele cume, outros para o leste e outros mais para o
oeste. Malcolm mencionou Israel. Há, obviamente, outras
destinações.
Costas falou de maneira excitada.
- As primeiras civilizações. Egito. Mesopotâmia. O Vale do
Indus. Creta.
- Isto não é tão disparatado. - As palavras vinham de Katya,
que havia se sentado e estava agora totalmente absorvida na
discussão. - Um dos aspectos mais impressionantes sobre a
história das línguas é que a maioria delas se desenvolveu a
partir de uma raiz comum. Na Europa, na Rússia, no Oriente
Médio, no subcontinente da índia, muitas das línguas faladas
hoje têm uma única origem.
- Indo-européia, - esclareceu Costas.
- Uma antiga língua-mãe que muitos lingüistas já cogitaram
ter surgido na região do mar Negro. Podemos reconstruir
seu vocabulário através de palavras mantidas em comum por
línguas posteriores, tais como o sânscrito pitar, o latim pater
e o alemão vater, a origem da palavra inglesa father.
- E as palavras para a agricultura? - perguntou Costas.
- O vocabulário mostra que eles aravam a terra, usavam
roupas de lã e trabalhavam o couro. Possuíam animais
domesticados tais como bois, porcos e carneiros. Tinham
estruturas sociais complexas e uma diferenciação de
riquezas. Adoravam uma grande deusa-mãe.
- O que você está sugerindo?
- Muitos acreditam que a expansão indo-européia ocorreu ao
mesmo tempo que a propagação da agricultura, um processo
gradual que levou muitos anos. Por ora sugiro que ela foi o
resultado de uma migração. Os nossos agricultores do mar
Negro foram os indo-europeus originais.
Jack equilibrou um bloco de papel na balaustrada e
rapidamente desenhou o croqui de um mapa do mundo
antigo.
- Esta é uma hipótese, - ele disse. - Nossos indo-europeus
abandonaram seus lares na costa do mar Negro. - Ele
desenhou uma ampla seta indo em direção ao leste a partir
de sua posição atual. - Um grupo vai para o Cáucaso, a
Geórgia de hoje. Alguns deles viajam para as montanhas de
Zagros, alcançando no fim o Vale do Indus no Paquistão.
- Eles devem ter visto o monte Ararat logo depois de
enveredar pelo interior, - afirmou Macleod. - Devem ter se
deparado com uma vista atemorizante, com montanhas
muito mais elevadas do que aquelas que conheciam. É quase
certo que o lugar ficou registrado nas tradições populares
como aquele onde finalmente eles perceberam que haviam
escapado ao dilúvio.
Jack colocou uma outra seta no mapa.
- Um segundo grupo se dirige para o sul, através do platô da
Anatólia para a Mesopotâmia, estabelecendo-se nas margens
dos rios Tigre e Eufrates.
- E um outro grupo segue na direção noroeste para o
Danúbio, - sugeriu Costas.
Jack acrescenta uma terceira seta no mapa.
- Alguns se estabelecem ali, outros usam o sistema fluvial
para atingir a área central da Europa.
Macleod falou de maneira excitada.
- A Grã-Bretanha se torna uma ilha no fim da Idade do Gelo,
quando o mar do Norte sofreu inundação. Mas estes povos
possuíam a tecnologia para atravessar. Será que os primeiros
agricultores da Grã-Bretanha foram os ancestrais das pessoas
que construíram Stonehenge?
- A língua céltica da Grã-Bretanha era indo-européia, -
esclareceu Katya.
Jack desenhou uma seta para o oeste que se ramificou em
direções diferentes como uma árvore suspensa.
- E o último grupo, talvez o mais significativo, remou para o
oeste e aportou depois do Bósforo, em seguida reembarcou e
foi até o Egeu. Alguns se estabeleceram na Grécia e em
Creta, outros em Israel e no Egito, outros foram mais longe,
até a Itália e a Espanha.
- O Bósforo deve ter sido uma vista impressionante, -
refletiu Costas. - Algo que permaneceu na memória coletiva
como o monte Ararat para o grupo que se dirigiu para o
leste, por isso a catarata de Bos foi mencionada no disco.
Katya olhou de maneira intensa para Jack.
- Sua hipótese é inteiramente consistente com a evidência
lingüística, - disse ela. - Existem mais de quarentas línguas
antigas com raízes indo-européias.
Jack aquiesceu e olhou para seu mapa.
- O professor Dillen me disse que a linguagem minoana
linear A e os símbolos de Phaistos são os que mais se
aproximam da língua-mãe indo-européia. Creta pode ter
testemunhado a maior sobrevivência da cultura indo-
européia.
O Sea Venture estava agora atracando no cais em Trabzon.
Vários tripulantes pularam a fenda estreita entre o cais e o
navio e estavam ocupados amarrando cabos grossos para
segurar o navio. Um pequeno grupo se juntou na zona
portuária, oficiais turcos e o pessoal do depósito de
suprimentos da IMU que estavam muito interessados em
ouvir sobre as últimas descobertas. Entre eles encontrava-se
a figura barbuda de Mustafá Alkõzen, um antigo oficial naval
turco que era o principal representante da IMU no país. Jack
e Costas acenaram para seu velho amigo, felizes por renovar
uma parceria que tinha começado quando estavam lotados
juntos na base de Izmir e ele os havia chamado para
desenterrarem as galeras da Guerra de Tróia.
Costas se voltou e olhou para Macleod.
- Eu tenho uma última pergunta.
- Vá em frente.
- A data.
Macleod sorriu amplamente e bateu em um cilindro de
papelão que estava segurando.
- Eu estava pensando se você não iria perguntar isto.
Tirou três grandes fotografias e passou-as para os outros. Elas
tinham sido tiradas com a câmera do ROV, a profundidade e
as coordenadas estavam impressas no canto direito inferior.
Mostravam uma grande estrutura de madeira e, ao longo
dela, um número considerável de toras.
- Parece um local de construção - disse Costas.
- Nós passamos por ele ontem, fica ao lado da casa com o
relicário. Novas salas estavam sendo acrescentadas quando a
aldeia foi abandonada. - Macleod apontou para uma tora de
madeira no solo do mar. - Usamos o jato de água do ROV
para limpar a lama. Eram troncos recém-cortados, a casca da
árvore ainda estava bem aderida e havia seiva na superfície.
Macleod abriu sua maleta e tirou um tubo plástico claro de
meio metro de comprimento. Em seu interior havia uma
vareta fina de madeira.
- O ROV tem uma broca côncava que pode extrair amostras
de madeira de construção e de outros materiais compactos
de até dois metros de comprimento.
O grão cor de mel estava conservado de maneira
impressionante, como se tivesse saído de uma árvore viva.
Macleod passou-o para Costas, que percebeu de imediato a
que ele estava se referindo.
- Dendrocronologia.
- Você adivinhou. Há uma seqüência contínua de três anéis
para a Ásia Menor desde 8500 antes de Cristo até hoje.
Perfuramos no coração da tora e encontramos cinqüenta e
quatro anéis, o suficiente para datar.
- E? - Persistiu Costas.
- No laboratório do Sea Venture temos um scanner que
equipara as seqüências da linha de base em questão de
segundos.
Jack olhou de maneira interrogativa para Macleod, que
estava gostando de explorar o drama com o máximo de
empenho.
- Você é o arqueólogo, - disse Macleod. - Qual é a sua
estimativa?
Jack aceitou o jogo.
- Logo depois do fim da Era do Gelo, mas muito tempo antes
de o Mediterrâneo ter alcançado o nível do Bósforo. Eu diria
oito, talvez sete milênios antes de Cristo.
Macleod recostou-se na balaustrada e olhou de modo
intenso para Jack. Os outros aguardaram prendendo a
respiração.
- Você chegou perto, mas não o suficiente. A árvore foi
derrubada em 5545 antes de Cristo, considerando um erro
de um ano para mais ou para menos.
Costas parecia incrédulo.
- Impossível! Parece muito tarde!
- Este dado é corroborado por todas as outras datas de três
anéis do local. Parece que subestimamos em um milênio o
tempo que o Mediterrâneo levou para alcançar seu nível
atual.
- Muitos lingüistas situam o indo-europeu entre 6000 e 5000
antes de Cristo - exclamou Katya. - Tudo se ajusta
perfeitamente.
Jack e Costas agarraram o parapeito enquanto o passadiço do
Sea Venture era firmado ao cais abaixo deles. Depois de
tantas aventuras juntos eles partilhavam os mesmos
pressentimentos, um conseguia adivinhar o pensamento do
outro em questão de segundos. No entanto, mal podiam
acreditar para onde estavam sendo conduzidos, tratava-se de
uma possibilidade tão fantástica que suas mentes se
recusaram a aceitá-la, até que a lógica predominou.
- Aquela data, - disse Costas baixinho. - Nós já a vimos antes.
Katya ofegou.
- É claro!
A voz de Jack denotava total convicção quando ele se dirigiu
a Macleod.
- Eu posso lhe contar sobre esses indo-europeus. Eles têm
uma grande cidadela perto do mar, um salão cheio de
conhecimento no qual você entra através de grandes portas
de ouro.
- Do que você está falando?
Jack fez uma pausa e falou baixinho.
- Atlântida.

- Jack, meu amigo! É bom encontrá-lo.
A voz profunda vinha de uma figura vistosa no cais, suas
feições escuras ressaltadas por calças de algodão e uma
camiseta branca com o logotipo da IMU.
Jack aproximou-se e apertou as mãos de Mustafá Alkõzen
assim que ele e Costas desceram o passadiço. Quando
olharam, acima da moderna cidade, para a cidadela
arruinada, era difícil imaginar que esta havia sido outrora a
capital do reino de Trebizonda, o ramo medieval do império
bizantino, renomado por causa de seu esplendor e
decadência. Desde os primórdios a cidade floresceu como
um centro de comércio entre o Leste e o Oeste, uma
tradição agora continuada de maneira sombria no crescente
mercado negro que havia se instalado desde a queda da
União Soviética e tinha proporcionado um refúgio para os
contrabandistas e agentes do crime organizado no Leste.
Malcolm Macleod havia ido na frente para lidar com a
multidão de funcionários públicos e jornalistas que se
aglomeraram quando o Sea Venture atracou. Eles haviam
concordado que seu relato sobre a aldeia neolítica
descoberta seria deliberada-mente vago até que pudessem
realizar mais explorações. Sabiam que olhos inescrupulosos
já estariam monitorando seu trabalho via satélite e estavam
tomando cuidado para não revelar mais do que o
estritamente necessário para satisfazer os jornalistas.
Felizmente o local situava-se a uma distância de onze milhas
náuticas longe da costa, perfeitamente dentro de águas
territoriais. Os barcos de ataque rápido da Marinha turca já
haviam atracado do lado oposto do porto e tinham sido
avisados para manter uma vigilância contínua até que as
investigações estivessem completadas e fosse concedido ao
local um status de proteção especial pelo governo turco.
- Mustafá, esta é nossa nova colega, doutora Katya
Svetlanova.
Katya havia posto um vestido em cima de sua roupa de
banho e estava carregando um palmtop computer* e uma
pasta com documentos. Ela apertou a mão estendida e sorriu
para Mustafá.
- Doutora Svetlanova. Jack me contou pelo rádio sobre sua
formidável perícia. Prazer em conhecê-la.
Jack e Mustafá andaram na frente dos outros dois enquanto
se encaminhavam para o depósito da IMU no fim do cais.
Jack falava em voz baixa e com grande intensidade,
colocando Mustafá a par de todos os eventos desde a
descoberta do papiro. Havia decidido aproveitar-se da parada
para reabastecimento do Sea Venture para valer-se da perícia
sem igual do turco e incluí-lo no pequeno número de
pessoas que sabiam a respeito dos papiros e dos discos.
Antes de entrar na baixa construção de concreto, Jack
estendeu um bloco de anotações que Mustafá passou para a
sua secretária quando alcançaram a porta. Ele continha o
pedido de uma lista de equipamentos arqueológicos e de
mergulho a serem fornecidos pelo depósito da IMU, que
Jack havia compilado nos últimos minutos antes de
desembarcar do Sea Venture.
Katya e Costas juntaram-se a eles na frente da grande porta
de aço. Depois de Mustafá digitar um código de segurança, a
porta se abriu e eles passaram por uma sucessão de
laboratórios e salas de reparações. Por fim entraram em uma
sala com estantes de madeira enfileiradas e uma mesa no
centro.
- A sala do mapa, - explicou Mustafá. - Ela nos serve de
quartel-general operacional. Sentem-se, por favor.
Mustafá abriu uma gaveta e tirou um mapa do Egeu e da
região sul do mar Negro, abrangendo a costa turca em toda a
sua extensão até o litoral leste na fronteira com a República
da Geórgia. Estendeu o mapa e o prendeu à mesa. De uma
pequena gaveta debaixo, ele pegou uma série de divisores
náuticos e réguas cartográficas, colocando-os lado a lado
enquanto Katya ligava seu computador.
Depois de alguns momentos ela disse:
- Estou pronta.
Todos haviam concordado que Katya daria a tradução do
papiro enquanto eles tentavam compreender o mapa. Ela leu
lentamente da tela.
- Através das ilhas até os estreitos do mar!
- Isto se refere claramente ao arquipélago Egeu visto do
Egito, - disse Jack. - O Egeu tem mais de mil e quinhentas
ilhas uma área confinada. Em um dia claro ao norte de Creta
você não consegue navegar em lugar algum sem ver pelo
menos uma ilha.
- Então, os estreitos devem ser Dardanelos, - declarou
Costas.
- O que decide isto é a seguinte passagem.
Os três homens olharam para Katya cheios de expectativa.
- Passada a catarata de Bos.
Jack animou-se de repente.
- Isto deveria ser evidentemente óbvio. O Bósforo, a entrada
para o mar Negro.
Costas voltou-se para Katya, sua voz denotando
incredulidade.
- Será que a palavra Bósforo é tão antiga?
- Ela data de pelo menos dois mil e quinhentos anos atrás,
do tempo dos primeiros escritos geográficos. Mas é
provavelmente milhares de anos mais velha. Bos é a palavra
indo-européia para touro!
- Estreito do Touro, - refletiu Costas. - Esta pode ser uma
grande pista, mas estou pensando nos símbolos de touro
naquela casa neolítica e nos da Creta minoana. Eles são bem
abstratos, apresentando os chifres do touro como uma
espécie de sela, algo semelhante a um travesseiro japonês.
Este deveria ter sido, precisamente, o aspecto do Bósforo
visto do mar Negro antes do dilúvio, uma grande sela
esculpida em uma alta montanha acima do mar.
Jack olhou para seu amigo com simpatia.
- Você nunca pára de me surpreender. Esta é a melhor idéia
que ouvi já faz um bom tempo.
Costas animou-se com seu tema.
- Para pessoas que adoravam o touro a visão de toda aquela
água cascateando pelos chifres devia parecer um presságio,
um sinal dos deuses.
Jack concordou e voltou-se para Katya.
- Então, estamos no mar Negro. O que há depois?
- E depois vinte dromoi ao longo da margem situada ao sul
Jack debruçou-se à frente.
- Diante disso temos um problema. Existem alguns registros
de tempos de viagens no mar Negro durante o período
romano. Um deles começa aqui, no que os romanos
chamam de lago Maeótico*. - Ele apontou para o mar de
Azov, ao lado da península da Criméia. - Daqui levou onze
em dias para ir até Rodes. Apenas quatro dias foram passados
no mar Negro.
Mustafá olhou pensativamente para o mapa.
- Então, uma viagem de vinte dias a partir do Bósforo, vinte
dromoi ou corridas, nos levaria até além do litoral leste do
mar Negro.
Costas pareceu desanimado.
- Talvez os antigos barcos fossem mais lentos?
- O oposto, - disse Jack. - Os longos barcos que usavam
remos de pá larga deviam ser mais rápidos do que os barcos a
vela, menos sujeitos aos caprichos dos ventos.
- E a afluência de água durante o dilúvio deveria ter criado
uma corrente para o leste muito forte, - disse Mustafá de
modo carrancudo. - O suficiente para impulsionar um barco
até a costa afastada em apenas poucos dias. Receio que a
Atlântida está fora dos mapas por mais de uma razão.
Uma sensação esmagadora de desapontamento impregnou a
sala. De repente a Atlântida parecia estar tão distante quanto
sempre havia estado, uma história destinada aos anais do
mito e da fábula.
- Há uma solução, - disse Jack lentamente. - O relato egípcio
não está baseado na própria experiência deles. Se fosse
assim, eles nunca teriam descrito o Bósforo como uma
catarata, uma vez que o Mediterrâneo e o mar Negro se
nivelaram muito antes que o Egito começasse a explorar o
Norte distante. Em vez disso, a fonte deles foi o relato feito
pelos migrantes do mar Negro, contando sua viagem a partir
da Atlântida. Os egípcios simplesmente reverteram o relato.
- É claro! - Mustafá entusiasmou-se de novo. - A partir da
Atlântida significa contra a corrente. Ao descrever a rota
para a Atlântida, os egípcios usaram o mesmo tempo de
viagem que demorava para fazer o mesmo percurso no
sentido inverso. Eles nunca poderiam ter adivinhado que
haveria uma diferença significativa entre as duas.
Jack olhou de maneira proposital para Mustafá.
- O que precisamos é de uma maneira de avaliar a velocidade
da corrente, de calcular o progresso que um barco do
período neolítico faria contra a corrente. Isto nos daria a
distância percorrida em cada dia e a distância, a partir do
Bósforo, até um ponto de embarque vinte dias antes.
Mustafá endireitou-se e replicou com confiança.
- Vocês vieram para o lugar certo.

10

O sol estava se pondo no contorno da costa a oeste quando o
grupo se reuniu na sala do mapa. Durante três horas Mustafá
ficara debruçado sobre uma série de telas de computadores,
em um anexo, e havia dez minutos apenas chamara para
anunciar que estava pronto. A eles se juntara Macleod, que
havia arranjado uma entrevista coletiva à imprensa, para
anunciar a descoberta da aldeia neolítica, quando um FAC*
da Marinha estivesse posicionado sobre o local na manhã
seguinte.
Costas foi o primeiro a pular da cadeira. Os outros se
agruparam à sua volta enquanto ele examinava ansiosamente
o console.
"O que você conseguiu?"
Mustafá respondeu sem desviar o olhar da tela central. "Há
alguns pequenos defeitos no software de navegação que eu
devo resolver, mas tudo se ajusta perfeitamente."
Haviam colaborado com Mustafá, pela primeira vez, quando
ele era um capitão-de-corveta incumbido da unidade de
Desenvolvimento e Pesquisa de Navegação por Computador
na base da OTAN em Izmir. Depois de deixar a Marinha
turca e completar um Ph.D. em arqueologia, ele se
especializou na aplicação da tecnologia CAN* para uso
científico. No passado havia trabalhado com Costas em um
conjunto de programas inovadores de software para calcular
o efeito dos ventos e das correntes na navegação durante a
Antigüidade. Conhecido como uma das mentes mais
eminentes nesse campo, ele era também um formidável
chefe de departamento naval que havia provado mais de
uma vez o seu valor quando a IMU tinha, anteriormente,
operado em águas turcas.
Mustafá pressionou uma tecla e a imagem de um barco
apareceu na tela central.
- Eu e Jack conseguimos fazer isso.
- O desenho se baseia nos madeiramentos neolíticos
escavados no ano passado na embocadura do Danúbio, -
explicou Jack. - O nosso é um barco aberto com cerca de
vinte e cinco metros de comprimento e três metros de
largura. O remo de metal só se torna difundido no fim da
Idade do Bronze, então ele tem quinze remos de pá larga, de
madeira, de cada lado. Tem capacidade para transportar dois
bois como representamos aqui, vários pares de animais
menores como porcos e veados, cerca de doze mulheres e
crianças e uma tripulação de reserva de remadores.
- Você tem certeza de que eles não possuíam veleiros? -
perguntou Macleod.
Jack aquiesceu.
- A navegação a vela foi inventada no início da Idade do
Bronze no Nilo, onde os barcos podiam flutuar até o delta e
depois velejar de volta contra a corrente impulsionados pelo
vento do Norte predominante. Os egípcios podem, de fato,
ter introduzido a navegação a vela no Egeu, onde as
embarcações a remo eram, na verdade, a melhor maneira de
navegar ao redor das ilhas.
- O programa indica que a embarcação podia fazer seis nós
durante a calmaria, - disse Mustafá. - Isto dá seis milhas
náuticas por hora, quase sete milhas de mil seiscentos e oito
metros.
- Eles deviam ter necessidade da luz do dia para puxar a
embarcação até a praia, alimentar seus animais e estabelecer
acampamento, - disse Jack. - E faziam o contrário de manhã.
- Agora sabemos que o êxodo teve lugar no fim da
primavera ou no início do verão, - revelou Macleod. - Nós
pesquisamos o perfil subterrâneo com nosso aparelho de alta
resolução em uma área de um quilômetro quadrado próxima
da aldeia neolítica. O lodo escondia um sistema de
agricultura completo, perfeitamente preservado, com sulcos
de arado e regos de irrigação. O laboratório de paleontologia
ambiental acabou de completar as análises das amostras dos
caroços que obtivemos com o ROV. Elas mostram que a
safra era de grãos. De trigo Einkorn, Triticum monococcum
para ser mais preciso, semeado cerca de dois meses antes da
inundação.
- O grão é geralmente semeado nessas latitudes em abril ou
maio, - esclareceu Jack.
- Correto. Estamos falando de junho ou julho, cerca de dois
meses depois que o Bósforo se rompeu.
- Seis nós significa quarenta e oito milhas náuticas em uma
corrida de oito horas, - Mustafá continuou. - Isto pressupõe
uma tripulação de reserva, bem como água e provisões, e um
dia de trabalho de oito horas. Em mares calmos nossa
embarcação teria feito esse percurso, ao longo da costa sul,
em pouco mais que onze dias. - Ele pressionou uma tecla
onze vezes, avançando a imagem da mini-embarcação ao
longo de um mapa isométrico do mar Negro. - É aqui que o
programa CAN realmente entra em jogo.
Ele pressionou a tecla outra vez e a simulação se
transformou sutilmente. O mar tornou-se ondulado e o seu
nível caiu para mostrar o Bósforo como uma queda d'água.
- Aqui estamos no verão de 5545 antes de Cristo, mais ou
menos dois meses depois do início do dilúvio.
Ele reposicionou a embarcação perto do Bósforo.
"A primeira variável é o vento. Os ventos que predominam
no verão chegam do norte. As embarcações que navegam
para o oeste só podem fazer sérios avanços após alcançarem
Sinope, o meio do caminho ao longo da costa sul onde o
litoral começa a dirigir-se para oeste-sul-oeste. Antes disto,
para acompanhar a costa oeste-norte-oeste, eles
necessitariam de remadores.
- Quais as diferenças de clima? - perguntou Katya.
- Hoje, as principais flutuações são causadas pela oscilação
do Atlântico Norte - replicou Mustafá. - No clima quente, a
baixa Pressão atmosférica do Pólo Norte causa fortes ventos
do oeste que mantêm o ar ártico no norte, o que significa
que o Mediterrâneo e o mar Negro ficam quentes e secos.
Quando o clima é frio, o ar ártico vai para o sul, incluindo os
ventos do norte sobre o mar Negro. Basicamente fica mais
ventoso e úmido.
- E durante a Antigüidade?
- Pensamos que o início do Holoceno, alguns mil anos
depois da grande fusão, teria correspondido estritamente a
uma fase fria. Era menos árido do que hoje, com
considerável quantidade de precipitação. O mar Negro ao sul
teria sido um ótimo local para o desenvolvimento da
agricultura.
- E o efeito da navegação? - perguntou Jack.
- Vinte ou trinta por cento de probabilidade de ventos fortes
para o norte e para o oeste. Alimentei o programa CAN com
esses dados e obtive a melhor previsão para cada setor até
cinqüenta milhas náuticas da costa durante dois meses de
dilúvio, incluindo o efeito do vento sobre o movimento das
águas.
- A sua segunda variável deve ser o próprio dilúvio.
- Estamos vendo dez milhas cúbicas de água do mar
precipitando-se a cada dia, durante dezoito meses, depois
uma queda gradual durante os seis meses seguintes até um
equilíbrio ser alcançado. O êxodo teve lugar durante o
período de afluência máxima.
Ele pressionou algumas teclas e uma seqüência de figuras
apareceu no lado direito da tela.
- Isto mostra a velocidade da corrente leste vinda do
Bósforo. Ela diminui de doze nós na queda d'água para
abaixo de dois nós no setor mais ao leste, distante mais de
quinhentas milhas.
Costas juntou-se à conversa.
- Se estivessem fazendo apenas seis nós, os nossos
agricultores neolíticos jamais alcançariam o Bósforo.
Mustafá concordou.
- Posso até predizer onde eles avistaram a primeira terra,
trinta milhas a leste do ponto em que a corrente se torna
demasiado forte. Dali eles teriam transportado os barcos por
terra, passando pela costa asiática do Bósforo, rumo a
Dardanelos. A corrente através dos estreitos também teria
sido muito forte, então não tenho certeza se eles
reembarcariam antes de alcançar o Egeu.
- Deve ter sido um transporte de barcos muito difícil, - disse
Macleod. - Quase duzentas milhas náuticas.
- Eles provavelmente separaram os cascos dos barcos e
colocaram parelhas de bois para puxar as madeiras de
construção sobre trenós - replicou Jack. - Muitas
embarcações antigas eram feitas de pranchas de madeira
juntadas fixando-se o madeiramento com cordas, o que
permitia que os cascos fossem desmontados facilmente.
- Talvez aqueles que foram para o leste tenham deixado, na
verdade, suas embarcações no monte Ararat - refletiu Katya.
- Eles podem ter separado as pranchas de madeira e tê-las
arrastado até ter a certeza de que não necessitariam mais
delas, ao contrário do grupo que foi em direção ao oeste e
que provavelmente sempre via o mar durante o transporte
de seus barcos.
Costas estava olhando para Dardanelos.
- Eles podem até ter iniciado a viagem partindo da colina de
Hissarlik. Alguns dos nossos agricultores podem mesmo ter
ficado por lá para se tornarem os primeiros troianos.
As palavras de Costas trouxeram à tona, de novo, a grandeza
dessa descoberta, e por um momento eles ficaram
dominados por uma sensação de respeito. Cuidadosa e
metodicamente, estavam juntando as peças de um quebra-
cabeça que havia confundido os estudiosos durante
gerações, revelando uma estrutura que não pertencia mais ao
domínio da especulação. Não estavam simplesmente
construindo um dos lados do quebra-cabeça, mas haviam
começado a reescrever a história em grande escala. No
entanto, a fonte estava tão incrustada em fantasia que ela
ainda parecia uma fábula, uma revelação cuja verdade eles
mesmos tinham dificuldade em reconhecer.
Jack voltou-se para Mustafá.
- Qual é a distância de vinte dromoi nestas condições?
Mustafá apontou para o lado direito da tela.
- Nós trabalhamos retrocedendo a partir do ponto de
desembarque perto do Bósforo. No final do dia eles só
haviam feito meio nó contra a corrente e o vento,
significando uma jornada de não mais de quatro milhas. - Ele
pressionou uma tecla e o barco moveu-se ligeiramente para
o leste.
- Em seguida as distâncias se tornam progressivamente
maiores, até alcançarmos uma corrida depois de Sinope,
onde eles cobrem trinta milhas. - Ele pressionou uma tecla
doze vezes e a embarcação cobriu metade do caminho ao
longo da costa do mar Negro. - Depois a viagem tornou-se
ligeiramente mais árdua durante alguns dias, enquanto eles
se dirigiam para noroeste contra o vento predominante.
- Isto dá quinze corridas - disse Jack. - As outras cinco
conduzem para onde?
Mustafá pressionou a tecla mais cinco vezes e a embarcação
foi parar no canto sudeste do mar Negro, exatamente no
contorno previsto da costa antes do dilúvio.
- Acertamos - disse Jack baixinho.
Antes de imprimir a data fornecida pelo CAN, Mustafá
conduziu os companheiros para uma área separada,
adjacente à sala do mapa. Ele diminuiu as luzes e dispôs
várias cadeiras ao redor de um console central do tamanho
de uma mesa de cozinha. Então pressionou um interruptor e
a superfície se iluminou.
- Uma mesa holográfica iluminada - explicou Mustafá. - O
que há de mais recente em representação batimétrica. Este
aparelho pode modelar uma imagem tridimensional de
qualquer área do fundo do mar para a qual tenhamos dados
de pesquisa, desde o solo do oceano inteiro até setores de
apenas dois metros de largura. Sítios arqueológicos, por
exemplo.
Ele deu um comando e a mesa se encheu de cores. Era uma
escavação subaquática, brilhantemente clara, com cada
detalhe delineado de forma bastante precisa. Uma certa
quantidade de sedimento havia sido retirada para revelar
fileiras de cubas com cerâmicas e lingotes de metal
colocados em uma barcaça, onde madeiras de construção se
projetavam de cada lado. O casco estava colocado em uma
vala acima de um declive íngreme, e grandes porções de
rocha desapareciam de cada lado onde a lava havia outrora
escorrido.
- O naufrágio minoano como ele estava dez minutos atrás.
Tack me pediu para deixá-lo à mão de modo a poder
monitorar o progresso da escavação. Uma vez que tivermos
este equipamento em ligação direta o tempo todo,
poderemos realmente ingressar em um trabalho de campo
que se situa distante, seremos capazes de dirigir as
escavações sem nem mesmo nos molhar.
Antigamente enormes esforços teriam sido necessários para
preparar o terreno sob a água, as medições eram feitas
meticulosamente à mão. Agora tudo isto foi eliminado pelo
uso da fotocartografia digital, um conjunto de mapeamento
sofisticado que utiliza um veículo operado por controle
remoto para tomar imagens ligadas diretamente ao Seaquest.
Fotografando durante dez minutos o navio naufragado,
naquela manhã, o ROV havia coletado mais informações do
que as obtidas com uma escavação esmerada no passado. Do
mesmo modo que o holograma, os dados eram incluídos em
um projetor a laser que construía um modelo do local em
látex, na sala de conferência do Seaquest, e as modificações
eram continuamente feitas à medida que os escavadores
retiravam artefatos e sedimentos. Esse sistema inovador era
mais uma razão para agradecer a Efram Jacobovich, o
benfeitor e fundador da IMU que havia posto a perícia de
sua enorme empresa de software inteiramente à disposição
deles.
Naquela tarde Jack havia passado várias horas examinando o
holograma durante uma teleconferência com a equipe de
escavação. Mas para os outros era uma visão empolgante,
como se eles tivessem sido subitamente transportados para o
fundo do mar Egeu, distante oitocentas milhas náuticas. Eles
viam o notável progresso que fora feito em vinte e quatro
horas desde que tinham sido trazidos de helicóptero. A
equipe havia removido muito da sobrecarga que cobria os
artefatos e enviado o tesouro encontrado para a segurança
do museu de Cartago. Debaixo de uma camada de ânforas
cheias de incenso ritual havia um casco de navio mais bem
preservado do que Jack ousara imaginar, suas juntas de
encaixe tão nítidas como se elas tivessem sido talhadas no
dia anterior.
Mustafá pressionou outra tecla.
- E agora o mar Negro.
A tela que mostrava a embarcação naufragada se desintegrou
em um caleidoscópio de cores a partir do qual o mar Negro
tomou forma. No centro encontrava-se a planície abismai, o
tóxico mundo inferior com quase 2200 metros de
profundidade. Ao redor da borda ficavam os litorais rasos
que se inclinavam mais suavemente do que em muitos
outros lugares do Mediterrâneo.
Pressionando uma outra tecla, Mustafá iluminou a linha da
costa antes do dilúvio.
- Nossa área-alvo.
Um pequeno sinal de luz apareceu no distante canto
sudeste.
- Quarenta e dois graus de latitude norte, quarenta e dois
graus de longitude leste. Esta é a posição mais precisa que
podemos obter com o nosso cálculo de distância a partir do
Bósforo.
- Esta é uma área bem grande, - advertiu Costas. - Uma
milha náutica equivale a um minuto de latitude; um grau,
sessenta minutos. Esta área tem trezentas e sessenta milhas
quadradas.
- Lembrem que estamos procurando por um lugar costeiro, -
disse Jack. - Se seguirmos a antiga linha da costa, do lado em
direção à terra, conseqüentemente alcançaremos nosso alvo.
- Quanto mais próximo pudermos identificá-lo agora, com
precisão, melhor, - disse Mustafá. - De acordo com a
batimetria, a antiga linha da costa, neste setor, está afastada
da praia pelo menos trinta milhas, bem além das águas
territoriais. Ficará bem óbvio que estamos procurando ao
longo de um contorno particular. Haverá olhares curiosos
sobre nós.
Ouviu-se um murmúrio um tanto deprimente dos demais
quando as implicações se tornaram aparentes. O mapa
mostrava que eles ficariam perigosamente próximos da costa
mais afastada do mar Negro, uma costa selvagem nos dias de
hoje, onde o leste encontra o oeste de uma maneira nova e
sinistra.
- Estou intrigado com este aspecto. - Macleod apontou para
uma irregularidade no solo oceânico, uma cordilheira de
quase cinco quilômetros de comprimento, paralela ao antigo
contorno da costa. Do lado em direção ao mar havia um
precipício estreito que caía mais de quinhentos metros, uma
anomalia onde a inclinação média não alcançava esta
profundidade nas outras trinta milhas mar adentro. - Este é o
único ponto saliente em muitas milhas ao redor. Se eu fosse
construir uma cidadela, gostaria de ter uma posição de
comando. Este é um lugar ideal.
- Mas a passagem final no papiro fala de lagos salgados, -
lembrou Costas.
Katya pegou seu palmtop computer e leu.
- Depois você chega à cidadela. E mais abaixo está situada
uma vasta planície dourada, as bacias profundas, os lagos
salgados, até onde os olhos podem alcançar.
- Esta é a imagem que eu tenho do Mediterrâneo durante a
crise de salinidade de Messina, - comentou Costas. - Água
muito salgada e estagnada, como o sul do mar Morto hoje.
- Penso que tenho uma explicação. - Mustafá pressionou
uma tecla e o holograma se transformou em um close-up do
setor sudeste. - Com o nível do mar mais baixo cento e
cinqüenta metros, uma grande área afastada da costa daquela
cordilheira ficava seca apenas um ou dois metros acima da
antiga costa. Grandes áreas estavam, na verdade, alguns
metros abaixo do nível do mar. Quando o nível atingiu o seu
valor mínimo, no final do Plistoceno, ele deve ter deixado
lagos salgados naquelas depressões. Eles eram rasos e devem
ter evaporado rapidamente, deixando imensas camadas de
sal. Elas seriam visíveis de uma posição elevada a uma certa
distância e não manteriam nenhuma vegetação.
- E vamos lembrar como o sal era importante, - disse Jack. -
Era um conservante vital, um importante artigo de
comércio. Os antigos romanos prosperaram porque
controlavam o sal na embocadura do Tibre, e podemos estar
procurando por uma história similar aqui, milhares de anos
antes.
Costas falou com ponderação.
- Planície dourada podia significar campos de trigo e de
cevada, um prado rico de grãos cultivados com as
montanhas da Anatólia como pano de fundo. Era a
"montanha cercada de planícies" do relato de Platão.
- Você descobriu, - disse Mustafá.
- Será que tenho razão em pensar que parte da cordilheira
está hoje acima da água? - Costas estava examinando a
geomorfologia no holograma.
- Este é o cume de um pequeno vulcão. A cordilheira é
parte da zona de abalo sísmico ao longo das placas asiáticas
que se estendem do oeste para o norte da falha de Anatólia.
O vulcão não está completamente adormecido, mas não
houve erupção nos anais da história. A caldeira tem cerca de
um quilômetro de diâmetro e se eleva trezentos metros
acima do nível do mar.
- Qual é o seu nome?
- Não tem nome, - respondeu Macleod. - Tem sido território
disputado desde a Guerra da Criméia, 1853-56, entre a
Turquia otomana e a Rússia tsarista. Ele fica em águas
internacionais, mas mais exatamente na fronteira entre a
Turquia e a Geórgia.
- A área tem sido uma zona inativa há muito tempo, -
continuou Mustafá. - Apenas alguns meses antes do colapso
da União Soviética, em 1991, um submarino nuclear
desapareceu perto dali em circunstâncias misteriosas. -
Todos ficaram intrigados e Mustafá continuou de modo
prudente. - O submarino nunca foi encontrado, mas a
operação de busca fez com que fossem trocados tiros entre
navios de guerra turcos e russos. Este era um lugar do globo
com grande potencial de violência, dadas as associações da
Turquia com a OTAN. Ambos os lados concordaram em
parar e a confrontação acalmou-se, mas como resultado
houve pouca pesquisa hidrográfica nesta área.
- Parece que estamos sozinhos novamente, - disse Costas
taciturno. - Países amigos de cada lado mas incapazes de
intervir.
- Estamos fazendo o máximo que podemos, - disse Mustafá.
- O Tratado de Cooperação Econômica do Mar Negro, em
1992, levou ao estabelecimento do Blackseafor, a força-
tarefa de cooperação naval do mar Negro. Isto ainda é mais
um gesto do que uma atividade efetiva, e a maior parte da
interdição marítima turca continua a ser unilateral. Mas pelo
menos a base para a intervenção existe. Há também um
vislumbre de esperança no lado científico. A Comissão
Oceanográfica Nacional da Turquia está avaliando um
oferecimento da Academia de Ciências da Geórgia para
colaborar em um laudo de inspeção que incluiria aquela ilha.
- Mas não há esperança de uma força de proteção, - disse
Costas.
- Nada que indique direito de possessão. A situação é
demasiado delicada. A bola está do nosso lado.

O sol havia se posto e os declives arborizados atrás das luzes
de Trabzon estavam encobertos pela escuridão. Jack e Katya
caminhavam lentamente ao longo da fenda rochosa, o ruído
de seus passos combinando com o som das ondas quando
elas quebravam suavemente na praia.
Antes eles haviam ido a uma reunião na residência do vice-
almirante que estava no comando do Blackseafor, e o
acentuado aroma dos arranjos de pinhos preparados para a
recepção ao ar livre parecia segui-los pela noite. Eles haviam
deixado o píer do lado leste bem para trás. Jack ainda estava
vestindo seu smoking, mas tinha afrouxado o colarinho e
retirado a gravata, enfiando-a no bolso com a Cruz de
Condecoração por Serviços Prestados que havia
relutantemente usado para a ocasião.
Katya estava com um vestido negro comprido e brilhante.
Havia soltado os cabelos e tirado os sapatos para andar
descalça na arrebentação.
- Você está muito bonita.
- Você também não está mal. - Katya olhou para Jack e
sorriu, tocando seu braço ligeiramente. - Acho que já nos
distanciamos bastante.
Eles andaram um pouco na praia e se sentaram em uma
rocha de onde tinham uma vista panorâmica do mar. A lua,
que se elevava no céu, lançava uma luz cintilante na água, as
ondas dançavam e brilhavam na frente deles. Acima do
horizonte, ao norte, estava escuro como breu, uma frente de
tempestade descendo das estepes russas. Uma brisa fria
trouxe a sugestão de uma mudança fora de estação que
alteraria a aparência do oceano nos próximos dias.
Jack dobrou as pernas e rodeou os joelhos com os braços,
seus olhos fixos no horizonte.
- Este é sempre o momento mais tenso, quando você sabe
que uma grande descoberta está dentro do seu alcance.
Qualquer atraso é frustrante.
Katya sorriu de novo para ele.
- Você fez tudo que podia.
Eles tinham discutido arranjos para se juntar ao Seaquest no
dia seguinte. Antes da recepção Jack havia falado com Tom
York pelo canal de segurança da IMU. Por ora o Seaquest
devia estar indo, em alta velocidade, para o Bósforo, tendo
deixado a escavação dos destroços do naufrágio nas mãos
seguras do navio-auxiliar. No horário de seu projetado
encontro, por helicóptero, na manhã seguinte, o Seaquest
deveria estar no mar Negro. Eles estavam ansiosos por
alcançá-lo o mais rápido possível e se assegurar que o
equipamento estava completamente preparado.
Katya estava olhando para o outro lado e parecia
preocupada.
- Você não compartilha do meu entusiasmo.
Quando ela replicou, suas palavras confirmaram a sensação
de Jack de que algo a perturbava.
- Para vocês, no Ocidente, pessoas como Aslan não têm
rosto, como os inimigos da Guerra Fria, - disse ela. - Mas
para mim elas são pessoas reais, de carne e sangue. Monstros
que fizeram de meu lar uma terra devastada e desconhecida
de violência e voracidade. Para conhecer isto você teria que
viver ali, um mundo de terror e anarquia que o Ocidente
não vê desde a Idade Média. Os anos de repressão
incentivaram uma carência por objetos cujo único pretenso
controle é proporcionado por gângsteres e líderes militares.
- Sua voz soava emocionada enquanto ela fitava o oceano. -
E este é o meu povo. Eu sou um deles.
- Uma pessoa com vontade e força para lutar contra isto. -
Jack estava irresistivelmente atraído por sua silhueta escura,
que se desenhava contra o horizonte ameaçador.
- Estamos prestes a entrar em meu mundo e não sei se
poderei protegê-lo. - Ela se virou para olhá-lo, os olhos
insondáveis quando ela fitou os dele. - Mas é claro que
compartilho de seu entusiasmo.
Eles se aproximaram e se beijaram, primeiro de maneira
suave e depois longa e apaixonadamente. Jack ficou
subitamente dominado pelo desejo quando sentiu o corpo
dela contra o seu peito. Ele fez com que o vestido lhe
escorregasse dos ombros e a puxou para mais perto de si.

11

- Permanecendo estabilizado em três-um-cinco graus.
Profundidade sessenta e cinco metros, velocidade de subida
um metro por segundo. Logo vamos começar a ver a
superfície.
Jack observou atentamente através da cúpula de plexiglas à
sua esquerda. Apesar da escuridão ele podia distinguir Costas
debaixo de uma cúpula idêntica cerca de quinze metros
adiante, sua cabeça parecendo desincorporada no misterioso
brilho lançado pelos instrumentos do painel. Quando
subiram um pouco mais foi possível visualizar melhor o
submersível. A cúpula cobria um assento inclinado em
forma de concha, amarelo, do tamanho de um homem,
disposto de tal modo que o piloto podia sentar-se
confortavelmente. Abaixo havia plataformas flutuantes
como reservatórios de lastro, e atrás ticava o compartimento
da bateria com capacidade de acionar uma dúzia de jatos de
água dirigíveis, posicionados por toda a volta, em uma
estrutura externa. Duas torqueses como braços de robôs
davam ao submersível a aparência de um escaravelho
gigante.
- Ali está ele.
Jack olhou para o alto e viu a silhueta do Seaquest vinte
metros acima. Ajustou a descarga de água do lastro para
reduzir a velocidade da subida e olhou de novo para Costas,
que, ao lado, preparava-se para emergir.
Costas sorriu para o amigo.
- Missão cumprida.
Costas tinha todas as razões para estar contente consigo
mesmo. Eles haviam acabado de concluir os testes no mar
do Aquapod IV, o mais novo submersível, com capacidade
para um único ocupante, projetado por sua equipe para a
IMU. Ele operava a uma profundidade máxima de cento e
cinqüenta metros, quase duas vezes a marca anterior. A
bateria de lítio-anodo supercarregada tinha uma vida de
cinqüenta horas com uma velocidade de cruzeiro de três
nós. O mergulho de uma hora, naquela manhã, no fundo do
mar Negro mostrara que o equipamento estava em
condições bem acima daquelas exigidas pela tarefa que
tinham à frente, uma exploração ao longo da linha da antiga
costa mais ao leste do que jamais haviam ido antes.
- Seaquest, aqui é o Aquapod Alpha. Estamos chegando sãos
e salvos. Câmbio.
Eles já podiam ver os quatro mergulhadores esperando logo
abaixo da superfície para guiá-los. Antes dos últimos dez
metros pararam para travar os dois Aquapods, um
procedimento-padrão para impedir que se chocassem em
mares turbulentos. Enquanto Jack permanecia parado,
Costas manobrou cuidadosamente até que as cremalheiras de
travamento se alinhassem. Acionando um interruptor ele
inseriu quatro hastes de metal diretamente nas cunhas da
estrutura externa do navio.
- Parece seguro. Puxe-nos para dentro.
Os mergulhadores desceram rapidamente e conectaram os
ganchos do elevador com os Aquapods. Jack e Costas
mudaram para estado de prontidão e desativaram os
ajustadores de equilíbrio que os mantinham na horizontal.
Quando os mergulhadores nadaram de volta para posições
seguras, o operador de guincho suavemente puxou cada
submersível para dentro do casco do navio.
Eles adentraram uma câmara com holofotes do tamanho de
um hangar pequeno de aeronave. O Seaquest estava
equipado com um ancoradouro interno com instalações
completas, que era bastante útil quando o mar estava muito
encapelado para operações no tombadilho ou quando
queriam permanecer escondidos. O casco do navio havia se
aberto como as portas de lançar bombas de uma imensa
aeronave. Quando as duas partes se fecharam, Jack e Costas
destravaram as cúpulas que também serviam como abrigo de
entrada. Uma plataforma deslizava debaixo delas e se erguia
como o elevador em um porta-aviões, fechando firmemente
assim que toda a água fosse escoada.
Tom York estava lá para cumprimentar os dois homens
quando eles subiram.
- Um teste bem-sucedido?
Jack foi o primeiro a sair ao convés. Falou rapidamente
enquanto tirava sua roupa de sobrevivência.
- Não há nenhum problema para relatar. Vamos usar os
Aquapods para nosso reconhecimento esta tarde. Os braços
robóticos precisam ser substituídos pela câmera de vídeo
digital e holofotes.
- Isto está sendo feito exatamente agora, enquanto
conversamos.
Jack olhou em volta e viu a tripulação de manutenção
trabalhando duro nos submersíveis. Costas estava debruçado
sobre a unidade de recarga da bateria conversando
animadamente com um dos técnicos. Jack sorriu consigo
mesmo quando viu que o amigo, em seu entusiasmo para
discutir o desempenho do submersível com sua equipe de
engenheiros, havia esquecido de remover seus fones de
ouvido.
Jack falou com York enquanto seguia em frente e guardava
sua roupa em um dos armários com chave que se
enfileiravam no aposento.
- Temos uma hora antes que o Seaquest esteja em posição. É
uma oportunidade para rever nossas opções uma última vez.
Eu gostaria que todo o pessoal estivesse no console da ponte
de comando precisamente às onze horas.
Vinte minutos mais tarde eles estavam parados na frente de
um semicírculo de homens e mulheres no interior da cabine
de comando do Seaquest. York havia acionado a navegação
automática e o sistema de vigilância, ativando a ponte de
comando virtual que permitia que o navio fosse operado do
console ao lado de Jack. A tela hemisférica acima deles
exibia uma vista panorâmica do mar, sua superfície cinza
encapelada, um prognóstico agourento da tempestade que
vinha se formando ao norte nas últimas vinte e quatro horas.
Jack cruzou os braços e se dirigiu ao grupo.
- Somos uma tripulação reduzida, e nosso trabalho vai ser
ainda mais exigente. Não vou fazer rodeios. Vamos nos
defrontar com um risco real, provavelmente maior do que
aqueles que já enfrentamos até aqui.
Depois de chegar ao Seaquest de helicóptero no dia anterior,
Jack havia decidido reduzir a equipe a um número mínimo.
Toda a tripulação era de voluntários, mas ele tinha se
recusado a arriscar as vidas de cientistas cujo trabalho só
poderia começar realmente depois que eles fizessem alguma
descoberta. Além dos oficiais de engenharia e do convés, ele
selecionara os técnicos mais experientes em armas, inclusive
vários homens que pertenceram às Forças Especiais e que
Jack conhecia desde o tempo da Marinha.
- O que podemos esperar no que diz respeito a ajuda
exterior?
A pergunta veio de Katya, que estava parada no meio da
tripulação vestindo um macacão padrão azul com o
sinalizador luminoso de ombro da IMU. Jack tentou
convencê-la a partir com os outros quando o Sea Venture
encontrou-se com eles, assim que passaram por Trabzon,
mas ela insistiu que sua habilidade lingüística seria vital para
decifrar as inscrições que viessem a encontrar. Na verdade,
Jack sabia, depois das longas horas que passaram juntos na
noite anterior, que ela não o abandonaria agora, que havia
entre ambos um vínculo que não podia ser quebrado, e que
ela compartilhava de sua responsabilidade pelo Seaquest e
sua tripulação à medida que navegavam mais adiante para
uma zona de perigo.
- Vou deixar o chefe da segurança responder a esta pergunta.
Peter Howe adiantou-se e tomou o lugar de Jack.
- A má notícia é que estaremos em águas internacionais,
além do limite de doze milhas acordado em um protocolo de
1973 entre a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a
Turquia. A boa notícia é que a Geórgia e a Turquia assinaram
um Acordo de Cooperação para a Segurança da Costa em
1998 e concordaram em fornecer assistência no caso de uma
descoberta importante. O pretexto seria o memorando de
cooperação que acabaram de assinar, com a ratificação das
Nações Unidas, para executar pesquisa geológica em
colaboração naquela ilha vulcânica. Eles estariam agindo sob
as cláusulas da lei internacional.
Ele deu um passo atrás e olhou para o leste do mar Negro no
mapa da Marinha, acima do console.
- O problema é que eles só ajudarão se as suspeitas russas,
relativas àquele submarino que desapareceu em 1991,
puderem ser diminuídas. Se houver qualquer alusão a outras
nações envolvidas em uma busca, eles partirão para o
tiroteio. Literalmente. E existem outras preocupações. Desde
o início dos anos noventa, os russos participaram ativamente
da guerra civil em Abkházia, ostensivamente como uma
força de estabilização, mas, na verdade, para atrair a região
de volta para Moscou. O principal interesse deles é o
petróleo. Em 1999 seu monopólio sobre a produção no mar
Cáspio foi ameaçado pelo primeiro oleoduto a contornar a
Rússia, desde Baku no Azerbaijão até Supsa na costa da
Geórgia, perto de Abkházia. Os russos fariam de tudo para
impedir outros investimentos ocidentais, mesmo que isso
significasse anarquia e guerra civil. - Howe voltou-se para
fitar o grupo reunido.
- Nós dissemos à embaixada russa que estamos executando
uma avaliação hidrográfica em comum acordo com os
governos da Turquia e da Geórgia. Parece que eles
acreditaram nisso. Mas se virem navios de guerra
convergindo para o local, presumirão que estamos atrás do
submarino. O urso russo pode ter perdido muitas de suas
garras, mas ainda é a maior esquadra na região. As relações
entre Ankara e Moscou já são muito difíceis por causa do
trafico de narcóticos. Poderia pelo menos haver um horrível
incidente internacional, muito provavelmente uma guerra
que iria aumentando de intensidade até tragar esta parte do
mundo.
- Uma questão de somenos importância, - interrompeu
Costas. - Não creio que a Geórgia tenha uma Marinha.
- Este é um outro problema, - replicou York de modo
taciturno. - Os georgianos, na prática, não herdaram nada da
esquadra soviética do mar Negro. Eles têm um navio de
ataque rápido do tipo Project 206MP, de construção
ucraniana, e um navio fora de uso, da guarda costeira
americana, transferido através do Programa de Excesso de
Artigos de Defesa dos Estados Unidos. Mas não percam as
esperanças. O FAC não tem mísseis porque não possui
condições de armazenamento e instalações de teste. E o
navio só tem uma metralhadora de calibre cinqüenta.
- Esta não é a verdadeira Marinha da Geórgia.
Todos se voltaram para Katya.
- A verdadeira Marinha da Geórgia está escondida ao longo
da costa para o norte, - disse ela. - É a Marinha dos líderes
militares, dos homens da Ásia central que usam Abkházia
para ter acesso às ricas colheitas do mar Negro e do
Mediterrâneo. Estes é que devem ser temidos, meus amigos,
não os russos. Falo por experiência pessoal.
Katya era ouvida com evidente respeito pela tripulação. Sua
importância, aos olhos deles, era incontestável desde que ela
sozinha resolvera a situação difícil com o Vultura, no mar
Egeu, dois dias antes.
- E a Marinha turca? - Costas olhou esperançoso para
Mustafá, que havia chegado com o Sea Venture no dia
anterior.
- Temos uma presença forte no mar Negro, - replicou o
turco. - Mas estamos intensificando, com poucos meios, a
guerra contra o contrabando. Para auxiliar o Seaquest, a
Marinha turca necessitaria transferir unidades que estão no
mar Egeu. Não podemos transferir os navios
antecipadamente porque qualquer mudança na nossa
esquadra no mar Negro despertaria imediatamente a suspeita
dos russos. Meu governo só assumirá riscos se uma
descoberta importante for confirmada.
- Então, estamos sozinhos.
- Temo que sim.
Na breve pausa que se seguiu, York enviou dois dos
tripulantes para a borda do navio; o vento que se levantava
ameaçava o equipamento e por isso precisavam amarrá-lo
com corda ao tombadilho. Jack interveio rapidamente para
centrar a discussão no assunto em pauta; a urgência do seu
tom de voz refletia o pouco tempo agora disponível até que
o Seaquest chegasse ao local.
- Devemos estar seguros de atingir o lugar certo logo na
primeira tentativa. Podemos ter certeza de estar sob
vigilância de satélite bem agora, sob os olhos de pessoas que
não engolirão essa história de pesquisa hidrográfica por
muito tempo.
Um dos ex-homens da Marinha levantou a mão.
- Desculpe, senhor, mas exatamente atrás do que nós
estamos?
Jack desviou-se para o lado para deixar a tripulação ver a tela
do computador na frente do console.
- Mustafá, vou deixar você explicar como chegamos até aqui.
Mustafá exibiu a imagem isométrica do mar Negro e
percorreu rapidamente a interpretação do texto do papiro,
avançando a embarcação ao longo da linha da costa até que
ela alcançasse o setor sudeste. Agora eles haviam deixado
seu porto final de escala e Jack havia decidido tomar a
tripulação do Seaquest completamente sob sua confiança.
Aqueles que ainda não tinham ouvido detalhes estavam
fascinados; mesmo os veteranos ficaram paralisados diante
da grandeza de um achado que parecia agigantar-se tão
fabulosamente das brumas das lendas.
- Alcançamos o ponto-alvo seguindo o contorno de cento e
cinqüenta metros de profundidade, a linha da costa antes do
dilúvio. Ela se desloca para o mar à medida que nos
movemos para o leste saindo de Trabzon. No momento o
Seaquest está exatamente doze milhas náuticas distante da
costa, mas pouco a pouco vamos nos afastar mais à medida
que formos para o leste.
Ele pressionou uma tecla e a imagem se transformou em um
close-up de um mapa.
- Este é o melhor cenário que temos sobre a Atlântida. É
Uma área de solo oceânico com vinte milhas náuticas de
comprimento por cinco milhas de largura. O seu contorno,
com cento e cinqüenta metros de profundidade, continua
margeando o lado norte, então estamos olhando aqui para o
que era terra seca. Se abaixarmos o nível do mar até aquele
contorno, ficamos com uma idéia da sua aparência antes do
dilúvio.
A imagem se transformou para mostrar uma planície na
parte afastada da costa que levava a uma cordilheira, ao
longo da costa, com vários quilômetros de comprimento.
Além dela ficava o vulcão.
- Não há muitos detalhes porque há pouquíssimos dados de
batimetria para essa área. Mas estamos convencidos de que o
local deve ser ou a cordilheira ou o vulcão. A cordilheira se
levanta cerca de cem metros acima da linha da antiga costa.
O problema é: não há acrópole, nem afloramentos de
rochas, acima da superfície do terreno, para uma cidadela. É
difícil entender o papiro sem isto.
- O vulcão é um marco bastante bom, - observou Howe. - O
lado noroeste forma uma série de plataformas em forma de
terraços antes que ele alcance um despenhadeiro. Uma
cidadela neste local estaria situada de maneira a causar
grande impressão, com um alcance de visão de várias milhas
de cada lado. Vocês podem imaginar uma cidade se
estendendo ao longo de baixos declives ao lado da costa.
- A defesa era provavelmente um fator, embora não o
dominante porque não havia outras cidades-Estado por
perto, - afirmou Jack. - A única ameaça podia ter sido
causada por bandos de saqueadores formados por caçadores,
um último resíduo da Idade do Gelo, mas eles teriam sido
muito pouco numerosos. Encontrar terreno alto significava
principalmente evitar zonas sujeitas a inundações e
pântanos.
- E a atividade vulcânica? - perguntou York.
- Não houve uma erupção vulcânica significativa por mais de
um milhão de anos-, - replicou Mustafá. - O que vocês vêem
hoje é uma atividade ocasional dos respiradouros, fontes
quentes de gases e vapor que são cuspidos para fora quando
a pressão dentro do núcleo aumenta periodicamente.
Eles olharam para a tela de realidade virtual, onde agora mal
podiam distinguir a ilha no horizonte. Era o cume do vulcão
que havia permanecido acima da água depois da inundação.
As colunas de vapor se elevando do seu cume pareciam
juntar-se ao céu baixo e cinzento, a tempestade que estava
trovejando no norte aproximava-se com velocidade
alarmante.
Jack falou novamente.
- Na Antigüidade, eventos sísmicos eram quase
invariavelmente vistos como sinais dos deuses. Um vulcão,
com pouca atividade, poderia vir a ser um lugar importante
para a prática de rituais, talvez esse fosse um dos principais
motivos para se estabelecerem naquele local. Em uma região
tão fértil eu presumiria que ambos, o vulcão e a cordilheira,
fossem ocupados. Mas devemos escolher entre os dois.
Podemos não ter a oportunidade de fazer uma segunda
exploração antes que visitantes indesejados apareçam.
Temos vinte minutos antes que o Seaquest esteja sobre a
cordilheira. Qualquer sugestão é bem-vinda.
Houve outra pequena pausa enquanto Jack conferenciava
com York. Eles fizeram vários ajustes no console de
navegação e examinaram as imagens através do radar de
vigilância. Quando os dois homens se voltaram para a
tripulação, Katya pegou seu palmtop computer e pressionou
uma série de comandos.
- Qualquer lugar se adaptaria ao texto, - disse ela. - Tanto a
cordilheira quanto o vulcão tinham uma vista panorâmica
sobre um amplo vale para o sul com montanhas distantes e
lagos salgados no meio.
- Será que o papiro nos diz mais alguma coisa que possa
ajudar? - perguntou um dos tripulantes.
- Não, de fato. - Katya olhou atentamente para o texto de
novo e sacudiu a cabeça. - Os fragmentos finais do escrito
parecem se referir ao interior da cidadela.
- Há algo mais.
Todos se voltaram para Costas, que estivera observando,
muito concentrado, a imagem da ilha à medida que ela se
tornava maior e mais claramente definida. Ele desviou o
olhar e voltou-se para Katya.
- Leia aquela primeira frase depois de chegar à Atlântida. -
Katya deu um comando e leu na tela. - Sob o signo do touro
Todos olharam para Costas de maneira interrogativa.
- Vocês estão familiarizados com o bar no topo do telhado
no Museu Marítimo em Cartago?
Houve um murmúrio geral de assentimento.
- A vista da baía de Túnis para o leste, o sol da tarde
esbanjando sua luz rósea sobre o mar, os dois picos gêmeos
do Ba'ai Qarnain perfurando o céu ao fundo.
Todos aquiesceram.
- Bem, talvez poucos de vocês estejam tão familiarizados
com a primeira coisa que se avista de manhã. Durante o
solstício de verão o sol levanta-se diretamente sobre a sela
entre os picos. Para os fenícios, esta era uma montanha
sagrada consagrada ao deus Céu. Ba'ai Qarnain significa Deus
de Dois Chifres. - Ele se voltou para Jack. - Acredito que
signo do Touro se refere ao perfil daquela ilha.
Todos olharam para o aparecimento gradual de uma grande
área de terra na tela.
- Estou confuso, - interrompeu Howe. - De onde estamos, a
ilha não se parece com nada disso.
- Tente em outra direção, - disse Costas. - Estamos olhando
para o sudeste. E como seria a vista se a contemplássemos do
contorno da costa, de debaixo do vulcão onde existiu uma
povoação?
Mustafá rapidamente pressionou algumas teclas para
reorientar a vista para o nordeste, aumentando assim a
ampliação e fazendo surgir a imagem do antigo contorno da
costa abaixo do vulcão.
Ouviu-se um suspiro de espanto quando a imagem apareceu.
Acima deles foram surgindo dois picos separados por uma
sela profunda.
Costas olhou para a tela com um ar triunfante.
- Ali, senhoras e senhores, estão nossos chifres de touro.
Jack sorriu abertamente para seu amigo antes de se voltar
para York.
- Acho que temos uma resposta. Planeje uma rota para
aquela ilha com velocidade máxima.

12

Os holofotes, um de cada lado dos Aquapods, lançavam uma
faixa brilhante de iluminação sobre o solo oceânico, os feixes
direcionados para convergir cinco metros abaixo. A luz
refletia milhões de partículas de lama suspensas como se eles
estivessem atravessando véus sem fim de uma neblina
salpicada. Rochas isoladas apareciam e desapareciam atrás, à
medida que passavam em velocidade máxima. À esquerda o
fundo do mar caía abruptamente em um abismo, o cinza
desolado do solo oceânico transformando-se em um
negrume ameaçador completamente destituído de vida.
O intercomunicador deu um estalido.
- Jack, aqui é do Seaquest. Está me ouvindo? Câmbio.
- Estou escutando alto e claro.
- O avião teleguiado detectou algo. - A voz de York estava
ansiosa e excitada. - Você deverá alcançar a posição dele
dentro de quinhentos metros se mantiver sua trajetória
atual. Estou enviando as coordenadas para que você possa
programar a rota se tiver algum problema.
Mais cedo naquele dia a ilha foi surgindo gradualmente no
horizonte como uma aparição mítica. Logo antes da chegada
do Seaquest, o mar tornou-se muito calmo, uma calmaria
sinistra que parecia libertar seus vapores em um manto de
fumaça espectral. Quando o vento recomeçou e empurrou a
neblina em direção à costa árida, eles se sentiram como
exploradores que tiveram a chance de encontrar-se
inesperadamente com algum mundo perdido. Com sua falta
de vegetação e rochedo íngreme, a ilha parecia
inacreditavelmente antiga, um penhasco de solo
improdutivo reduzido pelo tempo e intempéries à sua mera
essência. No entanto, se seus instintos estavam certos, fora
aqui que todas as esperanças e o potencial da humanidade se
originaram.
Eles pararam o Seaquest cerca de duas milhas náuticas a
oeste da ilha. Para reconhecer os declives submersos haviam
usado um avião teleguiado com sonar em vez do ROV, que
era limitado a uma inspeção visual. Durante três horas não
houve nada de incomum na leitura do sonar, e eles tinham
decidido utilizar os Aquapods também. A velocidade era
agora o elemento mais importante.
Jack fez um sinal de aprovação para Costas, que estava
circundando o contorno do fundo do mar a uma
profundidade de 140 metros. Podiam perceber a excitação
que se apoderava de cada um, uma sensação de antegozo
que não necessitava de trocas de palavras. Desde o momento
da chamada telefônica, quando Hiebermeyer revelou pela
primeira vez o texto do papiro, Jack soube que eles seriam
impulsionados para uma grande revelação. Através de todo o
esmerado processo de tradução e de decifração ele sentiu-se
altamente confiante de que se tratava do verdadeiro
manuscrito, que as estrelas estavam todas alinhadas desta
vez. No entanto, o ritmo dos acontecimentos, desde que
eles desvendaram o código, lhe deixou pouco tempo para
refletir. Apenas alguns dias antes ele se enchera de incrível
orgulho por causa do naufrágio minoano. Agora estavam no
ápice de uma das maiores descobertas de todos os tempos.
Os Aquapods diminuíram a velocidade até se
movimentarem muito lentamente, e eles continuaram em
silêncio, cada homem ciente do outro através de suas
cúpulas de plexiglas enquanto os visíveis assentos amarelos,
em forma de concha, avançavam pouco a pouco na
escuridão, separados apenas por alguns metros.
Momentos mais tarde, a visão de formas espectrais começou
a se materializar fora da cerração. Eles haviam estudado as
imagens da aldeia neolítica de Trabzon antecipando esse
momento. Mas nada podia tê-los preparado para a realidade
de entrar em um lugar que tinha estado perdido para o
mundo por quase oito mil anos.
De repente isso estava acontecendo.
- Vá mais devagar, - disse Jack quase sem respirar. - Dê uma
olhada nisto.
O que tinha parecido ser uma ondulação regular no solo
oceânico assumia uma nova forma quando Jack dirigiu uma
forte rajada do jato de água para remover sedimentos.
Quando o local ficou limpo, eles puderam ver as bocas
escancaradas de um par de imensos jarros de cerâmica
enterrados como colunas, lado a lado, entre paredes baixas
de retenção. Uma outra rajada revelou um segundo par de
jarros, e ondulações idênticas continuaram ladeira acima até
onde a vista podia alcançar.
- Este é um armazém, provavelmente para grãos, - disse
Jack. - Eles são como os pithoi em Cnossos. Apenas quatro
mil anos mais antigos.
De repente, uma forma maior apareceu diante deles,
bloqueando completamente seu avanço. Por um momento
lhes pareceu que haviam chegado à beira do mundo. Eles
estavam na base de um enorme rochedo íngreme que se
estendia por todo o contorno nas duas direções, sua parede
inclinada interrompida por saliências e fissuras como a face
de uma pedreira. Depois viram remendos retangulares de
piche negro, alguns em intervalos regulares no mesmo
nível.
Assombrados, eles então se deram conta do que estavam
olhando.
Um imenso conglomerado de telhados planos e de paredes
interrompidas por janelas e vias de acesso, tudo coberto por
uma manta de lama. Era como uma aldeia neolítica, mas em
escala gigantesca. As construções se elevavam por quatro ou
cinco andares, as mais altas com terraços na parte superior
do telhado, unidos por escadarias e escadas de mão.
Eles pararam os Aquapods e fixaram os olhos com grande
admiração, forçando as mentes para registrar uma imagem
que parecia ser mais fantasia do que fato.
- É como um imenso condomínio, - maravilhou-se Costas.
Jack fechou os olhos e depois os abriu de novo, a descrença
se transformando em assombro à medida que a lama
levantada pelos Aquapods começava a se depositar e a
revelar os sinais inequívocos de esforço humano ao redor
deles.
- As pessoas subiam para o alto do telhado por essas portas. -
Seu coração estava acelerado, a boca seca, mas ele se forçava
a falar em um tom desapaixonado de arqueólogo
profissional. - Suponho que cada um desses blocos abrigava
uma família extensa. Conforme o grupo aumentava, eles
construíam no sentido vertical, acrescentando estruturas de
madeira e andares de tijolos de barro.
À medida que se elevavam eles podiam ver que os blocos
eram perfurados por um labirinto de ruelas, uma
reminiscência espantosa dos mercados do Oriente Médio.
- Isto deve ter fervilhado com artesãos e comércio - disse
Jack. - Não há possibilidade de terem sido apenas
agricultores. Eles eram hábeis oleiros, carpinteiros e
metalúrgicos.
Ele fez uma pausa e olhou através da cúpula de plexiglas para
o que parecia ser a fachada de uma loja localizada no térreo.
- Alguém neste local fez o disco de ouro.
Durante alguns minutos eles passaram por outras
construções elevadas de telhados planos, as janelas escuras
fitando-os como olhos cegos na luz dos holofotes. Cerca de
quinhentos metros para o leste, a partir do armazém de
depósito, a conglomeração terminou abruptamente. Na
escuridão à frente eles podiam distinguir um outro
complexo, distante, talvez, uns vinte metros, e abaixo deles
um espaço mais amplo e mais regular que as ruelas.
- É uma estrada, - disse Jack. - Ela deve ir até o antigo litoral.
Vamos dar uma olhada e depois retomaremos nossa rota
original.
Os dois homens viraram para o sul e seguiram lentamente a
estrada declive acima. Duzentos metros depois, ela era
interceptada por uma outra estrada que se estendia na
direção leste-oeste. Viraram e seguiram para o leste, com os
Aquapods mantendo uma altitude de vinte metros para
evitar chocar-se com as construções de ambos os lados.
- Extraordinário, - disse Jack. - Estes blocos estão separados
por uma rede regular de ruas, as primeiras em milhares de
anos.
- Alguém planejou este lugar.
A tumba de Tutancâmon, o palácio de Cnossos, as paredes
fabulosas de Tróia, todas as consagradas descobertas da
arqueologia de repente pareciam prosaicas e mundanas,
meros trampolins para as maravilhas que apareciam diante
deles.
- Atlântida, - Costas sussurrou. - Há poucos dias eu nem
mesmo acreditava que ela existisse. - Ele olhou para a
silhueta na outra cúpula de plexiglas e disse: - Algum tipo de
agradecimento seria bem apreciado.
Jack sorriu apesar de sua preocupação com as fabulosas
imagens ao redor deles.
- O.k. Você nos conduziu na direção correta. Eu lhe devo
um enorme gim-tônica.
- Isto foi o que ganhei da última vez.
- Então um estoque para o resto da vida.
- Combinado.
Pouco depois as construções de ambos os lados
desapareceram de repente e o solo do mar baixou sem que
pudessem ver o fundo. Cinqüenta metros adiante ainda não
havia nada exceto uma neblina de lama suspensa.
- Minha sonda acústica de profundidade mostra que o solo
do mar baixou quase vinte metros abaixo do nível da estrada,
- exclamou Jack. - Acho que podemos descer e voltar até o
ponto em que as construções desapareceram.
Esvaziaram a água do tanque de lastro até que as luzes
revelaram o solo do mar. Ele era plano e sem traços
característicos, diferente da superfície ondulada que haviam
atravessado quando se dirigiam para a fronteira oeste da
cidade.
Alguns minutos mais tarde voltaram ao ponto em que
tinham visto estruturas pela última vez. Diante deles o solo
do mar se elevava de maneira repentina com um ângulo de
45 graus até alcançar a base das construções no final da
estrada acima.
Costas movimentou o Aquapod para a frente até que seu
tanque de lastro pousasse no chão, logo antes que este se
inclinasse para cima. Dirigiu uma forte rajada de seu jato de
água em direção ao declive e depois voltou para onde estava
Jack.
- Exatamente como eu pensava!
Retirada a lama, revelou-se um terraço em escadas como
assentos em um teatro. Entre o chão e o trecho inicial do
terraço havia uma parede de três metros de altura.
- Ela foi desbastada na rocha viva, - disse Costas. - É tufo
calcário, não é? A mesma pedra negra usada na Roma antiga.
Leve porém resistente, é escavada facilmente, mas serve
bem para suportar peso.
- Mas não vimos quaisquer construções em alvenaria-, -
protestou Jack.
- Deve haver estruturas sólidas em algum lugar.
Jack estava olhando atentamente para as características do
local à sua frente.
- Isso é mais do que apenas uma pedreira. Vamos seguir os
terraços e ver aonde eles nos levam.
Vinte minutos mais tarde haviam percorrido três lados de
um vasto pátio escavado de quase mil metros de
comprimento por quinhentos metros de largura. Enquanto o
traçado da estrada seguia a linha da antiga costa, correndo
paralelamente a ela e respeitando-lhe as curvas, o pátio
estava alinhado na direção sudeste. Eles o ladearam no
sentido dos ponteiros do relógio e estavam agora na
fronteira sudeste oposta ao seu ponto inicial. Acima deles as
construções e a estrada prosseguiam exatamente da mesma
maneira que do outro lado.
- Parece um estádio, - murmurou Costas. - Lembro de você
dizer que aqueles pátios nos palácios, em Creta, eram lugares
onde se açulavam touros, se praticavam sacrifícios e outros
rituais.
- Os pátios minoanos era menores, - replicou Jack. - Mesmo
a arena do Coliseu, em Roma, tem apenas oitenta metros de
circunferência. Este é imenso. - Ele pensou por um instante.
- É apenas um pressentimento, mas antes de continuar pela
estrada eu gostaria de ir até o centro deste espaço.
De dentro de sua cúpula Costas aquiesceu.
Eles começaram a se dirigir para o centro pelo oeste. Depois
de cerca de cento e cinqüenta metros, deram uma parada. À
sua frente estava uma massa de pedra coberta de lama, a
forma era irregular e bem diferente do limite do pátio.
Costas dirigiu um jato de água sobre a rocha, o que
praticamente encobriu sua cúpula com lama. Depois de
alguns instantes sua voz chegou pelo intercomunicador.
- Este é um afloramento que permaneceu em pé quando o
resto foi escavado.
Jack estava passando bem lentamente, na direção sudeste,
por uma projeção de rocha que se estendia por vinte metros
a começar do aglomerado principal. A projeção terminava
em uma borda redonda de cerca de dois metros de altura e
cinco metros de lado a lado. Costas acompanhou quando
Jack limpou delicadamente a superfície com seu jato de
água, retirando a lama para revelar a rocha nua.
Com estupefação eles fitaram a forma que emergiu, suas
mentes incapazes de reconhecer o que viam diante de si.
- Meu Deus!
- Isto é... - Jack vacilou.
- É uma pata, - sussurrou Costas.
- Uma pata de leão. - Jack rapidamente recuperou seu
sangue-frio. - Esta deve ser uma estátua gigantesca, com pelo
menos cem metros de comprimento por trinta metros de
altura.
- Você está pensando no que estou pensando?
- Uma esfinge?
Durante um momento os dois homens se encararam em
silêncio, perplexos, através das cúpulas transparentes.
Finalmente a voz de Costas soou alterada pelo
intercomunicador.
- Parece inacreditável, mas tudo é possível neste local. O
que quer que haja acima, está muito longe do caminho que
percorremos e nós não vimos. Vou dar uma olhada.
Jack ficou parado enquanto o companheiro flutuava para
cima, a cúpula desaparecendo gradualmente até deixar
visível apenas um halo de luz. Quando este também estava
para desaparecer, Costas parou de maneira abrupta, cerca de
trinta metros acima do solo do mar.
Jack esperava ansioso o relato de Costas. Passado pouco mais
de um minuto ele não pôde conter-se.
- O que você pode ver?
A voz de Costas pareceu estranhamente apagada.
- Me ajude a lembrar. A esfinge tem um corpo de leão e uma
cabeça humana. Certo?
- Certo.
- Veja esta variante.
Costas acionou os holofotes no máximo. A imagem que
apareceu bem acima era impressionante e aterrorizante, uma
visão de pesadelo. Era como se um flash de iluminação, em
uma noite de tempestade, tivesse revelado uma imensa besta
elevando-se sobre eles, as feições da silhueta exibindo um
brilho espectral que irrompia no meio de grandes
quantidades de nuvens.
Jack olhou para cima transfigurado, quase incapaz de
registrar uma imagem para a qual todos os seus anos de
exploração e de descobertas extraordinárias não o haviam
preparado.
Era uma imensa cabeça de touro, os enormes chifres
erguidos na escuridão além do alcance da luz, o focinho
meio aberto como se ele estivesse prestes a abaixar a cabeça
e bater com as patas no chão antes do ataque violento.
Depois do que pareceu uma eternidade, Costas mudou a
posição do seu Aquapod voltando-o para a frente e dirigiu a
luz para o pescoço da besta, mostrando exatamente a partir
de onde ela se transfigurava em corpo de leão.
- Ela foi escavada na rocha viva, basalto ao que parece, -
disse ele. - Os chifres se elevam pelo menos dez metros
acima das construções. Outrora isso deve ter sido uma ponta
saliente feita de lava que fluía para o mar.
Costas estava descendo mais rapidamente agora e logo
alcançou Jack.
- A estátua está de frente para o vulcão, - continuou ele. -
Isto explica o alinhamento estranho do pátio. Ele respeita
mais a orientação dos picos gêmeos do que a linha da costa,
que teria sido uma marca de referência mais prática para o
planejamento das ruas.
Jack rapidamente compreendeu o significado das palavras de
Costas.
- E o nascer do sol teria brilhado diretamente entre os
chifres e os dois picos, - ele disse. - Deve ter sido uma vista
que mesmo os antigos mal podiam ter imaginado em suas
fantasias mais selvagens sobre o mundo perdido da
Atlântida.
Os dois Aquapods subiram juntos, vagarosamente, até o
parapeito, seus jatos de água expulsando uma tempestade de
lama à medida que eles se afastavam do solo do pátio. A
forma traseira da gigantesca esfinge-touro foi engolida na
escuridão atrás deles, mas a imagem da colossal cabeça com
os seus chifres curvos e proeminentes permanecia gravada
em suas mentes.
O perímetro sudeste era maior do que o resto, elevando-se
pelo menos dez metros verticalmente.
- É uma escadaria, - disse Jack. - Uma grande entrada para o
pátio.
Os dois Aquapods foram um para cada lado, Jack à esquerda
e Costas à direita. Em poucos instantes, um parecia ao outro
como um simples borrão amarelo na escuridão. No topo
havia uma ampla estrada, que, como seus jatos de água
revelaram, apresentava uma superfície branca lustrosa.
- Parece um pavimento de mármore.
- Eu não sabia que as pessoas já trabalhavam a pedra tão
cedo. - Costas ficara maravilhado antes com a extensão da
extração de pedra no pátio, e agora havia ali evidência de
trabalhos de alvenaria. - Eu pensava que a extração de pedras
só houvesse começado com os egípcios. Os caçadores da
Idade da Pedra escavavam procurando coisas muito duras
para fazer ferramentas, mas esta é a evidência mais antiga de
construções em pedra cortada com precisão. Isto atribui uma
data anterior em relação as primeiras extrações egípcias de
pelo menos dois mil anos.
Eles continuaram avançando silenciosamente, nenhum dos
dois capaz de compreender a enormidade do seu achado.
Marcas fosforescentes aumentavam atrás deles como uma
esteira de névoa. A estrada seguia a mesma orientação que o
pátio, conduzindo, do olhar fixo da esfinge-touro,
diretamente para a base do vulcão.
- Posso ver estruturas à minha direita, - anunciou Costas. -
Pedestais, pilares, colunas. Estou passando por uma
quadrada, de quase dois metros de largura. Suas torres
elevam-se a perder de vista. Parece um obelisco.
- Estou vendo o mesmo, - disse Jack. - Elas estão dispostas
de maneira simétrica, exatamente como nos recintos dos
templos egípcios em Luxor e Karnak.
Os holofotes revelaram uma sucessão de formas espectrais
de cada lado do caminho processional, as quais iam
aparecendo e em seguida desaparecendo gradativamente
como fantasmas vislumbrados em uma tempestade de areia.
Eles viram altares e pedestais, estátuas de cabeça de animais
e membros esculpidos de criaturas muito bizarras para serem
reconhecidas. Os dois homens começaram a se sentir
enfraquecidos, como se estivessem sendo seduzidos por
essas sentinelas que acenavam de dentro de um mundo além
de sua experiência.
- Isto é como a entrada do Hades, - murmurou Costas.
Eles percorreram o corredor entre as lúgubres fileiras de
estátuas à espreita, uma presença chocante que parecia
reprová-los por violar um domínio que havia sido só delas
durante milênios.
Momentos mais tarde a palidez sumiu do rosto de ambos
quando a estrada terminou de maneira abrupta em duas
grandes estruturas divididas por uma passagem central. Ela
tinha dez metros de largura, menos que a metade da largura
da estrada, e degraus baixos como aqueles que conduziam ao
pátio.
- Posso ver blocos, cada um com quatro ou cinco metros de
comprimento e talvez dois metros de altura. - Costas sentiu-
se subitamente exaltado. - É para aqui que vinham todas as
pedras extraídas! - Ele parou bem no meio da passagem e
usou seu jato de água para retirar lama da base da parede.
Dirigiu sua luz de modo que iluminasse a estrutura.
Jack estava distante cerca de dez metros de Costas e ao olhar
na direção do companheiro podia ver-lhe o rosto sob a
cúpula.
- É a minha vez de fazer reconhecimento.
Jack deu saída à água e começou a subir, mas, em vez de ir
afastando-se aos poucos, ele sumiu abruptamente em uma
borda não muito acima.
Vários longos minutos depois sua voz se fez ouvir no
intercomunicador.
- Costas, você está me ouvindo? Isto é incrível.
- O que é?
Houve uma pausa.
- Pense nos monumentos mais marcantes do antigo Egito. -
O Aquapod de Jack reapareceu e ele desceu até a passagem.
- Não é uma pirâmide.
- Você adivinhou.
- Mas pirâmides têm lados em declive. Estes são verticais.
- O que você está vendo é a base de um terraço muito
grande, - explicou Jack. - Cerca de dez metros acima de nós
ele se transforma em uma plataforma de dez metros de
largura. Acima deste há um outro terraço com as mesmas
dimensões, depois um outro, e assim por diante. Eu percorri
toda a extensão deste lado e pude ver que o terraço continua
do lado sudeste. É o mesmo desenho básico que o das
primeiras pirâmides egípcias, as pirâmides escalonadas do
início do terceiro milênio antes de Cristo.
- Qual é o tamanho disto?
- Esta é a diferença. Esta é imensa, mais parecida com a
Grande Pirâmide em Giza. Eu estimaria cento e cinqüenta
metros de lado a lado na base e oitenta metros de altura,
mais da metade do caminho até o nível do mar. É
inacreditável. Este deve entrar na categoria do mais antigo e
maior edifício de alvenaria no mundo.
- E do meu lado?
- É idêntico. Um par de pirâmides gigantescas marcando o
fim do caminho processional. Atrás disto espero encontrar
alguma forma de templo ou um complexo mortuário, talvez
desbastado no interior do vulcão.
Costas ativou o monitor de navegação que se elevou à sua
frente como a mira da arma de um piloto de avião de
combate.
Jack olhou para baixo quando o modem da radiofreqüência
mostrou a mesma imagem na sua tela.
- Um mapa hidrográfico recentemente superado, - explicou
Costas. - Feito por um navio de inspeção britânico que
realizou medidas sonoras manuais para determinar a
profundidade da água, enquanto acompanhava a derrota
infligida pelos Aliados à Turquia otomana, no fim da
Primeira Guerra Mundial. Infelizmente a Marinha Real só
teve um tempo limitado antes que a República Turca
adquirisse controle e as forças soviéticas fechassem as portas
do mar Negro. Ele é o mais detalhado que consegui, mas em
uma escala de um para cinqüenta mil só mostra amplos
contornos de batimetria.
- O que você quer dizer?
- Dê uma olhada na ilha. - Costas deu um comando para uma
vista em close-up. - Os únicos aspectos irregulares, grandes
bastantes para aparecer na inspeção, eram aqueles dois
montes subaquáticos que se elevam contra o lado noroeste
da ilha. Eles são estranhamente simétricos, não é?
- As pirâmides! - O rosto de Jack abriu-se em um amplo
sorriso. - Tanto melhor para o nosso trabalho de detetive. A
Atlântida tem sido mostrada em um mapa por mais de
oitenta anos.
Eles diminuíram a velocidade no centro da passagem, as
pirâmides foram aparecendo pouco a pouco com sua sólida
alvenaria perfeitamente ajustada, apenas visível através da
escuridão que havia de cada lado. Como Jack estimou, eles
ultrapassaram as extremidades depois de cento e cinqüenta
metros. Os degraus continuaram adiante na escuridão.
O único som, à medida que avançavam, era o zumbido dos
jatos de água enquanto eles mantinham uma altitude
constante de um metro acima do solo do mar.
- Olhe!
Houve uma súbita comoção e uma praga abafada. Durante
uma fração de segundo, em que a atenção de Costas foi
desviada, ele colidiu com um obstáculo logo adiante.
- Você está bem? - Jack estava uns cinco metros atrás do
companheiro, mas então o alcançou e ficou ao seu lado, o
rosto mostrando preocupação enquanto olhava atentamente
através do redemoinho de lama.
- Não há dano evidente, - respondeu Costas. - Felizmente
estávamos andando em baixa velocidade.
Costas fez um diagnóstico de rotina com seu braço robótico
e arrumou o holofote antes de retroceder alguns metros.
- Regra número um ao dirigir: sempre olhe para onde você
está indo, - disse Jack.
- Obrigado pelo aviso.
- Então, o que era?
Eles se esforçaram para ver através da lama. A perturbação
do local havia reduzido a visibilidade para menos de um
metro, mas quando o sedimento começou a se depositar
começaram a distinguir uma forma curiosa bem à sua frente.
- Parece um espelho de banheiro de tamanho fora do
comum, - disse Costas.
Era um imenso disco, talvez com cinco metros de diâmetro,
colocado em um pedestal de quase dois metros de altura.
- Vamos procurar inscrições, - sugeriu Jack. - Você limpa a
lama e eu vou dar uma volta aí em cima para ver se
encontro algo.
Costas desprendeu uma luva de metal de seu painel de
instrumentos, inseriu sua mão esquerda e curvou os dedos.
O braço robótico na frente do Aquapod imitava exatamente
seus movimentos. Ele abaixou o braço até o bocal do jato de
água que se projetava do chassi e selecionou um tubo do
tamanho de um lápis. Depois de ativar o jato, começou a
limpar metodicamente, a partir do centro do disco para fora,
traçando círculos cada vez maiores na pedra.
--Esta é uma bela pedra granulada. - A voz veio do halo
amarelo que era tudo o que Jack podia ver de Costas no
meio da nuvem de lama logo abaixo. - É um granito ou um
mármore de Crescia, semelhante ao pórfiro egípcio. Só que
este tem partículas esverdeadas como o lápis lacedaemonia
de Esparta. Deve ter sido uma rocha de mármore local
submersa pelo dilúvio.
- Você pode ver algumas inscrições?
- Há alguns entalhes lineares.
Costas esguichou com cuidado no lugar onde estava Jack.
Quando a lama se depositou, o padrão inteiro foi revelado.
Jack soltou um grito de alegria.
- Sim!
Com uma precisão geométrica o construtor havia esculpido
um complexo de entalhes horizontais e verticais na
superfície polida. No centro havia um símbolo como a letra
H, com uma linha vertical pendurada da linha transversal e
as laterais se estendendo em uma fileira de pequenas linhas
horizontais como um rastelo de jardim.
Jack enfiou a mão livre no bolso de seu casaco e de maneira
triunfante pegou uma cópia feita em polímero do disco de
ouro para que Costas a visse. Era uma réplica exata feita por
laser no Museu de Cartago, onde o original estava guardado a
sete chaves. A cópia tinha sido levada ao Sea Venture por
helicóptero pouco antes da chegada deles.
- Eu trouxe isto comigo para o caso de encontrarmos algo, -
disse Jack.
- Atlântida, - Costas sorriu para Jack.
- Este deve ser o marco da entrada. - Jack estava contente,
mas olhou de maneira determinada para seu amigo. -
Devemos nos apressar. Já passamos do tempo combinado
para o reconhecimento e o Seaquest deve estar esperando
por nós para restabelecer contato.
Eles aceleraram e desceram rapidamente rodeando cada lado
do disco de pedra, mas quase imediatamente tiveram de
desacelerar quando se confrontaram com uma forte
inclinação no declive. A passagem se estreitava em direção a
uma escada com degraus não muito mais largos do que os
dois Aquapods. Quando começaram a subir eles mal podiam
distinguir os declives rochosos e vertiginosos de cada lado
do vulcão.
Costas elevou seus holofotes e examinou com muita atenção
o que havia à frente, preocupado com o seu quase desastre
de poucos minutos antes. Depois que subiram apenas alguns
degraus ele falou:
- Há algo estranho aqui.
Jack estava hipnotizado por uma série de cabeças de animais
esculpidas que se alinhavam na escadaria ao seu lado. Elas
pareciam desfilar em procissão para o alto, atraindo-o para lá,
e estavam identicamente esculpidas em cada degrau. À
primeira vista pareciam os leões rosnadores da arte suméria e
egípcia, mas quando olhou mais cuidadosamente ficou
espantado ao ver seus incisivos imensos, como os dos tigres
com dentes de sabre da Idade do Gelo. Havia tanto para se
maravilhar, tanto para assimilar, ele pensou.
- O que é isto? - ele perguntou.
A voz de Costas soou perplexa.
- Está incrivelmente escuro acima de nós, quase um breu.
Chegamos a uma profundidade de cem metros e deveria
haver vestígios da luz do sol. Deveria estar ficando mais
claro e não mais escuro. Deve haver algum tipo de saliência.
Sugiro que... Pare! - ele berrou repentinamente.
Os Aquapods pararam apenas a alguns centímetros da
obstrução.
- Jesus! - exclamou Costas com vigor. - Quase bati de novo.
Os dois homens olhavam espantados e boquiabertos. Acima
deles aparecia uma forma colossal que se estendia dos dois
lados até onde conseguiam enxergar. Ela barrava o caminho
da escada de lado a lado, bloqueando o progresso deles e
escondendo qualquer entrada que pudesse haver atrás.
- Meu Deus! - exclamou Jack. - Posso ver rebites. Ê um
navio naufragado.
Sua mente oscilou enquanto se lançava das profundezas da
Antigüidade até o mundo moderno, para uma intromissão
que parecia quase uma blasfêmia depois de tudo que haviam
visto.
- Ele deve ter entalado entre as pirâmides e o vulcão. - É
exatamente o que precisamos, - disse Jack com resignação. -
Provavelmente da Primeira ou Segunda Guerra Mundial. Há
uma porção de navios inexplorados afundados por U-boats
em todo o mar Negro.
- Eu tive um mau pressentimento sobre isto. - Costas estava
manobrando seu Aquapod para o nível acima da curva do
casco do navio. - Volto já.
Ele foi para a esquerda, quase fora do campo de visão, e
depois girou e retornou sem parar, seus holofotes
direcionados para a massa negra. Jack se perguntava quanto
estrago havia sido causado, quanto tempo precioso seria
necessário para vencer este novo obstáculo inoportuno.
- Bem, o que é?
Costas aproximou-se dele e falou bem devagar, num tom
que era uma mistura de apreensão e excitação.
- Você pode esquecer a Atlântida por um tempo. Acabamos
de encontrar um submarino nuclear russo.

13

- É um Akula classe SSN, um submarino nuclear de ataque.
Não tenho dúvida de que este é Kazbek, o navio que
desapareceu neste setor em 1991. - York curvou-se sobre as
telas no console na ponte de comando do Seaquest, seus
olhos se movendo entre a imagem de sonar recém-enviada
por um ROV que passava por cima do naufrágio e um
conjunto de especificações transferidas de uma base de
dados do IMU sobre embarcações navais do antigo bloco
soviético.
Jack e Costas haviam voltado nos Aquapods menos de uma
hora antes e tinham se dirigido direto para uma reunião com
York e Howe. A tempestade que estivera se formando
durante toda a manhã no céu do norte agora se fazia
presente, e Howe havia ativado o sistema que equilibrava o
lastro de água para manter o barco estável. Era um novo
acontecimento agourento que aumentava a ansiedade de
Jack quanto a voltar para debaixo da água com máxima
urgência, e todas as mãos disponíveis estavam agora se
amontoando sobre o console enquanto tentavam localizar a
presença sinistra que estava bloqueando seu caminho em
direção ao fundo do mar.
- Akula é a designação da OTAN, a russa é tubarão. Kazbek
nome dado por causa da mais alta montanha no Cáucaso
central. - Katya aproximou-se do console, oferecendo um
café a Jack com um sorriso. - A designação soviética era
Projeto 971.
- Como é que você sabe de tudo isto?
A pergunta veio de um cientista chamado Lanowski, que
havia se juntado ao Seaquest em Trabzon, um homem
magro e cabeludo que usava óculos com lentes de cristal e
olhava para Katya com desprezo evidente.
- Antes de estudar para o meu doutorado completei o
serviço militar compulsório como analista na divisão de
guerra submarina no Departamento do Serviço de
Inteligência da marinha soviética.
O cientista mexeu em seus óculos e permaneceu calado.
- Consideramos que este seja o melhor de todos os
submarinos de ataque, equivalente ao americano "classe Los
Angeles", - ela acrescentou. - O Kazbek foi construído em
Komsomolsk sobre o Amur em 1988 e colocado em
operação no início de 1991. Apenas um reator, em
desacordo com as avaliações do serviço de inteligência
ocidental. Tubos de lançamento: quatro de seiscentos e
cinqüenta milímetros e seis de quinhentos e trinta e três
milímetros para múltiplas armas, inclusive mísseis de
cruzeiro.
- Mas ele não possui ogivas nucleares, - disse York
firmemente. - Este não é um SSBN, uma embarcação de
mísseis balísticos. O que me intriga é por que os russos
foram tão fanáticos para manter a perda em segredo. Muita
dessa tecnologia nos era familiar desde que o primeiro tipo
apareceu nos meados dos anos oitenta. Logo antes de deixar
a Marinha Real, eu participei de uma visita, durante o
Acordo para a Redução de Armas Estratégicas, à Frota do
Norte na sub-base em Yagenaya, perto de Murmansk, onde
nos levaram em um roteiro guiado para conhecer o último
Akula. Vimos tudo, exceto a sala do reator e o centro de
operações táticas.
- Uma equipe da IMU desautorizou o uso de um Akula I
durante a operação de limpeza em Vladivostok dois anos
atrás, - acrescentou Costas. - Eu pessoalmente separei as
partes dele, uma a uma.
Um dos membros da tripulação perguntou:
- O que aconteceu ao Kazbek? O reator funcionou mal?
- Foi o que tememos naquela época. - Mustafá Alkõzen deu
um passo à frente para se dirigir ao grupo. - Um problema de
fundição teria precipitado um vazamento de radiação
maciça, matando a tripulação e irradiando o oceano por
milhas ao redor. No entanto, os monitores de advertência
turcos não detectaram radiação anormal nas águas
territoriais.
- Uma falha de reator, apesar de rara, resulta em fundição, -
disse York. - Com maior freqüência, na verdade, ela reduz a
emissão da radiação. E não é o fim do processo. Se o núcleo
do reator não pode ser reativado existem sempre os motores
diesel auxiliares como back-up!
- O que estamos prestes a ver pode responder a pergunta. -
Costas dirigiu a atenção para o monitor de vídeo acima do
console, para onde imagens tiradas por seu Aquapod, no
fundo do mar, haviam sido transferidas. Ele apontou um
controle remoto para o vídeo e passou rapidamente através
de uma série de cenas extraordinárias de esfinges-touro e de
pirâmides até que as formas se tornassem menos distintas.
Depois deu pausa em uma imagem mostrando uma massa de
metal emaranhada, o naufrágio esboçado em uma auréola
amarela onde os holofotes refletiam os sedimentos
suspensos na água.
- A popa, - disse Costas simplesmente. - Esta é a hélice ou o
que sobrou dela. As sete pás da hélice estão intactas mas
cortadas rente ao eixo. Essa confusão no primeiro plano é o
estabilizador inferior e o inconfundível estabilizador
superior, perto da popa do Akula, está visível acima dela.
- Deve ter sido um impacto terrível, - disse um tripulante.
- Nós examinamos o lado leste da pirâmide pouco antes de
subir, - continuou Costas. - A alvenaria foi extensamente
danificada no lado oposto ao vulcão. Achamos que o
submarino estava indo na direção sudoeste com velocidade
máxima de mais de trinta nós e estas estruturas foram
detectadas muito tarde para que ele pudesse desviar. Eles
evitaram uma colisão frontal dando uma guinada a
bombordo, mas ao fazer isto bateram a popa contra a
pirâmide, com os resultados que vocês podem observar. O
submarino continuou por mais cem metros até que sua proa
ficou presa em uma fenda logo acima da antiga escadaria. Ele
afundou em pé entre a pirâmide e o vulcão.
- Inacreditável, - disse York. - Deve ter sido pura loucura
viajar àquela velocidade tão perto de uma ilha desenhada em
um mapa de maneira tão precária.
- Algo deu muito errado, - concordou Costas.
- Até onde podemos perceber não houve sobreviventes, -
continuou York. - No entanto, mesmo a cem metros de
profundidade a tripulação teria uma chance usando a versão
soviética do colete salva-vidas de capuz Steinke com
aparelho de respiração. Até mesmo um único cadáver
flutuante teria sido detectado por satélites monitores por
causa do mini-radiotransmissor incorporado ao capuz. Por
que eles não ejetaram uma bóia SLOT, um transmissor
unidirecional lançado do submarino? O casco do navio é
ainda mais desconcertante. Você diz que o dano é externo e
que não há evidência de que a armação tenha sido rompida.
Por que eles não esvaziaram os tanques de lastro? O Akula
tem casco duplo com três vezes o poder de flutuação de uma
embarcação com um único casco.
- Estas são todas boas questões. - Jack saiu das sombras onde
estivera ouvindo silenciosamente. - E podemos certamente
encontrar respostas. Mas devemos nos concentrar em nosso
objetivo. O tempo está passando rápido.
Ele ficou em frente ao grupo, ao lado de Costas, e examinou
os rostos de todos atentamente.
- Estamos aqui para encontrar o centro da Atlântida, não
para reiniciar a Guerra Fria. Acreditamos que o texto está
nos guiando para dentro daquele vulcão, subindo o caminho
processional desde a esfinge-touro em direção a algum tipo
de santuário. A escadaria continua sob o submarino, mas não
além dele. Nós verificamos isso.
Ele pôs as mãos nos quadris.
- Nosso alvo está abaixo de um cilindro de metal de cento e
oito metros de comprimento e que pesa nove mil toneladas.
Temos que supor que os tanques de lastro não podem ser
aliviados. Mesmo se conseguíssemos um equipamento para
deslocar navio, nossas atividades se tornariam óbvias na
superfície e os russos avançariam sobre nós como uma bala.
Qualquer tentativa para conseguir uma ajuda externa nos
faria perder a iniciativa. A Atlântida se tornaria acessível
para Aslan e seu bando de saqueadores. As imagens que
vocês acabaram de ver seriam as últimas. - Ele fez uma pausa
e falou bem lentamente. - Temos apenas uma opção. Vamos
ter que entrar lá dentro e abrir caminho através da rocha.

- Profundidade setenta e cinco metros e descendo.
Deveríamos estar entrando em uma área visível agora.
Katya observou atentamente através da portinhola de
plexiglas à sua esquerda. O que a princípio parecia uma
escuridão impenetrável revelou-se aos poucos como uma
paisagem marítima de formas maciças e sombras. O casco
negro do submarino afundado apareceu repentinamente à
frente em toda a sua magnitude assombrosa.
Costas puxou para trás a coluna de direção e voltou-se para o
co-piloto.
- Jack, fique pronto com o trem de aterrissagem. Prepare-se
para um solavanco.
Katya estava sentada ao lado de dois tripulantes e de grande
quantidade de equipamento na fuselagem central do DSRV-
4, o veículo de submersão para resgate em águas profundas
que era padrão em todas as embarcações classe Sea da IMU.
O chão diante deles era dotado de um acoplamento
universal que poderia se unir com a porta da escotilha de
praticamente qualquer submarino, permitindo que
marinheiros aprisionados pudessem ser removidos em
grupos de oito ou dez. No cais, os tripulantes haviam feito
ajustes finais à alça do estai para se adequar ao SSN russo.
Vinte minutos antes eles haviam vislumbrado o Seaquest
pela última vez, quando sua silhueta oscilante desaparecia
nas águas turbulentas acima deles.
- Chegando a cerca de cento e oitenta graus para o sul.
Profundidade de noventa e cinco metros.
Houve uma pancada surda quando eles chegaram a pousar
carcaça dianteira do submarino. Na frente deles levantava-se
a parte principal da torre blindada do submarino, o
periscópio e o sistema de antena apenas visível sob a luz do
holofote acima das portinholas escuras da ponte de
comando. Pela primeira vez eles podiam apreciar o imenso
tamanho do submarino, quase duas vezes a tonelagem do
Seaquest e tão longo quanto um campo de futebol.
Costas olhou para Jack.
- O "classe Akula" foi o submarino mais silencioso que os
soviéticos desenharam. Ele recebeu um revestimento
anecóico, finos ladrilhos de borracha no casco exterior
destinados a absorver pulsos ativos de sonar. Foi por isso que
não fizemos um estrondo maior quando aterrissamos.
Também torna mais fácil agarrar o casco usando ventosas de
sucção hidráulica em nosso trem de aterrissagem.
Costas moveu cuidadosamente a alavanca de comando para a
frente e o DSRV deslocou-se alguns metros para mais perto
do estabilizador. Quando ele desceu outra vez a entrada para
o compartimento de fuga tornou-se visível.
- Bem como o York suspeitava. Este compartimento está
fechado e selado. Qualquer tentativa de fuga e ele estaria
aberto.
Costas havia calculado que a antiga escadaria estaria debaixo
da sala situada no nariz em forma de cone da sala de
torpedos, tornando a escotilha de fuga dianteira seu ponto
de acesso mais próximo. Katya havia explicado que mesmo
em um estado de emergência de nível baixo as anteparas
selariam automaticamente o reator, da área operacional à
frente, o que não permitiria que da escotilha perto da popa
fosse possível acessar a sala de torpedos.
Costas estivera usando o display de navegação digital para
alinhar o DSRV com o seu alvo. Um instante depois houve
um som satisfatório quando o aro de enganchar nas docas
encaixou-se sobre a escotilha de fuga. Ele desligou o sistema
de navegação e acionou quatro interruptores, em cada lado
do joystick, nivelando o DSRV com o tombadilho e
empregando as pernas estabilizadoras com seus pés de
sucção.
- Ele tem uma vedação flexível. Entrada em doca segura.
Costas desatou seu cinto de segurança e virou o pescoço para
se dirigir a Katya e aos dois tripulantes.
- Vamos treinar a manobra mais uma vez. O sonar de
penetração profunda no ROV sugere que a parte dianteira do
submarino continua impermeável. Sobre o resto não se tem
certeza, porque o reator e o outro maquinário preenchem
muito do espaço interno, mas eles também poderiam estar
secos.
Ele rastejou até o sistema de acoplamento e Jack seguiu-o de
perto.
- Diretamente abaixo de nós está o compartimento dianteiro
de fuga, - continuou ele. - Em uma fuga molhada a
tripulação sobe ao compartimento e veste seus respiradores.
A escotilha inferior se fecha, o compartimento se enche de
água e a tripulação foge através da escotilha superior.
- E no caso de uma fuga seca? - perguntou Katya.
- O DSRV se acopla diretamente à escotilha de fuga exterior,
- replicou Costas. - No Akula I modificado, a escotilha é
colocada dois metros para dentro do casco, criando uma
câmara exterior adicional que atua como uma medida de
segurança para o resgate da população. Com a nossa própria
escotilha fechada podemos acoplar com o casco, abrir a
escotilha da carcaça, bombear o compartimento externo até
secá-lo e com um braço robótico abrir a escotilha de fuga
situada dois metros abaixo. Depois usamos o sistema sensor
externo do DSRV para testar o ambiente interior sem que,
na verdade, tenhamos de nos expor a ele.
Costas fez um sinal aos tripulantes e eles começaram a
examinar a vedação. Depois de travar manualmente a argola,
rastejaram em direção à popa do submersível e sentaram-se
lado a lado na frente de um pequeno console. Com o
estalido de um interruptor, a cobertura sobre a escotilha na
frente de Katya retraiu-se para dentro do casco do DSRV,
revelando uma cúpula de plexigas côncava que se iluminou
quando um holofote foi ativado e os tripulantes começaram
a desacoplar a escotilha do submarino.
Alguns instantes depois ouviu-se um assobio agudo quando a
água do mar, dentro da câmara, foi bombeada e substituída
pelo ar que estava em um dos cilindros externos de alta
pressão do DSRV.
- Câmara evacuada e equalizada, - disse um dos tripulantes.
Eivando agora o braço robótico.
Katya se espremeu entre Costas e Jack para ver melhor.
Abaixo deles podiam ver um tubo fino que terminava em
um dispositivo como uma garra, seu movimento sendo
controlado por um dos tripulantes, que usava um pequeno
joystick e uma tela de navegação.
- Ele trabalha por pressão diferencial, - explicou Costas. -
Nós enchemos a câmara com ar em uma pressão
barométrica ambiente, a mesma que existe dentro do DSRV.
Enganchamos aquele braço na escotilha e o engrenamos
para exercer alguma força de tração, em seguida diminuímos
bem devagar a pressão na câmara até ela ficar mais baixa do
que a do submarino. Depois, bingo! A escotilha se abre.
Eles ficaram olhando enquanto o braço robótico destravava
o fecho de segurança e agarrava firmemente a manivela
central; a escotilha se erguia enquanto a tensão era aplicada.
O tripulante diante do console estava concentrado em uma
tela que lhe dava uma visão em close-up do casco.
- Pressão de um bar. Reduzindo agora. - Ele abriu uma
válvula em um cano acima de onde se posicionava e ativou
uma bomba extratora que retirou o ar da câmara.
- Bar 0,95; 0,90; 0,85; 0,80. Agora!
Quando ele fechou a válvula todos puderam ver a escotilha
flutuando como se estivesse cavalgando uma onda. O braço
retraiu-se automaticamente e empurrou a escotilha contra o
lado da câmara. Agora podiam ver através da abertura as
entranhas do submarino, o holofote que ia dançando sobre
tubulações e anteparas no corredor abaixo.
- A pressão está em 0,795 bar.
- Era o que eu estava esperando. - Costas olhou para o
tripulante: - Dê-me as especificações ambientais completas
antes que compensemos.
Um sistema sensor que incorporava um espectrômetro de
gás, um contador Geiger e um medidor de dose de radiação
foi baixado da unidade destacável externa de modo a ficar à
vista.
- Dose de radiação 0,6 milirém por hora, menos do que você
obtém em um grande avião de transporte. Toxicidade geral
de nível moderado, com nenhuma indicação significativa de
gás ou de derrame químico. Alto teor de amônia
provavelmente por causa da decomposição orgânica, 8,2 por
cento de oxigênio, 70 por cento de nitrogênio, 22 por cento
de dióxido de carbono, 0,8 por cento de monóxido de
carbono, um pouco arriscado para exposição prolongada.
Temperatura de + 2°C.
- Obrigado, Andy. - Costas olhou de modo estranho para
Tack. - Entrar lá agora seria o mesmo que aterrissar no alto
do Everest com um kit tropical e a boca com gosto de ovos
estragados.
- Beleza - disse Jack. - Por que será que este tipo de coisa
sempre acontece quando você está na chefia?
Costas sorriu e olhou de novo para o console.
- Andy, compense o ambiente usando oxigênio puro e
empregue depuradores de gás CO2.
Ouviu-se um assobio agudo quando o DSRV começou a
derramar oxigênio dentro da escotilha por meio dos
cilindros de gás externos.
- O classe Akula tem os seus próprios depuradores, - disse
Katya. - Se pudermos ativá-los, eles farão o trabalho por nós.
Ele também possui uma unidade que decompõe a água do
mar para liberar o oxigênio. Esses submarinos podem ficar
debaixo da água durante meses com um ar que é mais puro e
mais bem oxigenado que na superfície.
Costas limpou o suor da fronte e olhou para ela:
- Isto levaria muito tempo. As baterias que fornecem energia
para aqueles sistemas devem ter se esgotado alguns meses
depois que o sistema diesel auxiliar interrompeu suas
operações, e prefiro reservar a bateria do DSRV para reativar
a iluminação de emergência. O nosso próprio depurador
incorpora monóxido de carbono e queimadores de
hidrogênio, bem como uma série de filtros químicos.
Uma voz chegou de onde estava o console.
- Alcançamos a pressão ambiente. Em dez minutos o ciclo
de purificação estará completo.
- Certo, - disse Costas. - É tempo de se equipar.
Eles vestiram E-suits bem ajustados, todas as partes externas
em contato com o ambiente eram de neoprene moído
reforçado com Kevlar, que era o amálgama com que faziam
os mais recentes trajes secos de mergulho com o brasão da
Marinha americana, roupas que podiam ser usadas em guerra
química e biológica. Em torno das panturrilhas colocaram
nadadeiras de silicone flexível que podiam ser calçadas
debaixo da água.
Costas fez um resumo rápido para os companheiros,
enquanto apertava suas correias:
- Teremos condições de respirar com segurança, mas, de
qualquer modo, sugiro que coloquemos máscaras que
cobrem todo o rosto, enquanto os reguladores misturam e
aquecem o ar, bem como filtram as impurezas residuais. Há
um suprimento adicional de oxigênio que entra em operação
assim que o sensor detecta uma diminuição atmosférica.
A máscara era um capacete de silicone enriquecido que se
ajustava perfeitamente à forma do rosto. Depois de terminar
de se vestir, Jack ajudou Katya a colocar o seu equipamento
completo de subsistência, que consistia em uma mochila de
polipropileno de forma aerodinâmica contendo um
respirador compacto de oxigênio, um regulador de vários
estágios e um conjunto triplo de cilindros reforçados com
titânio, cheios de ar, que suportam até oitocentas vezes a
pressão barométrica. Os cilindros da IMU eram superleves e
estreitos, pesando menos do que um simples conjunto de
mergulho antigo e desenhado ergonomicamente de modo
que eles mal percebiam o volume adicional.
Em seus pulsos, microconsoles exibiam os dados completos
do ambiente, bem como cálculos para uma variação de
misturas de hélio, oxigênio e ar nos cilindros. O gás era
misturado automaticamente, o computador levava em conta
a profundidade, o perfil do mergulho, a temperatura e até a
fisiologia individual.
- O intercomunicador deve nos permitir comunicar com o
DSRV, - disse Costas. - Ligue-o quando você ativar o sistema
SCLS* logo antes de entrarmos.
Depois de realizarem entre eles uma dupla inspeção nos
equipamentos de cada um, Jack pegou uma Beretta 92FS, 9
milímetros, de uma prateleira acima da escotilha. Encaixou o
pente com quinze balas e guardou a pistola em um coldre à
prova d'água e levou consigo um pente de reserva.
- Equipamento-padrão. - Ele olhou para Katya de maneira
tranqüilizadora, lembrando a conversa que tinham tido na
noite anterior sobre os riscos envolvidos. - Você nunca
pode estar inteiramente a salvo nessas empreitadas.
- Doutor Howard. Mensagem urgente do Seaquest.
- Coloque-a no áudio. - Jack levantou o visor de seu
capacete e pegou o microfone do tripulante. - Aqui é
Howard. Câmbio.
- Jack, é Tom falando. - A voz chegava interrompida pela
estática. - A tempestade finalmente nos pegou. Temporais
com descargas elétricas, a visibilidade baixou para cinqüenta
metros. A força da tempestade é descomunal e está
aumentando. Ela é muito pior do que temíamos. Não
consigo manter a posição atual tão perto da ilha. Repito. Não
consigo manter a posição atual. Câmbio.
A urgência que transparecia em sua voz era absolutamente
clara apesar da perturbação. Jack pressionou o botão de
resposta.
- Qual é a previsão? Câmbio.
- É uma das maiores tempestades jamais registradas nessa
época do ano. A sua chance de abortar a operação é agora.
Câmbio.
O DSRV era grande demais para ser preparado em um
ancoradouro interno do Seaquest e em vez disto ficava
balançando, como os botes salva-vidas, na popa. A
experiência havia lhes dado uma apreciação nítida dos
perigos de regressar em mares agitados.
- Qual é a alternativa? Câmbio.
- Vocês ficarão sozinhos durante vinte e quatro horas.
Pretendo levar o Seaquest para o norte, cerca de vinte
milhas náuticas, para detrás da tempestade, e depois seguir
atrás dela de volta para o sul. Câmbio.
- O DSRV não pode seguir o Seaquest tão longe debaixo da
água, - murmurou Costas. - A bateria está projetada para
operações de resgate e só conseguiria nos levar por cerca de
duas milhas antes de se esgotar.
Jack fez uma pausa antes de levantar o microfone.
- Tom, espere um momento. Câmbio.
No breve silêncio que se seguiu, Jack olhou para os outros e
recebeu um sinal de aquiescência de cada um deles. Andy e
Ben eram veteranos da IMU. Andy era um especialista em
submersíveis e o técnico-chefe de Costas, e Ben era um
antigo integrante da Marinha Real que havia servido na
Seção de Embarcações Especiais antes de se juntar ao
departamento de segurança de Peter Howe. Os dois homens
seguiriam Jack para qualquer lugar e eles estavam
profundamente envolvidos com as metas da IMU.
Jack sentiu uma onda de adrenalina percorrê-lo quando viu
que a resposta era unânime e sem restrições. Eles tinham ido
muito longe para deixar seu alvo escorregar por entre os
dedos. Nesse meio-tempo os movimentos do Seaquest já
deviam ter despertado o interesse de seus adversários,
homens que os eliminariam, sem hesitar um instante sequer,
caso eles ficassem em seu caminho. Eles sabiam que essa era
sua única chance.
Jack pegou o microfone outra vez.
- Vamos ficar. Repito, vamos ficar. Vamos utilizar as
condições atmosféricas adversas para vantagem nossa.
Presumo que nenhuma embarcação hostil será capaz de
chegar perto de onde nos encontramos. Necessitaremos do
tempo que vocês se ausentarem para examinar o submarino.
Câmbio.
- Compreendo. - Mal se ouvia a voz através da estática. -
Recolham a rádio-bóia e utilizem-na só em uma emergência,
pois ela pode ser detectado por qualquer receptor em muitas
milhas ao redor. Aguardem nosso contato. Muita sorte para
vocês todos. Seaquest desligando.
Por um momento, o único som foi o baixo zunido dos
depuradores de CO2 e o zumbido do motor elétrico
utilizado para recolher a rádio-bóia.
- Dez minutos se passaram, - disse Ben do console. - Vocês
já podem ir.
- Certo. Vamos dar início à operação.
Andy resvalou até alcançar o grampo de segurança e o
destravou. A escotilha abriu-se para fora sem encontrar
resistência, a pressão no interior do DSRV e do submarino
estava agora equalizada.
Costas moveu as pernas até encontrar os degraus da escada
de corda que ficava na parede interna. Ele tinha começado a
levantar sua máscara e depois parou.
- Mais uma coisa.
Jack e Katya olharam para o companheiro.
- Isto não é o Marie Celeste*. O Kazbek tinha uma tripulação
completa de setenta e três homens quando afundou.
Podemos nos deparar com visões horríveis lá dentro.
- Vamos nos dirigir para a frente através do corredor. A
antepara atrás de nós veda o compartimento do reator.
Costas alcançou o último degrau da escada de corda no
compartimento de fuga e nadou ao redor; sua headlamp
emitia um feixe de luz oscilante no centro do submarino.
Jack o seguia de perto e curvou-se bastante quando se voltou
para oferecer uma mão a Katya. Ela lançou um último olhar
para cima, para os tripulantes que observavam atentamente
do DSRV, antes de mergulhar através da escotilha atrás dos
outros.
- O que é esta matéria branca? - ela perguntou.
Por todo lugar que olhavam uma incrustação pálida cobria a
superfície como uma camada de açúcar. Katya esfregou sua
luva ao longo de uma balaustrada, e a substância se espalhou
como neve revelando um metal lustroso por debaixo.
- É um precipitado, - explicou Costas. - Provavelmente o
resultado de uma reação de ionização entre o metal e os
crescentes níveis de dióxido de carbono depois que os
depuradores pararam de funcionar.
O brilho fantasmagórico só aumentava a sensação de que
este era um lugar completamente isolado, tão distanciado das
imagens lá fora que a cidade antiga parecia pertencer a um
outro tipo de mundo de sonhos.
Eles avançaram lentamente ao longo de um corredor
elevado para um espaço aberto obscurecido pelas trevas.
Depois de alguns passos lá dentro, Costas parou debaixo de
uma caixa métrica colocada entre as tubulações acima de
suas cabeças. Ele procurou, no interior de seu cinto de
ferramentas, por um limpador de ar comprimido miniatura
ligado a um cartucho de CO2 e usou-o para assoprar o
precipitado de um soquete. Depois de conectar um fio
elétrico que havia puxado do DSRV, um indicador de luz
alaranjada apareceu acima do painel.
- Ei! Nossa! Ainda funciona depois de todos esses anos. E
nós todos pensávamos que a tecnologia soviética fosse muito
inferior. - Ele olhou para Katya: - Não pretendi ofendê-la.
- Não me ofendi de modo algum.
Pouco depois a luz fluorescente voltou, suas primeiras
pulsações surgiram como uma iluminação distante. Quando
eles desligaram as headlamps um mundo bizarro se tornou
visível, uma confusão de consoles e equipamentos cobertos
de manchas brancas. Era como se estivessem em uma
caverna de gelo, uma impressão realçada pela luz azulada e
as nuvens de exalação que saíam de suas máscaras e
encontravam o ar gelado.
- Esta sala é o centro de controle de ataque, - disse Costas. -
Deve haver alguma pista sobre o que aconteceu.
Seguiram cuidadosamente até o final do corredor e desceram
uns poucos degraus até o outro nível. No convés havia uma
pilha de rifles Kalashnikov, com os familiares pentes em
forma de banana sobressaindo-se na frente da escada de
corda. Jack pegou um rifle enquanto Katya observava.
- Armas das Forças Especiais, com coronha dobradiça, - ela
comentou. - AK-74M, 5,45 milímetros, derivada da AK-47.
Com a piora da situação política, o Departamento de
Inteligência do Estado-Maior Soviético colocou tropas
navais spetsialnoe naznachenie - especializadas - em alguns
submarinos nucleares. Mais conhecidas por seu acrônimo
spetsnaz. A GRU tinha pavor de deserções ou insurreições e
o combatente spetsnaz era diretamente responsável por
evitar isso, essa não era uma tarefa do capitão.
- Mas suas armas normalmente ficariam trancadas dentro de
um armeiro, - comentou Jack. - E há algo estranho aqui. -
Ele mexeu no pente e puxou de volta o ferrolho. - O pente
está cheio até a metade e há uma bala na câmara. Esta arma
foi usada.
Um rápido exame revelou que as outras armas se
encontravam na mesma condição. Debaixo dos rifles de
ataque eles podiam ver uma confusão de revólveres, pentes
vazios e caixas de cartuchos usados.
- Dá a impressão de que alguém fez uma arrumação depois
de uma batalha.
- Isto foi exatamente o que aconteceu. - Costas falou do
centro da sala. - Dê uma olhada ao seu redor.
No meio da sala havia uma cadeira de comando ladeada por
duas colunas que alojavam os sistemas de periscópio.
Colocados nas paredes ao redor do estrado havia consoles
para armas e para controle de navegação que compunham o
centro operacional do submarino.
Em todos os lugares via-se destruição. Os monitores dos
computadores tinham sido reduzidos a buracos denteados de
vidro quebrado, suas entranhas estavam para fora em uma
confusão de fios e placas de circuitos. Os dois periscópios
haviam sido destruídos, estavam irreconhecíveis, as
objetivas danificadas dependuravam-se em ângulos
estranhos. A mesa do mapa tinha sido violentamente
rachada, o recortado em sua superfície era o resultado
inequívoco de uma arma de fogo automática.
- A estação de controle da embarcação sofreu um terrível
tiroteio. - Costas estava examinando a destruição no outro
lado da sala. - Agora vejo por que eles não conseguiram se
mover.
- Onde estão os tripulantes? - perguntou Katya.
- Houve sobreviventes, - Costas fez uma pausa. - Alguém
escondeu aquelas armas, e acho que os corpos foram levados
para algum outro lugar.
- Qualquer que seja o lugar onde eles acamparam, não foi
aqui, - disse Jack. - Sugiro irmos até os alojamentos do
submarino.
Katya conduziu-os ao longo do corredor em direção aos
compartimentos dianteiros do submarino. De novo eles
mergulharam na escuridão, uma vez que o sistema elétrico
auxiliar só proporcionava uma luz de emergência nos
compartimentos principais. A medida que avançavam, Jack
e Costas podiam apenas discernir a silhueta de Katya
enquanto ela se segurava no corredor e se atrapalhava para
ligar a headlamp.
Houve um súbito ruído e um grito agudo foi ouvido. Jack e
Costas lançaram-se para a frente. Katya estava caída no
corredor.
Jack ajoelhou-se ao lado dela e verificou seu regulador. O
rosto dele demonstrava preocupação quando fitou os olhos
de Katya.
Ela estava resmungando incoerentemente em russo. Um
instante depois ela mesma se ergueu, apoiou-se no cotovelo
e os dois homens ajudaram-na a ficar em pé. Ela falou de
maneira hesitante.
- Eu tive um... choque, isto foi tudo. Acabei de ver...
Sua voz enfraqueceu enquanto ela levantava o braço e
apontava em direção à sala do sonar, no final do corredor.
Jack ligou a headlamp. O que ela revelou foi uma imagem de
horror, uma aparição saída do pior pesadelo. Assomando
indistintamente na escuridão havia a forma coberta de
branco de um homem enforcado, os braços dependurados
como os de algum boneco demoníaco, o rosto grotesco e
com a língua para fora enquanto ele olhava de soslaio com
seus olhos mortos.
Era uma verdadeira aparição da morte, o guardião de uma
tumba da qual nenhum ser vivo fazia parte. Jack, de repente,
sentiu um arrepio percorrer-lhe a medula.
Katya se recuperou e voltou à sua posição. Com cautela os
três introduziram-se na sala. O corpo estava vestido com a
sarja negra de um oficial naval soviético e encontrava-se
suspenso pelo pescoço em um laço de fio elétrico. No chão
espalhavam-se caixas descartáveis de alimentos e outros
detritos.
- O seu nome era Sergei Vassilyevich Kuznetsov. - Katya
estava lendo de um diário que encontrou na mesa atrás do
cadáver. - Capitão, Segundo Grau, Marinha Soviética.
Recebeu a Ordem da Estrela Vermelha por serviços
prestados na área da segurança. Ele era o zampolit do
Kazbek, o zamestitev komandira politicheskoi chasti, o
comandante encarregado de assuntos políticos. Responsável
por supervisionar a confiabilidade política e assegurar-se de
que o capitão cumprisse suas ordens.
- Um boneco da KGB, - disse Costas.
- Posso pensar em alguns capitães que conheci na frota do
mar Negro que não ficariam descontentes com essa visão. -
Ela continuou a ler. - Ele passou seus últimos dias bem aqui.
O sonar ativo ficou danificado, então não pôde enviar um
sinal. Mas ele monitorou o detector passivo de ondas de
radar, procurando por qualquer sinal nas vizinhanças de
alguma embarcação de superfície. - Ela virou a página.
- Meu Deus. O último registro é em 25 de dezembro. Por
coincidência foi o último dia em que a bandeira vermelha
flutuou sobre o Kremlin. - Ela olhou para Jack e Costas com
os olhos vazios. - O submarino afundou em 17 de junho
daquele ano, o que significa que este homem ficou vivo aqui
por mais de seis meses!
Eles olharam fascinados e horrorizados para o cadáver.
- Isto é possível, - disse Costas por fim. - Quer dizer,
fisicamente. A bateria pode ter sustentado os depuradores de
CO2 e a máquina de dessalinização por eletrólise que extrai
oxigênio da água do mar. E havia, evidentemente, muita
comida e bebida. - Ele olhou para as garrafas vazias de vodca
espalhadas no chão, no meio dos detritos. -
Psicologicamente é um outro assunto. Não posso entender
como alguém pode permanecer sadio nestas condições.
- O diário está cheio de retórica política, o tipo de
propaganda comunista vazia que inculcaram em nós como
se fosse uma religião, - disse Katya. - Apenas os membros
mais fanáticos do partido eram escolhidos como oficiais
políticos, o equivalente da Gestapo nazista.
- Aconteceu algo muito estranho aqui, - murmurou Jack. -
Não posso acreditar que durante seis meses ele não
encontrou uma maneira de sinalizar sua localização para
alguém na superfície. Ele poderia ter ejetado manualmente
uma bóia através de um tubo de lançamento de torpedos ou
descarregado lixo flutuante. Isto não faz sentido.
- Ouçam isto. - A voz de Katya traía o início de uma
compreensão enquanto ela virava as páginas, uma a uma,
parando ocasionalmente para examinar o que estava escrito.
Ela hesitou por um momento e depois começou a traduzir.
- Eu sou o escolhido. Enterrei os meus camaradas com
honras militares completas. Eles sacrificaram suas vidas pela
Pátria. A força deles deu-me força. Longa vida para a
Revolução! - Ela olhou para os outros.
- O que isto significa? - perguntou Costas.
- De acordo com este diário, havia doze deles. Cinco dias
depois de afundarem, eles selecionaram um homem para
sobreviver. O resto tomou cápsulas de cianureto. Ele
adicionou pesos aos corpos, que foram ejetados através dos
tubos de lançamento de torpedos.
- Será que todos perderam qualquer esperança? - Costas
parecia incrédulo.
- Eles estavam determinados a não deixar o submarino cair
nas mãos da OTAN. Estavam preparados para destruir a
embarcação se aparecesse algum salvador de uma nação
inimiga.
- Eu posso quase perceber a lógica, - disse Costas. - Você
precisa de apenas um homem para detonar cargas explosivas.
Um homem consome menos alimento e ar, então o
submarino pode ser mantido por muito mais tempo.
Qualquer um a mais é pior e desnecessário, um dreno de
recursos preciosos. Eles devem ter escolhido o homem que
possuía menor probabilidade de sofrer colapso mental.
Jack ajoelhou-se perto das garrafas vazias e balançou a
cabeça.
- Deve haver algo mais do que isto. Essa não é uma
explicação suficiente.
- O mundo deles estava prestes a ser destruído, - disse
Costas. - Pessoas corajosas como estas devem ter se
convencido de que elas eram o último baluarte do
comunismo, a proteção final contra o Ocidente.
Eles olharam para Katya.
- Todos sabíamos que o fim estava próximo, - disse ela, - e
alguns se recusaram a aceitar este fato. Mas eles não
colocavam loucos em submarinos nucleares.
Uma questão estava importunando-os desde que viram o
cadáver pendurado, e Costas finalmente falou.
- O que aconteceu com o resto da tripulação?
Katya estava lendo uma outra parte do diário, um olhar de
incredulidade crescente apareceu em seu rosto quando ela
começou a juntar as coisas.
- Era isto que suspeitávamos na inteligência marinha naquela
época, só que é pior, - disse ela. - Esta era uma embarcação
desertora. Seu capitão, Yevgeni Mikhailovich Antonov, saiu
da frota de submarinos do mar Negro, baseada em
Sebastopol, para uma patrulha rotineira. Ele desapareceu em
direção ao sul sem tornar a fazer contato.
- Ele jamais poderia esperar sair do mar Negro sem ser
detectado, - disse Costas. - Os turcos mantêm cem por cento
de cobertura por sonar sobre o Bósforo.
- Não acredito que esta fosse a intenção dele. Acho que se
dirigia para um encontro. Talvez nesta ilha.
- Parece uma hora estranha para desertar, - observou Jack. -
Bem no final da Guerra Fria, com o colapso da União
Soviética à vista. Qualquer oficial naval astuto perceberia o
que estava por vir. Faria mais sentido simplesmente persistir
e esperar.
- Antonov era um oficial brilhante, mas também uma pessoa
de pensamento independente. Ele odiava tanto os
americanos que foi considerado muito arriscado deixá-lo
navegar em embarcações contendo mísseis balísticos. Não
creio que isso fosse uma deserção.
Jack ainda estava perturbado.
- Ele deve ter tido algo para oferecer a alguém, algo que
valesse a pena.
- Será que o diário revela o que aconteceu com ele? -
perguntou Costas.
Katya leu antes de olhar para eles.
- Nosso amigo, o zampolit, soube do que estava em
andamento várias horas antes de o navio afundar. Ele juntou
a equipe spetsnaz e confrontou o capitão na sala de controle.
Antonov já havia providenciado baionetas para os seus
oficiais, porém eles não eram adversários para rifles de
ataque. Depois de uma batalha sangrenta, o zampolit forçou
o capitão e a tripulação sobrevivente a se render, mas não
antes que o submarino ficasse sem controle e se chocasse
com o fundo do mar. Antes do confronto, Kuznetsov vedou
o compartimento de engenharia e reverteu os ventiladores
extratores de modo a bombear, para dentro do
compartimento, o monóxido de carbono coletado nos
depuradores. Os engenheiros morreram antes de saber o que
estava acontecendo. Quanto a Antonov e seus homens, eles
foram forçados a entrar no compartimento de fuga e depois
aprisionados no compartimento do reator.
- Morte por irradiação lenta. Pode ter levado dias, até
mesmo semanas.
Costas encarou o rosto mumificado, a horrível sentinela que
parecia amarrada ao dever mesmo na morte. Ele olhou como
se quisesse atingir com seu punho a cabeça murcha.
- Você mereceu o seu fim, seu bastardo sádico.

14

- Esta é uma embarcação dos mortos. Quanto antes sairmos
daqui melhor.
Katya fechou o diário e conduziu-os para fora da sala do
sonar, passando pelo corpo pendurado. Ela evitou dar uma
última olhada para o corpo, embora aquele rosto horrível já
estivesse gravado em sua mente.
- Lanternas acesas o tempo todo agora, - ordenou Costas. -
Devemos presumir que o zampolit programou esta
embarcação para um desastre repentino.
Depois de alguns instantes ele levantou a mão.
- Aquela é a escotilha da sala com o carregador de armas,
acima de nós, - disse ele. - Teremos de ser capazes de
deslizar pelo tubo inclinado diretamente para a sala de
torpedos. Este é o poço de um elevador aberto, mas tem
uma escada de corda no interior.
Eles foram até a beira do poço logo abaixo da escotilha.
Quando Costas estava prestes a pisar no degrau superior,
parou e olhou para um dos canos que saía da sala do sonar
em direção ao tubo inclinado. Ele escovou a incrustação de
uma leve saliência que se estendia ao longo do cano, o que
revelou um par de fios Métricos encapados de vermelho
amarrados ao metal.
- Esperem aqui.
Costas voltou até a sala do sonar, parando de vez em quando
para escovar a incrustação. Logo desapareceu atrás do corpo
pendurado, mas não demorou a retornar.
- É bem como eu suspeitava, - disse ele. - Os fios elétricos
conduzem até um interruptor que foi conectado por um
dueto ao console. É um interruptor SPDT, monopolar e com
chave reversora que pode ativar uma corrente e controlar
dois circuitos diferentes. Meu palpite é que os fios elétricos
vão até a sala de torpedos onde nosso amigo ativou um par
de ogivas. A explosão faria esta embarcação voar em
pequenos pedaços e nós com ela.
Costas encaminhou-se para baixo, rastreando os fios em seu
percurso, e os outros dois seguiram atrás cautelosamente. A
incrustação suavizava as reverberações de seus pés,
tornando-as um eco abafado que soava de maneira
monótona e agourenta através do poço. Na metade do
caminho eles pararam para observar atentamente, através de
uma escotilha, o alojamento dos oficiais, e suas headlamps
revelaram uma outra cena de desordem com roupas de cama
e pacotes espalhados pelo chão.
Momentos depois Costas alcançou o final da descida.
- Que bom! A iluminação de emergência funciona aqui
também.
O compartimento do outro lado estava cheio de prateleiras
abarrotadas, apenas um pequeno espaço permitia alcançar o
ponto mais distante. As prateleiras haviam sido projetadas de
modo que as armas pudessem ser baixadas diretamente do
tubo inclinado para as prateleiras de suporte e daí alimentar
os tubos de lançamento, através de um sistema de transporte
automático.
- Um suprimento normal em um Projeto 971U seria de
trinta armas, - disse Katya. - Até doze mísseis de cruzeiro
SS-N-21 Sampson e um sortimento de mísseis antinavios.
Mas as ogivas maiores estarão provavelmente nos torpedos.
Costas seguiu os fios dentro de um corredor apertado entre
as prateleiras à esquerda da ala central. Depois de ficar alguns
momentos agachado, levantou-se com um brilho triunfante
nos olhos.
- Bingo! São aquelas duas estruturas diretamente na frente de
vocês. Um par de torpedos 65-76 Kit. Os maiores torpedos
jamais construídos, com quase onze metros de
comprimento. Cada um com quatrocentos e cinqüenta
quilos de hélio, o suficiente para perfurar um casco blindado
com titânio. Mas deve ser uma coisa simples desativar as
ogivas e remover os fios elétricos.
- Desde quando você é um especialista em desativar
torpedos russos? - perguntou Jack cheio de dúvidas.
- Cada vez que tento algo novo parece que dá certo. Você já
deveria saber disso. - O comportamento de Costas se tornou
repentinamente sério. - Não temos escolha. Os fusíveis são
eletromagnéticos, e o circuito deve estar deteriorado depois
de tantos anos neste ambiente. Nas condições em que se
encontram agora é quase certo que eles sejam
perigosamente instáveis, e nosso equipamento irá perturbar
o campo eletromagnético. Este é um problema que não
podemos ignorar.
- OK., você venceu. - Jack olhou para Katya, que acenou
concordando. - Já que chegamos até aqui, vamos fazer isso.
Costas deitou-se de barriga para cima no espaço confinado
entre as prateleiras e foi se arrastando até que sua cabeça
ficasse a um quarto de distância de onde estavam os
torpedos. Ele levantou sua máscara por um instante e torceu
o nariz quando respirou pela primeira vez dentro do
submarino sem a proteção do filtro SCLS.
Os outros dois se aproximaram, Jack pela passagem estreita à
esquerda e Katya pela ala central mais larga. Eles podiam ver
o rosto do companheiro voltado para cima no assoalho entre
os torpedos. Costas insinuou-se em direção ao torpedo ao
lado de Jack até que sua cabeça ficasse quase abaixo do
mesmo.
- Estamos com sorte. Eles têm uma conexão, no
revestimento exterior, que pode ser desparafusada, o que
permite que as ogivas sejam armadas manualmente no caso
de uma falha eletrônica. O conector desta ogiva foi aberto e
o fio elétrico passa Por dentro dele. Eu vou precisar alcançá-
lo, desparafusar o fusível e cortar o fio. - Costas rolou para o
outro lado e inspecionou o segundo torpedo. - Acontece o
mesmo com este.
- Lembre que essas coisas são voláteis, - avisou Katya. - Elas
não são elétricas como em muitos torpedos, mas funcionam
com querosene e peróxido de hidrogênio. O submarino
Kursk foi destruído no mar de Barents em 2000 por causa da
explosão de peróxido de hidrogênio vazado de um torpedo
65-76 como este.
Costas fez uma careta e concordou. Ele rolou outra vez e
ficou imóvel entre as duas prateleiras, a headlamp apontando
diretamente para o alto.
- Por que a demora? - perguntou Jack.
- Estou me colocando na posição do nosso amigo. Se ele e
seus companheiros eram tão fanáticos e dispostos a proteger
este submarino, devem ter se preparado para qualquer
contingência, caso todos morressem. Devem ter suposto que
o naufrágio poderia ser descoberto. Meu pressentimento é
que este detonador é uma armadilha para os desavisados. Ele
está demasiado simples desse jeito.
- O que você sugere?
- Há uma possibilidade óbvia. - Costas pegou o seu cinto de
ferramentas e puxou um aparelho do tamanho de uma
calculadora de bolso. Mal podiam distinguir a luz verde de
uma tela digital LCD quando ele ativou o sensor. Costas
levantou o aparelho até o fio que corria entre os torpedos,
logo acima de sua cabeça, e prendeu-o cuidadosamente
usando um grampo e um minialicate.
- Jesus! Era bem o que eu pensava.
- O que é?
- Este é um multímetro. Ele está dando uma leitura positiva
de quinze miliamperes. Este fio está ativo.
- O que isto significa? - perguntou Jack.
- Significa que a instalação elétrica deve estar conectada aos
pólos de uma bateria. As principais baterias de chumbo do
submarino provavelmente ainda têm armazenada uma
voltagem suficiente para produzir uma corrente nesta
amperagem baixa. A instalação elétrica deve ser um circuito
elétrico fechado contínuo do pólo positivo para o negativo
da bateria, com o interruptor na sala do sonar formando o
acionador e as duas ogivas completando a conexão. A
instalação deve ter sido arriscada, mas eles devem ter
calculado que a amperagem seria muito fraca para detonar as
ogivas. A chave é oscilação de corrente elétrica que ocorre
se alguém tentar remover os fios. Uma tentativa de
desconectar o fusível ativador da ogiva causará uma
instantânea oscilação de corrente. Se dermos uma leve
pancada no interruptor, na sala do sonar, obteremos o
mesmo resultado. Não há um disjuntor de circuito para
cortar a corrente. Ficaremos pulverizados antes que eu retire
a mão do fio elétrico.
Jack soltou um longo suspiro e sentou-se encostado na
parede.
- Então, o que faremos agora?
- É corrente contínua, então o fluxo da carga elétrica deve
ser em um sentido. Se eu cortar o fio negativo, haverá uma
oscilação de corrente elétrica e nós desapareceremos. Se eu
cortar o positivo, tudo fica neutralizado e estaremos salvos.
- Qual é qual?
Costas voltou a cabeça para a direita e, através do espaço
estreito, olhou, pesaroso, para Jack.
- Nosso amigo pode ainda ter se reservado a última palavra.
Com uma amperagem tão baixa não há jeito de saber.
Jack deitou-se no corredor e fechou os olhos. Um instante
depois, Costas falou de novo.
- Para ativar uma bomba com uma oscilação de corrente
elétrica, o ponto de ignição precisa estar em contato direto
com os materiais explosivos no detonador ou com a carga
explosiva principal. Eles precisariam ter aberto a ogiva para
introduzir o fio de descarga. Há mais espaço para operar do
lado onde está Katya, então sugiro que é ali que ele está
conectado. Assim, o fio à minha direita seria o positivo.
Costas se virou para Katya e impulsionou o corpo o mais que
pôde contra o torpedo, estendendo seu braço esquerdo
abaixo da estante até tocar o fio que emergia da ogiva. Ele
apoiou a mão no assoalho e começou a raspar ao redor da
incrustação.
- Posso sentir o fio.
Katya raspou mais ainda e esticou-o para trás até o tubo
inclinado onde se encontravam as armas. Ela correu e foi
observar atentamente a escada antes de retornar.
- Ele volta até o interruptor, - ela anunciou.
- Certo. Estou convencido disso. - Costas retirou o braço e
procurou em seu cinto uma multiferramenta compacta,
abrindo-a de modo a formar um par de cortadores de fios de
alta precisão. A borracha em sua luva E-suit forneceria
isolamento contra um choque elétrico, embora, se isto
acontecesse, ele não vivesse muito tempo para se
incomodar.
Ele virou a cabeça em direção a Jack.
- Você está comigo?
- Estou com você.
Costas reassumiu a posição anterior, sua mão esquerda
segurava agora os cortadores diretamente abaixo do fio onde
este pendia em um leve arco do orifício da tomada no
suporte da ogiva.
Durante alguns segundos Costas permaneceu imóvel. O
único som era o contínuo gotejamento da condensação e o
ruído algo estridente de seus respiradores. Katya e Jack
olharam um para o outro por debaixo da prateleira dos
torpedos.
Costas estava transpirando por debaixo da máscara e
levantou-a com a mão direita para ter uma visão mais clara.
Tirou a luva prendendo-a entre os joelhos e enxugou a testa
antes de olhar de maneira decidida para o fio.
Katya fechou os olhos bem apertados durante os poucos
segundos que Costas levou para apertar as lâminas do
cortador no fio. Ele pressionou forte e ouviu-se um estalido
alto.
Depois silêncio.
Os três seguraram a respiração pelo que pareceu uma
eternidade. Em seguida Costas soltou um longo suspiro e
deixou-se cair no assoalho. Depois de uma pausa ele guardou
sua multiferramenta e tornou a recolocar a máscara com o
respirador. Virou-se para Jack e deu uma piscadela.
- Viu? Sem problemas.
Jack tinha o olhar vazio de um homem que havia encarado a
morte com muita freqüência. Ele desviou o olhar para Costas
e conseguiu dar um meio sorriso.
- Nenhum problema.

15

Na entrada para o compartimento das armas, Costas retirou
um outro aparelho de seu cinto, uma caixa amarela do
tamanho de um telefone celular. Ele abriu a tampa para
revelar uma pequena tela LCD que brilhava com uma luz
verde desbotada.
- Um sistema de posicionamento global, - anunciou. - Isto
deve resolver o assunto.
- Como ele consegue funcionar aqui? - perguntou Katya.
Uma série de figuras apareceu na tela.
- Esta caixa é nossa especialidade: um receptor acústico GPS
subaquático e um computador de navegação, acoplados, -
disse Jack. - Dentro do submarino não podemos enviar
ondas acústicas, então não temos acesso ao GPS. Por isso
transferimos as especificações para esta classe de submarino
do banco de dados da IMU e os juntamos com uma série de
localizações GPS fixas que conseguimos, através de bóias de
superfície exteriores, quando saímos hoje de manhã nos
Aquapods para reconhecimento. O computador deve nos
permitir navegar como se estivéssemos usando GPS.
- Achei! - anunciou Costas. - Quando estava no Aquapod
anotei a localização do lugar onde a escadaria desapareceu
sob o Submarino. Foi a bombordo da sala de torpedos. Rumo
duzentos e quarenta e um graus a partir de nossa posição
atual, 7,6 metros adiante e 2 metros abaixo. Isto nos coloca
do outro lado das prateleiras de armas, logo adiante do
tanque de lastro a bombordo.
Quando Costas começou a procurar uma maneira de passar
pelas estantes repletas, Katya o alcançou e segurou seu
braço.
- Antes de ir até lá, há algo que você precisa ver.
Ela apontou para a ala central no compartimento de armas,
logo atrás do local onde eles, tomados por um pânico mortal,
haviam se escondido alguns momentos antes.
- Aquela ala deveria estar desobstruída para permitir ao
sistema de deslocamento transferir as armas das estantes e
transportá-las para os tubos. Mas ela está bloqueada.
Isto deveria ter ficado muito claro desde o início, mas eles
tinham estado tão preocupados com a falsa armadilha que
falharam em observar o resto da sala.
- É um par de engradados empilhados. - Costas ergueu-se no
espaço apertado do lado esquerdo, entre os engradados e as
estantes de armas, com a cabeça mal sobressaindo acima da
caixa mais alta.
- Há mais dois atrás destes. E mais dois depois deles. - A voz
de Costas ficou amortecida quando ele deslizou mais adiante.
- São seis no total, cada engradado com cerca de quatro
metros de comprimento por um metro e meio de largura.
Eles devem ter sido içados de modo a alcançar o tubo
inclinado e depois foram arriados até este lugar através dos
ganchos dos torpedos.
- São engradados com armas? - perguntou Jack.
Costas reapareceu e sacudiu o precipitado branco que havia
grudado em seu corpo.
- Eles são muito pequenos para um torpedo ou um míssil e
muito grandes para serem lançados por tubos. Precisamos
abrir um deles, mas não temos equipamento nem tempo
para isso.
- Há algumas marcações, - Katya havia se agachado diante
do engradado mais baixo e raspava vigorosamente a
incrustação. Isso revelou uma superfície metálica com
figuras impressas em dois agrupamentos separados. -
Codificações do Ministério de Defesa Soviético. - Ela
apontou para o grupo superior de símbolos - Estas são armas
legais.
Em seguida Katya percorreu com a mão o outro grupo,
passou a examinar mais cuidadosamente.
- Eletro... - Ela hesitou. - Electrochimpribor.
Eles estavam começando a pensar o impensável.
- Unidade Electrochimpribor, - disse Katya baixinho. -
Conhecida como Plant 418, o principal local de montagem
das armas termonucleares soviéticas.
Costas apoiou-se pesadamente contra a estante dos torpedos
- Santa Mãe de Deus. Estas são armas nucleares. Cada um
desses engradados tem o tamanho certo para abrigar uma
ogiva SLBM.
- Tipo SS-N-20 Sturgeon, para ser precisa. - Katya ficou de
pé e olhou para os dois homens. - Cada uma delas é cinco
vezes mais poderosa do que a bomba de Hiroshima. Há seis
engradados, dez ogivas em cada um. - Ela fez uma pausa e
olhou para os engradados. - As autoridades fizeram de tudo
para manter secreta a perda deste submarino.
Posteriormente houve um certo número de
desaparecimentos misteriosos, sobretudo em Sebastopol,
porto de origem do Kazbek. Agora acredito que eles foram
vítimas de um expurgo stalinista à moda antiga. As
execuções passaram despercebidas no meio dos eventos
significativos daquele ano.
- Você está sugerindo que estas armas nucleares foram
roubadas? - perguntou Costas com incredulidade.
- O Exército soviético ficou profundamente decepcionado
depois da guerra afegã em 1980. A Marinha começou a se
desintegrar com navios fora de serviço e tripulação ociosa. O
pagamento era desanimador ou não existente. Mais
informações foram vendidas para o Ocidente durante os
anos finais da União Soviética do que durante o auge da
Guerra Fria.
- Como o Antonov se encaixa nisso? - perguntou Costas. Ele
era um homem que podia ser subordinado para bons
propósitos, mas que era perigoso quando as rédeas estavam
soltas e odiava a glasnost e a perestroika e chegou a
desprezar o regime seu conluio com o Ocidente. Este parece
ter sido o seu último ato de desafio.
- Se o regime não podia mais atacar o Ocidente, ele podia, -
murmurou Costas.
- E sua tripulação o seguiria para qualquer lugar,
principalmente com o chamariz de uma recompensa em
dinheiro.
- Para onde ele estaria levando estas armas?
- Para Saddam Hussein, no Iraque. O Talibã, no Afeganistão
Hamas, na Síria. Os norte-coreanos. Isto foi em 1991,
lembra?
- Deve ter havido um intermediário - disse Jack.
- Os urubus já estavam voando em círculos, mesmo antes do
colapso da União Soviética - replicou Katya de modo
desolado.
- Eu subestimei nosso amigo, o oficial político, - disse Costas
baixinho. - Ele pode ter sido um fanático, mas também pode
ter salvado a humanidade de sua pior catástrofe.
- Isso ainda não acabou, - Jack endireitou-se. - Em algum
lugar lá fora há um cliente insatisfeito, alguém que tem
estado observando e esperando durante todos esses anos. E
os potenciais clientes de agora são muito piores que os de
outrora, eles são terroristas dirigidos apenas pelo ódio.

A luz azulada da iluminação de emergência do submarino
mal chegava até a escuridão no final da sala de torpedos.
Costas acendeu a headlamp até sua capacidade de iluminação
máxima antes de caminhar entre as prateleiras de armas em
direção às coordenadas indicadas pelo seu aparelho
transceptor. Jack e Katya o seguiam de perto, os seus trajes
de sobrevivência assumindo uma aparência espectral à
medida que eles encostavam na incrustação que havia ao
longo de toda a superfície do submarino. Depois de se
espremerem no trecho final, eles se agacharam em fila única
em uma passagem estreita avermelhada pelo revestimento
do casco.
Costas endireitou-se com o dorso apoiado contra o
revestimento. Ele enganchou o dedo através de uma grade
no chão com cerca de um metro de comprimento.
- Aqui vamos.
Costas deu um impulso para a frente e puxou a grade com
toda a sua força. Segundos mais tarde a grade cedeu com um
som metálico, espalhando grande quantidade de precipitado
ao redor. Jack rastejou até o companheiro para ajudá-lo a
colocar a grade deixando a Costas espaço para balançar as
pernas no interior do buraco e observar cuidadosamente a
escuridão sob eles. Costas foi descendo até que apenas sua
máscara ficasse visível abaixo da passagem.
- Estou no chão acima dos porões, - ele anunciou. - Para não
entrar em um nevoeiro tóxico só é possível descer até aqui.
- Ele tirou o GPS do seu bolso.
Jack passou por cima do buraco para deixar Katya chegar até
a beirada. Agora as três headlamps iluminavam a luz verde
bruxuleante da tela.
- Bingo! - Costas ergueu o olhar da tela e fitou o
revestimento que estava ao alcance de seu braço. - Estou
cinco metros acima do ponto onde as escadarias
desapareceram sob o submarino. Estamos bem no meio do
alvo.
- O revestimento se parece com o quê? - perguntou Jack.
- Estamos com sorte. Por quase todo o seu comprimento o
Kazbek tem um casco duplo, um revestimento de
compressão interior e um casco exterior hidrodinâmico
separados por uma camada de borracha com cerca de vinte
centímetros. Ele proporciona melhor isolamento acústico e
espaço para um tanque de lastro. Mas logo antes da
extremidade em forma de cone ele volta a ter um único
casco para permitir um maior espaço interno quando o
revestimento se afunila.
Katya inclinou-se para frente.
- Há algo que não entendo completamente.
- Fale.
- Entre nós e a rocha há uma parede de metal de vinte
centímetros de espessura. Como vamos passar por ela?
Costas estendeu o pescoço para olhar para Katya. Ele havia
deixado sua máscara levantada desde que desativara a ogiva,
e a mistura de suor com o branco do precipitado em seu
rosto lembrava uma estranha pintura de guerra.
- Amplificação de luz por uma emissão estimulada de
radiação.
Katya fez uma pausa.
- Laser?
- Você acertou.
Naquele momento ouviu-se um ruído metálico atrás deles
Antes de deixar a ala das armas, Costas havia utilizado o
rádio para chamar Ben e Andy no DSRV e dera-lhes
instruções de como chegar até a sala de torpedos. Os dois
homens haviam utilizado a passagem lateral e agora
apareciam com seus E-suits e trazendo malas de rodinhas.
- Vamos precisar de um espaço maior, - disse Costas aos
homens. - Venham para cá e juntem-se a mim.
Jack e Katya ergueram mais duas grades, para que os homens
pudessem descer ao porão. Logo que chegaram ao espaço
confinado, abriram as malas e, com as peças trazidas,
começaram a montar o aparelho.
Usando uma fita como compasso improvisado, Costas fez
um círculo com giz de cerca de um metro de diâmetro no
revestimento do casco. Moveu-se para o lado quando os dois
homens levantaram o aparelho para colocá-lo no lugar
indicado. O mecanismo parecia um módulo lunar, em escala
menor, uma série de pernas articuladas que se estendiam de
uma unidade central poliédrica do tamanho de um
computador de mesa. Ben segurou a unidade na frente da
localização do GPS enquanto Andy posicionava as pernas ao
redor do círculo traçado. Depois de uma breve inspeção, ele
pressionou o interruptor e as patas de sucção se fixaram ao
casco. Ao mesmo tempo, um grupo de hastes saiu de cada
junta para travar o aparelho em um único aglomerado sólido.
Ben colocou um tubo telescópico de cada lado da unidade,
uma extremidade no centro do círculo de giz e a outra na
reentrância escura abaixo da grade de metal do chão. À
esquerda da unidade havia uma proteção blindada, como
uma caixa em U, aberta em cima, com meio metro de
largura. Acima do tubo via-se um visor e, abaixo dele, uma
empunhadura e um gatilho.
Depois de uma rápida verificação, Ben conectou um cabo
que puxara do DSRV. A tela do LCD atrás da unidade se
iluminou e começou a executar uma série de instruções
antes de estabilizar em uma tela branca salpicada de ícones
de programas.
- Bom trabalho, rapazes, - disse Costas. - Agora vamos
colocar este dispositivo em ação.
Costas deu uma série de comandos, seus olhos moviam-se
agitadamente entre a tela e o teclado. Depois da finalização
do pro inclinou-se para a frente e pressionou o olho contra o
visor do aparelho, em seguida fez pequenos ajustamentos ao
alinhamento no tubo do telescópio usando um par de
joysticks, um de cada lado.
Menos de cinco minutos depois de a força ter sido
conectada, ele se inclinou para trás e olhou para Jack.
- Estamos prontos?
- Vá em frente.
Costas agarrou a empunhadura com o gatilho. Quando
apertou o gatilho, um tubo de raios catódicos acima do
teclado começou a emitir flashes cor de âmbar.
- T menos sessenta segundos.
A luz se transformou em um verde contínuo.
- Pronto para continuar, - anunciou Costas.
- Tempo para a ação? - perguntou Jack.
- Dois minutos. Poderíamos fatiar o revestimento como se
fosse manteiga, mas a drenagem de corrente não seria
suportável para as baterias do DSRV. Mesmo o que estamos
fazendo já pode diminuir a nossa margem de segurança, se
quisermos usar o DSRV para retornar ao Seaquest. - Costas
olhou para Katya, o rosto dele mostrando uma excitação
reprimida.
- Você está olhando para um laser na freqüência máxima do
infravermelho acionado por um gás semicondutor lacrado, -
explicou Costas. - Se conectá-lo às baterias de prata-zinco de
dois mil e setecentos amperes do DSRV, você terá um feixe
de 10,6 mícrons de 10 quilowatts. Isto é suficiente para dar
aos Klingons tempo para pensar.
Jack resmungou impacientemente enquanto Costas
verificava o cronômetro e dava um toque no teclado.
- O visor é um dispositivo de posicionamento que nos
permite apontar o raio perpendicularmente ao casco, - ele
continuou, - o laser geralmente queima um buraco de um
centímetro de diâmetro no revestimento. Acabei de apontá-
lo para uma válvula direcional que nos permite retirar
material enquanto mantém fora a água do mar.
- Em teoria, - retorquiu Jack.
- Não há nada de errado com um banho frio de chuveiro.
O módulo começou a emitir um ruído baixo de aviso. Costas
retomou sua posição na frente da tela e realizou uma série de
diagnósticos. Depois de uma pausa, ele colocou a mão em
volta da empunhadura.
- O feixe se apagou automaticamente cinco milímetros antes
do acabamento. Estou reativando-o agora.
Ele comprimiu o gatilho e ficou imóvel. Depois de alguns
instantes a luz verde reverteu em um âmbar flamejante.
Costas examinou o visor com cuidado, o suor de sua testa
caindo sobre o cano. Inclinou-se para trás e relaxou.
- A conexão se mantém firme. Nós estamos ligados.
Costas afastou-se para deixar Ben ocupar o lugar no console.
Juntos eles acabaram de montar a proteção blindada, em
forma de caixa em U, aberta em cima, à esquerda da
unidade. Dentro de um reticulado de linhas brilhou
intensamente um verde luminoso como uma cortina de
fundo de um cenário de teatro em miniatura.
- Ben tem mais prática do que eu - disse Costas. - Alguns
desses software são tão novos que não tive a oportunidade
de lidar com eles antes de irmos escavar o navio naufragado.
- Você quer dizer que nunca mexeu com isso antes? -
perguntou Katya.
- Tudo tem sua primeira vez.
Katya fechou os olhos por um momento. Apesar de toda a
alta tecnologia e o estilo militar de planejamento, parece que
as operações da IMU, inclusive desativar bombas, se baseiam
em uma improvisação e uma prece.
- Aqui é onde este dispositivo se torna muito útil, -
entusiasmou-se Costas. - Este é um dos mais sofisticados
lasers multiusos jamais produzidos. Preste atenção naquela
caixa.
A luminosidade verde desbotada transformou-se em uma luz
trêmula de minúsculas partículas que pulsavam a cada
poucos segundos. Cada oscilação de corrente formava uma
imagem de complexidade crescente, as linhas eram
progressivamente mais concretas. Depois de mais ou menos
um minuto, a imagem se tornou tridimensional. Era como se
alguém tivesse pressionado dentro da caixa uma massa de
vidraceiro de um verde incandescente para criar uma
caverna em miniatura.
- Um holograma! - exclamou Katya.
- Correto. - Costas permaneceu de olhos grudados na
imagem. - A fase dois consiste na inserção de um laser
ultravioleta de baixa energia através do buraco no
revestimento, um dispositivo de mapeamento que reproduz
a imagem como um holograma dentro da caixa. Você pode
ajustar o laser de maneira que ele reflita apenas materiais de
uma densidade particular, neste caso, o basalto em forma
vesicular do vulcão.
Jack olhou para Katya.
- Nós o usamos para duplicar artefatos, - disse ele. - Os dados
do mapeamento são transferidos para um laser
infravermelho de alta intensidade que pode cortar quase
qualquer material com uma precisão cuja margem de erro é
de um mícron, menos do que uma partícula de poeira.
- Ele produziu a cópia sintética em polímero do disco de
ouro do naufrágio minoano.
Jack aquiesceu.
- A IMU também desenvolveu o hardware necessário para
reproduzir os Elgin Marbles para o Parthenon em Atenas.
Costas inclinou-se sobre o console.
- OK, Ben. Um máximo de resolução.
A oscilação de corrente de pulsação verde para cima e para
baixo começou a acentuar aspectos que tinham aparecido
em esboço momentos antes. Eles podiam distinguir os
afloramentos de basalto em forma de bulbo, uma parede de
lava formada milênios antes que os primeiros hominídeos
alcançassem essas praias.
Foi Katya quem primeiro percebeu as regularidades na base
da imagem.
- Posso ver degraus! - Ela exclamou.
Eles olharam enquanto as linhas horizontais tomavam uma
forma inconfundível. Os últimos seis degraus conduziam
para cima da face íngreme que terminava em uma
plataforma de cinco metros de largura. Acima dela uma
rocha suspensa se estendia por todo o submarino, vedando
completamente a plataforma.
Ben começou a contagem a cada pulsação do laser.
- Noventa e sete... noventa e oito... noventa e nove... cem.
Resolução completada.
Todos os olhos focalizaram a reentrância escura no centro
da imagem. O que no início parecia um nevoeiro opaco
gradualmente se destacou como um nicho retangular de
quatro metros de altura e três de largura. Ele estava na parte
posterior da plataforma, atrás das escadas, e havia sido
nitidamente desbastado na rocha.
Quando o scanner se retraiu, o nicho ficou claramente
visível. No centro eles podiam distinguir um entalhe vertical
do chão até o teto. Entalhes horizontais estendiam-se ao
longo das extremidades superiores e inferiores. Cada painel
estava adornado com a forma em U inconfundível dos
chifres de touros.
Costas assobiou enquanto Katya se inclinava para a frente
para ver melhor.
Jack rebuscou seu bolso da frente e puxou um pedaço
dobrado de papel. Ele leu baixinho a tradução feita por
Dillen:
- A grande porta de ouro da cidadela.
Costas olhou para o seu amigo e viu o familiar rubor de
excitação.
- Não posso garantir pelo ouro, - disse Jack. - Mas posso
dizer uma coisa: encontramos o portal para a Atlântida.


16

Jack observou Katya do outro lado do corredor. Ela estava
inclinada sobre a abertura falando com Costas, sua posição
encurvada acentuava os limites estreitos entre as prateleiras
de armas e o revestimento do casco. A dança agitada de suas
headlamps parecia aumentar as trevas espectrais ao redor
deles. Poderia pelo menos existir o gemido das velhas
anteparas, os sinais da falibilidade que davam vida a qualquer
casco. Ele tinha que se lembrar que o Kazbek havia
afundado a menos de duas décadas e ainda tinha integridade
para resistir muitas vezes à pressão da corrente de água. O
navio parecia estar em desacordo com o interior
fantasmagórico, com o manto de precipitado que o fazia
parecer ter sido construído havia uma eternidade, como as
secreções de pedra calcária de uma caverna.
Quando o seu olhar se desviou para a reentrância escura do
outro lado do corredor, Jack sentiu um súbito enrijecimento,
um sobressalto de medo primitivo que ele não conseguia
controlar.
Ele não podia deixar que isso acontecesse de novo.
Não aqui. Não agora.
Jack se forçou a desviar o olhar do corredor para a atividade
que se desenvolvia lá embaixo. Por um instante fechou os
olhos e apertou os maxilares enquanto chamava todas as suas
forças para lutar contra o pesadelo do domínio da
claustrofobia. A ansiedade das últimas horas o deixara
vulnerável, tinha aberto uma fenda em sua armadura.
Ele teria que ser cauteloso.
Quando sua respiração estava quase se normalizando, Costas
olhou para ele e apontou para o display holográfico com sua
imagem de realidade virtual do lado íngreme do
despenhadeiro. Era uma prova fascinante de que estavam
exatamente no alvo.
- A fase três é passar através do casco para a via de acesso, -
disse ele a Katya.
- É muito fácil, como você diria.
- Espere e verá.
Ouviu-se um súbito assobio como se houvesse água
escapando de uma válvula de radiador.
- Há um espaço vazio de cinco metros entre o casco do
submarino e o despenhadeiro, - explicou Costas. -
Precisamos criar algo como um túnel de fuga, - explicou
Costas. Apontou para um cilindro preso à unidade. - Ele está
cheio de um silicato liquefeito, hidrossilicato
eletromagnético 4, ou EH-4. Nós o chamamos de lama
mágica. Este assobio é o som que faz por estar sendo forçado
pela pressão de gás através do buraco que acabamos de fazer
no exterior do casco, e lá ele está se engrossando como
geléia.
Costas parou para observar atentamente uma exibição
percentual na tela. Quando a figura atingiu cem por cento, o
assobio parou abruptamente.
- OK, Andy. Expulsão completa.
Andy fechou a válvula e apertou um outro cilindro.
Costas voltou-se para Katya.
- Em termos simples, estamos fazendo uma câmara inflável,
criando efetivamente uma extensão do casco do submarino,
feita de silicato.
- A lama mágica!
- Sim, é aqui que entra Lanowski.
- Oh! - Katya fez uma careta quando lembrou do recém-
chegado em Trabzon. A figura mal-humorada que se
recusou a acreditar que ela podia conhecer alguma coisa
sobre submarinos.
- Talvez ele não seja a companhia ideal para um jantar
festivo, - disse Costas. - Mas é um brilhante engenheiro em
compostos múltiplos. Nós o roubamos do MIT* quando o
Departamento de Defesa dos Estados Unidos contratou a
IMU para encontrar uma maneira de preservar o que sobrou
dos naufrágios da Segunda Guerra Mundial em Pearl Harbor.
Ele descobriu um selador hidráulico que pode triplicar a
resistência dos restos do casco de metal, extraindo os sais do
mar que danificam o ferro velho e inibindo a corrosão. Aqui
o estamos usando para propósitos diferentes, é claro.
Lanowski descobriu que ele é também um excepcional
agente de ligação para certos minerais cristalinos.
- Como você o transforma em uma bolha? - perguntou
Katya.
- Esta é a parte engenhosa.
Enquanto eles conversavam, Ben e Andy tinham estado
ocupados ajustando um outro componente da unidade laser.
Ao redor do círculo feito com giz, haviam colocado um anel
com pequenos dispositivos, cada um deles preso ao
revestimento por uma ventosa de sucção ativada por uma
bomba a vácuo. Fios elétricos espalhavam-se em direção a
um painel de controle ao lado do console.
- Aqueles são diodos, - disse Costas apontando para os
dispositivos. - Semicondutores de estado sólido. Cada um
contém uma bobina que age como uma trava magnética no
caso de uma corrente passar através dela. O cabo do DSRV
se conecta com o painel de controle e também com aqueles
fios elétricos. Estamos usando o cabo para carregar uma
bateria reserva, de modo a poder operar de maneira
independente, se necessário. De todo modo, obtivemos
voltagem suficiente para propagar um feixe direcional de
radiação eletromagnética bem através do revestimento do
casco.
Costas trocou de lugar, naquele espaço incrivelmente
apertado, de modo a permitir que os tripulantes assumissem
posições na frente do painel de controle.
- A mistura expelida está suspensa em dióxido de carbono
líquido, hidrato de CO2 - explicou ele. - A solução é mais
densa do que a água do mar, e a pressão nessa profundidade
impede que ela se transforme em gotículas. O revestimento
anecóico do submarino é como lixa e deve impedir a mistura
de escoar.
Os dois tripulantes chamaram uma versão da imagem
holográfica no monitor do computador. Andy estava lendo
as coordenadas enquanto Ben digitava as figuras no teclado,
e cada dado introduzido produzia um pequeno fio de
retícula vermelha na tela. As retículas vermelhas
começaram a descrever um círculo irregular ao redor da
entrada.
- Lanowski descobriu uma maneira de usar tecnologia
cristalina de produção e medição de objetos de tamanho
microscópico para aumentar o reticulado magnético através
da solução, - continuou Costas. - No momento a mistura é
como fibra de vidro liquefeita, com milhões de minúsculos
filamentos comprimidos uns contra os outros. Acrescente
uma aplicação de radiação eletromagnética e eles aderem
uns aos outros como uma estrutura de rocha, na direção da
vibração.
- Como concreto armado, - disse Katya.
- Uma bela analogia. Apenas por seu peso e densidade o
nosso material é cerca de cem vezes mais forte do que
qualquer outro material de construção conhecido.
O sombreado do desenho tornou-se um círculo contínuo e
uma luz verde piscou na trava de controle abaixo. Andy saiu
de seu assento e Costas tomou o seu lugar na frente da caixa
holográfica.
- OK. - Costas endireitou-se. - Vamos em frente.
Ben ligou uma chave no painel de diodos e transistores.
Ouviu-se um zunido baixo e a luz que rodeava a imagem
começou a pulsar. O contador de percentual moveu-se até
cem e piscou em verde.
- Estamos operando. - Costas olhou para Katya, a face dele
ruborizada por causa da excitação. - Acabamos de aplicar
uma corrente magnética de cento e quarenta volts através
dos diodos, magnetizando o EH-4 em um anel que foi
depois projetado, como uma membrana com espessura de
um centímetro, para as coordenadas representadas pelas
retículas. A câmara em forma de cone, com o final amplo
circundando toda a plataforma de rocha. – Ele pressionou
uma tecla. - A corrente liga a membrana ao casco como um
aglomerado sólido contínuo. A sonda mostra que o basalto
tem um alto grau de magnetismo, de modo que a corrente
foi capaz de prender a membrana na rocha, apesar das
irregularidades da superfície.
Andy desprendeu os fios elétricos que iam dos diodos para o
painel transistorizado.
- Agora que a oscilação inicial de corrente desapareceu,
necessitamos apenas de dois fios para manter a carga
elétrica, - disse Costas. - A remoção do resíduo nos permite
ter acesso ao casco e completar o estágio final.
- Cortar através do casco? - perguntou Katya.
Costas concordou.
- Primeiro precisamos tirar a água do compartimento. Andy
está ativando o aspirador que sugará a água através do buraco
e a descarregará no submarino. Os porões suportam mais um
metro de água. De todo jeito esta embarcação não está indo
para lugar nenhum.
- Por enquanto, - disse Jack. Ele tinha estado no corredor
observando os procedimentos silenciosamente, os E-suits e
o aparelho a laser pareciam um cenário de ficção científica.
Seus pensamentos estavam dominados pelo horror nuclear
que era dever deles impedir.
- Pronto para ativar a bomba, - disse Ben.
Costas acionou uma chave e o zumbido do transformador foi
engolido pelo barulho de um motor elétrico. Segundos
depois eles puderam ouvir os jatos de água sendo lançados
na escuridão do porão.
- Estamos simultaneamente injetando ar na pressão
atmosférica, - disse Costas. - A membrana é forte o
suficiente para impedir a câmara de implodir sob o peso da
água do mar.
O jato cessou bruscamente e Andy apontou para a tela.
- Estamos secos, - ele anunciou. - Iniciando a fase quatro.
Jack inclinou-se e olhou atentamente para a caixa
holográfica buscando algumas alterações na aparência do
despenhadeiro. A imagem pulsante mostrou que o scanner
tinha sido reativado e estava retransmitindo dados para o
conversor holográfico.
- A porta cortada na rocha parece estar se mantendo, - ele
disse.
Costas olhou para o holograma.
- A sonda está detectando um pequeno vazamento ao longo
do batente. É exatamente como foi previsto.
- Nós fizemos o modelo deste cenário, na noite passada, no
Seaquest, - explicou Jack. - Admitimos que as escadas
deveriam levar a uma espécie de porta. Também supusemos
que a água do mar encontraria seu caminho de modo
satisfatório e transbordaria em direção ao que houvesse do
outro lado. O fato de a porta não se abrir sob a pressão da
água no interior mostra que há um batente cortado na rocha
que a impede de se abrir para fora. Há muito pouco
crescimento marinho aqui porque o gás sulfídrico na água
destrói pouco a pouco quaisquer secreções de calcita.
Houve um súbito som de um pulverizador debaixo deles
enquanto a bomba de vácuo ajudava a expelir a poça de água
que havia começado a se acumular do outro lado da câmara.
- Deve haver também algum tipo de dispositivo de
bloqueamento, - murmurou Jack. - Se este é realmente o
caminho para o coração da Atlântida, então eles devem ter
ido longe para manter afastados os visitantes indesejados.
- De todo modo, vamos ter de andar no molhado, - replicou
Costas. Katya pareceu perturbada.
- Andar no molhado?
- É a nossa única maneira de ir além dessas portas, - explicou
Costas. - Sairemos daqui secos, mas depois precisaremos
vedar o casco e inundar a câmara. Se as portas abrirem para
o interior, necessitaremos equalizar a pressão em relação ao
peso da água do outro lado. Uma vez lá dentro ficaremos
debaixo da água até alcançarmos o nível do mar.
Ben e Andy estavam fazendo ajustes finais em um braço
robótico que eles haviam alongado de uma unidade central
até um ponto logo acima do círculo traçado a giz. Depois de
checarem por duas vezes suas posições, Ben moveu um pino
de travamento enquanto Andy, sentado em frente ao
console, digitava uma série de comandos.
Costas inclinou-se para inspecionar o dispositivo antes de se
dirigir aos outros.
- Este braço é uma extensão do laser que usamos para
perfurar o casco. Ele gira em torno de um eixo central no
sentido dos ponteiros de um relógio e deve ser capaz de
cortar o casco com facilidade. Felizmente o classe Akula foi
feito de aço e não de titânio.
- Será que a escotilha não vai implodir quando a câmara se
encher de água? - perguntou Katya.
- A escotilha está moldada de tal forma que só se abrirá para
dentro da câmara e se fechará de novo com a pressão da
água quando sairmos.
Andy se voltou para olhar Costas.
- Todos os sistemas estão em ordem. Estou pronto para
ativar a fase final.
Costas agarrou-se à beirada da passagem e supervisionou o
equipamento uma última vez.
- Inicie.
Katya observava fascinada enquanto o laser começava a
descrever um arco no sentido dos ponteiros de um relógio
no casco do submarino, o braço manipulador girava ao redor
de uma unidade central como um enorme compasso de
desenho. O corte tinha apenas alguns milímetros de largura
e seguia a linha do círculo traçado a giz por Costas ao redor
da localização indicada pelo GPS. Depois que o feixe de laser
atravessou o primeiro quadrante, Ben posicionou um
pequeno tubo metálico contra o corte. Com um movimento
hábil ele abriu um minicilindro de CO2, o que fez sair uma
fita magnética para o exterior, com a qual criou uma
dobradiça para que a escotilha girasse de volta contra a
membrana da parede da câmara.
- Quinze minutos para sair, - disse Costas. - É tempo de se
preparar.
Jack deu uma mão para que Costas se içasse até o corredor.
- A partir do momento em que a escotilha se fechar não há
rede de segurança. Nossas vidas dependem uns dos outros e
do nosso equipamento, - disse Costas.
Lenta e metodicamente, Jack checou duas vezes o
equipamento completo de subsistência que eles tinham
montado no DSRV. Depois de calibrar o computador de
descompressão no punho esquerdo, ele inspecionou a
vedação do E-suit de Katya.
- A malha de Kevlar tem boa resistência ao metal e à rocha -
disse ele. - As vedações de borracha dividem o traje em um
certo número de compartimentos, então um rombo não
significa que se fica completamente encharcado. Mesmo
assim teremos de ser cuidadosos. A quase cem metros de
profundidade estamos abaixo do termoclino e a temperatura
será de apenas alguns graus Celsius, tão frio quanto o oceano
Atlântico.
Depois de Jack ter dado uma olhada em seu equipamento,
Costas desprendeu um pequeno console do seu ombro
esquerdo. Ele tinha uma tela LCD digital e estava conectado
à tubulação em sua mochila.
- Quando a câmara inundar estaremos sujeitos à pressão da
água do mar circundante, quase dez atmosferas, - explicou
Costas. - É a mesma profundidade na qual se deu o naufrágio
minoano, por isso estamos usando a nossa mais que testada
fórmula trimix. Qualquer profundidade adicional rasgará o
invólucro de toxicidade do oxigênio. Necessitaremos
urgentemente da passagem para ir para cima e não para
baixo.
- E quanto ao mal-estar da descompressão? - perguntou
Katya.
- Não deverá ser um problema. - Costas colocou o console
de volta em seu lugar. - Nesta profundidade o trimix é
principalmente composto de hélio e hidrogênio. O
nitrogênio aumenta à medida que subimos, o regulador
ajusta automaticamente a mistura conforme a pressão
decresce. A não ser que demoremos muito, quando
subirmos vamos precisar apenas de poucas paradas para
breves descompressões, de modo a deixar o excesso de gás
se dissipar de nossa circulação sangüínea.
- Estaremos indo para cima, - afirmou Jack. - Meu palpite é
que isso nos levará até uma espécie de santuário situado
sobre um pico.
- Isto faz sentido geologicamente falando - disse Costas. -
Seria uma tarefa hercúlea perfurar horizontalmente através
de camadas de basalto compactado. Eles teriam se deparado
com respiradouros e até com magma do vulcão. Seria mais
fácil escavar um túnel para cima ao longo da linha do fluxo
de lava, mais ou menos no mesmo ângulo que a escadaria.
- Bem, já sabemos que essas pessoas eram engenheiros
brilhantes. - Katya falou enquanto sintonizava seu receptor
bidirecional VHF para a mesma freqüência que a dos outros
dois. - Eles podiam escavar uma área do tamanho de um
campo de futebol, construir pirâmides mais impressionantes
do que qualquer uma do Egito antigo. Não acredito que
construir um túnel fosse um grande obstáculo para eles. - Ela
reinstalou o console de comunicação no seu capacete. -
Deveríamos esperar o inesperado.
O único ruído era o baixo zumbido do gerador enquanto o
laser já chegara à metade do seu trabalho. Diferentemente
do corte imperfeito por um maçarico de oxiacetileno, a
beirada estava tão lisa como se estivessem usando um
maquinado de alta precisão. O firme avanço do braço
manipulador parecia contar os minutos finais antes que eles
entrassem no desconhecido.
Quando o laser estava entrando no último quadrante, houve
uma súbita vibração. Foi como se um tremor de terra tivesse
sacudido todo o submarino. Isto foi seguido por um baque
surdo e um tinido amortecido, depois por um silêncio
agourento.
- Acione a bateria de reserva! - ordenou Costas.
- Acionado. Não houve interrupção detectada na corrente.
O zunido elétrico recomeçou quando Andy puxou o fio
elétrico que estava conectado ao DSRV e examinou a tela
procurando falhas.
- Que diabos foi isso? - perguntou Jack.
- O barulho veio do revestimento do casco - replicou Andy.
- Não posso detectar a fonte.
- Não de um lugar à frente, - afirmou Ben. - Estamos a
poucos metros da curva da cobertura de metal que envolve
o motor e sentiríamos qualquer impacto ali. Ele deve ter
vindo de perto da popa, talvez do lado da antepara que veda
a câmara do reator.
Costas olhou de maneira severa para Jack.
- Temos que admitir que o DSRV ficou comprometido.
- O que você quer dizer com comprometido? - perguntou
Katya.
- Quero dizer que recebemos visitantes.
Jack puxou para trás o slider da sua Beretta e verificou se
havia uma bala na câmara. Depois de se assegurar, ele deixou
o slider voltar ao seu lugar para fechar o chassis e com
cuidado levou o cão para a posição de segurança. Ele seria
capaz de esvaziar as balas Parabellum, de 9 milímetros, em
questão de segundos, se fosse necessário.
- Não compreendo, - disse Katya. - É gente nossa?
- Impossível, - replicou Costas. - A tempestade será intensa
até amanhã de manhã, mais doze horas a partir de agora. O
Seaquest está a pelo menos dez milhas náuticas em direção
ao norte. Esta é uma distância muito grande para que um
Aquapod venha até aqui, e com este tempo não há jeito de
um helicóptero baixar o suficiente para deixar
mergulhadores perto do local em que estamos.
- Se eles fossem mergulhadores da IMU já teriam
estabelecido contato conosco, nem que fosse batendo o
código Morse no casco, - disse Ben.
Katya ainda parecia iludida.
- Como o Seaquest os deixou passar? Eles devem ter chegado
antes de a tempestade começar, no entanto os monitores
não mostraram nenhuma embarcação de superfície num
raio de quinze milhas.
- Nestas condições de tempo a vigilância por satélite é quase
inútil, mas o radar do Seaquest deveria ter evidenciado
qualquer anomalia de superfície neste setor. - Costas fez
uma pausa, seus dedos batucando na grade. - Há uma
possibilidade. - Ele olhou para Jack. - Uma embarcação já
poderia estar posicionada do outro lado do vulcão, agitando-
se muito próxima, na tempestade, para que pudesse ser
detectada pelo radar. Um submersível lançado por eles pode
ter encontrado o Kazbek e se juntado ao DSRV, permitindo,
assim, que uma equipe de assalto entrasse pelo
compartimento de fuga.
- Isso explicaria o barulho, - arriscou Ben.
- Mas já estavam posicionados? - Katya não estava
convencida. - Como eles poderiam estar em posição atrás da
ilha? Ninguém mais possuía o texto da Atlântida, ninguém
mais tem a perícia para traduzir e interpretar as direções. -
Ela olhou para os homens. - Receio pela segurança do
Seaquest
Jack sustentou o olhar de Katya durante um tempo maior do
que os demais. Naquela fração de segundo ele teve a
sensação de que algo estava errado, de que ela estava
demonstrando mais do que apenas a apreensão que todos
eles estavam tentando dominar. Quando estava prestes a
interrogá-la, um outro solavanco chacoalhou o submarino e
acabou com toda a especulação. Jack enfiou a Beretta no
coldre em seu peito.
- Costas, você fica aqui com Andy. Esta escotilha pode ser
nossa única via de fuga. Ben, você vem comigo.
- Também vou, - disse Katya sem permitir contestação. -
Necessitamos de todo poder de fogo que pudermos reunir.
Os submarinos Akula carregam uma reserva de armas no
alojamento dos oficiais, no convés acima de nós. Conheço
sua localização.
Não havia tempo para discussões. Rapidamente eles
retiraram suas mochilas SCLS e escoraram-nas contra o
casco.
Jack os alertou enquanto rastejavam pela passagem.
- Estas pessoas não vieram para escavar antigas relíquias. Eles
vão pressupor que encontramos a recompensa deles e que
estamos impedidos de nos comunicar com a superfície. Se
nos eliminarem poderão completar essa transação malograda
tantos anos atrás. Não estão interessados na Atlântida. Cinco
metros adiante há armas nucleares suficientes para terminar
com a civilização ocidental.
Quando Katya alcançou o primeiro degrau que conduzia ao
convés acima, ela se afastou um pouco para evitar a rajada de
precipitado branco provocada pela subida de Jack. Depois de
chegar com muito cuidado ao décimo segundo degrau, ela
bateu em sua perna, fazendo um sinal para Ben que estava
logo atrás.
- Chegamos, - ela sussurrou.
Eles tinham alcançado o nível acima da sala de torpedos,
onde menos de uma hora antes, ao descerem, haviam visto
os alojamentos da tripulação. Katya passou pela escotilha e
afastou os detritos que estavam ao lado da entrada. Jack a
seguia de perto e Ben estava logo atrás. Enquanto eles se
confundiam na escuridão, Jack localizou e acendeu a
headlamp de Katya.
- As armas estão na parte mais baixa, - murmurou ele. -
Tudo correrá bem enquanto vocês não emitirem luz dentro
do tubo inclinado, onde ela poderá se refletir na passagem
acima de nós.
Katya atravessou a passagem estreita até o outro lado do
compartimento. Atrás de um par de mesas em desordem
uma escotilha estava entreaberta. Ela fez um gesto para que
eles permanecessem onde estavam e seguiu rastejando.
Enquanto ela passava agachada pela escotilha, Ben virou-se
para trás para ver se ouvia algum som acima deles.
Depois de alguns minutos de silêncio tenso Katya
reapareceu, sua headlamp apagada para evitar refletir no
tubo inclinado. Enquanto ela se dirigia até eles, puderam ver
que estava carregada de equipamentos.
- Uma AKS-74U, - ela sussurrou. - Também uma pistola
Makarov, nove milímetros, e ainda uma Walther PPK. O
armário das armas estava quase vazio e isso foi tudo o que
pude encontrar. Há também uma caixa de munição.
- Isto dará conta do serviço. - Ben retirou a arma do ombro
de Katya. A AKS-74U tinha a mesma dimensão que a
Heckler & Koch MP5, a familiar arma da polícia no
Ocidente, mas, diferentemente das submetralhadoras, ela
utilizava balas de rifles de 5,45 milímetros, de alta
velocidade. Os engenheiros no Departamento de Projeto de
Armas Kalashnikov aperfeiçoaram um supressor de som que
não afetava a velocidade da bala e desenvolveram uma
câmara de expansão que tornou a arma mais controlável no
automático do que qualquer outra arma de fogo de calibre
similar.
Ouviu-se um outro som amortecido distante, nas entranhas
do submarino. Jack levantou a cabeça alarmado e todos
pararam para ouvir. O que de início parecia um tinido
metálico distante tornou-se, progressivamente, mais nítido,
uma sucessão de sons surdos e monocórdios que continuou
por vinte segundos e parou.
- Passos, - sussurrou Jack. - No nível acima de nós,
dirigindo-se para o compartimento de fuga. Meu palpite é
que nossos amigos controlaram o compartimento.
Precisamos interceptá-los antes que alcancem o tubo
inclinado onde se encontram as armas.
Jack e Katya pegaram, cada qual, um pente Kalashnikov e
rapidamente enfiaram nele balas que estavam na caixa de
munição. Katya passou seu pente para Ben, que o colocou
com as balas remanescentes na cartucheira em seu cinto. Ele
introduziu o outro pente na arma, puxou o ferrolho para trás
e acionou a trava de segurança. Katya armou a Makarov e
deslizou-a sob o cinto de ferramentas na cintura.
- Certo, - sussurrou Jack. - Vamos.
Parecia ter se passado uma eternidade desde que haviam
encontrado o horrível espectro na entrada da sala do sonar.
Quando eles alcançaram os degraus finais da escada de
corda, Jack sentiu-se agradecido pela escuridão que os
protegia do olhar maligno da sentinela.
Ele ajudou Katya a subir. Segundos depois os três estavam
prontos com suas armas. Através da passagem podiam ver
perto da popa o brilho da luz de emergência iluminando a
sala de controle.
Jack os conduziu em fila indiana ao longo do lado esquerdo
do corredor com a Beretta apontada. Logo antes da entrada
ele sentiu seu corpo gelar e levantou um braço como um
aviso. Katya chocou-se com ele enquanto Ben parecia ter se
fundido com a escuridão do outro lado.
Do seu ponto de observação restrito, tudo o que Katya podia
ver era um aglomerado de maquinário desconjuntado e
consoles quebrados. O manto de precipitado emprestava
uma qualidade bidimensional à cena, como se eles
estivessem olhando para uma pintura demasiado abstrata
para registrar quaisquer texturas ou formas separadas.
De súbito ela se deu conta de por que Jack havia parado. Ao
lado dos restos retorcidos do periscópio uma figura
fantasmagórica se destacava do fundo, a forma só era
perceptível quando se movia. Enquanto avançava em
direção a eles ficava claro que a figura ignorava que
estivessem ali.
Ouviu-se um estalido ensurdecedor da Beretta de Jack.
Através da tempestade branca que despencou das paredes,
ela viu a figura vacilar contra o compartimento do
periscópio e cair no convés de modo desajeitado. Jack atirou
mais cinco vezes em rápida sucessão, a cada estampido
arremessando uma chuva de fragmentos de bala que
emitiam um som agudo e ribombavam ao redor do
compartimento.
Katya estava atordoada com a ferocidade dos estrondos. Para
seu horror viu a figura se erguer devagar e apontar a
submetralhadora Uzi que estivera carregando no corredor.
Ela podia distinguir com nitidez as marcas onde as balas de
Jack haviam atingido sem causar dano no exoesqueleto de
Kevlar. O oponente desencadeou com a Uzi uma detonação
selvagem surpreendente, disparando balas que provocavam
faíscas quando atingiam o maquinário atrás deles.
Diretamente do lado escuro chegou uma rajada da AKS-74U
de Ben, o barulho menos assustador do que o da Beretta, por
causa do silenciador, porém de efeito mais mortal. As balas
bateram com força na figura que avançava e empurraram-na
de volta contra o periscópio, fazendo com que as balas de
sua Uzi traçassem um arco selvagem no teto. Cada impacto o
atingia com a força de uma britadeira, enquanto seus
membros se agitavam em uma dança maluca. Quando o
Kevlar se rasgou, seu torso inclinou-se em um ângulo
grotesco onde a espinha havia sido arrebentada. Ele morreu
antes de atingir o solo.
Uma outra arma automática de algum lugar distante da sala
se juntou ao estrondo daninho. As reverberações
transmitiam um tremor ao submarino, os choques faziam o
ar vibrar no momento dos disparos.
Jack se agachou e empurrou as balas mexendo os pés como
um corredor antes de uma corrida.
- Cobrindo o fogo.
Ben esvaziou o que restava em seu pente dentro da sala,
enquanto Jack saía de seu esconderijo e corria para a
plataforma central, a Beretta soltando uma rajada de balas
para além do periscópio, de onde se originavam as balas da
arma inimiga. Ouviu-se um grito agudo e um barulho,
seguido de passos que se retiravam. Katya correu para perto
de Jack, com os ouvidos ressoando por causa do tiroteio.
Ben rapidamente juntou-se a eles e os três ficaram agachados
lado a lado contra a base destruída do periscópio.
- Quantos serão? - perguntou Ben.
- Dois, talvez três. Acabamos com um. Se conseguirmos
mantê-los no corredor, limitaremos seu campo de fogo.
Os dois homens tiraram fora os pentes e os recarregaram.
Enquanto Ben enfiava no pente as balas soltas que havia em
sua cartucheira, Katya olhou para a cena de massacre atrás
deles.
Era uma visão repugnante. No meio de uma mistura de
sangue coagulado e cartuchos vazios da Uzi estava o corpo
do homem sentado em um ângulo estranho, o torso dobrado
em dois e a cabeça com o rosto voltado para baixo. As balas
tinham rompido seu equipamento de respiração, os cilindros
e o regulador estavam respingados com fragmentos de ossos
e carne. Logo abaixo havia um buraco no lugar onde estivera
o pulmão e o coração. Uma mangueira estourada de seu
regulador de oxigênio havia entrado na cavidade,
produzindo uma espuma sangrenta que assobiava e
borbulhava como em uma paródia grotesca das respirações
finais do homem.
Katya abaixou-se e levantou-lhe a cabeça. Ela estremeceu e
deixou-a cair rapidamente. Jack teve certeza de que ela o
havia reconhecido. Ele colocou uma mão em seu ombro
quando ela se virou.
- Já houve mortes suficientes nesta embarcação. - Ela
subitamente parecia cansada. - Já é hora de terminar com
isto.
Antes que Jack pudesse detê-la, Katya se levantou e ergueu
os dois braços rendendo-se. Ela parou no espaço entre os
periscópios.
- Meu nome é Katya Svetlanova. - Ela falou em voz alta e
em russo, com as palavras ressoando através do
compartimento.
Houve uma comoção imediata e o som de uma conversa em
voz baixa. Por fim uma voz respondeu em um dialeto que
nem Jack nem Ben reconheceram. Katya abaixou os braços
e iniciou um diálogo acalorado que durou vários minutos.
Ela parecia estar no comando da situação. Sua voz emanava
autoridade e confiança, ao passo que a do homem era
hesitante e respeitosa. Depois de uma breve sentença final,
ela deixou-se cair e empurrou a pistola dentro do seu cinto.
- Ele é um cazaque, - disse ela. - Eu lhe contei que
colocamos armadilhas no corredor, a começar daqui até a
sala de torpedos. Disse também que só negociaremos cara a
cara com seu líder. Isto não vai acontecer, mas ganharemos
tempo enquanto eles planejam seu próximo passo.
Jack olhou para ela. Katya havia sido útil por duas vezes ao
impedir um desastre, primeiro ao prevenir um ataque do
Vultura no Egeu e agora ao negociar com o matador
profissional. Parecia que, enquanto ela estivesse presente, os
adversários deles manteriam distância e aguardariam o
momento propício.
- Estes homens, - disse ele, - suponho que sejam os nossos
amigos do Vultura!
- Você está certo, - ela replicou baixinho. - E eles são
completamente desumanos.
- O que faremos agora? - perguntou Ben.
Eles ouviram um som surdo e embotado de um ponto
distante do submarino.
- Eis a sua resposta, - replicou Jack. Era um sinal
previamente combinado com Costas de que a operação para
cortar o casco havia dado certo. Jack levantou-se e conduziu
os outros dois para fora da* sala de controle, passando ao
lado do lugar escorregadio por causa do sangue que ainda
escorria do cadáver. À medida que recuavam pelo corredor,
Jack olhou para trás uma última vez, para os destroços da
sala, assegurando-se de que não estavam sendo seguidos.
Deixaram Ben agachado nas sombras ao lado da extremidade
do tubo inclinado onde se encontravam as armas. Ele havia
assinalado sua intenção e fizera sinal para que Jack e Katya
continuassem. Com apenas um pente e meio à sua
disposição as chances estavam contra ele, mas Jack sabia que
se houvesse um confronto final cada bala encontraria seu
alvo.
Levou apenas alguns minutos para que Katya e Jack
atravessassem o caminho, agora familiar, até o final do tubo
inclinado e chegassem na sala de torpedos. Quando
alcançaram a abertura das grades, sem dizer palavra
recolocaram os SCLS que haviam deixado ali, checando um
ao outro e ativando os consoles reguladores.
Eles sabiam o que tinham de fazer. Não havia nada a ganhar
em ficar se demorando com Ben e Andy, uma situação que
poderia ter um único resultado. A defesa deles estava
baseada na força da ameaça de Katya e logo que esta falhasse
o número deles não faria diferença. Esta era sua única
chance, sua esperança de conseguir ajuda enquanto a
tempestade rugia lá fora.
Os riscos eram terrivelmente altos.
Quando desceram para o porão, puderam ver que Costas já
havia recolocado sua máscara e vedado seu capacete. Eles
rapidamente seguiram o exemplo, mas não antes de Katya
entregar sua pistola, que estava no console, para Andy.
- Você pode precisar mais disso do que eu, - disse ela.
Andy aquiesceu de maneira apreciativa e colocou a arma no
coldre antes de se voltar para a tela. Enquanto Jack conferia
silenciosamente os elementos na sala de controle, Costas
terminava de retrair o braço telescópico. O laser havia
cortado um círculo perfeito de um metro e meio de
diâmetro no revestimento do casco.
- Ele gira em torno de uma dobradiça que inserimos, - disse
Andy. - Tudo que tenho de fazer agora é reduzir a pressão
de ar na câmara e ele abrirá para fora como uma escotilha.
Eles olharam para o casco com um misto de emoções,
apreensivos com os perigos que os esperavam, embora
atraídos pela irresistível excitação de um mundo perdido que
despertava neles as fantasias mais desenfreadas.
- OK. - disse Costas. Vamos.

17

Costas agachou-se tomando cuidado para evitar a borda
afiada como navalha onde o laser havia cortado o casco. Ele
estendeu a mão para testar a membrana magnetizada e
depois se voltou para ajudar Katya e Jack. Assim que
passaram a salvo, ele ajudou a fechar a escotilha, temendo
que um rasgão na membrana causasse uma inundação
incontrolável no submarino. A junção nivelada onde a
escotilha se fechou testemunhava a precisão microcirúrgica
do laser.
Embora a membrana fosse translúcida, havia muito pouca
luz natural naquela profundidade, e ela estava bloqueada
ainda mais pela rocha suspensa que se estendia sobre o
submarino e os isolava do mar lá fora.
Quando ligaram as headlamps, ao redor deles a luz refletia a
retícula cristalina da membrana, produzindo uma luz branca
fraca e brilhante. À frente deles, a face íngreme do rochedo
parecia assustadoramente fora do comum, o verde
monocromático do holograma não deixara perceber sua
superfície brilhante. Era como se eles estivessem olhando
para uma fotografia em sépia, fora de moda, uma beirada
enevoada enquadrando a imagem matizada de alguma gruta
perdida havia muito tempo.
Eles andaram vagarosamente para a frente, endireitando sua
postura à medida que o túnel se alargava. A membrana tinha
a dureza de uma rocha e proporcionava um apoio seguro,
apesar do gotejamento de água que vinha da plataforma à
frente. Depois de oito metros, alcançaram o ponto onde a
membrana havia se juntado magneticamente com a face do
despenhadeiro. Costas os guiou até as escadas e agachou-se
para inspecionar a superfície.
- Há quase uma total ausência de incrustação marinha, não
há nem mesmo algas. Nunca vi um mar mais morto do que
este. Se tirarmos nossos capacetes, sentiremos um cheiro
forte e desagradável de ovos podres, por causa do gás
sulfídrico na água.
Costas ligou o botão do volume de seu console de
comunicações e assegurou-se de que os outros podiam
ouvir. Jack murmurou um assentimento, mas estava
preocupado com a imagem à sua frente. Ele e Katya estavam
parados lado a lado, separados apenas alguns metros da
escuridão na parte de trás da plataforma.
Quando Costas juntou-se a eles, sua headlamp acrescentou
maior nitidez à cena. Bem à frente havia um nicho retilíneo
cortado na rocha com quase o dobro da altura deles e três
vezes mais largo. Ele tinha uma profundidade de cerca de
três metros e havia sido polido até alcançar um acabamento
impecável. Na parede de trás estava a imagem que os havia
paralisado quando a viram no holograma, o desenho de uma
grande porta dupla.
Katya foi a primeira a afirmar o óbvio, sua voz estava tensa
de excitação.
- Ela é de ouro!
Quando seus feixes de luz convergiram sobre a porta, eles
quase foram cegados pelo resplendor. Katya com cuidado
apontou a lanterna para a beirada inferior da luz brilhante.
- Ela é feita de placas de ouro, eu acho, - disse Costas. -
Forjadas e polidas e depois aderidas às lajes de pedra debaixo
delas. Havia abundância de ouro de aluvião, no Cáucaso,
naquele período, mas eles esgotariam os recursos para fazer
esta porta de ouro sólido. De todo jeito ela ficaria muito
maleável.
Através da fenda ao redor da beirada inferior, um fino
reflexo de água se espalhava para fora da cavidade. A luz das
lanternas refratava-a em miríades de minúsculos arco-íris,
uma auréola caleidoscópica que se somava ao deslumbrante
efeito do ouro.
- As portas batiam em cheio contra um peitoril baixo que
corria ao longo da beirada. - Costas estava examinando
atentamente o canto direito inferior. - É isto que impede
que as portas se abram em nossa direção. Elas foram
desenhadas para se abrir para dentro, como nós pensávamos.
- Ele deu um passo para trás e voltou-se para Jack. -
Precisamos inundar esta câmara para equalizar a pressão de
água dos dois lados da porta. Estamos prontos?
Os outros dois aquiesceram e ajustaram seus consoles
reguladores, substituindo o gás de ar comprimido que
estavam respirando pelo trimix, essencial para se sobreviver
a cem metros abaixo do nível do mar. Katya oscilou
ligeiramente, sentindo a cabeça oca quando respirou a
mistura não usual. Costas estendeu a mão para ampará-la.
- Você se acostumará com o gás, - disse Costas. - Ele deixará
sua mente clara para todas aquelas inscrições que irá
traduzir.
Katya e Jack checaram as pressões dos cilindros um do outro
antes de dar o sinal de ok para Costas, que deslizou de volta
ao longo da membrana até o submarino. Depois de ativar o
seu próprio regulador, ele deu uma sucessão de golpes
cortantes com a sua multiferramenta. Alguns segundos mais
tarde um jato violento de água irrompeu através do buraco
no centro da escotilha, batendo estrepitosamente no
despenhadeiro com a força de um canhão de água. Andy
havia revertido a bomba de alta pressão e, através de um
equipamento de filtragem, puxara para cima a água dos
porões para purificá-la das toxinas e da matéria sólida.
Todos se achataram contra a parede para evitar a forte rajada
de água que trovejou ao passar por eles. Quando ela
ricocheteou na rocha e começou a encharcá-los, Jack ofegou
de dor.
- O que aconteceu? - perguntou Katya. - Você está bem?
- Não é nada.
A postura de Jack mostrava exatamente o contrário, seu
corpo estava contorcido enquanto se mantinha contra a
rocha.
Somente quando a água subiu na altura de suas pernas foi
que ele começou a se endireitar lentamente, sua respiração
entrecortada claramente audível através do
intercomunicador.
- Aconteceu durante nossa pequena luta final. - Sua voz traía
a dor que o estava consumindo. - Levei um tiro do lado
direito quando nos precipitávamos pela sala. Eu não disse
nada porque não havia o que fazer. A bala penetrou no
Kevlar, então eu tenho uma câmara mal vedada. A água está
fria. Vai passar.
A realidade era mais séria. Mesmo que tivesse sido apenas
uma bala Uzi em baixa velocidade, ela havia fraturado uma
costela e o deixara com um buraco na carne. Ele já havia
perdido bastante sangue e sabia que logo sua sobrevivência
iria depender apenas de um milagre. A arremetida da água
havia estancado o sangue e estava entorpecendo a dor, mas
o buraco em seu traje era pior do que anunciara. Nas
condições de quase congelamento em que se encontravam,
seria apenas uma questão de tempo antes que sua
temperatura caísse para um nível perigoso.
Quando Jack tentou controlar a respiração, sentiu uma súbita
onda de vertigem, um sinal seguro de diminuição de
oxigênio. Seu corpo estava ansiando por alimento depois de
perder tanto sangue. Ele começou a hiperventilar.
Não de novo!
Ele enrijeceu enquanto a água subia e o envolvia. Sentia uma
necessidade premente por espaço vazio à medida que
diminuía o espaço sem água; um medo crescente surgiu
quando a claustrofobia começou a se apoderar dele.
Jack necessitava desesperadamente convencer a si mesmo
de que isto era um processo fisiológico, uma reação natural
enquanto seu corpo lutava para se ajustar, e não um pânico
cego.
Relaxe. Solte.
Sua respiração se fazia com inalações irregulares quando se
ajoelhou no chão com os braços soltos e a cabeça curvada,
enquanto o barulho do seu regulador era abafado pela
agitação da água ao redor. Ele mal estava consciente de
Katya e Costas à sua frente, que, com os corpos envolvidos
por água enquanto observavam o nível da superfície subir,
pareciam ter se esquecido dele.
Ele fechou os olhos.
Uma onda o empurrou para trás repentinamente,
circundando seu corpo como se ele estivesse no vórtice de
um redemoinho de água. De cada lado o redemoinho
parecia acariciá-lo, como se o peso na frente o pressionasse
fortemente para baixo, uma enorme massa que o fixava
contra a membrana.
Jack abriu os olhos, horrorizado.
Tudo o que pôde ver foi um rosto medonho pressionado
contra ele, as cavidades dos olhos vazias e o sorriso retorcido
repercutindo como uma boneca enlouquecida, os braços
fantasmagóricos se agitando na tentativa de circundá-lo em
um abraço mortal. A cada nova onda a água se cobria com
flocos brancos e acinzentados que pareciam se destacar da
aparição como se fossem neve.
Jack se via impotente para resistir, preso em um pesadelo
que o paralisava sem possibilidade de fuga, ameaçando-o
inexoravelmente de maneira esmagadora.
Ele parou de respirar, a boca congelada em um grito
entrecortado.
Era uma alucinação!
Sua mente racional lhe disse que ele era vítima de uma
narcose. O homem que eles haviam matado no tiroteio. O
corpo na sala do sonar. Eram os fantasmas do submarino,
aparições que vieram para assombrá-los.
Ele fechou os olhos bem apertado, lutando com todas as suas
forças para não deslizar para a escuridão.
Em um lampejo viu-se de volta à escavação de uma
passagem vertical, cinco meses antes, em um local onde as
condições eram muito difíceis. Mais uma vez ele sentiu o
choque quando o gás subiu da escavação e o fez bater com
força contra a viga, danificando o seu suprimento de ar e
apagando toda a luz. Lembrou a asfixia sufocante em um
escuro de breu antes que Costas o encontrasse e aplicasse
uma respiração boca a boca para trazê-lo de volta à vida. O
horror quando a segunda onda o atingiu e o empurrou para
longe do alcance de Costas, em direção a superfície. As
horas na câmara hiperbárica, horas de exaustão, pontuadas
por momentos de puro terror quando a consciência o levava
de volta repetidas vezes para o instante de pânico. Havia
sido a experiência que todos os mergulhadores receavam,
aquela que abala a confiança construída precariamente ao
longo dos anos, fazendo-o cair em um mundo onde todos os
controles, todos os parâmetros, devem ser dolorosamente
reconstruídos a partir da ferida.
E agora estava acontecendo o mesmo, de novo.
- Jack! Olhe para mim. Tudo está bem. Já passou.
Costas fitou os olhos arregalados de Jack e agarrou-o pelos
ombros. Quando o barulho do jato d'água diminuiu e ele
começou a ouvir o exaustor outra vez, Jack arfou,
estremeceu com a respiração e começou a relaxar.
Era Costas. Ele ainda estava na câmara.
- Deve ter sido um dos corpos que Kuznetsov ejetou pelo
tubo dos torpedos. Conseguiu se alojar no nicho da rocha e
depois foi empurrado pelo jato d'água. Não era uma visão
bonita. - Costas apontou para a forma coberta de flocos
brancos agora flutuando na água em direção ao casco do
submarino, seu torso mutilado de maneira obscena onde
Costas o socou para empurrá-lo para o lado, fazendo com
que o tecido adiposo que ainda estava grudado ao esqueleto
se desintegrasse.
Em vez de repugnância, Jack sentiu uma enorme alegria, a
liberdade de um sobrevivente que encarou o esquecimento
e o venceu. O afluxo de adrenalina iria impulsioná-lo através
de qualquer coisa que houvesse na frente deles.
Katya havia sido empurrada para trás pela força da água,
contra a membrana, e ficou alheia ao seu pânico. Jack olhou
para ela e falou com voz rouca pelo intercomunicador, sua
respiração saindo ainda interrompida por estremecimentos.
--É a minha vez de ter um choque, isto é tudo.
Ela não poderia ficar sabendo dos demônios que o haviam
assombrado, a força que o havia ameaçado e quase significou
o fim para ele.
O redemoinho giratório terminou e a água atingiu uma
clareza límpida logo depois que a turbulência cessou. Os
olhos de Costas permaneceram fixados em Jack até perceber
que ele havia relaxado completamente. Depois de um
instante, Costas desfez as tiras de velcro que mantinham as
nadadeiras de Jack presas em suas pernas, colocando as
lâminas de silicone em seus pés e encaixando-as no lugar.
Jack girou e observou as bolhas de seu exaustor se unirem
em pequenas poças translúcidas que oscilavam e
tremeluziam e iam juntar-se no teto da membrana. Sentiu
seu cilindro arranhar ao longo da parte inferior das costas e
rapidamente injetou uma rajada de ar dentro de seu traje
para conseguir um poder de flutuação.
Costas nadou do casco em direção à rocha. Quando ele a
alcançou, um ruído alto, incompreensível, invadiu seus
fones de ouvido. Jack percebeu que estava tremendo
violentamente, o terror dos últimos minutos se transformara
em um alívio delirante.
- Olá, Mickey Mouse, - disse Jack. - Acho que você deve
ativar o modulador de voz.
A combinação de hélio com uma pressão extrema distorcia a
voz de maneira cômica, e a IMU havia desenvolvido um
equipamento de compensação para evitar o efeito que Jack
estava achando tão difícil de absorver.
- Peço desculpas. Vou tentar de novo. - Costas girou um
disco na lateral da máscara. Encontrou uma freqüência mais
bem ajustada e ligou o automático, para que o modulador se
adaptasse às mudanças de pressão e composição de gás à
medida que a profundidade se alterava.
- Andy diminuiu a magnetização para tornar a membrana
semiflexível, permitindo que a pressão ambiental do mar
entrasse para dentro do espaço e igualasse a pressão da água
atrás da porta. Ela é de 9,8 atmosferas, quase cem metros.
Nesta profundidade o trimix dura apenas meia hora.
Com os feixes de luz das headlamps reduzidos à metade para
limitar a reflexão, eles podiam distinguir mais aspectos da via
de acesso. Em cada painel da porta havia o símbolo do
magnífico chifre de touro que fora visto no holograma, o
formato em tamanho natural, forjado em ouro, que se
salientava em baixo-relevo.
Costas extraiu um outro dispositivo do seu cinto de
ferramentas.
- Algo que encontrei por acaso no laboratório de geofísica
na IMU, - disse ele. - Um radar que penetra na terra gerando
um sistema de ondas eletromagnéticas para revelar imagens
abaixo da superfície. Nós o chamamos de holofotes
acústicos. O sinal GPR penetra apenas cinco metros, mas
deve nos indicar se há uma obstrução sólida no outro lado.
Ele prolongou a antena do transdutor e nadou para cá e para
lá ao longo da base da via de acesso, chegando por fim a
descansar ao lado da fenda entre as portas.
- Está claro, - ele anunciou. - Não há resistência depois de
meio metro, que deve ser a espessura das portas. Olhei com
cuidado ao longo do umbral inferior e não há nada que possa
nos causar problemas.
- Corrosão metálica? - perguntou Katya.
- O ouro não corrói de maneira perceptível na água do mar.
Costas recolocou o dispositivo no cinto e curvou seus dedos
por cima do peitoril abaixo da porta. Ele moveu o corpo para
a frente e para trás algumas vezes, depois descansou.
- Aqui vai - disse ele.
Num ímpeto repentino ele se jogou para a frente, atirando
toda a força do seu corpo contra a porta. Permaneceu
firmando-se contra ela durante alguns instantes antes de
desistir vencido pela exaustão. As portas pareciam feitas de
rocha sólida, os dois metros de altura delineavam meros
entalhes na superfície do despenhadeiro.
- Nada a fazer, - ele ofegou desoladamente.
- Espere. Olhe para isto.
Jack estivera flutuando um metro acima e havia sido
envolvido pelo resplendor das bolhas que saíam do exaustor
de Costas. Seu olhar tinha sido atraído por um aspecto
curioso, refratado através da turbulência, uma irregularidade
muito pequena para ser apreendida pelo holograma a laser.
Essa irregularidade semelhava um lugar mais baixo, uma
depressão central do tamanho de um pires situada entre os
dois conjuntos de chifres de touro. A fenda entre as portas
estava escondida abaixo dela, fazendo a depressão se parecer
com um selo estampado no metal depois que as portas foram
fechadas pela última vez.
Katya se moveu acima dele e conseguiu tocá-la.
- Ela parece cristalina, - disse ela. - É bastante complexa,
contém muitos ângulos retos e superfícies planas.
O cristal era imaculado, quase tão sem defeito que era
praticamente invisível. O movimento da mão de Katya
quando ela traçou a forma da depressão parecia a
gesticulação de um artista mímico. Foi apenas quando eles
diminuíram a luz das headlamps que uma forma começou a
emergir, refratando a luz como um prisma para revelar
linhas e ângulos.
Quando Jack se movimentou, as linhas subitamente se
juntaram em uma forma familiar.
- Meu Deus, - ele ofegou. - O símbolo da Atlântida!
Durante um instante eles ficaram olhando assombrados, as
provações por que haviam passado durante as últimas horas
desapareceram, e foram de novo sugados pela extraordinária
excitação da descoberta.
- Quando estávamos nos deslocando nos Aquapods vimos
este símbolo esculpido em um disco na fachada da pirâmide,
- disse Jack. - Parece lógico encontrá-lo aqui também.
- Sim, - disse Katya. - Uma espécie de talismã para proclamar
a santidade do lugar.
Costas pressionou o visor de sua máscara contra o cristal.
- A escultura é incrível, - ele murmurou. - Muitos
compostos de sílica não durariam tanto tempo na água do
mar com teor tão alto de enxofre sem formar uma patina
como reação.
Os pensamentos se agitavam na mente de Jack enquanto ele
olhava para a porta. Repentinamente ele grunhiu e puxou
para fora um pacote alongado que havia colocado junto com
a Beretta.
- Eu trouxe comigo o meu próprio talismã.
Desembrulhou a cópia do disco encontrado no naufrágio
minoano. Quando ele o girou para revelar o símbolo, a luz
de sua headlamp dançou sobre a superfície.
- Olhem a chave para a Atlântida, - disse ele alegremente.
Costas ficou excitado.
- É claro! - Ele pegou o disco de Jack e o segurou levantado.
- A forma convexa se ajusta perfeitamente à concavidade da
porta. O símbolo no disco está ao contrário. O disco deve se
ajustar como uma chave em uma fechadura.
- Eu tinha um pressentimento de que ele poderia ser útil, -
disse Jack.
- Aquela porta não vai sair do lugar nem um centímetro, -
disse Costas. - Esta pode ser nossa única chance.
Jack elevou-se um pouco até ficar diretamente na frente do
símbolo gravado na porta. Katya se postou à sua esquerda.
- Só há uma maneira de descobrir, - disse ele.

18

Quando Jack alinhou o disco com a porta, o cristal pareceu
puxá-lo para si, como se uma força primitiva estivesse
atraindo ao mesmo tempo duas metades de um todo que o
destino manteve separadas durante muito tempo. E de uma
maneira bastante firme, o disco ajustou-se ao cristal e
deslizou suavemente para o interior até que se nivelasse com
as portas.
- Bingo! - disse Jack baixinho.
Ele colocou a palma da mão sobre o disco e o pressionou
com força. De maneira abrupta o disco se ajustou ao interior
e girou rapidamente no sentido dos ponteiros do relógio,
movimento que fez com que a água realizasse um giro como
o rastro de um propulsor. Quando parou de girar, ouviu-se
um barulho baixo e opressivo, o disco se desprendeu e as
portas moveram-se e ficaram entreabertas.
Houve pouca resistência quando Jack abriu amplamente as
portas. A visão deles ficou momentaneamente obscurecida
pelo resplendor da turbulência quando a água gelada do
interior se misturou com a água do mar ao redor deles. Jack
prendeu a respiração para ocultar um espasmo de dor, uma
sensação de facada onde o rasgão em seu traje havia exposto
seu peito à água muito gelada. Os outros dois perceberam sua
agonia, mas sabiam que ele iria recusar uma mostra de
simpatia deles.
Costas havia flutuado acima da soleira da porta e estava
examinando o mecanismo revelado em sua beirada.
- Fascinante, - ele murmurou. - A porta era mantida por
uma viga de granito como uma trave, em dois
comprimentos chanfrados juntos. A superfície superior
havia sido esculpida em saliências e sulcos como uma roda
dentada. O cristal estava encaixado em um cilindro de pedra
com saliências que se igualavam. Quando Jack pressionou o
disco, as rodas dentadas se engataram.
Costas tirou o disco do cristal e passou-o para Jack por
medida de segurança.
- Como ele girou por si mesmo? - perguntou Katya.
- As extremidades da viga contêm lastro, provavelmente
dentro das cavidades adjacentes aos batentes. Quando a roda
dentada é engatada, os pesos puxam os dois comprimentos
da trave separando-os, fazendo o cilindro girar.
- Para os espectadores a automatização deve ter parecido
milagrosa, obra dos deuses, - disse Jack.
- Uma impressionante peça de engenharia.
- Simplicidade de propósito, economia de projeto,
durabilidade de materiais. - Costas sorriu para eles através de
sua máscara. - Esta invenção teria ganhado facilmente o
primeiro prêmio na competição de estudantes da MIT na
época em que estive lá.
Eles ajustaram as headlamps para emitir iluminação máxima.
A água ao redor deles era cristalina, livre de contaminações
durante milhares de anos desde que pela primeira vez
penetrou nas fendas pelo vão entre as portas.
A luz cintilava nas paredes de rocha quando os feixes
atravessavam de um lado a outro. Eles haviam entrado em
uma câmara retangular do tamanho do compartimento de
torpedos no submarino. Logo à frente deles havia um
pedestal maciço desbastado na rocha viva.
- É um altar! - exclamou Jack. - Você pode ver os condutos
onde o sangue transbordava para as escadarias do lado de
fora.
- Sacrifício humano? - perguntou Costas.
- Isto tem uma longa história entre os povos semíticos do
Oriente Próximo, - disse Katya. - Pense em Abraão e Isaac
no Velho Testamento.
- Mas nunca em grande escala, - contrapôs Jack. - A história
de Abraão e Isaac é poderosa exatamente por ser
excepcional. Os minoanos também utilizavam sacrifícios
humanos, mas a única evidência disso é um santuário
situado em um pico próximo de Cnossos, onde um tremor
de terra derrubou o templo no meio de um ritual e
preservou o esqueleto. Provavelmente eles eram realizados
somente por ocasião de catástrofes como a erupção do
Thera.
Estavam se dirigindo para o pedestal no centro da câmara,
seus feixes de luz convergindo para a beirada da plataforma
de sacrifício. Quando o topo se tornou visível eles foram
confrontados por uma imagem quase que demasiado
fantástica para ser compreendida, um espectro que
desaparecia, como um gênio, logo que se aproximavam dele.
- Você viu o que eu vi? - ofegou Katya.
- Extraordinário - murmurou Costas. - Os ossos devem ter se
desintegrado milhares de anos atrás, mas na imobilidade os
sais de cálcio devem ter permanecido onde eles caíram.
Com a menor perturbação, desapareceram como uma
baforada de fumaça.
Por uma fração de segundo eles viram um touro deitado, sua
forma gigantesca reduzida a uma marca de faixas brancas
como um negativo fotográfico esmaecido. Nos cantos da
mesa podiam-se distinguir buracos onde seus membros
tinham sido amarrados antes do sacrifício, a corda
desaparecera fazia muito tempo, quando a água do mar tinha
subido e levado a carcaça em seu abraço gelado.
Jack pegou uma adaga que estava em um dos lados da mesa.
A empunhadura de pedra estava talhada com uma besta
medonha, metade touro, metade águia.
- Aqui está sua resposta, - disse Jack suavemente. - O pátio
com sua estátua colossal no contorno da costa foi a primeira
arena de luta de touros do mundo. Os animais condenados
eram conduzidos pela via processional, entre as pirâmides, e
depois impelidos escada acima até esta laje. Este deve ter
sido um lugar espetacular, de onde se podia ver toda a cidade
na planície abaixo, o sacrifício era realizado, talvez, no
momento exato em que surgia o primeiro clarão de sol entre
os dois picos gêmeos do vulcão e entre os cornos da esfinge-
touro no pátio, bem abaixo. A cidade inteira deveria parar
para assistir.
Fez uma pausa e olhou solenemente para os outros dois
através do vidro da máscara.
- Acabamos de prestar testemunho do sacrifício final, a
última tentativa desesperada dos sacerdotes para rechaçar a
elevação da água do mar antes que as portas deste local se
fechassem para sempre.
Eles nadaram sobre o altar e se dirigiram para um buraco
negro aberto na parte de trás da câmara. Uma luz fraca se
tornou mais intensa à medida que nadavam para a frente,
enquanto a luz de suas headlamps cintilavam nas paredes
como se estivessem formando ondas de cristal e ouro.
- Atlântida com paredes de ouro, - disse Jack baixinho.
Logo antes de eles atingirem o portal, Costas virou para a
direita, e seu feixe de luz ficou reduzido a um círculo
estreito quando ele o projetou sobre a parede.
- Elas são feitas de pirita, o ouro dos tolos, - falou Costas com
voz baixa e admirada. - Os cristais são tão grandes e
colocados tão próximos uns dos outros que parecem placas
de ouro até que você se aproxime bastante.
- Mas a ilha é vulcânica, feita de rocha ígnea, - disse Katya.
- Principalmente basalto, - concordou Costas. - Magma
derretido que esfriava muito rapidamente para poder formar
cristais de minério. O basalto entre o despenhadeiro e o
antigo contorno da costa tinha baixo teor de sílica, então
esfriava lentamente quando fluía para fora do substrato
calcário. Mais tarde ele se formou de lava ácida, rica em
sílica, que se solidificava tão logo atingia a superfície.
Quando nos locomovíamos nos Aquapods vimos fissuras de
obsidiana, o vidro vulcânico negro que se forma quando a
lava riolítica é rapidamente resfriada.
- As lâminas de obsidiana eram as mais cortantes conhecidas
até o desenvolvimento do aço rico em carbono na Idade
Média, - disse Jack. - Aquela adaga era de obsidiana.
Costas caminhou ao longo da parede do fundo até juntar-se a
eles.
- Incrível, - ele disse. - Ferramentas de obsidiana, tufo
calcário para alvenaria, pó vulcânico para pilão, sal para boa
preservação. Para não mencionar a gleba de terra cultivada
mais rica do que em qualquer outro lugar e o mar
fervilhando de peixes. Este povo possuía tudo.
- E o granito nas portas? - persistiu Katya.
- Também ígneo, - replicou Costas. - Mas ele não é o
resultado de uma erupção vulcânica. É um rochedo intruso
que se forma profundamente na crosta da terra quando o
magma se esfria de maneira lenta, produzindo estruturas
cristalinas, sobretudo de feldspato e de quartzo. É chamado
pluton por causa de Plutão, o deus grego do inferno. Ele foi
empurrado para cima por placas tectônicas.
- Isto explica um outro recurso, - exclamou Jack. - A pressão
também transforma a pedra calcária do fundo oceânico em
mármore, proporcionando uma pedra finamente granulada
para as esculturas que estão lá fora. Deve haver afloramentos
debaixo desses declives e naquela cordilheira a oeste.
- Estamos dentro de um vulcão composto, - continuou
Costas. - Uma combinação de cones de escória de carvão e
blindagem vulcânica, a lava intercalada com cinza
piroclástica e rocha. Pense no Monte Santa Helena, no
Vesúvio, no Thera. Em vez de se desenvolver atrás de uma
massa de lava solidificada no gargalo do vulcão e entrar em
erupção de maneira explosiva, o magma começa a fluir
através de um afloramento coberto de rocha plutônica e se
solidifica como uma blindagem basáltica, um acontecimento
que se repete a cada vez que a pressão sobe. Meu palpite é
que nas profundezas dessa rocha há um caldeirão em
ebulição, de gás e lava, que força seu caminho através de
fissuras para deixar uma espécie de favo de mel feito de
passagens e de cavernas. Bem na profundeza este vulcão está
literalmente permeado com rios de fogo.
- E o ouro dos tolos? - perguntou Katya.
- Um raro nódulo denso de ferro incrustado no granito.
Resfriando lentamente no interior da crosta terrestre forma
imensos cristais. Eles são fabulosos, uma descoberta única.
Eles se voltaram para dar uma última olhada no mundo que
estavam deixando. Nos lugares iluminados por suas
headlamps, a água estava cheia de cor, a luz cintilando na
rocha com brilho de ouro.
- Esta câmara é o sonho de um geólogo, - murmurou Costas
de maneira respeitosa. - Depois de polida seria um
espetáculo que deslumbraria qualquer espectador. Para os
sacerdotes deveria parecer uma dádiva dos deuses. Um
complemento impressionante ao espetáculo pirotécnico do
próprio vulcão.
Atrás da silhueta do altar eles podiam distinguir o casco do
submarino e o final do túnel. Era uma lembrança de que o
inimigo sinistro barrava seu caminho de volta para o mundo
de cima, de que sua única esperança de resgatar Ben e Andy
estava na escuridão de breu à frente.
Antes de enfrentar a escuridão proibida do portal, Costas
nadou de volta até o centro da câmara. Retirou um item de
seu cinto de ferramentas e nadou com ele ao redor do altar
antes de voltar, era uma fita laranja que se desenrolava de
um carretel em sua mochila.
- Andei pensando sobre algo, quando você estava nos
contando as lendas que se referiam aos conflitos entre os
minoanos e os micênios na Idade do Bronze, - explicou ele.
- Quando Teseu chegou em Cnossos para matar o Minotauro
e lhe foi dado um rolo de fio por Ariadne para guiá-lo pelo
labirinto. Debaixo dessa rocha, não temos acesso ao GPS e só
podemos navegar com um cálculo de navegação estimado
com bússola e medida de profundidade. O fio de Ariadne
pode ser nossa única corda de salvação.
Jack os conduziu para fora da câmara de sacrifício e através
do portal, com sua lanterna apontando para o túnel à frente.
Depois de mais ou menos dez metros a passagem se
estreitava e se curvava para a direita. Jack parou para
permitir que os outros dois ficassem lado a lado com ele, o
espaço era largo apenas o suficiente para que pudessem se
alinhar dessa maneira.
Estavam sozinhos naquele silêncio mortal de um lugar em
que nenhum ser humano havia penetrado desde a aurora da
civilização. Jack experimentou uma onda familiar de
excitação, uma descarga de adrenalina que aliviava de
maneira temporária os efeitos debilitantes de seu ferimento,
impelindo-o em direção ao desconhecido.
A passagem começou a serpentear em curvas alternadas,
cada volta parecendo aumentar a distância entre eles e a
entrada. A experiência era estranhamente desorientadora,
como se os antigos arquitetos desse continente tivessem
conhecido o efeito perturbador da ausência de linhas retas
no sentido de direção do ser humano.
Eles pararam enquanto Costas desenrolava o último pedaço
de fita da bobina e a prendia a um novo carretel em suas
costas. Nos espaços estreitos, suas lanternas lançavam uma
luz brilhante nas paredes ao redor, as superfícies lustrosas
como se as tivessem mantido polidas durante milênios.
Jack nadou alguns metros à frente e percebeu uma
irregularidade na parede.
- Existem inscrições aqui.
Os outros dois se aproximaram rapidamente.
- Feitas pela mão do homem, - afirmou Costas. - Cinzeladas
na rocha. Elas são como as molduras ornamentais ao redor
dos hieróglifos que Hiebermeyer encontrou naquela pedra
antiga, no templo onde Sólon visitou o sumo sacerdote.
Centenas de inscrições praticamente idênticas estavam
alinhadas em vinte registros horizontais que se estendiam
para além da curva seguinte na passagem. Cada inscrição
compreendia um símbolo rodeado por uma beirada oval, a
moldura ornamental à qual Costas se referia. Os símbolos
dentro das molduras eram retilíneos, cada um com uma
haste vertical contendo um número variado de arranjos de
barras horizontais que se ramificavam para cada lado.
- Parecem letras rúnicas - disse Costas.
- Impossível - retorquiu Katya. - As runas derivam dos
etruscos e dos alfabetos latinos, do contato com o
Mediterrâneo durante o período clássico. Seis mil anos mais
tarde para nós.
Os outros dois se retraíram para deixar mais espaço para
Katya. Ela examinou de perto uma das inscrições, depois se
afastou para ter uma visão mais ampla.
- Eu não acredito que isto seja um alfabeto, - disse ela. - Em
um alfabeto há uma correspondência direta entre o símbolo
gráfico que forma a palavra e os fonemas, entre o símbolo e
a unidade de som. Muitos alfabetos têm de vinte a trinta
símbolos e poucas línguas possuem mais do que quarenta
sons importantes. Existem demasiadas permutações aqui, no
número e na localização das barras horizontais. De modo
inverso eles não são suficientes para ser sinais
representativos de uma palavra, onde o símbolo representa
uma palavra, como na língua chinesa.
- Silábica? Sugeriu Costas.
Katya sacudiu a cabeça.
- Os símbolos nos discos de Phaistos são fonogramas
silábicos. É impossível que os atlantes houvessem
desenvolvido dois sistemas silábicos para serem usados em
um contexto sagrado.
- Prepare-se para se surpreender. - A voz de Costas era alta
e clara pelo intercomunicador, embora ele tivesse
desaparecido na curva seguinte da passagem. Katya e Jack
nadaram atrás dele, suas luzes convergiam enquanto
olhavam atentamente.
Os símbolos terminavam abruptamente em uma linha
vertical gravada desde o chão até o teto. Atrás dela havia um
magnífico touro, seu contorno esculpido em baixo-relevo.
Ele era de tamanho natural, a cabeça enorme com chifres
curvos olhando para eles, o corpo maciço apoiado em uma
plataforma, suas pernas separadas. Os olhos haviam sido
esculpidos profundamente para mostrar a íris e eram amplos,
de uma maneira sobrenatural, como se a besta houvesse sido
capturada em um momento de medo primordial.
- É claro - exclamou Katya subitamente. - São símbolos
numéricos!
Jack compreendeu imediatamente.
- Este era o sacrifício ritual na câmara da entrada - ele se
entusiasmou. - Os símbolos devem ser um cômputo, um
registro de cada sacrifício.
- Eles foram até mesmo dispostos na antiga forma de escrita
boustwphedon! - Katya olhou para Costas. - Como você
sabe, no grego moderno, bous significa boi e strophos, a
ação de virar. "Como os bois se viram quando estão arando a
terra", em direções alternadas. Como serpentes e escadas de
mão. - Ela apontou para a maneira pela qual a linha que
emoldurava cada símbolo se prendia à linha de baixo.
Costas fez um giro para dirigir-se a Jack, seus olhos
brilhando de excitação.
- Quando os sacrifícios ocorreram?
- Eram eventos associados às colheitas e às estações do ano.
Os solstícios de inverno e de verão, a chegada da primavera,
a ação de graças pelas safras.
- O ciclo lunar? - sugeriu Costas.
- Muito provavelmente - replicou Jack. - O intervalo entre
luas cheias era possivelmente a primeira medida exata de
tempo jamais feita. A diferença entre o ano lunar e o solar
realmente era importante para povos que dependiam de
saber onde se encontravam dentro do ciclo da semeadura. O
ciclo sinódico, o ciclo lunar, tem onze dias a menos que o
ano solar, assim, um mês adicional é intercalado a cada três
ou quatro anos. Observações celestes para medir a diferença
eram provavelmente efetuadas nos santuários minoanos
situados sobre picos. Aposto que aqui também há um
observatório.
Costas apontou para um curioso conjunto de símbolos
localizados diretamente acima do touro.
- É por causa disso que pergunto, - disse ele.
O que no início parecia ser um adorno abstrato adquiriu, de
repente, um novo significado. Imediatamente acima da
espinha dorsal do animal, havia um disco de mais ou menos
dois palmos de largura. De cada lado uma sucessão de
imagens invertidas espalhadas simetricamente, primeiro um
meio disco, depois um quarto de disco e, finalmente, uma
simples linha curva.
- Observem o ciclo lunar, - proclamou Costas. - Lua nova,
lua crescente, lua minguante, lua cheia, depois o mesmo ao
contrário.
- O disco de ouro, - disse Jack suavemente. - Ele era um
símbolo lunar. O anverso representa a lua cheia, o perfil
elíptico descreve a lua quando ela passa através de seu ciclo
mensal.
Ele não precisou mostrar o disco aos companheiros para ter
certeza de que estava certo, de que a forma biconvexa se
ajustava exatamente com a depressão côncava do disco
esculpido na rocha acima deles.
Costas nadou alguns metros para a esquerda do touro, a
grande quantidade de gravuras se dispunha na frente dele
como um exótico tapete oriental.
- O número máximo de barras do lado direito de cada haste
é seis, e não raro os traços oblíquos continuam para cima
também do lado esquerdo. O fato de que algumas vezes há
sete traços naquele lado quase acabou com a minha teoria.
- Qual é? - perguntou Jack.
Eles puderam ouvir Costas inalar profundamente do seu
regulador.
- Cada moldura representa um ano, cada barra horizontal um
mês. Você sobe primeiro pelo lado direito, depois pelo
esquerdo. Janeiro é a primeira barra do lado direito,
dezembro a superior do lado esquerdo.
Jack estava nadando ao longo da parede, acima de Costas,
onde muitas das molduras continham o número máximo de
linhas.
- É claro - exclamou ele. - As molduras dos símbolos com
uma linha extra contêm treze linhas no total. Devem
representar os anos com um mês extra no calendário lunar.
Olhe esta seqüência. O mês a mais ocorre a cada três ou
quatro molduras, exatamente o que é necessário para manter
o ano lunar no mesmo passo do ciclo solar.
- Como você calcula os meses que faltam? - Katya havia
mergulhado em direção ao solo e estava examinando as
molduras inferiores. Algumas possuíam apenas a linha
vertical, e outras somente uma ou duas barras em pontos
aparentemente ao acaso de cada lado.
- Muitos sacrifícios são propiciatórios, correto? São
realizados na esperança de uma recompensa, algum sinal ou
favor dos deuses. Que lugar melhor do que em um vulcão
ativo? Onde há escoamento de magma, tremores sísmicos,
até mesmo chuvas causadas por gás e vapor.
- Então, um sacrifício era sempre realizado no início do mês
lunar. - Katya havia imediatamente acompanhado o
raciocínio de Costas. - Se um sinal era observado antes da
lua nova seguinte, então uma linha era esculpida. Se não,
não havia inscrição.
- É isso mesmo - disse Costas. - A parte central, na frente de
Jack, tem muitos símbolos, gravados todos os meses durante
vinte e cinco ou trinta anos. Depois há longos períodos com
poucos símbolos. Meu palpite é que vimos um padrão
comparável de inconstância para este tipo de vulcão, com
várias décadas de atividade alternando com períodos
similares de quase dormência. Não estamos falando de
erupções espetaculares, mas sim de um caldeirão que
borbulha para fora antes de lentamente se encher de novo.
- A julgar pelas inscrições, o último sacrifício foi em maio ou
junho, precisamente na época do ano em que teria ocorrido
a inundação, segundo a análise de pólen em Trabzon, - disse
Katya. - Durante vários anos antes não houve inscrições.
Parece que tiveram sorte em seu penúltimo sacrifício.
- Eles precisavam dela - disse Costas de modo estranho.
Os três olharam para o símbolo final, uma inscrição feita às
pressas que contrastava completamente com as incisões
cuidadosas dos anos anteriores. Eles mal podiam imaginar o
terror das pessoas, enquanto enfrentavam uma catástrofe
inimaginável, procurando desesperadamente por algum sinal
de esperança antes de abandonar a terra natal onde haviam
prosperado desde quando a história começou.
Jack nadou de volta até a parede oposta de maneira que
pudesse apreciar um número maior de símbolos ao mesmo
tempo.
- Há cerca de mil e quinhentas molduras no total, - calculou
ele. - Remontando a uma inundação datada de 5545 a.C.,
isso nos dá oito milênios antes de Cristo. É incrível. Mil e
quinhentos anos de uso contínuo, não interrompido por
guerra ou desastre natural, um tempo em que havia animais
suficientes para um sacrifício de touro a cada mês. A
Atlântida não surgiu repentinamente do dia para a noite.
- Lembrem-se de que estamos apenas olhando para um
registro de eventos desde que a passagem se alargou, -
advertiu Costas. - Isto era, originalmente, uma fissura
vulcânica acessível do exterior. Aposto que este local foi
visitado muito antes do primeiro sacrifício.
- Precisamos nos movimentar, - disse Jack. - Não sabemos o
que há adiante.
A escultura do touro assumiu uma forma alongada e sinuosa,
arqueando-se arredondada na curva final da parede. Quando
eles passaram pelo rabo, a passagem estreitou-se e continuou
sem desviar até onde suas luzes podiam alcançar. De cada
lado, viam-se nichos esculpidos na rocha, cada um
assemelhando-se a um vaso raso dentro de uma saliência
projetada como um mini-relicário na lateral.
- Para tochas ou velas, provavelmente sebo, gordura animal
- observou Jack.
- É bom saber que aquelas carcaças de touro tinham alguma
utilidade - disse Costas.
Eles foram adiante. Depois de mais ou menos quinze metros
a passagem terminava abruptamente em três vias de acesso,
duas que se abriam obliquamente de cada lado da via central.
As passagens pareciam desaparecer de maneira idêntica na
escuridão de breu do centro do vulcão.
- Um outro teste - disse Costas de modo desanimado.
- Não a passagem central, - disse Jack. - É demasiado óbvio.
Katya estava examinando a entrada lateral direita e os outros
foram até onde ela estava. Eles se juntaram na entrada e
acenaram concordando, sem dizer palavra. Katya arrancou
na frente e conduziu os demais. A passagem só permitia que
dois deles se colocassem lado a lado e mal dava para ficarem
em pé.
A passagem continuou de maneira constante por vinte
metros, as paredes lisas não mostravam nada. A distância
entre Katya e os outros aumentou quando Costas parou para
acrescentar um outro carretel à fita que arrastava atrás de si e
Jack esperou por ele. Jack colocou a mão enluvada no rasgo
aberto em sua roupa.
Ele fez uma careta.
- A água está mais quente. Posso senti-la.
Nem Costas nem Katya tinham qualquer sensação da
temperatura externa em seus E-suits, e até agora não tinham
tido motivo para monitorar os termômetros em seus
consoles.
- Tenho um mau pressentimento sobre isto, - disse Costas. -
Deve haver um respiradouro vulcânico que está fazendo a
água esquentar. Precisamos sair daqui.
Subitamente perceberam que Katya não estava
respondendo. Quando Jack se adiantou, ansiosamente, a
razão se tornou aparente. Seus fones de ouvido estalaram
com uma estática crescente que impedia qualquer recepção.
- Localizado um campo eletromagnético. - A voz de Costas
tornou-se mais clara quando se aproximou de Jack. - Há uma
espécie de magnetita na rocha, uma extrusão mineral
concentrada como o ouro dos tolos na entrada da câmara.
Uma curva à direita mostrou onde Katya havia desaparecido
de vista. Eles nadaram rapidamente, com a atenção toda
voltada para a escuridão à sua frente. Quando rodearam a
curva, as paredes, antes polidas e lustrosas, passaram a ter a
aparência desbastada e áspera de uma face de pedreira. A
vista à frente estava indistinta e oscilava como uma
miragem.
- É uma escaldadura, - ofegou Jack. - Não posso ir adiante.
Eles haviam passado pelas paredes desbastadas por mão
humana e estavam agora rodeados pelos contornos
recortados de uma fissura vulcânica. Katya surgiu de repente
da escuridão como um fantasma em uma tempestade no
deserto, e naquela fração de segundo eles sentiram uma
força escura atrás dela, algum alienígena das profundezas
movendo-se ruidosamente em direção a eles com uma
intenção inexorável.
- Voltem! - berrou Katya. - Voltem para a passagem!
Jack nadou na direção dela, mas foi atirado de volta por uma
vaga enorme a que ele não pôde resistir. Tudo o que podiam
fazer era tentar desesperadamente evitar as beiradas
serrilhadas da lava enquanto se locomoviam através da água
a uma velocidade apavorante. Antes de perceberem já
haviam retornado para dentro das paredes polidas da
passagem. Um imenso tremor empurrou-os, chocados e
entorpecidos, quase dez metros para dentro da fissura.
Katya estava hiperventilando e lutando para controlar a
respiração. Jack nadou até ela e checou seu equipamento.
Por um momento, um instante fugaz, ele lembrou do seu
próprio medo, mas de maneira firme não lhe permitiu tomar
conta de sua mente, resolvendo que o havia destruído e que
estava extinto agora.
- Penso que tomamos o caminho errado, - ofegou Katya.
Costas endireitou-se e nadou para trás alguns metros para
emendar a fita, então rasgada pela força que quase os
aniquilara. Eles estavam de novo na zona de perturbação
magnética e a voz de Costas estalou no intercomunicador.
- Uma explosão freática. Ela acontece quando a água colide
com lava derretida. Explode como pólvora. - Fez uma pausa
para tomar fôlego, as sentenças pontuadas por tragadas
profundas em seu respirador. - E esta fissura é como um
barril de pólvora. Se através dela não houvesse soprado um
vento em algum lugar atrás de nós, seríamos o último
registro acrescentado ao cômputo de sacrifícios.
Retornaram rapidamente para o lugar onde havia as três vias
de acesso. Evitaram a via central, continuando a confiar no
instinto de Jack. Quando se aproximaram da entrada da via
de acesso à esquerda, Jack baixou até o chão,
repentinamente dominado por uma onda de náusea, quando
seu corpo lutou para enfrentar a mudança da água quente
para as águas geladas da passagem.
- Estou bem, - ele ofegou. - Preciso apenas de um instante.
Costas olhou preocupado para ele e depois seguiu Katya até a
entrada da via de acesso. Ela ainda não havia se recuperado
do choque e sua voz estava tensa.
- É a sua vez de conduzir, - disse ela. - Quero ficar ao lado
de Jack.


19

O túnel à esquerda fazia um ângulo abrupto para baixo, as
paredes ficando gradualmente mais apertadas e convergindo
para as entranhas do vulcão. A imagem estimulou uma
desordem no psiquismo de Jack enquanto ele lutava com seu
ferimento. Agora, também tinha de lidar com os efeitos
debilitantes do aumento de pressão à medida que eles
mergulhavam na escuridão gelada do túnel.
- Posso ver degraus cinzelados lá embaixo - anunciou Costas.
- Devemos rezar para que logo pare de descer. Mais dez
metros e estamos perdidos.
Costas monitorou ansiosamente seu aferidor de
profundidade conforme desciam, os compensadores
automáticos de poder de flutuação deles drenavam ar
suficiente para impedi-los de cair verticalmente. Depois de
alguns metros a queda aumentou de maneira alarmante. Por
um momento Jack e Katya não conseguiram ver nada, sua
visão estava obscurecida pela nuvem de bolhas que saíam do
exaustor de Costas à medida que ele mergulhava abaixo
deles.
- Está tudo bem - chegou a voz de Costas. - Posso ver um
chão.
Os degraus que estavam embaixo viraram apoios para os pés
quando a face do túnel se tornou vertical. Jack mergulhou e
pousou sobre os joelhos. Katya seguiu-o.
- Cento e dezesseis metros - murmurou Costas. - É por isso
que precisamos do trimix. Mais alguns metros e os
reguladores teriam falhado.
Os outros dois não responderam e Costas examinou
ansiosamente seus rostos procurando sinais de narcose.
Quando seus olhos se acostumaram com os arredores, ele
percebeu por que os outros estavam silenciosos. Os limites
claustrofóbicos do túnel haviam dado lugar a uma vasta
câmara feita de magma, seu conteúdo ígneo tinha se
dissipado havia muito tempo, deixando uma cavidade
alongada como o saguão de um castelo medieval. A analogia
parecia particularmente apropriada quando Costas olhou
para trás em direção ao ponto de entrada. O túnel acima se
abria como o tubo de uma antiga chaminé, a face rochosa
abaixo se expandia em uma reentrância, como uma lareira
baronial.
A câmara parecia um fenômeno inteiramente natural, seu
formato de nave era o resultado de forças titânicas na crosta
da terra e não o fruto de uma atividade humana. Quando a
mente de Costas se ajustou ao tamanho da câmara, ele
começou a ver padrões giratórios no basalto dos dois lados,
um tumulto de formas em espiral como se uma cascata de
lava houvesse congelado enquanto caía. De repente
percebeu o que havia atraído os outros dois. Era como se,
diante de um problema difícil, a sua mente houvesse
intuitivamente focalizado as formas geológicas. Assim que
reconheceu a alternativa que se apresentava a ele, uma cena
fantástica revelou-se diante de seus olhos. As paredes se
encontravam cobertas com uma fantástica coleção de
animais pintados ou gravados na rocha, as suas formas
respeitavam os contornos da câmara e tiravam vantagem dos
padrões naturais do basalto. Alguns eram em tamanho
natural, outros maiores, mas todos estavam reproduzidos em
um estilo muito naturalista, o que tornava bem fácil a sua
identificação.
Com uma olhadela Costas reconheceu rinocerontes, bisões,
veados, cavalos, tigres e touros. Havia centenas deles, alguns
sozinhos, mas muitos estavam em grupos superpostos,
imagem após imagem, empilhados uns sobre os outros como
em uma tela reutilizada. O efeito era surpreendentemente
tridimensional e, combinado com a sensação suavemente
alucinógena do nitrogênio, dava a Costas a impressão de que
estavam vivos, um agrupamento de bestas escravizadas
movendo-se em direção a ele como em uma miragem
inconstante.
- Incrível. - Jack finalmente quebrou o silêncio, com voz
baixa e respeitosa. - O saguão dos ancestrais.
Costas espantou a imagem ilusória e olhou de maneira
indagadora para seu amigo.
- Você sugeriu isto - explicou Jack. - Que existiram povos
aqui muito antes dos primeiros sacrifícios de touros. Bem,
aqui está a evidência. Estas pinturas são da era paleolítica
superior, o período final da antiga Idade da Pedra, quando as
pessoas caçavam grandes animais selvagens ao longo da
beirada das geleiras. Acabamos de nadar em direção a
milhares de anos atrás, até a primeira explosão da
criatividade artística humana, cerca de trinta e cinco a doze
mil anos atrás.
- Como você pode ter certeza?
- Olhe para as espécies.
Eles nadaram lado a lado até o centro da galeria, os
exaustores soltando, por causa de suas respirações, grandes
colunas de fumaça prateada em direção ao teto. Para cada
lado que apontavam as headlamps, novas maravilhas da arte
antiga iam surgindo. Apesar da grande necessidade de se
apressar, eles estavam atraídos pela enormidade do que
estavam vendo.
- Não há animais domesticados, - aventurou-se Katya. - Não
há bois, carneiros ou porcos. E alguns desses animais
parecem pertencer a espécies extintas.
- Exatamente, - disse Jack, e sua excitação era evidente. -
Uma megafauna da Idade do Gelo, mamíferos enormes que
morreram no final do Plistoceno, dez mil anos atrás. Você
pode até identificar as subespécies. Isto é espantoso. Os
touros, por exemplo, não são um rebanho moderno, trata-se
de bois selvagens, Bos primigenius, um tipo que foi ancestral
do rebanho domesticado e desaparecido nesta região durante
o período neolítico. O rinoceronte veio do rinoceronte
lanudo, outra espécie extinta que media mais de dois metros
de altura. Eles pareciam bois-almiscarados enormes, a única
relíquia da megafauna do período Plistoceno que sobreviveu
até hoje.
Quando avançaram, uma forma imensa apareceu na parede
lateral esquerda, seu torso era uma protuberância natural na
rocha. A figura era quase três vezes mais alta do que eles e
tinha presas enormes e curvas de pelo menos seis metros de
comprimento.
- Um mamute lanudo! - exclamou Jack. - Os mamutes se
extinguiram no sul do Cáucaso durante a última era
interglacial, quando o clima se tornou muito quente para
eles naquela região. Ou estes artistas tinham uma
abrangência incrivelmente ampla, que ia até as bordas das
geleiras nas estepes setentrionais, ou estamos olhando para
pinturas com pelo menos quarenta mil anos de idade.
- Eu pensei que pinturas paleolíticas em cavernas fossem
encontradas apenas na Europa ocidental, - murmurou Katya.
- Principalmente nos Pirineus e na Dordonha, as mais
famosas estão em Altamira e na gruta de Lascaux. Existem,
também, umas poucas no leste da Itália, a primeira prova de
que agrupamentos de caçadores europeus alcançaram as
costas da Ásia ocidental.
- Acho que essas pinturas têm uma espécie de significado
religioso, - disse Costas. - Um culto animal, a adoração de
espíritos de animais?
- No início da arte, muitas destas representações deveriam
ter uma qualidade mágica, - afirmou Jack. - Principalmente
quando eram fruto do trabalho de xamãs ou de curandeiros
indígenas, pessoas que procuravam lugares como este, onde
suas imagens pareceriam mais atemorizantes.
- Ou curandeiras, - interpôs Katya. - Muitas sociedades de
caçadores eram matriarcais e adoravam a deusa-mãe. As
mulheres não só criavam filhos e colhiam grãos.
Uma outra imagem colossal apareceu, dessa vez um boi
selvagem gigante. Ele estava refletido por uma figura
idêntica na parede oposta, era um arranjo especial que os
fazia estar parados como terríveis sentinelas confrontando
qualquer um que avançasse pela galeria. Estavam curvados
sobre patas dianteiras muito musculosas e em um estado de
grande excitação sexual.
- Eles se parecem com os touros, pintados na passagem, que
são oferecidos em sacrifício, - observou Costas. - E a postura
é a mesma que a da grande esfinge-touro no pátio.
Jack estava se debatendo com as implicações da sua
descoberta.
- Na época da inundação, muitos destes animais teriam sido
bestas mitológicas do passado, os mamutes e os rinocerontes
seriam como a esfinge ou o grifo para as culturas posteriores.
O único fio de continuidade era o touro. Para caçadores pré-
históricos, os agressivos bois selvagens eram o símbolo mais
poderoso de força. Para os primeiros agricultores os bois era
essenciais como animais de carga, rebanho para carne, leite
e couro.
- Você está dizendo que o povo neolítico da Atlântida
adorava imagens que já existiam havia trinta mil anos? -
perguntou Costas, incrédulo.
- Nem todas as pinturas são tão antigas - replicou Jack. - Em
muitas galerias da caverna a arte não é homogênea, mas
representa acúmulos episódicos durante longos períodos
com pinturas mais antigas retocadas ou substituídas. Mas
mesmo os acréscimos mais recentes, desde o final da Idade
do Gelo, devem ter pelo menos doze mil anos de idade, mais
do que cinco mil anos antes do fim da Atlântida.
- Tão distante para o povo da Atlântida quanto a Idade do
Bronze é para nós, - disse Katya.
- Nas sociedades primitivas a arte sobrevivia apenas se ela
continuasse a ter significado cultural ou religioso, - afirmou
Jack. - Até este momento, todas as passagens haviam sido
quadradas e polidas, no entanto os zeladores da Atlântida
deliberadamente deixaram esta câmara inalterada. Estas
pinturas eram veneradas como imagens ancestrais.
Jack nadou para cima e examinou a imensa anca do mamute,
com cuidado para não danificar os pigmentos que haviam
sobrevivido tanto tempo na quietude gelada da água.
- Eu sabia que a Atlântida conservaria surpresas
extraordinárias, - disse ele. - Mas nunca esperei encontrar o
primeiro elo evidente entre as crenças do primitivo Homo
sapiens e nossos ancestrais neolíticos, um culto do touro que
existiu desde o início dos tempos. - Ele se afastou devagar,
ainda olhando para a impressionante imagem do mamute. -
Ou descobrir a primeira obra de arte de todo o mundo.
Eles estavam agora a mais de trinta metros da entrada
inclinada e na metade do caminho através da galeria. Acima
deles a rocha subia como uma grande catedral, o teto era
como um vagalhão de lava resfriada enquanto escorria
descendo pelas paredes. À medida que as figuras dos bois
selvagens ficavam para trás, os animais pareciam mais
agrupados, em alguns lugares lembrando um estouro de
manada, tão denso que as cabeças se entrechocavam.
- Em Lascaux existem seiscentas pinturas e doze mil
gravuras, - murmurou Jack. - Aqui deve haver cerca de três
ou quatro vezes esse número. Isto é sensacional. É como
descobrir um Louvre pré-histórico.
Ele e Katya estavam tão absorvidos pelas cenas
extraordinárias de cada lado da galeria que não perceberam o
final da câmara se aproximando. Costas os alertou, nadando
ansiosamente à frente depois de consultar seu computador
de mergulho.
- Olhem para a frente, - disse ele.
O final da galeria se encontrava agora a menos de dez
metros. Quando suas lanternas iluminaram a rocha, eles
puderam ver que não havia pinturas nela, sua superfície era
suavizada e polida como as das primeiras passagens. Mas
depois começaram a reconhecer o contorno de uma
escultura. Ela era imensa, estendendo-se por quinze metros
ao longo de toda a parede.
O feixe de luz de Costas juntou-se ao deles e a imagem se
tornou completa.
- É uma ave de rapina, - exclamou Katya.
- O deus águia de asas estendidas, - disse Jack brandamente.
A escultura estava no mesmo baixo-relevo que o touro
oferecido em sacrifício na passagem. Parecia notavelmente
similar às águias imperiais da antiga Mesopotâmia ou de
Roma, sua cabeça estava rigidamente arqueada para a direita
e seus olhos miravam com arrogância acima de um bico
curvado fortemente para baixo. Mas, em lugar de se
estenderem para fora, as asas estavam dirigidas para os
cantos superiores da câmara. Parecia que o pássaro estava
prestes a cair sobre sua presa, as garras esticadas quase
alcançando o solo.
- Ele é de um período posterior ao das pinturas, - disse Jack.
- Os caçadores paleolíticos não tinham ferramentas para
esculpir o basalto dessa maneira. Deve ser contemporâneo à
escultura do touro, do período neolítico.
Quando suas luzes iluminaram as terríveis garras, eles
perceberam que a águia estava equilibrada sobre uma série
de vias de acesso escuras, ao longo da base da parede. Havia
quatro ao todo, uma debaixo de cada extremidade das asas e
uma debaixo de cada conjunto de garras.
- Parece que temos quatro escolhas, - disse Jack.
Eles examinaram a parede com obstinação, procurando por
pistas, cientes de que seu tempo, nessa profundidade, estava
se tornando perigosamente curto. Fazia quase meia hora que
haviam saído do submarino. Depois de nadar por toda a
extensão da parede, examinando cada via de acesso,
reuniram-se no centro.
- Elas são idênticas, - disse Katya desanimada. - Vamos ter
de decidir tirando a sorte de novo.
- Espere um momento. - Costas estava olhando para a
imagem acima dele, as pontas das asas quase perdidas nas
alturas cavernosas da câmara. - Aquela forma. Eu já a vi em
algum lugar antes.
Os outros dois seguiram o olhar de Costas. Katya de repente
respirou rapidamente.
- O símbolo da Atlântida!
Costas exultava.
- Os ombros e as asas formam o H central do símbolo. As
pernas são os raios inferiores. O símbolo da Atlântida é uma
águia com asas estendidas!
Jack, muito excitado, tirou o disco para que eles pudessem
ver o dispositivo retilíneo impresso na superfície, uma
imagem muito familiar, no entanto até agora inescrutável
em sua forma.
- Talvez ele seja como o símbolo egípcio ankh, - disse
Katya. - O hieróglifo de uma cruz com um laço em sua
extremidade que significa força de vida.
- Quando vi o cômputo de sacrifícios na passagem, comecei
a pensar que o símbolo da Atlântida era mais do que apenas
uma chave, que representava também um dispositivo
numérico, - disse Costas. - Talvez um código binário que
utiliza linhas horizontais e verticais para zero e um, ou uma
calculadora para relacionar os ciclos lunar e solar. Mas agora
parece que ele é simplesmente uma representação da águia
sagrada, uma abstração que poderia facilmente ser copiada
em diferentes materiais por causa de suas linhas retas. Mas,
mesmo assim...
- Ele pode conter algum tipo de mensagem, - interrompeu
Jack.
- Um mapa?
Jack nadou até onde estava Katya.
- Você pode localizar a tradução do disco de Phaistos feita
por Dillen?
Ela rapidamente soltou o palmtop computer do ombro
mantendo-o protegido em seu estojo à prova d'água. Depois
de alguns instantes um parágrafo começou a aparecer na
tela.
Abaixo do signo do touro repousa o deus águia com as asas
estendidas. Perto de seu rabo está a Atlântida cercada de
paredes de ouro, a maior porta de ouro da cidadela. As
pontas de suas asas tocam o nascer e o pôr-do-sol. No nascer
do sol está a montanha de fogo e de cristal. Aqui está o salão
dos sumos sacerdotes...
- Pare aqui. - Jack voltou-se para Costas. - Qual é a nossa
posição?
Costas havia adivinhado a pergunta do amigo e já estava
consultando sua bússola.
- Levando em conta a variabilidade magnética na rocha, eu
diria que esta parede está orientada quase exatamente na
direção leste-oeste.
- Certo. - Jack rapidamente ordenou seus pensamentos. -
Signo do touro refere-se a este vulcão, aos dois picos
gêmeos. O deus águia com as asas estendidas é esta imagem
acima de nós, as asas estão alinhadas precisamente com o
nascer e o pôr-do-sol. O salão dos sumos sacerdotes se
localiza no nascer do sol. Isto significa as portas situadas ao
leste, abaixo da ponta da asa esquerda.
Costas estava concordando com a cabeça, seus olhos fixos
no símbolo.
- Ainda há mais do que isto. - Ele pegou o disco de Jack,
traçando as linhas enquanto falava. - Imagine que isto seja
um mapa, não uma representação em escala, mas um
diagrama, como um plano de metrô. A linha vertical que
corresponde às pernas da águia é a passagem que conduz da
porta até a face do despenhadeiro. Estas duas linhas no meio
das pernas da águia são os nossos becos sem saída, logo
depois da escultura do touro. Estamos agora no centro do
símbolo, o ponto a partir do qual as asas se estendem uma
para a esquerda e outra para a direita.
- Então as duas entradas à nossa frente conduzem
respectivamente ao pescoço e ao coração da águia, - disse
Jack. - E o texto no disco tem uma dupla mensagem,
dizendo-nos não apenas para pegarmos a porta em direção
ao leste, mas também para seguirmos a passagem até o ponto
em que ela se comunica com a ponta da asa esquerda.
- E para onde conduzem todas as outras passagens? -
perguntou Katya.
- Meu palpite é que a maioria delas forma um complexo de
túneis e galerias como esta. Imagine um mosteiro
subterrâneo completo, com salas de culto, quartos onde
padres e servidores possam morar, cozinhas e despensas,
escritórios e oficinas. Os caçadores paleolíticos que
chegaram pela primeira vez aqui devem ter percebido o
plano simétrico do local, uma singularidade da natureza que
podia ser concebida como um padrão de águia com asas
estendidas. Mais tarde a escavação na rocha pode ter
regularizado mais ainda este padrão.
- Infelizmente não temos tempo para explorações. - Costas
nadou para ficar ao lado de Jack e estava olhando para a
capacidade de seu calibrador com alarme. - O ferimento do
tiro e a exposição à água alteraram sua velocidade de
respiração. Você quase acabou com a reserva de emergência.
Só há trimix suficiente para você voltar ao submarino, nada
mais. É o seu alerta.
Jack replicou sem hesitar. Enquanto os que os sitiavam
estivessem no local, não haveria jeito de voltar para o
submarino. A única chance deles era encontrar um caminho
através do labirinto de túneis para a superfície.
- Vamos continuar.
Costas olhou para o amigo e concordou sem dizer palavra.
Katya se aproximou e pegou no braço de Jack. Eles nadaram
em direção à porta situada no lado esquerdo, lançando um
olhar final para a caverna que deixariam para trás. À medida
que seus feixes de luz dançavam através da superfície
Ondulante, os animais pareciam tortos e alongados, como se
tivessem se levantado nas patas traseiras e se esforçassem
para segui-los, uma cavalgada fantástica determinada a
irromper das profundezas da Idade do Gelo.
Quando alcançaram a esquina, Costas parou para prender
uma nova fita de bobina. Depois nadou para a frente, em
direção à escuridão ameaçadora da passagem; Jack e Katya se
posicionaram um de cada lado de Costas.
- Muito bem, - disse ele. - Sigam-me.

20

- Teseu, aqui é Ariadne. Teseu, aqui é Ariadne. Você está
me ouvindo? Câmbio.
Tom York repetiu a mensagem que estava enviando
continuamente durante a última meia hora, usando o código
de nomes que havia combinado com Jack e os demais antes
que eles partissem no DSRV para o submarino. Ele
pressionou o botão do microfone e o colocou em receptor
VHF ao lado do console do radar. Era de manhã cedo e o
Seaquest havia praticamente voltado para a sua posição
original, tendo contornado a tempestade enquanto ela se
dirigia para a costa sul do mar Negro. Muito embora
tivessem se passado quase doze horas desde que se haviam
separado, ele não estava excessivamente preocupado. Os
outros podiam ter demorado para penetrar no submarino, e
o aparelho laser de Costas não havia sido testado. Eles
podiam ter decidido não utilizar a bóia de rádio do DSRV até
que as condições da superfície fossem menos tumultuadas.
Mais cedo, através da ligação da IMU com o CGHQ, em
Cheltenham, o centro de operações de inteligência e de
comunicações do Reino Unido, Tom York havia
determinado que um dos satélites digitais de mapeamento de
terreno de última geração deveria passar por cima do local
dentro de uma hora. Estavam na beirada de seu campo de
ação e a janela, na tela, para obter informações seria de
apenas cinco minutos, mas eles deveriam conseguir uma
imagem de alta resolução da ilha se as nuvens se levantassem
o suficiente para permitir uma visão sem impedimentos, a
partir da trajetória orbital de seiscentos quilômetros. Mesmo
com alguma obstrução visual, os sensores térmicos
infravermelhos proporcionariam uma imagem detalhada,
que seria dominada por intensa radiação do vulcão, mas que
poderia captar sinais de seres humanos se eles estivessem
suficientemente afastados do centro.
- Capitão, terra à vista. Sul-sul-oeste, a estibordo da proa.
Com a chegada do amanhecer ele e o timoneiro haviam
saído da ponte de comando virtual, situada no módulo de
comando, para o convés acima da linha de água. Quando a
embarcação se inclinava e se agitava, ele agarrava o corrimão
e olhava para fora através da janela açoitada pela chuva,
vistoriando o equipamento que estava no assoalho da
coberta de proa e que resistira ao ataque devastador da
tempestade. A luz esmaecida da aurora revelava um mar
inquieto, sua superfície perturbada elevava-se e descia com
ondas que provocavam espuma branca. O horizonte se
afastou, de maneira constante, quando o manto de nevoeiro
se dissipou e os raios de sol apareceram.
- Distância de três mil metros, - estimou York. - Reduza a
velocidade para um quarto e oriente para setenta e cinco
graus.
O tripulante checou o detector de distância a laser, enquanto
York confirmava a localização no GPS e se debruçava sobre
o mapa usado por almirantes ao lado da caixa de bússola.
Alguns momentos mais tarde a ilha surgiu de maneira
dramática, sua superfície brilhante se elevando em um cone
quase perfeito.
- Meu Deus! - exclamou o tripulante. - Ele está em erupção!
York pousou o compasso e apanhou um binóculo. O guarda-
chuva que cobria a ilha não era apenas uma bruma do mar,
mas uma coluna de fumaça que saía do próprio vulcão.
Quando o nevoeiro que estava na parte inferior do vulcão se
ergueu, a coluna estendeu-se em direção ao céu como uma
faixa, a parte superior balançando-se de um lado para o outro
antes de se dirigir para o sul empurrada pelo vento. No meio
havia um pouco de chuva, uma brilhante faixa de cor que
tremeluzia ao receber os raios do sol.
York manteve o binóculo focalizando o espetáculo durante
um minuto inteiro.
- Eu não acredito nisso, - replicou ele. - Não há uma matéria
especial sendo expelida. Já vi isto antes, nas ilhas Vanuatu,
no Pacífico Sul. A água da chuva satura as camadas
superiores porosas da cinza e se vaporiza quando entra em
contato com o magma, formando uma coluna que sobe
durante horas depois que as nuvens se afastam. Mas nunca
vi uma como esta. O vapor parece ter sido canalizado por
uma única chaminé, produzindo uma coluna que parece não
ter mais do que vinte metros de largura.
- Se isto aconteceu em tempos antigos, deve ter parecido
aterrador, um evento sobrenatural, - arriscou o tripulante.
- Gostaria que Jack pudesse ver isto. - York olhou de modo
pensativo para as ondas. - Isto faz acreditar na teoria de que
esta montanha era sagrada, um local de culto como aqueles
santuários minoanos situados sobre picos. Daria a impressão
de ser a própria morada dos deuses.
York levantou o binóculo de novo para examinar o vulcão
no lugar em que este se inclinava na frente deles. A
superfície parecia desolada e sem vida, a cinza chamuscada
do cone dava lugar à estéril desordem do basalto que ficava
abaixo. Mais ou menos no meio do caminho para baixo ele
viu uma linha de manchas pretas acima de saliências
retilíneas que pareciam plataformas ou galerias. York fechou
os olhos um breve instante por causa do sol, olhou de novo,
depois resmungou. Ele pousou o binóculo e se dirigiu até o
telescópio de alta resolução, mas logo foi interrompido por
uma voz que estava à porta.
- Que bela vista. Presumo que seja vapor de água. - Peter
Howe entrou no convés. Usava botas verdes de borracha,
calças marrons de veludo cotelê e uma malha branca de gola
rulê, e estava carregando duas canecas fumegantes.
- Você parece alguém que saiu da batalha do Atlântico, -
disse York.
- Mais provavelmente da batalha do mar Negro. Foi uma
noite infernal. - Howe passou-lhe uma caneca e deixou-se
cair no assento do timoneiro. Não havia feito a barba e seu
rosto estava marcado pelo cansaço, a fadiga acentuando sua
fala arrastada da Nova Zelândia. - Eu sei que você nos
manteve fora da mira da tempestade, mas ainda temos nosso
trabalho de impedir o equipamento de balançar. Quase
perdemos o submarino de fuga.
Eles haviam recuperado o submersível logo depois de
despachar o DSRV e os passageiros foram entregues, de
maneira segura, ao Sea Venture, que estava cerca de trinta
milhas náuticas a oeste. Embora tivessem guardado a
embarcação dentro da enseada interna, durante a noite ela
havia saltado fora dos parafusos centrais que a prendiam,
quase causando um grande deslocamento de peso que teria
sido fatal para a embarcação e sua tripulação. Se os esforços
de Howe e sua equipe tivessem falhado, eles só teriam como
recurso livrar-se do submarino, uma decisão que poderia
salvar o Seaquest, mas que teria impedido sua única
possibilidade de fuga de emergência.
- Temos apenas uma tripulação reduzida de doze pessoas, -
continuou Howe. - Meu pessoal passou a noite em claro
trabalhando. Qual é a nossa condição?
York olhou para o monitor SATNAV* e observou que suas
coordenadas convergiam para a localização do GPS onde
eles haviam lançado o DSRV no dia anterior. A tempestade
tinha amainado, no mar havia vagas moderadas e o sol da
manhã brilhava suavemente na superfície vítrea da ilha. A
previsão era de um belo dia de verão.
- Se não tivermos notícias de Jack dentro de seis horas, vou
enviar os mergulhadores. Enquanto isso, você pode liberar a
tripulação que está em serviço de vigilância, durante o
próximo turno, de modo que possam descansar. Eu os
chamarei ao meio-dia.
- E nossos anjos guardiões?
- O plano será o mesmo. Se não houver contato,
transmitiremos uma notificação de condição de emergência
ao meio-dia.
Seus anjos guardiões eram os tripulantes da força-tarefa
naval, grupamento considerado seu apoio máximo. Uma
fragata turca e uma pequena frota FAC já haviam atravessado
o Bósforo e estavam vindo a todo vapor na direção deles, e
em Trabzon uma esquadrilha de helicópteros Seahawk com
elementos da Brigada Anfíbia da Marinha das Forças
Especiais Turcas estava de prontidão. Mustafá Alkõzen e
uma equipe de diplomatas turcos de primeira linha haviam
voado para a capital da Geórgia, Tbilisi, para assegurar que
qualquer intervenção fosse um esforço de completa
cooperação entre as duas nações.
- Muito bem. - Howe falou com evidente alívio. - Estou
indo checar a torre blindada e rotatória dianteira e depois eu
mesmo vou tirar uma soneca. Vejo você ao meio-dia.
York aquiesceu e pegou o binóculo. Vinte minutos antes o
timoneiro informara sobre uma imensa fissura no solo
oceânico, uma falha tectônica, não mostrada no mapa, com
dez quilômetros de comprimento e mais de quinhentos
metros de profundidade. Ele havia observado enquanto o
detector de profundidade mapeava seu progresso desde o
canyon até a linha da antiga costa com cento e cinqüenta
metros de profundidade. Haviam agora alcançado o local
marcado para o encontro e pararam a uma milha náutica e
meia da ilha na posição norte-norte-oeste, quase exatamente
o mesmo local onde Jack e Costas, em seus Aquapods,
tinham visto, no dia anterior, pela primeira vez a antiga
cidade.
York olhou para a ilha, os dois picos gêmeos e a sela estavam
agora claramente visíveis onde a caldeira desmoronara
muitíssimo tempo atrás. Ele permaneceu silencioso, em sinal
de respeito pelo que pudesse haver embaixo. Era quase
inacreditável que as águas à sua frente pudessem ocultar as
maiores maravilhas do mundo antigo, uma cidade anterior a
todas as outras por milhares de anos, a qual continha
imensas pirâmides, estátuas colossais e habitações com
vários andares, uma comunidade mais avançada do que
qualquer outra na pré-história. E, para coroar isso tudo, em
algum lugar no fundo do mar havia a forma sinistra de um
submarino nuclear soviético, algo que ele passara metade de
sua vida treinando para destruir.
Uma voz irrompeu de súbito no rádio.
- Seaquest, aqui é o Sea Venture. Você está me ouvindo?
Câmbio.
York agarrou o microfone e falou de maneira agitada.
- Macleod, aqui é o Seaquest. Transmita suas coordenadas.
Câmbio.
- Estamos ainda parados em Trabzon por causa da
tempestade. - A voz estava oscilante e distorcida, o efeito de
cem milhas de interferência elétrica. - Mas Mustafá
conseguiu se conectar via satélite. Está conectado para
imagem infravermelha. Deve estar navegando agora.
York girou para olhar melhor a tela no console de
navegação, passando pelo tripulante que estava no leme do
navio. Uma cor bruxuleante e brilhante se dissolveu em uma
paisagem rochosa e depois se fragmentou em um mosaico de
pontos luminosos.
- Você está olhando para a parte central da ilha. - A voz de
Macleod estava apenas audível. - A costa oriental fica no
topo. Temos apenas alguns instantes antes de perdermos o
satélite.
A parte superior da tela permanecia obscura, mas um
movimento do scanner revelou uma imagem vivida no
centro. Para além do recortado da lava ficava a beirada de
uma ampla plataforma, uma área de pedras espaçadas e
niveladas, visíveis apenas do lado esquerdo. À direita havia o
contorno inconfundível de uma escadaria desbastada na
rocha.
- Sim! - O tripulante deu um soco no ar. - Eles conseguiram!
York, ansiosamente, seguiu o olhar do tripulante. Duas
manchas irregulares vermelhas se destacavam na escadaria e
estavam se movendo de modo visível. Uma terceira
apareceu saindo do labirinto de pontos luminosos no topo da
tela.
- Que estranho! - York parecia desconfortável. - Eles estão
se movendo acima da direção do contorno da costa, no
entanto Jack estava convencido de que a passagem
subterrânea os levaria para perto do topo do vulcão. E eles
deveriam ter feito contato por rádio logo que alcançaram a
superfície.
Como se recebesse um sinal, suas piores suspeitas foram
confirmadas. Uma quarta e depois uma quinta figura
apareceram, espalhando-se de cada lado da escadaria.
- Jesus! - exclamou o tripulante. - Não são os nossos.
A imagem se desintegrou e o estalido do rádio se tornou
contínuo. O rosto do tripulante se voltou para uma luz de
advertência na tela adjacente.
- Senhor, deve olhar para isto.
O monitor exibiu a varredura circular do radar de vigilância
de superfície e navegação Racal Decca TM1226 de
especificação militar.
- Há um contato se destacando do lado leste da ilha. Não
posso ter certeza até que a imagem fique mais nítida, mas eu
diria que estamos olhando para um navio de guerra do
tamanho de uma fragata, talvez um FAC grande.
Bem neste momento houve um som agudo terrível vindo da
parte de cima e os dois homens foram atirados
violentamente para trás. York se recompôs e correu para a
ala a estibordo, justo a tempo de ver a erupção de uma
coluna de jato de líquido em gotículas minúsculas a
quinhentos metros da proa. No mesmo instante ouviu um
estrondo distante de arma de fogo, o som reverberando da
ilha e se dirigindo para eles no ar claro da manhã.
- Desliguem todos os sistemas, repito, desliguem todos os
sistemas - gritou o tripulante. - Radar, rádio, computadores.
Desliguem tudo.
York dirigiu-se cambaleando para o convés e olhou
rapidamente ao redor. Através da porta da sala de navegação
ele pôde ver que a tela de seu monitor estava em branco. A
iluminação e o rádio VHF na ponte de comando não
estavam funcionando, assim como o receptor GPS e todos os
outros displays LCD. Imediatamente ele abaixou a alavanca
da buzina elétrica e deixou aberta a tampa do tubo de voz
que chegava em todos os alojamentos do navio.
- Ouçam isto - ele gritou mais alto que o som da buzina. -
Alerta vermelho! Alerta vermelho! Estamos sendo atacados.
Todos os aparelhos eletrônicos estão desligados. Repito,
todos os aparelhos eletrônicos estão desligados. Major
Howe, apresente-se na ponte de comando imediatamente.
Todos os demais tripulantes devem reunir-se na enseada
interna e preparar para fuga o submarino Neptune II - Ele
fechou a tampa do tubo de voz e olhou para o timoneiro,
seu rosto contraído e preocupado. - Uma E-bomb!
O outro homem concordou com um gesto. A aquisição mais
ameaçadora do arsenal terrorista, nos últimos anos, havia
sido as bombas eletromagnéticas, projéteis carregados
magneticamente que emitiam um pulso de microondas de
muitos milhões de watts quando explodiam. A mais
poderosa que fora produzida fazia uma faísca que parecia
uma lâmpada elétrica e podia deixar fora de uso todos os
equipamentos elétricos, computadores, além de bloquear as
telecomunicações dentro de sua área de ação.
- Está na hora de você se juntar aos outros, Mike, - ordenou
York para o timoneiro. - As baterias reservas no submarino
e no módulo de comando estão protegidas de interferência
eletromagnética e devem, portanto, poder operar. Peter e eu
ficaremos tanto quanto possível e iremos embora no
módulo, se for necessário. É imprescindível que vocês
alcancem as águas territoriais russas antes de transmitir sua
posição. O código da chamada é "Ariadne necessita Anjo
Guardião" e você deve usar o canal de segurança da IMU.
Como tripulante mais velho, eu lhe transmito minha
autoridade.
- Sim, senhor. E boa sorte, capitão.
- Para vocês também.
Quando o tripulante desceu rapidamente a escada, York
focalizou seu binóculo na extremidade oriental da ilha.
Segundos depois uma forma baixa deslizou de detrás das
rochas, sua proa inclinada tão ameaçadora quanto uma boca
de tubarão. Na luz translúcida da manhã, cada aspecto
parecia acentuado, desde a pequena torre blindada e
rotatória de onde atiravam, na frente da superestrutura
lustrosa, até a nacela em forma de leque da popa.
Ele sabia que este navio só podia ser o Vultura. Além dos
Estados Unidos e da Grã-Bretanha, só os russos haviam
desenvolvido projéteis de artilharia acionados por pulsos
eletromagnéticos. Durante o mais recente conflito no Golfo,
a estudada neutralidade da Rússia levou um certo número de
guerreiros frios e corajosos a sugerir que ela havia
secretamente suprido os rebeldes com armamentos. Agora
York tinha a confirmação daquilo que muitos haviam
suspeitado, que os projéteis faziam parte de um tráfico ilegal
dos antigos arsenais soviéticos, que alcançavam os terroristas
por meio do submundo do crime. Aslan provavelmente não
era o único líder militar a reter um pouco do valioso
equipamento para seu uso pessoal.
Enquanto York vestia rapidamente seu equipamento de
sobrevivência, Howe chegou subindo as escadas. Ele já
havia vestido metade de um resistente macacão branco
cintilante e deu um outro para York. Os dois homens se
aprontaram rapidamente e cada um pegou um capacete do
compartimento debaixo do console. As cúpulas de Kevlar
incorporavam protetores de orelha em forma de bulbos e
visores retrateis à prova d'água.
- Então, é isto, - disse Howe.
- Que Deus esteja conosco.
Os dois homens abaixaram a escada para o convés. Atrás da
superestrutura o heliporto estava vazio, o Lynx havia voado
para Trabzon, tão logo a tempestade começara.
- O sistema automático de tiro será inútil sem os
equipamentos eletrônicos, - disse Howe. - Mas eu coloquei a
unidade destacável em operação manual, da última vez que
fiz uma verificação, de modo que deveremos ser capazes de
acioná-lo manualmente.
A única esperança deles era a surpresa. O Vultura não sabia
que eles carregavam armamentos fixos; a unidade destacável
de armas ficava recolhida durante as operações normais do
Seaquest. A intenção de Aslan, indubitavelmente, era
abordá-los e saqueá-los e depois dispor do navio ao seu bel-
prazer. Eles não tinham o poder de afetar o destino do
Seaquest, mas podiam cobrar um preço para devolvê-lo.
Com o canhão do Vultura apontado para eles, era certo que
o primeiro tiro provocaria um inferno, um ataque cuja
violência e fúria o navio não fora construído para suportar.
Juntos, os dois homens se agacharam no meio da cobertura
da proa e levantaram uma escotilha circular. Abaixo deles
ficava o cinza desbotado da blindagem da torre rotatória, os
canos duplos do Breda, de quarenta milímetros, se elevavam
na parte central do suporte.
Howe desceu até a plataforma da arma, preparou-se para
atirar e olhou para cima em direção a York.
- Precisamos estar prontos para atirar logo que levantarmos a
torre e mirarmos no alvo. Vamos fazer isto à maneira antiga.
Eu sou o apontador da arma e você o observador externo.
A arma seria normalmente operada da ponte de comando do
Seaquest, utilizando o telêmetro instalado no radar de
rastreamento Bofors 9LV 200 Mark 2 e um sistema de
controle de tiro 9LV 228. Do jeito que as coisas estavam,
York nem mesmo podia usar o seu telêmetro a laser,
operado manualmente, e tinha que confiar sem restrições
em sua experiência de navegação. Felizmente ele lembrava a
distância das coordenadas do local de encontro até a
extremidade oriental da ilha, onde o Vultura agora estava
exposto ao longo do costado.
- Distância de três mil e trezentos metros. - York levantou
os braços para obter uma indicação visual grosseira, seu
braço direito mantido para fora a quarenta e cinco graus da
proa do Seaquest e o esquerdo na direção da popa do
Vultura. - Azimute duzentos e quarenta graus a partir do
nosso eixo.
Howe repetiu as instruções e girou a roda ao lado da base da
arma até que os canos ficassem alinhados com o Vultura. Ele
rapidamente calculou o ângulo de elevação, movimentando
uma engrenagem dentada na bússola semicircular de metal,
de modo que os canos ficassem na trajetória quando a torre
rotatória fosse levantada.
- A pressão barométrica e a umidade estão normais, a
velocidade do vento é insignificante. Não há necessidade de
compensação para esta distância.
York desceu até onde estava Howe para ajudá-lo com a
munição. A fita de alimentação automática de projéteis
estava vazia, porque o navio não havia sido preparado para
uma batalha antes do ataque, e porque, em qualquer caso,
não operava sem os equipamentos eletrônicos. Por isso eles
começaram a retirar projéteis dos compartimentos de
reserva existentes de cada lado no interior da torre rotatória.
- Vamos ter de alimentar manualmente a arma, - disse
Howe. - Explosivo de alta potência para o cano esquerdo e
perfurante de blindagem para o direito, cinco balas em cada.
Duvido que tenhamos oportunidade para usar mais do que
isso. Utilizaremos o hélio para o telêmetro porque o impacto
fica mais visível e depois mudamos para projétil sólido.
York começou a alojar os projéteis de cinco quilos nos
carregadores, os de ponta vermelha à esquerda e os de ponta
azul à direita. Quando ele terminou, Howe sentou-se no
lugar do atirador e puxou para trás a culatra em cada cano
para pôr uma bala em cada câmara.
- É muito frustrante ter apenas dez projéteis para uma arma
que dá quatrocentos e cinqüenta tiros por minuto, -
observou Howe de modo indiferente. - Talvez os deuses da
Atlântida riam de nós.
Os dois homens abaixaram os visores de proteção. York
ergueu o corpo dentro do estreito espaço na frente da roda
que comandava a elevação dos canos, enquanto Howe
pegava o manual que ensinava a levantar e abaixar a torre
rotatória. Depois de experimentar girar a roda, ele olhou
para York.
- Pronto para erguer?
York fez um sinal de aprovação com o polegar voltado para
cima.
- Agora!
Quando a torre rotatória se levantou e os canos abaixaram,
York sentiu uma descarga de adrenalina percorrê-lo. Ele
havia enfrentado ações hostis muitas vezes, mas sempre em
uma posição privilegiada, em uma ponte de comando ou
uma sala de controle. Agora estava prestes a se empenhar
em combate mortal com um inimigo atrás do frio metal de
uma arma. Pela primeira vez ele percebeu o que sentiam os
homens agachados atrás dos canhões do Victory de Nelson
ou dentro das poderosas torres giratórias dos grandes navios
de guerra em Jutlândia ou no Cabo Norte. A sobrevivência
deles estava em jogo, e as desigualdades iam se somando à
medida que se aproximava a hora em que teriam de
enfrentar o canhão de cento e trinta milímetros do Vultura,
equipado com o GPS mais moderno e conectado ao sistema
de alcance.
A unidade destacável elevou-se acima do convés e a silhueta
do Vultura apareceu. Quando York observou os canos
baixarem até a marca predeterminada e ficarem travados
nesse local, ele prendeu com força a manivela na roda de
elevação e ergueu seu braço direito.
- Está na marca!
Howe virou para cima o dispositivo de segurança e colocou
o dedo ao redor do gatilho.
- Fogo!
Houve um estrondo ensurdecedor e o cano do lado
esquerdo deu um violento coice quando recuou. York
agarrou o binóculo e seguiu a trajetória do projétil enquanto
ele emitia um barulho agudo através do ar. Alguns
momentos depois, um jato de água pulverizada apareceu à
direita do Vultura.
- Vinte graus à esquerda, - gritou York.
Howe girou a roda do azimute e a travou.
- Fogo!
Houve um outro estrondo dissonante e um jato de chama
partiu do cano do lado esquerdo. O gás expeliu
instantaneamente o envoltório usado e pôs na câmara uma
nova bala.
- Acertou! - gritou York. - Alta potência, rajada contínua de
cinco tiros!
Ele havia visto o clarão vermelho, onde o explosivo havia
detonado contra o metal espalhando estilhaços pela popa do
Vultura. A esperança deles era de que agora a fuzilaria
pesada colocasse fora de condições de uso o sistema de
propulsão do navio, causando grandes estragos nas turbinas
propulsoras que davam ao Vultura maior velocidade do que
quase qualquer outra embarcação de superfície.
- Fogo!
Howe armou o gatilho do lado direito e o manteve
pressionado. Com o barulho de uma britadeira gigantesca, o
canhão disparou os cinco projéteis explosivos em uma
cadência cíclica, o carregador se esvaziou em um segundo e
as cápsulas vazias voaram pela parte traseira da arma de fogo
a cada coice provocado pelas detonações.
Mesmo antes de a reverberação ter cessado, houve um
estrondo impactante na popa do Seaquest e uma forte
vibração através do convés. Os dois homens olharam com
horror enquanto o navio era atingido meia dúzia de vezes
logo acima da superfície da água. Nessa distância o poderoso
propulsor Nitrex permitia ao Vultura atirar praticamente em
uma trajetória horizontal; os projéteis AP, sem urânio,
podiam acertar o Seaquest desde a popa até o meio do navio.
Era como se o Seaquest tivesse sido espetado por um forcado
gigantesco, cada projétil perfurando sem esforço as anteparas
e saindo do outro lado com um jato de fogo e de detritos.
- Eles vão atirar em seguida na ponte de comando, - gritou
York, - depois será em nós.
Enquanto o Seaquest se levantava e vergava, York dirigiu o
binóculo para a popa do Vultura. Colunas de fumaça subiam
onde ele havia sido atingido. Um movimento chamou sua
atenção e ele desviou o binóculo para averiguar do que se
tratava. Um barco inflável de casco rígido estava se dirigindo
para eles, os motores externos duplos produzindo uma
ampla onda em forma de V. Dentro dele York podia ver um
grupo de figuras agachadas. Eles já haviam transposto a
metade do caminho e se aproximavam rapidamente.
- Barco RIB inimigo se aproximando, distância de oitocentos
metros, - gritou York. - Abaixar os canos do canhão para a
elevação mínima. Iniciar ataque fazendo pontaria visual!
York girou freneticamente a roda de elevação, enquanto
Howe movia para cima o visor na frente do assento do
atirador. Bem quando sua mão se fechou sobre o gatilho do
cano esquerdo, ouviu-se um estrondo ensurdecedor que
jogou os dois homens no chão. Com um som de mil vidraças
despedaçadas, uma chuva de estilhaços de metal ricocheteou
da torre rotatória. Um deles cortou profundamente a perna
de York e ensopou seu macacão de sangue. Segundos
depois, mais duas explosões devastaram o convés e sinais de
queimado indicavam que um projétil perfurante os havia
atingido, tinha aberto uma fenda no convés e fora cair com
estrondo no mar, passando a estibordo pela proa.
No chão, York foi se arrastando, os ouvidos ressoando
furiosamente e a perna esquerda imprestável, e olhou para o
buraco aberto onde antes havia a ponte de comando. Para
um homem ligado ao mar, essa era uma visão assustadora,
como se ele estivesse olhando, impotente, para a mulher
que amara durante seus espasmos mortais, sem enxergar,
sem conseguir falar, com o rosto arrasado.
- Vamos pegar aqueles bastardos. - Sua voz estava fria e
firme apesar da dor.
- Sim, sim, senhor.
Howe voltou para o assento do atirador com o RIB em sua
mira assim que eles se aproximaram rapidamente a menos de
duzentos metros de distância. Com os canos abaixados ao
máximo, ele detonou os projéteis de hélio restantes com um
segundo de intervalo. O primeiro caiu perto e levantou a
embarcação, mas o vento os ajudou a se endireitar. O
segundo passou sob a quilha e levantou o RIB
completamente fora da água, a popa adernando de modo que
eles puderam ver os seis homens molhados agarrando-se
desesperadamente ao chão da embarcação. O terceiro
explodiu contra a ponte, pondo fogo no depósito de
combustível e convertendo a embarcação e seus ocupantes
em uma bola de fogo que os devorou com assustadora
rapidez.
Os dois homens não tiveram tempo para alegrar-se. O fim,
quando chegou, foi muito violento e impiedoso, muito mais
do que poderiam prever.
Quando os primeiros fragmentos incandescentes do RIB
atingiram a torre rotatória, eles sentiram uma onda
gigantesca debaixo de seus pés. Rebites estouraram e o metal
se torceu grotescamente de um lado a outro do convés. Um
instante depois um outro projétil explodiu a torre rotatória
arrancando-a de seu suporte e empurrando-os contra a
balaustrada a estibordo. Eles foram envolvidos em um
inferno de fogo, um redemoinho abrasador que os
arremessou em um vazio estreito.
Enquanto York lutava para não desmaiar ele captou um
vislumbre final do Seaquest, uma pira de destruição, embora
flutuando ainda milagrosamente, uma embarcação
devastada, irreconhecível, e no entanto tão desafiadora
quanto o vulcão que aparecia insensível atrás dela.

21

Quando mergulharam na escuridão assustadora do túnel sob
a ponta da asa esquerda da águia, puderam ver que as paredes
haviam sido alisadas e polidas como nas passagens
anteriores. Durante os primeiros metros após percorrer o
saguão dos ancestrais, Costas os conduzia pelo caminho, mas
logo este se alargou e Jack e Katya puderam seguir ao lado do
companheiro. Depois de dez metros o chão tornou-se uma
escada, e os degraus gastos davam para uma rampa uniforme
até onde as luzes podiam penetrar.
- Os deuses desta vez estão do nosso lado, - disse Costas. -
Mais alguns minutos nesta profundidade e ficaríamos aqui
para sempre.
Enquanto subiam a rampa, conservavam a energia usando
seus compensadores de flutuação para ascender. As paredes
estavam esculpidas, em um friso contínuo, com touros em
tamanho natural, as formas sinuosas lembrando de maneira
espantosa as pinturas minoanas de touros que havia em
Creta. Pareciam olhar furiosos e bater os pés violentamente
de cada lado à medida que os três prosseguiam para cima.
Justo quando a velocidade de respiração de Jack estava
começando a estabilizar, seu computador deu uma
advertência audível de que estava prestes a entrar na
reserva. Ele sentiu um aperto momentâneo em seu
regulador quando o suprimento de emergência entrou em
ação e depois este fluiu livremente de novo.
- À medida que subirmos, a pressão se reduzirá e você irá
obter um volume maior do suprimento de reserva, -
assegurou Costas. - Se ficar sem reserva sempre podemos
partilhar o ar.
- Ótimo. - Jack fez uma careta através do visor antes de se
concentrar em manter sua flutuação apenas acima do nível
neutro.
Durante os minutos seguintes, o único som era o da exalação
das bolhas que se soltavam enquanto subiam gradualmente
pela passagem. Depois de cerca de cem metros, Costas fez
um sinal para pararem.
- Estamos agora setenta metros abaixo do nível do mar, - ele
anunciou. - Meu computador avisa que precisamos parar
cinco minutos para a descompressão. Muito embora
respiremos principalmente hélio e oxigênio, ainda assim
absorvemos muito nitrogênio. Necessitamos nos livrar do
gás.
Apesar da dor penetrante que sentia em seu ferimento, Jack
fez um esforço consciente para não hiperventilar. Exausto,
ele se deixou cair sobre as escadas e apanhou o disco.
- Está na hora de ler o mapa, - disse ele.
Os outros dois se abaixaram ao seu lado enquanto ele rodava
o disco até o símbolo ficar alinhado com a direção da
passagem.
- Se nossa decifração estiver correta estamos aqui, ao longo
do ombro esquerdo da águia, - apontou Costas. - Não
devemos ir muito mais longe por este caminho. Estamos
chegando perto da face do despenhadeiro.
- Quando essa passagem chegar ao final, vamos virar à
direita, - disse Katya. - Depois faremos todo o caminho ao
longo da asa da águia até a virada final à esquerda e depois
para a extremidade oriental.
- Se estivermos nos encaminhando para a caldeira,
precisamos subir cerca de cem metros e nos dirigir
quatrocentos metros para o sul, em uma inclinação de trinta
graus. Em algum ponto vamos ultrapassar o nível do mar,
mas ainda assim estaremos debaixo da terra.
- O que vai acontecer se a passagem for para baixo? -
perguntou Katya.
- Seremos queimados vivos, - disse Costas asperamente. - O
centro é uma massa em ebulição de lava derretida e de gás
ardente. Mesmo indo para cima podemos encontrar nosso
caminho barrado por lava que esteja fluindo desde o tempo
da inundação.
Os cronômetros deles soaram ao mesmo tempo depois de
cinco minutos para indicar que a parada havia sido
cumprida. Jack recolocou o disco no bolso e levantou da
escada de modo decidido.
- Não temos escolha, - ele disse. - Vamos rezar para que Ben
e Andy ainda estejam agüentando. Somos a única corda de
salvação deles.
Quando passaram da marca dos sessenta metros, seus
reguladores começaram a substituir, como principal gás
inerte, o hélio pelo nitrogênio. Logo a mistura de gás que
tinham para respirar iria diferir do ar atmosférico apenas
pelo oxigênio enriquecido injetado durante os poucos
metros finais para retirar de sua corrente sangüínea qualquer
excesso de nitrogênio.
Costas conduziu-os pelo caminho quando a escadaria
começou a se estreitar em um túnel apertado. Depois de
mais um passo o caminho virava à direita, seguindo
aparentemente uma fissura natural, antes de retomar o curso
inicial levando-os bem rápido até a entrada de uma outra
caverna.
- Esta é nossa interseção, acertamos no alvo.
Suas lanternas revelaram uma câmara de cerca de dez
metros de comprimento por cinco de largura, com portas
nos quatro lados. A parada de descompressão havia
revitalizado Jack e ele nadou para a frente de modo a
examinar o compartimento mais de perto. No centro havia
uma mesa retangular orlada de pedestais de mais ou menos
dois metros em cada canto. A mesa havia sido desbastada da
rocha e tinha uma borda elevada como a tampa de um
sarcófago. Os pedestais eram vasos largos e redondos que
permaneciam livres, em pé, como as pias batismais das
igrejas medievais.
- Não há pequenos canais para escoar o sangue e teria sido
impossível trazer um animal grande para este local tão
distante nas montanhas, - disse Jack. - Os sacrifícios tendem
a ser públicos e o que quer que ocorresse aqui só podia ser
assistido por poucos escolhidos.
- Uma mesa de ablução, para purificação ritual? - sugeriu
Costas.
Katya nadou até a porta oposta ao seu ponto de entrada. Ela
examinou o corredor além dessa porta e desligou por
instantes a lanterna.
- Posso ver luz - disse ela. - Ela está pouco discernível, mas
há quatro tanques uniformemente separados.
Jack e Costas se aproximaram. Eles também podiam
discernir manchas esmaecidas, de um verde nebuloso.
- Estamos apenas cinqüenta metros abaixo do nível do mar e
poucos metros dentro da face do despenhadeiro. - Costas
apagou sua luz enquanto falava. - É de manhã cedo lá fora,
por isso há um pouco de luz vestigial nesta profundidade.
- O corredor se corresponde com uma das linhas paralelas
que sobressaem da asa da águia, - disse Jack. - Aposto que
são alojamentos de moradas, com janelas e balcões dando
para as pirâmides. Exatamente como nos complexos
minoanos nos despenhadeiros do Thera, uma localização
magnífica que servia de ideal monástico, embora também
dominasse a população que habitava na costa abaixo.
- Nós poderíamos sair por uma daquelas janelas, sugeriu
Katya.
- Sem chance, - disse Costas. - Elas parecem ser poços de
ventilação, provavelmente com menos de um metro de
largura. E não temos tempo para explorá-las. Nosso mapa se
mostrou verdadeiro até aqui e sugiro segui-lo.
Bem nesse momento uma vibração passou por eles, um
escurecimento da água que fez Jack temer que estava prestes
a desmaiar. Ela foi seguida por vibrações posteriores e depois
uma série de barulhos abafados de marteladas, cada um
precedido de um som amortecido como de um vidro
quebrado a longa distância. Não havia jeito de detectar de
onde o som estava vindo.
- O submarino! - exclamou Katya.
- O som está muito distinto, muito controlado - disse Costas.
- Qualquer explosão no Kazbek e não estaríamos aqui
falando sobre isto.
- Eu já ouvi este som antes. - Jack estava olhando para
Costas, sua raiva era palpável mesmo através do visor. -
Penso que é a vibração de projéteis penetrando em um
casco. Há uma batalha de canhões retumbando na superfície
acima de nós.
- O que quer que seja, precisamos encontrar uma saída agora
- disse Costas ansioso. - Vamos.
Eles nadaram em direção à entrada que assinalava a virada à
direita indicada pelo símbolo. Depois de passar pelos vasos
grandes, Costas parou para verificar sua bússola.
- Para o sul - ele anunciou. - Tudo que temos de fazer agora
é seguir esta rota até o fim e depois virar à esquerda.
Katya estava se aproximando da via de acesso alguns metros
na frente dos outros dois. Ela parou subitamente.
- Olhem para cima - disse muito excitada.
Acima da via de acesso havia um enorme lintel esculpido na
rocha. A frente estava profundamente entalhada com
símbolos, alguns ocupavam toda a altura de meio metro da
laje. Eles estavam separados em quatro grupos de quatro,
cada grupo rodeado por uma delimitação entalhada como
uma moldura de hieróglifo.
Não havia como equivocar-se sobre o seu significado.
- O feixe de milho. O remo de pá larga. A meia-lua. E
aquelas cabeças de índio da tribo dos moicanos - disse Katya.
- Esta é a comprovação final - murmurou Jack. - O disco de
Phaistos, o disco de ouro do naufrágio. Os dois vêm deste
lugar. Estamos olhando para o manuscrito sagrado da
Atlântida.
- O que ele significa? - perguntou Costas.
Katya já estava consultando o seu palmtop computer. Ela e
Dillen o haviam programado em uma concordância que
combinava cada um dos símbolos da Atlântida com sua
sílaba equivalente em linear A, proporcionando uma
tradução mais apropriada do vocabulário minoano decifrado
até aquela data.
- Ti-ka-ti-re, ka-ka-me-re. - Katya pronunciou os sons
lentamente, seu sotaque russo dava um leve som sibilante às
sílabas finais de cada palavra.
Ela procurou, em ordem alfabética, na lista do computador,
enquanto Jack e Costas observavam as palavras bruxuleantes
quando elas apareciam no display LCD.
- As duas palavras estão no léxico minoano, - anunciou
Katya. - Ti-ka-ti significa rota ou direção. Ka-ka-me significa
morte ou morto. O sufixo re significa para ou de. Então a
tradução é da "rota da morte", "o caminho da morte".
Eles ficaram olhando para a inscrição acima de suas cabeças,
os símbolos pareciam nítidos, como se tivessem sido
esculpidos poucos dias antes.
- Isto não soa muito promissor, - disse Costas carrancudo.
Jack estremeceu e os outros dois olharam para ele com
ansiedade renovada. Ele reuniu sua energia restante e
adiantou-se na passagem.
- Esta deve ser a última perna do símbolo. Sigam-me.
Costas se atrasou um instante para amarrar a última bobina
de fita em sua mochila. Tudo o que ele podia ver dos outros
dois era a turbulência em seu rastro, a passagem se inclinava
em um ângulo não muito pronunciado. Quando nadou atrás
deles, o vislumbre tranqüilizador de suas lanternas apareceu
mais adiante no túnel.
- Mantenham sua velocidade de ascensão abaixo de cinco
segundos por metro, - ele instruiu. - O tempo que ficamos
na câmara conta como uma outra parada de descompressão,
e com esta inclinação não necessitaremos parar de novo
antes de alcançar a superfície.
O chão era áspero, parecia ter sido deixado inacabado de
maneira deliberada para proporcionar uma melhor
aderência. De cada lado havia entalhes paralelos, como os
sulcos em antigos caminhos de carretas. De repente,
encontraram-se na entrada de uma outra câmara, as paredes
desaparecendo em uma escuridão de breu, embora a rampa
continuasse para cima.
Era um espaço cavernoso que fazia o saguão dos ancestrais
parecer pequeno. Ao redor deles havia concavidades
ondulantes de rocha que pareciam se agitar quando eles
movimentavam suas lanternas para a frente e para trás. As
laterais caíam verticalmente em um precipício escancarado,
a queda perpendicular quebrada apenas por ranhuras
nodosas de lava que pontuavam as paredes como nós em
velhos carvalhos. Para qualquer lugar que olhassem viam
rios contorcidos de lava, testemunhos das forças colossais
que arruinaram a câmara a partir do núcleo derretido da
terra.
- O centro do vulcão deve estar apenas a uns duzentos
metros em direção ao sul, - disse Costas. - Magma e gás
encontravam seu caminho através da cinza compactada do
cone formando buracos abertos e depois se solidificando. O
resultado é este gigantesco efeito de favo de mel, um centro
expandido oco entremeado com o entrelaçado das
formações basálticas.
Eles olharam atentamente através da água clara como cristal
e a rampa se revelou como um passadiço gigantesco, uma
imensa espinha dorsal de rocha que se estendia até onde a
vista podia alcançar. Para a esquerda suas lanternas
brincavam sobre um dique maciço, seguido por um outro a
igual distância, ambos se projetando em ângulo reto a partir
da espinha dorsal central e se fundindo com a parede da
câmara.
Foi Costas que chamou a atenção para o óbvio, a razão pela
qual a geometria parecia tão estranhamente familiar.
- A espinha central é a parte superior da asa no símbolo. Os
diques são duas das projeções para a esquerda. Nós estamos
na parte final.
- Este lugar deve ter parecido apavorante para as primeiras
pessoas que chegaram até esta câmara, - disse Jack. - Acho
que o outro lado do centro também tem intrusões de basalto
irradiando para fora onde o magma se espalhou ao longo das
fissuras até a superfície. Se o padrão é simétrico torna-se
fácil perceber como ele adquiriu qualidades mágicas. Ele era
a imagem do seu sagrado deus águia.
Katya estava paralisada pelas cascatas espetaculares de rocha
ao redor deles. O passadiço era como a ponte final para uma
fortaleza subterrânea, um derradeiro teste de nervos que
deixaria qualquer um suficientemente corajoso para se
aventurar por ele exposto a um fosso de fogo.
Ela mal podia distinguir as entradas na parede no final das
duas rampas separadas. Diretamente à frente, a uns cem
metros, Katya podia ver o vislumbre distante de uma parede
de rocha, sua dimensão escondida na escuridão. Ela
estremeceu quando lembrou o severo epíteto na entrada da
câmara.
Costas começou a nadar com determinação ao longo do
passadiço.
- Jack tem apenas mais alguns minutos de ar em seu
reservatório. É hora de encontrar a superfície.
Jack e Katya nadavam de cada lado de Costas acima dos
sulcos que vinham se estendendo desde a passagem. Logo
depois que passaram a junção com o primeiro passadiço para
a esquerda, uma outra característica apareceu, uma
depressão no meio do caminho ao longo da espinha dorsal
que havia ficado invisível da entrada.
Quando se aproximaram da depressão, uma cena espantosa
se descortinou diante de seus olhos. O espaço tinha uma
largura de cinco metros a contar do passadiço e uma
distância equivalente do outro lado. Ele tinha cerca de dois
metros de profundidade e possuía escadas de cada lado. À
direita, contemplando o canyon, havia uma escultura de
chifres de touro com os lados verticais característicos e uma
vasta curva interior. Uma escultura idêntica levantava-se à
esquerda do centro, e entre elas havia uma laje maciça. Os
chifres haviam sido esculpidos na rocha, suas extremidades
quase alcançavam o nível do passadiço, ao passo que a laje
era de um mármore branco brilhante semelhante à pedra
com que foram esculpidas as fantásticas formas de animais
que eles haviam visto nas laterais do caminho processional
do lado de fora.
Quando mergulharam para olhar melhor, puderam ver que a
laje estava inclinada por cima do vazio.
- É claro! - exclamou Jack. - Aquela inscrição. Não é "o
caminho da morte", mas o "caminho dos mortos". Desde
que vi a Atlântida pela primeira vez fiquei me perguntando
onde seriam os cemitérios. Agora sabemos. Aquela última
câmara era um mortuário fúnebre, uma câmara de
preparação. E era aqui que preparavam seus mortos.
Até Costas esqueceu momentaneamente sua urgência de
escapar e nadou para olhar melhor o precipício. Ele ligou
seu feixe de luz de alta intensidade durante alguns segundos,
ciente de que bastava apenas uma pequena ruptura para
esgotar sua reserva de bateria.
- Eles escolheram um local adequado, - concluiu. - A lava
aqui embaixo é recortada, do tipo que seca rápido, e
preenche a ravina como uma torrente solidificada. Há sete
mil anos isto podia bem ter sido um canal ativo. Lava
derretida ferve a mil e cem graus Celsius, o suficiente para
derreter um carro, desse modo eles conseguiram um
crematório já pronto.
Katya estava examinando os degraus que conduziam à
plataforma.
- Eles deviam trazer os corpos para cá antes de colocá-los na
laje para sua jornada final - ela conjeturou. - Os sulcos na
rampa estão separados por dois metros, o que é o necessário
para um esquife. Eles devem ter sido produzidos pelos pés
dos carregadores durante milhares de procissões funerárias.
Jack estava olhando para as profundezas do precipício, toda
a sua imaginação dirigida para evocar uma imagem do ritual
realizado pela última vez no local havia milênios de anos.
Ele tinha escavado muitos locais de antigos cemitérios, os
mortos não raro contavam histórias melhores que os detritos
dos vivos, e ele havia suposto que sua maior descoberta seria
uma rica necrópole. Agora ele sabia que os únicos restos
mortais do povo da Atlântida estavam codificados dentro
deles mesmos, nos genes daqueles marinheiros intrépidos
que haviam escapado da inundação e espalhado as sementes
da civilização.
- Então, este é o inferno dos antigos, - disse Jack, com a
respiração curta. - E o Estige não era um remanso plácido,
mas um rio de fogo em combustão.
- O velho Caronte, o barqueiro dos infernos, teria gostado de
aceitar um convite para trabalhar aqui, - disse Costas. - Para
mim, isto se parece com os portões dos infernos. Vamos sair
antes que acordemos o deus deste lugar e ele possa reativar a
fornalha.
Quando nadaram até a parte final da rampa, Jack estava
respirando com dificuldade. Sua respiração desigual era
audível e Katya voltou-se alarmada para ele. Costas parou
perto deles e puxou Jack para que parasse.
- Está na hora da respiração compartilhada, - disse ele.
Depois de se atrapalhar por alguns instantes com sua
mochila, Costas pegou uma mangueira vulcanizada que
enfiou em um orifício do tubo de Jack. Ele abriu a válvula
girando-a algumas vezes e ouviu-se um assobio quando os
dois sistemas se equalizaram.
- Obrigado. - A respiração de Jack tornou-se mais fácil.
- Temos um problema, - anunciou Costas.
Jack havia estado concentrado em sua respiração, mas agora
olhou para a face da rocha que aparecia na frente deles.
- Um tampão de lava, - disse ele em tom desanimado.
Cerca de cinco metros adiante a saliência terminava na
extremidade nordeste da câmara. Eles mal distinguiam uma
entrada, larga como uma passagem e tampada por um lintel.
Mas tudo isto estava obscurecido por um coágulo gigante de
lava solidificada, uma erupção horrível que havia escorrido
para dentro do precipício e deixado apenas uma abertura
estreita no topo.
Costas se voltou para Jack. - Estamos a apenas oito metros
abaixo do nível do mar, dentro da margem de segurança de
dez metros para a toxicidade do oxigênio, então, enquanto
pensamos na maneira de resolver isto podemos ao mesmo
tempo purificar nossos sistemas.
Ele ligou o seu computador e o de Katya para um
funcionamento manual e acionou as válvulas de oxigênio de
seus tubos de distribuição. Depois ele e Jack nadaram um
atrás do outro até a abertura para examinar o espaço além
dela.
- O túnel de lava deve ter atravessado o basalto até a
passagem em alguma época depois da inundação, - disse
Costas. - A abertura é o resultado de escapamento de gás. Se
tivermos sorte haverá uma cavidade durante todo o
caminho.
Jack deu uma arrancada para dentro da brecha recortada e
sua cabeça e ombros desapareceram. Depois do
estreitamento ele pôde ver que a cavidade se abria como um
dueto de ventilação, as paredes estavam manchadas com
ranhuras ígneas onde o gás havia explodido através do
escoamento da lava com a força de um motor a jato.
- Não há jeito de passarmos usando nossos equipamentos, -
disse Jack. - Depois do escapamento, a lava deve ter se
expandido enquanto se solidificava, estreitando os primeiros
metros em um túnel que mal é suficiente para Katya,
imagine para mim ou para você.
Eles sabiam o que tinham de fazer. Jack começou a
desafivelar seu equipamento profissional.
- Faz sentido eu ir primeiro. Você e Katya ainda têm suas
reservas. E eu sou o único que pode realizar um mergulho
livre até quarenta metros.
- Não com um buraco de bala no seu flanco.
- Deixe-me assoprar um pouco de oxigênio no túnel, --
replicou Jack. - Posso ver ondulações no teto que podem
esconder bolsões de gás e proporcionar uma parada segura."
Costas parou, relutando instintivamente em expelir um dos
parcos suprimentos que possuíam, mas ele percebeu o bom
senso nas palavras de Jack. Desafivelou o regulador do
segundo estágio de sua mochila e entregou-o a Jack. Este
esticou o mais que pôde a mangueira dentro da fissura e
pressionou a válvula de purificação. Houve um barulho
ensurdecedor quando o oxigênio foi descarregado naquele
espaço e cascateou como água branca ao longo da superfície
da rocha.
Costas olhou com muita atenção enquanto o ponteiro em
seu mostrador caía para menos de cinqüenta atmosferas e o
alarme indicador da reserva começava a piscar.
- Basta! - disse ele.
Jack soltou a mangueira e colocou o regulador dentro da
extremidade da abertura. Quando tirou sua mochila e a
prendeu em um rebordo da lava, Costas destacou a fita de
seu dorso e amarrou-a no braço de Jack.
- Enviar sinais-padrões, - instruiu Costas. - Uma puxada
significa ok. Duas puxadas, que você necessita de mais uma
carga de oxigênio. Uma puxada contínua significa que você
passou e que é seguro segui-lo.
Jack fez um sinal concordando, enquanto Costas checava
para se assegurar de que a bobina estava soltando a fita
facilmente. Jack ficaria isolado do intercomunicador quando
necessitasse levantar seu visor para ter acesso aos bolsões de
ar no túnel. Ele abriu o fecho de segurança de seu capacete e
olhou para Costas, que acabara de confirmar em seu
computador que eles haviam cumprido as exigências de
descompressão.
- Pronto.
- Troca de regulador.
Quando Costas desprendeu a mangueira umbilical, Jack
fechou bem os olhos e atirou seu capacete para trás,
empurrando, ao mesmo tempo, o regulador de segundo
estágio em sua boca e retirando a máscara de rosto mantida
em um bolso lateral para uso em emergência. Ele a colocou
no rosto e soprou pelo nariz para se livrar da água,
permanecendo quieto por alguns instantes para deixar sua
velocidade de respiração se acalmar, pois o choque da água
fria a havia acelerado.
Depois de pegar um farolete de mão, Jack se içou para a
abertura. Costas o seguiu de perto para se assegurar de que a
mangueira não ficasse demasiado esticada. Quando Jack
agarrou o lintel, ele sentiu um dentículo onde a lava havia
envolvido a superfície da rocha. Seus dedos traçaram a
forma de um símbolo talhado fundo no basalto.
Ele se virou para Katya e gesticulou muito excitado. Ela fez
um aceno exagerado concordando, antes de retribuir seu
olhar, muito mais preocupada com as chances dele de
atravessar o túnel.
Jack se voltou para a frente e relaxou completamente, o
corpo dependurando-se no lintel com os olhos fechados.
Usando a técnica de um mergulhador sem equipamento, ele
respirou lenta e profundamente para saturar seu corpo com
oxigênio. Depois de um minuto, deu o sinal de ok para
Costas e colocou a mão sobre o regulador. Respirou
rapidamente cinco vezes, depois cuspiu e se lançou para a
frente no meio de uma agitação de bolhas.
Costas agarrou a fita que era o precioso fio de vida deles.
Quando ela começou a deslizar pelos seus dedos, ele falou
bem baixinho.
- Boa sorte, meu amigo. Precisamos dela.

22

Durante os primeiros metros, Jack teve de se deslocar com
esforço através dos limites estreitos do túnel onde a lava
caíra sobre a entrada. Podia sentir seu traje se rasgar quando
comprimia o corpo ao passar pelos nós de lava afiados como
navalha. Ele olhou para trás para ter certeza de que a fita
estava intacta e depois se deslocou rapidamente pelo túnel,
os braços estendidos para a frente e o farolete iluminando
diretamente adiante.
Enquanto subia verticalmente, ele pôde sentir uma gradual
inclinação onde o fluxo de lava se amoldara ao declive
crescente da passagem. Jack se movimentou e viu poças de
luminosidade no teto onde o oxigênio do regulador de
Costas fora coletado. Quase exatamente um minuto depois
de ter respirado uma última vez, ele colocou, de repente, a
cabeça em uma poça que preenchia uma fissura na lava.
Respirou três vezes em rápida sucessão, checando ao mesmo
tempo a profundidade em que se encontrava e deixando um
bastão luminoso Cyalume flutuando na poça como uma bóia
luminosa para os outros seguirem.
- Três metros abaixo do nível do mar, - disse para si mesmo.
- É uma barbada.
Mergulhou de novo e deu um impulso para a frente dentro
da passagem. Quase imediatamente ela se bifurcava. Jack
intuiu que uma passagem o levaria à salvação e a outra
acompanharia a abertura por onde a lava havia escorrido
desde o centro. Era uma decisão de vida ou morte que
determinaria o destino dos outros dois.
Depois de checar sua bússola, Jack nadou resolutamente
pegando a passagem à esquerda, exalando com suavidade
para impedir o rompimento dos pulmões quando a pressão
diminuísse. Uma luminosidade iridescente apareceu diante
dele, uma superfície muito ampla para ser uma poça de
oxigênio colada contra o teto do túnel.
Seus pulmões começaram a ter espasmos enquanto ele
lutava com desespero crescente dentro do estreito espaço
entre as paredes da rocha. Quando deu um impulso
rompendo a camada de lava e emergindo na superfície,
quase esmagou a cabeça contra a rocha do teto. Respirou
ofegante, repetidas vezes, e depois ficou tonto na superfície
da água. Havia alcançado o nível do mar, mas ainda estava
bem fundo dentro do vulcão, a passagem adiante não
mostrava sinal de saída enquanto continuava a subir.
Fazia apenas três minutos que havia deixado Costas e Katya,
mas parecia uma eternidade. Enquanto lutava contra a
inconsciência, Jack focalizou toda a sua energia na fita
laranja que emergiu atrás de si, puxando-a repetidas vezes
até que ela se soltou da sua mão e ele ficou imóvel.
Houve uma imensa erupção de água pulverizada quando
Costas emergiu, seu corpo surgindo como uma baleia na
superfície. Katya apareceu segundos depois e imediatamente
começou a examinar a ferida de Jack. Havia preocupação em
seu rosto quando ela se deu conta da crosta de sangue que
havia escorrido através do corte e impregnava o traje do
companheiro.
Costas removeu com violência sua máscara e respirou
pesadamente, o cabelo escuro colado na testa e o rosto
vermelho e inchado.
- Lembre-me de fazer dieta, - Costas ofegou. - Eu tive um
pouco de dificuldade para atravessar a última parte.
Costas se esforçou para ir até a beirada do lago do vulcão e
tirou seus pés-de-pato. Jack se recobrou o suficiente para se
erguer sobre os cotovelos e se pôs a desparafusar o projetor
de feixe luminoso de sua lanterna de modo que a lâmpada
exposta lançasse uma luz meio imprecisa, como de uma vela,
ao redor deles.
- Junte-se ao clube, - disse Costas. - Sinto como se tivesse
passado por um moedor de carne.
Suas vozes soavam perfeitas e vibrantes depois de tanto
tempo falando pelo intercomunicador. Jack tentou se içar
mais acima no declive, mas desistiu por causa da dor.
- Eu guardei a mochila de Katya dentro do túnel, - disse
Costas. - Há trimix suficiente para dois de nós
compartilharmos e voltarmos para o submarino em caso de
necessidade. Também amarrei a ponta da fita ao bastão
luminoso naquela poça de ar. Se tivermos de voltar é preciso
lembrar de virar à direita naquela bifurcação.
A água estava salpicada de minúsculas bolhas efervescentes
que subiam para a superfície. Os dois homens olharam para
elas enquanto recuperavam o fôlego.
- Isto é esquisito, - disse Costas. - Parece ser algo mais do
que apenas os restos do oxigênio do regulador. Deve ser uma
espécie de descarga de gás do respiradouro do vulcão.
Agora que estavam todos salvos, eles eram capazes de olhar
para o ambiente que os cercava. Mais acima na rampa havia
uma outra passagem retilínea desbastada na rocha,
conduzindo inexoravelmente para cima, no entanto a vista
diferia de um modo esquisito.
- Isto é alga, - disse Costas. - Deve haver luz natural
suficiente para fotossíntese. Devemos estar mais perto da
saída do que eu pensava.
Agora que a água havia se acalmado, eles podiam ouvir o
barulho de um gotejamento contínuo.
- Água de chuva, - disse Costas. - O vulcão ficará saturado
depois da tempestade. Haverá uma coluna de vapor
proporcional a uma explosão nuclear.
- Pelo menos o Seaquest não deverá ter problemas para nos
encontrar. - As palavras de Jack foram elaboradas enquanto
ele se ajoelhava. A impulsão dada pelo oxigênio o havia
sustentado através do túnel, mas agora seu corpo estava
trabalhando em excesso para limpar o nitrogênio
remanescente. Cambaleou quando ficou de pé, com cuidado
para evitar os trechos escorregadios onde a água da chuva
molhara a rocha ao redor deles. Ele sabia que sua provação
ainda não havia terminado. Tinha se saído bem com seu
suprimento de ar, mas agora deveria enfrentar uma dor
muito maior sem a frieza amortecedora da água.
Jack percebeu os olhares preocupados.
- Eu ficarei bem. Costas, você comanda.
Quando estava prestes a se mover, Katya olhou para Jack.
- Oh! Quase esqueci.
Sua pele cor de oliva e o cabelo negro lustroso brilharam
quando a água escorreu por eles.
- Aquela inscrição que havia no lintel, - disse ela. - Dei uma
olhada enquanto estávamos esperando você atravessar a
passagem. O primeiro símbolo era a cabeça de um índio da
tribo dos moicanos, a sílaba at. Tenho certeza que o segundo
símbolo era o feixe de milho, ai ou Ia. Não tenho dúvida de
que a inscrição completa quer dizer Atlântida. Este é o nosso
último marcador de caminho.
Jack concordou com um aceno de cabeça, muito debilitado
para falar.
Começaram a subir a rampa. Agora que tinham ficado sem
seus equipamentos de respiração, não podiam mais contar
com as headlamps que faziam parte do conjunto do
capacete. Os faroletes de mão eram destinados a bóias de
emergência que acendem e apagam, e usá-los
constantemente esgotava rapidamente as baterias. Enquanto
subiam a rampa, as luzes começaram a falhar e se apagaram
ao mesmo tempo.
- Chegou a hora da iluminação química, - disse Costas.
Guardaram seus faroletes, e em seguida Costas e Katya
ligaram seus bastões luminosos. Combinados com o início
de luz natural, ainda débil, os bastões produziam uma aura
sobrenatural, um brilho vítreo que lembrava a luz de
emergência que eles haviam ativado na sala de controle do
submarino danificado.
- Vamos ficar juntos, - avisou Costas. - Estas luzes podem
durar horas, mas elas mal iluminam o chão. Não sabemos o
que pode vir pela frente.
Quando contornaram uma curva na passagem, o odor acre
que vinha irritando suas narinas desde o momento em que
haviam atingido a superfície se tornou de repente
indescritivelmente intenso. Uma corrente de ar quente
trazia consigo o odor doce e nauseante de decomposição,
como se os mortos da Atlântida ainda estivessem em estado
de putrefação em seus sepulcros bem abaixo.
- Dióxido de enxofre, - anunciou Costas, torcendo
levemente o nariz. - Desagradável, mas não tóxico, se não
ficarmos por aqui durante muito tempo. Deve haver um
respiradouro ativo por perto.
À medida que continuavam para cima, viram o local onde
um outro túnel de lava havia arrebentado, derramando o seu
conteúdo, como concreto despejado, sobre o chão do túnel.
A lava estava recortada e quebradiça, mas agora não impedia,
diferentemente do que seu fluxo causara no túnel anterior, a
passagem deles. O buraco por onde ela emergira estava
rachado como um favo de mel, com fissuras e fendas, e era a
fonte do vento terrível que se intensificava a cada passo que
eles davam.
- Esses dois túneis de lava que encontramos são
relativamente recentes, - disse Costas. - Eles devem ter
aberto caminho depois da inundação, senão os sacerdotes os
teriam limpado e reparado.
- Deve ter havido erupções semelhantes durante a época da
Atlântida, - disse Katya de maneira incerta. - Este lugar está
muito mais ativo do que os geólogos suspeitam. Estamos
dentro de uma bomba-relógio.
Jack estivera lutando com a dor, uma sensação que o
atormentava muito e que havia crescido à medida que
passava o efeito entorpecedor da água fria. Agora cada
respiração era uma facada cruel, cada passo um golpe
doloroso que o levava à beira de um colapso.
- Vocês dois prossigam. Precisamos entrar em contato com
o Seaquest o mais cedo possível. Eu seguirei quando puder.
- Sem chance. - Costas nunca havia visto seu amigo admitir
derrota, e sabia que Jack forçaria a si mesmo até cair,
quaisquer que fossem as probabilidades. - Eu o carregarei nas
costas se precisar.
Jack reuniu suas forças e lentamente, num estado que
beirava a agonia, seguiu os outros dois sobre a lava,
escolhendo o seu caminho com cuidado no meio das
formações recortadas. O progresso ficou mais fácil quando o
chão inclinado se tornou uma série de degraus baixos. Cerca
de vinte metros depois da lava, a passagem dobrava para o
sul, as dimensões perderam gradualmente sua regularidade
quando as paredes deram lugar às formas naturais de uma
fissura vulcânica. Quando o túnel se estreitou mais adiante,
eles começaram a se deslocar em fila única com Costas
conduzindo.
- Posso ver luz mais adiante, - ele anunciou. - Deve ser isto.
A elevação aumentou ficando mais pronunciada, e logo
tiveram que se arrastar sobre as mãos e os pés. Quando se
aproximaram da fraca aura de luz, as algas tornaram cada
passo progressivamente mais escorregadio. Costas deslizou
na parte final e voltou para trás para dar uma mão a Jack.
Chegaram ao lado de um canal de três metros de largura por
três de profundidade, os lados alisados por milênios de
erosão. Na parte de baixo havia um córrego raso que parecia
cair verticalmente em um canyon estreito, o barulho
distante de água era audível, mas a sua visão estava
completamente obscurecida por um reflexo de neblina. À
direita o canal seguia para dentro da face da rocha com um
vislumbre de luz no final.
Costas olhou para seu console para checar o altímetro.
- Calculamos a altura do vulcão, antes da inundação, como
de trezentos e cinqüenta metros acima do nível do mar.
Estamos agora a cento e trinta e cinco metros acima do atual
nível do mar, apenas oitenta metros abaixo do cume do
cone.
Tendo penetrado no vulcão pelo lado norte, eles estavam
agora de frente para o oeste e a forma das passagens refletia a
inclinação das rampas superiores. À frente deles a boca
escura do túnel parecia convidar para que se lançassem de
novo no labirinto, embora só pudesse haver uma curta
distância antes que alcançassem o ar livre.
- Sejam cuidadosos, - disse Costas. - Um passo em falso e
esta ladeira íngreme nos mandará direto ao inferno.
Eles haviam perdido a noção do tempo desde sua saída do
Seaquest no DSRV um dia antes. A confusão de rochas era
um mundo sinistro de sombras e formas bruxuleantes.
Quando galgaram uns poucos degraus cortados na rocha, o
conduto tornou-se mais escuro, e de novo eles tiveram que
contar com a iluminação lúgubre dos bastões luminosos.
O túnel seguia a direção do basalto, cada camada sucessiva
claramente visível na estratificação das paredes. O
escoamento havia corroído a lava carregada de gás do cone,
as cinzas e os resíduos de carvão, comprimidos como
concreto, formavam pedaços de pedra-pomes e escória
engastados na matriz. Quanto mais subiam, mais porosas as
paredes se tornavam, com água da chuva gotejando através
do aglomerado que se projetava do teto. A temperatura
estava se tornando nitidamente mais quente.
Depois de vinte metros o túnel se estreitou e fez convergir a
água que passou a fluir contra eles em uma violenta torrente.
Jack cambaleou para um lado, seu corpo repentinamente
convulsionado pela dor. Katya entrou na água para ajudá-lo a
ficar em pé contra a torrente que agora chegava até a altura
do peito. Com uma lentidão angustiante os dois abriram
caminho para passar pelo estreitamento, enquanto Costas
avançava e desaparecia dentro da cortina de névoa. Quando
prosseguiram em frente, cambaleantes, as paredes
subitamente se abriram de novo e o fluxo diminuiu para
pouco mais do que um escoamento lento. Eles viraram em
uma curva e depararam com Costas parado, imóvel, sua
silhueta gotejante recortada contra um pano de fundo de
iluminação opaca.
- É uma imensa clarabóia, - anunciou Costas excitado. -
Devemos estar bem debaixo da caldeira.
A abertura acima era suficientemente ampla para que a fraca
luz do dia revelasse a impressionante extensão da câmara na
frente deles. Era uma vasta rotunda, com pelo menos
cinqüenta metros de largura por cinqüenta de altura, as
paredes subiam até uma abertura circular que emoldurava o
céu como uma janela circular gigante. Para Jack, o local se
assemelhava espantosamente ao Panteão em Roma, o antigo
templo dedicado a todos os deuses, sua cúpula elevada
representando o domínio sobre os céus.
Ainda mais empolgante era a aparição no centro. Da
clarabóia até o chão havia uma imensa coluna de gás que
rodopiava, exatamente do tamanho da janela circular. Ela
parecia projetar o clarão do dia direto para baixo como um
feixe de luz gigante, um pilar incandescente de luz pálida.
Depois de olhar com pavor, durante um momento, eles
perceberam que a coluna estava subindo vertiginosamente a
uma grande velocidade, dando a ilusão de que eles próprios
estavam sendo lançados inexoravelmente para baixo, dentro
das profundezas ígneas do vulcão. Todos os seus instintos
diziam que isso devia fazer um barulho ensurdecedor, no
entanto a câmara estava sinistramente silenciosa.
- É vapor de água, - exclamou Costas por fim. - Então, é isto
que acontece à água da chuva não canalizada para fora. Deve
ser como uma fornalha explosiva aqui embaixo.
O crescente calor que sentiram durante a subida estava
emanando da chaminé que tinham à sua frente.
Eles estavam parados na extremidade exterior de uma ampla
plataforma que se estendia ao redor da rotunda, vários
metros acima do chão central. Portas igualmente espaçadas,
idênticas àquela da qual haviam emergido, tinham sido
cortadas na rocha ao longo de todo o perímetro. Cada uma
delas estava coberta com símbolos agora familiares. Além da
extremidade interior da plataforma eles podiam distinguir,
alguns metros abaixo, o estrado central da câmara. Dando de
frente para a coluna de vapor havia quatro cadeiras de pedra,
cada uma com a forma de chifres de touro e dispostas em
pontos cardeais da bússola. Uma delas, bem diante deles,
estava obscurecida pela plataforma, mas era nitidamente
maior do que as outras, as pontas dos chifres se elevavam em
direção à janela circular.
- Isto deve ser uma espécie de sala do trono, - disse Costas,
intimidado. - Uma câmara de audiência para os sumos
sacerdotes.
- O salão dos ancestrais. A câmara funerária. E agora a
câmara de audiência, - murmurou Katya. - Esta deve ser
nossa última escala para o santuário mais sagrado.
Eles vinham sendo tomados de grande excitação, um pouco
embriagados pela emoção das descobertas, desde que tinham
deixado o submarino. Agora que se defrontavam com o
verdadeiro núcleo do vulcão, sua exuberância se misturava a
um certo desconforto, como se eles soubessem que a
derradeira revelação não seria concedida sem um preço. Até
mesmo Costas vacilou, relutante em abandonar a segurança
do túnel e lançar-se no desconhecido.
Foi Jack quem quebrou o encanto e incitou-os a continuar.
Ele se voltou para os outros dois, seu rosto estava sujo de
fuligem e as feições, contraídas pela dor.
- Era para cá que o texto estava nos conduzindo, - disse ele.
- O santuário da Atlântida está em algum lugar por aqui.
Sem pressa ele se obrigou a ir em frente, avançando com
dificuldade, e sua força de vontade era a única coisa que o
impedia de desistir. Costas caminhava ao lado de Jack,
enquanto Katya seguia-os logo atrás, o rosto dela impassível
enquanto se dirigiam para o extremo da plataforma.
Assim que o trono começou a aparecer por cima da beirada
da plataforma, os três foram cegados por um feixe de luz.
Instintivamente eles cobriram e protegeram os olhos.
Através do clarão distinguiram duas figuras que se
materializaram uma à direita e outra à esquerda.
Repentinamente a luz desapareceu. Quando sua visão se
aclarou, viram que as duas figuras estavam vestidas de preto
como os assaltantes no submarino, e cada uma carregava, na
altura do quadril, uma Heckler & Koch MP5 apontadas
ameaçadoramente para eles. Jack e Costas levantaram as
mãos, eles não teriam chance de pegar suas armas antes de
serem cortados ao meio por uma rajada de balas.
Mais à frente uma escadaria com doze degraus rasos descia
para o estrado. Ao lado dela, um holofote portátil estava
apontado para eles. Uma passagem elevada conduzia
diretamente até a escultura dos chifres de touro, cujas
extremidades eles haviam visto de cima da beirada da
plataforma. Essa escultura formava a luxuosa parte de trás de
uma poltrona de pedra maciça, mais ornamentada do que as
outras.
A poltrona estava ocupada.
- Doutor Howard. Ê um prazer conhecê-lo, finalmente.
Jack reconheceu a voz, a mesma fala arrastada, de tom
gutural, que, três dias antes, vinda do Vultura, havia chegado
pelo rádio ao Seaquest. Ele e Costas foram puxados com
rudeza pelas escadas e a figura inchada de Aslan apareceu
nitidamente. Ele estava sentado no trono de maneira
desleixada, os pés plantados firmemente no solo e seus
imensos antebraços apoiados nas laterais do trono. A face
pálida e imutável quase se parecia com a de algum sacerdote
antigo, o que destoava eram os sinais de desenfreado excesso
em sua corpulência. Com seu imenso manto vermelho e as
feições orientais, ele parecia um exemplo típico de um
déspota do Leste, uma imagem saída direto da corte de
Gengis Khan, exceto pelos guerreiros completamente
modernos postados de cada lado do trono, cada um
carregando uma submetralhadora.
À direita de Aslan estava, imóvel, uma figura diminuta que
não combinava com o resto do ambiente. Era uma mulher
de aspecto simples vestindo um casaco cinza de tecido
grosso, o cabelo puxado em um coque.
- Olga Ivanovna Bortsev, disse Katya entre os dentes.
Sua assistente de pesquisa tem sido de muita ajuda, - revelou
Aslan de bom humor. - Uma vez que ela me mantém
informado, conservo sua embarcação sob constante
vigilância. Durante muito tempo tive vontade de visitar esta
ilha. Felizmente meus homens encontraram lá fora um
caminho que vem dar a esta câmara. Parece que chegamos
no momento exato. - De repente sua voz endureceu. -
Estou aqui para reivindicar esta propriedade perdida.
Costas não pôde se conter por mais tempo e lançou-se para a
frente. Ele foi imediatamente empurrado ao chão quando a
extremidade de uma arma bateu com força em seu
estômago.
- Costas Demetrios Kazantzakis, - disse Aslan com escárnio.
- Um grego. - Ele cuspiu a palavra com desprezo.
Enquanto Costas se esforçava para ficar em pé, Aslan voltou
sua atenção para Katya, seus olhos negros se estreitaram e os
cantos de sua boca revelaram o traço de um sorriso.
- Katya Svetlanova. Ou eu deveria dizer Katya Petrovna
Nazarbetov?
O olhar de Katya mudou e nele agora brilhava um desafio
furioso. Jack sentiu as pernas cederem quando seu corpo
finalmente não resistiu. A resposta dela parecia vir de uma
outra pessoa, de um submundo sombrio desconectado da
realidade.
Pai.

23

Ben deslocou-se quase imperceptivelmente sobre os quadris,
não deixando seus olhos se desviarem nem uma vez da
mancha de luz que emanava da sala de controle no fim da
passagem. Ele havia mantido a mesma posição hora após
hora, aliviado apenas por breves substituições de Andy, que
ficava na sala de torpedos embaixo. Com o corpo
pressionado contra o revestimento, e coberto pelo
precipitado branco, ele parecia quase uma parte da estrutura
do submarino, diferindo pouco do cadáver macabro do
zampolit pendurado na escuridão à distância de um braço
apenas.
Apesar da E-suit o frio tinha penetrado insidiosamente em
seu corpo, e os dedos curvados ao redor do gatilho da AKSU
estavam adormecidos havia horas. No entanto, ele sabia
como isolar a dor, como rechaçar tudo, deixando apenas o
que era necessário: observar e esperar. Em anos anteriores
havia aprendido que o verdadeiro teste de resistência era
uma paciência extrema, a qualidade rara que o havia
singularizado entre todos os demais candidatos para as
Forças Especiais.
Ele havia retirado o visor e um odor acre o atingiu antes que
percebesse qualquer movimento.
- Consegui uma bebida quente. - Andy rastejou atrás dele e
empurrou uma caneca fumegante sob seu rosto. - Um pouco
de sujeira soviética.
Ben resmungou, mas pegou agradecido o café com a mão
livre. Eles não tinham nenhum alimento a não ser as barras
energéticas em suas mochilas de emergência, mas haviam
encontrado algumas garrafas de água no alojamento dos
oficiais e se mantinham bem hidratados.
- Nada ainda? - perguntou Andy.
Ben sacudiu a cabeça. Fazia quase oito horas desde que Jack
e os outros haviam saído, um dia inteiro desde que tinham
visto a luz do sol pela última vez. Os relógios diziam que era
hora do anoitecer, mas, sem ligação com o mundo exterior,
eles tinham pouca sensação da passagem do tempo. Na
frente deles, seus oponentes haviam consolidado, de
maneira barulhenta, sua posição debaixo da escotilha de
fuga, havia períodos de atividade e de vozes elevadas
pontuados por longos silêncios. Durante horas eles
suportaram os gemidos e os gritos de dor de um homem
ferido até que um tiro abafado pôs fim a isso. Meia hora
antes tinha havido uma intensa comoção. Ben sabia que era
o submersível inimigo aportando com o seu próprio veículo
de resgate de submersão profunda, e tinha ouvido o barulho
de passos na entrada da escotilha. Havia batido de leve um
sinal pré-combinado para Andy vir juntar-se a ele, pois
esperava que o pior acontecesse.
- Aqui vamos nós.
Repentinamente brilhou um farolete, na passagem, dirigido
para eles. Apesar do brilho desagradável, nenhum dos
homens recuou. Ben colocou a caneca no chão e destravou
a AKSU, Andy pegou a Makarov e se escondeu na escuridão
do outro lado da antepara.
A voz de homem que chegou até eles era áspera e forçada,
as palavras metade em inglês e metade em russo.
- Tripulação do Seaquest. Desejamos conversar.
Ben replicou rispidamente em russo.
- Se vocês se aproximarem destruiremos o submarino.
- Isto não será necessário. - Desta vez as palavras foram ditas
em inglês e vieram de uma mulher. Ben e Andy mantiveram
os olhos atentos, cientes de que um instante de cegueira
causada pelo farolete podia fazê-los perder sua vantagem.
Eles se deram conta de que ela havia avançado na frente dos
homens e parara cerca de cinco metros à frente deles.
- Vocês são peões em jogos de outros homens. Passem para
o nosso lado e serão magnificamente recompensados. Vocês
podem conservar suas armas. - O tom insinuante da mulher
tornava a sua pronúncia ainda mais fria, mais desagradável.
- Repito, - disse Ben. - Não se aproximem nem mais um
passo.
- Vocês estão esperando seus amigos. - Ela gargalhou com
desprezo. - Katya - ela pronunciou com mais desprezo
ainda, - não tem a menor importância. Mas tive o prazer de
encontrar o doutor Howard em Alexandria. Muito
interessado na localização da Atlântida. E gostei muito de
reencontrá-lo e conhecer o doutor Kazantzakis nesta
manhã.
- Vocês foram avisados pela última vez.
- Os supostos amigos de vocês estão mortos ou foram
capturados. O Seaquest foi destruído. Ninguém mais
conhece a localização deste submarino. O empreendimento
de vocês está condenado. Juntem-se a nós e salvem suas
vidas.
Ben e Andy ouviam de modo impassível, nenhum deles
decepcionado ou acreditando no que estava sendo dito. Ben
olhou para Andy, depois para os outros.
- Sem chance, - disse ele.

Jack acordou com raios de sol matinais brincando em seu
rosto. Abriu os olhos, examinou em torno com a vista
embaçada, depois os cerrou de novo. "Devo estar
sonhando", pensou. Ele estava deitado de costas no centro
de uma cama grande com lençóis de linho limpos. A cama
ocupava um dos lados de um quarto espaçoso, as paredes
pintadas de branco e meia dúzia de quadros de pintores
modernos pendurados, todos eles parecendo vagamente
familiares. Oposta a ele uma grande janela dava para a baía, o
vidro matizado revelava um céu sem nuvens e uma série de
colinas iluminadas pelo sol.
Começou a se levantar e sentiu uma punhalada de dor no
seu lado esquerdo. Olhou para baixo e viu que uma faixa
cobria sua caixa torácica logo abaixo de uma série de
contusões. De repente se lembrou de tudo, da extraordinária
aventura no vulcão, da passagem pela câmara de audiência,
da imagem de Costas no chão cheio de dor e de Katya ao seu
lado. Sentou-se de forma abrupta quando lembrou da última
palavra que ela pronunciara, com a mente hesitando em
acreditar.
- Bom dia, doutor Howard. Seu anfitrião o espera.
Jack levantou o olhar e viu um homem sério, de idade
indeterminada, parado na porta. Ele tinha as feições de um
mongol da Ásia Central, no entanto sua pronúncia em inglês
era impecável, assim como seu uniforme de criado.
- Onde estou? - perguntou Jack asperamente.
- Tudo no devido tempo, senhor. Deseja ir ao banheiro?
Jack olhou na direção que o homem indicara. Sabia que valia
pouco protestar e levantou-se pisando no chão de madeira
de mogno esplendidamente matizado. Entrou no banheiro
ignorando a banheira de hidromassagem e preferindo o
chuveiro. Quando voltou encontrou roupas novas esperando
por ele. Uma camisa preta Armani, de gola rulê, calças
brancas e sapatos de couro da marca Gucci, tudo do seu
tamanho. Com uma barba de três dias e a aparência de quem
havia sido exposto às intempéries, Jack não se sentia à
vontade com aquela roupa de grife, mas estava agradecido
por não ter de vestir o E-suit com sua desconfortável roupa
de baixo molhada com sangue e água do mar.
Alisou os cabelos espessos e olhou o criado parado
discretamente na soleira da porta.
- Está bem, - disse Jack severamente. - Vamos encontrar o
seu senhor e mestre
Enquanto seguia o homem escada abaixo, Jack se deu conta
de que o quarto que havia ocupado fazia parte de uma série
de unidades reservadas espalhadas ao redor das ravinas e das
rampas das ladeiras, todas interligadas por uma conexão de
passagens tubulares que irradiava de um centro construído
no solo do vale.
O edifício no qual estavam entrando agora era uma vasta
construção circular encimada por uma cúpula branca
brilhante.
Quando se aproximaram, Jack observou que os painéis
exteriores tinham sido colocados em um determinado
ângulo que permitia captar o sol da manhã enquanto este
brilhava no vale, e que embaixo se encontrava uma outra
bateria de painéis solares perto de uma estrutura semelhante
a uma estação elétrica. O complexo inteiro parecia
estranhamente futurista, como um modelo, em tamanho
natural, de uma estação lunar ainda mais elaborada do que
tudo que a NASA jamais inventou.
O criado fechou as portas atrás de Jack quando ele entrou
cautelosamente na sala. Nada no exterior funcional havia
preparado Jack para o cenário do lado de dentro. Era uma
réplica exata do Panteão em Roma. O vasto espaço tinha
precisamente as mesmas dimensões que o original, era
suficientemente amplo para acomodar uma esfera de mais de
quarenta e três metros de diâmetro, maior do que a abóbada
de São Pedro no Vaticano. Da abertura, muito acima do solo,
uma coluna de luz solar iluminava a estrutura arqueada da
abóbada, sua superfície dourada clareando o interior da
mesma forma que deve ter ocorrido no local original, no
século II d.C.
Debaixo da abóbada as paredes da rotunda eram
interrompidas por uma sucessão de nichos profundos e
reentrâncias rasas, cada um deles ladeados por colunas de
mármore e rematados por frisos elaborados. O chão e as
paredes eram marchetados com mármores exóticos do
período romano. Com uma olhadela, Jack pôde identificar o
pórfiro vermelho do Egito, preferido pelos imperadores, o
verde lápis lacedaemonis de Esparta e o maravilhoso giallo
antico cor de mel da Tunísia.
Para Jack, isto era mais do que uma extravagância de
antiquário em grande escala. Em lugar dos estrados altos dos
reis, os nichos estavam preenchidos com livros e as
reentrâncias, com pinturas e esculturas. O enorme recinto
semicircular atrás de Jack era um auditório com filas de
luxuosas poltronas na frente de uma tela de cinema em
tamanho natural, e estações de trabalho de computadores
estavam distribuídas ao redor da sala. Diretamente oposta ao
recinto semicircular havia uma imensa janela, que dava para
o norte. A cordilheira distante que Jack havia visto da janela
do dormitório preenchia a vista aqui, com o mar à esquerda.
O acréscimo mais chocante ao antigo esquema estava bem
no centro, uma imagem ao mesmo tempo supremamente
moderna e completamente dentro do espírito da concepção
romana. Tratava-se de um projetor planetário, que brilhava
em seu pedestal como um Sputnik. Na Antigüidade o
iniciado podia olhar para cima e ver a ordem triunfando
sobre o caos; aqui, no entanto, a fantasia foi levada um passo
adiante, para dentro de um domínio perigoso de excesso de
confiança onde os antigos jamais ousariam se aventurar.
Projetar uma imagem do céu noturno dentro da cúpula era a
ilusão suprema de poder, a fantasia de controle total sobre os
próprios céus.
Esta era uma sala de brinquedo de um homem culto e
erudito, refletiu Jack, de incalculável riqueza e indolência,
alguém cujo ego não conhecia limites e que sempre
procuraria dominar o mundo ao seu redor.
- Minha pequena vaidade, - disse uma voz grave e ressoante.
- Infelizmente não pude ter o original, então construí uma
cópia. Uma versão improvisada, você há de concordar.
Agora lhe será possível compreender por que me sinto tão à
vontade dentro da câmara do vulcão.
A acústica notável significava que a voz podia ter vindo de
detrás de Jack, mas de fato ela emanava de uma cadeira perto
da janela na parede distante. A cadeira girou e Aslan surgiu,
sua postura e manto vermelho eram exatamente como Jack
lembrava de ter visto antes de perder a consciência.
- Espero que tenha passado uma noite confortável. Meus
médicos cuidaram de seus ferimentos. - Ele fez um gesto em
direção a uma mesa baixa à sua frente. – Café da manhã?
Jack permaneceu onde estava e examinou a sala de novo.
Havia um segundo ocupante nela, Olga Bortsev, a assistente
de pesquisa de Katya. Ela o estava observando de um dos
nichos em frente a uma mesa coberta com livros abertos em
formato in-fólio. Jack a fitou com animosidade e ela lhe
devolveu um olhar desafiador.
- Onde está o doutor Kazantzakis? - ele perguntou.
- Ah, sim, o seu amigo Costas, - replicou Aslan com um riso
falso. - Você não precisa se preocupar. Ele está vivo, parou
de reclamar. Está nos ajudando na ilha.
Jack atravessou a sala de maneira relutante. Seu corpo
ansiava desesperadamente por alimento. Quando se
aproximou da mesa, dois garçons apareceram com bebidas e
pratos suntuosos de comida. Jack escolheu um lugar bem
afastado de Aslan e sentou-se cuidadosamente nas macias
almofadas de couro.
- Onde está Katya? - ele perguntou.
Aslan o ignorou.
- Espero que você goste de meus quadros, - ele
desconversou. - Em seu quarto estão penduradas algumas de
minhas últimas aquisições. Creio que sua família tem um
interesse especial pela arte cubista e impressionista do início
do século XX.
O avô de Jack havia sido um grande patrono de artistas
europeus, nos anos que se seguiram à Primeira Guerra
Mundial, e a galeria Howard era famosa por suas esculturas e
pinturas modernas.
- Algumas telas bonitas, - disse Jack de maneira seca. -
Picasso, Mulher com criança, 1938. Ela sumiu do Museu de
Arte Moderna de Paris no ano passado. E vejo que sua
coleção não se restringe a pinturas. - Indicou uma caixa de
vidro em um dos nichos. Dentro havia um artefato
instantaneamente reconhecível no mundo inteiro como a
Máscara de Agamenon, o maior tesouro micênio da Idade
do Bronze. Ela ficava normalmente no Museu Nacional de
Atenas, mas, assim como o Picasso, desaparecera em uma
série de roubos audaciosos na Europa durante o verão
anterior. Para Jack isto era um símbolo de nobreza que
zombava da arrogância do seu novo e grotesco guardião.
- Eu era professor de arte islâmica e é disso que gosto, - disse
Aslan. - Mas não limito minha coleção aos mil e
quatrocentos anos desde que Maomé recebeu as palavras de
Alá. A glória de Deus se reflete na arte de todos os tempos.
Ele me abençoou com o dom de constituir uma coleção que
realmente reflete Sua glória. Alá seja louvado.
- Brincar de Deus não o fará ter amigos no mundo islâmico,
- disse Jack calmamente. - Nenhum devoto verdadeiro
mantém uma coleção que imita a criação de Deus.
Aslan fazia um gesto com a mão rejeitando o que Jack
dissera, quando o seu telefone celular emitiu um trinado. Ele
o retirou de uma bolsa em sua cadeira e falou em uma língua
gutural que Jack acreditou ser o seu cazaque nativo.
A refeição sobre a mesa parecia apetitosa, e Jack aproveitou
a oportunidade para comer bastante.
- Peço desculpas. - Aslan recolocou o telefone na bolsa. - Os
negócios antes do prazer, receio. Um assunto de somenos a
respeito de um carregamento atrasado para um de nossos
clientes importantes. Você sabe como são essas coisas.
Jack ignorou o comentário.
- Acho que estou em Abkházia, - ele disse.
- Você está certo. - Aslan pressionou um botão e sua cadeira
girou em direção a um mapa do mar Negro na parede
oposta. Ele dirigiu um apontador a laser para uma região de
montanhas e de vales entre a Geórgia e o Cáucaso russo. -
Trata-se de destino. Esta costa era a residência de verão dos
Khan da Horda Dourada, o império mongol ocidental
localizado no rio Volga. Eu sou um descendente direto de
Gengis Khan e de Tamerlão, o Grande. A história, doutor
Howard, está se repetindo. Apenas não quero parar aqui. Eu
empunharei a espada onde meus ancestrais falharam.
Abkházia, ferozmente independente e tribal, era um
esconderijo feito sob medida para líderes militares e
terroristas. Outrora era uma região autônoma dentro da
República Soviética da Geórgia; o colapso da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1991 precipitou a
sangrenta guerra civil e de purificação étnica na qual
morreram milhares de pessoas. Com a irrupção do
extremismo islâmico, a guerra recomeçou, não deixando ao
governo da Geórgia outra alternativa a não ser desistir de
todas as reivindicações sobre a região. A partir de então,
Abkházia tornou-se um dos lugares mais caóticos sobre a
Terra, sua junta de governo sobreviveu com pagamentos de
salários provenientes de gângsteres e dos partidários da
guerra santa dos maometanos, que haviam chegado de todos
os cantos do mundo e transformaram os antigos recantos
soviéticos ao longo da costa em seus próprios domínios
feudais privados.
- O litoral de Abkházia situa-se a cento e cinqüenta
quilômetros ao norte do vulcão, - observou Jack de modo
sucinto. - O que você propõe fazer conosco agora?
A conduta de Aslan mudou repentinamente; seu rosto se
contorceu em um olhar de sarcasmo e suas mãos agarraram
os braços da poltrona de tal modo que suas articulações
ficaram brancas.
- Vou pedir um resgate por você. - A voz de Aslan era
ríspida, deixando transparecer sua raiva. - Vamos obter um
bom preço pela sua cabeça, daquele judeu. - Ele pronunciou
a última palavra com todo o veneno que pôde reunir, seu
ódio era um coquetel venenoso de anti-semitismo e de
inveja pelo sucesso espetacular de Efram Jacobovich como
financista e homem de negócios.
- E os outros?
- O grego irá cooperar quando eu lhe disser que você será
torturado e decapitado se não o fizer. Ele tem uma pequena
tarefa a realizar para nós. Irá nos conduzir, através do
vulcão, ao Kazbek.
- E Katya?
Uma nuvem negra passou pelo rosto de Aslan e sua voz
baixou para pouco mais do que um murmúrio.
- No mar Egeu, decidi afastar-me quando ela disse que nos
conduziria a um tesouro maior. Dei-lhe dois dias, mas ela
não nos contatou. Felizmente Olga já havia copiado os
textos antigos em Alexandria e tinha feito o seu trabalho.
Sabíamos que vocês só poderiam estar se dirigindo para cá.
- Onde está Katya? - Jack tentou manter sua voz controlada.
- Ela era uma criança adorável. - O olhar de Aslan pareceu se
suavizar durante uns instantes. - Nossas férias na casa de
campo na Rússia eram uma alegria, antes da morte da sua
mãe. Depois, Olga e eu tentamos de tudo.
Ele olhou para Olga, que, da mesa onde estavam os fólios,
sorriu-lhe de volta com um jeito insinuante. Quando Aslan
voltou-se para Jack, sua voz estava subitamente aguda e
ríspida.
- Minha filha me desonrou e também a sua fé. Não tive
controle sobre ela durante o período de sua educação
soviética, então ela escapou para o Ocidente e foi
corrompida. Ela teve o descaramento de rejeitar meu
sobrenome e adotar o de sua mãe. Vou mantê-la no Vultura
e levá-la de volta para o Cazaquistão, onde será tratada de
acordo com a lei sharia?
- Você que dizer mutilada e escravizada, - disse Jack num
tom glacial.
- Ela será purificada dos vícios da carne. Depois do rito da
circuncisão, eu a enviarei para um colégio sagrado para uma
purificação moral. Em seguida arranjarei um marido
conveniente para ela, instiallah. Se for a vontade de Deus.
Aslan fechou os olhos por alguns instantes para se acalmar.
Depois estalou os dedos e dois criados se materializaram para
ajudá-lo a se levantar. Ele alisou o manto vermelho e
colocou as mãos sobre sua pança.
- Venha. - Acenou em direção à janela. - Deixe que lhe
mostre a vista antes de descermos para tratar de negócios.
Enquanto Jack seguia a imensa figura que arrastava os pés,
seu olhar foi atraído por uma outra caixa de vidro montada
em um pedestal ao lado da janela. Com um estremecimento
de emoção ele reconheceu duas maravilhosas placas de
marfim da antiga Rota da Seda de Begram, tesouros que
pareciam ter se perdido para sempre quando o Talibã violou
o museu de Kabul, durante o seu reinado de terror no
Afeganistão. Ele parou para examinar a escultura intrincada
das placas, originárias da China, segundo século d.C, período
Han, encontradas no almoxarifado de um palácio junto com
laças da Índia, de valor inestimável, e raras obras-primas
romanas de vidro e bronze. Jack estava encantado pelo fato
de tais peças terem sobrevivido, embora entristecido por
encontrar os artefatos nesse monumento ao ego. Ele
acreditava ardorosamente que a revelação do passado
ajudava a unificar as nações por meio da celebração
compartilhada das realizações da espécie humana. As
maiores obras de arte desapareceram no buraco negro dos
armazéns subterrâneos dos bancos e das galerias particulares,
apenas uma minoria parecia disponível.
Aslan se voltou e percebeu o interesse de Jack. Ele
experimentou um prazer muito grande ao interpretar o que
via como um sentimento de inveja por parte do outro.
- Esta é minha compulsão, minha paixão, secundária apenas
à minha fé, - ele ofegou. - Espero selecionar alguns itens do
seu museu em Cartago como parte do seu resgate. E algumas
das pinturas da Galeria Howard me interessam muito.
Aslan conduziu Jack até uma janela convexa que circundava
a rotunda. Era como se estivessem olhando através da torre
de controle de um aeroporto, uma impressão aumentada
pelo complexo de pistas de pouso e decolagem que se
espalhavam pelo vale abaixo.
Jack tentou ignorar Aslan e se concentrar na paisagem. As
pistas formavam um L gigante, a pista de alcatrão leste-oeste
abaixo deles ladeava o lado sul do vale e a pista norte-sul
ficava a oeste onde, no contorno, as colinas eram baixas. Ao
lado delas um agrupamento de construções do tamanho de
armazéns assinalava o terminal. Próximo a ele havia um
heliporto, com três dos seus quatro lugares ocupados por um
Hind E, um Havoc e um Kamov Ka-50 Werewolf. O
Werewolf rivalizava com o Apache americano na agilidade
de manobra e no poder de fogo. Qualquer um deles podia
desferir um ataque devastador em um barco de patrulha ou
helicóptero de polícia suficientemente ousado para
confrontar as operações de Aslan.
O olhar de Jack foi atraído por uma série de aberturas negras
no lado distante do vale, atrás do final da pista. Eram abrigos
de aeronaves, escavados bem fundo nas rampas rochosas.
Para seu espanto percebeu que duas formas cinzentas à sua
frente eram aeronaves Harrier, que podem decolar e
aterrissar verticalmente, seus narizes aparecendo sob
coberturas de camuflagem que os tornavam invisíveis a uma
vigilância por satélite.
- Você pode ver que os meus equipamentos bélicos não se
limitam ao antigo arsenal soviético, - sorriu Aslan. -
Recentemente o seu governo, de maneira insensata,
desbaratou a força Harrier da Marinha Real. Oficialmente
foram descartados como sucata, mas um antigo ministro,
interessado no comércio de armas, provou que eles serviam
para ser comercializados. Por sorte não tenho falta de
pessoal treinado. Olga era um piloto reserva na Força Aérea
Soviética e recentemente realizou o seu primeiro vôo
experimental.
Com desânimo crescente, Jack seguiu o olhar de Aslan
quando este pressionou um botão na balaustrada e as
estantes de livros se recolheram para revelar o litoral. As
cordilheiras que limitavam os vales se estendiam para formar
um amplo ancoradouro natural. O espigão mais próximo
deles se localizava ao lado de um sólido cais de concreto que
se dobrava em ângulo em direção ao norte para esconder a
baía das embarcações que passavam.
O último navio de Aslan era um Project 1154 russo, classe
Neustrashimy, uma fragata tão resistente quanto o Vultura,
mas que se deslocava três vezes mais rápido. Ela estava nos
estágios finais de aparelhamento, com armas e unidades de
comunicações sendo içadas a bordo por guindastes da zona
portuária. Uma distante chuva de faíscas elétricas mostrava
soldadores trabalhando duro no extenso heliporto e na
plataforma das aeronaves que podem decolar e aterrissar
verticalmente.
Jack pensou de novo no Seaquest. Depois de seguir a
tempestade, retornando do sul, ele deve ter parado de se
deslocar quando estava acima da Atlântida, e então foi
abatido. Não ousava mencioná-lo, achando que talvez
pudesse ter escapado, mas parecia inconcebível que o navio
não tivesse sido localizado assim que entrara dentro do
alcance do radar do Vultura. Jack lembrou da distante troca
de tiros que haviam escutado quando estavam na câmara
mortuária. Ele começava a temer o pior.
- Estamos quase prontos para nossa viagem de estréia. Você
será meu convidado de honra na cerimônia de delegação de
autoridade. - Aslan fez uma pausa, seus dedos entrelaçados
sobre a barriga e o rosto demonstrando um contentamento
voraz. - Com meus dois navios eu serei capaz de percorrer
os altos mares à vontade. Nada oferecerá resistência em meu
caminho.
Quando Jack deu uma olhada final para aquela cena,
começou a perceber, gradualmente, a magnitude
impressionante do poder de Aslan. Onde o vale se estreitava
ao leste havia alvos para tiros e estruturas que se pareciam
com manequins em tamanho natural para treinamento de
combate urbano. Entre o terminal e o mar via-se um outro
centro circular, este aparelhado com antenas parabólicas de
satélite e sistemas de antenas. Ao longo da cordilheira
existiam estações de vigilância camufladas, e na praia
acumulavam-se armas, colocadas entre as palmeiras e os
eucaliptos, que eram sobras do arsenal do Partido Comunista
que outrora ocupara o vale.
- Você verá agora que é inútil tentar escapar. Para o leste há
as montanhas do Cáucaso, para o norte e para o sul o
território é infestado de bandidos, onde nenhum ocidental
poderia sobreviver. Eu espero que você, em vez disso,
aprecie minha hospitalidade. Anseio por ter uma companhia
com quem possa conversar sobre arte e arqueologia.
Aslan parecia repentinamente muito eufórico, os braços
levantados e o rosto embevecido.
- Este é o meu Kehlsteinhaus, meu Ninho de Águia, - ele
discursou. - É o meu templo sagrado e minha fortaleza.
Você há de concordar que esta vista é tão bonita quanto a
dos Alpes da Bavária, não é?
Jack replicou calmamente, com os olhos ainda fixados no
vale abaixo.
- Durante o que você chama de Grande Guerra Patriótica,
meu pai era um piloto, explorador de rotas, da Força Aérea
Real, - disse ele. - Em 1945 ele teve o privilégio de conduzir
a invasão de Obersalzberg em Berchtesgaden. Nem a casa de
campo do Führer nem o quartel-general da SS provaram ser
tão invulneráveis quanto o seu criador imaginara. - Jack
voltou-se e olhou sem vacilar dentro dos olhos negros de
Aslan. - E a história, como o senhor diz, professor
Nazarbetov, tem o hábito desagradável de repetir a si
mesma.

24

Quase não havia sensação de velocidade enquanto o ônibus
acelerava por uma das passagens tubiformes, a bolsa de ar
abaixo fazia com que ele se locomovesse como um
aerodeslizador. Jack e Aslan estavam sentados em assentos
opostos, a corpulência do segundo ocupava toda a largura do
compartimento. Jack supunha que eles estavam descendo
para o vale e se aproximavam agora da parte central que ele
havia visto da sala do Panteão.
Alguns momentos antes haviam parado para apanhar um
outro passageiro, que agora permanecia imóvel entre eles.
Tratava-se de um homem enorme como um urso, vestindo
uma roupa preta justa, com a testa inclinada, nariz achatado
e, debaixo de sobrancelhas pronunciadas, olhos como os de
um porco que fitavam a paisagem lá fora sem expressão
alguma.
- Deixe-me lhe apresentar seu guarda-costas, - disse Aslan
de bom humor. - Vladimir Yurevich Dalmotov. Um antigo
comandante das forças russas de elite, um veterano da
guerra do Afeganistão, que desertou para as tropas de
libertação da Tchetchênia depois que seu irmão foi
executado por estrangular o oficial que enviou seu pelotão
para a morte em Grosny. Depois da Tchetchênia ele se
engajou para lutar com os santos guerreiros da Al Qaeda pela
libertação da Abkházia. Eu o encontrei seguindo os rastros
de cadáveres. Ele não acredita em Deus, no entanto Alá
perdoa.
Quando o ônibus chegou a uma parada, a porta se abriu
deslizando, e dois criados entraram para ajudar Aslan. Jack
estivera esperando o momento propício para agir desde que
soubera que Costas e Katya ainda estavam na ilha. Quando
Dalmotov apressou-o para sair, Jack notou que ele tinha uma
Uzi pendurada nas costas, mas que não usava proteção para
o corpo.
O local onde entraram contrastava completamente com o
esplendor relaxante da habitação que deixaram havia pouco.
Era um hangar gigantesco, e suas portas se retraíram para
revelar o heliporto que Jack havia visto antes. Na pista de
asfalto encontrava-se a forma volumosa do Hind; uma
equipe de manutenção agitava-se ao redor dele e um
homem preparado para abastecê-lo com combustível
esperava ali perto.
- O Hind nos transportou da ilha ontem à noite, - disse
Aslan. - Agora está prestes a preencher os propósitos para os
quais foi construído.
A vista fora do hangar estava parcialmente obscurecida por
um caminhão-plataforma estacionado bem diante da porta.
Enquanto eles observavam, uma equipe de homens
começou a pôr engradados para fora e a empilhá-los contra a
parede ao lado de uma prateleira de trajes de vôo.
Dalmotov murmurou algo para Aslan e avançou aos saltos.
Ele pegou um dos engradados e ergueu-o, abriu-o apenas
com as mãos, retirando e conectando os componentes
contidos ali. Mesmo antes que ele o levantasse para testar a
pontaria, Jack havia identificado o Barrett M82A1,
provavelmente o rifle de franco-atirador mais letal do
mundo. Ele fora dimensionado para a bala calibre 50 da
metralhadora Browning BMG ou para a equivalente russa,
12,7 milímetros, atirando em alta velocidade uma bala que
podia penetrar em um tanque blindado a quinhentos metros
ou arrancar a cabeça de um homem a mil e quinhentos
metros.
- Minha modesta contribuição à guerra santa dos
muçulmanos. - Aslan sorriu abertamente. - Você deve ter
notado nossa escola de treinamento de franco-atiradores
atrás da pista de decolagem e aterrissagem. Dalmotov é o
nosso principal instrutor, incluem-se entre nossos clientes a
Nova Brigada da Armada Republicana Irlandesa e a Al
Qaeda, e eles nunca ficaram menos do que plenamente
satisfeitos.
Jack lembrou o grande número de ataques de franco-
atiradores de elevado perfil no início daquele ano, uma fase
nova e devastadora na guerra terrorista contra o Ocidente.
Enquanto Dalmotov supervisionava a montagem das armas,
Jack seguia Aslan até o armazém do lado oposto do hangar.
Em seu interior, engradados estavam sendo fechados a
marteladas e o controle era feito por homens com jalecos de
manutenção. Quando uma empilhadeira passou, Jack viu a
palavra escrita na lateral em letras vermelhas. Uma das
primeiras atribuições de Jack quando estava na inteligência
militar havia sido interceptar um cargueiro da Líbia que
transportava engradados idênticos àqueles. Eram de Semtex,
o explosivo plástico mortal da República Tcheca usado pelo
IRA em sua campanha de terror na Grã-Bretanha.
- Este é o nosso principal meio de transporte, - explicou
Aslan. - Normalmente a baía está fechada para armas
químicas e biológicas, mas eu acabei de despachar nosso
último lote transportando-o de helicóptero para um outro
cliente satisfeito, no Oriente Médio. - Aslan fez uma pausa,
as mãos entrelaçadas sobre a barriga com os polegares gordos
girando lentamente. Seus olhos estavam estreitados e ele
fitava a meia distância.
Jack estava começando a reconhecer os sinais de
advertência do temperamento volúvel de Aslan.
- Eu tenho um cliente infeliz, alguém cuja paciência tem
sido extremamente posta à prova desde 1991. Quando
seguimos o rastro do Seaquest a partir de Trabzon, sabíamos
que ele só poderia ter um destino, o lugar que Olga
identificou com precisão, baseada em seu estudo do antigo
texto. Nós nos dirigimos até o vulcão protegidos pela
escuridão da noite. Você me proporcionou a proteção
perfeita para ir até o local onde os políticos me negaram
acesso durante anos. No passado, qualquer visita a essa ilha
teria provocado uma resposta militar imediata. Agora, se o
satélite detecta qualquer atividade, ele supõe que se trata de
você e de um projeto científico legítimo. Este deveria ter
sido o nosso ponto de encontro com os russos, se aquele
idiota do Antonov não tivesse afundado seu submarino e
minha mercadoria por causa de sua incompetência.
- O capitão Antonov teria entregado seu carregamento, -
replicou Jack tristemente. - Houve uma amotinação
conduzida pelo comandante político. Esta foi
provavelmente a única coisa boa que a KGB já fez.
- E as ogivas nucleares? - Aslan interrompeu bruscamente.
- Só vimos armas convencionais - mentiu Jack.
- Então, por que minha filha ameaçou com uma destruição
nuclear quando negociou com meus homens?
Jack ficou em silêncio durante alguns momentos. Katya não
havia revelado este detalhe de sua conversa na sala de
controle do submarino.
- Meus homens vão impedir a sua entrada - disse Jack
calmamente. - Os seus amigos fundamentalistas não são os
únicos dispostos a morrer por uma causa.
- Eles podem decidir de outra maneira depois de ouvirem
sobre o destino que o espera, bem como o do grego, se não
capitularem. - Aslan sorriu já sem humor, sua serenidade
retornando brevemente. - Acho que você vai achar nossa
próxima parada muito interessante.
Eles deixaram o hangar por um corredor diferente. Estavam
se dirigindo para a parte central, que ficava um quilômetro
mais próxima do mar. Depois de uma caminhada de cinco
minutos, pegaram uma escada rolante que os conduziu até
uma porta de elevador. Ali, um criado acionou uma chave e
os levou até o nível mais alto.
A cena parecia saída de um lançamento espacial da NASA.
A sala tinha o mesmo tamanho que o Panteão, mas estava
ocupada com um grande número de computadores e
equipamento de vigilância. Quando saíram do elevador, Jack
constatou que tinham entrado em um cilindro giratório que
se elevava no centro como uma coluna truncada. Era como
a arena de um anfiteatro moderno, rodeada por fileiras
concêntricas de estações de trabalho que ficavam na frente
deles em séries contínuas de cor. Na parede de trás, telas
gigantes mostravam mapas e imagens televisuais. O conjunto
todo se parecia com o módulo de controle do Seaquest, mas
em uma escala muito maior, com monitores e equipamentos
de comunicação suficientes para controlar uma pequena
guerra.
Dois assistentes ajudaram Aslan a se instalar em uma cadeira
de rodas eletrônica. As fileiras de figuras indefinidas,
curvadas atrás dos monitores, pareciam mal ter se dado
conta da chegada deles.
- Prefiro a excitação do Vultura. Poder-se-ia dizer que lá há
mais participação ativa. - Aslan se acomodou em sua cadeira.
- Mas aqui posso controlar todas as minhas operações
simultaneamente. Da cadeira de comando consigo ver
qualquer tela na sala sem sair do lugar.
Um criado, que estivera esperando a um canto com o
semblante apreensivo, inclinou-se e sussurrou urgentemente
algo em seu ouvido. O rosto de Aslan permaneceu
impassível, mas seus dedos começaram a bater nos braços da
cadeira. Sem dizer uma palavra ele pressionou um botão em
sua cadeira de rodas e se dirigiu para um console onde um
grupo de homens estava reunido. Jack o seguiu com
Dalmotov ao seu lado. Quando se aproximaram do console,
Jack observou que as telas imediatamente à direita eram
monitores de segurança similares aos usados no museu de
Cartago, os quais mostravam vistas interiores do edifício.
Os homens se afastaram em silêncio para permitir que Aslan
tivesse acesso à tela. Jack se movimentou até ficar bem atrás
da cadeira de rodas e do operador que estava trabalhando no
teclado do console. Dalmotov ficou ao seu lado.
- Nós finalmente fizemos a conexão, - disse o operador em
inglês. - O SATSURV* deve entrar em ligação direta agora.
O homem tinha uma aparência asiática, mas usava jeans e
uma camiseta branca no lugar da roupa preta que parecia ser
o padrão no local. Pelo seu sotaque, Jack adivinhou que ele
havia sido educado na Grã-Bretanha.
O operador olhou primeiro para Jack e depois de maneira
interrogativa para Aslan. O homem imenso acenou
concordando com indulgência, um gesto não de indiferença,
mas de suprema confiança de que seu convidado nunca
estaria em condições de divulgar nada que visse ou ouvisse.
Um mosaico de pontos luminosos converteu-se em uma
vista do mar Negro, o canto sudeste ainda parcialmente
obscurecido por nuvens da tempestade. A formação de
imagem térmica transformou a cena em um espectro de
cores, a linha da costa emergiu nitidamente quando o
satélite pegou uma radiação infravermelha de debaixo da
base da nuvem. Ele repetiu o processo até que a tela ficou
dominada pela ilha; no centro havia uma auréola mutável de
cor-de-rosa e amarelos, onde o núcleo estava emitindo uma
forte radiação de calor.
Bem próximo, no mar, havia um objeto colorido que
indicava uma superfície de navio. O operador ampliou
bastante até ele encher a tela toda; a imagem estava agora
em alta resolução. A embarcação encontrava-se inerte na
água, o casco adernado a bombordo com a proa submersa e
sua hélice a estibordo dependurada acima dos restos
esmagados do leme.
Para seu horror Jack reconheceu o Seaquest, suas linhas
ainda claras apesar dos danos pavorosos. A radiação de calor
mostrava onde os projéteis de alta potência haviam
penetrado no casco e deixado rombos, como a passagem de
balas de alta velocidade através de um corpo humano. Jack
se sentiu tomado de raiva enquanto avaliava a destruição. Ele
girou a cadeira de rodas e confrontou Aslan.
- Onde está o meu pessoal? - perguntou.
- O calor não mostra nenhuma presença humana, - replicou
Aslan calmamente. - Dois de seus tripulantes foram loucos o
bastante para envolver o Vultura em uma batalha de
canhões ontem de manhã. Uma espécie de batalha unilateral
como você pode imaginar. Logo enviaremos o Hind para
apossar-se dos destroços.
Na coberta da proa despedaçada Jack podia ver a torre
rotatória elevada e preparada para entrar em combate. Os
canos de canhão estavam em um ângulo incomum,
evidentemente o resultado de um choque direto. Jack sabia
que York e Howe não teriam abandonado o Seaquest sem
luta. Rezou silenciosamente para que ambos tivessem
conseguido escapar mais tarde, com o resto da tripulação, no
submersível.
- Eles eram marinheiros e cientistas, não fanáticos e
assassinos, - disse Jack friamente.
Aslan encolheu os ombros e voltou-se para a tela.
De pronto a tela se transformou para mostrar um outro
navio, este bem próximo da ilha. Um grupo de figuras podia
ser visto desmantelando dois largos canos que mostravam
padrões irregulares de radiação térmica como se eles
estivessem em fogo. Justamente quando Jack percebeu que
estava olhando para os danos causados ao Vultura durante a
batalha, Aslan estalou os dedos e uma mão agarrou o ombro
de Jack como se fosse um torno.
- Por que não me disseram? - Gritou Aslan com raiva. - Por
que isto foi mantido escondido de mim?
A sala ficou silenciosa e ele apontou para Jack.
- Ele não vale um resgate. Será liquidado como sua
tripulação. Tirem-no da minha frente!
Antes de ser empurrado para fora, Jack fez uma rápida
anotação mental das coordenadas do GPS na telas do
SATSURV. Quando Dalmotov o puxou, ele fingiu tropeçar
nos monitores de segurança. Antes ele havia reconhecido a
passagem de acesso e a entrada do hangar nas duas telas mais
próximas. Quando tropeçou no painel de controle,
pressionou a tecla de pausa. Outras câmeras CCTV iriam
mapear o trajeto deles, mas, com todos os olhares voltados
para a imagem do Vultura, poderia haver uma chance de
passarem despercebidos.
Desde que havia acordado naquela manhã, Jack se sentia
determinado a agir. Ele sabia que o humor de Aslan era
inconstante, que a raiva da sua última explosão se
converteria de novo em aparente hospitalidade, mas Jack
havia decidido não brincar mais com os caprichos de um
megalomaníaco. A imagem chocante do Seaquest e o
destino incerto de sua tripulação haviam fortalecido sua
resolução. Ele devia isto àqueles que tinham pago o preço
máximo. E sabia que o destino de Costas e de Katya estavam
em suas mãos.
Sua oportunidade apareceu quando o ônibus estava
transportando-os rapidamente do centro de controle para o
hangar. Logo depois da metade do caminho, Dalmotov deu
um passo à frente para observar o cais na baía, quando ela se
tornou visível. Foi um lapso momentâneo na vigilância, um
erro que ele nunca teria cometido se seus instintos não
tivessem ficado entorpecidos por estar demasiado tempo no
covil de Aslan. Com extrema rapidez, Jack puxou para trás o
punho esquerdo e bateu com toda a força nas costas de
Dalmotov, um impacto violento que desequilibrou Jack e
deixou-o massageando a mão, cheio de dor.
Foi um soco que teria matado qualquer homem comum.
Jack tinha colocado toda a sua força para atingir um ponto
logo abaixo da caixa torácica, onde o choque de um impacto
pode fazer parar o coração e o diafragma simultaneamente.
Ele olhou sem acreditar quando Dalmotov permaneceu
parado, seu imenso físico aparentemente intocado. Em
seguida ele murmurou algo ininteligível e caiu de joelhos.
Continuou aprumado por alguns instantes, suas pernas se
mexendo debilmente, depois caiu para frente e ficou imóvel.
Jack puxou a forma inativa para longe de qualquer câmera de
vigilância.
O cais parecia vazio e as únicas figuras que Jack podia ver
estavam no heliporto fora da entrada do hangar. Quando o
ônibus parou, ele saiu e pressionou o botão de retorno,
enviando-o juntamente com o ocupante inconsciente de
volta para o centro de controle. Ele estava obtendo um
tempo precioso e sabia que cada segundo devia contar.
Sem hesitar, Jack caminhou ousadamente para a entrada do
heliporto, rezando para que o seu modo de andar confiante
tranqüilizasse as suspeitas. Alcançou a prateleira onde
estavam os trajes de vôo, selecionou o maior e vestiu-o.
Ajustou o colete salva-vidas e vestiu um capacete, abaixando
o visor de modo que lhe escondesse o rosto.
Jack agarrou uma maleta de equipamentos e pegou um dos
rifles Barrett de franco-atirador. Ele havia observado
Dalmotov montar a arma e rapidamente encontrou a trava.
Retirou o pente da arma e guardou tudo na maleta.
Empilhadas ao lado, havia caixas de papelão com a etiqueta
BMG, a bala de calibre 50 da metralhadora Browning. Jack
pegou um punhado de cartuchos 14 milímetros e os enfiou
na maleta ao lado da arma.
Depois de fechar a maleta, Jack continuou resolutamente em
direção à entrada do hangar. Chegando lá, ele se agachou
para observar a cena enquanto fingia ajustar uma correia no
tornozelo. O asfalto estava quente ao toque, o sol de verão
havia evaporado a água da chuva da noite anterior. Na luz
forte e ofuscante, as construções do complexo pareciam
chamuscadas e sobrecarregadas com o calor, como as colinas
ao redor.
Jack já havia decidido qual helicóptero usar. O Werewolf era
o mais sofisticado, mas estava estacionado junto ao Havoc,
na outra extremidade do heliporto. O Hind se encontrava
apenas vinte metros à frente e estava sendo preparado para
um vôo. Ele havia sido um burro de carga da máquina de
guerra russa e com sua cabine de piloto de dois assentos
espaçados parecia confiável.
Jack apertou o passo e foi até o tripulante-chefe, que estava
abastecendo uma fita de metralhadora dentro do
compartimento de munição.
- Novas ordens prioritárias, - anunciou Jack em voz alta. - O
cronograma foi adiantado. Devo partir agora.
O seu russo era rústico e com sotaque acentuado, mas Jack
esperava que passasse despercebido em um lugar onde
muitos eram originários do Cazaquistão e de Abkházia.
O homem pareceu surpreso, mas não excessivamente
espantado.
- As armas perfurantes ainda não foram colocadas e você só
tem quatrocentas balas de 12,7 milímetros, mas fora isto
estamos prontos para partir. Pode subir e iniciar as
verificações prévias do vôo.
Jack atirou a maleta para dentro do helicóptero e subiu pela
porta de estibordo. Içou-se para dentro da cabine do piloto e
começou a fazer funcionar os instrumentos. Ele teve o
cuidado de esconder a maleta. Os controles não pareciam
oferecer problemas, a configuração geral diferia pouco de
outros helicópteros militares em que voara.
Quando colocou o cinto de segurança, Jack olhou para fora.
Através do Plexiglas protuberante da nacela do artilheiro,
podia ver um grupo de montadores transportando dois
vagonetes sobre rodas, cada um deles carregado com tubos
lançadores para o míssil radioguiado antiblindagem Spiral. O
Hind estava sendo abastecido para o ataque final ao
Seaquest. No mesmo instante Jack percebeu vindo da
entrada do hangar, dois homens em trajes de vôo,
evidentemente o piloto e o atirador do Hind, que se
aproximavam dele. No instante em que viu o chefe da
manutenção pegar o seu celular e olhar alarmado em sua
direção, Jack soube que seu disfarce havia sido descoberto.
O rotor gigante de cinco pás já estava girando, os dois
motores turboshafts Isotov TV3-117 de 2200 cavalos de
potência já estavam aquecidos como parte da rotina prévia
do vôo. Jack examinou os mostradores e viu que o tanque
estava cheio e que as pressões hidráulicas e do óleo estavam
corretas. Ele rezou fervorosamente para que as defesas
antiaéreas de Aslan ainda não tivessem sido instruídas para
atirar em uma de suas próprias aeronaves. Agarrou as duas
alavancas de controle; a mão esquerda puxava com força o
manche e virava o regulador de pressão, e a direita
empurrava o manche cíclico tão para a frente quanto
possível.
Em alguns segundos a batida do rotor elevou-se num
crescendo e o Hind levantou-se no ar com o nariz inclinado
para baixo. Durante alguns momentos de intensa agonia, não
houve movimento enquanto o helicóptero se esforçava e
lutava contra a força da gravidade; seus esforços produziam
o som de um rufar de tambor em uma cacofonia
ensurdecedora que reverberava nos edifícios ao redor do
heliporto. Quando Jack habilmente aliviou os pedais para
impedir que o helicóptero virasse para os lados, ele percebeu
um homem, grande como um urso, correndo para fora do
hangar e empurrando para o lado os dois pilotos estupefatos.
Dalmotov nem se utilizou de seu Uzi, sabendo que as balas
de 9 milímetros não causariam dano à chapa blindada do
helicóptero. Em vez disso ele usou uma arma, muito mais
letal, que apanhara enquanto corria pelo hangar.
A primeira bala da metralhadora BMG, calibre 50,
despedaçou a parte da frente da nacela do artilheiro, uma
posição que Jack teria ocupado se soubesse que a aeronave
tinha duplo controle. Quando o helicóptero subitamente
deu um pulo para frente, uma segunda bala o atingiu em
algum lugar atrás, um impacto que fez a máquina vibrar e a
fuselagem oscilar para o lado, o que forçou Jack a compensar
com um impulso extra do rotor de cauda.
Enquanto Jack lutava com os controles, o helicóptero
ergueu-se acima do hangar e moveu-se com crescente
velocidade em direção ao dique situado ao sul. À sua
esquerda ele podia ver o complexo futurista do palácio de
Aslan e, à direita, as linhas suaves da fragata. Momentos
depois Jack cruzou o perímetro e encontrou-se em mar
aberto, o trem de aterrissagem deslizando sobre as ondas
porque ele se mantinha em baixa altura para reduzir as
chances de ser detectado por um radar. Com o regulador de
pressão no máximo e o manche cíclico impelido para a
frente, ele logo alcançou, voando ao nível do mar, a
velocidade máxima de 335 quilômetros por hora, um
número que ele seria capaz de aumentar ligeiramente depois
que descobrisse como recolher o trem de aterrissagem. O
litoral agora estava recuando rapidamente para o leste, e à
frente havia apenas o céu matinal sem nuvens se fundindo
em um nevoeiro azul cinzento no horizonte.
Depois de quinze milhas náuticas, Jack pressionou o pedal
que controlava o rotor de cauda e empurrou o manche
cíclico para a esquerda, girando suavemente o helicóptero
até que a bússola mostrasse 180 graus em direção ao sul. Ele
já havia feito funcionar o radar e o GPS e agora estava
programando as coordenadas para a ilha que ele havia
memorizado no Seaquest três dias antes. O computador
calculava a distância que faltava em apenas cento e
cinqüenta quilômetros, um tempo de vôo de meia hora com
a velocidade atual. Apesar do consumo alto de combustível,
Jack havia decidido manter uma altitude baixa e o regulador
de pressão no máximo, e os tanques de combustível
proporcionavam ampla margem para percorrer esta
distância.
Jack ativou o piloto automático e levantou o visor de seu
capacete. Sem nem mesmo fazer uma pausa, levantou a
maleta e começou a armar o rifle. Ele sabia que não podia se
permitir baixar a guarda nem por um instante. Aslan iria
fazer tudo que estivesse ao seu alcance para capturá-lo.

25

- Pare o helicóptero e aguarde uma escolta. Execute esta
ordem imediatamente ou será destruído. Você não receberá
um novo aviso.
Jack tinha ouvido esta voz apenas uma vez antes,
amaldiçoando com voz gutural em russo, mas não havia
engano: era o modo de falar arrastado de Dalmotov que se
fazia ouvir pelo intercomunicador. Jack havia mantido o
rádio bidirecional durante o vôo e estava esperando que o
contato fosse estabelecido assim que seus perseguidores
entrassem dentro do alcance do rádio. Durante os últimos
dez minutos ele estivera monitorando a tela do radar
enquanto dois pontos vermelhos convergiam em sua direção
vindos do norte, a velocidade e a trajetória deles não
deixando dúvidas de que eram o Havoc e o Werewolf da
base de Aslan.
Jack estava a apenas dez milhas náuticas ao norte da ilha, a
menos de cinco minutos de vôo. Havia sacrificado a
velocidade máxima para poder manter uma altitude baixa,
acima das ondas, de modo a não ser detectado pelo radar,
um jogo que quase teve sucesso. Apesar do seu tempo de
existência, o Hind era muito mais rápido e mais poderoso do
que os outros dois helicópteros, mas eles haviam sido
favorecidos por voarem a uma altitude mais alta, onde havia
menos resistência do ar.
Além de um canhão fixo de trinta milímetros de alta
velocidade, e de dois carregadores circulares com vinte
foguetes de oitenta milímetros, o Havoc e o Werewolf
carregavam, cada um, uma combinação letal de mísseis, ar-
ar e ar-navio, guiados a laser, armas que Jack havia visto no
armazém de carga. Em contraste, os carregadores dos
projéteis perfurantes nas aletas do Hind estavam vazios, o
único poder de fogo vinha da metralhadora-padrão de
quatro canos, 12,7 milímetros, na torreta giratória. Tratava-
se de uma arma potencialmente devastadora, que matara em
grande escala nas guerras do Afeganistão e da Tchetchênia,
mas, na ausência de um atirador, Jack podia operá-la apenas
em uma trajetória fixa e com visibilidade livre. Com uma
velocidade de 1200 balas por minuto, por cano, os quatro
carregadores de cem projéteis demorariam apenas cinco
segundos para serem descarregados, o que era suficiente para
causar uma destruição colossal a pequena distância, mas
insuficiente para fazer frente aos dois formidáveis
adversários.
Jack sabia que infelizmente as vantagens estavam contra ele
em um embate formal. Sua única chance seria um combate a
curta distância do tipo mais brutal possível.
- Ok, Dalmotov, desta vez você venceu, - Jack resmungou
carrancudo, para si mesmo, enquanto puxava para trás o
manche e girava o helicóptero diretamente em direção ao
inimigo. - Mas não pense que vai voltar a ver sua casa de
novo.
Os três helicópteros pairavam alinhados, trinta metros acima
das ondas, enquanto o vento das hélices levantava
redemoinhos de espuma. No centro, o Hind parecia muito
volumoso, uma vez que os outros dois helicópteros haviam
sido projetados com maior poder de manobra em situações
de combate e baixa visibilidade. À direita de Jack, o Havoc
Mi-28 lembrava um chacal faminto com sua cabine baixa e o
focinho protuberante. À sua esquerda, o Werewolf Ka-50
padrão, com seus dois rotores coaxiais que, embora
aumentassem sua potência, reduziam sua estrutura ao
tamanho de um inseto.
Através do vidro blindado da cabine do Werewolf, Jack
pôde distinguir o olhar enfurecido de Dalmotov.
Ele deu instruções a Jack para permanecer cinqüenta metros
adiante de sua escolta. O ruído dos rotores aumentou até um
estrondo ensurdecedor quando as três máquinas seguiram
em frente e começaram a voar em formação fechada para
noroeste.
Cumprindo ordens, Jack desligou o rádio bidirecional que
teria permitido chamar ajuda externa. Depois de ativar o
piloto automático, ele recostou-se e colocou a Barrett no
colo, fora do alcance de visão de seus inimigos.
Completamente montada, ela tinha quase um metro e meio
de comprimento e pesava catorze quilos. Ele havia sido
obrigado a remover o carregador circular de dez balas para
manter o cano escondido debaixo da capota do motor. Com
a mão direita, Jack checou o carregador que havia munido
com um poderoso projétil BMG, calibre 50. Sua chance de
se sair bem estava se reduzindo a cada quilômetro e ele sabia
que devia agir rapidamente.
A oportunidade surgiu antes do que ele esperava. Depois de
cinco minutos se depararam com uma repentina corrente
ascendente quente, efeito residual da tempestade da noite
anterior. Os helicópteros pularam e pinotearam como numa
montanha russa que parecia ondular do Hind para os outros
dois. No espaço de tempo de um segundo que as aeronaves
inimigas levaram para ajustar seus controles, Jack decidiu
agir. Quando um outro solavanco de turbulência os atingiu,
ele puxou o manche para trás e pisou forte no acelerador.
Apesar da diminuição na potência do motor, a corrente
ascendente era suficiente para fazê-lo subir com as lâminas
do rotor acionadas ao máximo. O Hind deu um salto de
vinte metros acima de seu curso original e começou a
descer. Os outros dois passaram por baixo dele como em
câmara lenta, suas lâminas quase roçando a barriga do Hind.
De repente, Jack estava atrás deles. Fora uma manobra
clássica da Primeira Guerra Mundial que havia sido utilizada,
com efeito devastador, pelos Harriers britânicos contra os
mais rápidos Mirages argentinos durante o conflito das
Malvinas.
Com a boca da arma de fogo apoiada na janela da esquerda,
Jack decidiu utilizar todo o poder de fogo do Hind contra o
helicóptero da direita. Ele girou o manche ao máximo e
inclinou-se lateralmente até que o Havoc estivesse à vista. A
manobra inteira tinha levado menos de cinco segundos, um
tempo mal suficiente para os outros registrarem a sua
ausência e curto demais para tentarem realizar qualquer
manobra evasiva.
Assim que o Hind alcançou uma posição cinqüenta metros
atrás, Jack abriu a trave de segurança e apertou o botão
vermelho de fogo. As quatro armas da torreta giratória
dispararam uma imensa onda ruidosa, um martelar
cadenciado que atirou Jack para frente com o coice. Cada
cano lançava vinte projéteis por segundo, as cápsulas eram
ejetadas num amplo arco de cada lado. Durante cinco
segundos chispas de fogo saíram de debaixo do nariz do
helicóptero e uma chuva destruidora de fogo avançou para o
seu oponente.
A princípio o Havoc pareceu absorver os tiros como se eles
tivessem atravessado a parte posterior da fuselagem. Então,
um buraco escancarado apareceu repentinamente da parte
anterior à posterior, quando as balas estilhaçaram tudo em
seu caminho, e a cabine e seus ocupantes desintegraram-se
numa explosão. Quando o Hind inclinou-se para cima, a
última rajada de balas atingiu a turbina do Havoc e soltou o
rotor, que se desprendeu como um bumerangue
descontrolado. Segundos depois a fuselagem explodiu em
uma gigantesca bola de fogo produzida por combustível e
munição explosiva.
Jack puxou fortemente o manche e passou por cima do
helicóptero destruído. Ele nivelou sua trajetória com a do
Werewolf, a forma sinistra trinta metros à sua esquerda e
ligeiramente à frente. Jack podia ver o piloto lutando com os
controles quando a pequena estrutura foi atingida pelo calor
e pela onda de choque da explosão. Dalmotov parecia
paralisado pelo espanto, incapaz de aceitar o que havia
acontecido, mas Jack sabia que isto duraria pouco; ele tinha
apenas alguns segundos antes de perder a sua vantagem.
Jack apontou a Barrett para fora da janela e atirou. A bala
partiu com um poderoso estrondo, o barulho reverberando
dentro de seu fone de ouvido. Ele praguejou enquanto via as
faíscas saindo da fuselagem superior do Werewolf e
rapidamente colocou uma outra bala. Desta vez apontou
para a direita, a fim de compensar os duzentos quilômetros
por hora de velocidade de vôo. Ele atirou bem no instante
em que Dalmotov colocou a cabeça redonda para fora, de
modo a olhar para Jack.
Como muitos helicópteros de defesa, o Werewolf estava
bem protegido contra ataques terrestres, a blindagem ao
redor da cabine era projetada para resistir a tiros de canhão
de até vinte milímetros. Sua vulnerabilidade jazia na
fuselagem superior e na região do motor, áreas menos
suscetíveis a fogo terrestre, onde placas defensivas haviam
sido sacrificadas para permitir que a proteção máxima fosse
concentrada ao redor do compartimento dos tripulantes. O
aerofólio do rotor antibinário constituía tanto sua força
quanto sua fraqueza, produzindo um equipamento muito
ágil, mas requerendo um eixo protuberante acima da
fuselagem para acomodar as duas cabeças dos rotores co-
axiais de três lâminas.
O segundo tiro acertou logo abaixo do rotor inferior,
atingindo o motor e afetando seriamente os controles. Por
um instante nada aconteceu e o helicóptero continuou em
frente com o nariz abaixado. Então ele começou a vibrar
violentamente e levantou a traseira em um ângulo anormal.
Jack pôde ver Dalmotov movendo freneticamente os
controles. Mesmo à distância ele pôde perceber que os
rotores não mais respondiam aos pedais. Dalmotov
conseguiu então alcançar uma alavanca vermelha que estava
acima de sua cabeça.
Entre os helicópteros de combate, o Werewolf era o único
dotado de uma cadeira de piloto ejetável. O problema com a
ejeção no helicóptero sempre fora o rotor acima da cabine,
mas Kamov havia desenvolvido um sistema engenhoso
através do qual as lâminas eram descartadas e a cadeira do
piloto era atirada para cima até uma altitude de segurança
para a abertura do pára-quedas.
No instante em que puxou a alavanca, Dalmotov deve ter
percebido que algo estava terrivelmente errado. Em vez de
serem ejetadas, as lâminas do rotor permaneceram presas
enquanto as cargas explosivas ao redor da cabine detonavam
em rápida sucessão. A capota foi atirada no rotor e lançada
para o espaço, deixando as lâminas torcidas mas
funcionando. Instantes depois o assento foi ejetado em uma
nuvem de fumaça. Por um terrível azar, Dalmotov ficou
preso entre os dois conjuntos de lâminas e foi torcido
violentamente como numa roda Catarina* jorrando fogo.
Depois de duas revoluções completas, cada parte
protuberante do corpo de Dalmotov havia sido fatiada, e sua
cabeça vestida com capacete fora arremessada como uma
bola de futebol. Após um último giro, os rotores atiraram
fora o que havia sobrado de sua carga macabra e ela
desapareceu debaixo de uma coluna de líquido pulverizado.
Jack olhou impassivelmente enquanto o Werewolf
executava uma dança maluca, em círculos cada vez
menores, as lâminas se rompendo uma a uma sob a
crescente pressão do ar até que a fuselagem caiu
verticalmente no mar e explodiu.
Sem mais tardar, Jack girou em direção ao sul, retomando
sua rota original, e torceu o manche ao máximo. Dalmotov
devia ter transmitido um sinal radiotelefônico internacional
automático de SOS com as coordenadas de sua posição, e os
técnicos, no centro de controle de Aslan, estariam
provavelmente redirecionando o SATSURV para a mancha
brilhante de óleo e detritos onde os helicópteros haviam
desaparecido. A visão desse local só alimentaria a raiva de
Aslan, já exacerbada depois do dano causado ao Vultura.
Jack sabia que qualquer valor que tivesse como refém estaria
agora eclipsado pela necessidade de Aslan de retribuir na
mesma moeda.
Para seu desespero, Jack viu que o indicador de combustível
estava se aproximando perigosamente do zero. Quando ele o
havia checado, dez minutos antes, o painel marcava ainda
três quartos de combustível, e a ação que empreendera não
podia ter consumido metade do tanque. Ele lembrou da
colisão, na parte posterior, provocada pela arma de
Dalmotov. Se a bala atingira o tanque de combustível, o
solavanco que o helicóptero dera, quando ele passara pela
corrente térmica, poderia ter agravado o dano, rompendo a
conexão e causando uma grande perda de combustível.
Ele não tinha tempo para confirmar o ocorrido. Puxou o
manche para trás para reduzir o consumo de combustível e
baixou para uma altitude de trinta metros. A forma distante
da ilha apareceu na neblina da manhã, os picos gêmeos com
sua característica forma de chifres de touro, exatamente
como os vira do Seaquest três dias antes. Sua única
esperança agora era que o combustível do Hind durasse o
suficiente para chegar a uma distância em que ele pudesse
nadar até a costa norte.
Quando os motores turboshafts começaram a fazer barulho e
a engasgar, a visão de Jack ficou momentaneamente
obscurecida por uma cortina de fumaça preta. Ele se retraiu
por causa do cheiro forte de cordite e plástico queimado.
Segundos depois tudo clareou e ele se deparou com o casco
do Seaquest a menos de duzentos metros à sua frente.
As imagens a que Jack assistira via satélite não o prepararam
para o choque com a realidade. A principal embarcação de
pesquisa da IMU estava imersa com sua coberta de proa
quase inundada, a superestrutura destruída e irreconhecível,
e o flanco de estibordo apresentava fendas cavernosas onde
os projéteis do Vultura haviam atravessado a blindagem.
Parecia um milagre que ele ainda estivesse flutuando, mas
Jack podia quase afirmar que as anteparas dianteiras iriam
logo ceder e o Seaquest seria arrastado para o fundo.
O Hind mal se mantinha no ar enquanto estremecia acima
do casco danificado. Quase imediatamente começou a
descer, uma vez que o rotor não conseguia mais
proporcionar o empuxo necessário. Quando o motor soltou
seus últimos espasmos, Jack tinha pouco tempo para agir.
Vestiu rapidamente sua jaqueta salva-vidas e empurrou o
manche cíclico para a frente o mais que pôde. Inclinando o
helicóptero para baixo, ele elevou as aletas atrás do
compartimento de modo a afastá-las de seu caminho, mas ao
fazer isso também orientou o helicóptero para um mergulho
de nariz. Com apenas alguns segundos disponíveis, Jack
tirou o capacete, foi para trás da cabine e pulou para fora, as
pernas cruzadas fortemente e os braços bem pressionados
contra o peito para proteger-se do choque com a água.
Sem o capacete Jack reduziu o risco de quebrar o pescoço,
mas mesmo assim o impacto foi dolorido para seus ossos. Ele
adentrou o mar de pé e mergulhou verticalmente, bastante
fundo para sentir o termoclino. Então abriu os braços para
interromper a descida. Quando nadou de volta para a
superfície, ele sentiu uma dor lancinante onde a ferida em
seu flanco se abrira de novo. Na metade do caminho para
cima houve um tremendo impacto que gerou uma onda de
choque através da água. Ele alcançou a superfície e viu os
vestígios fumegantes do Hind não longe dali, uma cena de
devastação que poderia ter sido facilmente sua própria pira
funerária.
Acionou o cartucho de CO2 em sua jaqueta salva-vidas e se
dirigiu para o Seaquest. Jack sentiu-se repentinamente muito
cansado, o choque de adrenalina havia esgotado suas já
reduzidas reservas de força.
O Seaquest estava tão afundado na proa que Jack foi capaz de
nadar sobre o castelo de proa submerso e se arrastar sobre o
convés inclinado na frente do posicionamento do canhão.
Foi a última cena vista por Howe e York no dia anterior.
Depois de observar rigorosamente a cena, Jack retirou sua
jaqueta salva-vidas e dirigiu-se com cautela para a outra parte
do convés. Justo antes de alcançar a escotilha que dava para
o porão, ele escorregou e caiu pesadamente. Percebeu com
angústia que havia escorregado em sangue coagulado, uma
mancha carmesim que se arrastava a estibordo do casco.
Jack sabia que não havia nada a ganhar em ficar pensando
nos momentos finais de sua tripulação. Ele se abaixou para
descansar por um instante ao lado da escotilha, enquanto
convocava toda a sua força e o poder da sua vontade.
Quase tarde demais ele viu o helicóptero com o canto dos
olhos. O aparelho estava distante, bem na extremidade da
ilha, e o som do seu rotor era abafado pelo barulho do
Seaquest se rompendo. Jack sabia, por causa do lugar vago
no heliporto, que Aslan tinha um quarto helicóptero de
ataque, e ele achava que este era um Kamov Ka-28 Helix
que havia partido do Vultura. Piscou os olhos sob o sol da
manhã e viu o helicóptero voando baixo acima da água,
apontando diretamente para ele. Jack havia estado em
muitas batalhas de helicópteros para saber o que devia
esperar, mas raramente se sentira tão vulnerável.
Houve um clarão distante quando um rastro indicador surgiu
e começou a se alastrar com uma rapidez terrível. Era um
míssil ar-navio pesado, provavelmente uma das temidas
ogivas Exocet AM.39 que Jack havia visto estocadas no
centro de operações de Aslan. Ele se lançou pela escotilha e
foi parar no convés inferior, caindo literalmente dentro do
módulo de comando. Quando girou a trava, ouviu-se um
imenso estrondo. Jack foi atirado violentamente para trás
contra uma antepara e desmaiou.

26

A porta bateu com força atrás de Costas quando ele deu de
encontro com a antepara. Foi um impacto desagradável, a
saliência protuberante de metal atingiu-o no peito fazendo
com que ele lutasse para respirar. A venda havia se rasgado,
mas tudo o que ele podia ver era uma mancha carmesim.
Recuou ligeiramente, o corpo todo convulsionado pela dor,
e bem devagar ergueu o braço para sentir o rosto. O olho
direito estava inchado e fechado, entorpecido ao toque.
Moveu os dedos para o olho esquerdo e tirou a venda
grudenta antes de abri-lo. Seu foco foi melhorando pouco a
pouco. De onde estava deitado ele podia ver uma tubulação
caiada ao longo da antepara, o lado dianteiro estampado com
símbolos e letras que pareciam pertencer ao alfabeto cirílico.
Não tinha idéia de tempo ou lugar. Sua última memória clara
era a de Jack desmaiando dentro da câmara de audiência.
Depois havia um branco, uma memória vaga de movimento
e de dor. Ele havia estado amarrado em uma cadeira com
uma luz ofuscante acesa diretamente em seu rosto. Em
seguida, hora após hora de tormento, de socos dolorosos e
gritos agudos. Eram sempre as mesmas figuras vestidas de
preto, sempre as mesmas questões colocadas em um inglês
incorreto. Como você saiu do submarino? Ele achava que
estava no Vultura, mas todo o seu poder de análise se
encontrava paralisado e sua mente focalizada apenas na
própria sobrevivência. Repetidas vezes foi atirado dentro
daquele quarto, depois arrastado de novo quando acreditava
que tudo havia terminado.
E agora estava acontecendo de novo. Desta vez não houve
intervalo. A porta se abriu com estrondo e alguém lhe deu
um soco violento nas costas, o que o fez vomitar sangue.
Depois arrastaram-no de joelhos, ao mesmo tempo que ele
vomitava e tossia, e a venda foi amarrada de novo, tão
apertada que Costas podia sentir o sangue saindo da sua
órbita inchada. Ele pensava que jamais poderia experimentar
um outro tipo de dor, mas aquilo era algo novo. Costas
concentrou seu ser inteiro em uma única corda de salvação:
a de que era ele e não Jack quem estava recebendo o castigo.
Precisava se agarrar em qualquer coisa que pudesse até que o
Seaquest chegasse e a descoberta das ogivas se tornasse
conhecida.
Costas voltou a si com o rosto apoiado em cima de uma
mesa e as mãos presas atrás da cadeira onde estava sentado.
Não fazia idéia do tempo que havia estado ali e só podia ver
uma nauseante mancha de pontos de luz onde a venda
pressionava seus olhos. Enquanto sentia doer-lhe a cabeça,
ele podia ouvir vozes, não a dos seus torturadores, mas a de
uma mulher e um homem. Um pouco antes ele conseguira
captar, em fragmentos de conversas, que seus aprisionadores
estavam esperando o retorno de Aslan, que deveria vir de
helicóptero direto do seu centro de operações. Mesmo o
pior deles parecia apreensivo. Havia ocorrido uma espécie
de crise, um helicóptero fora roubado e um prisioneiro tinha
escapado. Costas rezou para que tivesse sido Jack.
As vozes pareciam estar em algum lugar distante, em um
corredor ou em uma sala contígua, mas a mulher falava em
voz alta, com raiva, e ele podia escutar claramente o que
diziam. Eles mudavam do russo para o inglês e Costas
percebeu que eram Aslan e Katya.
- Estes são assuntos pessoais, - disse Aslan. - Vamos falar em
inglês para que meus mujahedin não ouçam esta blasfêmia.
- Seus mujahedin? - A voz de Katya estava cheia de
desprezo. - Seus mujahedin são jihadistas. Eles lutam por
Alá, não por Aslan.
- Eu sou o novo profeta deles. Sua lealdade é para Aslan.
- Aslan. - Katya cuspiu a palavra com escárnio. - Quem é
Aslan? Piotr Alexandrovich Nazarbetov. Um professor
fracassado de uma obscura universidade com ilusões de
grandeza. Você nem usa a barba de um homem santo. E
saiba que eu conheço nossa herança mongol. Gengis Khan
foi um infiel que destruiu metade do mundo muçulmano.
Alguém deveria contar tudo isto para os seus santos
guerreiros.
- Você se esquece de si mesma, minha filha. - A voz estava
glacial.
- Lembro bem do que tive de aprender quando era criança.
Aquele que for fiel ao Alcorão prosperará, quem o ofender
será punido pela espada. A fé não permite o assassinato de
inocentes. - A voz de Katya era um soluço sentido. - Eu sei
o que você fez a minha mãe.
A respiração pesada de Aslan soou para Costas como uma
panela de pressão prestes a explodir.
- Seus mujahedin estão aproveitando o tempo, - continuou
Katya. - Eles estão usando você até que se torne dispensável.
Aquele submarino será a sua tumba também. Tudo o que
você fez ao criar esse santuário terrorista está acelerando o
seu próprio fim.
- Silêncio! - O grito demente foi seguido pelos sons de uma
luta corpo a corpo e de algo sendo arrastado. Momentos
depois ouviram-se passos que voltavam. Eles se detiveram
atrás de Costas. Um par de mãos puxou seus ombros para
trás, contra a cadeira.
- Sua presença é perniciosa, - a voz assobiou contra o seu
ouvido, ainda respirando pesadamente. - Você está prestes a
fazer sua última viagem.
Dedos estalaram e dois pares de mãos puseram-no de pé. Em
seu mundo enevoado, Costas não percebeu o soco quando
ele o atingiu, experimentou apenas um instante de dor
seguido por um esquecimento misericordioso.

Jack parecia estar vivendo um pesadelo acordado. Ele via
apenas um negrume, uma escuridão tão completa que
eclipsava todos os pontos sensoriais de referência. Tudo ao
seu redor parecia um forte rumor de arremetidas pontuadas
por rangidos e gemidos. Sua mente lutava para dar sentido
ao inimaginável. Quando ele se deitou contorcido contra a
antepara, sentiu-se estranhamente leve, seu corpo quase
levitou, como se tivesse sido aprisionado por uma agitação
demoníaca.
Jack agora sabia o que era sentir-se preso em uma armadilha
dentro das entranhas de um navio naufragando, enquanto
este mergulhava no abismo. Sua salvação era o módulo de
comando do Seaquest; suas paredes com quinze centímetros
de espessura, feitas de aço reforçado com titânio, protegiam-
no da pressão esmagadora que nesse momento já deveria ter
lhe rompido os tímpanos e destruído os ossos da cabeça. Ele
podia ouvir o barulho de estruturas se rompendo e
empenando enquanto as bolsas de ar remanescentes
implodiam, um barulho que significaria morte imediata se
ele não tivesse caído dentro do módulo a tempo.
Tudo o que ele podia fazer agora era suportar o inevitável. A
queda parecia interminável, muito mais demorada do que
ele havia esperado, e o barulho aumentava com um som
agudo crescente, como a aproximação de um trem expresso.
O fim, quando viesse, seria tão violento quanto inesperado.
O casco colidiu com estrondo contra o fundo do mar com
um terrível solavanco, gerando uma força G que o teria
matado se ele não estivesse agachado com a cabeça
protegida pelos braços. Ele utilizou toda a sua força para não
ser atirado para cima quando o casco ricocheteou, o subir e
descer acompanhado de um horrível som de ruptura. Depois
o que restou do naufrágio se assentou e o silêncio se
estabeleceu.
- Ativar a luz de emergência.
Jack falava consigo mesmo enquanto sentia o corpo,
tentando perceber se estava machucado. Sua voz parecia
estranhamente desencarnada, sua modulação absorvida pelo
almofadado à prova de som das paredes, no entanto isto lhe
dava uma medida de realidade em um mundo que havia
perdido todas as referências.
Como mergulhador, Jack estava habituado a se orientar em
escuridão absoluta, e agora estava se utilizando de toda a sua
experiência. Depois da queda através da escotilha, o impacto
do míssil atirou-o para além do armário de armas, contra os
painéis de controle do outro lado do módulo. Felizmente o
Seaquest se assentou ereto no fundo do mar. Quando Jack se
levantou cambaleante, pôde sentir a inclinação do convés
onde a proa tinha se partido ao penetrar no solo oceânico.
Ele se ajoelhou e tateou o caminho mais adiante, seu
conhecimento profundo do navio que havia ajudado a
projetar o guiava no meio dos consoles que se alinhavam no
interior.
Alcançou uma caixa de fusíveis na parede do lado esquerdo
da entrada da escotilha e procurou o interruptor que ligava a
bateria reserva, no seu compartimento protetor, ao circuito
principal. Sua mão encontrou a alavanca que ativava a luz de
emergência. Pela segunda vez naquele dia, Jack fechou os
olhos e rezou para ter sorte.
Para seu alívio a sala iluminou-se de pronto com uma luz
verde fluorescente. Seus olhos se adaptaram rapidamente e
ele se virou para observar a cena. O módulo estava abaixo da
superfície da água, e os projéteis que haviam atravessado o
Seaquest tinham passado pelo casco que ficava acima da
água. O equipamento e as instalações pareciam em ordem e
no lugar; o módulo havia sido projetado para resistir
precisamente a esse tipo de ataque.
Sua primeira tarefa seria desprender o módulo do casco. Jack
se dirigiu, vacilante, até o estrado central. Parecia
inconcebível que ele houvesse reunido a tripulação nesse
local havia menos de 48 horas. Deixou-se cair pesadamente
sobre a cadeira de comando e ativou o controle do painel. O
monitor LCD exigiu uma série de senhas antes de iniciar a
seqüência que permitia liberar o módulo. Depois da terceira
senha, uma gaveta se abriu e Jack pegou uma chave que ele
encaixou no painel e virou no sentido dos ponteiros de um
relógio. A propulsão eletrônica e os sistemas de controle da
atmosfera entrariam em operação tão logo o módulo
estivesse a uma distância segura do naufrágio.
Sem os sensores do Seaquest, Jack não teria dados sobre a
profundidade ou o ambiente local até que o módulo se
desprendesse do casco e ativasse o seu próprio sistema. Ele
achava que havia caído na fenda registrada pelo Seaquest ao
norte da ilha, uma abertura profunda de dez quilômetros de
comprimento e meio de largura que Costas havia
identificado como uma falha tectônica na mesma linha que
o vulcão. Se fosse assim, ele estava atolado na lata de lixo da
região sudeste do mar Negro, um local que era uma rede
coletora de lodo e um reservatório de salmoura da Idade do
Gelo. A cada minuto que passasse o navio continuaria a
afundar em uma pasta fluida de sedimento mais intratável do
que areia movediça. Mesmo se conseguisse se liberar, ele
poderia simplesmente dirigir o módulo mais profundamente
para dentro do lodo, enterrando-se sem esperança de
salvação.
Jack prendeu o cinto de segurança e inclinou-se para trás
apoiando a cabeça. O computador lhe ofereceu três chances
para abortar a operação e a cada vez ele pressionou a tecla
para continuar. No final da seqüência, um triângulo
vermelho de aviso apareceu com a palavra liberando
piscando no centro. Durante um instante aterrador a sala
tornou-se escura, enquanto o computador redirecionava os
circuitos para a bateria interna do módulo.
Alguns segundos mais tarde o silêncio foi quebrado por um
som ritmado e enfraquecido, fora do casco à sua esquerda.
Cada choque amortecido representava uma explosão muito
pequena necessária para estourar os rebites no casco do
Seaquest e criar uma abertura suficientemente larga para
deixar passar o módulo. Quando o painel foi cortado, o
espaço que circundava o módulo foi preenchido com água
do mar e o sensor batimétrico começou a funcionar. Jack
girou em direção à trajetória da saída e se segurou quando os
jatos de água se puseram em ação, um zumbido baixo que
aumentou num crescendo à medida que o motor avançava
contra os rebites que prendiam o módulo ao casco. Uma
série de detonações estourou atrás dele quando o módulo se
separou dos pinos que o retinham. Ao mesmo tempo, as
braçadeiras de travamento se retraíram e ele foi lançado com
violência para trás contra a cadeira; a compressão, quando o
módulo foi ejetado, se equiparava a múltiplas forças G de um
lançamento de foguete.
O módulo havia sido projetado para ser empurrado de um
navio afundado para além do vórtice de sucção, quando o
casco mergulhasse verticalmente para o fundo do oceano.
Jack havia participado de uma simulação nas instalações para
testes em águas profundas da IMU, nas Bermudas, quando o
módulo parou a cem metros de distância. Aqui, a força G foi
seguida por um solavanco igualmente violento na direção
oposta, e o módulo parou apenas a poucos metros além do
naufrágio.
Jack havia colocado a cabeça na postura-padrão de segurança
e seus únicos ferimentos foram uma série de vergões
doloridos onde as tiras do cinto de segurança tinham se
fincado em seus ombros. Depois de respirar profundamente
ele desafivelou o cinto e girou em direção à estação de
trabalho, a mão direita agarrada ao painel de controle para
impedir que ele escorregasse para a frente onde o módulo
havia virado rumo ao fundo do mar.
À esquerda havia um pequeno monitor para exibir os dados
batimétricos. Quando os números começaram a aparecer,
ele viu que o medidor de profundidade mostrava 750 metros
abaixo do nível do mar, algumas centenas de metros abaixo
da profundidade máxima operacional do módulo. A base da
falha estava em uma profundidade muito maior do que
aquela que ele havia imaginado, mais de meio quilômetro
abaixo da antiga linha da costa submersa.
Jack ligou o sistema de localização e navegação pelo som e
esperou até que os dados aparecessem na tela. O transdutor
do sonar ativo emitiu um feixe de pulsos de banda estreita de
alta freqüência em uma varredura vertical de 360 graus, para
mostrar o relevo do chão oceânico e quaisquer objetos
suspensos até a superfície. Quando o Seaquest passou pelo
canyon, dois dias antes, eles haviam determinado que a falha
se estendia na direção norte-sul, então Jack estabeleceu a
trajetória do sonar na direção leste-oeste para ter um corte
transversal da sua posição dentro do desfiladeiro.
A velocidade do feixe indicou a rapidez com que o relevo
todo se tornou visível no monitor. As minúsculas pintas
esverdeadas de cada lado mostravam onde as paredes do
canyon se levantavam cerca de quatrocentos metros adiante.
Perto do cume havia saliências que estreitavam o contorno
mais ainda. O canyon tinha todas as características de uma
falha aberta na horizontal, provocada por placas na crosta da
terra se deslocando para se separar e não se atritando nas
laterais. Essa era uma raridade geológica que teria deliciado
Costas, mas representava mais uma preocupação imediata
para Jack porque agravava a sua situação.
Ele percebeu que suas chances de não sobreviver naquela
profundidade eram realmente astronômicas. Se o Seaquest
tivesse afundado apenas cinqüenta metros a oeste, teria
colidido com uma extremidade do canyon, destruindo-se até
não sobrar nada, muito antes que alcançasse o fundo do mar.
Jack voltou sua atenção para a base da falha, onde o relevo
mostrava uma massa de luz esverdeada, o que indicava que
lá havia centenas de metros de sedimento. Em certo ponto
do caminho para cima havia uma linha horizontal em nível
com o ápice do sonar, uma camada compactada que era o
túmulo do Seaquest. Acima desse local uma dispersão de cor
mais suave indicava sedimentos suspensos que se estendiam
por pelo menos vinte metros e depois a tela se tornava clara,
o que era sinal de mar aberto.
Jack sabia que ele estava no alto de um depósito de
sedimentos pelo menos tão profundo quanto o oceano
acima, um lugar onde se assentavam imensas quantidades de
lama provenientes de desmoronamentos de terra misturada
com organismos marinhos mortos, lama natural do fundo do
mar, detritos vulcânicos e salmoura da evaporação na Idade
do Gelo. Esse depósito aumentava continuamente com as
partículas vindas de cima e podia engolir Jack a qualquer
momento como se fosse areia movediça. E se a areia
movediça não o fizesse, uma avalanche poderia soterrá-lo. A
lama suspensa acima do naufrágio era o resultado de uma
corrente lodosa. Os cientistas da IMU haviam monitorado
correntes lodosas no Atlântico que jorravam como cascata
de uma saliência continental a cem quilômetros por hora,
esculpindo canyons debaixo da água e depositando milhares
de toneladas de lama. Como no caso de avalanches de neve,
a onda de choque de uma dessas correntes podia provocar
uma nova avalanche. Se ele fosse apanhado em algum lugar
perto de um deslocamento de tal magnitude, debaixo da
água, seria o seu fim.
Mesmo antes de tentar movimentar os motores, Jack sabia
que esta era uma tentativa sem esperança. O zumbido
errático, quando ele acionou a unidade, só confirmou que as
saídas dos jatos de água estavam obstruídas pela lama e que
seria impossível deslocar o módulo da sepultura que ele
mesmo havia cavado para si. Os engenheiros da IMU não
poderiam ter previsto que o primeiro uso de sua invenção
seria sob vinte metros de lodo no fundo de um abismo que
não se encontrava no mapa.
A única opção que restava a Jack era uma câmara atrás de si,
duplamente fechada, que permitia a entrada e saída de
mergulhadores. O casco acima estava envolvido por um
turbilhão de sedimento que ainda podia ser suficientemente
fluido para permitir-lhe escapar, no entanto, a cada minuto
que passava suas chances diminuíam, à medida que as
partículas de matéria se depositavam e enterravam o módulo
mais profundamente numa massa compacta.
Depois de dar uma última olhada no relevo que o sonar
mostrava para memorizar seus aspectos, ele foi para a câmara
duplamente fechada. A roda que fechava a porta girou
facilmente e Jack entrou no recinto. Lá havia dois
compartimentos, cada um deles um pouco maior do que um
closet; o primeiro era um depósito de equipamentos e o
segundo, a câmara propriamente dita. Ele abriu caminho no
meio de E-suits e reguladores com trimix, até que parou
defronte de um monstro metálico que parecia saído de um
filme de ficção científica.
Mais uma vez Jack tinha motivos para agradecer a Costas.
Como o módulo de comando ainda não havia sido testado,
Costas insistira em ter uma roupa de mergulho de reserva
resistente a uma atmosfera, uma precaução que Jack havia
aceitado de má vontade, por causa do tempo extra
necessário para a sua colocação. Na ocasião ele ajudara a
acondicionar o traje dentro da câmara, então estava
familiarizado com o procedimento de fuga que haviam
imaginado.
Parou diante da grade que circundava o traje, abriu a trava
que a fechava, desparafusou a capa de proteção e expôs o
painel de controle que havia em seu interior. Depois de
checar se todos os sistemas estavam funcionando, ele
desafivelou os cintos que mantinham o traje preso na
antepara e verificou o exterior para ter certeza de que as
juntas estavam completamente seladas.
Designado oficialmente como Anthropod Autônomo para
Mar Profundo, o traje tinha muito mais em comum com
submersíveis como o Aquapod do que com equipamentos
de mergulho convencionais. O ADSA Mark 5 permitia
penetrações solitárias no oceano, em profundidades que
ultrapassavam quatrocentos metros. O equipamento de
subsistência era um respirador que injetava oxigênio
enquanto removia o dióxido de carbono do ar exalado para
proporcionar um gás seguro para a respiração por mais de
quarenta e oito horas. Como outros trajes, o ADSA era
resistente à pressão, com juntas preenchidas com líquido e
uma carapaça toda de metal; no entanto, o material que fora
utilizado nesse traje era de aço resistente à tração, reforçado
com titânio, o que lhe dava uma capacidade sem
precedentes de suportar a pressão de até 2000 metros de
profundidade na água.
O ADSA era um exemplo dos grandes avanços feitos pela
IMU em tecnologia de submersíveis para águas profundas.
Um sonar ultra-sônico multidirecional alimentava uma
imagem que se movia em três dimensões no visor instalado
no capacete acoplado ao fone de ouvido, proporcionando
um sistema de navegação de realidade virtual em locais com
visibilidade zero. Projetado para mobilidade no ambiente
aquático, o traje estava equipado com um dispositivo
computadorizado que proporcionava um poder de flutuação
variável e com uma mochila adaptada para lançar jatos de
água direcionáveis que impulsionavam o ADSA; uma
combinação que oferecia a mesma versatilidade de um
astronauta em um passeio pelo espaço, sem necessidade de
amarrar uma corda ao solo.
Depois de retirar o traje, Jack voltou para o compartimento
principal e se dirigiu rapidamente ao armário de armas. Da
prateleira de cima apanhou uma Beretta, 9 milímetros, para
substituir a arma que havia sido confiscada por Aslan e
prendeu-a em seu traje. Em seguida retirou um rifle de
assalto SA80-A2 e três pentes. Após prender o rifle nas
costas, ele pegou dois pequenos pacotes de explosivo
plástico Semtex, normalmente utilizado para trabalhos de
demolição debaixo da água, e duas caixas do tamanho de
pastas de papéis, cada uma contendo fios com minas em
formato de bolas de pingue-pongue e um transceptor-
detonador.
De volta à câmara duplamente fechada, Jack prendeu as
caixas a um par de argolas com fecho de segurança, na frente
do ADSA, e as amarrou com correias. Estendeu a mão e
colocou o rifle e os pentes em uma bolsa debaixo do painel
de controle, e a SA80 encaixou-se facilmente lá dentro.
Depois de fechar a escotilha que dava para a câmara e girar a
roda de travamento, Jack subiu na escada de metal e se
enfiou dentro do traje. Ele era surpreendentemente amplo,
deixando espaço para Jack retirar as mãos dos braços de
metal e operar os controles do console. Apesar de sua meia
tonelada de peso, ele conseguia flexionar as juntas das pernas
e abrir e fechar as mãos como pinças. Depois de checar o
suprimento de oxigênio, Jack fechou a cúpula e prendeu a
trava do pescoço, seu corpo agora estava encerrado num
equipamento de sobrevivência auto-suficiente e o mundo
externo, repentinamente, parecia remoto e dispensável.
Ele estava prestes a deixar o Seaquest pela última vez. Não
havia tempo a perder com pensamentos, somente uma
completa determinação de que a perda do navio não teria
sido em vão. Qualquer tristeza ficaria para mais tarde.
Ligou as luzes interiores de baixa intensidade, ajustou o
termostato para vinte graus Celsius e ativou a rede de
sensores. Depois de checar o poder de flutuação e os
controles de propulsão, Jack esticou a pinça da mão direita
até um interruptor na porta. A luz fluorescente tornou-se
mais fraca e a água começou a entrar. Assim que o líquido
turvo cobriu o visor, Jack sentiu umedecer o curativo em
seu ferimento a bala do dia anterior. Ele procurou manter-se
calmo.
- Um pequeno passo para o homem, - ele murmurou. - Um
passo gigante para a humanidade.
Quando a escotilha se abriu e o elevador conduziu-o acima
do módulo, Jack foi engolido pela escuridão, um negrume
infinito que parecia aprisioná-lo sem esperança de salvação.
Ele ativou os holofotes.
A paisagem era completamente diferente de tudo o que
havia visto antes. Era um mundo onde faltavam todos os
pontos-padrão de referência, um mundo onde as dimensões
normais de espaço e forma pareciam se misturar umas com
as outras continuamente. O feixe de luz iluminou nuvens de
lama que giravam em todas as direções, redemoinhos de
água que ondulavam como uma multidão de galáxias
miniaturas. Jack estendeu os braços manipuladores e
observou a lama se separar em serpentinas, formas que logo
se juntavam outra vez e desapareciam. Na luz ofuscante e
desagradável, tudo parecia mortalmente branco, como um
atoleiro de cinza vulcânica; o feixe de luz refletia as
partículas cem vezes mais finas que a areia da praia.
Jack sabia com certeza absoluta que ele era o único ser vivo
que já havia penetrado naquele mundo. Alguns dos
sedimentos suspensos eram biogênicos, derivados de algas
microscópicas e outros organismos que haviam caído de
cima, mas, diferentemente das planícies abismais do
Atlântico ou do Pacífico, as profundezas do mar Negro não
tinham nem mesmo vida microscópica. Ele estava realmente
em um submundo, um vácuo sem vida, sem paralelo com
qualquer outro lugar da Terra.
Por um momento pareceu como se a massa giratória fosse se
materializar como rostos espectrais de marinheiros mortos
havia muito tempo, destinados a se movimentar em uma
dança macabra por toda a eternidade com o fluxo e refluxo
da lama. Jack forçou a mente a se concentrar na tarefa que
tinha pela frente. O sedimento estava se depositando muito
mais rapidamente do que ele havia previsto, as partículas se
compactando com a densidade glutinosa da lama em uma
maré baixa. Ele já havia soterrado o topo do módulo de
comando e estava subindo de modo alarmante pelas pernas
do ADSA. Jack só tinha alguns segundos para agir antes de
virar um sarcófago imóvel no fundo do oceano.
Acionou o compensador de flutuabilidade e encheu o
reservatório em suas costas com ar, neutralizando
rapidamente o traje. Quando a leitura dos dados se tornou
positiva, Jack empurrou o joystick e girou o regulador de
pressão. Com uma guinada ele se movimentou para cima,
enquanto o sedimento caía em cascata com rapidez
crescente. Ele desligou o jato de água para evitar obstruir o
orifício de entrada e continuou sua subida usando apenas o
poder de flutuação. Depois do que pareceu uma eternidade,
Jack se ergueu através de um redemoinho impiedoso. Então,
quase trinta metros acima do naufrágio, ele livrou-se daquele
turbilhão. Subiu mais vinte metros antes de neutralizar seu
poder de flutuação e orientar suas luzes para baixo, em
direção ao lodo que já sepultara os destroços do Seaquest.
Parecia impossível ligar esta cena com qualquer tipo de
realidade. Era como a imagem de satélite de uma enorme
tempestade tropical, os redemoinhos de sedimento girando
lentamente como ciclones gigantes. Jack quase esperava ver
raios de tempestade elétrica trovejando debaixo dele.
Jack voltou sua atenção para o scanner do sonar que havia
ativado instantes antes. A tela circular mostrava o relevo do
fosso do abismo, com seus aspectos mais acentuados agora
que o sistema de sensores estava livre da lama. Ele chamou o
programa NAVSURV* e digitou as coordenadas da posição
final do Seaquest na superfície, que havia memorizado, e da
costa norte da ilha. Com coordenadas de referências
conhecidas, o NAVSURV podia representar graficamente a
posição atual, sugerir um curso mais apropriado e fazer
modificações contínuas à medida que o terreno aparecia no
display do sonar.
Ele acionou o piloto automático e observou enquanto o
computador alimentava dados nas unidades de propulsão e
de poder de flutuação. Quando o programa finalizou, Jack
tirou o fone de ouvido do seu compartimento e puxou o
visor. O fone de ouvido estava conectado ao computador
por meio de um cordão umbilical flexível, que, entretanto,
permitia completa liberdade de movimento; o visor atuava
como uma tela transparente através da qual ele ainda podia
monitorar o ambiente ao redor.
Jack ativou um controle ligando o visor. Sua visão era
filtrada através de um entrelaçado verde pálido que mudava
de forma a cada movimento de sua cabeça. Como um piloto
em um simulador de vôo, ele estava vendo uma imagem da
realidade virtual da topografia ao seu redor, uma versão
tridimensional da tela do sonar. As linhas suaves matizadas
eram uma certeza de que ele não estava sendo aprisionado
em algum tipo de pesadelo eterno, que este era um mundo
finito com limites que poderiam ser ultrapassados se sua
sorte não acabasse ali.
Quando os jatos de água se puseram a funcionar e ele
começou a avançar, Jack viu que as juntas metálicas dos
braços adquiriram um tom amarelo-vivo. Lembrou o porquê
de as profundezas do mar Negro serem tão completamente
estéreis. Era por causa do gás sulfídrico, um subproduto da
decomposição orgânica de bactérias que afluíam com os rios.
Jack estava atolado em um tanque de veneno maior do que
todo o arsenal de armas químicas do mundo, um líquido que
emitia um cheiro forte e desagradável que destruiria seu
olfato com o primeiro sopro e que poderia matá-lo se ele o
respirasse.
O ADSA havia sido projetado segundo as especificações
mais modernas de proteção contra uma exposição biológica
e química, bem como contra uma pressão ambiental
extrema. Mas Jack sabia que era apenas uma questão de
tempo antes que o enxofre corroesse a junta onde o metal
estava exposto. Mesmo um ingresso mínimo seria mortal.
Ele sentiu que uma onda gelada o atravessava, um
conhecimento seguro de que estava violando um mundo
onde até mesmo os mortos não eram desejados.
Depois de checar os sistemas, Jack segurou o regulador de
pressão e olhou com gravidade para o vazio à sua frente.
- Certo, - murmurou. - Está na hora de visitar velhos amigos.
Menos de cinco minutos depois de emergir do redemoinho
de lama, Jack alcançou a parede ocidental do canyon. A
treliça tridimensional projetada em seu visor se fundia
precisamente com os contornos da rocha, agora visível à
frente, um precipício colossal que se erigia quatrocentos
metros acima dele. Quando dirigiu a luz sobre a parede, viu
que a rocha estava tão nua quanto uma face de pedreira
recém-desbastada, sua superfície não havia sido tocada pelo
crescimento marinho desde que forças titânicas haviam
despedaçado o solo do mar, milhões de anos atrás.
Jack acionou o propulsor posterior e fez com que o ADSA
girasse para um curso sul paralelo à face do rochedo. Cerca
de vinte metros abaixo dele, o sedimento parecia um
redemoinho fervendo em ebulição, um mundo inferior,
proibido, entre líquido e sólido, que lambia a parede do
canyon. Mantendo uma altitude constante acima do declive,
Jack estava subindo regularmente, o medidor de
profundidade registrava uma subida de quase cem metros no
primeiro meio quilômetro ao longo da parede do canyon.
Quando a inclinação ficou mais aguda, surgiu um setor do
solo do canyon completamente destituído de sedimento.
Jack achava que era uma área onde o sedimento havia se
acumulado e depois caído em avalanche declive abaixo. Ele
sabia que esta era uma zona de perigo; qualquer distúrbio
poderia deslocar sedimento do declive acima e engoli-lo.
O solo do mar exposto estava coberto de um crescimento
bizarro, uma massa cristalina manchada de um amarelo fraco
pelo gás sulfídrico que envenenava a água. Jack esvaziou o
reservatório que regulava o seu poder de flutuação e
mergulhou para baixo, estendendo ao mesmo tempo uma
sonda vazia para colher uma amostra da massa cristalina.
Momentos depois os resultados apareceram na tela. Era
cloreto de sódio, sal comum. Ele estava olhando para o que
havia se depositado, por causa da evaporação, milhares de
anos antes, no vasto leito de salmoura que havia se
precipitado dentro do abismo quando o Bósforo tinha selado
o mar Negro, durante a Idade do Gelo. O canyon que Jack
havia batizado de Fenda do Atlântico poderia ter sido um
reservatório para todo o setor sudeste do mar.
Quando Jack impeliu-se para a frente, o tapete de salmoura
pareceu se encher de remendos e deu lugar a uma paisagem
contorcida de formas sombrias. Era um campo de lava, uma
desordem em forma de rodopios congelados onde o magma
brotou e solidificou ao encontrar a água gelada.
Sua visão foi interrompida por uma neblina opaca que
brilhava como uma luz fraca através de um véu diáfano. A
temperatura externa atingia terríveis 350 graus Celsius, um
calor suficiente para derreter chumbo. Jack mal havia
registrado a mudança quando foi sacudido violentamente
para a frente e o ADSA moveu-se em espiral, sem controle,
em direção ao solo do canyon. Instintivamente, Jack
desligou o impulsor justo quando o ADSA deu um salto e
depois parou com a frente para baixo, a unidade de bateria
dianteira imobilizada entre sinuosidades de lava e o visor
pressionado contra uma fenda na rocha vulcânica.
Jack levantou-se dentro do ADSA e se agachou sobre o
painel de controle. Viu com alívio que as telas LCD ainda
estavam funcionando. Mais uma vez tivera uma sorte
enorme. Se tivesse havido algum tipo de dano,
provavelmente ele já estaria morto; a pressão externa de
diversas toneladas por centímetro quadrado, caso se abatesse
sobre ele, garantiria um fim rápido e horrendo.
Jack bloqueou mentalmente o apavorante mundo exterior e
se concentrou em se desembaraçar das ondulações de lava.
A unidade propulsora seria de pouco uso porque estava
acondicionada atrás e só proporcionava impulso lateral e
transversal. Ele teria que usar o compensador de
flutuabilidade. O processo manual era operado por um
gatilho de dois estágios no joystick; o primeiro estágio, para
trás, injetava ar dentro e o segundo, para a frente, ejetava-o.
Depois de se firmar, Jack se segurou fortemente. Podia ouvir
a eclosão do ar entrando no reservatório e observou o
ponteiro do mostrador se deslocar até a capacidade máxima.
Para seu espanto não houve movimento algum. Esvaziou o
reservatório e o encheu de novo, com o mesmo resultado.
Sabia que não podia repetir esse procedimento sem esgotar o
suprimento de ar além das margens de segurança.
Sua única saída seria tirar o ADSA do fundo do mar usando
sua força física. Até então Jack havia empregado o ADSA
apenas no modo submersível, mas ele também dispunha de
um espaço interior, projetado para ser, debaixo da água, o
equivalente ao traje de andar na lua. Apesar de sua aparência
incômoda, ele era fácil de locomover, o seu peso debaixo da
água correspondia a trinta quilos, o que permitia
movimentos que fariam inveja a qualquer astronauta.
Jack estendeu cuidadosamente os braços e as pernas até ficar
como uma águia de asas abertas. Depois de dispor as pinças
em ângulo, dentro do solo oceânico, e travar as juntas, ele
apoiou firmemente os cotovelos contra a carapaça superior
com as mãos espalmadas embaixo. Tudo agora iria depender
de sua habilidade para remover a unidade da bateria da fenda
da rocha que a prendia.
Com cada fibra de seu ser Jack se impulsionou para cima.
Quando se arqueou para trás, preso às correias, as dores
causadas pelo ferimento a bala o fizeram contorcer-se. Ele
sabia que era agora ou nunca, que seu corpo havia sido
exigido até o limite e que logo perderia a força para
comandá-lo.
Jack estava a ponto de desmaiar de exaustão quando ouviu
um som de algo sendo triturado e um movimento apenas
perceptível para cima. Ele juntou todas as suas reservas de
força e puxou com ímpeto uma última vez. Repentinamente
o ADSA ficou livre e levantou-se de um salto, a ponto de o
solavanco atirar Jack contra o console.
Ele estava livre.
Depois de inundar o reservatório de flutuabilidade para
impedir o ADSA de subir muito depressa, Jack olhou ao seu
redor. À sua frente havia ondulações onde os rios de lava
que fluíram lentamente haviam se solidificado como
almofadas de rocha em forma de bulbo. À sua direita havia
um imenso pilar de lava, uma estrutura oca de cinco metros
de altura onde a lava que fluíra rapidamente encontrara água
que tinha entrado em ebulição e expulsara a rocha resfriada
para cima. Perto do pilar havia uma outra erupção de rocha
ígnea, esta se parecendo mais com um minivulcão que
exibia tons amarelos e marrom-avermelhados sob a luz do
holofote. Jack concluiu que a rajada muito quente que o
havia sacudido viera de um respiradouro hidrotérmico, um
poro aberto no solo oceânico onde água superaquecida
irrompia do lago de magma abaixo da fenda. Quando olhou
para o minivulcão, o cone expeliu uma coluna de jato preto
como uma chaminé de fábrica. Era o que os geólogos
chamavam de fumador negro, uma nuvem carregada com
minerais que se precipitavam para cobrir o solo do mar
circundante. Ele pensou de novo na extraordinária entrada
para a câmara, na Atlântida, as paredes que brilhavam com
minerais que até podiam ter se originado em um
respiradouro no oceano profundo e ter sido empurrados para
cima quando o vulcão se formou.
Respiradouros hidrotérmicos deviam estar cheios de vida,
pensou Jack com desconforto, cada um deles era um oásis
em miniatura a atrair organismos em forma de larva que
desciam flutuando de níveis mais acima. Tratava-se de
ecossistemas únicos, muito mais baseados em substâncias
químicas do que em fotos-síntese, na habilidade dos
micróbios de metabolizar o gás sulfídrico proveniente dos
respiradouros e proporcionar os primeiros elos em uma
cadeia de nutrição completamente divorciada das
propriedades de vida fornecidas pelo sol. Mas, em vez de
exércitos de vermes de sangue vermelho e tapetes de
organismos, não havia nada; as chaminés de lava apareciam
gradualmente ao redor dele como os tocos enegrecidos de
árvores depois de uma queimada na floresta. Nas
profundidades envenenadas do mar Negro nem mesmo uma
simples bactéria podia sobreviver. Era um solo improdutivo
onde a maravilha da criação parecia ter sido eclipsada pelos
poderes das trevas. Subitamente, Jack sentiu vontade de
estar longe daquele lugar tão desprovido de vida, que parecia
repudiar todas as forças que o haviam trazido à existência.
Jack desviou o olhar para longe da cena deserta e verificou o
display. O sonar mostrou que ele estava a trinta metros da
face ocidental do abismo e a cento e cinqüenta metros acima
do naufrágio do Seaquest, sua profundidade absoluta agora
era de pouco mais de trezentos metros. Ele se encontrava a
um terço do caminho para a ilha, que agora distava dois
quilômetros para o sul.
Olhou à frente e viu uma neblina de aparência leitosa como
uma duna muito alta de areia. Era a extremidade principal de
um depósito instável de sedimento, uma indicação de que a
área de substrato exposta pela avalanche estava chegando ao
final. Tudo ao redor de Jack eram marcas de correntezas
provocadas por deslizes anteriores. Ele necessitava ficar
acima da zona de turbulência para a eventualidade de sua
movimentação causar uma outra avalanche. Jack segurou
com a mão esquerda o controle de flutuabilidade e com a
direita a alavanca de propulsão, ao mesmo tempo que se
inclinava para a frente para dar uma última olhada. O que ele
viu foi uma terrível aparição. A parede de lama estava
vagarosa e inexoravelmente turbilhonando em direção a ele
como um imenso tsunami, tudo era ainda mais aterrador
porque não havia ruído. Jack mal teve tempo de pressionar o
gatilho de flutuabilidade antes de ser engolido em uma
tempestade turbilhonante de trevas.

27

Costas piscou violentamente quando a água escaldante
gotejou em seu rosto. Ele fora arremessado contra o chão de
rocha depois de ter sido empurrado durante um instante
pavoroso para dentro da coluna de vapor, o imenso pilar de
fumaça branca que se erguia na frente dele e ia até a janela
circular muito acima.
Ele estava de volta à câmara de audiência, no lugar onde
havia visto Jack pela última vez. Costas havia desmaiado
tantas vezes nas últimas horas que perdera totalmente a
noção de tempo, mas achava que tinha se passado uma
noite, e que já era um novo dia, desde que tropeçara para
fora do labirinto e fora para a luz ofuscante do holofote de
Aslan.
Costas dirigiu sua mente para o que viria depois. Como você
conseguiu sair do submarino? Repetiam isto sem parar e
batiam-lhe com tanta freqüência que seu corpo havia se
tornado uma massa contínua de vergões e machucados. No
entanto, ele era um otimista nato, e cada vez que o matador
de Aslan o espancava ele sentia um pouco de esperança, um
palpite de que Ben e Andy haviam suportado o tranco e
ainda estavam lutando contra os intrusos.
Com o rosto pressionado contra o solo, Costas mal podia
distinguir a figura vendada e dissimulada por um véu que se
encontrava sentada no trono a poucos metros dele. Quando
conseguiu focalizar, a venda foi arrancada e ele percebeu
que era Katya. Ela o olhou sem reconhecê-lo, e depois seus
olhos se arregalaram de horror com a aparência dele. Costas
se esforçou ao máximo e lhe deu um sorriso.
O que aconteceu em seguida fez com que ele
experimentasse uma sensação de impotência. Uma figura
baixa e sólida apareceu, vestindo a roupa preta padrão, mas
claramente identificável como uma mulher. Ela segurava um
punhal curvo de desenho árabe contra o pescoço de Katya,
depois lentamente deslizou-o até seu diafragma. Katya
fechou os olhos, mas o branco dos nós dos dedos apareceu
quando suas mãos agarraram o trono.
- Se eu pudesse fazer o que quero, acabaríamos com isso
agora. - Costas pôde perceber que as palavras russas foram
cuspidas no rosto de Katya. - E eu vou fazer o que quero.
Esse véu será a sua mortalha.
Com espanto e repugnância Costas percebeu tratar-se de
Olga. A mulher de cor parda, no entanto bonita, que ele
havia visto no heliporto em Alexandria, cuja voz ele ouvira
tantas vezes nas últimas horas infernais. Ela devia ser um
monstro. Enquanto Olga continuava a atormentar Katya,
Costas se esforçou para se pôr de pé, mas foi empurrado para
o chão com um soco nas costas.
Houve uma agitação na extremidade da sala quando um raio
de luz apareceu na entrada. Com o seu olho bom, Costas viu
Aslan que chegava, ajudado de cada lado por uma figura
vestida de preto. Ele arrastou-se pelas escadas até que parou
ofegando e chiando na frente de Olga, ao mesmo tempo
que, impaciente, ordenava a seus ajudantes que se retirassem
dali.
Por um segundo Costas captou o olhar de Aslan dirigindo-se
de uma mulher para a outra, com um vestígio de dúvida em
sua expressão, antes de se deter sobre Olga. Naquele
momento Costas se deu conta de que Olga não era uma
mera subordinada, que ela exercia uma influência muito
mais forte do que Aslan poderia imaginar. A expressão de
Katya mostrava que ela também conhecia a verdade, que a
megalomania dele fora alimentada por uma outra força
maligna que havia eliminado os últimos vestígios de
paternidade nele.
- Você vai sair agora. - Aslan falava em russo com Olga. -
Vai voar no helicóptero do Vultura para Abkházia e entrar
em contato com nosso cliente. Acho que nossa mercadoria
estará pronta para ser transportada muito em breve.
Olga casualmente roçou a faca no rosto de Katya quando se
virou e subiu as escadas com os dois homens. Ela estava
levemente agitada, os lábios tremendo, com uma excitação
doentia por causa do que quase havia feito. Costas olhou
horrorizado, espantado com a malevolência que emanava
dela.
Depois que eles saíram, Aslan inclinou-se penosamente
sobre Costas, seu rosto era uma imagem aterradora de pura
raiva. Ele puxou a cabeça de Costas para trás e segurou uma
pistola debaixo do seu queixo. Costas podia sentir o cheiro
da respiração dele, como carne estragada. Seus olhos
estavam injetados de sangue e inchados, sua pele oleosa e
enfraquecida. Costas recuou, mas devolveu o olhar de Aslan.
- Antes de vocês emergirem ontem, eu enviei três de meus
homens pelo mesmo túnel, - disse Aslan entre os dentes. -
Eles não voltaram. Onde eles estão?
Costas, de repente, se lembrou das bolhas que saíam do
respiradouro do vulcão na parte final da passagem debaixo da
água.
- Eles pegaram um caminho errado, eu acho.
Aslan bateu no rosto de Costas com a pistola e este pulou
para trás com uma dor lancinante, o sangue salpicando o
trono.
- Então você vai nos levar pelo caminho certo. - Ele
apontou com o revólver para o equipamento de mergulho
que estava arrumado no chão, depois fez um sinal em
direção ao trono onde Katya estava lutando contra dois
assassinos. - Ou minha filha será iniciada nos ritos de sharia
antes do que ela esperava.

Quando Jack se projetou em sentido vertical através da lama,
ele focalizou toda a sua atenção no sistema de navegação. O
radar de mapeamento do terreno mostrava que ele estava
subindo perigosamente perto da parede oriental do canyon;
a borda se encontrava agora a menos de cinqüenta metros
acima. A leitura de profundidade indicava que ele estava
subindo mais do que dois metros por segundo, uma
velocidade que iria aumentar dramaticamente quando a
pressão externa diminuísse, mas Jack não podia reduzi-la até
que ficasse livre da fenda.
De repente, a luz vermelha começou a piscar quando a
varredura do radar alertou Jack sobre um perigo logo acima.
Na fração de segundo em que avistou a extremidade do
canyon, ele girou em direção ao leste e acionou o propulsor
da popa. Cingiu os braços ao redor do corpo para se proteger
de um impacto que milagrosamente não ocorreu; o ADSA
não acertou a saliência que teria arrancado o equipamento
de propulsão e o de flutuabilidade, fazendo com que ele
mergulhasse verticalmente para a morte.
Assim que saiu do canyon, Jack esvaziou o reservatório até
ficar flutuando em ponto neutro, e depois moveu-se,
inclinado para a frente, usando os propulsores vetoriais. Ele
parecia estar voando acima de uma tempestade gigante que
se movia lentamente, uma massa oscilante que envolvia a
borda do canyon e obscurecia a fenda aberta embaixo. Jack
tinha colegas que teriam vontade de voltar a esse lugar,
usando sondas para grandes profundidades para redescobrir
os respiradouros hidrotérmicos, mas Jack sinceramente
esperava que essa fosse sua única incursão em uma terra
devastada que parecia condensar todos os piores pesadelos
sobre os abismos oceânicos.
E agora, na escuridão à frente, estava a descoberta que os
havia trazido até ali, uma paisagem que fez o coração de Jack
acelerar enquanto ele direcionava o submersível para as
coordenadas da ilha. O medidor de profundidade mostrava
148 metros, quase o nível do antigo contorno da costa
submersa. Ele ainda se encontrava em um ambiente redutor,
abaixo do oxycline, e a lama de cor cinza-azulada estava
desprovida de vida visível. Depois de alguns minutos
começou a discernir um cume, uma margem contínua e
baixa, na base, que parecia ser a antiga escarpa da praia.
Iria entrar na cidade perdida pela parte oriental, do lado
oposto ao que ele e Costas haviam explorado dentro dos
Aquapods, dois dias antes. A primeira visão das estruturas
cobertas de lama lhe trouxe de volta a excitação intensa que
havia sentido então, a maravilha da descoberta deles
eclipsando, de repente, as provações por que passara nas
últimas vinte e quatro horas. Com um entusiasmo crescente
ele se ergueu sobre a margem e observou a cena à sua frente.
Seus pensamentos se voltaram imediatamente para os
amigos. Já havia horas que o Sea Venture não ouvia sinal
algum de sua embarcação-irmã e deveria ter então alertado
as autoridades da Turquia e da Geórgia. Mas eles haviam
concordado em informar os russos sobre a descoberta do
submarino primeiro e uma reação combinada poderia levar
dias.
A ajuda poderia chegar muito tarde.
Jack rezava para que Ben e Andy ainda estivessem
conseguindo se manter firmes. Os homens de Aslan
tentariam descobrir o caminho através do labirinto, para
pegá-los de surpresa. A única maneira de Aslan conseguir
isto seria ter Costas ou Katya como guia, e forçá-los a bater o
código no casco do submarino, o que faria com que a
tripulação abrisse a escotilha. Jack sabia que depois que
fizessem isso eles teriam poucas chances de sobreviver. Ele
deveria fazer o possível para entrar em contato com Ben e
Andy, e depois retornar, de algum modo, até a câmara de
audiência e defender a passagem o melhor que pudesse.
A bateria estava perigosamente baixa e Jack sabia que devia
conservá-la para o esforço final. Desceu até o fundo do mar
e começou a andar com o ADSA ao longo de um amplo
leito, cada passo levantando uma pequena nuvem de lama. À
direita havia uma linha de formas curiosamente familiares
cobertas de sedimento. Jack se deu conta com espanto que
estava olhando para as primeiras carroças, mais antigas do
que o primeiro transporte dotado de rodas registrado na
Mesopotâmia em cerca de mais de dois mil anos.
À sua esquerda havia uma ravina profunda, outrora um
braço de mar, que se ampliou em uma bacia retilínea com
cerca de trinta metros de largura. Ele passou por pilhas
amontoadas de cepos, provavelmente de pinheiros, faias e
juníperos ancestrais e por florestas que ainda cobriam o
nordeste da Turquia, tudo perfeitamente preservado no
ambiente anóxico. A paisagem mais além ultrapassava suas
mais alucinadas expectativas. Na praia havia dois cascos
semicompletos, cada um com vinte metros de comprimento
e erguidos sobre moldes de madeira. Essa poderia ter sido
uma imagem de qualquer estaleiro moderno no mar Negro.
As embarcações eram estreitas e de casco aberto, projetadas
para ser usadas com remos de pá larga e não remos comuns,
mas fora isso eram tão polidas e refinadas como as longas
embarcações dos vikings. Quando Jack se aproximou do
primeiro casco, um leve golpe com o braço manipulador
deslocou a lama, revelando um encaixe das pranchas feito
por marceneiros usando precisamente a técnica que ele e
Mustafá haviam previsto para os marinheiros do período
neolítico.
Mais adiante, na praia, havia pilhas de tábuas e ferramentas
de carpintaria, bem como rolos de cordame grosso. No meio
deles encontravam-se cinco conjuntos de moldes alinhados
lado a lado, em direção à bacia, cada um deles bastante
grande para construir um casco de quarenta metros de
comprimento. Os suportes estavam vazios e os construtores
navais haviam desaparecido fazia muito tempo, mas, durante
algumas semanas desesperadas no meio do sexto milênio
antes de Cristo, deve ter havido naquele local uma imensa
atividade de construção, só superável pelos egípcios na
época em que ergueram as pirâmides. Quando as águas
inundaram as partes baixas da cidade, as pessoas devem ter
transportado suas ferramentas e a madeira para construção
declive acima, incapazes de compreender que suas casas
logo iriam desaparecer para sempre. Jack havia encontrado
um dos locais-chave da história, onde as pessoas paravam
durante suas viagens, um lugar onde toda a energia e a
sabedoria da Atlântida haviam sido equilibradas para
estimular a civilização desde a Europa ocidental até o vale do
Indus.
O aparelho que mapeava o terreno começou a revelar os
contornos do declive à frente. Jack passou o ADSA para o
modo submersível e se deslocou para detrás da planície da
antiga costa sobre um platô do tamanho de uma pista de
corridas, com uma ampla abertura em seu centro. Ele
lembrava do conduto de água no vulcão e percebeu que esse
era o segundo estágio no sistema, um imenso reservatório
desbastado na rocha que servia como ponto de difusão para
aquedutos que desciam até a zona industrial e doméstica dos
bairros da cidade.
Jack continuou a subir o declive na direção sul. De acordo
com o esboço de mapa que havia introduzido no
computador, ele devia estar se aproximando agora das partes
altas do caminho processional. Segundos depois o aparelho
que mapeava o terreno deu provas disso, o display 3-D
exibiu a face oriental da pirâmide. Logo atrás dela o
contorno irregular do vulcão estava começando a se
materializar, e entre eles havia um objeto de forma
cilíndrica que bloqueava a fenda entre a pirâmide e a face da
rocha entalhada.
Uma massa de metal torcida apareceu no meio da escuridão
sinistra. O ADSA parecia insignificante ao lado da grandeza
do submarino; o casco revestido se elevava acima de um
edifício de quatro andares e seu comprimento era
comparável ao de um campo de futebol. Com cuidado Jack
passou por cima da hélice arrancada, agradecido porque o
motor elétrico do ADSA era muito pouco audível e os jatos
de água produziam uma turbulência mínima. Desativou os
holofotes e escureceu os displays LCD.
Quando passou por cima da escotilha de fuga, atrás da
câmara do reator, Jack lembrou por uns instantes do capitão
Antonov e de sua tripulação, seus cadáveres iluminados
eram mais um acréscimo à colheita de morte produzida pelo
oceano sinistro. Jack tentou afastar essa imagem repulsiva
enquanto se aproximava da forma elevada da torre blindada
de comando. Na escuridão ele mal pôde distinguir a auréola
de um sistema de holofotes acima da coberta de proa a
estibordo. As luzes estavam montadas em um submersível
que havia pousado como um inseto predatório sobre o
DSRV, a partir do qual ele foi conectado com a escotilha de
fuga dianteira do submarino. Os homens de Aslan tiveram
acesso ao Kazbek através da escotilha traseira do DSRV,
usando, para se acoplar, um simples cadeado como argola.
Jack apoiou o ADSA com cuidado sobre o revestimento
anecóico do submarino. Enfiou as mãos dentro dos braços
manipuladores e estendeu-os para fora até poder ver as
juntas nos cotovelos e nos punhos. O metal estava amarelo
por causa do gás sulfídrico, mas as vedações haviam se
conservado. Jack flexionou os braços até que tocassem nas
duas caixas de metal que havia prendido na frente de seu
traje, acima da mochila da bateria. Usou os três dedos de
metal na extremidade de cada braço para abrir as caixas e
retirar os conteúdos. Depois cortou o invólucro com a pinça
e desenrolou um emaranhado de bolas do tamanho das de
pingue-pongue, todas ligadas por uma trama de filamentos
finos.
Em geral as minas estavam divididas em fileiras e eram
espalhadas como um guarda-chuva flutuante em cima de um
local arqueológico. Cada uma das duzentas cargas de pólvora
estava preparada para explodir ao contato e era
potencialmente letal para um mergulhador. Juntas elas
formavam uma carga única altamente explosiva, o suficiente
para colocar um submersível fora de ação para sempre.
Depois de ativar o detonador, Jack retirou as mãos de dentro
dos braços manipuladores e segurou a alavanca de controle,
usando a do equipamento de flutuabilidade para se elevar,
com cuidado, para longe do submarino. Embora estivesse
fora do foco principal da iluminação, ele se preocupava em
não ser visto e dirigiu-se com um movimento rápido para a
lateral a bombordo do Kazbek e depois para a popa inativa
do submersível inimigo. Em seguida escondeu-se atrás do
tambor de um metro de largura que protegia o propulsor do
submersível, colocando o equipamento de flutuabilidade no
automático para garantir que se manteria em uma posição
neutra enquanto suas mãos estivessem longe dos controles.
Jack virou o propulsor da popa até que estivesse tão à frente
quanto podia ir, e então reinseriu rapidamente as mãos nos
braços manipuladores.
Quando estava prestes a prender as minas debaixo de uma
coluna com um engate, ele foi atirado para longe do
compartimento do propulsor. Começou então a girar em
espiral como um astronauta sem controle; a esfera de luz do
submersível desapareceu, de modo alarmante, enquanto ele
lutava para se endireitar usando os propulsores laterais.
Depois de finalmente conseguir parar, olhou para trás e viu a
turbulência que saía do equipamento do propulsor. Ele já
começara a ficar preocupado quando os holofotes se
acenderam, um consumo desnecessário das reservas da
bateria, e agora percebia uma rádio-bóia sendo ativada.
Jack direcionou os propulsores da popa e voltou
rapidamente para a torre de comando blindada do Kazbek.
As minas estavam balançando precariamente no lugar onde
ele as havia deixado no alojamento do propulsor do
submersível. Se elas deslizassem, seu empreendimento
estaria condenado. Ele necessitaria dinamitar a carga tão logo
estivesse atrás do estabilizador do Kazbek e fora do alcance
da onda de choque da explosão.
Enfiou a mão no bolso localizado em seu peito para preparar
o detonador remoto, uma pequena unidade quase idêntica,
em aparência, a um rádio de mão. Ele havia pré-selecionado
o canal 8 para ativar a explosão.
Jack se permitiu dar uma rápida olhada a estibordo enquanto
se aproximava do casco superior do Kazbek. Para seu
espanto, o submersível havia se desacoplado e estava agora a
menos de dez metros de distância; sua forma cilíndrica
erguia-se em direção a ele como um tubarão predatório.
Através de uma janela um rosto o fitava diretamente, sua
expressão demonstrava choque, surpresa e fúria.
Jack precisava pensar depressa. Não alimentava esperanças
de escapar do submersível. Ele estava familiarizado com o
seu tipo, um derivado do submarino de resgate britânico
LR5 com propulsores hidráulicos capazes de se deslocar
num ângulo de até 180 graus, o que lhe dava a agilidade de
um helicóptero. Ele estava muito próximo para arriscar
detonar as cargas, não apenas pelo dano que poderia causar a
si mesmo, mas também pela onda de choque que danificaria
o equipamento de subsistência de emergência do Kazbek e
desestabilizaria as ogivas. Sua única chance era a de
permanecer e lutar, atrair o submersível para um duelo que
pareceria um suicídio unilateral. Sua jogada se apoiava no
peso morto do submersível. Com um suprimento completo
de passageiros, ele se tornaria moroso, e cada ataque exigiria
um amplo giro para se reposicionar, o que lhe daria tempo
para sair da zona de perigo.
Como um toureiro da era espacial, Jack aterrissou em cima
do revestimento do Kazbek e voltou-se para encarar seu
assaltante. Mal teve tempo de flexionar as pernas antes que o
submersível estivesse em cima dele; a ponta da proa não o
pegou por um fio de cabelo, quando Jack se arremessou para
cima do casco. Preparou-se para um outro ataque violento
com os braços estendidos, como um toureador atiçando o
touro. Ele viu o submersível esvaziar seus tanques de lastro e
ficar mais lento enquanto subia a face do declive e girava
para um novo mergulho. Jack então desceu repentinamente,
com incrível velocidade, e os holofotes o cegaram enquanto
caía de rosto sobre o casco. Quando ele se deslocou na
vertical, a turbulência fez com que girasse para trás e o fio
dependurado que ligava as minas roçou-o perigosamente.
Não havia jeito de as minas suportarem um novo puxão do
fio sem escorregar para fora ou ficar emaranhadas na hélice,
um resultado potencialmente mortal se provocasse uma
explosão muito próxima do submarino.A
Jack observou enquanto o submersível se movia rápido para
um novo ponto de partida, sua forma diminuída enquadrada
contra a imensa face sul da pirâmide. Dessa vez Jack
permaneceu prostrado em cima do casco enquanto avaliava
a distância. Vinte metros. Vinte e cinco metros. Trinta
metros. Era agora ou nunca. No momento exato em que o
submersível começou a virar, ele pressionou o canal 8.
Houve um clarão seguido por uma sucessão de solavancos
que esmurraram seu corpo como estrondos sônicos. A
explosão havia arrancado o leme do submersível e deixado
os destroços espiralando loucamente em direção ao fundo
do mar. A onda de choque devia ter matado os ocupantes
instantaneamente.

28

- O equipamento de subsistência está funcionando? Câmbio.
Jack estava utilizando o braço manipulador para transmitir
sua pergunta através do casco do submarino em código
Morse, no ponto em que a escadaria desbastada na rocha
desaparecia debaixo dele. Apesar dos efeitos amortecedores
do revestimento anecóico, suas primeiras batidas
provocaram uma resposta imediata e gratificante. Com
algumas sentenças em código Morse, Jack ficou sabendo, de
Andy e Ben, que a ameaça de Katya de destruir o submarino
havia mantido os assaltantes à distância. Eles recuaram em
uma trégua desconfortável enquanto os dois homens da
IMU ficavam se alternando como sentinelas na parte
superior do tubo inclinado do carregador de armas.
- Nós podíamos tomar uma cerveja. Câmbio.
Jack bateu sua seqüência final.
- Um café-da-manhã britânico completo está a caminho.
Aguarde retorno. Fim.
Vinte minutos depois o ADSA havia dado a volta no
promontório oriental da ilha e subido para trinta metros
abaixo do nível do mar. Jack sabia que tinha de encontrar
um caminho sobre o vulcão para a câmara de audiência, mas
primeiro tinha de pagar uma visita. No centro de operações
de Aslan, Jack havia memorizado as coordenadas de GPS do
Vultura, fornecidas pelo SATSURV, e ele as havia
programado dentro da estação de rastreamento de navegação
do ADSA. O radar de mapeamento de terreno havia provado
que era confiável, o display de realidade virtual 3-D supria
batimetria detalhada para centenas de metros de cada lado,
bem como os contatos de superfície que eram impossíveis
de ser vistos nas trevas sombrias.
A imagem inconfundível de uma ampla superfície de navio
apareceu bem no alvo, duzentos metros adiante. Jack se
sentiu como o condutor de um mini-submarino se
infiltrando no ancoradouro do inimigo, cujos ocupantes não
tinham motivo para suspeitar de uma intrusão. Até onde eles
sabiam, Jack desaparecera havia muito tempo, um incômodo
do qual tinham se livrado para sempre quando o casco
danificado do Seaquest sepultou-o no abismo.
O mapeador do terreno mostrou que ele estava se
aproximando da popa do Vultura, as hélices duplas e o leme
apareciam claramente na tela. Vinte metros abaixo, Jack
iniciou a subida final injetando ar bem devagar na câmara de
flutuabilidade e subindo em espiral por meio dos empuxos
laterais. Quando estava a quinze metros o contorno negro
do casco se tornou visível a olho nu e ele pôde ver o sol
brilhando nas águas dos dois lados. Quando se aproximou,
Jack percebeu as ranhuras onde os valentes esforços de
Howe e de York deixaram suas marcas, e ele podia ouvir o
ressoar amortecido do trabalho de reparação nos turbojatos
diretamente acima.
Jack abrigou o ADSA contra o leme e repetiu o
procedimento que havia realizado no submersível menos de
uma hora antes. Retirou a segunda rede de bolas de minas e
enrolou-a em torno do pivô central do leme, dessa vez
amarrando as extremidades com um fio adicional debaixo do
parafuso. Quando destravou o detonador, deu uma olhada
para o alto e viu as formas oscilantes de duas figuras
encostadas contra a amurada a estibordo. Felizmente o
respirador de oxigênio não produzia nenhum escapamento
revelador do aparelho para respiração subaquática, e ele não
seria visto em contraste com a profundidade escura.
Ele sabia que havia uma chance de Katya e Costas estarem
no navio acima dele. O explosivo causaria um grande dano
nas hélices e no leme, mas seria desviado pela blindagem do
casco, um risco que ele devia assumir. De novo, Jack fez
uma prece silenciosa.
Ele apostava no fato de que a tripulação estaria ocupada com
o dano causado na borda do navio no dia anterior, durante a
batalha de canhões, e já teria feito inspeções abaixo da
superfície da água. Para minimizar o risco de ser notado,
Jack optou por descer usando os propulsores laterais em vez
da câmara de flutuabilidade, mesmo que isso exigisse a
utilização da bateria de reserva.
Apenas dez minutos depois de ter visto o casco pela
primeira vez, o ADSA desapareceu tão silenciosamente
quanto havia chegado, descendo nas profundezas sombrias e
passando despercebido, sem ser visto ou ouvido por
ninguém da tripulação do Vultura.
Usando o mapeador de terreno para navegar, Jack se
deslocou a jato meio quilômetro em direção à costa
ocidental da ilha e encontrou um abrigo fora da visibilidade
do Vultura. Quando alcançou o fundo do mar rochoso, toda
a força cessou repentinamente. Havia ficado sem bateria. Ele
reduziu o poder de flutuação e desceu para completar o
trajeto final a pé, avançando para cima sobre os vagalhões
ondulados de lava em direção à linha de arrebentação.
Jack encontrou uma rocha plana, dois metros abaixo da
superfície, e com muito cuidado subiu à tona. Travou os
membros do ADSA e desacoplou o anel de pescoço. Quando
puxou o capacete aberto, piscou intensamente sob a luz do
sol e respirou com dificuldade, repetidas vezes, enquanto os
pulmões se enchiam com ar fresco pela primeira vez desde
que havia saído do módulo de comando do Seaquest mais de
três horas antes.
Jack se arrastou para fora do ADSA e se agachou na orla
rochosa. Era uma bela tarde de verão, o sol brilhava nas
ondas que lambiam seus pés. Acima da costa estéril os
declives escarpados da ilha se elevavam diante dele. Acima
do cume mais elevado Jack podia ver uma coluna de fumaça
branca projetada contra o céu.
Ele não teve chance de saborear o alívio por ter sobrevivido.
A dor de seu ferimento estava queimando e não havia
tempo a perder.
Depois de olhar rapidamente ao redor para se certificar de
que estava sozinho, removeu os itens que havia trazido do
compartimento de armas. Jack ainda vestia o traje para vôo
em helicópteros e colocou o transceptor-detonador num dos
bolsos da perna e as duas cargas explosivas Semtex no outro.
Tirou a Beretta, empurrou o slider para a frente para armá-la
e recolocou-a no coldre em seu peito. Depois pegou a SA80
e os três pentes, colocando um na arma e enfiando os outros
dois nos bolsos superiores de seu traje. Depois de checar o
supressor de som, ele puxou o ferrolho e pendurou-o nas
costas.
Jack fechou o capacete e empurrou com cuidado o ADSA
para dentro das ondas. O equipamento havia sido seu salva-
vidas, fazia-o lembrar que Costas havia estado com ele em
espírito. Mas agora nenhuma tecnologia garantiria seu salvo-
conduto. Ele estava entregue a si mesmo, à sua resistência
física e força de vontade.
Girou para contemplar o declive rochoso acima.
- Chegou a hora da vingança, - murmurou Jack baixinho.
A parede entalhada na rocha aparecia gradualmente no alto à
medida que Jack se dirigia para o seu interior. Entre ele e um
platô, oitenta metros acima, havia três terraços, cada um
culminando em uma fileira de pináculos cortantes e
salientados por linhas quebradas e corrosões. O basalto era
duro e áspero e proporcionava uma excelente adesão. Ele
não tinha alternativa a não ser subir.
Jack amarrou o SA80 bem firme e começou a subir uma
chaminé vertical que se estendia por toda a altura do
primeiro lance. Mais ou menos no meio do caminho ela se
estreitava e Jack tinha de avançar, aos poucos, com os pés
cingindo-a de cada lado e dirigindo-se, no fim, para uma
plataforma estreita trinta metros acima do seu ponto inicial.
O segundo lance era íngreme e levava continuamente em
frente; o alcance amplo do braço de Jack lhe proporcionava
vantagens enquanto subia entre uma série de saliências
grandes e pequenas. Ele continuou além da segunda fileira
de nináculos em direção ao terceiro lance, até que alcançou
um posto logo abaixo do cume onde uma saliência se
projetava quase um metro ao longo de todo o comprimento
do despenhadeiro.
Quando se equilibrou com os braços abertos contra a face da
rocha, Jack sabia que qualquer vacilação enfraqueceria sua
resolução. Sem pensar nas conseqüências de um fracasso, ele
estendeu o braço direito para fora e fechou os dedos ao
redor da saliência. Quando teve certeza de que estava
seguro, libertou a outra mão e colocou-a junto à primeira.
Ele estava pendurado sobre oitenta metros de rocha
escarpada que o reduziriam a pedaços se caísse. Jack
começou a balançar as pernas primeiro bem devagar,
aumentando depois a força cinética. Na segunda tentativa,
prendeu a perna direita no topo e se ergueu até ficar a salvo.
A cena com a qual se deparou o deixou sem fôlego. Jack se
agachou para recuperar as forças e olhou para um deserto de
lava solidificada. Duzentos metros à sua esquerda se
encontrava o cone do vulcão, cuja chaminé cuspia uma
volumosa nuvem de vapor que subia bem alto em uma
coluna rodopiante até o céu. No meio do caminho em
direção ao cone ele podia ver uma entrada baixa e modesta,
acima da escadaria desbastada na rocha que serpenteava em
direção à sela, passava por ele e desaparecia a perder de vista
do lado esquerdo. Era evidentemente uma antiga rota
externa para subir até o vulcão, aquela utilizada por Aslan e
seus homens quando chegaram à ilha pela primeira vez.
O pico mais baixo, trinta metros à frente, era uma maciça
elevação de jato negro de lava. O topo estava nivelado como
uma plataforma de aterrissagem, uma impressão reforçada
pelo Kamov Ka-28 Helix estacionado no meio dela. Ao
redor do contorno da costa, Jack contou quatro figuras
vestidas de preto, todas armadas com submetralhadoras AK
ou Heckler & Koch.
A vista mais espantosa era a estrutura que rodeava o
helicóptero. Contornando a plataforma havia um círculo de
megálitos enormes, pedras eretas com três vezes a altura de
um homem e com dois metros de circunferência. As pedras
estavam desgastadas por milênios de exposição, mas outrora
haviam sido finamente acabadas. Elas estavam cobertas por
maciças placas planas que formavam um lintel contínuo e
circular. Dentro havia cinco dolmens trilíticos distribuídos
livremente, cada par de pedras com seu lintel colocado num
padrão de ferradura aberta para o oeste em direção ao cone
vulcânico.
Jack percebeu com reverência que estava olhando para o
precursor de Stonehenge. Era ali que os atlantes observavam
a diferença entre o ano solar e o lunar que eles haviam visto
arranjada em forma de tabela em uma das passagens abaixo.
O cone do vulcão era um dispositivo visual, a posição do sol
de cada lado indicava a estação do ano. Nos equinócios
vernal e outonal o sol pareceria mergulhar dentro do vulcão,
um evento que teria afirmado os poderes de proteção da
vida da Atlântida.
Jack se concentrou, planejando como usar as pedras para sua
vantagem tática. Depois de destravar a segurança do SA80,
firmou a arma dentro de uma fissura semelhante a uma
trincheira na plataforma. Correndo a toda velocidade, com
grande esforço, ele rapidamente alcançou o megálito mais
próximo e se apertou contra ele. Com cautela olhou
atentamente ao redor e viu que o helicóptero estava
desocupado, sem nenhum guarda à vista. Depois de retirar o
Semtex, ele arremessou-se para a frente através das
ferraduras e colocou um bloco no exaustor e o outro debaixo
da cabina do piloto, destravando enquanto isso os
detonadores.
Ele se levantou para ir embora e repentinamente deparou-se
cara a cara com uma figura de preto emergindo de detrás de
uma das pedras dispostas no local. Por uma fração de
segundo os dois homens ficaram imobilizados pela surpresa.
Jack foi o primeiro a reagir. Dois tiros do SA80 e o homem
caiu como uma pedra, morrendo instantaneamente ao ser
atingido pelas balas de alta velocidade de 5,56 milímetros
que atravessaram seu pescoço.
O ruído da arma alertou os outros homens. Jack correu
direto para eles enquanto convergiam para o helicóptero.
Antes que qualquer um deles conseguisse alcançar suas
armas, Jack esvaziou as balas restantes no pente em um arco
fechado a partir da altura do quadril. As balas partiram e
algumas ricochetearam na rocha, e no fim os três homens
caíram e se estatelaram no chão.
Jack colocou um outro pente e saltou para a rampa, em
direção à escadaria. Ele havia apostado que o restante dos
homens de Aslan estariam ou no Vultura ou no vulcão.
Alcançou a entrada no topo das escadas sem qualquer sinal
de que seria detido. O portal era imponente, a abertura
ampla o bastante para deixar entrar as procissões que deviam
passar num tempo anterior entre o círculo de pedra e a
câmara de audiência. Ele podia ver a passagem virando para
a esquerda em um ângulo agudo em direção a uma fonte
distante de luz. Depois de recuperar o fôlego, Jack apontou a
arma na horizontal e avançou cautelosamente sobre os
degraus gastos na escuridão do outro lado.
Dez metros adiante ele virou no ângulo da passagem e viu
um enevoado retângulo de luz. Depois percebeu uma coluna
de vapor e se deu conta de que estava se aproximando da
mesma plataforma elevada em que estivera no dia anterior,
chegando a ela a partir de uma entrada diferente. Escondeu-
se nas sombras e se deslocou de modo a dar uma olhada no
lado de dentro.
De cima ele podia ver a luz do céu na abóbada. À sua frente,
a rampa conduzia diretamente para baixo e ele tinha uma
vista desimpedida do espaço central. No estrado, no centro
da sala, havia cinco figuras, sendo que duas vestidas de preto
ladeavam uma mulher no trono. Sua cabeça estava coberta
por um véu, mas seu rosto era visível.
Era Katya. Ela parecia desgrenhada e exausta, mas felizmente
não estava machucada.
À sua direita havia um homem olhando para o respiradouro.
Com seu manto vermelho flutuante e a auréola de vapor
atrás da cabeça, ele parecia uma paródia grotesca dos antigos
sacerdotes, um alienígena do inferno enviado para realizar
um ritual macabro e manchar a santidade da Atlântida para
sempre.
Aslan mudou ligeiramente de lugar e Jack percebeu uma
outra figura, uma forma familiar ajoelhada no espaço entre
os tronos com a cabeça curvada e perigosamente próxima da
chaminé de vapor. Ele estava com os pés e as mãos
amarrados e vestia os restos rasgados de uma E-suit da IMU.
Para seu horror, Jack vi que Aslan estava apontando uma
pistola para a parte de trás da cabeça de Costas em uma pose
clássica de execução.
O instinto fez com que Jack pulasse na rampa brandindo sua
arma. Mesmo enquanto corria, ele sabia que não teria
chances. Sentiu um soco em suas costas e a SA80 lhe foi
arrancada das mãos.
- Doutor Howard. Que grata surpresa. Eu não havia
imaginado que nos livraríamos tão facilmente de você.
Jack foi empurrado com violência escada abaixo pelo guarda
que espreitava ao lado da entrada. Sua Beretta foi arrancada
de seu traje de vôo e entregue a Aslan, que começou
indolentemente a retirar as balas do pente. Katya olhava para
Jack como se ele fosse um fantasma.
- Eles nos disseram que você havia morrido, - disse ela com
voz rouca. - Aquela explosão, o helicóptero... - Ela parecia
confusa e desnorteada. Seus olhos estavam avermelhados e
havia manchas roxas à sua volta.
Jack lhe enviou um sorriso confiante.
Aslan fez um sinal de rejeição com a arma e voltou-se para a
figura agachada entre os tronos.
- O seu amigo não passou uma noite confortável. Se minha
filha tivesse nos contado o que sabe, as coisas teriam sido
mais fáceis para ele.
Costas virou a cabeça e conseguiu dar um sorriso torto antes
que um dos guardas o esbofeteasse. Jack ficou chocado com
a sua aparência. Sua E-suit estava em farrapos e seu rosto,
bastante ferido pelos espancamentos e muito vermelho onde
havia sido escaldado pelo vapor da chaminé. Um olho estava
fechado e inchado, e Jack desconfiava que Costas não havia
sido espancado apenas na cabeça.
- Seu amigo acabou de concordar em guiar meus homens
através dos túneis até o submarino. - Aslan fez um gesto
mostrando os três conjuntos de equipamentos com mistura
de gás deixa ao lado da rampa, e depois indicou a figura
devastada à sua frente, como você vê levou algum tempo
para persuadi-lo. Mas agora que você está aqui ele é
dispensável. Você destruiu três dos meus helicópteros e há
um preço a ser pago.
Aslan levantou a Beretta para a cabeça de Costas e puxou o
cão para trás.
- Não! Gritou Jack. - Ele é o único que conhece o caminho
de volta. Sua função era memorizar os pontos de referência
enquanto eu e Katya estudávamos a arqueologia.
Aslan sorriu astutamente e soltou o cão.
- Não acredito em você. Mas vou poupar seu amigo grego
por enquanto, se você concordar com os meus pedidos.
Jack não disse nada, mas olhou impassível para Aslan. Seu
treinamento o havia ensinado a deixar sempre o
seqüestrador pensar que estava por cima, que possuía total
controle sobre a situação. Se Aslan soubesse que a metade de
seus homens estava morta e que a sua aparelhagem favorita
estava prestes a ser destruída, ele provavelmente teria
explodido de fúria cega.
- Primeiro isto. - Aslan tirou a cópia do disco de ouro de
dentro de sua túnica. - Tomei a liberdade de aliviá-lo desta
peça enquanto você era meu convidado. Uma pequena
recompensa por minha hospitalidade. Suponho que seja uma
espécie de chave, talvez para uma passagem secreta. - Aslan
abriu os braços de modo expansivo em direção às portas que
se alinhavam na câmara. - Quero possuir todos os tesouros
deste lugar.
Ele colocou o disco no trono, ao lado de Katya, e ficou
parado na plataforma circular. O vapor estava diminuindo e
eles puderam enxergar a fenda a alguns metros dos pés de
Aslan. Era como uma ferida supurando, um ferimento
aberto e profundo que expunha o apavorante tumulto sob a
superfície do vulcão.
Abaixo deles uma onda de magma brotou, uma erupção
terrível como uma chama solar brilhante sobre o rio de lava
que a originou. Podiam ouvir, ao longe, estrondos e estouros
onde bolsas de gás estavam irrompendo com força explosiva.
Aslan voltou as costas ao espetáculo, o calor dava às suas
feições inchadas um aspecto demoníaco.
- E meu segundo pedido, - continuou ele. - Suponho que o
seu outro navio, o Sea Venture, esteja a caminho. Você vai
contatá-lo e dizer que o Seaquest está são e salvo. Presumo
que vocês possuam um acordo com os governos da Turquia
e da Geórgia. Você dirá ao seu capitão que não encontrou
nada e que está abandonando a ilha. Você tem um
radiotransmissor reservado para uso especial? Procure-o.
O guarda encontrou rapidamente o transceptor-detonador
no bolso esquerdo de Jack e mostrou-o a Aslan.
- Passe-o para mim. Qual é o canal?
Jack percebeu o olhar de Costas e lhe fez um sinal quase
imperceptível. Ele observou os dedos gordos de Aslan se
curvarem sobre o receptor antes de responder com
tranqüilidade.
- Canal 8.
No instante em que Aslan pressionou o número houve duas
explosões no exterior, seguidas depois de poucos segundos
por um estrondo mais forte que veio do mar. A fração de
segundo que os homens de Aslan ficaram paralisados os fez
perder a vantagem. Costas rolou para o lado e atingiu as
pernas do guarda junto a ele, e Jack atingiu seu capturador
com um feroz soco no pescoço. Katya imediatamente
percebeu o que estava acontecendo e chutou o terceiro
homem, atingindo-o com força no plexo solar e deixando-o
no chão a vomitar.
Com o rosto contorcido de raiva, Aslan berrou
terrivelmente ao ouvir as explosões. Arremessou o
detonador dentro da fenda e caminhou de maneira
cambaleante na beirada, seus braços agitando-se com
selvageria enquanto lutava para manter-se ereto e longe do
vapor que subia do respiradouro.
Katya gritou quando percebeu o que estava acontecendo.
Jack correu para puxá-la para trás, mas já era muito tarde. O
chão foi sacudido por uma série de violentos tremores,
porque a explosão havia desencadeado um abalo sísmico.
Aslan foi sugado pela força centrífuga da chaminé, sua
expressão mostrou a consciência intensa e fugaz de alguém
que encara a morte ao mesmo tempo consternado e
resignado, e então seu corpo caiu em meio às chamas como
um ídolo em sua auto-imolação. O calor escaldante do vapor
consumiu seu manto e derreteu-lhe a pele até que tudo que
podiam discernir eram os ossos das mãos e o branco de seu
crânio. Com um grito lancinante ele despencou para a frente
e mergulhou na fenda, uma bola viva de fogo engolida para
sempre dentro do inferno do vulcão.
O rio da morte havia reivindicado sua última vítima.

29

- Jack Howard. Aqui é o Sea Venture. Você está me
ouvindo? Câmbio.
Costas passou o receptor VHF portátil que eles haviam
pegado um pouco antes no Vultura, e Jack pressionou o
botão de resposta.
- Estou ouvindo alto e claro. Qual é a sua posição? Câmbio.
Jack ficou emocionado ao ouvir de novo o tom confiante de
Tom York. Ele havia esperado o pior, que York não tivesse
sobrevivido ao ataque furioso que provocou a terrível
devastação na coberta de proa do Seaquest.
- Estamos a três milhas náuticas a noroeste da ilha. Quatro
Seahawks com marinheiros turcos e comandos
antiterroristas da Geórgia estão se dirigindo até vocês. A esta
altura já devem estar visíveis.
Jack já escutara o ruído distante e havia adivinhado sua
identidade.
- Como você se salvou do Seaquest, - perguntou Jack.
- Fui jogado para fora quando o Vultura atacou. Felizmente a
tripulação encarregada do submarino de fuga reconheceu as
vibrações de uma batalha de canhões e voltou para
investigar. Tenho uma ferida profunda na perna, mas estou
bem.
- E Peter?
A voz de York encheu-se de emoção.
- Ainda estamos procurando por ele. Vou ser franco com
você, Jack. A perspectiva não parece boa.
- Eu sei. Você fez o melhor que pôde.
Embora Jack estivesse muito contente em ver York são e
salvo, Peter Howe havia sido um amigo de infância. Era
como perder um irmão e a sua ausência lhe pareceu,
subitamente, pesada demais. Jack fechou os olhos.
York deixou o receptor na espera e voltou alguns instantes
depois.
- Acabamos de receber uma mensagem de Ben e de Andy,
no Kazbek. Eles conseguiram fazer flutuar uma rádio-bóia.
Estão de prontidão.
O barulho dos helicópteros se aproximando começou a
atrapalhar a conversa.
- Vamos ter que interromper enquanto a cavalaria chega, -
gritou Jack. - Diga ao capitão para navegar até as
coordenadas seguintes e manter a posição até ter notícias de
novo. - Jack leu as coordenadas, em um mapa de referência,
que correspondiam a um ponto situado a um quilômetro ao
norte das pirâmides submersas. - Tenho alguns assuntos
inacabados para resolver. Você receberá notícias nossas.
Estou desligando.
Jack estava em um turbilhão emocional, angustiado com o
destino de Howe, embora orgulhoso de que os outros
tivessem sobrevivido à prova. Olhou para o rosto
machucado de Costas e ficou impressionado com a conduta
tranqüila do amigo.
Eles estavam acocorados na escadaria do lado de fora da
porta desbastada na rocha. Haviam deixado Katya sentada no
interior da câmara de audiência com uma Heckler & Koch
MP5 no colo. Jack tentou confortá-la depois da morte do
pai, mas ela se encontrava incapaz de falar sobre o ocorrido,
e até mesmo de manter um contato visual. Ele sabia que não
havia nada que pudesse fazer até que passasse o choque
inicial.
Além dos três guarda-costas que estavam amarrados no
estrado central, havia mais vinte homens do Vultura. A
tripulação se entregou depois que Jack e Costas subiram a
bordo do navio avariado e informaram que Aslan estava
morto. Apesar de seus ferimentos, Costas havia insistido
para ir com Jack, afirmando que não estava em pior
condição do que aquela pela qual Jack passara durante o
deslocamento deles pelo vulcão. Katya havia pedido para
vigiar os prisioneiros, uma maneira de poder ficar sozinha
com seus pensamentos.
- Os mocinhos finalmente estão ganhando, - disse Costas.
- Isto ainda não acabou.
Costas seguiu o olhar de Jack para além da ilha, onde o Lynx
do Sea Venture estava realizando uma busca no local que
abrigara Howe e York pouco tempo antes. Quatro Zodiacs
estavam vasculhando o mar embaixo.
O primeiro dos Sikorsky S-70A Seahawks fez barulho acima
de suas cabeças e eles sentiram uma rajada de ar fresco. No
alto do círculo de pedra, ao lado do outro pico, as portas se
abriram e lançaram para fora homens fortemente armados
que desceram e passaram pelos destroços fumegantes do Ka-
28 Helix. Quando subiram os degraus em direção a eles, Jack
e Costas olharam um para o outro e disseram seu velho
refrão.
- Está na hora de se aprontar.
Uma hora depois, os dois homens estavam dentro da sala de
torpedos do submarino pingando água de seus trajes
encharcados. Usando um novo equipamento de flutuação do
Sea Venture, eles haviam feito o trajeto de volta através do
labirinto, seguindo as fitas que Costas tinha desenrolado no
seu caminho de ida. Na câmara feita de membrana eles
fecharam as portas com placas de ouro e por meio de batidas
transmitiram um sinal através do casco do Kazbek.
Momentos depois a bomba esvaziou a câmara e a escotilha
se abriu para revelar os rostos esquálidos de Ben e de Andy.
- Não temos muito tempo, - avisou Ben. - Os depuradores de
peróxido de hidrogênio e CO2 estão saturados e as reservas
de ar, nos tanques do DSRV, estão quase vazias.
Eles tiraram rapidamente seus equipamentos e seguiram a
tripulação até a extremidade da sala de torpedos e depois até
o tubo inclinado do carregador de armas. A porta que dava
para a sala do sonar com a sentinela macabra estava fechada
e eles podiam ouvir um barulho amortecido do outro lado.
- São dois dos homens de Aslan, - observou Andy. - Foram
deixados para trás como guardas depois que o restante fugiu
no submersível. Eles se renderam quase imediatamente.
Pensamos que eles gostariam de ter a companhia de nosso
amigo da KGB.
- Os outros não tiveram tanta sorte-, - disse Jack com o rosto
circunspecto.
A aparência fatigada e faminta de Ben e Andy expressava
bem tudo que haviam passado, mas Jack estava admirado
com a perseverança deles depois de tantas horas trancados
no submarino.
Momentos mais tarde eles entraram na sala de controle. Jack
parou no lugar onde recebera o tiro, o que quase lhe custara
a vida. No canto um lençol cobria o corpo do matador
cazaque. A evidência da luta que eles haviam travado tinha
se tornado parte do cenário, mais um acréscimo à devastação
causada anos antes durante a última resistência desesperada
da tripulação.
- Onde está o controle de lastro? - perguntou Jack.
- Aqui - replicou Andy. - Ele está bastante avariado, mas
felizmente não temos que fazer nada complicado.
Acreditamos que foi deixada bastante pressão nos
compartimentos de ar para efetuar uma ventilação de
emergência. Tudo o que você tem de fazer é puxar estas
alavancas e as válvulas se abrem manualmente. - Andy
apontou para duas saliências em forma de cogumelo no alto
do painel, ambas projetadas para ser puxadas para baixo por
um operador posicionado em frente ao console.
- Certo - disse Costas. - Está na hora de enfrentar o
problema. Vocês, rapazes, merecem um pouco de uísque.
Enquanto Costas e os dois tripulantes foram em direção à
popa para desacoplar o DSRV, Jack continuou com o estágio
seguinte do seu plano, o ato final que destruiria o império
maligno de Aslan de uma vez por todas.
Quando Costas voltou do compartimento de fuga, Jack
estava sentado atrás do painel de armas no local de controle
de fogo. Essa tinha sido uma das poucas áreas que escapara
do estrago.
- O que você está fazendo? - perguntou Costas.
- Eu tenho dívidas a acertar. - Jack olhou para ele com olhos
frios. - Pode chamar de perdas e danos.
Costas olhou intrigado, como que embaraçado.
- Você é o chefe.
- Deixar o centro de operações de Aslan intacto é chamar
encrenca. Haverá uma porção de boas intenções, mas nem
os georgianos nem os turcos tocarão nisto com medo de
desencadear uma guerra civil e provocar os russos. E não
estamos falando apenas de mais um líder militar. O local é
um centro terrorista feito sob medida, um sonho para os
operadores da Al Qaeda que já devem saber de Aslan e estão
apenas esperando por esse tipo de oportunidade. - Jack
parou, pensando em Peter Howe. - E é um assunto pessoal.
Devo isto a um velho amigo.
Jack ativou as duas telas LCD à sua frente e fez uma série de
verificações operacionais.
- Katya me fez um resumo antes de sairmos. Aparentemente
mesmo os oficiais juniores de inteligência de sua categoria
foram treinados para atirar com essas armas. Em um
holocausto nuclear eles podem ser os últimos sobreviventes
em um submarino ou um bunker. Todos os sistemas são
independentes de coisas externas, e projetados para serem
operacionais em condições extremas. Katya calculou que o
computador de reserva ainda devia estar funcionando,
mesmo depois de todo esse tempo.
- Você não vai atirar um míssil de cruzeiro - ofegou Costas.
- É bem o que vou fazer.
- E as obras de arte?
- A maior parte está na área doméstica. É um risco que
tenho de correr. - Jack verificou os monitores rapidamente.
- Eu os chequei depois que desativamos aquelas ogivas. O
tubo número quatro está ocupado por um Granat Kh-55
completo, pronto para atirar. A metralha ainda está selada
pela membrana de pressão que funciona como capa de
proteção. Oito metros de comprimento, três mil quilômetros
de alcance, velocidade de cruzeiro 0,70 Mach, mil quilos de
impacto direto de carga de hélio líquido. É basicamente uma
versão soviética do míssil de ataque terrestre Tomahawk.
- Sistema direcional?
- Um software similar ao levantador de relevo de terreno e
ao GPS para o Tomahawk. Felizmente o curso é uma rota
direta sobre o mar, então não é necessário programar táticas
evasivas. Tenho as coordenadas exatas para o alvo, de modo
que não precisaremos de um sensor inteligente nem de um
sistema de identificação de padrões. Poderei deixar de lado a
maioria dos procedimentos complexos de programação.
- Mas estamos a uma profundidade muito grande para um
lançamento, - protestou Costas.
- É aqui que você entra. Quero que opere as válvulas de
ventilação de emergência. Assim que alcançarmos vinte
metros você dá a ordem para atirar.
Costas sacudiu a cabeça devagar e um sorriso apareceu em
seu rosto ferido. Sem uma palavra ele tomou posição na
frente do painel de controle de lastro. Jack permaneceu
inclinado sobre o controle por alguns instantes e depois
levantou a cabeça com firme determinação.
- Desenvolvendo solução para controle do fogo agora.
O movimento deles não dava nenhuma pista sobre a
assombrosa força que estavam prestes a liberar. Jack estava
completamente concentrado no monitor à sua frente, seus
dedos digitando uma série de comandos, com breves pausas
enquanto esperava as respostas. Depois de introduzir os
ajustes necessários, um padrão de linhas e pontos apareceu
na tela. Em um cenário operacional típico, a solução
representaria uma área de busca mais bem ajustada, mas com
as coordenadas de destino conhecidas, a tela mostrava
simplesmente uma projeção linear do alcance e da rota com
o alvo identificado com precisão.
- Carreguei um perfil da missão dentro do computador
TERCOM e estou aprontando o míssil, - anunciou Jack. -
Iniciando a contagem regressiva agora.
Jack girou sua cadeira para o console de controle de fogo,
limpando a crosta de precipitado do painel de controle de
lançamento para revelar o botão vermelho de ativação.
Checou se os dispositivos eletrônicos estavam ativos e olhou
para Costas atrás da estação de controle de flutuação. Jack
não precisava de nenhuma confirmação de que estava
fazendo a coisa certa, mas a visão do rosto machucado de
seu amigo reforçou mais ainda sua decisão. Os dois homens
acenaram silenciosamente um para o outro, antes que Jack
se voltasse de novo para a tela.
- Iniciar o ataque!
Costas puxou as duas alavancas para baixo com um barulho
ressonante. De início nada aconteceu, mas depois um
assobio ensurdecedor provocado pela alta pressão do gás
pareceu penetrar em cada tubo acima deles. Momentos
depois juntou-se a ele um estrondo como o de um trovão,
quando a investida do ar comprimido esvaziou os tanques de
lastro entre as duas camadas de revestimento do casco.
Lentamente, de maneira quase imperceptível, houve um
movimento, um rangido e um chiado que aumentaram,
tornando-se um som agudo e que parecia se alastrar de uma
extremidade a outra da embarcação. Era como se uma
criatura adormecida havia muito tempo estivesse se
espreguiçando ao acordar, um gigante adormecido
despertando de má vontade depois de uma eternidade de
inatividade não perturbada.
De súbito a proa virou para cima em um ângulo alarmante,
atirando os dois homens para um lado. Houve o som de um
puxão violento, de furar os tímpanos, quando os restos da
hélice e do leme foram arrancados.
- Segure-se! - gritou Costas. - O submarino está prestes a se
mover!
Com um barulho agudo final, a proa deu uma guinada para
cima e as nove mil toneladas do submarino ficaram livres. A
medida de profundidade, na frente de Costas, começou a
mudar com alarmante rapidez.
- Na minha marcação! - gritou Costas. - Oitenta metros...
sessenta metros... quarenta... trinta... atire!
Jack pressionou o botão vermelho e ouviu-se um som como
o de um extrator a vácuo na frente do submarino. O sistema
de lançamento abriu automaticamente a porta hidráulica do
tubo e colocou em operação uma carga explosiva que atirou
o míssil na água. Alguns metros na frente do casco o foguete
auxiliar impeliu o míssil com força colossal para a superfície,
seu curso agora estava estabelecido para um encontro mortal
na direção nordeste.

Na ponte de comando do Sea Venture, Tom York estava de
muletas ao lado do capitão e do timoneiro. Eles estavam
observando o último dos Seahawks enquanto ele partia da
ilha em seu caminho para um complexo de segurança
máxima para prisioneiros terroristas na Geórgia. Agora sua
atenção estava concentrada no Vultura, em seu casco
debaixo da água onde os explosivos de Jack haviam
destroçado a popa. Eles haviam acabado de enviar três
Zodiacs com dois motores de popa, de 90 hp, para rebocar o
casco para longe da praia, acima do canyon no mar
profundo.
Quando York olhou de novo para a ilha, seus olhos foram
subitamente atraídos por uma perturbação no mar, distante
cerca de um quilômetro. Durante um instante pareceu ser
como o choque de ondas causado por uma explosão
subaquática. Antes que tivesse tempo de alertar os outros,
um dardo de aço irrompeu através das ondas; o seu exaustor
expulsava um grande círculo de líquido pulverizado similar à
coluna de fumaça do lançamento de um foguete. Trinta
metros adiante ele se inclinou com lentidão e ficou imóvel
por um segundo enquanto o impulsionador usado era
ejetado e as asas se abriam. Depois o motor turboélice deu
partida com um barulho de trovão e o míssil iniciou uma
trajetória para o leste, deixando um rastro de espuma, e logo
alcançou uma alta velocidade subsônica, como se deslizasse
sobre as ondas feito uma rápida bola de fogo.
Segundos mais tarde uma vasta erupção fez com que todos
os olhares das pessoas sobre o Sea Venture se voltassem para
o mar. O Kazbek surgiu na superfície como uma imensa
baleia, sua proa se elevou fora da água e depois caiu
pesadamente com um barulho estrondoso. Quando a
enorme forma escura se acomodou sobre as águas, a única
evidência de sua prolongada imersão era um fraco amarelado
em algumas partes do revestimento do casco e o dano
causado na popa. Durante um breve instante, até que o
Kazbek se acomodasse sob a água, eles puderam ver o
buraco circular onde a membrana EH-4 havia sido
arrancada; a sala de torpedos agora estava inundada, mas
lacrada atrás de uma antepara por Costas. O tamanho todo
do submarino era esmagador, uma imagem aterradora de
uma das máquinas de guerra mais mortais jamais projetadas.
Para muitos membros das forças armadas que estavam no
Sea Venture, o submarino era uma visão que outrora
provocaria apreensão e medo, uma imagem tão potente
quanto os U-boat para uma geração anterior. Mas agora ele
foi recebido por um fraco coro de vivas, seu aparecimento
deixava pouca chance de que as armas de destruição em
massa caíssem nas mãos de terroristas e nações velhacas que
eram agora o inimigo comum de todos os navios do mundo.
- Sea Venture, aqui é o Kazbek. Você me ouve? Câmbio.
A voz, junto com estalidos, chegou através do rádio na
ponte de comando e York pegou o receptor.
- Kazbek, estamos ouvindo alto e claro. Obrigado pelos
fogos de artifício. Câmbio.
- Eis algumas coordenadas. - Jack leu um número de doze
dígitos e repetiu-o. - Você pode querer estabelecer uma
conexão SATSURV com Mannheim. O satélite deveria estar
sobre nós agora. No caso de algum tripulante ficar
imaginando coisas, aqueles que foram atingidos eram os
caras que atacaram o Seaquest.
Alguns minutos mais tarde todos tinham se amontoado na
sala de comunicação do Sea Venture, a prioridade era dada
para a tripulação do Seaquest que havia sido resgatada do
submarino. Também estavam Ben e Andy, que haviam
acabado de atracar o DSRV. Todos se abraçaram para se
proteger das ondas finais provocadas pela emersão do
submarino e olharam atentamente para a tela quando a
imagem apareceu.
Em um cinza nebuloso, a imagem mostrava um grupo de
edifícios dispostos como os raios de uma roda ao redor do
cubo central. À direita, o sensor infravermelho captou as
imagens de calor de uma dúzia ou mais de pessoas se
apressando ao redor de dois imensos helicópteros de rotores
duplos, máquinas de transporte que haviam chegado depois
da fuga de Jack. Juntamente com um segundo grupo, visível
na frente do mar, pareciam estar com muita pressa. Eles
estavam embarcando objetos que se pareciam, de maneira
suspeita, com pinturas e estátuas.
Subitamente houve um clarão ofuscante e uma ondulação
concêntrica de cor vibrou com uma rapidez luminosa a
partir do centro da tela. Quando tudo clareou, a cena era a
de uma completa devastação. O cubo central havia sido
atomizado, sua cúpula pulverizada em milhões de
fragmentos. A imagem térmica mostrava onde a explosão
havia destruído as passagens que levavam para o cubo
central. A onda de choque havia ido além, derrubando os
helicópteros e todas as pessoas que haviam estado visíveis,
seus corpos sem vida desordenados no meio dos pacotes que
estavam carregando. Elas não souberam o que as atingiu.
Ouviu-se um aplauso da tripulação. Eles sabiam que isto não
era um mero ato de retribuição, que os prêmios eram muito
mais altos.

30

- Estamos tristes com o desaparecimento de Peter Howe.
Maurice Hiebermeyer saiu do helicóptero e, passando pelo
círculo de pedras, foi direto colocar a mão no ombro de
Jack. Era um gesto afetivo, a evidência de uma amizade que
ia além da paixão profissional compartilhada.
- Ainda não perdemos a esperança.
Jack estava parado junto a Costas e Katya nos degraus
inferiores da escada que conduzia à entrada do vulcão. Eles
haviam passado uma boa noite, bem merecida, a bordo do
Sea Venture e agora estavam se aquecendo ao sol da manhã
que surgia ao leste, atrás do círculo de pedra. O macacão
azul da IMU escondia o peito enfaixado de Jack, mas o rosto
de Costas era um lembrete visível das provações pelas quais
haviam passado. Katya ainda estava calada e retraída.
- As mais calorosas congratulações pelas descobertas que
vocês fizeram, e por vencerem os obstáculos que
encontraram. - James Dillen pronunciou estas palavras
enquanto apertava a mão de Jack. Seu olhar abrangeu Katya
e Costas.
Em seguida, desceu do helicóptero Aysha Farouk, a
assistente de Hiebermeyer que descobrira o papiro da
Atlântida no deserto e que fora convidada a juntar-se a eles.
Ao seu lado estava a figura cordial de Efram Jacobovich, o
bilionário magnata de software que patrocinara toda a
pesquisa.
Para Jack, a conferência que eles tinham feito no castelo, em
Alexandria, parecia ter ocorrido havia uma eternidade. No
entanto, fora apenas quatro dias antes. E eles ainda estavam
afastados de sua meta, da origem de tudo o que havia
impulsionado os sacerdotes a preservar e encobrir o seu
segredo por tantas gerações.
Quando estavam prestes a subir os degraus desbastados na
rocha, Mustafá Alkõzen chegou saltando sobre a plataforma
e trazendo duas lanternas de mergulhadores.
- Peço desculpas por me atrasar, - disse ele sem fôlego. -
Tivemos uma noite atarefada. No fim da tarde de ontem um
Boeing 737 da Força Aérea Turca, uma aeronave de
prevenção, detectou uma onda de choque explosivo na costa
de Abkházia perto da fronteira da Geórgia. – Ele piscou para
Jack. - Decidimos que isto era uma ameaça à segurança
nacional e enviamos rapidamente uma equipe das Forças
Especiais para investigar.
- As obras de arte? - perguntou Jack.
- A maior parte delas ainda estava dentro dos edifícios da ala
doméstica de Aslan, e muitas das que estavam sendo
removidas se encontravam fora da área que foi danificada.
Enquanto conversamos, elas estão sendo transferidas pelos
Seahawks da Marinha para o Museu Arqueológico de
Istambul, para identificação e conservação, e depois serão
restituídas aos verdadeiros donos.
- Que pena, - interrompeu Costas. - Elas dariam uma
exposição muito especial. Exemplos de obras de arte de
excelente qualidade de todos os períodos e culturas, nunca
antes vistas juntas. Seria uma exibição surpreendente.
- Alguns curadores ansiosos podem querer primeiro ver sua
propriedade, - disse Jack.
- Mas é uma excelente idéia, - intercedeu Efram Jacobovich
com um entusiasmo tranqüilo. - Seria um uso apropriado
para os fundos confiscados das contas de Aslan. Enquanto
isso, eu posso encontrar um benfeitor particular para
proporcionar o dinheiro necessário.
Jack sorriu reconhecido e voltou-se para Mustafá.
- E a situação de segurança?
- Pensamos em uma desculpa para ir para Abkházia passar
algum tempo, - replicou Mustafá. - O local se tornou o
principal ponto de passagem para as drogas que chegam da
Ásia Central. Com a ligação terrorista agora firmemente
estabelecida, temos assegurada a total cooperação dos
governos da Geórgia e da Rússia.
Jack tentou esconder seu ceticismo. Ele sabia que Mustafá
era obrigado a seguir os canais oficiais mesmo que soubesse
que as chances de uma ação conjunta, na atual situação,
fossem mínimas.
Eles olharam para a forma baixa do Kazbek e a pequena frota
de embarcações FAC da Turquia e da Rússia, que haviam
chegado durante a noite, evidência do processo já
encaminhado para assegurar que as ogivas nucleares
retornassem para o seu porto de origem para serem postas
fora de uso. Seguindo disposições do centro nuclear, os
corpos do capitão Antonov e de sua tripulação seriam
deixados a bordo e o submarino afundado como uma
sepultura militar, um monumento final para o custo humano
da Guerra Fria.
- E o que vai acontecer com a aparelhagem? - perguntou
Jack.
- Tudo o que puder ser aproveitado irá para a Geórgia. Eles
são os que mais necessitam. Esperávamos oferecer-lhes
também o Vultura, mas isto não será mais possível. -
Mustafá sorriu para Jack. - Então, eles vão ficar com um
novo projeto russo 1154 Neustrashimy, classe fragata.
- O que vai acontecer com o Vultura - perguntou Katya
baixinho.
Todos eles olharam para o casco distante que havia sido
rebocado para uma posição acima do canyon subaquático.
Era uma visão deplorável, o último testemunho da cobiça e
arrogância de um homem.
Mustafá olhou para o relógio.
- Acho que vocês vão ter a resposta agora.
Exatamente naquele instante o ar foi atravessado pelo som
agudo de uma aeronave a jato. Segundos depois dois F-15E
Strike Eagles da Força Aérea Turca estrondearam acima
deles, seus dois motores a jato cintilando em vermelho
enquanto voavam em formação cerrada em direção ao seu
alvo. Cerca de dois quilômetros depois da ilha, uma pequena
caixa de metal caiu do jato à esquerda e pulou no mar como
uma bomba saltadora. Enquanto as duas aeronaves se
movimentavam rapidamente em direção ao sul, o mar
explodiu em uma parede de chamas que engoliu o navio
com uma impressionante pirotecnia.
- Uma bomba termobárica, - disse Mustafá com
simplicidade. - Uma bomba destruidora usada pela primeira
vez pelos americanos no Afeganistão. Nós necessitávamos
de um alvo vivo para testar o sistema de entrega dos nossos
novos Strike Eagles. - Mustafá voltou-se quando o barulho
surdo e prolongado passou por eles e fez um gesto indicando
a porta: - Venham. Vamos entrar agora.
O ar frio da passagem proporcionava uma pausa bem-vinda
no calor do sol que havia começado a se tornar
desconfortável no rochedo lá fora. Para aqueles que ainda
não tinham visto, a primeira impressão da câmara de
audiência com a sua vasta abóbada no teto excedia tudo o
que haviam imaginado. Como todos os indícios da presença
de Aslan haviam sido retirados, a câmara parecia imaculada,
os tronos estavam vazios como se estivessem esperando o
retorno dos sumos sacerdotes que os haviam deixado
abandonados por mais de sete mil anos.
A chaminé agora estava apagada, a água da chuva havia se
dissipado durante a noite e, em vez de uma coluna de vapor,
um feixe de luz brilhante do sol iluminava o estrado como
um refletor de teatro.
Durante alguns momentos eles ficaram em silêncio. Até
mesmo Hiebermeyer, a quem nunca faltavam palavras e que
estava acostumado ao esplendor do antigo Egito, tirou os
óculos e permaneceu sem fala.
Dillen voltou-se para olhá-los.
- Senhoras e senhores, - disse ele, - podemos agora seguir de
onde o texto parou. Acredito que estamos a um passo de
uma revelação suprema.
Jack nunca se cansava de se surpreender com a habilidade
de seu mentor de se distanciar da excitação da descoberta.
Vestindo um traje branco imaculado e uma gravata-
borboleta, ele parecia pertencer a uma outra época, a um
tempo em que a elegância natural fazia parte das ferramentas
da profissão do estudioso, assim como os sofisticados
aparelhos eletrônicos fazem parte da geração de estudantes
de hoje.
- Temos pouquíssimo tempo para continuar em nossos
avanços, - avisou Dillen. - O papiro é um texto fragmentado
e o disco de Phaistos é igualmente difícil de ser decifrado.
Podemos inferir da inscrição na via de acesso que
"Atlântida" se refere a esta cidadela, este mosteiro. Para os
estrangeiros provavelmente significava a cidade também,
mas para os habitantes ela poderia designar o seu local mais
sagrado, os declives rochosos e as cavernas onde começaram
os povoados.
- Como a Acrópole em Atenas, - arriscou Costas.
- Precisamente. O disco implica que dentro da Atlântida há
um local que eu traduzi como "lugar dos deuses", e Katya
como "o mais sagrado dos sagrados". Ele também faz
menção a uma deusa-mãe. Até onde posso lembrar
nenhuma das suas descobertas se ajusta com este
documento.
- O que mais se aproximaria seria o salão dos ancestrais, o
nome que demos para a caverna que é uma galeria pintada, -
disse Jack. - Mas aquelas pinturas são paleolíticas e não há
representações de figuras humanas. Em um santuário
neolítico eu esperaria ver divindades antropomórficas, uma
versão mais grandiosa do que o relicário doméstico que
vimos na aldeia submersa em Trabzon.
- E essa sala, a câmara de audiência? - perguntou Efram
Jacobovich.
Jack sacudiu a cabeça.
- Ela é muito grande. Este espaço é inclusivo, projetado para
reuniões de congregações, como em uma igreja. O que
estamos procurando é algo único, escondido em algum
lugar. Quanto mais sagrado é o local, mais restrito é o acesso
a ele. A entrada seria permitida apenas a sacerdotes, como é
próprio à sua condição de intermediários dos deuses.
- Um tabernáculo - sugeriu Efram.
Katya e Aysha apareceram na saliência ao lado da rampa.
Enquanto os outros ficaram conversando, elas
empreenderam um rápido reconhecimento das entradas que
circundavam a câmara.
- Acho que nós encontramos, - disse Katya. A excitação de
explorar mais uma vez os segredos da Atlântida afastava o
pesadelo dos últimos dias. - Ao todo há doze entradas.
Podemos desconsiderar duas porque elas são passagens que
já conhecemos, uma que vem de fora e a outra que chega de
baixo para cima. Das restantes, nove ou são becos sem saída,
ou portas falsas que não levam a lugar nenhum, ou passagens
que conduzem para baixo. Suponho que desejamos ir para
cima.
- Se esta é de verdade a mãe de todos os santuários situados
sobre picos, - replicou Jack, - então quanto mais alto
melhor.
Katya apontou para a porta na extremidade ocidental da
câmara, diretamente oposta à entrada da passagem.
- É aquela porta. Ela também está protegida pelo signo do
deus águia com as asas estendidas.
Jack sorriu abertamente para Katya, contente de vê-la
recuperar-se da provação dos últimos dias, e voltou-se para
Dillen.
- Professor, talvez o senhor queira nos conduzir.
Dillen concordou de maneira cortês e caminhou ao lado de
Jack em direção à porta ocidental; sua figura esmerada
contrastava com a aparência açoitada pelas intempéries de
seu antigo estudante. Eles foram seguidos por Katya e Costas
e depois pelos outros quatro, com Efram Jacobovich por
último. Quando se aproximaram da entrada, Jack se virou e
olhou para Costas.
- Aqui está ela, então. Há um gim-tônica esperando na
piscina.
Costas lançou a Jack um sorriso torto.
- Isto é o que você diz a cada vez.
Dillen parou para inspecionar a escultura do lintel; era uma
miniatura imaculada do deus águia com as asas estendidas
que os outros haviam visto no salão dos ancestrais. Jack e
Costas ligaram suas lanternas e as dirigiram para a escuridão à
frente. Como as paredes das passagens submersas, o basalto
tinha sido polido até um matiz lustroso, sua superfície
mosqueada faiscava com intrusões minerais que haviam
brotado do manto da terra quando o vulcão se formara.
Jack deu um passo para o lado para permitir que Dillen
tomasse a dianteira. Depois de andar dez metros este parou
de repente.
- Nós temos um problema.
Jack se aproximou e viu que um portal de pedra maciça
bloqueava a passagem. Ele quase se fundia com as paredes,
mas olhando de perto puderam ver que se dividia em duas
partes iguais. Jack dirigiu seu feixe de luz para o centro e
percebeu a ligeira concavidade.
- Acho que tenho a chave - disse ele com confiança.
Jack procurou dentro do seu macacão da IMU e extraiu a
cópia do disco de ouro que ele havia recuperado do estrado
onde Aslan o deixara, depois de sua partida abrupta.
Enquanto os outros observavam, Jack ajustou o disco dentro
da depressão em forma de pires. No instante em que ele
retirou a mão, o disco começou a girar no sentido dos
ponteiros do relógio. Segundos depois as portas se abriram
na direção deles. A patina acumulada fornecia pouca
resistência ao peso das lajes de pedra enquanto estas giravam
para cada lado da passagem.
- É mágica! - Costas sacudiu a cabeça maravilhado. - É
exatamente o mesmo mecanismo que o da porta na face do
despenhadeiro e ainda funciona depois de sete mil e
quinhentos anos. Essas pessoas teriam inventado o chip de
computador na Idade do Bronze.
- Então eu estaria fora do negócio, - gargalhou Efram lá de
trás.
O odor que os acolheu era como uma exalação bolorenta de
uma cripta funerária, como se uma corrente de ar
envelhecido houvesse soprado através do local e trazido
consigo a própria essência da morte, o último resíduo do
sebo e do incenso que havia queimado quando os sacerdotes
fizeram suas abluções finais antes de lacrar para sempre seu
relicário santificado. O efeito era quase alucinógeno, e eles
podiam sentir o medo e a urgência daqueles últimos atos.
Era como se duzentas gerações de história tivessem sido
varridas e eles estivessem se juntando aos guardiões da
Atlântida em sua desesperada viagem final.
- Agora eu sei o que Carter e Carnarvon sentiram quando
abriram a tumba de Tutancâmon, - disse Hiebermeyer.
Katya estremeceu no ar frio. Como as tumbas dos faraós no
Vale dos Reis, a passagem atrás da porta não estava adornada,
não dando nenhuma pista do que viria depois.
- Não deve estar longe agora, - disse Costas. - De acordo
com o meu altímetro estamos a menos de trinta metros do
pico.
Dillen parou subitamente e Jack tropeçou nele, seu feixe de
luz tremulando enquanto ele se endireitava. O que parecia
uma outra porta era, na verdade, uma virada de noventa
graus para a esquerda. A passagem se dirigia para cima com
uma série de degraus baixos.
Dillen seguiu em frente e parou de novo.
- Posso distinguir algo adiante. Dirija seu feixe de luz para a
esquerda e a direita. - Sua voz, de maneira incomum, estava
aguda de excitação.
Jack e Costas obedeceram e revelaram uma cena fantástica.
De cada lado havia os quartos fronteiros de dois enormes
touros, suas formas truncadas estavam cortadas em baixo-
relevo e voltadas para as escadas. Com os pescoços
alongados e chifres altos arqueados, eles eram menos
tranqüilizadores do que as bestas na passagem subaquática,
como se estivessem se esforçando para se livrar e pular para
a escuridão acima.
Quando subiram as escadas, eles começaram a perceber uma
sucessão de figuras na frente dos touros em baixo-relevo,
com os detalhes representados com precisão no basalto
finamente granulado.
- Eles são humanos. - Dillen falou com uma reverência
silenciosa, esquecido da sua reserva habitual. - Senhoras e
senhores, olhem para o povo da Atlântida.
As figuras aparentavam uma confiança corajosa que parecia
apropriada aos guardiões de uma cidadela. As esculturas nas
paredes, de cada lado, eram idênticas como imagens em
espelho.
Eram figuras altas, em tamanho natural, marchando em
linha reta, empertigadas e em fila única. Cada figura tinha
um braço estendido, com a mão fechada em torno de um
buraco que outrora abrigara uma tocha de sebo. Elas tinham
uma postura hierática bidimensional, como a de relevos
esculpidos encontrados no antigo Oriente Próximo e no
Egito, mas, no lugar da firmeza normalmente associada com
a vista de perfil, exibiam uma graça e uma elasticidade que
pareciam ser um legado direto das pinturas naturalistas de
animais da Idade do Gelo.
Quando os feixes de luz iluminaram cada figura, por sua vez,
se tornou claro que elas alternavam em relação ao sexo. As
mulheres estavam com os seios expostos, as vestes bem
ajustadas revelando curvas bem-feitas. Como os homens,
elas tinham olhos grandes, amendoados, e usavam os cabelos
em trancas enfeitadas que desciam pelas costas. Os homens
usavam barbas longas e vestiam mantos flutuantes. Sua
fisionomia era familiar, embora não identificável, como se os
aspectos individuais parecessem reconhecíveis, mas o todo
fosse único e impossível de ser enquadrado.
- As mulheres parecem muito atléticas, - observou Aysha. -
Talvez fossem elas a lutar com os touros e não os homens.
- Elas me lembram os varegos, - disse Katya. - O nome
bizantino para os vikings que foram pelo Dnieper até o mar
Negro. Na catedral de Santa Sofia, em Kiev, existem pinturas
em paredes que mostram homens exatamente como estes,
exceto pelos narizes aquilinos e o cabelo loiro.
- Para mim eles são como os hititas da Anatólia, do segundo
milênio antes de Cristo, - interpôs Mustafá. - Ou os sumérios
e assírios da Mesopotâmia.
- Ou os povos da Grécia e da Creta da Idade do Bronze, -
murmurou Jack. - As mulheres poderiam ser as damas de
seios expostos dos afrescos de Cnossos. Os homens, os
guerreiros saídos direto daqueles vasos forjados a ouro
encontrados na sepultura real em forma de círculo em
Micenas, no ano passado.
- Eles representam um homem e uma mulher comuns, -
disse Dillen tranqüilamente. - Os indo-europeus originais, os
primeiros caucasianos. Deles descendem quase todos os
povos da Europa e da Ásia. Os egípcios, os semitas, os
gregos, os construtores de megálitos da Europa ocidental, os
primeiros soberanos de Mohenjo-Daro no vale do Indus.
Algumas vezes eles substituíam completamente as
populações originais, outras vezes ocorria a miscigenação.
Em todos esses povos vemos algum traço de seus
antepassados, os fundadores da civilização.
Eles olharam com reverência renovada para as imagens
enquanto Dillen os conduzia para cima pelas escadas. As
figuras personificavam força e determinação, como se
estivessem marchando inexoravelmente para o seu lugar na
história.
Depois de dez metros, os homens e mulheres, alternados,
deram lugar a três figuras de cada lado, aparentemente as
que conduziam a procissão. Elas seguravam elaborados
bastões e usavam chapéus cênicos esquisitos que se
estendiam até o teto.
- Os sumos sacerdotes, - disse Jack simplesmente.
- Eles parecem magos, - disse Costas. - Como os druidas.
- Esta pode não ser uma comparação muito forçada, - disse
Katya. - A palavra druida deriva da palavra indo-européia
wid, 'saber'. Eles eram nitidamente os detentores do
conhecimento na Atlântida neolítica, o equivalente da classe
sacerdotal na Europa céltica, cinco mil anos mais tarde.
- Fascinante. - Hiebermeyer estava se aproximando do
grupo. - Os chapéus são notavelmente similares aos forjados
a ouro que foram encontrados nos depósitos de oferendas da
Idade do Bronze. Descobrimos um no Egito, no ano
passado, quando o tesouro secreto na pirâmide de Khefru foi
aberto.
Ele se aproximou da primeira das figuras na parede do lado
esquerdo - era uma mulher - e tirou os óculos para examinar
com mais cuidado.
- É bem como pensei, - exclamou Hiebermeyer. - Ela está
coberta com minúsculos símbolos circulares e lunares, do
mesmo modo que os chapéus na Idade do Bronze. - Ele
limpou os óculos e fez um floreio dramático. - Estou certo
de que esta é uma representação logarítmica do ciclo
metônico.
Enquanto os outros se juntavam para examinar a figura, Jack
percebeu o olhar perplexo de Costas.
- Meton era um astrólogo de Atenas, - explicou Jack. - Um
contemporâneo de Sócrates, o preceptor de Platão. Ele foi o
primeiro grego a estabelecer a diferença entre os meses
lunar e solar, o ciclo sinódico. - Fez um aceno em direção às
esculturas. - Essas foram as pessoas que inventaram o
calendário para registrar os sacrifícios, com os meses a mais,
que vimos esculpidos naquela passagem.
Dillen havia se separado do grupo e estava parado na frente
de um portal, no topo das escadas, alinhado com os
sacerdotes que dirigiam a procissão.
- Eles eram os senhores do tempo - anunciou Dillen. - Com
seu círculo de pedra eles podiam fazer o mapa dos
movimentos do Sol em relação com os da Lua e os das
constelações. Este conhecimento lhes dava o poder de
oráculos, com acesso à sabedoria divina que lhes permitia
ver no futuro. Eles podiam predizer o tempo da semeadura e
da colheita anual. Eles possuíam o domínio sobre o céu e a
terra. - Dillen fez um grande gesto em direção à entrada
atrás de si. - E agora eles estão nos conduzindo para o seu
santuário interior, o mais sagrado dos sagrados.
O grupo juntou-se ao redor do portal, observando
atentamente a passagem escura do outro lado. De novo
sentiram o odor de um antigo vapor, um mofo que parecia
transportar consigo a sabedoria destilada das eras. Sem razão
aparente Jack invocou as imagens de Sólon, o Legislador, e
do fantasmagórico sacerdote no santuário do templo em
Sais. Depois de alguns instantes os fantasmas desapareceram,
mas Jack ficou convencido de que eles estavam prestes a
investigar os segredos interiores de um povo que passou pela
história milhares de anos antes.
Depois de alguns metros eles alcançaram o final da passagem
e Jack direcionou a luz de sua lanterna para a frente. Ao lado
dele, Dillen piscou enquanto seus olhos se acostumavam
com a luminosidade não familiar da cena diante de si.
- O que é isto? - Hiebermeyer não podia conter sua
excitação. - O que você consegue enxergar?
- É uma simples câmara, de aproximadamente dez metros de
comprimento por seis de largura, - replicou Jack em um tom
contido de arqueólogo profissional. - Há uma mesa feita de
pedra no meio e um biombo divisor separando a parte de
trás. Oh!, e há ouro. Espessos painéis de ouro nas paredes.
Jack e Dillen se inclinaram diante da entrada e os outros os
seguiram cuidadosamente. Quando já estavam todos lá
dentro, Jack e Costas ajustaram suas lanternas para iluminar
com um feixe máximo de luz e percorreram todo o
comprimento da câmara.
A descrição lacônica de Jack não fazia justiça ao lugar. De
cada lado as paredes estavam embelezadas com lajes maciças
de ouro polido, cada uma com dois metros de altura por um
de largura. Elas brilhavam com deslumbrante esplendor, sua
superfície imaculada era como um espelho na atmosfera
protetora. Havia dez painéis ao todo, cinco de cada lado,
uniformemente espaçados, com um intervalo de meio metro
entre si. As lajes estavam cobertas com marcações
instantaneamente reconhecidas como símbolos da
Atlântida.
- Dê uma olhada nisso, - murmurou Costas.
Seu feixe de luz havia captado uma forma imensa na parte de
trás da câmara. Mal podia ser reconhecida como humana,
era uma paródia grotesca de uma forma feminina com seios
caídos, nádegas protuberantes e uma barriga inchada que
dava ao torso uma aparência quase esférica. Ela estava
ladeada por touros em tamanho natural que a fitavam. A
composição era como um tríptico ou um grupo heráldico
que se escondia na parte de trás da câmara.
Jack olhou para aquela estátua colossal e depois para Costas.
- Ela é o que os pré-históricos, de modo lisonjeiro, chamam
de figura de Vênus, - ele explicou com um sorriso. - Na
Europa e na Rússia foram encontradas cerca de oitenta,
principalmente estatuetas pequenas em marfim ou pedra.
Esta é fenomenal, a única que conheço maior do que o
tamanho natural.
- Ela é um pouco diferente das donzelas graciosas que havia
na passagem, - observou Costas com pesar.
- Não é para ela ser uma moça atraente. - O tom de voz de
Katya era levemente reprovador. - Olhe como eles nem se
deram ao trabalho de terminar os pés ou os braços, e a
cabeça é apenas um espaço vazio. Tudo está
deliberadamente exagerado para acentuar a fecundidade e a
boa saúde. Ela pode não ser conforme ao ideal de beleza
ocidental, mas para as pessoas que viviam com o medo
constante da fome, uma mulher obesa simbolizava
prosperidade e sobrevivência.
- Você ganhou, - sorriu Costas. - Que idade tem a dama?
- É de antes do Paleolítico, - replicou Jack imediatamente. -
Todas as figuras de Vênus se situam entre quarenta mil e dez
mil antes de Cristo, dentro da mesma faixa das pinturas que
estão no salão dos ancestrais.
- Costumava-se pensar nelas como sendo a deusa-mãe, -
acrescentou Hiebermeyer de modo pensativo. - Mas não há
certeza de que as sociedades da Europa, na Idade da Pedra,
fossem matriarcais. Elas são provavelmente vistas como
ídolos de fertilidade, adoradas juntamente com as divindades
masculinas, bem como com os espíritos animais e as forças
inanimadas.
Houve um breve silêncio, que foi quebrado por Jack.
- Por centenas de milhares de anos os hominídeos viveram
uma existência inalterável durante a Idade da Pedra, até a
revolução neolítica. Não é surpresa que os atlantes logo
depois ainda respeitassem os deuses que foram honrados por
seus antepassados, o grupo de caçadores que pintaram
animais selvagens no salão dos ancestrais durante a Idade do
Gelo.
- Os antigos israelitas do Antigo Testamento também
adoraram uma deusa da fertilidade. - Efram Jacobovich
interpôs tranqüilamente. - Mesmo os primeiros cristãos do
Mediterrâneo incorporaram as divindades pagãs da
fertilidade em seus rituais, às vezes com a aparência de
santos ou da Virgem Maria. A Vênus da Atlântida pode não
estar tão afastada das nossas crenças como imaginamos.
A mesa de pedra na frente da estátua era maciça. Ela se
estendia quase até a entrada, terminando bem na frente
deles em uma borda elevada coberta por uma forma globular
irregular de cerca de um metro de largura. Na luz refletida o
ouro parecia branco, de uma maneira sobrenatural, como se
tivesse sido polido pelos inúmeros suplicantes que vinham
rezar diante da grande deusa.
- Ela parece ser uma pedra sagrada, - especulou Jack. - O que
os antigos gregos chamavam um baetyl, uma rocha de
origem meteórica, ou um omphalos, uma pedra em forma de
umbigo. Na Creta da Idade do Bronze havia baetyls nas
entradas das cavernas sagradas. Na Grécia clássica o
omphalos mais famoso ficava diante do abismo onde se
situava o oráculo em Delfos.
- Assinalando o limiar da Casa do Divino, como a pia de água
benta na entrada da igreja católica, - sugeriu Efram.
- Algo assim, - concordou Jack.
- Ela é definitivamente meteórica. - Costas estava
examinando a forma bulbosa mais atentamente. - Mas é
curioso, ela é quase como uma folha empenada de metal em
vez de um nódulo sólido.
- O tipo de coisa que os caçadores da Idade da Pedra podiam
ter pegado no revestimento de gelo, - refletiu Jack. - A
maioria dos fragmentos de meteoros recém-caídos são
encontrados no gelo porque se deixam ver mais facilmente.
Este poderia ser um objeto sagrado transmitido por seus
ancestrais, seria mais um vínculo com o início da pré-
história.
Aysha havia ido até o outro lado da mesa e parado antes de
se aproximar da deusa.
- Venham ver isto, - exclamou ela.
Os dois feixes de luz iluminaram a mesa enquanto eles se
deslocavam. Ela estava cheia de sarrafos de madeira, alguns
unidos em ângulo reto como os cantos de caixas. Eles eram
capazes de fabricar uma série de ferramentas de carpinteiro,
formas familiares que incluíam formões e limas, furadores e
martelos. O que havia em cima da mesa parecia ser a
parafernália de uma marcenaria, tudo abandonado às pressas,
mas preservado imaculadamente no ambiente livre de
poeira.
- Isto é mais do que parece ser. - Dillen se colocou ao lado
de Aysha e cuidadosamente limpou as aparas de madeira de
uma superfície elevada diante dele. Era uma estrutura em
madeira como um apoio portátil para livros. Quando o
endireitou eles perceberam um vislumbre de ouro.
- É uma mesa de copista, - anunciou Dillen triunfalmente. -
E há uma folha de ouro em cima dela.
Quando se reuniram em volta de Dillen, puderam ver que o
terço superior da folha estava coberto com símbolos da
Atlântida, alguns alinhados desordenadamente como se
tivessem sido escritos com pressa, mas todos separados em
frases como no disco de Phaistos. De uma pequena caixa ao
lado, Dillen pegou três furadores de pedra do tamanho de
um cigarro, cada um terminando em uma forma
imediatamente reconhecida como sendo a cabeça de um
moicano, o feixe de milho e o remo de pá larga. Um outro
furador, que estava sobre a mesa, tinha na extremidade o
símbolo da Atlântida.
- Esta cópia é idêntica à inscrição na parede oposta, - disse
Katya. - Os copistas estavam reproduzindo os símbolos que
estão no segundo painel à esquerda.
Eles olharam para onde ela estava indicando e puderam
distinguir os símbolos individuais, uma seqüência fielmente
transcrita até a décima segunda linha, quando foi
abruptamente abandonada.
Efram Jacobovich permanecia à cabeceira da mesa. Ele
estava olhando com intensidade para a desordem dos
sarrafos de madeira, visivelmente perdido em seus
pensamentos. Sem levantar os olhos, pigarreou e começou a
narrar.
- Três dias depois, pela manhã, houve trovões e relâmpagos
e uma nuvem espessa desceu sobre a montanha, enquanto o
toque da trombeta soava fortemente. O povo que estava no
acampamento começou a tremer. E eles se colocaram ao pé
da montanha. Toda a montanha do Sinai fumegava, porque
Jeová tinha descido sobre ela no fogo, a fumaça subia, como
fumaça de fornalha. E a montanha toda estremecia.
Ele fechou os olhos e continuou.
- Bezeleel fez a arca de madeira de acácia, com cento e vinte
e cinco centímetros de comprimento, por setenta e cinco de
largura e setenta e cinco de altura. Revestiu a arca de ouro
puro, por dentro e por fora; ao redor dela aplicou uma
moldura de ouro. Fundiu para ela quatro argolas de ouro e as
colocou nos quatro cantos inferiores da arca, duas de cada
lado. Fez também varais de madeira de acácia e revestiu-os
com ouro, e enfiou os varais nas argolas em cada lado da
arca, para poder transportá-la.
Fez-se um silêncio chocado. Efram levantou o olhar.
- O Livro do Êxodo, - explicou ele. - Os de minha fé
acreditam que Deus deu a Moisés a Aliança, os Dez
Mandamentos, e inscreveu-os em tabuletas que eram
carregadas pelo povo de Israel na Arca. Referências bíblicas
aos faraós situam o evento na segunda metade do segundo
milênio antes de Cristo. Mas agora me pergunto se a história
contém a semente de um relato muito mais antigo, de um
povo que viveu milhares de anos antes e que foi forçado a
fugir de sua pátria, um povo que levou consigo cópias de
seus dez textos sagrados, tirados de seu santuário sagrado
perto do cume de um vulcão.
Jack, que havia estado examinando uma pilha de folhas de
ouro em branco, ergueu os olhos.
- É claro, - exclamou. - Cada um dos grupos migratórios
deveria ter uma cópia. Tabuletas de barro seriam demasiado
frágeis, inscrições em pedra levariam muito tempo para ser
feitas e em chumbo seriam corroídas. Havia um bom
suprimento de ouro do Cáucaso, que era durável e bastante
maleável para se fazer inscrições rápidas com furadores.
Cada conjunto de dez tabuletas era colocado em um cofre de
madeira exatamente semelhante à Arca da Aliança. Os
sacerdotes trabalharam até o minuto final e abandonaram a
última cópia apenas quando a cidade foi submersa pelas
inundações.
- Estes podem ser textos sagrados, mas definitivamente não
são os Dez Mandamentos. - Katya pegou o seu palmtop
computer e procurou na tela a concordância entre os
símbolos da Atlântida e o minoano linear A. - Levarei algum
tempo para traduzi-los por inteiro, mas já tenho uma idéia
geral do seu significado. O primeiro tablete à esquerda se
refere a grãos, legumes, videiras, e às estações do ano. O
segundo, aquele que o nosso escriba estava copiando, se
refere à criação de gado. O terceiro é sobre a metalurgia do
ouro e do cobre e o quarto sobre arquitetura, o uso de pedras
em edifícios. - Katya fez uma pausa e olhou para eles. - A
não ser que eu me engane, estas tabuletas são uma espécie
de enciclopédia, um projeto para a vida na Atlântida
neolítica.
Jack acenou com a cabeça, maravilhado.
- Aslan teria ficado desapontado. Não há objetos reais
escondidos, nem fortuna em obras de arte. Apenas o maior
tesouro de todos eles, de valor inestimável. As chaves para a
civilização.
Enquanto Katya e Dillen se ocupavam em traduzir à luz da
lanterna de Jack, Costas foi atrás de Aysha até a deusa e os
touros. A abertura entre as patas da frente do touro situado
do lado direito e a coxa volumosa da deusa formava uma
entrada baixa, gasta e polida por gerações de uso. Costas
rastejou para dentro e desapareceu de vista; sua presença era
revelada apenas pelo feixe de luz que mostrava as silhuetas
dos touros no local em que se levantavam nas patas traseiras
perto da cabeça da deusa.
- Sigam-me. - A voz dele estava abafada mas distinta. - Há
mais coisas aqui dentro.
Todos se arrastaram para dentro e apoiaram as costas contra
o lado de trás das estátuas. Eles estavam no interior de um
anexo estreito na frente de uma face rochosa irregular.
- Aqui deve ser o mais sagrado dos sagrados. - Os olhos de
Dillen moveram-se ao redor do recinto enquanto falava. -
Como a parte central em um templo grego ou o santuário
em uma igreja cristã. - Mas é surpreendentemente
desguarnecido.
- Exceto por isto. - Costas iluminou a face da rocha com sua
lanterna.
A câmara estava adornada com três figuras pintadas, a
central era quase tão grande quanto a deusa-mãe e as outras
duas um pouco menores. Elas pareciam imitar a composição
da deusa com os touros. Eram de um vermelho embotado
idêntico ao pigmento usado no salão dos ancestrais, exceto
pelo fato de a cor ter esmaecido. Como estilo, elas também
eram reminiscências da arte da Idade do Gelo, com
pinceladas amplas, impressionistas, o que dava uma grande
sensação de animação, embora fossem essencialmente
representações de esboços. Mas, em sua forma, as figuras
eram completamente diferentes de tudo o que haviam visto
na Atlântida.
Em vez de animais poderosos ou majestosos sacerdotes, elas
mal poderiam ser reconhecíveis como seres terrestres, as
pinturas eram uma representação abstrata que mal captava a
essência do corpóreo. Cada figura tinha um corpo bulboso,
em forma de pêra, com membros que se projetavam para os
lados de maneira desajeitada, as mãos e pés terminando em
dez ou doze dedos esticados. As cabeças pareciam
inteiramente desproporcionais aos corpos. Os olhos eram
lentiformes, de tamanho grande, delineados em preto,
recordações dos olhos pintados com kohl nas antigas
pinturas egípcias. As figuras pareciam uma tentativa infantil
de reproduzir a forma humana, embora com algo
estranhamente deliberado nas características comuns das
três figuras.
- Estas são antigas, muito antigas, - murmurou Jack. - Do fim
da Idade do Gelo, talvez cinco mil anos antes da inundação.
Elas foram entalhadas na rocha viva, da mesma forma que os
animais no salão dos ancestrais. Há abundantes
representações minimalistas da forma humana, feitas na
rocha, ao redor do mundo, nos petróglifos da África e da
Austrália e na região sudoeste dos Estados Unidos. Mas eu
nunca tinha visto figuras pré-históricas como estas.
- Estas não podem ser tentativas sérias para representar a
forma humana. - Costas sacudia a cabeça descrente. - Na
Idade do Gelo a arte não era tão primitiva. Aqueles animais
no salão dos ancestrais são surpreendentemente naturalistas.
- Elas são provavelmente mais humanóides do que
antropomórficas, - cogitou Jack. - Lembre que estas figuras
são milhares de anos mais velhas do que aquelas que os
atlantes esculpiram na passagem, são mais parecidas com
xamãs ou espíritos, ou deuses sem forma física definida.
Algumas sociedades consideravam a forma humana como
sacrossanta e a reprodução por imagem nunca era
empreendida. Os artistas da Idade do Ferro na Europa celta
eram artesãos surpreendentes, mas se você vir as
representações dos humanos que eles começaram a produzir
sob o domínio dos romanos, irá achar que são
extremamente primitivas.
A lanterna de Jack iluminou um emblema esculpido acima
da figura central. Era um simples pergaminho enrolado nas
extremidades de meio metro de comprimento que continha
dois dos símbolos atlantes, a águia empoleirada e o remo
vertical de pá larga.
- Estas são mais recentes que as pinturas, - comentou Jack. -
A superfície está mais regular e a escultura exigiu
ferramentas de metal. Alguma idéia sobre a tradução?
Katya conhecia a maioria das sílabas e não se incomodava de
consultar seu computador.
- Elas não se encontram na concordância, - afirmou com
segurança. - Pode ser um verbo ou um nome que ainda não
encontramos. Mas, no contexto, eu diria que é um nome
próprio.
- Como ele é pronunciado? - perguntou Efram do outro lado
da câmara.
- Cada um dos símbolos atlantes representa uma sílaba, uma
consoante precedida ou seguida por uma vogal, - replicou
Katya. - A águia empoleirada é sempre Y e o remo vertical
de pá larga, W. Sugiro uma palavra que se lê ye-we ou ya-
wa, a vogal soa curta e não longa.
- O Tetragramaton! - exclamou Efram incrédulo. - O nome
que não deve ser pronunciado. A Primeira Causa de todas as
coisas, o Soberano do Céu e da Terra. - Como que por
instinto, ele saiu da frente das imagens na parede, com os
olhos baixos e a cabeça inclinada de modo reverencial.
- Jeová. - Dillen falou igualmente atônito. - O primeiro
nome de Deus no Antigo Testamento hebraico, o nome
divino que só pode ser revelado pelos sumos sacerdotes no
Tabernáculo, no mais sagrado dos sagrados, no Dia da
Reconciliação. Em grego ela era "A Palavra-de-Quatro-
Letras", o Tetragramaton, os primeiros cristãos a traduziram
como Jeová.
- O Deus de Moisés e Abraão. - Efram lentamente recobrou
a tranqüilidade enquanto falava. - Um deus tribal do Sinai no
tempo do êxodo israelita do Egito, mas ele pode ter se
revelado mais cedo. Ao contrário dos outros deuses que
atraíam os israelitas, ele era altamente intervencionista, o
único efetivo no interesse dos seus adoradores e capaz de
alterar a corrente dos acontecimentos em favor deles. Ele os
conduziu na batalha e no exílio e lhes deu os Dez
Mandamentos.
- E os salvou do dilúvio.
As palavras vieram de Costas, que inesperadamente
começou a recitar do Livro do Gênesis.
- E Deus disse a Noé: "Este é o sinal da aliança que
estabeleço com tudo o que vive sobre a terra". Os filhos de
Noé, que saíram da arca, foram estes: Sem, Cam e Jafé; e
Cam é o antepassado de Canaã. Esses três foram os filhos de
Noé, e a partir deles foi povoada a terra inteira.
Jack sabia que seu amigo havia sido educado na ortodoxia
grega e acenou lentamente concordando, com um
vislumbre de revelação em seus olhos enquanto falava.
- É claro. O Deus dos judeus fez com que a terra fosse
inundada e depois sinalizou seu pacto com os escolhidos
revelando o arco-íris. A construção da arca, a seleção de
casais de animais de diferentes espécies, a diáspora dos
descendentes de Noé ao redor do mundo. Os antigos mitos
sobre o dilúvio não apenas relatam as inundações dos rios e a
grande fusão no fim da Idade do Gelo. Eles também contam
a respeito de um outro cataclismo, um dilúvio no sexto
milênio antes de Cristo que dizimou a primeira cidade do
mundo, extinguiu uma civilização precoce inigualável
durante milhares de anos depois. Platão não é a única fonte
sobre a história da Atlântida, no fim das contas. Essa história
tem estado olhando para nós durante o tempo todo,
codificada na maior obra de literatura jamais escrita.


32

Depois de examinar cuidadosamente o resto do santuário
interior, eles voltaram para a câmara principal. Reuniram-se
ao redor da misteriosa esfera metálica. Dillen emergiu por
último e pegou um formão no meio do entulho que havia
sobre a mesa.
- Isto é bronze, - disse ele. - Uma liga de cobre e estanho
fundida pouco tempo antes do abandono desta sala, no meio
do sexto milênio antes de Cristo. Uma descoberta
extraordinária. Antes de hoje, os arqueólogos diriam que o
bronze foi feito pela primeira vez em torno de três mil e
quinhentos anos antes de Cristo, possivelmente na Anatólia,
e só se difundiu durante o milênio seguinte.
Dillen tornou a pôr o formão no mesmo lugar e apoiou as
mãos sobre a mesa.
- A questão que se coloca é: por que demorou tanto para o
bronze reaparecer depois da inundação do mar Negro?
- Presumivelmente a civilização da Atlântida o desenvolveu
isoladamente, - disse Costas, - e antes do que em qualquer
outro lugar.
Jack concordou e começou a andar de um lado para outro.
- No tempo certo e nas circunstâncias adequadas, o
progresso pode ser fenomenal. Quando a Idade do Gelo
terminou, dez mil anos atrás, a região sul do mar Negro já
era rica em flora e fauna. Pelo fato de o Bósforo estar
bloqueado, a grande fusão só teve um efeito limitado. O solo
ao redor do vulcão era muito fértil, o mar abundava de
peixes e a terra, de bois selvagens, cervos e javalis.
Acrescentando a isso as outras riquezas naturais que
conhecemos: madeira de lei das florestas montanhosas; sal
da evaporação da água salgada em recipientes no litoral;
pedra do vulcão; ouro, cobre e talvez a mais significativa de
todas, estanho. Era uma cornucópia, um jardim do Éden,
como se algum poder tivesse concentrado todos os
ingredientes para a boa vida em um só local.
Costas estava olhando, de modo pensativo, para a grande
figura da deusa-mãe.
- Então, - disse ele, - caçadores particularmente dinâmicos
deslocaram-se em bando para esta região cerca de quarenta
mil anos atrás. Eles descobriram o labirinto dentro do
vulcão. As pinturas de animais no interior do salão dos
ancestrais são deles, e esta câmara é o seu relicário sagrado.
No fim da Idade do Gelo eles inventaram a agricultura.
- Muito bom até aqui, - disse Jack. - Só que a agricultura
provavelmente emergiu, mais ou menos na mesma época,
em todo o Oriente Próximo, uma idéia que surgiu quase
simultaneamente e se espalhou de maneira rápida.
Assentamentos neolíticos sofisticados existiram em outros
lugares desde o décimo milênio antes de Cristo,
principalmente em Jericó, na Palestina, e em Çatal Hüyük,
no sul da Anatólia, os dois locais que mais se pareciam com a
nossa aldeia neolítica em Trabzon.
- Ok - continuou Costas. - Como as pessoas em Anatólia, os
atlantes forjavam o cobre, mas eles deram um grande salto
adiante e aprenderam como fundir e fazer liga com o metal.
Como o povo de Jerico, eles criaram uma arquitetura
monumental, mas no lugar de paredes e torres construíram
arenas, caminhos processionais e pirâmides. A partir de oito
mil anos antes de Cristo algo incrível acontece. Uma
comunidade de pescadores e agricultores se transforma em
uma metrópole de cinqüenta, talvez cem mil pessoas. Elas
possuem sua própria escrita, um centro religioso semelhante
a qualquer mosteiro medieval, arenas públicas que
impressionariam os romanos, um complexo sistema de
suprimento de água, é inacreditável.
- E nada disso aconteceu em qualquer outro lugar, - disse
Tack. Ele parou de andar. - Çatal Hüyük foi abandonada no
sexto milênio antes de Cristo e nunca foi ocupada de novo,
possivelmente um resultado da guerra. Jerico sobreviveu,
mas as lendárias muralhas dos tempos bíblicos eram uma
sombra pálida dos seus precursores neolíticos. Enquanto os
atlantes estavam construindo pirâmides, no Oriente próximo
eles estavam apenas começando a lidar com cerâmica.
- E o bronze, acima de tudo, deve ter facilitado um
desenvolvimento tão prodigioso. - Mustafá inclinou-se sobre
a mesa enquanto falava, sua barba iluminada pela lanterna. -
Pensem em todos os usos que teriam as ferramentas duras,
de pontas afiadas, que podiam ser feitas em qualquer forma e
depois recicladas. Sem enxós e formões nenhuma arca
jamais poderia sair da prancheta de desenho. As ferramentas
de bronze eram essenciais para a agricultura, para extrair
pedras e trabalhar com elas. Relhas, picaretas e forcados,
enxadas e pás, foices e segadeiras. O bronze
verdadeiramente estimulou uma segunda revolução agrícola.
- Na Mesopotâmia, o Iraque moderno, o bronze também
liderou a produção das primeiras armas poderosas do
mundo, - observou Hiebermeyer, limpando os óculos
enquanto falava.
- Um ponto importante, - disse Dillen. - A guerra era uma
doença endêmica nos primeiros estados da Mesopotâmia e
do Oriente, freqüentemente o resultado da cupidez da elite e
não de qualquer competição real por recursos. É perigosa a
falsa idéia moderna de que a guerra acelera o progresso
tecnológico. Os benefícios dos avanços na engenharia e na
ciência são de longe superados pelos males oriundos do
desenvolvimento de métodos de destruição. Talvez por
exercer total controle sobre a produção e o uso do bronze,
os sacerdotes da Atlântida puderam impedir que ele fosse
usado como arma de guerra.
- Imaginem uma sociedade sem guerra, mas com acesso
abundante ao bronze logo depois da Idade do Gelo, - disse
Hiebermeyer. - Isto, mais do que qualquer outra coisa, teria
acelerado o desenvolvimento da civilização.
- Então se só os atlantes descobriram como produzir o
bronze, este conhecimento foi perdido, de alguma forma,
quando a Atlântida foi inundada? - perguntou Costas.
- Não foi perdido, mas mantido em segredo, - disse Dillen. -
Precisamos visitar Amenhotep mais uma vez, o sumo
sacerdote egípcio no templo scriptorium em Sais. Creio que
ele era um guardião do conhecimento, um em uma sucessão
ininterrupta de cinco mil anos, desde o tempo da Atlântida.
Os primeiros sacerdotes de Sais eram os últimos sacerdotes
da Atlântida, descendentes de homens e mulheres que
fugiram desta câmara e embarcaram em uma perigosa
jornada para o oeste em direção ao Bósforo. O papel deles
era o de regular o comportamento humano de acordo com
sua interpretação da vontade divina. Eles adquiriam esse
poder não apenas por fazer cumprir um código moral, mas
também como guardiões do conhecimento, inclusive um
conhecimento que sabiam que podia ser destrutivo. Depois
que a Atlântida desapareceu, meu palpite é que eles
mantiveram o segredo do bronze durante várias gerações,
este segredo passando de mestre a noviço, de professor a
aluno. - Dillen fez um gesto em direção às placas brilhantes
nas paredes.
- Aqui temos o total do conhecimento dos sacerdotes da
Atlântida, codificado como um texto sagrado. Uma parte do
conhecimento estava disponível para todos, como os
rudimentos da agricultura. O resto era prerrogativa dos
sacerdotes, inclusive, talvez, o saber medicinal. - Ele
apontou as placas não traduzidas a sua esquerda. - Quanto ao
resto só podemos conjeturar. Pode haver uma sabedoria
antiga, nestes escritos, que os sumos sacerdotes mantinham
exclusivamente para si mesmos, para ser revelada apenas no
momento apontado pelos deuses.
- Mas certamente os rudimentos da tecnologia do bronze
deveriam ser um conhecimento comum, disponível para
todos, - insistiu Costas.
- Não necessariamente. - Jack estava andando atrás da esfera
metálica. - Quando eu me desloquei no ADSA sobre a ala
leste da cidade, percebi algo estranho. Vi áreas com
trabalhos em madeira, outras com trabalho em pedra,
manufaturas de cerâmica, fornos para secar milho e fazer
pão. Mas não vi forjas ou trabalhos em metal. - Ele olhou de
maneira interrogativa para Mustafá, cuja tese de doutorado
em metalurgia antiga na Ásia Menor era uma referência para
o assunto.
- Durante longo tempo pensamos que todo o estanho usado
na Idade do Bronze viesse da Ásia Central, - disse Mustafá. -
Mas a análise de traços de elementos nas ferramentas
apontou para minas na região sudeste da Anatólia também. E
agora acho que devemos olhar para uma outra fonte, uma
que nunca suspeitamos antes desta descoberta.
Jack concordou com entusiasmo enquanto Mustafá
continuava.
- Fundir e forjar não são atividades domésticas. Jack tem
razão quando diz que uma comunidade desse tamanho teria
exigido uma instalação específica para trabalhar o metal
longe dos distritos residenciais. Um lugar onde um intenso
calor pudesse ser gerado, um calor passível de ser obtido de
uma fonte natural.
- É claro! - gritou Costas. - O vulcão! Os minerais trazidos
pela erupção deviam incluir cassiterita, estanho. O vulcão
era uma mina, um favo de mel de galerias que seguiam as
veias dos minerais entrando profundamente nas entranhas
da montanha.
- E desde que a montanha já era solo santificado, -
acrescentou Dillen, - os sacerdotes podiam controlar o
acesso não só aos meios de produção do bronze, mas
também ao ingrediente essencial. O sacerdócio existe
porque ele exerce um entendimento das verdades além do
alcance dos leigos. Ao consagrar o bronze eles podiam
elevar a metalurgia ao nível de uma arte ilustre.
Jack olhou atentamente para a mesa à sua frente.
- Nós estamos em uma catacumba de antiga tecnologia, uma
forja multiforme digna do próprio Hefesto, deus do fogo.
- Então, o que realmente aconteceu na época do êxodo no
mar Negro? - perguntou Costas.
- Agora chegamos no ponto essencial deste assunto -
respondeu Dillen. - Quando se abriu uma brecha no
Bósforo, e as águas da inundação subiram, as pessoas tiveram
que assumir o pior, que o fim estava perto. Nem os
sacerdotes puderam chegar a uma explicação racional para a
inexorável aproximação do mar, um fenômeno tão
sobrenatural quanto os estrondos do próprio vulcão.
Ele começou a andar e sua gesticulação lançava estranhas
sombras nas paredes.
- Para apaziguar os deuses eles praticaram sacrifícios
conciliatórios. Talvez tivessem arrastado um touro gigante
pela via processional e cortado seu pescoço no altar. Quando
isso falhou, devem ter ficado desesperados e se voltaram
para a oferenda máxima, para o sacrifício humano. Eles
matavam suas vítimas na laje de preparação, na câmara
mortuária, e arremessavam seus corpos para dentro do
coração do vulcão.
Ele fez uma pausa e olhou para os outros.
- E então aconteceu. Pode ter sido uma onda de magma,
talvez acompanhada por um violento temporal, uma
combinação que produziu aquela extraordinária coluna de
vapor e depois o glorioso arco-íris. Era o sinal esperado
havia muito tempo. Um último sinal foi rapidamente
inscrito na parede. Jeová, afinal, não os tinha abandonado.
Ainda havia esperança. Ficaram convencidos de que tinham
de ir embora e não esperar por sua destruição.
- E então eles começaram a partir em suas embarcações, -
disse Costas.
- Alguns pegaram o caminho mais curto para as terras altas,
foram para o leste em direção ao Cáucaso, e para o sul
através das planícies onde havia comida, passando pelo
Monte Ararat em direção à Mesopotâmia e ao vale do Indus.
Outros remaram para o oeste, para a embocadura do
Danúbio. Mas acredito que o grupo maior navegou ao redor
do Bósforo para o Mediterrâneo. Eles se estabeleceram na
Grécia, no Egito e no Oriente, alguns foram adiante até a
Itália e a Espanha.
- O que levaram com eles? Perguntou Efram.
- Pense na Arca de Noé, - respondeu Dillen. - Várias
espécies de casais de animais domésticos, gado, porcos,
veados, carneiros e cabras. E vários tipos de sementes. Trigo,
cevada, feijão, oliveiras e videiras. Mas há um item de
enorme significado que deixaram para trás.
Costas olhou para ele.
- O bronze?
Dillen concordou gravemente.
- É a única explicação possível para a ausência completa do
bronze nos registros arqueológicos dos dois mil anos
seguintes. Deve ter havido espaço, nas embarcações, para
levar as ferramentas e os utensílios, mas acho que os
sacerdotes ordenaram que não os levassem. Talvez este fosse
um ato final de apaziguamento, uma oferenda para proteger
a viagem deles para o desconhecido. Eles podem até ter
jogado as ferramentas no próprio oceano, um presente para
a força que havia arruinado sua cidade.
- Mas os sacerdotes levaram consigo seu conhecimento de
metalurgia, - disse Costas.
- De fato. Acho que os sumos sacerdotes fizeram um pacto
com seus deuses, uma aliança, se você quiser. Depois que o
presságio lhes deu esperança de escapar, eles começaram a
trabalhar com a maior urgência copiando as palavras de seus
textos sagrados, transcrevendo as dez tabuletas em folhas de
ouro laminado. Nós sabemos que o conhecimento deles
incluía os rudimentos de agricultura, criação de gado e o
trabalho com pedra, juntamente com outras técnicas que só
serão reveladas quando a tradução estiver completa. - Ele
olhou para Katya. - Cada conjunto de tabuletas foi colocado
dentro de um cofre de madeira e confiado a um sumo
sacerdote que acompanhava cada uma das pequenas frotas
que partiam.
- Um dos grupos tinha um conjunto incompleto, - interveio
Jack. - A folha de ouro inacabada na nossa frente,
abandonada quando o copista transcrevia a quarta tabuleta.
Dillen concordou.
E acho que um dos grupos era maior do que os outros,
incluindo um número maior de sumos sacerdotes e sua
comitiva. Ao enviar uma cópia dos textos sagrados com cada
grupo, os sacerdotes asseguraram-se de que seu legado seria
preservado mesmo se algo acontecesse com a frota principal.
Mas a intenção deles era encontrar uma nova montanha
sagrada, uma nova Atlântida.
- E você está dizendo que os descendentes deles se
acomodaram com este conhecimento durante dois mil anos,
- disse Costas incrédulo.
- Pense nos sacerdotes de Sais, - replicou Dillen. - Durante
várias gerações eles ocultaram a história da Atlântida, uma
civilização que pereceu algumas eras antes que os faraós
chegassem ao poder. Até onde sabemos, Sólon foi o
primeiro estrangeiro a ter acesso aos seus segredos.
- E os sacerdotes tinham muito a oferecer além dos mistérios
da metalurgia, - disse Jack. - Eles ainda podiam usar o seu
conhecimento astrológico para profetizar as estações e
prescrever as datas mais propícias para a semeadura e a
colheita. No Egito eles devem ter transposto o seu
conhecimento para a inundação anual do Nilo, um milagre
que exigia intervenção divina. O mesmo era verdade em
outros berços de civilizações onde os rios inundavam as
terras, o Tigre-Eufrates na Mesopotâmia e o vale do Indus
no Paquistão.
- E não devemos omitir o que poderia ser um legado mais
direto do bronze, - acrescentou Mustafá. - Durante o sexto e
o quinto milênio antes de Cristo, os trabalhos em pedra
polida e fragmentos de pedra alcançaram seu auge,
produzindo facas e foices extraordinárias. Algumas são tão
parecidas com as formas em metal que elas poderiam ter
sido feitas de acordo com a lembrança das ferramentas em
bronze. Em Varna, na costa da Bulgária, um cemitério
produziu um deslumbrante conjunto de ornamentos em
ouro e cobre. O local data de antes de quatro mil e
quinhentos anos antes de Cristo, então os primeiros
colonizadores poderiam ter sido atlantes.
- Nem devemos esquecer a linguagem, - disse Katya. - Seu
maior presente pode ter sido o indo-europeu inscrito
naquelas tabuletas. A verdadeira língua-mãe era deles, a base
das primeiras línguas escritas no Antigo Testamento. Grego.
Latim. Esloveno. Iraniano. Sânscrito. Germânico, com o seu
descendente inglês arcaico. O extenso vocabulário deles e a
sintaxe avançada auxiliavam a propagação de idéias, não
apenas noções abstratas de religião e astronomia, mas
também assuntos mais mundanos. O denominador comum
mais claro entre as línguas indo-européias é o vocabulário
para trabalhar a terra e para a criação de animais.
- Aquelas idéias abstratas incluíam o monoteísmo, a
adoração de um único deus. - Efram Jacobovich parecia estar
em meio ao sofrimento de uma nova revelação quando
falou, sua voz estava trêmula de emoção. - Na religião
judaica nos ensinam que as histórias do Antigo Testamento
derivam principalmente de eventos do fim da Idade do
Bronze e dos primórdios da Idade do Ferro, do segundo
milênio antes de Cristo e do início do primeiro. Agora,
parece que elas devem incorporar uma memória quase
inacreditavelmente mais velha. A inundação do mar Negro e
Noé. As tabuletas de ouro e a Arca da Aliança. Mesmo a
evidência de sacrifício, possivelmente sacrifício humano,
como o último teste da fidelidade a Deus, evocando a
história de Abraão e de seu filho Isaac no monte Moria.
Tudo isto é muito semelhante para ser apenas uma
coincidência.
- Muito do que outrora foi tido como verdade precisa ser
revisto, reescrito, - disse Dillen de maneira solene. - Uma
série de ocorrências notáveis levaram a esta descoberta. A
descoberta do papiro no deserto. A escavação no naufrágio
minoano e o achado do disco de ouro, com sua preciosa
concordância de símbolos. A tradução do disco de Phaistos
de cerâmica. - Ele olhou para Aysha e Hiebermeyer, depois
para Costas, Jack e Katya, reconhecendo a contribuição de
cada um. - Um fio comum passa por todos esses
descobrimentos, algo que no início descartei como mera
coincidência.
- A Creta minoana, - respondeu Jack imediatamente.
Dillen aquiesceu.
- A versão selecionada da história da Atlântida de Platão
parece referir-se à Idade do Bronze minoana, ao seu
desaparecimento depois da erupção do Thera. Mas por
grande sorte a sobrevivência do fragmento de papiro
mostrou que Sólon registrou dois relatos separados, um que
realmente se referia ao cataclismo no mar Egeu no meio do
segundo milênio antes de Cristo, e outro que descrevia o
desaparecimento da Atlântida no mar Negro quatro mil anos
antes.
- Eventos que eram completamente desconectados, -
interveio Costas.
Dillen concordou.
- Eu supus que Amenhotep estava transmitindo a Sólon um
relato anedótico das grandes catástrofes naturais do passado,
uma lista das civilizações que desapareceram por causa de
inundações e de terremotos, algo que iria ao encontro do
gosto dos gregos pelo dramático. Um século depois os
sacerdotes egípcios supriram Heródoto com todos os tipos
de histórias sobre atividades em locais afastados, algumas
delas nitidamente falsas. Cheguei a pensar que Amenhotep
tinha um propósito mais elevado.
Costas olhou perplexo.
- Eu pensei que a única razão pela qual os sacerdotes
estavam interessados em Sólon era o seu ouro, - disse ele. -
Eles nunca teriam revelado seus segredos se não fosse o
ouro, principalmente para um estrangeiro.
- Acredito agora que isto foi apenas parte da história.
Amenhotep pode ter percebido que os dias dos faraós
estavam contados, que eles não podiam mais contar com a
segurança que permitira que seus ancestrais mantivessem
seus segredos durante tantas gerações. Os gregos já estavam
estabelecendo postos de comércio no Delta, e apenas dois
séculos mais tarde Alexandre, o Grande, atacaria
violentamente a região e removeria a antiga ordem para
sempre. No entanto, Amenhotep pode também ter olhado
com esperança para os gregos. A sociedade deles estava no
vértice da democracia, onde imperavam a iluminação e a
curiosidade, um lugar onde o filósofo podia verdadeiramente
ser rei. No mundo grego as pessoas podiam uma vez mais
descobrir a Utopia.
- E a visão do estudioso suplicante pode ter reacendido
memórias de uma terra lendária sobre o horizonte
setentrional, uma civilização na ilha encoberta em fábulas
que outrora reunia as maiores esperanças de ressurreição
para o sacerdócio. - O rosto de Jack se iluminou com a
excitação. - Eu também acredito que Amenhotep foi um dos
últimos sacerdotes da Atlântida, um descendente direto dos
homens sagrados que guiaram um grupo de refugiados cinco
mil anos antes para as costas do Egito e moldaram o destino
daquela região. Sumos sacerdotes, patriarcas, profetas,
chame-os como quiser. Outros grupos desembarcaram no
leste, na parte ocidental da Itália, onde se tornaram os
ancestrais dos etruscos e romanos; no sul da Espanha, onde
os tartéssios iriam florescer. Mas acredito que a frota maior
não foi mais adiante do que o mar Egeu.
- A ilha de Thera, - exclamou Costas.
- Antes da erupção, Thera deve ter sido o vulcão mais
grandioso no Egeu, um vasto cone que dominava o
arquipélago, - replicou Jack. - Para os refugiados, o contorno
distante deveria lembrar de maneira surpreendente sua
pátria perdida. As últimas reconstruções mostram o vulcão
Thera com seus picos gêmeos, o que era bastante similar à
vista que tivemos desta ilha, pela primeira vez, a bordo do
Seaquest.
- Aquele mosteiro descoberto nos despenhadeiros do Thera
depois do terremoto do ano passado, você está insinuando
que ele foi construído pelos atlantes? - perguntou Costas.
- Desde a descoberta da Akrotiri pré-histórica, em 1967, os
arqueólogos têm estado desconcertados com o fato de um
assentamento tão próspero não possuir um palácio, - disse
Jack. - A revelação do ano passado prova o que alguns de
nós pensaram, que o foco principal na ilha era um recinto
religioso que devia ter incluído um magnífico santuário
situado sobre picos. O nosso naufrágio confirma o que
pensamos. O conjunto de objetos de cerimônias e de
artefatos sagrados deles mostra que os sacerdotes possuíam a
riqueza dos reis.
- Mas certamente o naufrágio é da Idade do Bronze,
milhares de anos depois do êxodo do mar Negro, - protestou
Costas.
- Sim, Akrotiri era uma fundação da Idade do Bronze, um
entreposto de comércio pelo mar, mas a cerâmica neolítica e
as ferramentas de pedra podiam ser encontradas por toda a
ilha. Os primeiros assentamentos ficavam provavelmente no
interior e em cima de declives, uma localização melhor em
uma época em que era comum a pirataria no mar.
- Qual era a data do mosteiro? - perguntou Costas.
- Ele é incrivelmente antigo, quinto ou sexto milênio antes
de Cristo. Você percebe como tudo parece entrar nos eixos?
Quanto ao naufrágio, provavelmente não apenas o disco de
ouro, mas muitos outros artefatos sagrados que estão a
bordo, vão provar que são muito mais antigos; seriam peças
tradicionais herdadas e veneradas que datam de milhares de
anos antes da Idade do Bronze.
- E como é que a Creta minoana se ajusta nisto tudo?
Jack agarrou a borda da mesa, sua euforia era palpável.
- Quando as pessoas se reportam ao mundo antigo antes dos
gregos e romanos, tendem a pensar nos egípcios, nos
assírios ou em outros povos do Oriente Próximo
mencionados na Bíblia. Mas em muitas maneiras a
civilização mais extraordinária foi a que se desenvolveu na
ilha de Creta. Eles podem não ter construído pirâmides ou
zigurates, mas tudo aponta para uma cultura singularmente
rica, maravilhosamente criativa e perfeitamente sintonizada
com a generosidade de sua terra. - Jack podia sentir a
excitação que se apoderava dos outros quando começaram a
compreender tudo o que já haviam revirado em suas mentes
desde a conferência em Alexandria.
- É difícil visualizar hoje, mas de onde nos encontramos
agora podemos ver que os atlantes controlaram uma vasta
planície que se estendia da antiga linha da costa até os
contrafortes da Anatólia. A ilha de Thera também é muito
fértil, mas pequena demais para ter sustentado uma
população daquele tamanho. Então os sacerdotes
procuraram ao sul e a primeira terra foi avistada depois de
dois dias de navegação, partindo de Akrotiri; era uma imensa
extensão de costa, com montanhas atrás, que deve ter dado a
impressão de ser um novo continente.
- Creta foi ocupada pela primeira vez no período neolítico, -
comentou Hiebermeyer. - Do que lembro, os artefatos mais
velhos encontrados debaixo do palácio de Cnossos são
datados, por carbono 14, como sendo do sétimo milênio
antes de Cristo.
- Mil anos antes do fim da Atlântida, ocorreu a maior onda
de colonização na ilha, depois da Idade do Gelo, -
concordou Jack. - Mas já suspeitamos que uma nova onda
chegou no sexto milênio antes de Cristo, trazendo cerâmicas
e novas idéias sobre arquitetura e religião.
Ele fez uma pausa para ordenar seus pensamentos.
- Agora acredito que eles eram atlantes, colonizadores que
remaram vindos de Thera. Construíram terraços nos vales ao
longo da costa norte de Creta, plantando videiras e pomares
de oliveiras e criando carneiros e gado do sortimento que
haviam trazido consigo. Eles usavam obsidiana que
encontraram na ilha de Meios e chegaram a controlá-la
como uma indústria de exportação, assim como os
sacerdotes da Atlântida haviam controlado o bronze. A
obsidiana chegou a ser usada em cerimônias de trocas de
presentes que ajudavam a estabelecer relações pacíficas em
todo o Egeu. Por mais de dois mil anos os sacerdotes
presidiram o desenvolvimento da ilha exercendo uma
orientação benigna a partir de uma rede de santuários
situados sobre picos à medida que a população crescia
gradualmente em aldeias e cidades e se tornava mais rica
com o excedente da agricultura.
- Como você explica o aparecimento do bronze mais ou
menos simultaneamente em todo o Oriente Próximo
durante o terceiro milênio antes de Cristo? - perguntou
Costas.
Mustafá respondeu.
- O estanho estava começando a aparecer, em pequenas
quantidades, no Mediterrâneo, vindo do leste. E, por toda a
região, os que trabalhavam com cobre começaram a usá-lo
em ligas experimentais.
- E eu acredito que os sacerdotes se curvaram ao inevitável e
decidiram revelar seu grande segredo, - acrescentou Jack. -
Como monges medievais ou druidas celtas, acho que eles
eram árbitros internacionais de cultura e justiça, emissários e
intermediários que promoviam o vínculo de cidades-Estados
da Idade do Bronze e mantinham a paz onde podiam. Eles
cuidaram para que o legado da Atlântida fosse uma moeda
corrente na cultura da região, com características comuns
tão grandiosas quanto os pátios dos palácios de Creta e do
Oriente Próximo.
- Sabemos que eles estavam envolvidos em comércio por
causa das evidências do naufrágio, - disse Mustafá.
- Antes do nosso trabalho no naufrágio houve três
escavações em embarcações da Idade do Bronze no leste do
Mediterrâneo, nenhuma minoana e todas de uma data
posterior, - continuou Jack. - Os achados sugerem que os
sacerdotes controlavam o comércio lucrativo de metal,
homens e mulheres que acompanhavam os carregamentos
em longas viagens de ida e volta ao Egeu. Acho que aquele
mesmo clero expôs pela primeira vez as maravilhas da
tecnologia do bronze, uma revelação articulada em toda
aquela região, mas conduzida com a maior seriedade na ilha
de Creta, um local onde a educação cuidadosa durante o
período neolítico garantiu que as condições para a repetição
de seu grande experimento fossem corretas.
- E depois aconteceu o efeito multiplicador. - O rosto de
Katya parecia ruborizado, à luz da lanterna, enquanto ela
falava. - As ferramentas de bronze favoreceram uma
segunda revolução da agricultura. As aldeias tornaram-se
cidades, as cidades construíram palácios. Os sacerdotes
introduziram a escrita linear A para facilitar a manutenção
de registros e a administração. Logo a Creta minoana
tornou-se a maior civilização que o Mediterrâneo jamais
conheceu, uma cuja força não se baseava no poderio militar,
mas no sucesso de sua economia e no apogeu de sua cultura.
- Ela olhou para Jack, que concordou lentamente com a
cabeça. - Vocês estavam certos no fim das contas. Creta era
a Atlântida de Platão. Só que era uma nova Atlântida, uma
utopia fundada de novo, um segundo grande projeto que
continuava o sonho antigo do paraíso sobre a terra.
- Na metade do segundo milênio antes de Cristo, a Creta
minoana estava no auge, - disse Dillen. - Ela era como havia
sido descrita na primeira parte do papiro de Sólon: uma
cidade de palácios magníficos e cultura exuberante, de
rodeios de touro e de esplendor artístico. A erupção do
Thera sacudiu aquele mundo em suas bases.
- A erupção foi maior do que as do Vesúvio e do Monte
Santa Helena combinadas, - disse Costas. - Quarenta
quilômetros cúbicos de resíduos liberados na explosão e uma
onda suficientemente alta para submergir Manhattan.
- Foi um cataclismo que alcançou muito além dos minoanos.
Com os sacerdotes extintos, todo o edifício da Idade do
Bronze começou a desmoronar. Um mundo que havia sido
próspero e seguro desandou para a anarquia e o caos, e foi
dilacerado por conflitos internos e incapaz de resistir aos
invasores que devastaram a cidade, vindos do norte.
- Mas alguns dos sacerdotes escaparam, - disse Costas. - Os
passageiros no naufrágio que estamos escavando morreram,
mas outros conseguiram sobreviver, aqueles que
abandonaram Creta antes.
- Realmente, - disse Dillen. - Como os habitantes de
Akrotiri, os sacerdotes no mosteiro prestavam atenção aos
avisos antecipados, provavelmente tremores violentos que
os especialistas em sismologia pensam que sacudiram a ilha
algumas semanas antes do cataclismo. Acredito que a maior
parte dos sacerdotes morreu na embarcação que estamos
escavando. Mas outros alcançaram um ancoradouro seguro
em seu seminário em Phaistos ao sul da costa de Creta, e
alguns foram mais longe para se juntar a seus irmãos no
Egito e no Oriente.
- Até agora não houve outra tentativa para reviver a
Atlântida, nenhum experimento ulterior com utopia, -
aventurou-se Costas.
- Sombras negras já estavam encobrindo o mundo da Idade
do Bronze, - disse Dillen de modo severo. - Para o nordeste
os hititas estavam tomando posições em sua fortaleza de
Boghazkõy, na Anatólia, um embate violento que se
preparava para abrir caminho até os portões do Egito. Em
Creta, os minoanos que sobreviveram não tinham forças
para resistir aos guerreiros micênios que atacaram
repentinamente a partir do continente grego, os
antepassados de Agamenon e Menelau, cuja luta titânica
com o leste foi imortalizada por Homero no cerco de Tróia.
Dillen fez uma pausa e olhou para o grupo.
- Os sacerdotes sabiam que não tinham mais o poder de
modelar o destino de seu mundo. Por sua ambição eles
haviam reacendido a ira dos deuses, provocando novamente
a vingança divina que tinha destruído sua primeira pátria. A
erupção do Thera deve ter parecido apocalíptica, um
presságio do próprio Armagedão. Daí em diante os
sacerdotes não mais tiveram um papel ativo nos negócios
dos homens, mas se retiraram para as clausuras interiores
dos santuários e envolveram sua erudição em mistério. Logo
a Creta minoana, como a Atlântida antes, seria apenas um
paraíso vagamente lembrado, um relato moral da arrogância
dos homens diante dos deuses, uma história que passou ao
domínio do mito e da lenda para ser encerrada para sempre
nos mantras dos últimos sacerdotes remanescentes.
- No santuário do templo em Sais, - arriscou Costas.
Dillen concordou.
- O Egito foi a única civilização à beira do Mediterrâneo a
resistir à devastação no final da Idade do Bronze, o único
lugar onde os sacerdotes podiam alegar que existia uma
continuidade não interrompida com a Atlântida de milhares
de anos antes. Acho que Amenhotep foi o último
sobrevivente dessa linhagem, o único ainda existente na
alvorada da era clássica. E aquilo também estava condenado
a desaparecer dois séculos depois com a chegada de
Alexandre, o Grande.
- E, no entanto, o legado subsiste, - mencionou Jack. -
Amenhotep passou o ensinamento para Sólon, um homem
cuja cultura encerrava a promessa de que os ideais dos
fundadores poderiam um dia ser ressuscitados. - Ele fez uma
pausa e depois continuou baixinho, com a emoção mal
contida. - E agora aquele dever sagrado recaiu sobre nós.
Pela primeira vez, desde a Antigüidade, o legado da
Atlântida foi exposto diante da humanidade, não apenas o
que vimos, mas a sabedoria não relatada que nem mesmo
Amenhotep poderia ter divulgado.
Eles deixaram a câmara e desceram vagarosamente pela
escadaria, em direção à parte mais baixa onde havia luz. De
cada lado as figuras esculpidas de sacerdotes e sacerdotisas
pareciam ascender atrás deles, uma procissão solene
esforçando-se para sempre pelo mais sagrado dos sagrados.


33

Houve uma comoção no fim da passagem e Ben chegou
correndo com dois dos tripulantes do Sea Venture.
- Vocês devem sair daqui imediatamente. Detectamos um
provável intruso.
Jack lançou um olhar a Costas e os dois imediatamente
saíram com os tripulantes.
- Qual é a situação?
- Uma aeronave não identificada voando baixo em nossa
direção. O radar a detectou há cinco minutos. Ela não
responde a nenhum pedido de identificação. E é rápida.
Velocidade subsônica.
- Qual é o curso?
- Trajetória de cento e quarenta graus. Sul-sul-oeste.
Eles alcançaram a câmara de audiência e rodearam a
plataforma em direção à saída do lado oposto. Mesmo
passando pela extremidade da sala eles podiam sentir o calor
escaldante que vinha da chaminé central, pois houvera uma
súbita pequena erupção de atividade vulcânica enquanto eles
tinham estado dentro da passagem.
- Parece que vamos nos envolver com alguma coisa.
- De várias maneiras.
Jack fez um gesto para os outros se apressarem e esperou
que Hiebermeyer e Dillen os alcançassem, ficando na
retaguarda enquanto eles avançavam em direção ao túnel de
saída. Uma onda de gás muito quente passou por eles
enquanto se precipitavam para a brilhante luz do sol do lado
de fora.
- É um jorramento no núcleo. - Costas ergueu a voz acima
do crescente estrondo que vinha da câmara que acabavam
de deixar. - Um daqueles eventos que os atlantes registravam
em seu calendário. Pode haver um pouco de lava.
- Tom York já havia ordenado uma completa evacuação por
causa do intruso, - gritou Ben. - É para sua própria
segurança.
- Estamos com vocês.
Eles seguiram Ben rapidamente pelas escadarias até o
heliporto provisório que piscava intensamente na luz forte e
ofuscante do dia. O último dos Seahawks acabara de se
posicionar a pouca distância da praia e a única aeronave
restante era o Lynx do Sea Venture, os seus rotores já
estavam acionados e dois tripulantes inclinavam-se do lado
de fora da porta lateral para ajudá-los a entrar.
- É um jato militar. - Ben estava pressionando seu fone de
ouvido para conseguir se livrar da cacofonia enquanto
corria. - Nunca ninguém viu um como esse por aqui antes.
O capitão do FAC russo acredita que seja um Harrier.
Jack repentinamente experimentou uma onda de certeza
chocante enquanto ajudava Dillen a subir ao helicóptero.
Ele se lembrou dos hangares à prova de explosão de Aslan.
Devia ser Olga Ivanovna Bortsev.
- Eles pensam que o jato está se dirigindo para o submarino.
Ativaram os mísseis. Não querem se arriscar. Eles atiraram.
Quando pulou para dentro do helicóptero, Jack viu o rastro
de luz de dois mísseis lançados do FAC próximos ao Kazbek.
Enquanto procuravam o seu alvo, um ponto preto apareceu
sobre as ondas no horizonte na direção leste.
Ela não está vindo para o submarino. Ela está vindo para se
juntar ao seu amado no inferno.
- Vá! - gritou Jack. - Ele está vindo para cima de nós!
Quando o piloto do helicóptero arrancou violentamente do
chão, eles viram que a aeronave se chocava com o
submarino, acompanhada pelas esteiras de fumaça dos dois
mísseis. Jack girou para trás em direção à entrada aberta do
vulcão, onde tinham estado havia pouco, justo a tempo de
ver o impacto dos mísseis e a explosão na cauda do Harrier.
O Lynx levantou com rapidez atordoante enquanto a
embarcação naufragada explodia violentamente abaixo deles;
a figura com capacete no lugar do piloto se tornou visível,
por um instante, enquanto a explosão tragava a parte
dianteira da fuselagem. Antes que pudessem registrar o que
havia ocorrido, uma imensa onda de choque empurrou o
helicóptero para cima, quase atirando Jack e o homem que
estava na porta para fora do helicóptero, enquanto os outros
procuravam se firmar como era possível.
O Harrier em chamas colidiu com a face do despenhadeiro
com o impacto de um cometa. A aeronave havia sido
direcionada em linha reta para a entrada do vulcão e os
restos prosseguiram para o interior da câmara de audiência,
desaparecendo como se tivessem sido tragados pelo
estômago do vulcão. Por um momento extraordinário o fogo
e o barulho desapareceram completamente.
- A câmara vai explodir! - gritou Costas.
Quando o helicóptero se ergueu acima de mil pés e virou em
direção ao mar, eles olharam horrorizados para a cena abaixo
deles. Segundos depois do choque houve um estrondo
ensurdecedor e um jato de chama saiu da entrada como um
motor a jato. O impacto do Harrier havia comprimido e
incendiado os gases voláteis que haviam se juntado dentro
da câmara de audiência. O cone do vulcão pareceu ficar
toldado quando o estrondo colossal da detonação os
alcançou. A fonte quente de fogo subiu rapidamente
centenas de metros onde havia existido antes a chaminé de
vapor.
Da extremidade da imensa nuvem de poeira que obscureceu
o cone quando ele caiu, eles viram uma beirada de fogo,
línguas de magma fundido que começaram a rolar
inexoravelmente pelos declives em direção ao mar.
A Atlântida havia revelado seus segredos pela última vez.

Epílogo

Os últimos raios do pôr do sol lançavam um brilho cálido
sobre as ondas que batiam na popa do Sea Venture. Mais
longe, a leste, o mar se fundia com o céu em uma neblina
pálida, e a oeste a esfera luminosa do sol afundava
diminuindo, na luz restante, em vastos rastros convergentes
através do céu. Depois da erupção, tudo ficara repleto de
tons pastéis, o local encoberto do vulcão era um vórtice de
poeira e vapor rodeado por uma auréola rosa e laranja.
Jack e os outros estavam sentados no convés superior, acima
da ponte de comando, com todo o panorama dos últimos
dias diante de si. Depois das extraordinárias descobertas da
manhã e da fuga desesperada, eles estavam exaustos mas
animados, e agora se aqueciam tranqüilamente no calor do
final do dia.
- Eu gostaria de saber o que o velho grego faria com tudo
isto. - Costas estava deitado, a cabeça apoiada num dos
braços, o rosto machucado voltado para Jack.
- Ele provavelmente teria cocado a cabeça por um
momento, diria "ah!" e depois pegaria seu pergaminho e
começaria a recordar tudo. Era esse tipo de pessoa.
- Um arqueólogo típico, - suspirou Costas. - Sem nenhuma
capacidade de excitar-se com alguma coisa.
O local da ilha ainda estava escondido pelas nuvens de vapor
onde a lava havia entrado no mar, mas eles sabiam que nada
havia sobrado acima da água. O labirinto subterrâneo tinha
desmoronado progressivamente depois que a câmara de
audiência implodiu com o peso do magma. Durante algumas
horas alarmantes, naquela tarde, eles experimentaram uma
versão dos efeitos após o choque do Thera, quando as
grandes câmaras desabaram, o mar sugando e rechaçando
em pequenos tsunamis que desafiavam até o sistema
estabilizador do Sea Venture. Mesmo agora eles sabiam que
a erupção continuava profundamente debaixo d'água,
vomitando rios de lava que estavam fluindo em direção aos
antigos caminhos e arrastando os limites exteriores da cidade
em seu abraço.
- A escavação ainda pode ser possível, - disse Costas. - Olhe
para Pompéia e Herculano, até mesmo Akrotiri em Thera.
- Em Pompéia, depois de duzentos e cinqüenta anos, os
escavadores só chegaram na metade do caminho, - replicou
Jack. - E ela está debaixo de cinzas e de resíduos, não de
lava. Também não está submersa.
Eles se consolaram, mutuamente, dizendo que restavam
outras maravilhas para ser descobertas ao longo da antiga
linha da costa, que havia locais perfeitamente preservados
como a cidade de Trabzon, que responderia a muitas de suas
questões sobre como o povo dessa extraordinária cultura
floresceu mais de sete mil anos atrás.
Para Jack não havia nada mais importante do que a revelação
sobre a Atlântida e o seu notável lugar na história. Se eles
tivessem ciência de que estavam com o tempo contado,
talvez nem entrassem no vulcão, seu mergulho através do
labirinto e a descoberta do santuário pareciam agora ter sido
experiências sagradas, para jamais serem repetidas.
Jack tinha certeza de que o fato de salvaguardar o submarino
e destruir Aslan tinha evitado um holocausto nuclear. A
façanha que empreenderam lhes dava um raio de esperança,
era um pequeno sinal de que as pessoas ainda tinham a
capacidade de moldar seu próprio destino. Por causa dos
primeiros sacerdotes visionários que existiram na aurora da
civilização, a lembrança da descoberta deles deveria ser
resguardada não apenas como a revelação de um passado de
glória, mas também como uma promessa para o futuro. Este
era o verdadeiro legado da Atlântida.
Os murmúrios moribundos do vento ondulavam o mar
como lençóis salpicados de laranja, cada lufada de vento
passando de maneira impetuosa na direção oeste. Ao norte
eles apenas podiam distinguir a mancha de óleo que era tudo
o que restara do Vultura; uma hora antes, seu casco
queimado havia deslizado, quase sem ser percebido, para
debaixo das ondas. Bem perto da costa a cena era dominada
pelo tamanho do Kazbek. Sua cobertura tinha se aberto para
permitir que um navio de salvamento russo pudesse
manobrar dentro do local. Mais adiante havia um cordão de
navios de guerra cujo número havia aumentado bastante ao
longo do dia. Todos eles tomavam muito cuidado, sem
arriscar nada, porque os eventos dos últimos dias haviam
mostrado que elementos perigosos tinham a crueldade e a
ousadia para atacar as forças internacionais mais potentes.
Efram Jacobovich estava falando tranqüilamente no celular,
de costas para o grupo. A destreza nas negociações havia
tornado Efram um dos homens mais ricos do mundo; ele já
havia intermediado uma transação em que a riqueza de
Aslan seria dividida em três partes principais. Os turcos
receberiam uma reserva importante para ajuda em caso de
terremotos e a Geórgia os meios para formar uma poderosa
força de segurança. AIMU teria condições de construir o
Seaquest II, com mais do que o suficiente para financiar um
programa de pesquisa ao longo de toda a costa do mar
Negro.
Jack olhou para Costas.
- A propósito, obrigado pelo ADSA. Se você não tivesse
insistido em instalá-lo no módulo de comando, eu seria um
acessório permanente no fundo oceânico neste momento.
Costas levantou o grande gim-tônica que gentilmente havia
sido preparado para ele.
- E obrigado por aparecer no momento crítico, - ele
replicou. - Onde eu estava, as coisas começavam a ficar
decididamente quentes.
- Eu tenho uma pergunta, - disse Jack. - O que você teria
feito se eu não tivesse chegado?
- Eu já havia concordado em conduzir a tripulação de Aslan
através do vulcão até o submarino. Você lembra da parte
final do túnel subaquático, da saliência de lava logo antes de
atingirmos a superfície? Eu os teria levado pela passagem do
lado esquerdo.
- Diretamente para dentro da câmara de lava.
- Eu estava indo para lá de todo jeito, - disse Costas meio
pesaroso. - Pelo menos assim eu levaria alguns dos homens
de Aslan comigo e daria uma chance para Katya. Seria pelo
bem maior, como você diria.
Jack olhou para o jeito pensativo de Katya, seu rosto
dourado pelo sol enquanto estava inclinada com os olhos
fixos no mar. Eles haviam descoberto coisas incríveis
durante os últimos dias, embora ela tivesse passado por uma
experiência dolorosa. Jack nunca poderia ter previsto tudo
aquilo quando se encontraram pela primeira vez em
Alexandria poucos dias antes.
Ele olhou para trás, para o rosto machucado de seu amigo.
- Pelo bem maior, - Jack repetiu baixinho.
Dillen estava sentado tranqüilamente do outro lado, olhando
para o horizonte, seu rosto era um quadro vivo de um
estudioso absorto, soltando baforadas em seu cachimbo de
barro antigo. Depois que eles terminaram de falar, Dillen se
voltou e olhou de modo zombeteiro para Jack.
- E eu tenho uma pergunta para você, - disse Dillen. -
Aquele conjunto incompleto de placas. Em sua opinião, qual
grupo ficou com elas?
Jack pensou por um momento.
- Eles têm tudo até a quarta tabuleta, os rudimentos da
agricultura e da criação de animais e o trabalho com pedra.
Elas podem ter ido para a Europa ocidental, onde a Idade do
Bronze começou mais tarde do que no Oriente Próximo,
para a Espanha ou a França ocidental ou a Grã-Bretanha.
- Ou até mesmo mais longe, - instigou Dillen.
- Alguns dos artefatos do início da pré-história encontrados
na Meso-américa e na China nunca foram explicados
apropriadamente, - disse Jack. - Quando a urbanização se
desenvolveu nas Américas ela produziu uma arquitetura
incrivelmente similar às formas do Antigo Mundo:
pirâmides, pátios e caminhos processionais. Pode ser que o
legado da Atlântida tenha sido um fenômeno totalmente
global, que o mundo tenha se unido, naquela época, de uma
forma tal como nunca o fizera antes ou desde então.
As luzes de aterrissagem do heliporto, na popa, se
acenderam e Jack se voltou para olhar. O heliporto tinha
tido muita atividade durante todo o dia. Mais cedo tinha
chegado o Lynx do Sea Venture com uma equipe de
inspeção de armas nucleares das Nações Unidas para a
transferência do Kazbek, e agora ele voltara de uma parada
de reabastecimento em Abkházia com uma carga preciosa
de obras de arte provenientes dos centros de operações de
Aslan que haviam sido recentemente destruídos. Quando o
Lynx levantou para ir a Istambul, eles puderam ouvir o
zumbido característico de dois helicópteros de transporte
Westland que haviam tomado posição de espera e
aguardavam sua vez de aterrissar.
Apesar do cansaço, Jack sabia que devia convocar uma
reunião de imprensa imediatamente. Em pouco mais de uma
hora todos os repórteres estariam de volta à plataforma do
centro de operações da IMU em Trabzon, e as notícias da
descoberta estariam sendo publicadas em todos os jornais do
mundo na manhã seguinte.
Quando o primeiro helicóptero pousou no heliporto e
equipes de cameramen começaram a descer, Jack ficou de
pé, suas feições severas emolduradas contra a luz mortiça do
dia. Antes de descer as escadas para enfrentar a notoriedade,
ele se voltou para os outros.
- Eu fico aqui no Sea Venture até que a busca por Peter
termine, - disse Jack. - Peter não iria querer, mas sinto que
lhe devo isto. Eu o trouxe aqui e ele era meu amigo.
- Ele foi um herói, - disse Katya de maneira suave. - O
mundo é um lugar melhor agora do que era cinco dias atrás.
Eles olharam para o local onde ela ainda estava inclinada
sobre o parapeito, fitando o leste. Ela se voltou para eles e
manteve o olhar. As emoções dos últimos dias estavam
estampadas em seu rosto, mas as nuanças levemente cor de
cobre da luz do anoitecer pareciam apagar sua ansiedade e
irradiavam o calor de um futuro mais brilhante. Ela se
levantou e, com um sorriso cansado, postou-se ao lado de
Jack. Jack respirou profundamente e depois olhou de novo
para os outros.
- Ah, e qualquer um de vocês está convidado a tomar R & R
por minha conta.
- Sinto muito, meu velho. - Dillen sorriu calorosamente para
Jack. O cachimbo firmemente preso entre seus dentes. - Eu
tenho uma conferência sobre paleolingüística para dar e esta
pequena diversão desorganizou completamente os meus
preparativos. Acho que tenho de voltar para Cambridge
amanhã.
- E eu tenho de encontrar a Arca de Noé, - disse Mustafá
com indiferença. - Não no monte Ararat, mas na linha da
costa onde o grupo que foi para o sudeste puxou suas
embarcações para a praia antes de ir terra adentro. Preciso
organizar um grupo de inspeção da IMU.
Jack voltou-se para Hiebermeyer e Aysha.
- E eu suponho que vocês devem ter alguma velha múmia
enfadonha para descobrir.
Hiebermeyer se permitiu um raro sorriso.
- Na prática é isto mesmo.
- Apenas não encontre mais mapas de tesouros.
- Agora que você mencionou isso, acabamos de receber um
relatório intrigante sobre uma descoberta na ala helênica da
necrópole. Algo que tem a ver com Alexandre, o Grande;
uma expedição secreta através do oceano Índico até um
reino montanhoso distante.
Eles perceberam que o interesse de Jack foi imediatamente
despertado, seus pensamentos já se deslocavam em torno de
várias possibilidades.
- E no caso de você ter esquecido, ainda temos um naufrágio
minoano para investigar. - Costas deixou seu drinque de lado
e estava examinando os últimos relatórios em seu palmtop
computer. - Os mergulhadores acabaram de trazer alguns
artefatos surpreendentes, folhas de ouro cobertas com
símbolos estranhamente familiares. - Ele sorriu e olhou para
seu amigo. - Então, qual é o nosso próximo projeto?
- Esta é uma outra história.
Nota do Autor

A descoberta que apóia esta história é fictícia. No entanto, o
cenário arqueológico de fundo é tão plausível quanto a
história o permite, levando em conta o estado atual de
conhecimento e discussão. O propósito desta nota é
esclarecer os fatos.
A inundação do mar Negro. A crise de salinidade em
Messina é um acontecimento real, resultado de processos
tectônicos e glacieustáticos que isolaram o Mediterrâneo do
Atlântico; essa crise foi datada como sendo de 5,96 a 5,33
milhões de anos ADA (antes da data atual), e a inundação da
ponte de terra de Gibraltar ocorreu rapidamente no final. O
nível do Mediterrâneo subiu 130 metros depois, durante a
"grande fusão", no final da Idade do Gelo, cerca de 12 mil ou
10 mil anos atrás.
Evidências recentes foram reunidas para sugerir que o mar
Negro ficou separado do Mediterrâneo por vários milhares
de anos mais, e só subiu para o mesmo nível quando uma
represa natural, de um lado ao outro do Bósforo, foi
submersa no sexto milênio a.C. Amostras tiradas de debaixo
da parte central do solo do mar Negro sugerem uma
mudança de água fresca para sedimentos de água do mar
cerca de 7500 anos atrás, uma data identificada com precisão
através de análise de conchas de moluscos com carbono 14,
extraídas de ambos os lados do mar. O lençol de gelo na
Antártida Ocidental pode ter experimentado uma fase de
retração por volta daquela época, e é possível que esse
acontecimento, combinado com a atividade tectônica, tenha
empurrado o mar sobre o Bósforo.
Em 1999, pesquisadores usando sonar e uma rede
varredoura encontraram uma provável margem de canal de
uma antiga linha da costa a 150 metros abaixo do nível do
mar ao norte da Turquia, perto de Sinope. Embora haja
muita discussão em torno da data, a verdade sobre a rapidez
e o volume da inundação do mar Negro é amplamente
aceita.
O êxodo neolítico. Muitos especialistas acreditam que a
língua indo-européia se originou na região do mar Negro,
em alguma época entre o sétimo e o quinto milênio a.C. E,
bem antes da hipótese da inundação do mar Negro, os
principais arqueólogos argumentavam que a língua indo-
européia desenvolveu-se entre os primeiros agricultores da
Anatólia, cerca de 7000 a.C., que ela alcançou a Europa em
torno de 6000 a.C. e que sua difusão acompanhou passo a
passo a introdução da agricultura em larga escala e a criação
de animais. Este modelo provocou muita controvérsia, não
apenas sobre se a difusão envolvia primariamente a
propagação dos povos ou das idéias, e a discussão permanece
central em qualquer debate sobre as origens da civilização.
Atlântida. A única fonte para a Atlântida são os diálogos de
Timeu e Crítias, escritos pelo filósofo grego Platão na
primeira metade do século IV a.C. A credibilidade da
história se apóia em dois atos de fé: primeiro, que Platão
simplesmente não a inventou; segundo, que sua fonte
reconhecida, o estudioso ateniense Sólon, que viveu várias
gerações antes, não se deixou ludibriar pelo relato dos
sacerdotes em Sais no Egito, que foram seus supostos
informantes em algum momento durante o início do século
VI a.C.
Parece provável que os sacerdotes egípcios fizeram
realmente registros que retrocediam a milhares de anos. Ao
historiador grego Heródoto - que reuniu resmas de
informações sobre os sacerdotes quando os visitou no meio
do século V a.C, muito desse material verificável - foi
mostrado um papiro com a lista sucessória de "trezentos e
trinta" monarcas egípcios (Heródoto, História II, 100). Ele
coloca uma nota de advertência: "Aqueles que pensam que
as histórias contadas pelos egípcios são dignas de crédito,
estão livres para aceitá-las como história" (II, 122).
No tempo de Sólon, os marinheiros mediterrâneos
conheciam as costas distantes além do mar Vermelho a leste
e das Colunas de Hércules a oeste. No entanto, não é
necessário procurar tão longe pela Atlântida. Para os
egípcios no século VI a.C., isolados durante séculos em
seguida ao colapso do mundo da Idade do Bronze, a ilha de
Creta era uma terra misteriosa além do horizonte que
outrora havia abrigado uma civilização brilhante. Todo
contato fora perdido como conseqüência do cataclismo que
eles devem ter experimentado quando do manto de
escuridão e da praga de gafanhotos relatados no Antigo
Testamento (Êxodo, 10).
Hoje, muitos dos que aceitam a veracidade da história de
Platão consideram a Atlântida como sendo a civilização da
Creta minoana e seu desaparecimento como ocorrido na
erupção do Thera no meio do segundo milênio a.C.
Um naufrágio minoano ainda deve ser desenterrado. No
entanto, vários naufrágios do fim da Idade do Bronze foram
encontrados, incluindo um em 1982 a sudoeste da Turquia,
considerado como a maior descoberta arqueológica desde a
tumba de Tutancâmon. Os achados incluem dez toneladas
de lingotes de cobre e de estanho em forma de couro de boi;
um esconderijo com lingotes de vidro azul-cobalto; cepos de
ébano e presas de marfim; belas espadas de bronze; sinetes
de mercadores do Oriente Próximo; jóias de ouro e um
magnífico cálice de ouro; e um raro escaravelho de ouro de
Nefertiti, o que situa o naufrágio no final do século XIV a.C.
O metal era suficiente para equipar uma armada inteira e
pode ter sido um tributo real. Os achados até incluíam itens
de significado religioso interpretados como equipamentos de
sacerdotes. Esses tesouros são atualmente exibidos, de
maneira esplêndida, no Museu Arqueológico Subaquático
em Bodrum.
Em 2001 uma caveira de hominídeo descoberta em
Dmanisi, na República da Geórgia, foi dada como tendo
existido 1,8 milhão de anos ADA, quase um milhão de anos
antes dos primeiros fósseis de hominídeos da Europa. Uma
migração muito posterior da África trouxe o Homo sapiens
sapiens, que começou pintando animais, que pareciam
extraordinariamente vivos, nas paredes das cavernas em
torno de 35 mil anos atrás.
O "salão dos ancestrais" está baseado não apenas nas famosas
pinturas das cavernas em Lascaux, na França, e Altamira, na
Espanha, datadas respectivamente de 20.000 ADA e 17.000
ADA, mas também em dois achados mais recentes. Em
1994, na caverna Chauvet, no sul da França, descobriu-se
um complexo de cavernas bloqueado por uma rocha que
caíra durante a pré-história. As pinturas datavam de 35.000
ADA, o que as colocava entre as mais antigas jamais
encontradas; elas mostravam que os artistas da Idade da
Pedra alcançaram o pináculo de sua habilidade apenas
poucos milhares de anos depois que os humanos
anatomicamente modernos chegaram àquela região. As
pinturas incluíam mamutes lanudos gigantes e outras
megafaunas da Idade do Gelo. Uma outra caverna
encontrada em 1991, perto de Marselha, continha mais de
140 pinturas e esculturas, uma descoberta particularmente
notável porque sua entrada fica a 37 metros abaixo do nível
do mar. A caverna Cosquer mostra que outros tesouros
podem permanecer não detectados nas cavernas submersas
desde o fim da Idade do Gelo.
Devem ter se passado muitos milhares de anos antes que a
linguagem fosse representada por uma escrita; as primeiras
conhecidas foram a cuneiforme da Mesopotâmia e os
hieróglifos do Egito em torno de 3200 a.C. No entanto,
achados do Alto Paleolítico (35.000-11.000 ADA),
contemporâneos da arte encontrada nas cavernas, incluem
chifres cuidadosamente cortados com um instrumento
afiado com linhas e pontos que podem representar
seqüências numéricas, possivelmente a passagem dos dias ou
o calendário lunar. O conceito de escrita pode, assim, ter
sido estabelecido bem antes da primeira necessidade de
manter um registro extenso no início da Idade do Bronze.
Os sacerdotes imaginários da Atlântida são um amálgama de
xamãs e curandeiros das sociedades de caçadores com os reis
sacerdotes das primeiras cidades-Estados. São também os
precursores distantes dos druidas, os sacerdotes ardilosos
amplamente conhecidos das Guerras gálicas de César. Os
druidas podem ter sido poderosos mediadores que reuniram
as diversas tribos da Europa céltica. Seus antepassados
podem ter usado os "chapéus de feiticeiros" cônicos em
ouro, embelezados de maneira intricada com símbolos
astrológicos, que foram recentemente identificados entre os
achados da Idade do Bronze; os símbolos sugerem uma
habilidade para fazer mapas e predizer o movimento dos
céus, inclusive o ciclo lunar, um conhecimento também
revelado em observatórios megalíticos como os de
Stonehenge. Os primeiros símbolos datam de
aproximadamente 1200 a.C. e até agora nenhum deles foi
relatado fora da Europa ocidental.
Os primeiros agricultores nas ilhas mediterrâneas tinham
casais de várias espécies de animais domésticos, incluindo
veados, carneiros, cabras, porcos e bois, que não eram
nativos e devem ter sido trazidos do continente em longas
embarcações de remos de pá larga. Escavações em Chipre
sugerem que essas migrações começaram por volta do nono
milênio a.C, logo depois do início da agricultura no
"Crescente Fértil" da Anatólia e do Oriente Próximo.
As primeiras embarcações de madeira que foram datadas são
de fragmentos de canoas oriundas da Dinamarca do quinto
ao quarto milênio a.C. Enquanto as primeiras embarcações
do Egito e do Oriente Próximo podem ter sido feitas com
feixes de cana, que lembravam a forma de "papiro"
encontrada em embarcações funerárias posteriores, a
abundância de madeira de lei ao longo da costa sul do mar
Negro sugere que as embarcações construídas possam ter
sido feitas de madeira mesmo antes que ferramentas de
metal se tornassem disponíveis.
Um modelo da Arca de Noé é o "Barco de Dover" um casco
extraordinariamente bem preservado encontrado na ilha
com o nome de Dover em 1992. Embora date da Idade do
Bronze, ele tem uma forma genérica que pode ter sido típica
das primeiras embarcações que entraram no mar. Elas
tinham cerca de quinze metros de comprimento e eram
construídas com pranchas amarradas juntas com teixos de
vime, que podiam ser separadas para reparos ou para
transporte por terra. Com dezoito ou vinte remos de pá larga
eles podiam transportar passageiros, animais domésticos e
outras cargas através do Canal da Mancha. É mais provável
que um comboio feito dessas embarcações tenha sido usado
para o êxodo durante o período neolítico, em vez de um
único barco do tamanho da Arca de Noé descrito no Antigo
Testamento, principalmente porque ainda não existiam
ferramentas de metal para a carpintaria e os mastros de
embarcações a vela ainda precisavam ser desenvolvidos.
Os primeiros sítios neolíticos mais importantes descobertos
até agora são Jerico e Çatal Hüyük (também Çatalhõyük).
Jerico, a cidade bíblica identificada como Tell es-Sultan, no
vale do Jordão, em Israel, estava rodeada por uma maciça
parede de pedra construída por volta de 8000 a.C. durante o
período neolítico pré-cerâmica. Por outro lado, há pouca
evidência direta de preparações para a guerra, antes do sexto
milênio a.C., na forma de fortificações, assentamentos feitos
de barro queimado, ou locais de massacre, e uma recente
reavaliação argumenta que as "defesas" de Jerico eram, de
fato, proteção contra inundações.
Çatal Hüyük, na região central ao sul da Turquia, floresceu
do fim do sétimo milênio até a metade do sexto, quando foi
abandonada. A imagem de suas construções semelhantes aos
pueblos, suas salas de culto guarnecidas de símbolos com
chifres de touro e decoradas com exuberantes pinturas nas
paredes proporciona um autêntico plano para as estruturas
imaginadas debaixo do mar Negro. Os achados incluem
estatuetas de terracota e de pedra da deusa-mãe
grotescamente corpulenta, uma reminiscência de uma
imagem feminina estilizada em terracota recentemente
encontrada na costa turca do mar Negro, em Ikistepe.
Uma das muitas imagens extraordinárias de Çatal Hüyük é
um afresco, encontrado em uma sala de culto, datado de
6200 a.C., mostrando um respiradouro de vulcão com uma
grande coluna de fumaça de pó vulcânico. Com os seus
cones gêmeos e a sela entre os dois, o vulcão se parece de
maneira notável com as imagens de chifre de touro dos
santuários. Ao pé dele há uma cidade, se estendendo para
diante como que ao longo da costa, as construções são
similares às de Çatal Hüyük, mas separadas em blocos
retilíneos altamente compactos. O vulcão pode representar
um cone de escória de carvão no campo vulcânico de
Karapinar, cerca de cinqüenta quilômetros a leste, e a cidade
pode ser a própria Çatal Hüyük; ou pode reproduzir uma
cena distante em que uma cidade à beira-mar se aninhou
abaixo dos picos gêmeos de um vulcão. A pintura é a mais
velha imagem conhecida de um vulcão ativo e de uma
cidade planejada.
Ao redor do mar Negro a evidência mais clara de
desenvolvimento precoce vem de Varna, na Bulgária, onde
um cemitério produziu uma enorme provisão de artefatos de
ouro e de cobre, juntamente com objetos feitos de pedra e
osso. Os achados revelam não apenas as realizações
extraordinárias dos primitivos metalurgistas, mas também
uma sociedade com uma estratificação refletida em riqueza
material. O cemitério data de um período neolítico tardio,
também chamado de "Calcolítico" ou Idade do Cobre, e
estava em uso na metade do quinto milênio a.C.
A oitenta quilômetros ao norte de Creta fica a ilha vulcânica
de Thera. Apenas uma parte da cidade pré-histórica de
Akrotiri foi revelada, mas, à medida que emerge de sua
tumba de cinza e pedra-pomes, ela parece uma Pompéia da
Idade do Bronze. Os habitantes tiveram algum aviso da
erupção, provavelmente uma série de terremotos violentos.
Embora nenhum mosteiro tenha sido descoberto, o
esplêndido afresco marinho de Akrotiri, que mostra uma
procissão de barcos e uma estrutura suntuosa à beira-mar,
sugere que a observância religiosa e a cerimônia
desempenhavam um papel importante na ilha.
Muitos arqueólogos situaram a erupção em torno de 1500
a.C., baseados em evidência para a destruição dos palácios
em Creta e da chegada dos micênios. No entanto, cientistas
têm sugerido recentemente a "data mais aproximada" de
1628 a.C., baseados nas camadas de acidez do gelo da
Groenlândia, nas determinações de carbono 14 e na análise
dendrocronológica do carvalho da Irlanda e do pinheiro de
cones escamosos da Califórnia. Qualquer que seja a data
precisa, não há dúvida de que a colossal escala da erupção
que devastou a povoação em Thera destruiu um imenso
espaço no leste do Mediterrâneo e causou tsunamis que
destroçaram a costa norte de Creta e submergiram
embarcações por milhas ao redor.
Alexandria, o grande porto construído por Alexandre, o
Grande, em 331 a.C. na costa mediterrânea do Egito, é o
cenário da conferência que ocorreu no início do livro. Ela
ocorre na Fortaleza de Qaitbay, o castelo construído no
século XV d.C sobre as fundações do antigo farol na entrada
do porto. Muitos fragmentos de alvenaria e de esculturas
foram encontrados no solo oceânico onde o farol
desmoronou no século XIV.
Mais de 2 mil quilômetros na direção oeste fica Cartago, a
localização fictícia do Museu da Marinha. Desde 1972 o
programa "Salve Cartago" da Unesco vem fazendo com que
a cidade esteja entre as mais estudadas da Antigüidade,
apesar de ter sido arrasada pelos romanos em 146 a.C. e de
novo pelos árabes quase novecentos anos mais tarde. Hoje,
uma característica proeminente é o porto circular cercado
por terras onde as escavações revelaram planos inclinados
para mover as embarcações para dentro ou fora da água e
que outrora abrigavam uma frota de galeras de guerra.
Sólon é um personagem histórico genuíno que viveu de 640
a 560 a.C. Ele era o magistrado principal de Atenas em 594
a.C. e famoso estadista cujas reformas abriram o caminho
para o estabelecimento de uma cidade-Estado democrática
na Idade do Ouro. Posteriormente ele viajou por um longo
tempo através do Egito e Ásia Menor e foi reverenciado
como um dos "sete sábios" da Grécia. Seus únicos escritos
que sobreviveram são uns poucos fragmentos de poesia, mas
não pode haver dúvida de que, da mesma forma que
Heródoto um século mais tarde, ele tomou extensas notas de
conversas com sacerdotes, bem como de outras informações
que encontrou durante suas viagens.
O "Papiro da Atlântida" é fictício, embora as circunstâncias
da sua descoberta sejam inspiradas por uma notável série de
achados no Egito ocidental. Em 1996, no oásis de Bahariya,
um asno caiu através da areia dentro de uma necrópole
cavada na rocha que havia permanecido imperturbada
durante quinze séculos. Desde então mais de duzentas
múmias foram descobertas, muitas douradas e pintadas com
retratos de rostos e cenas religiosas. Elas são do período
greco-romano e datam de uma época posterior à conquista
de Alexandre em 332 a.C, mas em 1999 arqueólogos, ao
escavarem debaixo da cidade-oásis de El Bawiti, descobriram
a tumba de um governador de Bahariya durante a Vigésima
Sexta Dinastia (664-525 a.C.), o período das viagens de
Sólon.
As ruínas de Sais se situam debaixo da moderna aldeia de Sa
el-Hagar, no delta ocidental, perto do braço Roseta do Nilo,
a menos de trinta quilômetros do Mediterrâneo. Como em
Cartago e Alexandria, há poucos vestígios da metrópole à
margem do rio, a alvenaria foi saqueada e os alicerces estão
debaixo de metros de lama. No entanto, Sais era
provavelmente um centro religioso importante no início da
história egípcia, mesmo antes do Período Dinástico Inicial
(aproximadamente 3100 a.C.). No tempo da visita de Sólon
ela era a capital real da Vigésima Sexta Dinastia, um lugar
que os gregos teriam conhecido bem por causa de seu
entreposto perto de Náucratis.
Peregrinos vinham de longe e se dirigiam, para cumprir suas
reverências, ao templo da deusa Neith, que era um vasto
complexo descrito por Heródoto quando o visitou no século
seguinte. Ele se encontrou com o "escriba", como chamava
o sumo sacerdote, que "mantinha o registro dos tesouros
sagrados de Atenas (Neith) na cidade de Sais", um homem
que infelizmente "não me parecia ser sincero" (História II,
28). O templo tinha obeliscos muito altos, estátuas colossais
e esfinges com cabeças humanas (II, 169-171, 175). Hoje é
necessário um esforço de imaginação para visualizar tudo
isso no local, mas uma parede baixa de pedra calcária sugere
um recinto tão amplo quanto o do famoso complexo de
Karnak no Alto Egito.
As escavações que desvendaram os primeiros hieróglifos e a
lista do sacerdote são fictícias. No entanto, por um acaso
extraordinário, o nome do homem que pode ter sido o
próprio sacerdote encontrado por Sólon é conhecido:
Amenhotep, cuja estátua impressionante em grauvaca —
uma rocha constituída por fragmentos de quartzo, feldspato,
mica e pedaços de xistos argilosos ligados por um cimento
silicoso, provavelmente de Sais, e que foi possivelmente
oferecida ao templo na Vigésima Sexta Dinastia — está no
Museu Britânico (na EA41517). Ele segura um naas, um
relicário que contém uma imagem religiosa da deusa Neith.
Os marinheiros da Idade do Bronze que tentaram alcançar o
Nilo, vindos de Creta, podem ter partido do porto de
Kommos, recém-escavado, na costa sul, dentro do alcance
da visão do Palácio de Phaistos. De sua magnífica posição o
palácio domina a planície de Mesara, e é contíguo ao monte
Ida, que possui cavernas sagradas e santuários situados sobre
picos. Três quilômetros adiante encontra-se o complexo
conhecido como Hagia Triadha, tradicionalmente
interpretado como um vila real, mas que talvez seja uma
espécie de seminário para os sacerdotes minoanos. Foi ali,
em 1908, que o famoso disco de Phaistos foi descoberto. Os
241 símbolos e as 61 "palavras" resistiram até então a uma
tradução, mas podem se relacionar com uma língua anterior
falada na Anatólia ocidental e, dessa maneira, com o indo-
europeu falado no início do Neolítico. A forma do termo
usado no livro como "símbolo da Atlântida" existe
realmente, mas apenas nesse disco: vários deles são
claramente visíveis, um próximo ao centro de um dos lados.
Não foi encontrado um segundo disco. No entanto,
visitantes podem examinar com atenção e em detalhe o
disco que existe no Museu Arqueológico em Heraklion,
onde é exibido juntamente com outros tesouros do mundo
minoano.
Hagia Triadha, em Creta, também revelou um sarcófago
pintado representando um touro amarrado em um altar, com
o pescoço sangrando em um vaso de libação. Cerca de
cinqüenta quilômetros ao norte de Arkhanes, arqueólogos
encontraram evidências de um tipo diferente de oferenda:
um jovem amarrado em uma plataforma baixa dentro de um
templo no cume de um morro, seu esqueleto escorado por
uma faca de bronze gravada com uma besta misteriosa
parecida com um javali. Momentos depois de sua morte, o
templo foi destruído em um terremoto e preservou a única
evidência já encontrada de sacrifício humano na Idade do
Bronze no Egeu.
Arkhanes fica debaixo do monte Juktas, o pico sagrado que
contempla do alto o vale que leva a Cnossos. Entre os
muitos achados extraordinários em Cnossos, existem
milhares de tabuletas de barro queimado, a maioria
impressos com símbolos batizados linear B, mas algumas
centenas com linear A. O linear B foi brilhantemente
decifrado como uma forma primitiva de grego, a língua
falada pelos micênios que chegaram a Creta no século XV
a.C. Eles adotaram a escrita mas rejeitaram a língua; linear A
é similar, também é silábica com um certo número de
símbolos em comum, mas data de antes da chegada dos
micênios e permanece substancialmente não traduzida.
Dois outros locais mencionados na Idade do Bronze são
Atenas e Tróia. Na Acrópole, um dos poucos sobreviventes
da pré-história é um túnel cortado na rocha que conduz a
uma fonte subterrânea; foi este fato que inspirou a idéia de
que pode ainda haver câmaras ocultas do período clássico.
Em Tróia, a pesquisa paleogeográfica localizou com grande
precisão a linha das praias antigas e pode ainda algum dia vir
a revelar evidências de um local da Idade do Bronze.
O mar Negro está realmente morto abaixo de duzentos
metros, o resultado de um imenso acúmulo de gás sulfídrico
provocado pelo processo bioquímico descrito neste livro.
Em seus recessos profundos existem depósitos de salmoura
que se formaram quando o mar ficou isolado do
Mediterrâneo e começou a evaporar, provocando a
precipitação do sal.
Em direção ao sul o mar está sobre uma das áreas geológicas
mais ativas do mundo, uma região que chamou a atenção do
mundo, em 1999, quando um terremoto de magnitude 7,4
devastou o noroeste da Turquia. A Fenda Norte da Anatólia,
entre as placas da África e da Eurásia, se estende para o leste
até o monte Ararat, ele mesmo um vulcão extinto de dois
picos, e podia ser associada com características imaginárias
neste livro, incluindo a ilha vulcânica, a fenda tectônica e os
respiradouros hidrotérmicos.
Vários naufrágios de navios mercantes foram localizados nas
águas que beiravam as costas do mar Negro, incluindo um
detectado por um submersível da Bulgária em 2002. Em
2000, a equipe que localizou a antiga linha da costa perto de
Sinope descobriu um naufrágio do final da Antigüidade a
320 metros de profundidade; o seu casco, magnificamente
preservado, era uma indicação das maravilhas arqueológicas
que podiam ser encontradas nas profundezas anóxicas do
oceano.
Com exceção do imaginário EH-4, a "lama mágica", e alguns
aspectos da aplicação do laser, a maior parte da tecnologia
apresentada neste livro está fundamentada em
desenvolvimentos em curso, inclusive os que se relacionam
com mergulho e arqueologia. O Kazbek é uma variante
fictícia da classe Akula-l, um submarino de ataque SSN
soviético, e, portanto, é um acréscimo imaginário às seis
embarcações dessa classe conhecida por ter sido posta em
uso entre 1985 e 1990.
A tradução das citações de Platão no capítulo 3 foi feita a
partir da tradução de Benjamin Jowett (1817-93) dos
Diálogos de Platão. As citações da Bíblia no capítulo 3 são do
Êxodo 10:21 e no capítulo 31, do Êxodo 20: 16-18, Êxodo
37:1-5 e Gênese 9: 17-19, e foram traduzidas a partir da
versão para o inglês do Rei Jaime.

Glossário

ADSA: designado como Anthropod Autônomo para Mar
Profundo é um traje que funciona como um submersível.
Bucranium: ornamento esculpido que representa uma
cabeça de touro adornada com grinaldas.
CAN: Computer-Aided Navigation (navegação ajudada por
computador).
Caractacus Pott: personagem que é um explorador que vive
sonhando com invenções impossíveis.
Cazaque: originário da República do Cazaquistão, região
centro-oeste da Ásia.
CCTV: Closed Circuit Television (televisão de circuito
fechado). Ciclo metônico: ciclo de dezenove anos da
cronologia grega. Dromo: cerca de cinqüenta milhas
náuticas. DSRV: veículo de submersão para resgate em águas
profundas.
E-bomb: bomba eletromagnética que coloca fora de uso
todos os equipamentos elétricos.
Einkorn: uma espécie de trigo selvagem.
Elgin Marbles: célebre coleção de antigas esculturas gregas,
existentes no Museu Britânico e trazidas para a Inglaterra
por causa da ação do sétimo conde de Elgin.
Estige: na mitologia grega, nome de um dos rios dos
infernos. Às suas margens se agrupavam as almas dos que
haviam morrido sem receber honras fúnebres.
E-suit: Environmental suit (traje ambiental). FAC: Fast
Attack Craft (barco de ataque rápido).
Glasnost: termo que designa, em russo, transparência
informativa. Criado por Gorbatchev, em 1985, para
estimular a liberdade nos meios de expressão e manifestação
política e cultural sobre temas nacionais e internacionais.
GPR: Ground Penetrating Radar (radar que penetra na terra).
GRU: Glavnoye Razvedyvatelnoye Upravleniye
(Inteligência Militar).
Headlamp: lâmpada frontal ou lanterna de cabeça usada por
profissionais (mergulhadores, alpinistas, mecânicos etc.) ou
por apreciadores de esportes que lhes exijam estar com as
mãos livres.
IMU: Universidade Marítima Internacional.
Jump-jet: aeronave que pode decolar e aterrissar
verticalmente.
Jutlândia, Batalha de: combate naval travado em 1916, entre
as frotas inglesa e alemã, durante a Primeira Guerra Mundial.
Klingons: raça humanóide conhecida por sua personalidade
guerreira. Lago Maeótico: nome antigo para o mar de Azov.
Mariana Trench: Fossa das Marianas. É a mais profunda
depressão conhecida situada no oceano Pacífico. Extensão:
2550 quilômetros. Profundidade máxima: 11.898 metros.
Mane Celeste: trata-se de um bergantim do século XIX,
encontrado à deriva perto da costa de Portugal em 1872. Sua
população havia desaparecido.
Massachusetts Institute of Technology (Instituto de
Tecnologia de Massachusetts).
Mujahedin: soldados islâmicos com fortes crenças religiosas.
Nãos: no Egito antigo era um relicário de pedra ou madeira,
no qual o espírito de uma divindade estava sempre presente.
NAVSURV: programa de navegação que mostra o
levantamento topográfico e sugere os cursos mais
apropriados à medida que o relevo do terreno se altera.
Obersalzberg: refúgio tranqüilo na montanha a duas milhas a
leste de Berchtesgaden. Era uma das principais áreas de
ocupação nazista.
OSL: luminescência estimulada oticamente.
Oxydine: zona de água profunda onde o nível de oxigênio é
extremamente reduzido.
Palmtop computer: computador portátil que se pode usar
sobre a palma da mão, sendo geralmente possível ligá-lo a
um computador maior, para troca de dados.
Perestroika: palavra russa que significa reestruturação. Usada
para designar as reformas políticas e econômicas iniciadas na
URSS a partir de 1985, quando Mikhail Gorbatchev assumiu
o poder, até a dissolução do país em 1991.
Pithoi: frascos muito grandes de argila usados para
armazenamento de grãos.
Roda Catarina: Santa Catarina de Alexandria foi condenada à
morte em uma roda de tortura. É daí que vem essa
expressão.
ROV: Remoted Operated Vehicle (veículo operado por
controle remoto).
SATNAV: navegação via satélite. SATSURV: satélite de
vigilância.
SCLS: equipamento completo de subsistência.
Sharia: sistema de leis religiosas seguidas pelos muçulmanos.
Spetsnaz: Forças Especiais Russas de Elite.
TERCOM: os mísseis guiados por TERCOM se tornam mais
precisos. O computador gera reparos da posição pela altura
do terreno usando um altímetro do radar e correlacionando
o perfil da elevação na memória do sistema de orientação do
míssil.
TL: Termoluminescência.
Trimix: gás usado para mergulho profundo.
U-boats: submarinos alemães de pequena envergadura.
Zampolit: em um navio de guerra russo, o zampolit era um
oficial incomum; ele atuava como os olhos e os ouvidos do
partido. Seu trabalho era o de assegurar a pureza política do
pensamento, da palavra e da ação de todo o pessoal do
navio.



O Último Evangelho

David Gibbins

Tradução:
Lea P. Zylberlicht
2007


... Ele faleceu em uma catástrofe que destruiu a mais bela das
regiões da Terra, um destino partilhado por todas as regiões
e seu povo, e é tão memorável que é provável que o seu
nome viva para sempre; e ele próprio escreveu uma série de
livros de valor duradouro: mas você escreve
incessantemente e ainda pode fazer muito para perpetuar
sua memória. O homem de sorte, em minha opinião, é
aquele a quem os deuses concederam o poder de fazer algo
merecedor de ser registrado ou que valha a pena ser lido, e o
mais afortunado de todos é o homem que pode fazer
ambos...

Plínio, o Moço
Carta para o historiador Tácito,
c. 100 d.C.

PRÓLOGO

24 de agosto do ano 79 d.C.

O velho avançou com dificuldade para a beira da brecha, o
aperto firme de seu ex-escravo, que havia sido libertado e
que o segurava, era tudo que o impedia de arremessar-se
adiante. Aquela era uma noite de lua cheia, uma lua
vermelha, e os redemoinhos de vapor que enchiam a cratera
pareciam brilhar, como se os fogos do vulcão estivessem
queimando através da estreita projeção do chão que dividia o
mundo dos vivos do mundo dos mortos. O velho observou
atentamente por cima da beirada, sentiu a corrente de ar
quente em seu rosto e experimentou o gosto forte de
enxofre em seus lábios. Ele sempre se sentia tentado, mas
sempre se detinha. Lembrou as palavras de Virgílio, o poeta
por cuja tumba haviam passado ao vir para este lugar. Facilis
descendus Avernus. É fácil descer para os mundos infernais.
Sair não era tão fácil.
Ele voltou-se e ergueu seu capuz para esconder o rosto.
Atrás deles vislumbrou rapidamente o cone escuro do
Vesúvio sobre a enseada, as cidades de Herculano e Pompéia
luzindo fracamente como sentinelas de cada fado. A grande
dimensão do Vesúvio era tranqüilizadora em noites como
esta, quando a terra tremia e o cheiro desagradável do
enxofre era quase opressivo, quando o chão estava coberto
com corpos de pássaros que tinham voado muito perto dos
vapores. E sempre havia os arautos da destruição, loucos e
charlatães que espreitavam nas sombras dispostos a furtar os
crédulos, aqueles que vinham a este belvedere para admirar
e contemplar durante muito tempo, mas que nunca se
aventuram além. Um deles encontrava-se ali naquele
momento, um grego com bastos cabelos rebeldes que saltara
de um altar ao lado deles, as mãos com as palmas para cima
como que em súplica, agitando os braços e espumando,
balbuciando a respeito de uma grande calamidade, que Roma
iria queimar, que do céu cairia uma chuva de sangue, que a
terra debaixo do Vesúvio seria consumida pelos fogos dentro
dele. O ex-escravo empurrou bruscamente o mendigo para
um lado, e o velho resmungou aborrecido. Este não era um
lugar onde alguém necessitava de um adivinho para
interpretar a vontade dos deuses.
Instantes depois, eles deslizaram por uma fenda na rocha
conhecida apenas pelos aleijados e pelos malditos, onde o
velho tinha sido trazido pela primeira vez quando menino,
fazia mais de oitenta anos. Ele ainda se lembrava do terror
que sentira, parado ali chorando e tremendo, a cabeça
sacudindo descontroladamente por causa da paralisia. Não
havia cura para a sua doença, mas os que o fizeram entrar ali
lhe proporcionaram consolo, lhe deram força para desafiar
aqueles que queriam que ele nunca mais fosse visto em
Roma. Mesmo agora, não tinha se libertado do medo, e
sussurrou seu nome, fortalecendo-se. Tibério Cláudio Druso
Nero Germânico. Lembre-se de quem você é. Lembre por
que você está aqui.
Eles desceram lentamente, o velho arrastando a perna
doente atrás de si, as mãos apoiadas pesadamente em seu ex-
escravo que andava na frente. Em muitas noites, o céu ficava
visível através da abertura no topo da fenda, mas nesta noite
as escadas esculpidas na rocha estavam envoltas nos
redemoinhos de vapor que pareciam tragá-las. Os cantos
escuros estavam iluminados por tochas acesas, e em outros
lugares tremulava uma luz alaranjada tremulava vinda de
fora. Eles alcançaram uma saliência no rochedo acima do
chão da cratera, e o velho esforçou-se para ver o que ele não
conseguia distinguir de cima. Vapores em redemoinho
pareciam flutuar numa camada de vazio acima do chão
rochoso, um veneno invisível que apagava as chamas e
sufocava a todos que caíam dentro deles. Em algum lugar
mais além se situava a entrada para o próprio Hades, o
Mundo Inferior, uma ferida ardente que rompia a rocha,
rodeada pelos esqueletos carbonizados daqueles que tinham
deixado seus corpos para trás no caminho para o Elísio, uma
seção do Mundo Inferior. Por um instante, ele percebeu
pequenas fendas vermelhas como olhos incandescentes na
rocha, e depois observou uma massa derretida vazar e
solidificar-se, depositando formas como membros gigantes e
torsos aprisionados em uma massa incandescente no chão da
cratera.
O velho estremeceu e pensou novamente em Virgílio. Era
como se aqueles que haviam escolhido abandonar sua vida
mortal naquele lugar estivessem se esforçando por
renovação, como gigantes e titãs e deuses, embora ainda
condenados por toda a eternidade como formas
incompletas, formas proteiformes, formas que a natureza
iniciara, mas nunca terminaria, formas como ele próprio.
A cena desapareceu dentro dos vapores como um sonho, e
eles se apressaram, o velho cambaleando e ofegando atrás do
ex-escravo. Sua visão obscureceu e ficou indistinta, como
lhe acontecia com freqüência nestes dias, e ele parou para
esfregar os olhos e desviou o olhar. Alcançaram um
passadiço, um caminho elevado envolto em fumaça amarela
que saía dos orifícios no chão e era cercado de cada lado por
poças de lama ferventes que se erguiam e sacudiam
violentamente. Disseram-lhe que estas eram as almas
atormentadas do purgatório pressionando para cima,
desesperadas para escapar e que o assobio do gás eram suas
exalações, como humores malignos que se erguiam de uma
sepultura no cemitério. O velho já vira isso antes, quando o
comandante de sua legião o levara para ver as covas onde
haviam arremessado os bretões mortos, corpos que ainda se
mexiam debaixo do solo várias semanas depois da matança.
Ele fez uma careta ao se lembrar de sua náusea, e se
apressaram, passando diante das fumarolas de gases e
vapores e para dentro da escuridão mais além.
Como que saindo do nada, algumas mãos se estenderam em
sua direção, e ele podia ter a sensação de formas espectrais
alinhadas de cada lado do passadiço, algumas se arrastando
para cima, da beirada da cratera, sobre membros
enfraquecidos. Seu ex-escravo andava na frente com os
braços estendidos, suas palmas viradas para fora e tocando as
deles, abrindo um espaço atrás para o velho poder seguir.
Escutou um canto em voz baixa, um solista e em seguida
muitas vozes respondendo, um barulho embotado como o
de folhas do final do outono levantadas por uma rajada de
vento. Eles cantavam as mesmas palavras, repetidas vezes.
Domine Ivimus. Senhor, nós viremos. Houve um tempo em
que (Cláudio teria andado no meio deles, teria sido um deles.
Mas agora eles faziam o sinal com as mãos quando as
estendiam em sua direção, os dedos cruzados, e eles
sussurravam seu nome, depois o nome daquele que sabiam
que ele havia tocado. Seu amigo Plínio também havia visto
isto, ele andara disfarçado misturado com os marinheiros na
base naval no topo da enseada, vira grupos de homens e
mulheres ouvindo com atenção nas passagens estreitas e
sombrias e nos quartos dos fundos das tavernas, ouvira falar
de um novo sacerdote, um daqueles chamados apóstolos.
Virgílio profetizara isto, Virgílio, que havia trilhado este
mesmo caminho uma centena de anos antes, que sussurrara
sua revelação também na mensagem das folhas. O
nascimento de um menino. Um mundo de paz, libertado de
um medo incessante. No entanto, um mundo no qual a
tentação espreitava, em que novamente surgiriam homens
para se colocar entre o povo e a palavra de Deus, cm que o
terror e a discórdia poderiam imperar mais uma vez.
O velho mantinha seu olhar fixo constantemente abaixado, e
prosseguia com dificuldade. Já fazia vinte e cinco anos que
ele morava em sua habitação elegante abaixo da montanha,
um historiador humilde com o trabalho de sua existência
para completar. Vinte e cinco anos desde que supostamente
morrera envenenado cm seu palácio em Roma, removido
naquela noite para nunca mais voltar. Um Imperador que
vivia não como um deus, mas como um homem. Um
imperador com um segredo, com um tesouro tão precioso
que este o manteve vivo durante todos aqueles anos,
observando, esperando. Poucas pessoas sabiam disso. Seu
amigo Plínio. Seu confiável ex-escravo Narciso, que se
encontrava com ele naquela noite. No entanto, agora, estes
o tratavam com uma estranha reverência, muito atentos à
cada palavra sua como se ele fosse um adivinho, como se ele
fosse o próprio oráculo. O velho resmungou consigo
mesmo. Naquela noite ele iria cumprir uma promessa que
fizera havia muito tempo à beira de um lago para alguém que
lhe confiara sua palavra, sua palavra escrita. Esta era a última
chance que o velho tinha para dar forma à história, para
conseguir mais do que jamais poderia como imperador, para
deixar um legado que iria, como ele sabia, sobreviver até
mesmo à própria Roma.
Repentinamente, ficou sozinho. A sua frente o passadiço
desaparecera dentro de uma cavernosa escuridão, um lugar
onde o calor que subia das profundezas encontrava a fria
exalação de dentro das cavernas, para formar uma miragem
um pouco tremeluzente. Ele procurou o dado que sempre
levava em seu bolso, girando-o várias vezes, tentando
acalmar o seu tremor. Dizia-se que a caverna tinha cem
entradas, cada uma delas com uma voz. Atrás dele havia
uma bacia rasa, e ele mergulhou seus dedos nas águas
purificadoras, molhando o rosto. À frente encontrava-se
uma baixa mesa de pedra, pequenas colunas de fumaça
marrom erguiam-se de uma massa em combustão espalhada
pela superfície. Ansiosamente, cambaleou até ela, agarrando
as beiradas lisas da mesa, os olhos bem fechados, aspirando
profundamente a fumaça, tossindo e fazendo força para
vomitar, mantendo-se ali. Plínio chamava esta fumaça de
opium bactrium, o extrato de papoula trazido do distante
reino da Báctria situado no leste, nos vales montanhosos
açoitados pelos ventos, conquistado por Alexandre, o
Grande. Mas ali a fumaça era chamada de presente de
Morfeu, o deus dos sonhos. Ele a aspirou novamente,
sentindo a investida violenta que atingia seus pulmões,
trazendo sentimentos que quase haviam desaparecido,
amainando a dor. Ele precisava mais disto agora, necessitava
quase todas as noites. Inclinou-se para trás, e sentiu como se
estivesse flutuando, o rosto erguido e os braços estendidos.
Por um instante fugaz, voltou para um outro lugar onde ele
buscara sarar, muito tempo atrás, junto ao lago da Galiléia,
rindo e bebendo com seus amigos Herodes e Cipros e sua
amada Calpúrnia, com o Nazareno e sua mulher, onde ele
havia sido locado por alguém que conhecia o seu destino,
que tinha previsto este exato dia.
O velho abriu os olhos. Alguma coisa estava vindo da
caverna, uma forma retorcida e ondulante que parecia se
pressionar contra a miragem como uma fênix se erguendo.
Ela abriu caminho através da miragem, e ele viu uma
enorme serpente, em pé, ereta, tão alta quanto ele, sua
cabeça achatada abaixou e sua língua se agitava entrando e
saindo, se movendo de um lado para outro. Plínio lhe
dissera que estas eram alucinações provocadas por morfina,
mas, quando a serpente se abaixou ao solo e deslizou ao
redor de suas pernas, o velho experimentou o macio sedoso
de sua pele e sentiu o seu cheiro bolorento, um odor acre.
Depois a serpente se deslocou, deslizando para dentro de
uma fenda na lateral da caverna, e apareceu um outro
cheiro, sobrepujando o do enxofre e da morfina e o cheiro
da serpente, um odor como o de um vento frio soprando
através de uma sepultura fétida, um cheiro de decomposição
antiga. Alguma coisa se movimentou repentinamente, uma
forma mal e mal visível na escuridão. Ela estava ali.
- Cláudio.
Ele ouviu um gemido baixo, depois um som como um riso
zombeteiro, em seguida um suspiro que ecoou através de
centenas de passadiços diferentes na rocha, antes de
desaparecer. Cláudio observou atentamente a escuridão,
esperando, girando a cabeça. Dizia-se que ela havia vivido
por setecentos períodos de vida dos homens, que Apolo lhe
concedera tantos anos quantos os grãos de areia que ela
podia segurar em suas mãos, mas que o deus lhe recusara a
eterna juventude depois que ela recusara seus avanços. Tudo
o que Apolo lhe permitira manter era a voz de uma mulher
jovem, para lembrá-la da imortalidade que ela rejeitara e para
que se atormentasse. E agora ela era a última delas, a última
das profetisas de Gaia, a deusa da terra, a última dentre treze.
- S-Sibila. - Cláudio quebrou o silêncio, a voz trêmula e
áspera por causa do enxofre, olhando com cuidado dentro da
escuridão. - Eu fiz como você me instruiu, fiz o que você
me ordenou fazer para as vestais, em Roma. E agora estive
com a décima terceira, com a deusa Andraste, fui até sua
sepultura, levei-o para ela. A profecia foi cumprida.
Ele deixou cair uma bolsa de moedas que carregava, e elas
tiniram, moedas pesadas de ouro e prata, o último lote de
moedas que ele havia guardado para esta noite, moedas que
tinham seu retrato. Um raio de luz iluminou a frente da
mesa, revelando a superfície gasta da pedra do passadiço
debaixo dos redemoinhos de vapor. No chão jaziam folhas,
folhas de carvalho arranjadas como palavras, a letra grega
escrita com tinta em cada folha era muito pouco visível.
Cláudio balançou para frente, caindo sobre as mãos e os
joelhos e olhando cuidadosamente para as folhas,
desesperado para ler a mensagem. Repentinamente, uma
rajada de vento levou-as embora. Ele gritou, depois
lentamente curvou a cabeça, suas palavras laceradas pelo
desespero. - Você levou meu ancestral Enéias para ver seu
pai Anquises. Tudo que pedi foi ver meu pai Druso. Meu
caro irmão Germânico. Meu filho Britannicus. Queria olhá-
los por um instante no Elísio, antes que Caronte me leve
para onde deseja.
Houve outro gemido, mais fraco desta vez, em seguida um
som agudo que parecia vir de toda parte ao mesmo tempo,
como se todas as centenas de bocas da caverna estivessem se
torcendo na parte interna de seu corpo.

Dia de fúria e de terror se manifestando!
Céu e Terra se consumiram em cinzas
As palavras de Cláudio e a verdade de Sibila se cumpriram!

Cláudio balançou sobre os pés, seu corpo tremendo e se
contraindo convulsionado pelo medo. Olhou novamente
para a poça de luz. Havia agora um montão de areia onde
antes tinham estado as folhas, os grãos escorrendo pelos
lados. Ele observou quando uma pequena quantidade desceu
de algum lugar muito acima, uma luz fraca caiu como uma
cortina translúcida. Depois tudo se aquietou. O velho olhou
ao seu redor e percebeu que a serpente tinha ido embora,
havia abandonado sua pele e a deixara vazia diante dele,
deslizara para dentro do veneno acima do chão da cratera.
Ele relembrou as palavras de Virgílio novamente, a vinda da
Idade do Ouro. E as serpentes também morrerão.
Cláudio sentiu a cabeça clarear e viu a miragem na frente da
caverna desaparecer. Subitamente, sentiu-se desesperado
para ir embora, deixar de lado o desejo ardente que o
prendera a este lugar e à Sibila durante tanto tempo, de
voltar para sua vila debaixo do Vesúvio para terminar o
trabalho que ele e Plínio haviam planejado para aquela noite,
para cumprir a promessa que tinha feito à beira do lago
muito tempo antes. Ele se voltou para ir embora, então
sentiu algo na parte de trás de seu pescoço, um toque de frio
que fez os seus cabelos se arrepiarem. Pensou ouvir seu
nome de novo, sussurrado suavemente, mas desta vez elas
eram as palavras de uma mulher velha, inacreditavelmente
velha, e foram seguidas por um sussurrar como o guizo de
uma cascavel morta. Ele não ousou virar-se para trás.
Começou a se apressar para diante, claudicando e
escorregando na rocha, olhando em volta e procurando
Narciso freneticamente. Acima da borda da cratera ele podia
distinguir a forma sombria da montanha, seu cume envolto
em raios bruxuleantes como uma coroa ardente de espinhos.
Acima, as nuvens avançavam rápidas, mudando de forma e
escurecendo, com um intenso brilho laranja e vermelho
como se estivessem em fogo. Experimentou um medo
terrível, em seguida uma súbita lucidez, como se todas as
suas memórias e sonhos tivessem sido sugados pelo
redemoinho que via adiante. Era como se a própria história
se acelerasse, história que ele tinha mantido oculta desde
que desaparecera de Roma, por metade de uma existência,
história que havia esperado por ele como uma mola que não
pudesse mais ser contida sem se distender.
Ele continuou cambaleando. Atrás de si sentia uma presença
maligna empurrando-o para a frente através de uma neblina
sulfurosa em direção ao solo da cratera. O velho agarrou o
dado novamente, tirou-o do bolso e deixou-o cair, ouviu-o
pular fazendo barulho sobre a rocha e parar. Olhou
desesperadamente, mas não viu nada. De cada lado, formas
espectrais emergiam da cova, não mais suplicantes, mas
juntando-se a ele como um exército silencioso, envoltas em
partículas quentes de cinza que começaram a cair do céu
como neve. O velho sentiu a boca ficar seca, uma sede
desesperante. No cume da montanha ele viu um ardente
anel de fogo que descia pelas colinas em direção às cidades e
grandes superfícies em chamas em sua esteira. Depois a cena
foi eliminada pela escuridão, uma fumaceira em redemoinho
que descia para dentro da cratera e obscurecia tudo menos o
vazio que diminuía acima. Ouviu gritos, um rugido
amortecido, viu corpos se incendiarem como tochas na
escuridão, um após outro. Ele estava se aproximando. Agora
ele sabia, com certeza horrorizada. A Sibila havia mantido
sua promessa. Ele iria seguir as pegadas de Enéias. Mas desta
vez não haveria retorno.

CAPÍTULO I

Jack Howard acomodou-se no chão do barco inflável, as
costas apoiadas em um contêiner de metal com as pernas
contra o motor externo do barco. Fazia calor, quase
demasiado calor para se mexer, e o suor começou a escorrer
pelo seu rosto. O sol tinha queimado através do mormaço
matinal e o oprimia implacavelmente, refletindo de maneira
ofuscante a face do despenhadeiro diante dele, a pedra
calcária manchada e gasta como as tumbas e os templos no
promontório do outro lado. John sentia como se estivesse
em uma pintura de Seurat, como se o ar tivesse se
fragmentado em uma miríade de pequenos elementos que
imobilizavam qualquer pensamento e ação, que o prendiam
naquele momento. Fechou os olhos e respirou
profundamente, deixou-se penetrar pelo silêncio absoluto, o
odor do macacão de mergulho, do motor externo, o gosto de
sal. Isto era tudo o que ele amava, havia penetrado em sua
essência. O gosto era bom.
Jack abriu os olhos e olhou atentamente por sobre a borda
do barco, verificando a bóia laranja que havia soltado alguns
minutos antes. O mar estava liso e espelhado, com apenas
uma suave onda se quebrando contra a face do rochedo. Ele
estendeu o braço e colocou a mão sobre a superfície,
deixando-a flutuar por um momento até a onda envolvê-la.
A água estava límpida, tão clara como a de uma piscina, e ele
podia ver, bem embaixo, a linha da âncora nas profundezas,
até a luz fraca das bolhas de escape que subia dos
mergulhadores. Era difícil acreditar que este tinha sido um
lugar de fúria inimaginável, da natureza na sua forma mais
cruel, de uma tragédia humana inenarrável. O naufrágio de
embarcação mais famoso da história. Jack mal ousava pensar
nisso. Durante trinta anos ele desejara voltar para este lugar,
uma ânsia que o havia importunado e se tornara uma
obsessão corrosiva, desde sua primeira hesitação, desde que
começara a reunir as peças pela primeira vez. Era uma
intuição que raramente o desapontara, experimentada e
testada durante anos de exploração e descoberta ao redor do
mundo. Uma intuição baseada em sólida ciência, em uma
acumulação de fatos que havia começado a apontar de
maneira invariável em uma direção.
Ele havia sentado ali, em Capo Murro di Porco no coração
do Mediterrâneo, quando pensou pela primeira vez em
entrar na Universidade Marítima Internacional. Vinte anos
atrás ele ganhava muito pouco dinheiro, como guia de um
grupo de estudantes, apaixonados por mergulho e
arqueologia, com equipamento grosseiro e construído
depressa e com pouco dinheiro naquele mesmo lugar. Agora
ele tinha uma verba de muitos milhões, um campus
espaçoso em sua ancestral propriedade rural no sul da
Inglaterra, museus ao redor do mundo, e usava os mais
modernos navios de pesquisa, com uma equipe
extraordinária na IMU (Universidade Marítima
Internacional) que passara a usar sua logística. Mas, de certa
maneira, pouco havia mudado. Nenhuma quantia de
dinheiro podia conseguir os indícios que levavam às maiores
descobertas, aos extraordinários tesouros que faziam tudo
valer a pena. Vinte anos atrás, eles tinham estado seguindo
um relato provocativo deixado pelos marinheiros do capitão
Cousteau, exploradores intrépidos no início da arqueologia
de naufrágios, e de novo ele estava no mesmo lugar,
flutuando acima da mesma posição, com o mesmo velho
diário danificado pelo uso em suas mãos. Os elementos-
chave ainda eram os mesmos, as intuições, a sensação nas
entranhas, a excitação da descoberta, aquele momento em
que subitamente todos os elementos se ajustam e a
adrenalina se acelera como nunca.
Jack se deslocou, empurrando seu macacão de mergulho
mais para baixo ao redor de sua cintura, e olhou o relógio.
Estava ansioso para se molhar. Deu uma olhada para o mar.
Houve uma pequena agitação quando os mergulhadores
puxaram a bóia submersa, e ele podia vê-la produzir refração
cinco metros abaixo, estava bastante profunda para evitar as
hélices dos barcos que passavam, mas numa profundidade
suficientemente rasa para um mergulhador independente
recuperar uma linha pesada que pendia dela como um ponto
de ancoragem. Jack já havia ousado olhar para diante, tinha
começado a observar a posição como um comandante de
campo planejando um assalto. O Seaquest podia ancorar em
uma enseada perto do promontório do lado oeste. Nesse
promontório, bom para um acampamento, a costa rochosa
descia em uma série de saliências boas para pôr os pés. Ele
rememorou detalhadamente todos os elementos de uma
escavação de sucesso debaixo da água, sabendo que cada
posição produzia um novo conjunto de desafios. Quaisquer
achados teriam que ir para o museu arqueológico em
Siracusa, mas tinha a certeza de que as autoridades sicilianas
fariam uma bela exposição com as peças. A IMU
estabeleceria uma ligação permanente com o seu próprio
museu em Cartago, talvez até mesmo oferecesse um pacote
de viagens aéreas para turistas. Dificilmente eles poderiam
errar.
Jack perscrutou o mar, olhou novamente para o relógio,
depois anotou a hora no diário de bordo. Os dois
mergulhadores estavam na parada de descompressão.
Faltavam vinte minutos para ir. Ele se recostou, relaxou e
concentrou-se na perfeita tranqüilidade do cenário por um
momento mais. Apenas três semanas antes ele estivera no
limiar de uma caverna submersa na península de Yucatán,
exausto, mas alegre no final de outra extraordinária trilha de
descoberta. Haviam tido perdas, perdas penosas, e Jack tinha
passado a maior parte da viagem de volta para casa pensando
sobre aqueles que tinham pago o preço máximo pela
descoberta. Seu amigo de infância Peter Howe desaparecera
no mar Negro. E naquelas circunstâncias também perderam
o padre O'Connor, um aliado por um período de tempo
muito curto, cuja morte pavorosa o fez pensar na realidade
daquilo contra o qual se posicionavam publicamente.
Sempre era o risco maior que proporcionava consolo, as
inúmeras vidas que poderiam ter sido perdidas se eles não
perseguissem sua meta sem descanso. Jack tinha se
acostumado com o fato de que os maiores prêmios
arqueológicos custavam um preço, dádivas do passado que
desencadeavam forças no presente que poucas pessoas
poderiam imaginar que existissem. Mas aqui ele se sentia
seguro, aqui era diferente. Aqui se tratava de pura e simples
arqueologia, uma revelação que apenas podia emocionar e
encantar quem viesse a conhecê-la.
Ele olhou para a transparente quietude do mar, viu a face
submersa do despenhadeiro desaparecer dentro do azul
tremeluzente. Sua mente estava acelerada, seu coração
batendo rápido com a excitação. Será que é este? Será que
este é o naufrágio mais famoso da antiguidade? O naufrágio
do navio de são Paulo?
- Você está aí?
Jack ergueu seus pés e gentilmente cutucou a outra figura no
barco. Ela cambaleou, depois resmungou. Costas Kazantzakis
era cerca de trinta centímetros mais baixo que Jack, mas
tinha a constituição física de um boi, uma herança de
gerações de marinheiros gregos e de pescadores de esponja.
Como Jack, estava despido até a cintura, e seu peito em
forma de barril estava brilhando de suor. Ele parecia ter se
tornado uma parte do barco, as pernas estendidas sobre o
contêiner na frente de Jack e a cabeça aninhada numa
confusão de toalhas na proa. Sua boca estava ligeiramente
aberta e ele usava um par de óculos de sol curvos e
fluorescentes, um hilário acessório da moda numa figura tão
desleixada. Uma mão estava pendente na água, segurando as
mangueiras que iam até os reguladores na parada de
descompressão, e a outra recobria a válvula do cilindro de
oxigênio que estava deitado no centro do barco. Jack sorriu
afetuosamente para seu amigo. Costas estava sempre
presente para dar uma mão, mesmo quando ele não estava
trabalhando para a humanidade. Jack lhe deu um outro
chute.
- Temos quinze minutos. Posso vê-los na parada de
segurança.
Costas resmungou novamente, e Jack lhe passou uma garrafa
de água. - Beba tudo que puder. Não queremos que você
tenha embolia gasosa.
- Relaxa e goza, companheiro. - Costas aprendera uma série
de palavras de efeito comicamente mal empregadas nos anos
em que ficou baseado no quartel-general da IMU na
Inglaterra, mas o modo de falar ainda era tipicamente nova-
iorquino. Ele estendeu a mão e pegou a garrafa de água, e
começou a beber metade da garrafa ruidosamente.
- Belas viseiras, a propósito - disse Jack.
- Foi Jeremy quem me deu - ofegou Costas. - Um presente
de despedida quando voltamos de Yucatán. Fiquei deveras
emocionado.
- Você não está falando sério.
- Também não sei se ele estava. De qualquer maneira, os
óculos funcionam. - Costas os puxou para baixo novamente,
devolveu a garrafa e depois caiu para trás. - Está se
lembrando comovido do seu passado?
- Só dos bons momentos.
- Alguns engenheiros decentes? Quero dizer na sua equipe
de então?
- Estamos falando da Universidade de Cambridge, lembre-se.
Um cara carregava um quadro-negro com ele em todo lugar
que ia, e explicava pacientemente o motor rotativo Wankel
para qualquer siciliano que passasse. Era um verdadeiro
excêntrico. Mas isto foi antes de você aparecer.
- Com uma boa dose do velho know-how americano. Pelo
menos no MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts)
eles nos ensinavam a respeito do mundo real. - Costas
inclinou-se de novo e tomou outro grande gole de água. -
De qualquer forma, este seu naufrágio... Aquele que você
desenterrou aqui vinte anos atrás. Encontrou algo de bom?
- Um típico navio mercante romano - replicou Jack. - Cerca
de duzentas ânforas cilíndricas de cerâmica, cheias de azeite
de oliva e de um molho fermentado de anchovas carregado
no deserto africano, que deve se encontrar ao sul de onde
estamos. Uma seleção fascinante de cerâmicas no navio a
remo, que fomos capazes de datar por volta de 200 d.C. E
fizemos um achado incrível.
Houve um silêncio quebrado por um ronco muito alto. Jack
chutou de novo, e Costas estirou-se para parar de rolar em
direção ao mar. Ele empurrou os óculos para a testa e olhou
lacrimejando para Jack. - Hein?
- Sei que você precisa do seu sono de beleza. Mas está quase
na hora. Costas resmungou novamente, depois se ergueu
com dificuldade sobre um cotovelo e esfregou a mão pela
barba. - Não acho que a beleza seja uma opção. - Ele se
ergueu, depois tirou os óculos e esfregou os olhos. Jack
olhou preocupado para seu amigo.
- Você parece esgotado. Precisa de algum tempo para
descansar. Você tem trabalhado em tempo integral desde
que voltamos de Yucatán, e isso faz quase um mês.
- Você deveria parar de me comprar brinquedos.
- O que eu comprei para você - Jack repreendeu-o
gentilmente -, foi uma autorização do Conselho de Diretores
para um aumento no pessoal de engenharia. Contrate mais
funcionários. Delegue.
- Olha quem fala - resmungou Costas. - Nomeie um projeto
arqueológico dirigido pela IMU durante a última década em
que você não esteve a bordo.
- Eu estou falando sério.
- Sim, sim. - Costas se estirou, e deu um sorriso cansado. -
O.k., uma semana na piscina do meu tio na Grécia seria
bem-vinda. A propósito, eu estava sonhando? Você
mencionou um achado fantástico?
- Enterrado num vale pequeno, formado por erosão, bem
abaixo de onde estamos agora, onde Ben e Andy devem ter
ancorado o shot-line. Os restos de um engradado de
madeira, cheio de caixas de estanho seladas. Dentro das
caixas encontramos mais de cem pequenos frascos de
madeira, repletos com ungüentos e pós, inclusive canela,
cominho e baunilha. Isto foi bastante surpreendente, mas
depois descobrimos uma grande placa de material resinoso
preto, com cerca de dois quilos. De início, pensamos que
elas fossem provisões do navio, resina de reserva para
madeiras impermeáveis. Mas a análise de laboratório
mostrou um resultado assombroso.
- Continue.
- O que os antigos chamam de lacrymae papaveris, lágrimas
de papoula, papaver somniferum. O material leitoso e
pegajoso que sai do conjunto de sépalas da papoula negra. O
que chamamos ópio.
- Não acredito.
- Plínio, o Velho, escreve sobre isso, em sua História
natural.
- O cara que morreu na erupção do Vesúvio?
- Ele mesmo. Quando Plínio não estava escrevendo era o
encarregado da esquadra romana em Misenum, a grande
base naval na baía de Nápoles. Ele conhecia tudo sobre os
produtos do Leste por intermédio de seus marinheiros e
pelos mercadores egípcios e sírios que falavam disso na base.
Eles sabiam que o melhor ópio vinha da distante terra da
Báctria, situada nas altas montanhas além da fronteira
oriental do império, além da Pérsia. Onde atualmente é o
Afeganistão.
- Você está me gozando. - Costas estava completamente
alerta agora, e parecia incrédulo. - Ópio. Do Afeganistão. Eu
o escutei direito? Estamos falando do primeiro século d.C.,
não do século XXI, está correto?
- Você acertou.
- Um antigo tráfico de drogas?
Jack riu. - O ópio não era ilegal naquele tempo. Algumas
antigas autoridades o condenavam por tornar os usuários
cegos, mas eles ainda não o tinham refinado para fazer
heroína. Provavelmente ele era misturado com álcool para
fazer uma bebida semelhante ao láudano, a droga da moda
na Europa dos séculos XVIII e XIX. A semente também era
processada em tabletes. Plínio nos conta que a droga podia
induzir o sono, curar dores de cabeça, de modo que eles
conheciam tudo sobre as propriedades analgésicas da
morfina. Ela também era usada para eutanásia. Plínio nos
conta o que pode ser o primeiro relato de uma deliberada
overdose de drogas Classe A, um cara chamado Públio
Licínio Cecina que estava insuportavelmente doente e
morreu de um envenenamento com ópio.
- Então, o que você descobriu foi realmente um contêiner
de medicamentos - disse Costas.
- Foi o que pensamos na época. Mas o achado muito
estranho que encontramos no contêiner foi uma pequena
estátua de Apolo. Quando se encontra equipamento médico
ele está mais comumente acompanhado por uma estátua de
Asclepius, o deus grego da cura. Alguns anos depois, eu
visitei a gruta da Sibila em Cumas, na borda da antiga zona
vulcânica, algumas milhas ao norte de Misenum, ao alcance
da vista do Vesúvio. Apolo era o deus dos oráculos. O
enxofre e as ervas eram usados para precaver-se contra os
maus espíritos e talvez o ópio fosse acrescentado à mistura.
Começo a me perguntar se todos esses ritos místicos eram
auxiliados quimicamente.
- As drogas podiam ser fumadas - murmurou Costas. -
Queimadas como incenso. A fumaça teria um efeito mais
rápido do que se ela fosse bebida.
- As pessoas iam àqueles lugares buscando curar-se - disse
Jack. - Tudo o que ouvimos a respeito é a mensagem dos
oráculos, versos obscuros escritos em folhas ou emitidos
como pronunciamentos proféticos, tudo barulho e agitação
que significavam Deus sabe o quê. Mas talvez houvesse algo
além disso. Talvez algumas pessoas realmente encontrassem
algum tipo de cura, um paliativo.
- E um paliativo que viciava terrivelmente. Ele teria mantido
a Sibila ocupada. As oferendas em dinheiro de clientes
agradecidos teriam mantido o estoque girando.
- Então, eu comecei a pensar que o nosso pequeno navio
não estava levando um farmacêutico ou médico, mas sim
um revendedor levando o seu precioso estoque de ópio para
um dos oráculos na Itália, talvez ele até fosse atrás da própria
Sibila em Cumas.
- Um traficante de drogas romano. - Costas esfregou a barba.
- O chefão de todos os chefões. A máfia de Nápoles adoraria
saber disso.
- Talvez isso lhe ensine a respeitar um pouco a arqueologia
disse Jack.
- O ópio. Obtido onde?
- Isso é o que me preocupa. - Jack desenrolou um mapa do
Mediterrâneo, laminado e em pequena escala que trouxera
do Almirantado, sobre o equipamento no chão do barco,
prendendo os cantos debaixo de pesos de mergulho que
estavam soltos. Ele apontou o dedo para o centro do mapa. -
Nós estamos aqui. A ilha da Sicília. Bem no meio do
Mediterrâneo, o apogeu do antigo comércio. Concorda?
- Continue.
O nosso pequeno navio mercante romano naufragou contra
este penhasco com sua carga de azeite de oliva e de molho
de anchovas do norte da África. Ele faz esta viagem para
Roma três, talvez quatro vezes por ano, durante a estação de
navegação, no verão. Indo e voltando. Quase sempre com
terra à vista, Tunísia, Malta, Sicília, Itália.
- Uma distância não muito grande para navegar.
- Concordo. - Jack apontou o dedo para um canto distante
no mapa. - E aqui está o Egito, o porto de Alexandria. Cento
e cinqüenta milhas distante atravessando mar aberto. Tudo
indica que o contêiner de drogas vinha daqui. A madeira é
acácia egípcia. Alguns dos frascos eram marcados com letras
coptas. E quase certamente o ópio era embarcado para o
Mediterrâneo através dos portos do Egito no mar Vermelho,
um comércio de condimentos orientais exóticos e de drogas
que alcançou o auge no primeiro século d.C.
- Na época de São Paulo - murmurou Costas. - O motivo
pelo qual estamos aqui.
- Correto. - Jack seguiu com o dedo ao longo do contorno da
costa do norte da África, entre o Egito e a Tunísia. - Agora é
possível, apenas possível, que o contêiner de ópio alcançasse
Cartago ou algum outro porto da África vindo diretamente
do Egito, e depois era embarcado no nosso pequeno navio
mercante.
Costas sacudiu a cabeça. - Eu me lembro do Mediterranean
Pilot do período em que trabalhava na Marinha. Com
prevalência de ventos na direção do litoral. Aquela costa
deserta sempre foi uma armadilha mortal para marinheiros,
ela era evitada a qualquer custo.
- Exatamente. Os navios que saíam de Alexandria para Roma
eram geralmente grandes transportadores de cereais, e
navegavam para o norte, para a Turquia ou Creta, e em
seguida iam para o ocidente atravessando o mar Jônico para
a Sicília e o estreito de Messina. A hipótese mais provável
para um carregamento de Alexandria naufragar neste ponto
onde estamos agora seria em um desses navios, impelidos
pelo vento sudoeste que sopra do mar Jônico em direção ao
leste da Sicília e o estreito de Messina.
Costas parecia perplexo, depois seus olhos brilharam
subitamente. - Entendi o que você está dizendo! Estamos
procurando dois naufrágios justapostos!
- Não seria a primeira vez. Eu mergulhei em cemitérios de
navios com dúzias de naufrágios misturados de maneira
desordenada, despedaçados contra o mesmo recife ou
promontório. Logo que esta idéia surgiu de repente, eu
comecei a ver outros indícios. Dê uma olhada nisto. - Jack
pegou um engradado atrás dele e tirou um objeto pesado
enrolado numa toalha. Ele o entregou para Costas, que se
sentou no pontão e o colocou sobre o colo, depois
cuidadosamente começou a levantar as dobras da toalha. -
Vou adivinhar. - Ele parou e deu uma olhada esperançosa
para Jack. - Um disco de ouro coberto com símbolos
antigos, que vai nos conduzir para uma outra cidade perdida
antiga e fabulosa?
Jack sorriu amplamente. - Não exatamente, mas é
igualmente precioso à sua própria maneira.
Costas levantou a última dobra e ergueu o objeto, que tinha
cerca de vinte e cinco centímetros de altura, forma de um
cone truncado e pesava bastante em suas mãos. A superfície
estava mosqueada de branco com remendos metálicos de
brilho embotado e no topo havia uma pequena extensão
com um buraco, como um laço amarrado. Ele olhou para
Jack. - Uma sonda sonora?
- Você acertou. Verifique a base.
Costas virou cuidadosamente a sonda de cabeça para baixo.
Na base havia uma depressão de cerca de dois centímetros e
meio, como se a sonda tivesse sido parcialmente escavada
em forma côncava como um sino, e abaixo daquela se
encontrava mais uma depressão com uma forma diferente.
Costas ergueu os olhos para Jack. - Uma cruz?
- Não fique demasiado excitado. Esta depressão estava
preenchida com piche ou resina, e era usada para pegar uma
mostra do sedimento do solo oceânico. Se estiver seguindo
por um estuário de um grande rio, o primeiro aparecimento
de areia funcionará como uma ajuda para a navegação.
- Isto veio do navio naufragado que está abaixo de nós?
Jack estendeu o braço e pegou de volta a sonda sonora e
segurou-a com uma certa reverência. - Minha primeira
descoberta, com significado real, de um antigo naufrágio. Ela
vem de uma das extremidades desta posição em que nos
encontramos, aninhada no mesmo pequeno vale formado
por erosão onde depois encontramos o contêiner com
droga. Na época eu estava de mau humor, embora este fosse
um achado bastante surpreendente, mas supus que as sondas
sonoras fossem, provavelmente, um equipamento padrão
num antigo navio mercante.
- E agora?
- Agora eu sei que o achado foi verdadeiramente
excepcional. Algumas centenas de naufrágios de navios
romanos foram encontrados desde então, mas apenas poucas
sondas sonoras foram descobertas. A verdade é que elas
devem ter sido artigos dispendiosos e, na verdade, de muito
uso somente para navios que se aproximavam regularmente
de um grande estuário, com um solo oceânico raso
encontrado milhas distante da praia onde areia aluvial podia
ser recolhida antes que a terra fosse vista.
- Você quer dizer como no caso do Nilo?
Jack assentiu entusiasticamente. - O que estamos
procurando aqui é o equipamento de um grande barco
alexandrino de cereais, não uma modesta ânfora
transportada. - Ele colocou cuidadosamente a sonda de volta
no engradado, depois retirou um velho livro encadernado de
preto de uma mochila de plástico. - Agora, ouça isto. - Ele
abriu o livro em uma página marcada, examinou-a
cuidadosamente de alto a baixo por um momento e depois
começou a ler.

Mas quando chegou a décima quarta noite, quando éramos
jogados para cá e para lá no mar Adriático, por volta de
meia-noite os marinheiros supuseram que estavam se
deslocando perto de algum país; e mediram a profundidade e
encontraram trinta e seis metros até o fundo; pouco depois
lançaram a sonda de novo e deu vinte e sete metros. Com
medo de que o navio batesse em rochas, eles baixaram da
popa quatro âncoras e rezaram para que o dia surgisse.

Costas assobiou. - Os Evangelhos!
- Os Atos de São Paulo, capítulo 27 - os olhos de Jack
estavam brilhando. - E adivinhe o quê? Diretamente, a
pouca distância de onde estamos agora, o fundo do mar está
em águas profundas, mas, em diagonal para o sul, há um
platô arenoso que se estende por trezentos metros, com
cerca de quarenta metros de profundidade.
- Isto dá cento e vinte pés, cerca de trinta e seis metros -
murmurou Costas.
- No nosso último dia de mergulho, vinte anos atrás, fizemos
um reconhecimento dessa região, só para ver se tínhamos
omitido alguma coisa - disse Jack. - A última coisa que vi
foram duas vergas de chumbo da âncora, inequivocamente
antigos tipos romanos usados para aumentar o peso de
âncoras de madeira. Na época do naufrágio do nosso navio
carregado com ânforas no norte da África, as âncoras eram
feitas de ferro, de modo que sabemos que estas devem ter
sido perdidas por um navio mais antigo, que tentara manter
distância desta costa.
- Continue.
- Isso fica melhor.
- Pensei que ficaria.
Jack leu novamente:

E soltando as âncoras, eles as deixaram no mar, ao mesmo
tempo em que desamarravam as cordas do leme: e içando a
vela do estai do traquete, dirigiram o navio para a praia. Mas,
ao deixar com pressa um lugar onde dois mares se
encontravam, eles foram de encontro a um banco de areia e
o navio encalhou; e a proa, atolada, ficou sem poder ser
movida, mas a popa começou a arrebentar com a violência
das ondas.

- Bom Deus - disse Costas. - O contêiner com drogas, a
sonda sonora. Armazenadas no compartimento dianteiro. E
o que aconteceu com a popa?
- Espere. - Jack sorriu e retirou uma pasta de papéis da
mochila. - Avançamos rapidamente dois milênios. Agosto
de 1953, para ser exato. Capitão Cousteau e o Calypso.
- Eu estava me perguntando quando é que eles iam aparecer
nisto aí.
- Foi o indício que nos trouxe até aqui, em primeiro lugar -
disse Jack. - Eles mergulharam por toda esta costa. Eis o que
o mergulhador chefe escreveu sobre este promontório. "Vi
ânforas quebradas, concretadas numa curva do
despenhadeiro, em seguida uma âncora de ferro, concretada
numa parte mais baixa e aparentemente em estado de
corrosão, com pedaços quebrados de ânforas no topo." Isto é
exatamente o que encontramos aqui, o naufrágio do navio
com ânforas romanas. Porém, há mais ainda. Em seu
segundo mergulho, eles viram "ânforas gregas, em águas
profundas".
- Ânforas gregas, em águas profundas - murmurou Costa. -
Você faz idéia de onde?
- Na fenda do rochedo, em linha reta atrás de nós - disse
Jack. - Calculamos que eles atingiram setenta, talvez oitenta
metros de profundidade.
- Parecem os rapazes de Cousteau - disse Costas. - Deixe-me
adivinhar. Ar comprimido, reguladores com mangueiras
duplas, sem aferidor de pressão, sem sistema de flutuação.
- Voltamos para o tempo em que mergulho era esporte
aquático - disse Jack com saudades. - Antes que o gás
misturado tirasse toda a diversão do mergulho.
- O perigo ainda permanece lá, só que ele começa mais no
fundo.
- Vinte anos atrás eu me candidatei, como voluntário, para
fazer um mergulho para encontrar aquelas ânforas, mas a
equipe médica vetou-o. Somente tínhamos ar comprimido e
estávamos seguindo estritamente as regras da Marinha dos
Estados Unidos, que estabeleciam uma profundidade limite
de cinqüenta metros. Não tínhamos helicóptero, nem navio
de apoio, e o lugar de encontro mais próximo distava a um
par de horas lá na base naval americana subindo a costa.
Costas fez um gesto apontando para os rebreathers com dois
gases misturados, no chão do barco, e depois para a pequena
mancha branca de um navio visível no horizonte, soltando
vapor em direção a eles. - O navio utiliza os métodos mais
modernos e mais recentemente desenvolvidos de
equipamentos para mergulho em águas profundas, e as
facilidades de uma completa câmara de "recompressão" a
bordo do Seaquest. Tecnologia moderna. Eu encerro minha
descrição do navio. - Fez um gesto em direção ao antigo e
danificado diário que Jack estava segurando. - De todo jeito,
tratava-se de ânforas gregas. Isto não foi antes do nosso
período?
- Foi o que supus na época. Mas algo estava me
incomodando, algo de que não podia ter certeza até ver estas
ânforas com os meus próprios olhos. - Jack pegou uma
prancheta do engradado e passou-a para Costas. - Esta é a
tipologia de ânforas projetadas por Heinrich Dressel, um
estudioso alemão que estudou os achados de Roma e
Pompéia no século XIX. Verifique os desenhos na parte
superior esquerda, números de dois a quatro.
- As ânforas com as asas com a ponta para cima?
- Essas mesmas. Na época de Cousteau, os mergulhadores
identificavam quaisquer ânforas com essas asas como gregas,
porque essa era a forma de ânforas de vinho conhecidas
como tendo sido feitas na Grécia clássica. Mas, desde então,
aprendemos que ânforas com essa forma também eram feitas
nas áreas ao oeste do Mediterrâneo, colonizadas pelos
gregos, e que, depois, ficaram sob os romanos quando estes
conquistaram aquelas áreas. Estamos falando do sul da Itália,
Sicília, noroeste da Espanha, todas as maiores regiões
produtoras de vinho desenvolvidas em primeiro lugar pelos
gregos. - Ele passou uma grande fotografia em preto-e-
branco que mostrava ânforas com asas altas encostadas
contra uma parede, e Costas olhou pensativo e com atenção
para a foto.
- Um depósito de vinho? Uma taverna? Pompéia?
Jack confirmou entusiasticamente. - Não Pompéia, mas
Herculano, a outra cidade enterrada pela erupção do
Vesúvio. Uma taverna à margem da estrada, preservada
exatamente como era em 24 de agosto de 79 d.C.
Costas ficou silencioso por um instante, depois olhou de
soslaio para Jack. - Ajude-me a lembrar. Qual foi a data do
naufrágio do navio de São Paulo?
- A melhor suposição é de que tenha sido na primavera de
58 d.C., talvez um ou dois anos mais tarde.
- Descreva-me o que ocorreu.
- Poucos anos depois da morte do imperador Cláudio, no
reinado de Nero. Cerca de dez anos antes de os romanos
conquistarem a Judéia para roubar a menorá dos judeus.
- Ah. Estou me lembrando. - Costas deu um sorriso triste
para Jack, depois estreitou os olhos novamente. - Nero.
Grande devassidão, atirava os cristãos aos leões, tudo isso,
não é?
Jack assentiu. – Este é um registro da história daquele
período. Mas ela era também a época mais próspera na
história antiga, o apogeu do Império Romano. O vinho dos
magníficos vinhedos de Campânia, perto do Vesúvio, estava
sendo exportado naquelas ânforas de estilo grego para toda
parte do mundo conhecido. Elas têm sido encontradas nos
postos romanos mais avançados no sul da Índia, negociadas
em troca de condimentos e medicamentos como o ópio
naquele engradado. E na Grã-Bretanha. E as ânforas são
exatamente o que você espera encontrar num grande navio
alexandrino de transporte de cereais daquele período. De
acordo com o relato nos Atos dos Apóstolos, havia mais de
duzentas e setenta pessoas a bordo naquele navio com São
Paulo, e vinho diluído deve ter sido sua principal bebida.
- Última pergunta - disse Costas. - A mais importante. Do
que eu consigo lembrar, supõe-se que o naufrágio do navio
de São Paulo tenha sido em Malta. Como entra a Sicília?
- É por isso que eu não chegava a compreender vinte anos
atrás. Então eu me dediquei a um bocado de pensamento
lateral. Geograficamente, quero dizer.
- Você quer dizer que teve uma intuição fora do comum.
Jack sorriu. - É isso. Tudo que temos de seguir está nos
Evangelhos, nos Atos dos Apóstolos. Não existe outro relato
do naufrágio do navio de São Paulo, não há jeito de verificar
a história. Certo?
- Trata-se de fé.
- De certa maneira, este é o ponto essencial. Os Evangelhos,
o Novo Testamento, eram uma coleção de documentos
escolhidos pela Igreja antiga para representar o ministério de
Jesus, ou melhor, a visão que tinham do ministério de Jesus,
Alguns dos Evangelhos foram escritos logo depois de sua
morte, por testemunhas oculares ou por contemporâneos,
outros foram escritos várias gerações mais tarde. Nenhum
deles foi escrito como um documento histórico como
entendemos essa expressão, menos ainda como documentos
geográficos. Para aqueles que reuniam os textos,
provavelmente tinha pouca conseqüência o fato de Paulo ter
naufragado nesta ou naquela ilha.
- Tenho tudo isto inculcado em mim pela minha família
grega ortodoxa. Como eu me recordo, Atos foi escrito por
um sobrevivente do naufrágio, por Lucas, companheiro de
Paulo.
Jack concordou com um gesto. - Era isso que costumavam
ensinar para todos. Atos nos conta que Paulo navegava com
dois companheiros, Lucas da Ásia Menor e Aristarco, um
macedônio de Tessalônica. Depois que Paulo foi preso na
Judéia, juntaram-se a ele na viagem para o norte de Cesaréia,
para Myra (moderna Kale ou Demre), ao sul da Turquia,
onde se transferiram para um navio alexandrino que ia para
Roma. Mas alguns estudiosos agora pensam que Atos foi
composto várias décadas mais tarde por outra pessoa,
baseado talvez num relato de uma testemunha ocular. E,
acrescentado a essa incerteza, lembre-se do enorme
problema colocado por uma transmissão textual. Os
Evangelhos passaram pelo mesmo processo assim como
todos os outros textos clássicos, todos aqueles com exceção
dos fragmentos que verdadeiramente encontramos em sítios
antigos. Selecionados, purificados, traduzidos, embelezados
com interpretações e anotações que se tornaram parte do
texto, censurados por autoridades religiosas, alterados pela
fantasia ou negligência de copistas individuais. O primeiro
fragmento que temos dos Atos data de mais ou menos 200
d.C., quase 150 anos depois de Paulo, e ele só contém a
primeira parte. A primeira versão que sobreviveu com a
história do naufrágio data de várias centenas de anos mais
tarde. Ela foi traduzida do grego para o latim e para as
línguas medievais, para o inglês do século XVII, e assim
passou por numerosos escribas e copistas. Isto me torna
muito prudente a respeito de um pequeno detalhe como a
palavra Melita, se ela significa mesmo Malta. Algumas
autoridades antigas falam até em Mitilene, uma ilha no mar
Egeu que era mais familiar para eles.
- Caça ao tesouro 101 - disse Costas solenemente. - Sempre
autentique seu mapa.
- No caso do naufrágio do navio de São Paulo é praticamente
a primeira vez na história que podemos procurar os restos de
um navio naufragado conhecido, mas, como tantos relatos
de naufrágios, ele está repleto de perigos imprevistos. Você
precisa fazer um recuo, abrir a mente para todas as
possibilidades e deixá-las se ordenar, não forçá-las a uma
conclusão prévia. Acho que é isso que venho fazendo todos
esses anos desde que mergulhei aqui pela última vez, desde
que a idéia começou a despertar em mim.
- É por isso que você é um arqueólogo e eu sou um
engenheiro - disse Costas. - Não sei como você faz isso.
- E eu deixo a robótica e os submersíveis para você. - Jack
sorriu para Costas, depois olhou para o horizonte ao leste. -
Não há mais nada nos Atos para corroborar Malta, e tudo o
que acontece na ilha é que Paulo cura alguns homens locais.
A Sicília faz muito mais sentido. Ela está no estreito correto
de onde se entrevêem as florestas, uma primeira terra
avistada, em uma viagem marítima pelo mar Jônico, um
lugar muito mais provável para um navio de cereais ser
impelido por um vento que sopra do nordeste. Os Atos até
mencionam Siracusa, quase junto ao promontório nas
proximidades de onde estamos, onde Paulo e seus
companheiros passaram vários dias em sua viagem para
Roma depois do naufrágio. De acordo com os Atos, eles
pegaram carona em um outro navio de cereais que
conseguiu passar pelo vento em Malta, mas creio que é mais
provável que fosse um navio em Porto Grande na própria
Siracusa.
- Então dois mil anos de erudição bíblica estão errados, e
Jack Howard tem uma intuição e está certo?
- Um raciocínio cuidadoso baseado em um acúmulo de
evidências, apontando...
- Apontando firmemente para uma conclusão - completou
Costas. - Sim, sim. Uma intuição. - Ele sorriu para Jack,
depois falou com uma resignação zombeteira. - Muito bem.
Você me convenceu. E agora que olho para ela, aquela fenda
no despenhadeiro a nossa frente, o ponto que você assinalou
para a posição do naufrágio. Você percebeu como ele
também parece a letra grega Qui? - Costas sorriu. - Enquanto
estamos tratando de atos de fé ou crenças religiosas,
esperando que o resultado seja bom, não me diga que você
está acima de um pequeno sinal do alto.
Jack deu uma olhadela para o rochedo, depois sorriu. -
Muito bem. Vou aceitar isso. Vinte anos decorreram, você
vê as coisas com olhos diferentes. -Apoiou-se sobre os
cotovelos e sacudiu a cabeça. - Não posso acreditar que
estou levando tanto tempo para reunir estes fragmentos.
- Você tinha alguns outros projetos ocupando sua mente.
- Sim, mas este poderia ser o maior de todos. - Jack sentou-
se e inclinou-se para Costas, o rosto empolgado pela
excitação. - Qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa,
que identificar este naufrágio com o naufrágio do navio de
são Paulo, fará dele um tesouro como nunca foi descoberto
outro antes. Você não precisa ser cristão para se dar conta
disto. Nunca ninguém encontrou nada tão intimamente
ligado com as vidas dos evangelistas, com a realidade oculta
dos Evangelhos. Estamos examinando uma época em que
algumas pessoas realmente acreditavam em um Reino do
Céu sobre a Terra, um sonho que a religião pagã não oferece
para a pessoa comum. De uma época antes das igrejas, antes
dos padres, antes da culpa e da confissão e das inquisições e
guerras santas. Retire tudo isso e você voltará para a essência
do que Jesus tinha para dizer, para aquilo que atraiu tantas
pessoas para ele. Um naufrágio seria como um contêiner
repleto de objetos do período de Pompéia e de Herculano e
que tinha uma conexão direta com as figuras mais poderosas
na história ocidental. Isso capturaria a imaginação do
mundo.
Costas mudou de posição e se estirou. - Ainda vamos ter que
encontrar o navio naufragado. E, falando de empolgação,
vamos ter companhia. - Ele movimentou a cabeça na
direção da cascata de bolhas estourando na superfície, e
ficaram observando enquanto os dois mergulhadores
apareciam nitidamente a poucos metros abaixo deles. Eles
chegaram à superfície simultaneamente e ambos fizeram o
sinal de o.k. Jack anotou a hora no diário de bordo e depois
olhou para Costas. - Este lugar era um sustentáculo da
história - ele continuou. - O que quer que encontremos,
estaremos acrescentando algo a uma história que já é
bastante fantástica. Em 415 a.C., os atenienses
desembarcaram neste lugar para atacar Siracusa, um evento-
chave na guerra contra Esparta que quase destruiu a
civilização grega. Desloco-me rapidamente para uma outra
guerra mundial, em julho de 1943, Operação Husky. Meu
próprio avô esteve aqui, como oficial comandante do navio
da marinha mercante Empire Elaine, exatamente perto da
costa a partir de onde o navio foguete HMS da classe Erebus
bombardeou as posições inimigas acima de nós com bombas
de quinze polegadas.
- Este lugar deve estar em seu sangue - disse Costas. - É
como se um Howard estivesse presente quase em cada
batalha naval na história britânica.
- Se muitas famílias inglesas conhecessem o seu background,
elas seriam capazes de dizer a mesma coisa.
- Sobrou alguma coisa para ver?
- O Esquadrão Especial Raiding, uma ramificação do SAS
(Special Air Service), saltou de pára-quedas no penhasco
acima de nós e forçou a bateria de defesa costeira italiana a
se entregar, jogando suas armas dentro do mar. Quando
mergulhamos aqui pela primeira vez, havia munição
espalhada por todo o local.
Costas esfregou as mãos. - É disto que eu gosto. Verdadeira
arqueologia.Descobrir pedaços de ruínas antigas a cada dia.
- Vamos manter nossa atenção na recompensa. Você pode
brincar de desativação de bombas mais tarde.
Costas sorriu, e ergueu a mangueira de alimentação do seu
rebreather. Fechada e carregada. - Ele a recolocou no lugar,
depois observou Jack fazer o mesmo.
- Pronto. - Jack abaixou a cabeça para verificar o seu
equipamento, depois olhou para Costas. - Você está pronto
para isso? - ele perguntou. - Quero dizer, um mergulho
profundo?
Costas ergueu os olhos, depois soltou um suspiro exagerado.
- Vamos ver. Nosso último mergulho foi numa galeria
subterrânea debaixo das selvas do Yucatán, quando fomos
arrastados em direção a algum tipo de inferno maia. E antes
disso foi dentro de um iceberg giratório. Oh, e antes ainda,
num vulcão em erupção.
- Você está dizendo que chega, ou que agüenta mais um?
Costas deu sua versão do olhar de quem sofre de TEPT,
depois deu um sorriso fatigado e começou a puxar para cima
o seu macacão de mergulho. – Você acaba de dizer as
palavras.
- Está na hora de pegar o equipamento necessário.

CAPÍTULO 2

Maurice Hiebermeyer recostou-se contra a parede da galeria
ofegando pesadamente algumas vezes e olhou para o buraco
grosseiro a sua frente. Ele não seria derrotado. Se o rei Carlos
de Nápoles conseguira, com toda aquela barriga, supondo-se
que houvesse tal rei, então ele também conseguiria.
Novamente ele se ergueu sobre as mãos e os joelhos, dirigiu
sua headlamp (lanterna de cabeça) para o buraco e
impulsionou o corpo à frente, seu capacete batia contra o
teto e as saliências entalhadas o feriam por toda parte.
Mais uma vez ele se deitou no chão para descansar, preso
como uma rolha numa garrafa. As coisas não estavam boas.
Olhou pelo vidro sujo de seus óculos para a nuvem de poeira
que ele havia criado no túnel além do lugar onde se
encontrava. Teriam de conseguir uma britadeira, alargar o
buraco. Isto significaria mais demoras, mais frustração. Já
estavam atrasados duas semanas com a programação, dias
que passaram andando e transpirando na sala de espera da
superintendência enquanto a burocracia avançava
lentamente para liberar sua permissão. Um tempo precioso
que ele quase não podia permitir-se perder, com a sua
escavação em pleno ritmo no deserto oriental.
Então ele o viu.
Arfou e sussurrou em seu alemão nativo. - Mein Gott. Não,
não pode ser. - Estendeu a mão e sentiu a superfície lisa. Um
focinho. - Sim, era. - Deixou cair a mão, e olhou
assombrado.
O deus guardião da morte.
Poucos passos adiante, a parede cinzenta e mosqueada do
túnel do século XVIII havia caído para formar uma cavidade
rasa, não mais do que trinta centímetros de profundidade.
No centro havia uma cabeça aparecendo, preta e envolta em
poeira, mas inequívoca, as orelhas apontando para cima e o
focinho projetando-se desafiadoramente. Era aquele que
andava através das sombras e espreitava nos lugares
sombrios, o guardião do véu da morte.
Hiebermeyer olhou fixamente para os olhos cegos rodeados
pela linha grossa desenhada com kohl, depois fechou os
olhos bem apertados e silenciosamente movimentou os
lábios falando o nome. Aqui, no limiar do desconhecido,
num lugar de terror inimaginável e de morte, onde aqueles
que viveram por último verdadeiramente viram os fogos do
inferno. Anúbis. Abriu os olhos novamente, e viu três linhas
verticais de hieróglifos estendendo-se abaixo do peito da
estátua, o texto reconhecível instantaneamente. Um homem
permanece do outro lado depois da morte, e seus feitos são
colocados empilhados ao lado dele. A existência no além,
dura por toda a eternidade, e aquele que a alcança sem más
ações existirá no além como um deus. Hiebermeyer olhou
fixamente atrás da estátua para o negrume vazio do túnel à
frente. Por um instante breve e bizarro, teve pena de todos
eles, os antigos que depositaram tais esperanças no mundo
do além, cujos sonhos desintegrados sobre a vida depois da
morte se tornaram seu próprio reino da morte. Hiebermeyer
sentiu, não pela primeira vez, que estava em uma missão,
que a sua verdadeira vocação como arqueólogo era trazer
para aqueles que estavam no limbo algo semelhante com a
imortalidade que haviam desejado tão intensamente.
- Maurice - uma voz amortecida veio de detrás dele.
- Maria.
- Relaxe por um momento.
Houve um grande solavanco e ele foi lançado à frente,
caindo desajeitado ao longo da cascata de fragmentos de
rocha que enchiam a entrada do túnel. Começou a tossir
violentamente e pulou rapidamente para trás da marca de
poeira onde tinha estado contorcido. Fez uma careta, puxou
completamente as pernas, depois se inclinou com as costas
retas no túnel estreito.
- Sinto muito. - O rosto de uma mulher apareceu no buraco,
com um capacete amarelo e usando óculos e uma máscara
contra poeira, seu longo cabelo preto preso atrás. A voz era
forte e suave, falava inglês com um leve acento de espanhol.
- É sempre melhor abordar as pessoas inesperadamente, eu
acho. Se Você ficar tenso, a reação é pior.
- Você fez isso com freqüência?
- Eu estive em alguns buracos em algumas ocasiões. - Ela
deslizou sem esforço pelo túnel e deitou-se ao lado dele,
seus corpos preenchiam exatamente a largura do túnel com
muito pouco espaço para ficarem eretos. - Espero que você
ainda esteja intacto. Algumas contusões pareciam melhores
do que um outro parecer para o gabinete da
superintendência.
- É precisamente o que eu acho. - Hiebermeyer esfregou a
perna esquerda com cuidado. - A autorização só nos
permite seguir este velho túnel, não escavar novos. Mesmo
alargar aquele buraco criado pelo terremoto seria uma
transgressão criminosa. É uma loucura. - Ele olhou
atentamente para trás através da poeira. - Não que eles
tenham percebido o que estamos fazendo agora.
- Eles logo se darão conta.
Hiebermeyer resmungou, depois ergueu seus óculos de
segurança e olhou para Maria com os olhos cheios de muco
enquanto limpava as lentes. - De todo modo, eu desfrutei do
nosso tempo juntos no gabinete. Um curso impactante, dado
por uma especialista mundial, sobre manuscritos medievais.
Fascinante. E eu estava prestes a ler para você minha tese de
doutorado sobre as disputas romanas iniciadas pelo
imperador Cláudio no Egito.
Maria suspirou. - Supõe-se que você esteja em seu elemento
aqui, Maurice. No subterrâneo, quero dizer. Lembra-se? Eu
estava a bordo do Seaquest quando Jack recebeu a chamada,
depois que houve o terremoto aqui. Arrume um egiptólogo,
ele disse. Alguém acostumado com catacumbas, a fazer
covas no chão, o Vale dos Reis e tudo mais.
- Ah, o Vale dos Reis - Hiebermeyer suspirou. Ele observou
quando Maria se moveu para trás até sua cabeça ficar a
centímetros do focinho do chacal. - Mas você está certa.
Estou em meu elemento agora. É fabuloso. Nós temos um
novo amigo.
- Hein?
- Vire-se. Lentamente.
Maria fez como lhe foi indicado, depois soltou um grito
curto e jogou-se para trás. - Díos mio. Oh, meu Deus.
- Não se preocupe. É apenas uma estátua.
Maria estava esticada contra a entrada do túnel, mas bastante
distante para poder perceber tudo o que tinha sido revelado.
- É um cachorro - ela sussurrou. - Um lobo. Com um torso
de homem. - Ela inclinou-se para a frente e olhou
cuidadosamente de perto. - Não é possível - ela murmurou.
- Hieróglifos? Esta coisa é egípcia?
- Anúbis - Hiebermeyer disse de maneira casual. - Uma
estátua em tamanho natural do deus egípcio da morte, em
esteatita preta. Os hieróglifos são uma cópia das Instruções
de Merikare, rei da décima dinastia, um texto do terceiro
milênio a.C. Mas aquele motivo ornamental na superfície
inferior é uma inscrição real da vigésima sexta dinastia, do
século VI a.C. Não ficaria surpreso se isto viesse da capital
real em Sais, no delta do Nilo.
- Isto me faz lembrar de algo - disse Maria. - O ateniense
Sólon visitando o Sumo Sacerdote. O local onde ele
registrou a história da Atlântida.
- Você tem passado algum tempo com Jack.
- Eu sou professora assistente da Universidade Marítima
Internacional agora, lembra? Exatamente como você. É
como se nós todos tivéssemos voltado à escola novamente.
Jack me contou a história toda à bordo do Seaquest na nossa
viagem de volta do Yucatán. Fantástico. Eles têm planos para
voltar e encontrar um naufrágio grego que viram perto do
local, um trirreme, eu acho.
Hiebermeyer resmungou. - Quero que Jack me dedique
algum tempo. Consegui algo muito melhor para ele. Supõe-
se que seja nossa função, fornecer-lhe quaisquer indícios
novos. Estou tentando dizer-lhe isto há meses. - Ele
suspirou exasperado, depois olhou para a estátua. - Mas
voltemos para o que temos aqui. O historiador grego
Heródoto visitou Sais e descreveu um lago do lado de fora
do Templo de Neith, um santuário rodeado por estátuas
como esta, faraós e deuses trazidos de lugares antigos de
todo o Egito. Por volta do período romano, a cidade de Sais
estava cheia de lodo e abandonada, mas ela teria sido
acessível aos navios romanos e foi despojada de toda sua
estatuária e pedras preciosas.
- Você está dizendo que esta estátua foi pilhada?
- Eu prefiro a palavra transferida. Os romanos que
construíram esta vila tiveram acesso a grandes obras de arte
de todo os lugares do Mediterrâneo e além, de muitas
culturas diferentes de um período bem anterior na história.
Eles eram exatamente como os colecionadores particulares
ou curadores de museus de hoje. Algumas das melhores
estátuas gregas de bronze que foram encontradas vieram
desta vila, encontradas a apenas alguns metros de nós
quando bons mergulhadores abriram caminho para entrar
no século XVIII. Alguns romanos compararam Anúbis com
Cérbero," guardião do rio Estige, mas para muitos romanos
ele era uma figura de escárnio, que late, um cachorro. Esta
estátua deve ter sido uma antiguidade, uma curiosidade, vista
como um trabalho de arte divertido e nada mais.
- Eu não sei - disse Maria baixinho. - Ela parece estar
olhando para nós, metade dentro e metade fora da história,
exatamente como um guardião. - Ela olhou atentamente
para Hiebermeyer. - Alguma vez você foi supersticioso,
Maurice? Estou pensando na tumba do faraó Tutankamon, a
maldição da múmia, coisas assim?
- Não. - Hiebermeyer falou asperamente. - Eu sou um mero
arqueólogo.
- Ora, Maurice. Você deve pelo menos ter ficado
impressionado com isto. Lembre-se de quando éramos
estudantes universitários, e você falava o tempo lodo sobre
isto. Admita.
Hiebermeyer olhou para a cabeça do chacal, e permitiu-se
um raro sorri-l,u estou impressionado. É claro que estou.
Isto é maravilhoso. Mal posso esperar para ver o restante da
inscrição. - Ele pressionou a palma da mão contra a esteatita
polida, depois olhou para o túnel. - Mas eu realmente penso
que este é o fim do caminho. Esta estátua deve ter sido
revelada no abalo sísmico da noite passada, e devemos ser os
primeiros a vê-la. Mas outros chegaram até aqui no túnel
antes de nós, antes que ele fosse vedado para aprontá-lo para
a nossa chegada. O pessoal da segurança local teria estado
aqui quando o primeiro terremoto abriu o túnel. Se eles
encontraram algo é provável que já esteja no mercado negro
agora. Duvido que vamos encontrar mais alguma coisa.
- Não posso acreditar que você seja tão cínico. - Maria
parecia genuinamente ofendida. - Eles nunca teriam
permitido isto. Você se esqueceu de onde nós estamos? Na
Vila do Papyri em Herculano, o maior tesouro não escavado
na Itália. Enterrado pela erupção do Vesúvio em 79 d.C.,
redescoberta pelos reis Bourbon de Nápoles no século
XVIII, e depois quase nunca mais foi feita alguma escavação.
Esta é a única biblioteca de manuscritos em rolos de papiro
que sobreviveu da Antiguidade, no entanto todos sabem que
a maior parte dela deve permanecer aqui para ser
encontrada, selada por estas paredes. Você não deixa
simplesmente qualquer um entrar aqui e surrupiá-la.
- Também é um dos maiores desapontamentos em
arqueologia - disse Hiebermeyer. - Quase todos os
manuscritos desenterrados são de Filodemo, um filósofo de
terceira classe sem significado duradouro. Nenhuma grande
obra de literatura, quase nada em latim. - Recolocou os
óculos. - Você não se pergunta por que a vila nunca foi
completamente desenterrada?
- Por uma série de razões. Questões estruturais. A escavação
pode arruinar gradativamente as construções modernas que
se situam acima do local. Recursos necessários para a
manutenção da escavação existente, a principal parte de
Herculano já foi revelada. Burocracia. Falta de fundos. Você
pode escolher.
- Tente de novo.
- Bem, existem grandes problemas no que se refere à melhor
maneira de conservar e ler os papiros carbonizados. Você se
lembra de nossa visita à oficina do papiro em Nápoles. Eles
ainda estão trabalhando no material encontrado no século
XVIII. E precisam encontrar a melhor maneira de
desenterrar um novo material e de recuperar o maior
número de manuscritos que possa existir. Isto requer o
melhor. É um local sagrado.
- Precisamente. - Hiebermeyer estalou os dedos. - A última
coisa que você disse. Um local sagrado. E como outros locais
sagrados, como as cavernas dos Manuscritos do Mar Morto,
em Israel, as pessoas anseiam por encontrar o que há lá
dentro, no entanto elas também receiam. E, acredite-me, há
um grupo de pessoas muito poderosas na Itália que preferiria
não encontrar mais nenhum registro escrito do primeiro
século d.C.
Naquele momento, a poeira no ar pareceu toldar a visão e
eles sentiram alguns tremores palpáveis, seguidos por um
som como que provocado por algo feito de alvenaria caindo
em algum lugar à frente. Maria apoiou as mãos no chão do
túnel e olhou alarmada para Hiebermeyer. Ele rapidamente
puxou um aparelho do tamanho de uma palma com um pino
e apertou-o contra a parede do túnel, observando a leitura
atentamente enquanto o tremor cedia. - Um choque
secundário, um pouco maior do que aquele na noite passada,
mas provavelmente nada com que precisamos nos
preocupar - ele disse. - Avisaram-nos para esperar por isso.
Lembre-se de que as paredes ao nosso redor são de lama
piroclástica solidificada, não como a cinza e as pedras-pomes
que caíram em Pompéia. A maior parte delas é mais dura
que concreto. Provavelmente estaremos salvos.
- Posso ouvir os outros, se aproximando atrás de nós - disse
Maria baixinho.
- Ah, sim. A misteriosa senhora da superintendência. Você
sabe que ela é uma velha amiga de Jack? Depois de
Cambridge. Por alguma razão, eles não conversam. Posso
ver a luz agora. Bom comportamento.
- Não, eu não sabia - Maria retrucou calmamente, depois
olhou para o focinho. - Certamente, Anúbis vai deixá-los
boquiabertos.
- Provavelmente Anúbis irá parar o projeto todo - disse
Hiebermeyer. - Ele será aclamado como uma grande
descoberta, uma justificação para sua decisão de explorar o
túnel. Será o suficiente para eles retirarem a permissão para a
escavação e selar o túnel. A única razão pela qual estamos
aqui é que alguém vazou a descoberta do túnel para a
imprensa depois do terremoto, e as autoridades não tiveram
escolha senão montar um show para a imprensa.
- Você está sendo cínico outra vez.
- Acredite-me. Tenho participado deste jogo há muito
tempo. Existem forças muito maiores em jogo aqui.
- Então, vamos aproveitar a chance enquanto ela está ao
nosso alcance - disse Maria. - Você encontrou o seu tesouro,
agora preciso achar o meu.
Hiebermeyer guardou o oscilador no bolso da frente do seu
macacão, espirrou fazendo muito barulho e depois olhou
atentamente para Maria. - Posso ver o que Jack viu em você.
Ele sempre disse que você poderia se tornar alguém especial,
se você saísse de Oxford e viesse trabalhar com ele.
Maria lhe lançou um olhar destruidor, depois rastejou
adiante até ficar bem atrás da estátua. A poeira estava se
depositando, e adiante deles podiam apenas distinguir um
remendo branco onde um outro fragmento da parede do
túnel tinha sido arrancado pelo tremor. Quando os feixes de
suas headlamps se concentraram na parede quebrada, eles
puderam ver algo no centro. Hiebermeyer se arrastou para
frente e voltou-se para Maria, o rosto brilhando de
excitação. - Ok, passamos por Anúbis, e ainda estamos só
com uma peça.
- Superstição, Maurice?
- Vamos adiante.

CAPÍTULO 3

23 de agosto de 79 d.C.

O velho bebeu um gole de vinho, segurando a taça com
mãos trêmulas, depois cerrou os olhos e agarrou o pilar até
que o pior do espasmo passasse. Nesta noite ele iria aos
Campi Flegrei, ficar diante da gruta da Sibila pela última vez.
Mas havia trabalho a fazer antes disso. Ele balançou para um
lado por cima do banco de mármore, agarrando
violentamente sua toga para impedi-la de escorregar, depois
deu um passo em falso e caiu pesadamente sobre os
cotovelos. Seu rosto se contorceu de dor e de frustração,
desejoso de lágrimas que não vinham mais, fazendo esforços
para vomitar sem ter nada para isso. Na verdade, estava
fingindo. Ele não sentia quase mais nada.
Levantou-se e olhou com seus olhos cobertos de muco para
a lua que agora estava tremeluzente no outro lado da grande
extensão da enseada, depois para as estátuas dos deuses
egípcios e gregos que se alinhavam no pórtico da vila. A
estátua mais próxima dele, aquela com cabeça de cachorro,
parecia emoldurar a montanha, o nariz e o focinho
brilhando ao luar. De sua localização vantajosa no belvedere
da vila, podia ver os telhados das casas na cidade que ele
conhecia profundamente, mas que nunca tinha visitado,
Herculano. Ele podia escutar o tinido e os sons baixos da
atividade do final da tarde, a elevação e a diminuição da
conversa, o soar de risos e de música ligeira, as ondas
batendo na praia.
Ele tinha tudo de que necessitava. Vinho das rampas do
Vesúvio, um magnífico vinho vermelho que descia como
xarope, sempre o seu favorito. E moças, trazidas para ele das
escuras ruelas abaixo, moças que ainda lhe proporcionavam
um prazer fugaz, anos depois que parou de ponderar sobre o
que isso causava a elas. E ele tinha a papoula.
Inalou e enrugou o nariz, e depois olhou para cima. Os
adivinhos estavam certos. Havia algo no céu naquela noite.
Olhou para o outro lado da enseada, para o oeste, passando
pela antiga colônia grega de Neapolis em direção à base
naval em Misenum, no distante promontório ao lado do mar
aberto. A sombra da montanha escurecia a enseada, e tudo o
que ele podia distinguir eram alguns navios mercantes
ancorados perto da costa. Estava habituado a procurar a
fosforescência deixada na esteira das galeras rápidas, mas
nesta noite não podia ver nada. Onde estava Plínio? Será que
recebera a sua mensagem? Ele sabia exatamente o que o
comandante da frota romana em Misenum fazia. A esquadra
não tinha saído para uma ação desde que o avô do velho,
Marco Antônio, havia sido derrotado na batalha de Actium,
mais de um século antes. Pax Romana. O velho assentiu para
si mesmo. Ele, Cláudio, havia ajudado a manter aquela paz.
Olhou para trás, para o cântaro meio vazio sobre a mesa. Era
melhor Plínio chegar logo. O que ele tinha para dizer nesta
noite requeria uma cabeça clara. Estava ficando tarde.
Estendeu a mão para verter mais vinho em sua taça,
deixando o vinho transbordar e gotejar sobre a mesa para se
juntar com a grande mancha vermelha que tinha permeado
o mármore com o passar dos anos. Podia rever seu pequeno
quarto e a fileira de imagens de cera arrumadas ao longo da
parede, iluminadas pelo luar. Imagens ancestrais, as únicas
coisas que salvara de seu passado. Seu pai Druso, lembrado
com prazer. Seu amado irmão Germânico. Com sua pele cor
de cera, Cláudio sentia que já era idêntico a eles. Estava
velho, Velho bastante para ter vivido do começo ao fim a
Era de Augusto, a Idade de Ouro maculada para sempre pela
devassidão de Tibério, Calígula e Nero. Algumas vezes, em
seus momentos mais tristes, geralmente depois de beber
vinho, ele sentia que o tempo o transformara em um
monstro, assim como arruinara Roma, não por causa de
alguma deformidade horrenda, mas por uma devastação
lenta e inexorável, como se os deuses que lhe tinham
imposto a doença, a paralisia, estivessem fazendo com que
ele suportasse o tormento até o último limite nesta vida,
antes de o atirar dentro dos fogos do inferno.
Ele sacudiu-se para sair deste transe, tossindo dolorosamente
e olhou por cima do balcão da vila novamente, para os
telhados das casas de Herculano. Quando fingira o seu
envenenamento e escapado de Roma, seu velho amigo
Calpúrnio Piso tinha bloqueado completamente um anexo
para sua vila e feito uma casa para ele aqui, seu refúgio por
quase um quarto de século, de onde podia contemplar do
alto o mar e a montanha. Ele sabia que devia ser mais
agradecido, mas sempre experimentava irritações. O avô de
Calpúrnio havia sido um protetor do filósofo grego
Filodemo, cuja biblioteca repleta de absurdos que não
mereciam ser lidos estava sempre atrapalhando. E depois o
pobre Calpúrnio fora forçado a cometer suicídio, aqui,
diante de seus próprios olhos, depois de sua fracassada
conspiração contra Nero, deixando a vila a um sobrinho
rancoroso que nem mesmo sabia quem Cláudio era, que
achava que ele era apenas mais outro grego charlatão que
parecia suplicar sua entrada em cada casa aristocrática por
ali. Era o anonimato, ele pensou, mas era também a
humilhação máxima.
Mas ele tinha memórias, uma se impondo sobre todas as
outras. A memória de um pescador que encontrara dentro
de uma embarcação, numa parte do mar afastada da orla,
durante urna tarde, e que permanecera todos aqueles anos
desde então. A promessa que Cláudio fizera a ele. Tudo que
o pescador predissera havia acontecido. Agora, forças além
do controle de Cláudio estavam se fechando sobre ele.
Cláudio não se deixaria ser abatido.
- Ave, Princeps.
Cláudio ergueu-se com ímpeto. - Plínio? Meu caro amigo.
Eu lhe disse para parar de me chamar desse jeito.
O outro homem entrou rapidamente e ajudou Cláudio a
voltar para sua cadeira, pegando sua taça e enchendo-a. Ele a
passou para Cláudio e encheu uma para si, segurando-a
formalmente. - Que os deuses o saúdem no seu nonagésimo
aniversário.
- Isto foi há três semanas. - Cláudio fez um gesto com a mão
recusando-se a levado a sério, depois olhou para o outro
homem com afeto. Plínio era alto, o que não era habitual
para um romano, mas ele viera de Verona, no norte, terra
dos celtas. Em lugar de uma toga, usava uma túnica
vermelha ornada e botas amarradas com correia de um
oficial naval, e aparentava obstinação. Ele era tudo o que
Cláudio mais admirava, um veterano de guerra condecorado,
um líder natural, um erudito prodigioso. Cláudio agarrou seu
punho para parar sua gagueira. - Você me trouxe seu livro?
- Os primeiros vinte volumes. - Plínio apontou
orgulhosamente para um baú de couro ao lado da porta,
colocado cuidadosamente longe do vinho, cheio até a borda
com manuscritos. - Alguns detalhes sobre a flora e a fauna
da Grã-Bretanha eu quero verificar com você, e também o
espaço em branco que você me pediu para manter na seção
sobre a Judéia. Fora isso está completo. A primeira história
natural do mundo não escrita por um grego.
Cláudio fez um gesto em direção às estantes quase vazias na
sala, depois para os manuscritos que jaziam em pacotes no
chão. - Pelo menos agora consegui espaço para guardá-los.
Narciso tem me ajudado a encaixotar estes outros livros. Eu
nunca consegui jogar fora livro algum, e nunca tive coragem
de contar para o velho Calpúrnio, mas estes livros escritos
por Filodemo não valem o papel em que foram escritos.
- Onde você quer que eu os ponha? Os meus livros, quero
dizer. Posso colocá-los na estante para você.
- Deixe-os onde estão, perto da porta. Narciso vai abrir
espaço na minha biblioteca amanhã. Os seus terão um
espaço de honra. Todo este contra-senso grego será
removido.
- Narciso ainda faz toda a sua escrita para você?
- Ele se castrou, pobre companheiro, para poder me servir,
você sabe. Foi quando ele era menino, um jovem escravo.
Eu ia libertá-lo de todo modo.
- Eu nunca confiei completamente em Narciso, você sabe -
disse Plínio com bastante cuidado.
- Você sempre pode confiar em um eunuco.
- Isto sempre foi o seu calcanhar de Aquiles, se posso me
expressar assim. Esposas e servos libertos.
- Aquiles é uma coisa que eu definitivamente não sou. Eu
posso ser um deus, mas não sou Aquiles. - Cláudio abafou
uma risadinha, depois se tornou sério. - Sim, Narciso é um
tanto misterioso. Eu às vezes penso que sua desistência em
ser comandante da Guarda em Roma para se tornar pouco
mais que um escravo de um velho eremita deve ter sido
duro de suportar, participar do meu próprio ato de
desaparecimento. Mas Nero o teria executado se ele também
não fingisse a lua morte. Narciso tem sido sempre um
companheiro perspicaz, e ele tem seus próprios interesses
em negócios, você sabe, principalmente na Grã-Bretanha. E
sua religião, aquela tolice estranha que ele adquiriu quando
era escravo. Ele é um sujeito muito devoto. E sempre foi
muito leal a mim. - Cláudio sorriu de repente, moveu-se de
maneira não muito firme, e pegou no braço de Plínio. -
Obrigado pelos seus livros, meu amigo - ele disse
calmamente. - Ler sempre foi minha maior alegria. E haverá
neles muita coisa para me ajudar com a minha própria
história da Grã-Bretanha. - Apontou para um manuscrito
aberto sobre a mesa e preso com alfinetes, uma das
extremidades manchada com vinho. - É melhor
começarmos a trabalhar enquanto eu ainda tenho um pouco
de senso comum. Foi um dia longo.
- Eu posso perceber.
Os dois homens se debruçaram ao mesmo tempo sobre a
mesa, o matiz do luar naquela noite dava ao mármore uma
coloração vermelha. O calor que fazia não era típico de um
final de agosto, e a brisa que soprava sobre o balcão era
quente e seca como o siroco que algumas vezes chegava
com força da África. Cláudio às vezes se perguntava se
Plínio, o grande enciclopedista, não estava apenas
lisonjeando-o ao solicitar seu conhecimento especializado
sobre a Grã-Bretanha, um triunfo sem valor, se se podia
considerá-lo como tal. Cláudio havia estado lá, é claro, tinha
se livrado das ondas geladas, transportado por um elefante
treinado para combate, pálido e trêmulo, não por medo do
inimigo, mas aterrorizado de que pudesse ter uma tontura e
cair, provocando desonra para o nome de sua família. No
entanto, a Grã-Bretanha era a sua única façanha imperial
heróica, consistia no seu único triunfo e ele tinha se
dedicado a escrever uma história da província dos primeiros
tempos. Tinha lido tudo o que havia para ler sobre o assunto,
desde o diário do antigo explorador Píteas, o primeiro a dar a
volta na ilha, até os horríveis relatos sangrentos de algumas
tribos selvagens, que tiravam a cabeça de seus inimigos
como troféu, história que seus legionários extraíram dos
druidas antes que estes fossem executados. E ele a tinha
encontrado, a princesa de uma família nobre, a moça que
Sibila lhe havia dito para procurar, aquela que seria a rainha
guerreira.

- Diga-me - Cláudio falou repentinamente. - Você viu meu
pai em um sonho?
- Foi por isso que escrevi minha Histórias das Guerras
Germânicas - replicou Plínio, repetindo a história que
contara para Cláudio várias vezes antes. - Foi quando eu
estava estacionado no Reno, comandando um regimento de
cavalaria. Acordei uma noite e um fantasma estava parado
perto de mim, um general romano. Era Druso, eu juro. O
seu venerado pai. Ele estava me obrigando por compromisso
a defender sua memória.
- Ele morreu antes mesmo de eu conhecê-lo. - Cláudio
olhou de soslaio para o busto de seu pai na sala, depois
apertou as mãos com angústia. – E envenenado, como meu
querido irmão Germânico. Se pelo menos eu tivesse sido
capaz de viver à altura de seu legado, de conduzir as legiões
como Germânico, de ganhar a confiança dos homens.
- Mas você o fez - disse Plínio, olhando ansioso para
Cláudio. - Lembre-se da Grã-Bretanha.
- Eu lembro. - Cláudio curvou os ombros e sorriu abatido. -
Este é o problema. - Começou a mexer numa moeda na
mesa, uma antiga moeda romana de prata com seu retrato
nela, virando-a repetidas vezes. Era um hábito nervoso que
Plínio o havia visto repetir com muita freqüência, mas ele a
deixou escapar de seus dedos e ela rolou em direção aos
manuscritos perto da porta. Cláudio suspirou irritado e
pareceu querer levantar, mas depois afundou-se na cadeira e
olhou melancolicamente para suas mãos. - Eles construíram
um templo para mim na Grã-Bretanha, você sabe. E estão
construindo um anfiteatro agora, você sabia? Em
Londinium. Eu o vi quando viajei incógnito neste verão,
quando fui até a tumba dela.
- Não me conte sobre isto novamente, Princeps, por favor -
disse Plínio. - Isto me provoca pesadelos. E Roma? Sua
realização em Roma? Você construiu muitas coisas
maravilhosas, Cláudio. O povo se sente agradecido.
- Não que alguém vá vê-las - disse Cláudio. - Elas são todas
subterrâneas, debaixo da água. Eu lhe contei sobre o meu
túnel secreto debaixo do monte Palatino? Bem debaixo de
minha casa. Apolo ordenou-me construí-lo. Eu resolvi o
enigma com as folhas, na gruta da Sibila. Deixe-me ver se
consigo lembrá-lo.
- E Judéia - disse Plínio rapidamente. - Você proporcionou
uma tolerância universal para os judeus, através do império.
Você deu para Herodes Agripa o reino da Judéia.
- E depois ele morreu - murmurou Cláudio. - Meu caro
amigo Herodes Agripa. Mesmo ele foi corrompido por
Roma, por meu desprezível sobrinho Calígula.
- Você não teve escolha - continuou Plínio. - Não tendo
ninguém para substituir Herodes, você precisou fazer de
Judéia uma província.
- E deixá-la ser governada por oficiais venais e vorazes.
Afinal, Cícero chamou a atenção, um século atrás,
acautelando sobre a administração na província. As lições da
história - Cláudio acrescentou amargamente. - Veja como eu
as aprendi.
- A revolta judaica era inevitável.
- Irônico, não é? Quinze anos depois que Roma concede
tolerância universal para os judeus, ela mesma faz tudo o que
pode para erradicá-los da face da Terra.
- Os deuses assim o desejaram.
- Não eles não quiseram. - Cláudio tomou um longo gole
segurando o copo com mãos trêmulas. - Lembra-se do
templo sobre o qual me falou em sua última visita? Aquele
que Vespasiano erigiu em Roma? Para o Cláudio deificado.
Eu também sou um deus agora, lembra? Eu sou um deus,
mas este deus não quer a destruição dos judeus. Você está
escutando isto dito por uma autoridade divina.
Plínio enrolou rapidamente o manuscrito e deslizou-o
dentro de uma bolsa de couro ao lado da mesa, longe dos
respingos de vinho, depois, de maneira hesitante, puxou um
outro. - Você vai me contar alguma coisa sobre a Judéia.
Num outro dia?
- Não, agora.
Plínio sentou-se bem equilibrado com um indicador
pontudo de metal sobre o pergaminho, ávido e determinado.
Cláudio olhando atentamente para a escrita no pergaminho,
o espaço vazio no meio. - Diga-me, então. Esta nova seita
judaica. O que você pensa dela?
- Foi por isso que eu o chamei aqui. - Cláudio respirou
profundamente. - Os seguidores daquele ungido. O messias,
o christos. E sei deles por causa da minha visita aos Campi
Flegrei. As pessoas que moram ali são exatamente o tipo de
pessoa que ele quer que o sigam. O aleijado, o enfermo, os
proscritos. Pessoas que almejam a felicidade tão
desesperadamente que seu anseio se torna contagiante,
levando outros a encontrar seu próprio alívio dos fardos da
vida, sua própria salvação.
- Como você sabe de tudo isto?
- Porque eu sou um deles.
- Você é um deles? - Plínio pareceu incrédulo. - Você é um
judeu?
- Não! - Cláudio zombou, a cabeça movendo-se para um
lado com um estalido. - Um aleijado. Um proscrito. Alguém
que foi até ele em busca de cura.
- Você foi ver esse homem? Mas eu pensei que você nunca
tinha viajado para o leste.
- Foi tudo obra de Herodes. Meu querido amigo Herodes
Agripa. Ele tentou me ajudar, me levar embora de Roma.
Havia ouvido falar de um fazedor de milagres na Judéia, um
nazareno, um homem que diziam ser descendente do rei
David dos judeus. Esta foi a minha única viagem para o leste.
O calor tornou tudo pior.
- Então a viagem foi em vão.
- Com exceção de algumas horas num lago. - Cláudio
subitamente exibiu um olhar distante em seus olhos. - A
cidade de Nazaré fica ao lado de uma grande massa de água
no interior do país, o mar de Kineret como a chamam, ou
mar da Galiléia. Não é composto de água salgada, sabe, mas é
realmente um vasto lago, e se situa a vários estádios abaixo
do nível do mar.
- Fascinante. - Plínio estava anotando rapidamente. - Conte-
me mais.
- Ele era um carpinteiro, um condutor de barco. Herodes e
eu, juntamente com nossas mulheres, saímos com ele em
seu barco, pescando, bebendo vinho. Eu estava com a
minha amada Calpúrnia, longe das garras de minha mulher.
Éramos todos mais ou menos da mesma idade, homens e
mulheres jovens, e eu até constatei uma exuberância que
pensava que nunca poderia experimentar. Derramei vinho
no lago e ele brincou sobre transformar água em vinho e
pescar o peixe daquele jeito.
- Mas não houve milagre.
- Depois de pescar nos sentamos na praia até o sol se pôr.
Herodes se tornou impaciente, e foi para a cidade em busca
de prazer. O nazareno e eu ficamos sozinhos.
- O que ele disse?
Ele disse que eu devia suportar minha desgraça, que ela me
protegeria e me impulsionaria para uma grandeza que eu mal
poderia imaginar. Eu não tinha idéia do que ele estava
falando, para mim, Cláudio o aleijado, o embaraçoso
sobrinho do imperador Tibério, quase não tolerado em
Roma, escondido e ao qual era negado um cargo público
enquanto todos os outros jovens encontravam glória com o
comando das legiões.
- Ele viu um erudito e um futuro imperador - murmurou
Plínio. - Ele conhecia o seu destino, Princeps. Ele era um
homem sagaz.
- Não acredito em destino. E lá vem você novamente.
Princeps.
Plínio rapidamente dirigiu-se a ele novamente. - E o que
aconteceria com o próprio futuro do homem? O nazareno?
- Ele falou do seu futuro. Disse que um dia desapareceria no
deserto, então o mundo todo chegaria a conhecê-lo. Eu o
adverti para não ser subjugado pela trama pegajosa daqueles
que desejariam explorá-lo e enganá-lo. Este foi o meu
conselho para ele. Nazaré era um lindo lugar fora do
caminho, e eu não sei se ele percebia então o que os
homens são capazes de fazer. Duvido que ele jamais tenha
visto uma crucificação.
- E Herodes Agripa?
Herodes ainda estava conosco quando o nazareno disse que
não queria ter nem intermediários nem intérpretes. Herodes
usava uma palavra grega para eles, apóstolos. Herodes era
um homem impassível e objetivo, um companheiro
querido. Ele não tinha interesse nas visões do nazareno, mas
podia ver que eu tinha ficado abalado, e estava orgulhoso de
mim. Herodes resolveu que, se chegasse ao poder, toleraria
o nazareno.
- Mas esse homem foi executado, não é? - disse Plínio.
- Crucificado em Jerusalém. No último ano do reinado do
meu tio Tibério. O nazareno havia me dito que iria oferecer
a si mesmo como um sacrifício. Se ele realmente previu sua
própria execução, sua crucificação, é um outro assunto. O
homem que eu encontrei não desejava morrer. Estava cheio
de alegria de viver. Mas nós falamos sobre as antigas lendas
de sacrifício humano entre os semitas, os judeus. Ele
conhecia sua história, como atingir seu povo. Acho que o
sacrifício que ele tinha em mente era simbólico.
- Fascinante. - murmurou Plínio distraidamente. - O mar de
Kineret, você disse? Não o mar Morto? Este mar é
notavelmente salgado, eu creio. - Ele estava escrevendo no
último espaço estreito que havia deixado em seu manuscrito,
mergulhando sua pena num pote de tinta que tinha colocado
ao seu lado. - Isto vai constituir um esplêndido acréscimo ao
meu capítulo sobre a Judéia. Obrigado, Cláudio.
- Espere. Há mais coisas. - Cláudio levantou-se e mancou
oscilando até a estante onde a biblioteca de Filodemo
estivera, empurrando para o lado os poucos manuscritos que
restavam no meio da estante e alcançando um esconderijo
escuro atrás. Ele voltou cambaleando até a mesa, sentou-se
pesadamente e passou para Plínio um pequeno tubo de
madeira, para guardar manuscritos.
- Aqui está - Cláudio arquejou. - Isto é o que quero que fique
com você.
- Acácia, eu não deveria me surpreender. - Plínio aspirou o
odor da madeira. - O que os judeus chamam sittim, a árvore
mirrada que cresce ao longo das costas do leste. - Ele tirou a
rolha do tubo e procurou cuidadoso dentro dele, tirando um
pequeno manuscrito de cerca quadrado de trinta
centímetros de lado. Ele amarelecera com o tempo, embora
não tanto como os manuscritos em papiro de Filodemo, e
um pouco da tinta havia cristalizado e manchado a
superfície. Plínio segurou a folha perto do nariz e aspirou a
tinta. - Provavelmente não é sulfato - ele murmurou. -
Embora seja difícil dizer, há muito enxofre no ar hoje em
dia.
- Você também o sente? - perguntou Cláudio. - Pensei que
fosse só eu, trazendo-o de volta de minhas visitas aos Campi
Flegrei.
- Betume. - Plínio cheirou a tinta de novo. - Betume, sem
dúvida alguma.
- Isto faz sentido - disse Cláudio. - Um alcatrão oleoso se
ergue para a superfície ao redor de todo o lago de Kineret.
Eu o vi.
- Realmente? - Plínio escreveu uma nota na margem do
texto. - Fascinante. Você sabe que eu venho fazendo
experiências com tinta? Meu administrador alexandrino
enviou-me alguns galhos excelentes, cortados de uma
espécie de árvore na Arábia. Você sabia que elas são
formadas artificialmente por insetos minúsculos que exalam
o fel? É muito extraordinário. Eu os esmago e misturo com
água e resina, depois adiciono ferro e sais de enxofre que
encontro nas praias de Misenum. Isto dá uma tinta
maravilhosa, uma cor preto-azeviche e que não borra. Eu
estou escrevendo com ela agora. Dê uma olhada. Muito
melhor do que este material inferior, fuligem oleosa e cola
de pele animal. Não deveria me admirar. Eu gostaria que as
pessoas não a usassem. Seja o que for este escrito, temo que
ele não dure tanto tempo como os escritos bombásticos de
Filodemo.
- Este manuscrito foi tudo que encontrei. - Cláudio tomou
um gole de vinho e limpou a boca com as costas da mão. -
Usei quase toda a minha tinta que levei na viagem para o
leste.
- Você escreveu isto?
- Eu forneci o papel, e aquela preparação que é aceita como
tinta.
Plínio desenrolou o papiro e o alisou sobre um tecido que
havia colocado sobre a desordem pegajosa da mesa. O papiro
estava coberto com uma bela escrita, nem grego nem latim,
linhas fluentes com singular talento artístico, compostas
com mais cuidado do que seria o caso para alguém
acostumado a escrever com freqüência. - O nazareno?
Cláudio contraiu-se. - No final do nosso encontro, à margem
do lago naquela noite. Ele queria que eu levasse embora o
manuscrito para mantê-lo a salvo até uma época adequada.
Você lê aramaico?
- É claro. Você me ensinou com habilidade a linguagem
fenícia, e creio que elas são similares. - Plínio examinou
cuidadosamente o escrito. No final havia um nome. Ele leu
rapidamente as linhas imediatamente acima. - Ah, eu
percebo.
- Deixe-o de lado - disse Cláudio, estendendo o braço e
agarrando o pulso de Plínio. - Mantenha-o em segurança, o
lugar mais seguro que puder encontrar. Mas transcreva
aquelas linhas finais em sua História natural. Agora é
chegado o tempo.
- Você fez cópias?
Cláudio olhou para Plínio, depois para o manuscrito, e
subitamente sua mão começou a tremer. - Olhe para mim. O
paralítico. Nem posso escrever meu próprio nome. E para
fazer uma cópia disto eu não confio em copista, nem mesmo
Narciso. - Ele levantou-se, pegou o manuscrito e foi até um
nicho escuro repleto com folhas de papiro e antigas tabuletas
de cera ao lado da estante de livros, depois com dificuldade
ajoelhou-se dando as costas para Plínio. Tateou de maneira
desajeitada durante alguns minutos, levantou-se e voltou-se,
com um recipiente cilíndrico de pedra em suas mãos. - Estes
vasos vêm de Sais no Egito, você sabe disse ele. - Calpúrnio
Piso os roubou do Templo de Neith quando saqueou o local.
Aparentemente, eles estavam repletos com antigos
manuscritos egípcios antigos, escritos com hieróglifos, mas
ele os queimou todos. O velho tolo. - Colocou o jarro de
lado, depois pegou uma travessa de bronze com alças que
continha uma substância preta e segurou-a sobre uma vela,
com as mãos sem vacilar. O ar se encheu com uma incrível
fragrância aromática, que por um breve instante disfarçou o
enxofre. Colocou a travessa de lado novamente, pegou uma
espátula de madeira e espalhou a resina ao redor da tampa do
recipiente, deixou-a esfriar por um momento, e depois
entregou o cilindro para Plínio. - Aí está. Ele está selado,
como eu fui instruído nas folhas, de acordo com o augúrio
divino.
- Este documento - persistiu Plínio. - Por que é tão urgente?
- É porque o que ele predisse aconteceu. - Cláudio
estremeceu novamente, agarrando de maneira ostensiva a
mão para fazê-la parar de tremer. - O nazareno conhecia o
poder da palavra escrita. Mas ele disse que nunca mais
escreveria novamente. Disse que um dia sua palavra viria a
ser considerada como uma espécie de expressão sagrada.
Disse que seus seguidores pregariam sua palavra como um
mantra divino, mas o tempo iria distorcê-la e algumas
pessoas procurariam usar sua versão das palavras para seus
próprios fins, para se promover no mundo dos homens. Ele
estava rodeado por iletrados em Nazaré. Queria que um
homem erudito ficasse com sua palavra escrita.
- As palavras escritas de um profeta - murmurou Plínio. -
Usualmente, esta é a última coisa que um clero deseja. Ela os
priva de trabalho.
- É por isso que a absurda Sibila fala por enigmas. - Cláudio
disse, excitado. - Apenas os adivinhos podem interpretar sua
palavra. Que absurdo.
- Mas por que eu? - insistiu Plínio
- Porque eu não posso publicar isto. Supõe-se que eu morri
um quarto de século antes, lembra-se? Mas, agora que a sua
História natural está quase terminada, a publicação é
perfeita. Você tem autoridade. As pessoas irão ler seu livro
por toda parte. O seu trabalho é um dos maiores jamais
escritos, e irá sobreviver Roma em muito. Uma fama imortal
aguardará aqueles cujos feitos são registrados por você.
- Você me lisonjeia, Princeps. - Plínio inclinou-se
visivelmente satisfeito. - Mas eu ainda não entendo
completamente.
- O nazareno disse que primeiro suas palavras necessitariam
de outros para pregá-las. Mas chegaria um tempo em que as
pessoas estariam prontas para receber sua palavra
diretamente, quando haveria suficientes convertidos pela
palavra para espalhá-la de um para outro, quando poderiam
dispensar os professores. Ele disse que esse tempo chegaria
enquanto eu estivesse vivo. Ele disse que eu saberia quando.
- Um concilium - murmurou Plínio. - Eles estão formando
um concilium, um clero. Era sobre isto que ele estava
advertindo.
- Nos Campi Flegrei. Eles usam esta exata palavra.
Concilium. Como você sabe?
- Porque eu a ouvi falada entre os meus marinheiros em
Misenum.
- Eu lhe contei sobre aqueles nos Campi Flegrei, os
seguidores de christos - continuou Cláudio. - Cada vez mais
gente está indo para a congregação de fiéis, o concilium. As
pessoas já estão falando sobre um kyriakum boma, uma Casa
do Senhor. Já há discordância, já existem facções. Alguns
dizem que Jesus disse isto, outros, aquilo. Eles já estão
falando por enigmas. Está se tornando sofisma, como em
Filodemo, como com a Sibila. E há homens que chamam a si
mesmos de padres, patres.
- Padres - Plínio murmurou. - Mais propriamente, homens
entre os quais nenhum sabia do que sabemos agora.
- Enquanto eu ainda era imperador de Roma, um deles veio
aqui, um apóstolo judeu da cidade de Tarso chamado Paulo.
Eu estava disfarçado, indo fazer uma de minhas visitas a
Sibila, e ouvi-o falar. Ele encontrou seguidores nos Campi
Flegrei, muitos que ainda permanecem lá hoje em dia. No
entanto, nenhuma dessas pessoas conhecia o nazareno, nem
mesmo Paulo, nenhuma delas o tocou como eu fiz. Para
elas, o homem que eu conheci já era uma espécie de deus. -
Cláudio fez uma pausa, depois olhou atentamente para
Plínio. - Este manuscrito deve ser preservado. Ele será sua
derradeira influência, pelo que você escreve na História
natural.
- Eu o manterei a salvo.
- E o pior. - Subitamente Cláudio abaixou o olhar
desesperado. - A papoula me faz falar, faz minha mente
divagar, me faz dizer coisas das quais nunca me lembro em
seguida. Eles sabem quem eu sou. Cada vez que eu saio
agora, eles parecem aparecer saindo da névoa, procurando
me alcançar.
- Você deve ser mais cuidadoso, Princeps - murmurou
Plínio.
Eles virão aqui. Todo o trabalho de minha vida, todos os
meus manuscritos. Eles destruirão tudo. É por isso que
preciso dá-lo a você. Não confio em mim.
Plínio pensou durante um instante, depois pegou o
manuscrito da História Natural que tinha estado escrevendo
e colocou-o na prateleira de livros. - Eu voltarei para buscar
este manuscrito amanhã. Estará seguro aqui por uma noite, e
eu vou acrescentar mais coisas sobre a Judéia, qualquer coisa
a mais que você puder me contar. Eu voltarei. Há mais
alguém que eu preciso visitar aqui ao entardecer. Talvez até
mesmo esta noite. Tenho estado desejando por ela há muito
tempo. Quer se juntar a mim?
- Algumas vezes eu me utilizo delas. Mas, nestes dias, penso
cada vez mais em minha querida Calpúrnia. Tais prazeres
fazem parte do passado para mim, Plínio.
- Hoje vou pegar minha galera rápida e ir direto para Roma -
disse Plínio. - Estarei de volta pela manhã. Depois que
encontrá-lo novamente, farei o mesmo acréscimo sobre a
Judéia em minha versão principal, depois vou enviá-la para
os escribas de Roma copiarem - ele murmurou, metade para
si mesmo. - A História Natural ficará pronta por fim. A
edição final. A menos que você possa me contar mais coisas
sobre a Grã-Bretanha. - Pensou durante um momento,
tamborilando os dedos sobre a mesa, depois bateu de leve no
cilindro que Cláudio lhe dera e colocou-o numa bolsa sob
sua toga. - E acho que conheço o lugar exato para guardar
isto. - Pensou por mais um momento, tirou o manuscrito da
prateleira, colocou-o sobre a mesa, pegou o indicador
pontudo de metal que usava para escrever e escreveu
algumas linhas, novamente pensou por um momento,
borrou as linhas com o dedo, depois fez uma nota na
margem. Cláudio observava, e resmungou sua aprovação.
Plínio deixou as duas extremidades do manuscrito se
enrolarem até se encontrarem e o recolocou rapidamente na
prateleira, experimentando uma necessidade súbita de ir
embora. Naquele momento, ouviu-se um som de pés se
arrastando na via de acesso, algo que poderia ser uma
pancada, e apareceu um velho inclinado, vestido com uma
simples túnica e carregando dois mantos de lã.
- Ah, Narciso - disse Cláudio. - Eu estou pronto.
- Você vai até a Sibila? - perguntou Plínio.
- A última vez. Eu prometi.
- Então uma última coisa, Princeps.
- Sim?
- Eu faço isso por você como amigo, e como companheiro
historiador. É o meu trabalho apresentar os fatos como eu os
conheço, e não esconder nada.
- E...?
- Você? Por que é tão importante para você? Esse nazareno?
- Eu sou muito leal aos meus amigos. Você sabe disso. E ele
era um deles.
- Meus marinheiros falam de um reino do céu na terra, que
pessoas com bondade e compaixão podem encontrá-lo.
Você acredita nisto?
Cláudio começou a falar, hesitou, depois olhou diretamente
para o rosto de Plínio, os olhos úmidos e subitamente
marcados com sulcos pelos anos. Ele estendeu o braço e
tocou o de seu amigo, depois deu um pequeno sorriso. -
Meu caro Plínio. Você se esquece de que eu sou um deus?
Os deuses não necessitam de céu.
Plínio sorriu de volta, e inclinou-se. - Princeps.

CAPÍTULO 4

Jack e Costas ficaram suspensos sem peso na água oito
metros abaixo do barco Zodiac ao sudeste da Sicília. Seu
equipamento refletia a luz do sol que brilhava até a base do
despenhadeiro trinta metros abaixo. Jack estava flutuando a
alguns metros do posicionamento, mantendo flutuabilidade
com a sua respiração e observando a cena extraordinária em
cima. O Lynx, helicóptero do Seaquest tinha chegado alguns
minutos antes, e o fluxo de ar da hélice inclinada criava um
halo perfeito ao redor da silhueta do bote. Através do túnel
de calmaria no meio, Jack podia ver as formas oscilantes dos
dois mergulhadores substitutos que tinham sido baixados
para proporcionar um back-up de segurança se algo desse
errado. Jack podia sentir a vibração, o tamborilar da hélice
na água, mas o ruído ensurdecedor do motor era abafado
pelo seu capacete e os fones de ouvido para comunicação.
Ele tinha ouvido Costas dando instruções para os
mergulhadores que iam mergulhar, uma verificação
complexa que parecia passar por todo o estoque de
equipamentos da IMU.
- Ok, Jack - disse Costas. - Andy disse que estamos prontos
para partir. Só quero conseguir que o pessoal da logística vá
para o Seaquest na hora em que a atividade começar.
Sua voz soava curiosamente metálica, através do
intercomunicador, um resultado do modulador escolhido
para calcular os efeitos do hélio na mistura de gases sobre a
voz. Jack moveu-se ereto e bateu as nadadeiras em direção
ao posicionamento. O par de mangueiras onduladas do seu
regulador o fez sentir-se como um mergulhador dos dias de
Cousteau, mas a semelhança terminava aí. Quando se
aproximou de Costas, lançou um olhar crítico para o console
amarelo em suas costas, sua parte externa de forma curva
continha o rebreather de circuito fechado com os cilindros
de oxigênio e trimix (uma mistura de nitrogênio, oxigênio e
hélio) necessários para o mergulho. As mangueiras
ondulantes conduziam para um capacete e uma máscara que
cobria o rosto todo, o que permitia que eles respirassem e
falassem sem o estorvo de um bocal.
- Lembre-se de minha instrução específica - disse Costas. -
Luzes apagadas, a menos que encontremos algo. Assim que
os nossos olhos se acostumarem com a escuridão, teremos
um maior alcance de visão para localizar uma elevação
indicativa de naufrágio do que temos com o cone de luz de
uma headlamp. Profundidade máxima, oitenta metros;
tempo máximo até o fundo, vinte e cinco minutos. Podemos
ir mais fundo, mas não quero arriscar até que o Seaquest
esteja na posição e a câmara de recompressão ligada. E
lembrem-se de seu equipamento de emergência. - Ele
apontou para o regulador octópode que podia ser mantido
dentro do capacete se o rebreather funcionasse mal,
estabelecendo uma passagem secundária para o
"counterlung" e injetando gás diretamente do cano para os
cilindros.
- Recebido e entendido. Você é o mergulhador chefe.
- Eu quero que você lembre disso na próxima vez que você
vir o tesouro brilhando no fundo do abismo. Ou dentro de
um iceberg. - Costas pressionou um controle em seu
computador de mergulho e depois olhou atentamente para
Jack através do visor. - Só uma coisa antes de partirmos.
- O que é?
- Você disse que qualquer coisa que diga respeito à vida de
Jesus é como poeira de ouro. As pessoas devem ter estado
procurando pelo navio naufragado de São Paulo desde que
existe o mergulho, mesmo antes de Cousteau. Por que nós?
- Isso foi o que você disse sobre a Atlântida. Algumas
chances auspiciosas e um pouco de pensamento lateral. Isso
é tudo que nós sempre necessitamos.
- E um pouco de ajuda de seus amigos.
- E um pouco de ajuda de meus amigos. - Jack pegou a
válvula de descarga em sua jaqueta de flutuação. - Pronto
para partir?
- Pronto para ir.

Segundos depois, Costas estava colidindo no fundo,
abordando o mergulho da sua maneira costumeira, como se
estivesse atravessando as cataratas do Niágara em uma
barrica. Jack o seguiu de maneira mais graciosa, seus braços e
pernas estendidos como alguém que salta de pára-quedas,
um pouco embriagado pela falta de peso e o panorama que
se abria debaixo deles. Era exatamente como ele se
lembrava, cada erosão e cume da base do despenhadeiro
estavam gravados em sua mente desde vinte anos atrás,
desde as horas passadas medindo e registrando, passando
rapidamente pela planta do naufrágio e examinando onde
escavar em seguida. Costas tinha razão sobre a tecnologia. A
arqueologia debaixo d'água tinha avançado rapidamente nas
últimas duas décadas, como se a física tivesse avançado
desde Marie Curie até os aceleradores de partículas em uma
única geração. Antes, as medições eram feitas
meticulosamente à mão; agora havia telêmetros a laser e
fotogrametria digital, que usava veículos operados por
controle remoto no lugar de mergulhadores. Aquilo que
levava meses podia agora ser conseguido em questão de dias.
Com a nova tecnologia de mergulho, profundidades maiores
se tornaram acessíveis, profundidades que trouxeram novos
limites, novos limiares de perigo. Os custos permaneciam os
mesmo, os riscos eram ainda maiores. Jack estava sempre
esticando, empurrando adiante os limites de exploração,
mas, antes de comprometer outros para seguir atrás de si, ele
precisava ter certeza de que o preço valia a pena.
Diretamente abaixo ele viu onde Ben e Andy tinham
ancorado a linha de posicionamento no pequeno vale
formado por erosão onde havia encontrado a sonda sonora,
e dali ele viu uma corda oscilante coberta com alga
estendendo-se e descendo pelo declive para dentro das
profundezas. Era a linha que ele deixara no seu último
mergulho e que ficara ali durante todos aqueles anos, que
ainda estava exatamente onde a deixara, como se o local
estivesse esperando por ele, inacabado. Costas também a
vira, e de alguma forma fez uma parada antes de se mover
usando um escavador dentro do leito do mar. Esperou Jack
juntar-se a ele, depois, juntos, moveram lentamente as
nadadeiras lado a lado seguindo a linha até alcançarem o
platô, na profundidade de cinqüenta metros, o ponto mais
distante onde ânforas tinham caído do naufrágio da
embarcação romana. Enquanto lidavam pelo platô, uma
forma como um vergalhão apareceu abaixo deles no lodo,
com cerca de dois metros de comprimento e um orifício
apenas visível no centro.
- Meus velhos amigos. - Jack puxou o controle na lateral do
seu capacete para fazer sua voz soar normal. - Esta é a haste
da âncora de chumbo romana que eu vi em meu último
mergulho, e deveria haver uma outra idêntica cerca de
cinqüenta metros adiante, na extremidade do platô. Isto é
exatamente o que se deve esperar ver de um navio que
utiliza duas âncoras para se manter a pouca distância da
praia, uma lançada em seguida à outra. Podemos usá-las para
obter uma posição da bússola em relação a um ponto
determinado.
- Recebido e entendido.
Nadaram ao longo da corda e logo encontraram uma
segunda haste, exatamente como Jack a lembrava, entalada
numa fenda acima de um declive. De lá Jack podia ver a
corda decrescendo gradualmente, sua extremidade
pendurada sobre um cimo, o lugar mais profundo onde
ousara chegar em seu mergulho de vinte anos atrás. Era
como o final das cordas de segurança dos mergulhadores que
ele tinha seguido nas cavernas, relíquias perturbadoras que
testemunham um extraordinário esforço humano e que
incita outros a ultrapassá-los. Sem parar, eles seguiram
adiante, e desceram para a base do despenhadeiro rochoso
onde o leito do mar se tornava um deserto de areia sem
traços característicos. Na extremidade, Jack viu um cinturão
com cartuchos corroídos usados para uma metralhadora e
disposto sobre um pente de balas maiores para um canhão
antiaéreo. Ele se lembrava de ter visto isso antes, relíquias da
Segunda Guerra Mundial. Costas reduziu a velocidade, e
estendeu a mão para a válvula de descarga em seu
compensador de flutuação.
- Nem pense nisto - disse Jack.
- Só estava olhando - disse Costas, esperançoso e nadou
afastando-se. Atrás deles, a areia parecia se estender até o
infinito, um deserto azul-cinzento sem nenhum horizonte
visível. Cerca de cinqüenta metros adiante, nadaram acima
de um afloramento de rocha, depois viram uma ondulação
onde a areia se erguia formando uma duna baixa. À medida
que se aproximavam a ondulação parecia cada vez menos
natural, como uma criatura do mar espreitando debaixo do
sedimento, e estendia-se por dez metros ou mais em
qualquer direção a partir de uma corcova central com outra
cumeeira seguindo a noventa graus através dela. Costas
inspirou de maneira audível. - Meu Deus, Jack. É uma
aeronave!
- Eu estava me perguntando se tínhamos visto uma destas -
murmurou Jack. - É um planador de ataque, um Horsa
Britânico. Veja, você pode perceber onde as asas altas
desmoronaram sobre a fuselagem. Naquela noite em 1943,
quando a SAS (Special Air Service) apareceu de repente
sobre os italianos, os britânicos também enviaram uma
brigada aerotransportada. Esse foi o único grande erro em
toda a invasão da Sicília, e foi bem horrível. Os planadores
foram soltos muito afastados da praia contra um vento
contrário, e dúzias deles nunca conseguiram chegar até a
praia. Centenas de rapazes se afogaram. Vai haver corpos lá
dentro.
- Então, este é um lugar em que definitivamente não quero
ir - Costas disse baixinho.
- Acima da linha d'água, algumas vezes acreditamos que as
antigas guerras nunca aconteceram, tudo está limpo e
sanitizado, mas, debaixo d'água, continua tudo aqui, logo
abaixo da superfície. Isto é bem assustador.
- Profundidade, setenta e cinco metros - Costas estava bem
concentrado em seu computador, e eles nadaram por cima
da última forma fantasmagórica na areia. - O tempo na
frente não está parecendo muito bom. Dez minutos no
máximo, a menos que queiramos realmente fazer mais do
que parece sensato.
- Recebido e entendido.
- Suponho que não estamos procurando uma cruz gigante
saindo do leito do mar.
Jack sorriu através do seu visor. - Eu gostaria que fosse tão
fácil, Nos nem sabemos se naquela época a cruz já era um
sinal cristão. Estamos falando de vinte, talvez vinte e cinco
anos depois da crucificação. Muitos dos símbolos cristãos
familiares, a cruz, o peixe, a âncora, a pomba, as letras gregas
Qui-Rô, só começaram a aparecer no século seguinte, e
mesmo então eram apenas usados secretamente. A
arqueologia do cristianismo inicial é incrivelmente
enganosa. E lembre-se, supunha-se que Paulo fosse um
prisioneiro, sob a guarda romana. Dificilmente ele estaria
andando com relíquias.
Jack olhou para o seu aferidor de profundidade. Setenta e
sete metros. Ele podia sentir o compensador introduzindo
continuamente ar dentro do seu macacão de mergulho
enquanto ele descia, neutralizando a pressão da água. Ele se
sentia alegre, extraordinariamente consciente de uma
profundidade onde ele estivera a um passo da morte vinte
anos antes. Ele conhecia muito bem o efeito entorpecedor
da narcose por nitrogênio, o gosto denso e xaroposo do ar
comprimido abaixo de cinqüenta metros, dentro da zona de
perigo. Respirar a mistura de gás era como beber vinho sem
álcool, o máximo de expectativas, mas sem excitação. Ele
percebeu a ausência da narcose e que a sua mente estava
super-compensando. Provocava uma euforia de um tipo
diferente descer até esta profundeza com a cabeça clara. Ele
se sentia intensamente vivo, concentrado, sua lucidez
aguçada pelo perigo logo adiante, aproveitando o momento
como se fosse um mergulhador novato.
- Eles devem ter ficado sem poder pensar por causa da
narcose - disse Costas.
- Os rapazes de Cousteau?
- Não posso acreditar que tenham chegado até esta
profundidade.
- Eu posso - replicou Jack. - Mergulhei com os últimos
daquela geração, os sobreviventes. Franceses valentões, ex-
integrantes da Marinha. Tomavam um trago de vinho antes
de mergulhar para dilatar os vasos sanguíneos, e a última
inspiração antes de colocar o regulador era aquela que
enchia o pulmão com Gauloise. Descer profundamente era
como uma competição para ver quem bebia mais. O homem
de verdade poderia competir.
- Competir e morrer.
E então Jack as viu. Primeiro uma, depois outra. As formas
inequívocas das ânforas de cerâmica, meio enterradas e
escondidas no sedimento. A trilha conduzia de volta para a
face do despenhadeiro, ao caminho por onde tinham vindo,
em direção reta, mas as formas estavam muito incrustadas
para ser identificadas. Podiam ser gregas, podiam ser
romanas. Jack precisava de mais. Olhou para o aferidor de
profundidade. Oitenta metros. Nadou por cima da última
forma. Costas atrás dele. Repentinamente estavam em outro
despenhadeiro, só que desta vez não havia banco de areia
debaixo deles, só uma escuridão preta como tinta. Tinham
alcançado o limiar do desconhecido, um lugar tão proibido
quanto o espaço cósmico, o início de um declive que descia
através de vastas gargantas profundas e cadeias de
montanhas, ao mais profundo abismo do Mediterrâneo, mais
de cinco mil metros abaixo. Era o fim do caminho. Jack
deixou a força cinética carregá-lo alguns metros por sobre a
extremidade do abismo, sua mente vazia diante da
imensidão diante deles.
- Não faça isto, Jack. - Costas falou calmamente, sua voz
soava distorcida, agora que o nível de hélio havia
aumentado. - Nós podemos voltar com o Anthropod
Avançado para Mar Profundo e examinar as próximas
centenas de metros. Fazer isto de modo seguro.
- Não há indícios suficientes para justificar isso. - A voz de
Jack soava distante, sem emoção, carregada demais para
registrar seus sentimentos. - Os mergulhadores de Cousteau
devem ter tido alguma intenção ao espalhar as ânforas sobre
o banco de areia. Não há maneira de eles terem podido
descer mais fundo, acompanhando o declive. Estamos
situados dentro da zona de morte por ar comprimido. -
Voltou-se lentamente, depois por capricho ligou a headlamp
de seu capacete. Não havia nada a perder agora. O clarão era
ofuscante, e mostrava como estava escuro ao redor deles.
Ele dirigiu o feixe de luz para a face do rochedo, revelando
trechos ocasionais em vermelho e laranja que ficavam
invisíveis na luz natural. Dificilmente alguma coisa poderia
viver nesta profundidade. Dirigiu o feixe de luz para além do
limite de visibilidade abaixo, depois recuou de novo.
Bingo.
Uma saliência estreita, oculta, quando vista de cima, pela
cornija do despenhadeiro. Formas em montículos, vinte,
talvez trinta delas, idênticas àquelas que tinham acabado de
ver. Ânforas.
- Achei - disse Jack excitado. - Cerca de dez metros abaixo
de nós.
Costas nadou para perto de Jack, ligou sua headlamp e olhou
atentamente para baixo. - Tenho a impressão de que é um
montículo formado por um naufrágio - murmurou. - Um
pequeno vale arenoso. Seria bom para a preservação.
- Ali deve ser a popa - disse Jack fervorosamente. - A proa
se chocou com o despenhadeiro, a popa flutuou para trás,
deixando cair ânforas por onde ela passa, depois afunda aqui.
É onde devem estar os melhores artefatos, os suprimentos
do navio, os pertences pessoais, as coisas para identificá-lo.
- Você consegue ver qual é o tipo de ânfora?
- De modo algum. Necessito descer até lá.
- Jack, podemos fazê-lo, mas preciso configurar de novo o
perfil do mergulho. É exatamente o que não quero fazer.
Isso nos colocará dentro de um programa de descompressão
muito extenso, antes da chegada do Seaquest e sem nenhum
apoio de retaguarda. Mesmo os mergulhadores com uma
margem de segurança não fazem isto. E só nos restam dez
minutos.
- Qualquer mergulho é um risco - murmurou Jack. - Mas, se
você consegue calcular o risco, pode fazê-lo de maneira
segura. Você acabou de calculá-lo. Isso é o que você sempre
me diz.
- Lembra-se do que você disse sobre toda essa nova
tecnologia de mergulho, sobre ultrapassar o limite? Bem, é
nessa situação que você se encontra agora.
- Eu confio no seu equipamento, mas confie na minha
intuição. Este pode ser o melhor naufrágio de navio que já
descobrimos.
- Poderíamos esperar. Certamente já encontramos
suficientes indícios agora para voltar para cá.
- Poderíamos.
- Eu vou cobrir a sua retaguarda, você cobre a minha.
- O acordo é sempre este.
- Vamos lá.
Desceram juntos pelo declive com Costas reprogramando
seu computador de pulso enquanto Jack movimentava sua
luz sobre os montinhos de ânforas abaixo. Logo antes de
alcançarem a saliência do rochedo ele soltou um grito de
excitação. "Greco-itálico - ele exclamou. - Ânforas Dressel 2
a 4. Olhe, daqui você pode distinguir as altas asas e a parte
angulada em forma de ombro. É do primeiro século d.C.,
ânfora do tipo italiano. Aposto que é de Campânia, perto do
monte Vesúvio. É isto. Encontrei o que precisava. Temos
um naufrágio da primeira metade do século d.C.
- Temos mais nove minutos - disse Costas. - Eu reprogramei
o computador para estes minutos, e podemos usar o tempo
adequadamente. - Ambos desceram e se ajoelharam no leito
do rio ao lado das ânforas, e começaram a fazer uma
varredura no local com suas headlamps. Jack viu outras
formas salientando-se do sedimento debaixo das ânforas,
formas de vergalhões de cerca de um metro de
comprimento. Mergulhou mais profundamente e tirou o
sedimento com a mão, depois desembainhou sua faca e
raspou cuidadosamente. - Exatamente o que pensei - ele
murmurou excitado. - Lingotes de chumbo.
- Este aqui tem letras escritas.
Jack colocou a faca na bainha e nadou até onde Costas
estava, depois limpou o sedimento para ter uma visão mais
clara.

TI.CL.NARC.BR.LVT.EX.ARG.

Durante um momento ficaram em silêncio. - Ah, serei
condenado ao inferno - ele murmurou. - Tibério Cláudio
Narciso.
- Você conhece este sujeito?
- Um escravo do imperador Cláudio. Quando ele foi
libertado, adotou os dois primeiros nomes do imperador,
Tibério Cláudio. Era secretário de Cláudio e tornou-se um
dos seus principais ministros, mas foi supostamente
assassinado por Agripina, a esposa de Cláudio, depois que ela
envenenou seu marido.
- Como isso nos ajuda?
- Os escravos libertos eram os novos-ricos da época. Não
restringidos pelo esnobismo aristocrático podiam investir no
comércio e na indústria. Era exatamente como no século
XIX. Nós já sabemos que Narciso tinha interesse em um
certo número de negócios em Roma, alguns deles bem
confusos. Este lingote mostra o seu caráter astucioso.
- BR significa Grã-Bretanha?
- Sim. LVT era a mina de chumbo de Lutudarum, em
Derbyshire, um dos principais centros de mineração de
chumbo na Grã-Bretanha. EX ARG significa ex argentariis,
relativo aos trabalhos com chumbo prata. Eu o percebi
quando raspei aquele outro lingote.
- Chumbo de alta qualidade - disse Costas. - Produzido com
galena, sulfeto de chumbo, um subproduto da produção da
prata. Poucas impurezas, menos material para oxidar, mais
brilhante. Estou certo?
- Correto. Pela análise dos canos de chumbo em Pompéia,
sabemos que o chumbo da Grã-Bretanha era exportado para
o Mediterrâneo. Isto era exatamente o que se esperava que
um rico proprietário de navio devesse ter a bordo de seu
navio de melhor qualidade, para reparar o revestimento
externo de chumbo no casco do navio. Nossa sonda sonora
estava bastante razoável, não escurecida pela corrosão, e
meu palpite é que ela foi fundida com essa liga metálica em
algum lugar ao longo do caminho.
- Fascinante, mas eu ainda não vejo aonde isso nos conduz.
- A Grã-Bretanha foi invadida pelos romanos em 43 d.C., as
minas de chumbo entraram em operação em torno de 50
d.C. O velho e esperto Narciso deita a mão nelas no
momento mesmo em que foram produzidas e consegue um
contrato lucrativo do mesmo modo que faz hoje um
especulador em mineração. Estes lingotes devem datar do
início dos anos 50. Isso nos aproxima, nos aproxima
bastante, da data mágica para o naufrágio do navio de são
Paulo.
- Entendi.
Houve um estalo no intercomunicador, e depois o som de
um bip em staccato indicando uma mensagem de
revezamento do Seaquest. - Você a pega - disse Jack. -
Preciso me concentrar. - Ele harmonizou o receptor externo
em seu capacete e subiu alguns metros acima do local do
naufrágio, enquanto Costas mergulhava para perto da ânfora
ao mesmo tempo que ouvia a mensagem. Jack direcionou
sua lanterna para a série de ânforas caídas, sabendo que eles
tinham somente mais alguns minutos. Eles tinham
encontrado mais do que esperavam, muito mais, e com uma
grande sensação de alegria ele se deu conta de que a
escavação agora iria adiante. Subitamente, tudo aqui era
sacrossanto, não mais uma região fronteiriça de descoberta,
mas um lugar a ser cuidadosamente analisado, um manancial
inter-relacionado de evidências onde cada aspecto, cada
relacionamento, podia conter vestígios preciosos. Ele
começou a descer novamente para tirar Costas daquela
posição, exatamente quando os três minutos de aviso
começaram a brilhar dentro do seu capacete.
- Oh, oh - disse Costas. - É o seu velho amigo Maurice
Hiebermeyer. Logo quando você achava que ele estava
metido até o pescoço em meio a múmias no Egito, ele sai
repentinamente de um buraco no solo na Itália.
- Ele tem trabalhado com Maria nas ruínas romanas de
Herculano - disse Jack. - Houve um terremoto, e ele está
fazendo uma espécie de escavação de resgate. Eles têm tido
problemas com as autoridades que controlam a parte do
terreno onde estão, então talvez tenha conseguido algum
tipo de acalmada. Ele tem estado me atormentando
persistentemente há meses acerca de um papiro, algo que
tem a ver com Alexandre, o Grande. A última vez em que
ele tentou me pegar foi quando estávamos erguendo aquele
canhão do grande cerco de Constantinopla. Ele realmente
escolhe seus momentos.
- Ele diz que é urgente. Não quer desligar.
- Diga ao oficial do rádio que falarei com Maurice enquanto
fazemos a descompressão.
Houve um som de bipe insistente, e Costas olhou para o seu
computador. - Estamos no amarelo, Jack. Mais dois minutos
no máximo.
- Recebido e entendido. Estou pronto para partir.
- Jack.
- O que é?
- Esta ânfora na minha frente. Ela tem algum tipo de
inscrição sobre ela. Jack estava diretamente acima de Costas
agora, e podia ver claramente as letras pintadas na parte de
trás da ânfora. EGTERRE. - É um infinitivo em latim,
significa "ir". Uma marcação que traduz um padrão de
exportação.
- Não. Não isso. Abaixo disso. Marcações riscadas. - Costas
limpou cuidadosamente o lado da ânfora enquanto Jack
mergulhava para junto dele. - Parece um grande asterisco,
ou talvez uma estrela.
- Também é muito comum - murmurou Jack. - Marinheiros
aborrecidos, passageiros passando o tempo e rabiscando na
cerâmica, jogando jogos. Se aquela foi uma viagem longa e
arrastada vamos encontrar um monte de rabiscos. Mas vou
pedir para os rapazes dos veículos operados por controle
remoto para fotografar isto em sua primeira visita ao terreno.
- Aristarchos - disse Costas lentamente. - Letras gregas.
Posso lê-las.
- Provavelmente um marinheiro - disse Jack, agora com um
tom urgente enquanto olhava para o seu computador. -
Havia muitos marinheiros gregos na época. Provavelmente
um ancestral seu. - De repente ele prendeu a respiração. - O
que é que você disse?
- Aristarchos. Olhe você mesmo.
Jack desceu mais para baixo e olhou atentamente para a
cerâmica. As letras eram seguras, arrojadas, não os rabiscos
grosseiros de um marinheiro. Poderia ser? Ele quase não
ousava pensar. Aristarco de Tessalônica?
- Há uma outra - disse Costas. - Escrita pela mesma mão,
pela aparência. Loukas, eu acho.
A mente de Jack vacilou. Loukas. Lucas. Olhou novamente
para o símbolo rabiscado acima dos nomes, a forma de
estrela. - Eu estava errado - ele disse com a voz rouca. -
Estávamos todos errados.
- O que quer dizer?
- Aquele símbolo. Não é uma estrela. Olhe, a linha vertical
tem um pequeno laço no topo. Trata-se da letra grega R, e o
X é a letra grega Ch. É o símbolo Qui-Rô. Do modo que eles
o usavam no primeiro século. - Jack mal podia acreditar no
que estava dizendo. - As duas primeiras letras da palavra
christos, a palavra grega para Messias - ele sussurrou.
- Eu acho que isso vai melhorar. Melhorar muito - Costas
tinha limpado o sedimento da ânfora debaixo da palavra
Loukas, e um terceiro rabisco apareceu. As letras eram tão
claras como o dia. Ambos ficaram atônitos.
Paulos.
Paulo de Tarso, São Paulo, o Evangelista, o homem que
tinha rabiscado seu nome e os dos seus companheiros neste
cântaro quase dois mil anos antes, debaixo do símbolo
daquele que eles já veneravam como o Ungido, o Filho de
Deus.
Jack e Costas começaram a subir ao mesmo tempo, em
direção ao vislumbre opaco de luz onde o sol brilhava na
superfície, quase cem metros acima. Jack parecia estar em
transe, olhando para Costas sem vê-lo, visualizando um
grande navio de cereais navegando no Mediterrâneo dois
mil anos antes, na época dos césares, levando
inexoravelmente seus passageiros para dentro dos anais da
história.
- Pelo que vejo - Costas disse perturbado, - estamos
trabalhando.

CAPÍTULO 5

Jack levantou o capacete brevemente para aliviar a dor no
pescoço, os seus sentidos atormentados pelo ruído
ensurdecedor da turbina do Rolls Royce bem atrás dele, e
depois puxou o capacete de novo para o lugar certo,
pressionou os protetores de ouvido até que o barulho
amortecesse e o microfone ficasse em posição. Ele estava
fisicamente exausto, mas muito excitado para descansar,
cheio de alegria pela descoberta do naufrágio no dia anterior,
ansiando por retornar para lá, mas agora cheio de
expectativas por um novo prêmio que poderia conseguir
mais adiante. Hiebermeyer só fora capaz de dizer pouca
coisa, mas tinha sido suficiente para Jack saber que era real.
Ele verificou o relógio novamente. Tinham voado em
direção ao norte, no helicóptero Lynx, por mais de uma
hora desde que deixaram a posição do Seaquest antes do
amanhecer, no estreito de Messina ao largo da Sicília, e Jack
tinha posto o piloto automático para mantê-los voando
baixo. O altímetro mostrava uma situação crítica, o que
mantinha Jack acordado. Fazia doze horas desde que tinham
subido à superfície depois do mergulho, e suas correntes
sanguíneas ainda estavam saturadas com excesso de
nitrogênio que poderia se expandir perigosamente se eles
ganhassem maior altitude.
Jack verificou o altímetro novamente, depois desligou o
piloto automático e ocupou-se com os controles manuais e
pedais do helicóptero, girando o Lynx para uma posição de
trinta graus para o nordeste para assumir uma posição
angular em direção à linha da costa. Reativou o piloto
automático e olhou de novo para a imagem que tinha estado
contemplando na tela do computador entre os assentos. Era
uma aquarela em miniatura pintada por Goethe, uma que o
avô de Jack tinha adquirido para a Howard Gallery por volta
de 1920, pintada durante a erupção do monte Vesúvio em
1787. No segundo plano, Goethe pintara um céu cinzento e
sem relevo, e no primeiro plano um luminoso mar amarelo.
No centro havia a massa escura do vulcão, o contorno da
costa abaixo dele fronteado por construções de teto plano
similares aos das antigas cidades romanas soterradas debaixo
do Vesúvio então desenterradas pela primeira vez. A
imagem parecia excêntrica, quase abstrata, no entanto as
listas de vermelho e de amarelo acima do vulcão revelavam
a violenta realidade do evento que Goethe havia
testemunhado. Jack desviou o olhar do painel de vidro de
proteção contra o vento para a enseada à frente deles. Era
como se estivesse vendo uma outra versão da aquarela,
sombras pastel acumulando-se além do horizonte no nascer
do sol, os detalhes misturados e obscurecidos pela camada de
mistura de neblina e fumaça na atmosfera logo abaixo.
No assento do co-piloto Costas tinha estado dormitando e
acordando de vez em quando, mas mudou de posição,
ficando virado para frente quando Jack ajustou o curso. Ele
despertou com um susto quando seus óculos escuros
deslizaram do seu capacete e entalaram no seu nariz.
- Desfrutando da evaporação dos gases? - Jack perguntou
pelo intercomunicador.
- Apenas mantenha-nos abaixo de cento e cinqüenta pés -
Costas replicou com os olhos lacrimejando. - Quero manter
aquelas bolhas de nitrogênio apropriadas e pequenas.
- Não se preocupe. Logo estaremos no solo.
Costas se estirou, depois suspirou. - Ar fresco, espaços
abertos e vazios. É disto que eu gosto.
- Então, você deveria escolher os seus amigos mais
cuidadosamente. - Jack sorriu, depois moveu lentamente o
helicóptero, inclinando o seu nariz, para baixar algumas
centenas de pés. Atravessaram a camada de neblina, e a
miragem se tornou uma realidade. Abaixo deles, o dramático
contorno das ilhas e do continente estavam nitidamente
delineados, vastos espaços de rochas queimadas pelo sol
rodeadas por um mar azul-celeste. Ao leste estava a grande
expansão da cidade e, além dela, um borrão no horizonte,
onde terminava a enseada, a neblina quase escondia uma
presença indistinta debaixo de uma eclosão de laranja onde o
sol estava surgindo acima da montanha do outro lado.
- A baía de Nápoles - disse Jack. - Cadinho da civilização.
- Civilização. - Costas bocejou de modo extravagante, depois
parou. - Deixe-me ver. Aquilo seria corrupção em escala
sísmica, delitos de entorpecentes, a Máfia?
- Esqueça tudo isto e olhe para o passado - disse Jack. - Nós
estamos aqui por causa da arqueologia, não para ser
envolvidos no presente.
Costas bufou. - Esta seria a primeira vez.
- Este lugar era uma das grandes escalas para a difusão de
idéias para a Europa - disse Jack. - A baía de Nápoles foi
onde os gregos se estabeleceram primeiro nos séculos VIII e
IX a.C. quando vieram para o oeste comerciar ferro com os
etruscos, em uma época em que Roma era formada por
apenas algumas cabanas acima de um brejo. Cumas, para
onde o alfabeto foi trazido pela primeira vez para o oeste,
Neápolis, Pompéia, todos esses lugares se tornaram centros
da nova
Grécia, Magna Graecia, expandida pelo comércio e pelo
interior da Campânia com seus ricos solos vulcânicos.
Lembra-se daquelas ânforas de vinho no navio naufragado?
Elas eram daqui. Mesmo depois do domínio romano nos
século III e IV a.C, que tornou este lugar uma espécie de
Costa do Sol para os abastados, a cultura grega permaneceu
forte. As pessoas pensam Pompéia como a quinta-essência
da cidade romana, mas na verdade ela existiu durante
séculos antes da chegada dos romanos e ainda era altamente
cosmopolita em 79 d.C., com as pessoas falando grego e
outros dialetos locais, bem como o latim. E a baía de Nápoles
continuou a ser o primeiro porto a mandar vir todas as coisas
do leste, não apenas as gregas, mas também as do Oriente
Próximo e as do Egito, além de artigos de comércio exóticos,
novos estilos de arte, emissários estrangeiros, novas idéias
em filosofia e religião.
- Muito bem, vou acreditar no que diz - disse Costas. - Um
lugar cheio de acontecimentos. Agora me dê informação
sobre o vulcão.
Jack digitou no teclado do computador e a aquarela de
Goethe foi substituída por uma fotografia em preto e branco
mostrando uma vista distante de um vulcão em erupção. -
Março de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial - disse
Jack. - Nove meses depois que os Aliados desembarcaram na
Sicília, bem lá onde estávamos mergulhando. Alguns meses
depois da libertação de Nápoles, enquanto os aliados ainda
estavam fazendo uma viagem longa e árdua para Roma.
Entre as recentes, a maior erupção do Vesúvio.
Costas assobiou. - É como se os deuses da guerra abrissem as
portas do inferno.
- Foi isso que as pessoas pensaram na época, mas felizmente
ele foi apenas um imenso escapamento de gás e de cinzas e
depois a fenda se fechou. Desde então, não houve nada tão
dramático, embora houvesse um grande terremoto em 1980
que matou milhares de pessoas e deixou outras centenas de
milhares desabrigadas. Há muita preocupação em relação aos
recentes distúrbios sísmicos.
- Três semanas atrás.
- É por isso que estamos aqui.
- E nos tempos antigos? - perguntou Costas. - Quero dizer,
antes da erupção de 79 d.C.?
Jack digitou novamente, e uma outra tela apareceu. - Esta é a
única imagem romana conhecida do Vesúvio, encontrada
em uma parede pintada em Pompéia. Ela é imaginativa, com
o deus do vinho carregado com uvas à esquerda, mas
podem-se ver as montanhas com vegetação fértil e vinhedos
florescendo nos declives. O Vesúvio esteve completamente
adormecido desde a Idade do Bronze, e os romanos só o
conheciam como um local incrivelmente abundante, com
solos ricos que produziam vinhos melhores do que em
qualquer outro lugar. Os indícios estavam ali, para onde nos
dirigimos agora, mas eles não tinham motivo para relacioná-
los com a montanha.
Jack fez o helicóptero realizar um grande arco em direção ao
norte, e Costas olhou atentamente para uma paisagem
deserta. - Que lugar é este?
- Era o que eu queria, que você visse isso antes que
chegássemos a nosso destino. Estamos sobre a costa
nordeste da baía de Nápoles, a cerca de vinte e cinco
quilômetros do Vesúvio. Esta era a única área de extensa
atividade vulcânica no período romano, embora nem
mesmo Plínio tenha feito a conexão com o Vesúvio. Os
Campi Flegrei, os campos de fogo. Ouça isto. É da Eneida, de
Virgílio, o poeta nacional de Roma. Tenho o texto na tela.
Existe uma caverna profunda, acidentada, estupenda e
imensamente ampla, protegida por um lago de água negra e
a floresta escura. Acima deste lago nenhum pássaro pode
passar voando sem dano, tão envenenado é o ar que sai
daquelas mandíbulas e se ergue para a abóbada celeste.
Agora olhe para fora. Aquele é o lago d'Averno, que
significa sem pássaros. Lá adiante você pode ver a cratera
mais ativa em nossos dias, Sulfaterra. Era a isso que Virgílio
se referia. E pela costa você mal pode distinguir a acrópole
coberta de vegetação da antiga Cumas, um dos primeiros
locais onde os gregos se estabeleceram.
- Onde a Sibila foi enforcada.
- Literalmente. De acordo com alguns relatos, ela foi
suspensa em uma gaiola no fundo de sua caverna, nunca
completamente visível e sempre envolta em fumaça.
- A mais alta de todas.
Jack sorriu. - No período romano, os Campi Flegrei eram
uma grande atração turística, muito maior do que agora. A
entrada para o mundo subterrâneo, um lugar que cheirava
fortemente a fogo e enxofre. As pessoas vinham aqui para
ver o túmulo de Virgílio, sepultado ao lado da estrada
proveniente de Nápoles. E a Sibila também ainda estava
aqui. Pelo menos antes da erupção. Augusto a consultava, e
outros imperadores também. Cláudio vinha ver a Sibila - ele
acrescentou.
- Então, os primeiros colonizadores gregos trouxeram a
Sibila com eles?
- Sim e não.
Costas resmungou. - Fatos, Jack. Fatos.
- Supostamente existiam treze sibilas através do mundo
grego, embora as primeiras referências sugiram que elas se
originaram da idéia de uma única profetisa, positivamente
vidente. A localização de Cumas é um dos poucos lugares
em que a arqueologia acrescenta à cena. Nos anos de 1930,
foi descoberta uma extraordinária gruta subterrânea, que era
como os romanos descreviam a Gruta da Sibila. Ela é um
corredor em forma de trapézio de quase cinqüenta metros
de comprimento, iluminado por galerias laterais, terminando
em uma sala retangular, tudo desbastado na rocha. Na
Eneida, de Virgílio, foi nessa caverna que o herói troiano
Enéias consultou a Sibila para perguntar se a colônia troiana
na Itália se tornaria algum dia o Império Romano. E foi lá
que ela o levou para o mundo subterrâneo, para ver seu pai
Anquises.
Costas apontou para a cratera cheia de vapor abaixo deles. -
Você quer dizer os campos de fogo, os Campi Flegrei?
- Provavelmente existiam respiradouros vulcânicos abertos
aqui, na Antiguidade. Se houve algum, ele deve ter sido uma
visão do inferno de Dante - disse Jack. - Esta era a
localização perfeita para a Sibila. Os suplicantes,
provavelmente, eram conduzidos por entre as emissões de
gases produzidas pelos vulcões e a lama fervente, de modo
que deveriam estar tremendo de medo mesmo antes de
chegar diante da caverna.
- Se minha memória não me engana, Enéias era um príncipe
troiano que escapou da Guerra de Tróia, no final da Idade do
Bronze - disse Costas de maneira pensativa. - O que significa
que Virgílio pensava que a Sibila já estava aqui um tempo
antes que os gregos ou os romanos chegassem.
- Toda a mitologia que conhecemos hoje associada com a
Sibila de Cumas era grega, especialmente seu
relacionamento com o deus Apolo. Mas isto pode ter sido o
que os gregos trouxeram com eles, e projetaram sobre uma
deusa ou profetisa que já existia na Itália pré-histórica. Os
gregos e romanos, com freqüência, misturavam seus deuses
com deuses nativos similares, mesmo em locais tão distantes
como a Grã-Bretanha.
- Então, pode ter existido uma divindade feminina muito
mais velha aqui.
- A Katya tem uma teoria acerca disto. Você se lembra da
deusa mãe neolítica da Atlântida?
- Dificilmente poderia esquecê-la. Eu ainda tenho as marcas
das feridas.
- Bem, nós já sabíamos que estátuas de terracota femininas,
corpulentas, estavam sendo idolatradas através da Europa no
final da Idade do Gelo, pelo menos na época dos primeiros
agricultores. Durante anos, os arqueólogos especularam
sobre o culto pré-histórico da deusa mãe, um culto que
transpôs as fronteiras entre tribos e povos. Bem, Katya acha
que a sobrevivência daqueles cultos se deve, sobretudo, a
um sacerdócio poderoso, o homem e a mulher que
conduziram os primeiros agricultores ao oeste, cujos
descendentes preservaram o culto através da Idade do
Bronze até o período clássico. Ela até pensa que os druidas
no nordeste da Europa estavam conectados a eles.
- Eu me lembro - murmurou Costas. - Da Atlântida. Os
feiticeiros com chapéus cônicos. O Senhor dos Anéis.
- A idéia do Gandalf de Tolkien, como o Merlin nas histórias
do rei Arthur, pode em última análise se originar da mesma
tradição - disse Jack. - Homens com poderes supostamente
sobrenaturais que podiam passar de um reino para o
seguinte, que não conheciam fronteiras. Curandeiros,
mediadores, profetas.
Costas olhou novamente para Campi Flegrei. - Parece que
todas as culturas necessitam deles - ele murmurou.
- E a deusa mãe também sobreviveu sob diferentes disfarces.
A deusa grega Ceres, a romana Demeter, Magna Mater, a
Grande Mãe.
- Cada nova cultura adiciona a sua própria camada de
pintura, mas a mesma velha estátua permanece debaixo dela.
- Algo assim.
- Onde ela está agora? Katya, eu quero dizer.
- Quirguistão, nas montanhas Tian Shan, ao lado do lago de
Issyk-Kul.
- Isto soa como algum lugar em Senhor dos Anéis.
- Também se parece com o local, a julgar pelas fotos que ela
me enviou por e-mail.
- Ela está fazendo o quê?
- Estudando petróglifos, inscrições nas rochas. Na maior
parte citas, com cerca de dois mil e quinhentos anos, mas o
terreno fica no antigo Caminho da Seda e também há outras
culturas ali. Ela até conseguiu uma inscrição que parece
latim. É realmente excitante. Mal posso esperar para ir até lá
e dar uma olhada.
- Uma coisa por vez, Jack. Como você sempre me disse. Há
este pequeno assunto do naufrágio do navio de são Paulo,
depois precisamos voltar para o mar Negro.
- Tudo que fazemos parece ser uma corrida contra o tempo -
disse Jack. - A ironia é que toda esta nova tecnologia nos
permite explorar e escavar muito mais rapidamente, de
modo que podemos pensar no futuro como nunca foi
possível antes. Mas é como eu disse no local do naufrágio.
Algumas vezes anseio pelos velhos tempos, as lentas
semanas que eram gastas para procurar retirar qualquer
possível fragmento de informação de uma escavação de um
metro quadrado. - Ele soltou um suspiro exagerado. - Talvez
este seja um projeto para a minha aposentadoria.
- Aposentadoria. Que nunca vai acontecer. - Costas lançou
um olhar esquisito para Jack. - De todo modo, supõe-se que
você esteja pensando em Maria, não em Katya.
- Maria é ótima. - Jack replicou rapidamente. - Depois do
México, ela quis continuar direto com o trabalho. Uma
mulher durona.
- Não era disso que eu estava falando.
Jack o ignorou e continuou. - Trabalhar com Hiebermeyer
era uma escolha óbvia quando chegou o telefonema da
Superintendência de Nápoles depois do terremoto. Tinha
um velho amigo lá que pensou na IMU quando precisaram
urgentemente de uma equipe para prosseguir com algo que
havia sido iniciado três semanas antes. Maria estava parada
ao meu lado e eu repentinamente pensei em sua habilidade
com manuscritos. Nenhum deles é especialista no período
romano, mas isto é com freqüência uma vantagem. Olhos
não viciados, novas maneiras de ver as coisas, livres de
obstáculos impostos por cinismo. E acredite-me, o terreno
que estamos indo ver está atolado em obstáculos, depois de
duzentos e cinqüenta anos de fita adesiva vermelha
impedindo a entrada, incompetência, obstrução e corrupção.
Conseguir autorização para qualquer novo trabalho de
escavação aqui é como uma batalha da Primeira Guerra
Mundial, um dispêndio monumental de esforço e de vidas
para movimentar a frente de guerra para dezoito
centímetros mais perto de Berlim.
Costas desviou o olhar e sorriu consigo mesmo, e depois
olhou através de seu visor para o contorno recortado da
costa que estava agora diretamente abaixo deles. - Qual é o
lugar?
- Pozzuoli. O nome romano é Puteoli.
- Então, é para lá que São Paulo estava se dirigindo? Depois
da Sicília, depois de ter sobrevivido ao naufrágio?
- De acordo com os Atos dos Apóstolos, ele e seus
companheiros saíram de Siracusa em um navio de
Alexandria, depois pararam em Puteoli. Aquele é o antigo
porto romano de cereais, que você pode ver ao lado do
porto atual, que complementava o porto naval, somando-se
a ele, localizado em Misenum. - Jack digitou na tela. - As
palavras são: Nós encontramos irmãos ali, e fomos
solicitados a permanecer com eles durante sete dias.
- Irmãos? Companheiros cristãos? E a perseguição?
Jack virou a cabeça para o norte. - Os Campi Flegrei. Refúgio
perfeito. Provavelmente sempre foi um lugar para
proscritos, mendigos, desajustados.
- E depois Paulo vai para Roma. Onde Nero lhe corta a
cabeça.
- O Novo Testamento, na verdade, não diz isso, mas é a
tradição.
- Podia ter sido melhor para ele se tivesse morrido no
naufrágio daquele navio, afinal.
- Se isso tivesse acontecido, então a história ocidental
poderia ter sido completamente diferente. - Jack inclinou
lateralmente o helicóptero para estibordo, depois o
direcionou para o borrão na costa oriental da enseada. - Nós
poderíamos terminar idolatrando Ísis, Mitra, ou até mesmo a
grande Deusa Mãe.
- Hein?
Jack ajustou a borboleta que controla a gasolina, verificou a
tela de tráfego aéreo e acionou o piloto automático. - Aquele
naufrágio realmente foi um dos acontecimentos
fundamentais da história, não por causa daquilo que foi
perdido, mas por causa de quem sobreviveu. Lembre-se, o
ministério de Jesus durante sua vida estava confinado à
Judéia, principalmente sua província natal da Galiléia. A
idéia de que a sua palavra deveria se espalhar para as
comunidades judaicas no estrangeiro, e depois para não
judeus, parece ter germinado somente depois de sua morte.
Paulo foi um da primeira geração de missionários, de
convertidos. Sem ele, muitos daqueles que se provaram
receptivos ao cristianismo poderiam ter sido seduzidos por
um ou outro dos cultos oferecidos. Na época de que estamos
falando, a difusão do Império Romano e a pax romana
significavam que o mundo mediterrâneo estava sendo
influenciado pelo afluxo de novos cultos, de novas idéias
religiosas trazidas por soldados de terras recém-conquistadas
e outras trazidas por marinheiros para portos como
Misenum e Puteoli. A deusa egípcia Ísis, o deus persa Mitra,
a antiga deusa mãe, qualquer um desses deuses poderia ter
proporcionado a semente de uma religião monoteísta, dando
ao povo algo pelo qual ansiavam diante de todos os deuses e
rituais da Grécia e de Roma. Se uma daquelas religiões
realmente se enraizasse, isto teria sido suficiente para repelir
o cristianismo, que só começou a se espalhar da Judéia uma
geração ou duas mais tarde.
- Puxa! - disse Costas. - E eu pensei que, com a crucificação,
tudo fosse um negócio fechado.
- Aquele foi realmente apenas o começo - continuou Jack. -
E a coisa surpreendente é que não há indicação de que Paulo
tenha encontrado Jesus em vida. Paulo era um judeu da Ásia
Menor que teve uma visão de Cristo na estrada para
Damasco, mas somente depois da crucificação. No entanto,
Paulo pode ter sido responsável, mais do que qualquer outro,
pela fundação da Igreja tal como a conhecemos. A difusão
do conceito de Jesus como o filho de Deus, como o Messias,
o significado da palavra grega Christos, tudo isso parece que
se deve em grande parte ao seu ensinamento. A palavra
cristão apareceu pela primeira vez provavelmente nessa
época, e a ênfase na cruz. É como se, uma geração após a
morte de Jesus, de acordo com a experiência individual que
as pessoas tiveram dele, o foco mudou de Jesus o homem
para o Jesus ascendido, quase como se ele passasse a ser visto
como um deus, tivesse sido posto em um pedestal.
- É isto que as pessoas devem ter entendido - comentou
Costas. - Ninguém idolatra um homem.
- Exatamente - disse Jack. - Era um mundo em que os
imperadores eram endeusados após a sua morte, onde o
culto imperial era um grande fator de unificação no Império
Romano. E, como todos os bons missionários, Paulo era um
executante astuto que sabia o que tinha que fazer para
conquistar o mundo de lado a lado, os acordos e a
incorporação de antigas maneiras de pensar e de ver o
mundo que ele achava que seriam necessários para que a luz
brilhasse de um extremo a outro.
- Então, você está dizendo que este é o lugar onde tudo
aconteceu, a baía de Nápoles?
- Os Atos dos Apóstolos sugerem que já havia seguidores de
Jesus na baía de Nápoles, quando Paulo chegou aqui no final
dos anos 50 d.C., apenas vinte e tantos anos depois da
crucificação. Mas Paulo pode ter sido responsável por torná-
los verdadeiramente cristãos, por voltar seus pensamentos
da mensagem de Jesus, o Reino dos Céus que em breve virá,
para o próprio Cristo, o Messias. Este é o lugar onde Paulo
pode ter criado a primeira igreja ocidental, o primeiro culto
organizado, talvez escondido em algum lugar ali entre as
crateras e o enxofre dos Campi Flegrei. Ele lhes ensinava o
que eles deveriam acreditar, como deveriam viver. Ensinou-
lhes o Evangelho.
- Eu me pergunto o quanto desse Evangelho era o original.
- O que você quer dizer?
- Bem, se Paulo não conheceu Jesus em vida, nunca o
encontrou. E Jesus nunca escreveu nada, certo? Isto faz
pensar.
- Paulo alega ter tido uma visão, ter visto o Cristo ascendido.
- Eu cresci com todas essas coisas, lembra-se? Fui educado
dentro da tradição grega ortodoxa. Gosto da beleza disso, dos
rituais. Mas sou apenas um homem interessado em aspectos
práticos, Jack. Se pudermos seguir uma pista com fatos
sólidos, então eu sou bom nisso. Essa coisa de cristianismo
primitivo é como olhar através de um daqueles
caleidoscópios de criança, que muda continuamente as
lentes e os prismas. Quero fatos, dados sólidos, material
escrito por aqueles que estiveram lá naquele tempo, textos
que nunca foram adulterados. Até onde posso reconhecer,
os únicos fatos sólidos que temos são aqueles nomes
rabiscados naquela ânfora que encontramos ontem no fundo
do Mediterrâneo.
- Estou ouvindo-o. - Jack sorriu e desligou o piloto
automático. - Especulação está fora, entram os fatos.
- Eu me pergunto o que a antiga Sibila teria pensado disso
tudo.
- O que você quer dizer?
- Do cristianismo. Seguidores de uma nova religião
reunindo-se aqui debaixo de seu próprio nariz.
- Muito bem. Ponto final com a especulação - disse Jack. -
Vamos nos ater primeiramente aos fatos sólidos. No final do
período romano, Cumas tinha se tornado um centro para o
culto cristão. Os templos eram convertidos em igrejas, a
gruta da Sibila passou a ser usada para sepultamentos. O lugar
está crivado de tumbas cristãs, quase como uma catacumba.
- E a especulação? Você pode considerá-la.
- Há uma tradição cristã, que dura já faz muito tempo, de
que a Sibila predisse a vinda de Cristo. Na Écloga, de
Virgílio, poemas escritos cerca de cem anos antes da
erupção do Vesúvio, disseram-nos que estávamos no final da
última era predita pela Sibila de Cumas, e o nascimento de
um menino que precedia uma idade de ouro. Mais tarde, os
cristãos interpretaram isso como uma profecia messiânica. E
depois há o Dies Irae, o Dia da Ira, um hino medieval usado
no réquiem da missa católica até 1970. Eu estava dando uma
olhada nela há pouco tempo. As primeiras linhas são Dies
irae! Dies illa Solvet saeclum in favilla teste David cum
Sibylla! Dia da ira e do terror surgindo! Céu e terra em cinzas
se consumindo. A palavra de David e a destruição prevista
pela Sibila se realizando! Comumente se admite que esses
versos são medievais, século XIII, mas pode haver uma
fonte antiga por detrás deles, uma que agora está perdida
para nós.
- A Sibila certamente estava muito atenta aos
acontecimentos naquela caverna - disse Costas.
- Continue.
- Bem, nestes versos tudo soa bastante apocalíptico - disse
Costas. - Quero dizer, céu e terra em cinzas se consumindo.
Isto me parece ser uma erupção vulcânica.
- Pura especulação. - Jack sorriu para Costas, depois colocou
as mãos sobre os controles do helicóptero. - É possível,
apenas possível, que a Sibila e suas sacerdotisas soubessem
que algo grande estava para acontecer. Havia acontecido
uma catástrofe, um terremoto alguns anos antes, em 62 d.C.,
bastante grande para derrubar boa parte de Pompéia. Talvez
a criação das profecias da Sibila envolvesse manter a atenção
nos Campi Flegrei, na adivinhação e no augúrio baseados em
todas as mudanças de disposição do mundo subterrâneo. E a
Sibila pode ter sabido que os seus dias estavam contados. Ela
já estava se tornando uma curiosidade, uma atração turística.
Apenas poucos suplicantes vinham agora em busca de seus
pronunciamentos orais, portanto eram poucos agora os
presentes e pagamentos que tinham sustentado o oráculo no
passado.
- E que maneira melhor de desaparecer do que com
estrépito - acrescentou Costas.
- Precisamente. Talvez a Sibila tenha inculcado essa idéia
nos cristãos que viviam aqui, residindo nos Campi Flegrei.
Não há uma indicação clara de que no ensinamento de Jesus
o Reino dos Céus tenha sido precedido por um apocalipse,
muito embora esta idéia tenha dominado os cristãos durante
séculos. Talvez ela tenha sua origem aqui, nos cristãos que
podem ter morrido no inferno de 79 d.C. Odeio pensar
sobre o que estava passando por suas cabeças naqueles
momentos finais. Quando Paulo trouxe o Evangelho para
eles vinte anos antes, duvido que tenham visualizado o seu
fim dentro de um fluxo piroclástico seguido por incineração.
- Especulação construída sobre especulação, Jack.
- Você tem razão. - Jack sorriu, desligou o piloto automático
e fez o Lynx sair do seu padrão circular e entrar em uma
trajetória adequada para o leste, ao Longo da costa em
direção ao sol levante. - É hora de encontrar alguns fatos
sólidos. Estamos chegando em casa.
- Entendido e recebido. - Costas abaixou seus elegantes
óculos de sol e olhou fixamente para o leste. - E, falando em
fogo e enxofre, estou vendo um vulcão extinto adiante.

CAPÍTULO 6

Jack inclinou-se sobre o parapeito, deixando-se penetrar pela
cena extraordinária a sua frente quando a luz matinal
começou a abrir brechas nas passagens entre árvores e
arbustos e os espaços escuros abaixo. Ele se sentia cansado,
tão cansado quanto jamais esteve, com a sensação de peso
que sempre surgia depois de um mergulho em águas
profundas. Sabia que o seu sistema ainda estava trabalhando
muito ativado para pôr para fora o excesso de nitrogênio, no
entanto o sentimento também provinha de uma profunda
sensação de contentamento. No espaço de doze horas, ele
tinha se deslocado de uma das descobertas, debaixo d'água,
mais notáveis de sua carreira para um dos terrenos
arqueológicos mais famosos no mundo, um local que havia
deixado uma impressão indelével nele quando o visitara pela
primeira vez, ainda como um aluno. Herculano. A cidade
parecia mais decadente agora, negligenciada em alguns
lugares, mas tinha mudado pouco com o passar dos anos, e
ainda o deixava sem respiração. Quase não podia acreditar
que eles eram praticamente os primeiros arqueólogos, em
mais de duzentos anos, a escavar o lugar para onde estavam
indo.
- Uma mensagem de texto para você, Jack. - Costas passou o
celular sem olhar. Ele estava sentado de cócoras com as
costas contra o parapeito, completamente concentrado em
um sistema de diagramas em seu laptop. - É de Maria.
Jack leu a mensagem e resmungou. - Mais meia hora, talvez
menos. São boas novas, a transação foi feita. - Ele e Costas já
tinham esperado por mais de uma hora desde a aterrissagem
do helicóptero, tempo bem gasto em mostrar a Costas o
local ao redor, mas eles não estavam acostumados a ficar à
disposição dos procedimentos burocráticos e a demora se
transformava em irritação.
Costas pegou o celular de volta, e deu uma olhadela para
Jack. - Eu ainda não posso acreditar que estamos fazendo
isso. Pagando gorjeta. É como um procedimento de
Operação França.
- É como Nápoles para você - disse Jack. - País de bandidos.
- Então onde fica a idéia de que nosso dinheiro vai para a
manutenção do local, o trabalho de conservação? - Costas
girou e fez um gesto em direção a um telhado coberto de pó,
uma parede antiga caindo aos pedaços. - Como todo o outro
dinheiro estrangeiro que foi conseguido para ser aplicado
aqui no passado.
- Fui franco com o conselho de diretores da IMU - disse
Jack. - Não há outra maneira de conseguir alguma coisa aqui.
Se quiser trabalhar neste local, tem que soltar o dinheiro.
- Basicamente, estamos pagando um suborno.
- Não exatamente como eu expliquei ao conselho, mas trata-
se do tamanho disso - replicou Jack, olhando para o relógio.
- Agora, precisamos apenas esperar enquanto eles
confirmam a transferência eletrônica. Você também pode
manter-se no seu trabalho por um espaço de tempo maior.
Eu estou retornando para o primeiro século d.C. - Jack
voltou-se novamente em direção ao terreno, inspirou
profundamente e soltou o ar lentamente. Como uma criança
viajando ao redor do mundo ele tinha desenvolvido uma
imaginação incomum, uma habilidade em usar poucas
imagens para transportar-se de volta para um passado
distante, quase como em um estado de transe. Mas aqui ele
dificilmente precisava disso quando o passado estava diante
dele com extraordinária clareza, completo em quase todos os
detalhes.
Herculano era o mais raro dos locais, sem as limitações e as
distorções do tempo, com poucas das complexas camadas de
história vistas na maioria dos locais arqueológicos. Aqui, a
cidade de 79 d.C. estava tão bem preservada que era se
habitável debaixo dos edifícios do moderno subúrbio, as
estruturas de tetos com superfície plana quase idêntica. Os
olhos de Jack moveram-se para além dos cimos dos telhados
ao cone enegrecido do Vesúvio que se elevava no fundo. Ele
parecia resumir a continuidade subjacente da condição
humana, e o poder indomável da natureza. Jack olhou para
baixo, em direção aos estabelecimentos comerciais de frente
para o mar, onde massas retorcidas de esqueletos tinham
sido encontradas amontoadas em sua agonia mortal. Depois
ergueu o olhar para as vilas acima, onde aquelas mesmas
pessoas tinham estado comendo e conversando, vivendo sua
vida diária poucos momentos antes. Tudo permanecia ali
como eles tinham abandonado naqueles momentos finais de
horror. Havia uma claridade ali, refletiu Jack, uma claridade
extraordinária, mas também opacidade. Esmiuçar a história
deste local era como observar uma animação reconstruída,
em que as primeiras cenas eram lancinantes e claras, depois
a seguinte era vaga, tornando-se de modo crescente fora de
foco, os pequenos elementos separados se tornavam
maiores, enquanto a resolução diminuía, até que as imagens
que tinham sido dominadas por pessoas se tornavam
submersas em sombras, com apenas os artefatos
sobressaindo-se e as pessoas reduzidas a formas variáveis
quase não discerníveis no fundo.
Este era o desafio para os arqueólogos neste local, refletia
Jack, o de dar profundidade, de contar histórias que
ocupassem o espaço de horas, dias, anos. E ainda aquela cena
final apocalíptica era um chamariz contínuo, a fascinação
humana com a morte, o macabro, os momentos finais da
normalidade, como eles seriam. Um pouco antes, andando
por entre as casas romanas com Costas, ele experimentara
um desconforto curioso, como se estivesse violando os
lugares íntimos de pessoas que nunca realmente os
abandonaram, lugares em que ele podia ainda sentir os atos
mundanos dos vivos, os odores particulares e sons da
família. O que acontecera ali havia ocorrido muito
rapidamente, mais depressa ainda do que em Pompéia. O
local parecia ainda em estado de choque, imobilizado
naquele momento logo antes que o inferno se
desencadeasse. Herculano ainda parecia balançar de maneira
instável, como se os terremotos das últimas semanas fossem
um tremor nervoso que começara na noite do inferno quase
dois mil anos antes.
- Esta é uma visão infernal. - Costas estava parado ao seu
lado, e Jack foi arrancado de seu devaneio. - O passado, o
presente e a explosão cósmica. Isso diz tudo.
Jack deu um sorriso cansado. - Estou contente que você
também veja isto.
- Então, tudo isso é lama solidificada - disse Costas.
- Lama, cinza, pedras-pomes, lava, tudo misturado enquanto
rolava como bola de neve ao descer do vulcão.
- Um fluxo piroclático?
- Você lembra de Plínio, que escreveu sobre o ópio? - disse
Jack.
- Pode apostar que lembro. O comandante workaholic de
uma esquadra. De alguma maneira ele encontrou tempo para
escrever uma enciclopédia.
- Bem, o seu sobrinho adolescente, também chamado
Plínio, estava aqui naquele dia, passando uma temporada na
vila de seu tio perto da base naval em Misenum. O Plínio
moço sobreviveu à erupção, o seu tio não. Anos mais tarde,
ele escreveu uma carta sobre isso para o historiador Tácito,
que queria saber como o Plínio velho morrera. Do ponto de
vista da história natural, esse é um dos documentos mais
importantes que subsistiu da Antiguidade, talvez mais
importante do que a enciclopédia de seu tio. Não é somente
um relato único de uma testemunha ocular sobre a erupção
do Vesúvio, ele constitui também uma das melhores
observações científicas jamais feitas de uma erupção
vulcânica até os tempos modernos.
- Isto soa como um fragmento solto da antiga grande massa
de pedra. Seu tio ficaria orgulhoso dele. - Costas observou
Jack puxar um pequeno livro vermelho de sua mochila, sua
capa era gasta e quebradiça. - Você parece ter um
suprimento infindável dessas coisas, eu não tenho idéia de
quanta literatura subsistiu daquele período.
- É o que não perdurou que me mantém acordado durante a
noite - disse Jack, e virou rapidamente a cabeça em direção
das ruínas diante deles. - É isso que é tão provocador a
respeito deste lugar. Mas, antes de irmos até lá, ouça isto. É
crucial compreender por que Herculano e Pompéia têm a
aparência que tem. - Ele segurou o livro levantado de modo
que o local e o vulcão ficassem como pano de fundo, e
depois começou a ler passagens marcadas. - Sua aparência
geral pode ser mais bem expressa como parecendo uma copa
de um pinheiro em forma de guarda-sol, porque se ergue a
uma grande altura em uma espécie de tronco de árvore e
depois se espalha em ramos. "Imagino que parece assim
porque foi empurrado para cima pela primeira explosão e
depois deixado sem suporte quando a pressão diminuiu, ou
então ele foi empurrado para baixo pelo seu próprio peso de
maneira que ele se expandiu e gradualmente se dispersou." -
Jack desceu com os dedos pela página. - Depois ele descreve
cinzas caindo, "seguidas por fragmentos de pedra-pomes e
pedras escurecidas, chamuscadas e rachadas pelas chamas". -
Em seguida ele diz que a escuridão era mais negra e densa do
que qualquer noite comum, e, no Vesúvio "enormes lençóis
de fogo e chamas que saltavam no ar resplandeciam em
vários pontos".
- Isto soa como uma clássica liberação de partículas de cinza
e de pedras-pomes - disse Costas. Mas aquele primeiro
pedaço, sobre a coluna de fumaça desmoronando por si
mesma, isto é um fluxo piroclástico.
- É esta exatamente a diferença entre os dois locais. Pompéia
foi enterrada por uma descida de partículas vindas do céu,
misturadas com gases venenosos. Posteriormente, alguns
cimos dos tetos ainda persistiam, e é por isso que eles não
estão tão bem preservados hoje. Herculano foi enterrada por
deslizamento de terra, toneladas de lama fervente e material
vulcânico, subindo e descendo como ondas cada vez que a
coluna de fumaça desmoronava até que as construções
ficaram completamente enterradas, cerca de dez metros
acima do topo dos telhados.
- É isto que aqueles primeiros cristãos devem ter visto - disse
Costas. - Nos Campi Flegrei, quero dizer. Era o que
estávamos falando durante o vôo para cá. Anéis de fogo
descendo pela montanha, provavelmente a uma velocidade
aterradora, na ponta de cada fluxo piroclástico.
- O Plínio moço estava observando tudo isso da vila em
Misenum, apenas uma milha mais ou menos ao sul de
Cumas, a Gruta da Sibila. Um ponto de observação
vantajoso.
- Síndrome de estresse pós-traumático.
- Pode repetir?
- Síndrome de estresse pós-traumático - Costas repetiu. - A
obsessão com o fogo do inferno, a danação. Eu tenho
pensado sobre isto. Se este é o principal lugar para onde o
cristianismo se espalhou em direção ao Ocidente, então eles
foram obrigados a ser afetados pela experiência, certo? Uma
vez que você viu o inferno, não se esquece dele
rapidamente. Eles já estavam na metade do caminho em
direção aos Campi Flegrei, vivendo no meio das fumarolas
na entrada do mundo subterrâneo pagão. Acrescente a isso
uma erupção vulcânica, e você obtém uma visão bem
apocalíptica. Estou certo?
- Para um homem interessado em aspectos práticos, esta é
uma idéia bastante fantástica. Nunca pensou em reescrever a
história da teologia cristã?
- Não. - Por um momento, ambos ficaram silenciosos,
olhando dentro das janelas dos estabelecimentos comerciais
romanos desenterrados, escuros e ameaçadores como as
portinholas de um navio afundado - Não há sobreviventes
aqui - murmurou Costas. - Ninguém que tenha
permanecido.
- É difícil saber o que teria sido pior - disse Jack pensativo. -
Ser sufocado pelo gás superaquecido em Pompéia ou
incinerado vivo em Herculano.
- Venha morar na ensolarada baía de Nápoles - murmurou
Costas. - Hoje em dia, tudo o que acontece é que você ou
fica satisfeito ou sai correndo.
- Não subestime o Vesúvio - disse Jack. - Lembra-se daquele
quadro da erupção de 1944? Os especialistas em sismologia
têm estado falando sem chegar à conclusão alguma durante
décadas, e os terremotos são bastante agourentos.
Costas protegeu os olhos da luz e deu uma olhada para o
cume do vulcão, onde a luz do sol estava começando a
irradiar ao lado da terra estéril acima do declive. - Plínio
esteve aqui? Em Herculano? Estou pensando no velho.
- De acordo com seu sobrinho, ele deu uma olhada na
erupção e foi com um navio de guerra em direção ao vulcão,
deste lado da enseada, debaixo da montanha. Supostamente
foi uma missão heróica para salvar uma mulher.
- A destruição de muitos grandes homens - suspirou Costas.
- Foi sem esperança. Quando ele chegou aqui, a praia estava
bloqueada com detritos, pedras-pomes flutuando como um
mar de gelo. Mas em lugar de voltar, ele fez sua galera remar
em direção ao sul para Stabiae, uma outra cidade mais longe
que Pompéia diretamente sob a queda de cinzas. Ele
permaneceu ali durante muito tempo e foi intoxicado pela
fumaça.
- Isto parece uma tragédia de amor de Shakespeare. Talvez
ele tenha sido realmente subjugado pela dor.
- Eu não acho - disse Jack. - Não o Plínio. Tendo visto que
sua namorada estava condenada, ele teria continuado a fazer
outra coisa. O que ele realmente queria era aproximar-se da
erupção. Posso vê-lo, com o caderno de notas na mão,
aspirando o ar e identificando o enxofre, coletando amostras
de pedras-pomes ao longo da costa. Uma espécie de Charles
Darwin romano. Mas a curiosidade levou a melhor sobre
ele. Ele era como Ícaro, voando muito próximo do Sol. Pelo
menos ele tinha terminado sua História natural.
- Por causa de toda aquela variedade de tarefas que ele tinha,
estava provavelmente se dirigindo para um local que sofrera
uma devastação total pelo fogo.
Jack desviou o olhar, depois percebeu duas figuras descendo
a rampa de entrada para a posição em que eles estavam, uma
mulher e um homem. - Bom - ele disse. - Parece que por
fim estamos nos mexendo. - Afastou-se do parapeito e
passou a mão pelos cabelos. Maria usava botas de deserto,
calças caqui de combate e uma camiseta cinza, e seu longo
cabelo negro estava atado atrás. Maurice Hiebermeyer estava
alguns passos atrás dela, um celular apertado contra a orelha,
e era uma figura um tanto menos esbelta. Ele era
ligeiramente mais baixo que Maria, e consideravelmente
acima do seu peso, e vestia uma curiosa seleção de roupas de
safári e ainda um par de sapatos de couro gastos, adequados
para uma ocasião mais formal. Estava com o rosto vermelho
e agitado e empurrava constantemente para a parte alta do
nariz seus óculos pequenos e redondos enquanto falava ao
telefone. Seus shorts iam bem abaixo dos joelhos e se
pareciam perigosamente com um meio mastro, flutuando
livremente quase por milagre.
- Não diga nada - Jack murmurou a Costas. - Absolutamente
nada. - Ele se esforçou para manter um rosto sério, e olhou
para Costas. - De todo jeito, você pode sorrir afetuosamente.
Quando foi a última vez que se olhou no espelho? Você tem
o aspecto de quem ficou seis meses fora num submarino.
Hiebermeyer ficou um pouco afastado antes de alcançá-los,
gesticulando ao telefone e virando-se de costas, enquanto
Maria aproximava-se e beijava a ambos. Jack fechou os olhos
quando ela se pressionou contra ele. Ele tinha sentido falta
dela, de ouvir sua voz sonora, seu sotaque. Tinham passado
um tempo intenso juntos, durante a busca pela menorá, e
Jack passara pelos momentos usuais de vazio quando a
expedição terminara. Maria lhe lançou um olhar com seus
olhos escuros. - Faz três semanas desde que eu estive no
Seaquest, mas parece que passou um tempo muito mais
longo.
- Você sentiu falta da companhia - Costas sorriu, olhando
para Jack.
- Para ser honesta, o período tem sido tão extraordinário
aqui que eu realmente não me lembrei muito de antes - ela
disse, afastando-se deles e olhando demoradamente para o
terreno. - Recebi uma mensagem de texto de Jeremy, nesta
manhã, e esta foi realmente a primeira vez que me lembrei
repentinamente do tempo que passamos no Yucatán,
daquelas cenas horríveis. Foi bom para mim ter este novo
projeto para me concentrar, foi melhor do que voltar
diretamente para o Instituto, em Oxford. E Jeremy está
cuidando de tudo por lá. Esta foi exatamente a brecha que
ele queria, e está se saindo brilhantemente.
- Como vai o meu companheiro mais novo e favorito de
mergulho? - perguntou Costas.
- Enterrado até o pescoço na biblioteca perdida na Catedral
de Hereford. Ele conseguiu um novo material fantástico,
Jack. Um outro mapa primitivo, com referências aos
fenícios, eu acho. Está louco de vontade de mostrá-lo a
você. E tem uma idéia para um novo dispositivo de
mergulho, Costas. Eu não entendo nadinha disso.
- De verdade? - Costas falou com excitação silenciosa. - Se a
idéia é de Jeremias, ela tem que ser boa. - Procurou o celular
no bolso de trás das calças, mas Jack segurou seu braço.
- Não agora, não é um bom momento.
Costas cedeu pesaroso. - Só estava querendo me informar.
- Nada de tarefas múltiplas, lembra? Vamos perseverar com a
atual por enquanto.
- Sim, chefe.
- Estou agradecida por você ter me indicado, Jack - Maria
continuou. - Considero realmente um privilégio estar aqui.
E, de muitas maneiras, constitui uma ampliação de visão.
Mas eu deveria ter estado aqui desde o início.
- Então, você nunca teria tido o prazer de passar algum
tempo com o velho amigo Maurice - disse Jack com um
sorriso. - Sei que você não o tinha visto desde Cambridge.
Maria aproximou-se deles silenciosamente. - Ele é um
homem estimado - ela sussurrou, olhando para Jack de
maneira inquisitiva.
- Ele é um homem estimado - repetiu Jack baixinho. -
Lembre-se de que nós estivemos juntos na escola, mesmo
antes de nos encontrarmos todos em Cambridge. Eu vivi a
minha primeira verdadeira aventura com ele, quando
éramos garotos. Você sabe, ele é tratado como um deus no
Egito, com alguma justificativa. É de longe o arqueólogo de
campo mais admirável que conheço. E, apesar da aparência,
não é um daqueles egiptólogos que pensam que tudo o mais
está abaixo deles. Ele é tremendamente instruído, desejoso
de ver e de conhecer todos os períodos e lugares. Ele não
seria visto nem morto dentro de um macacão de mergulho,
mas é um professor adjunto excelente para a IMU.
- Então, o que significam estes shorts - ela sussurrou.
- Ah. - Jack olhou para o traseiro de Hiebermeyer, e se
esforçou para manter sua expressão. - Um uniforme genuíno
do Afrika Corps Alemão, do ano 1940 aproximadamente.
Parecia apropriado quando ele foi para o Egito pela primeira
vez. Eu lhe dei como presente de formatura. Ele me deu
uma mochila caqui da Oitava Armada Britânica. - Jack deu
uma batidinha na mochila bastante usada ao seu lado. - É
minha culpa. Sinto muito.
- Um par de suspensórios ajudaria - sussurrou Maria. - Você
sabe, liederhosen, aquela espécie de macacão com calças
curtas e suspensórios usado na Bavária.
- O que Jack está dizendo - disse Costas com uma piscadela -
, é que ele está crescendo na sua estima.
- Somente enquanto ele não esperar que eu o trate como um
deus - Maria disse baixinho, depois recuou e falou
normalmente. - De todo modo, agora vejo como é estar no
lugar de Jack. Só espero não ter tirado o entusiasmo de vocês
pelas viagens marítimas.
- Nós não ficamos exatamente tomando banho de sol na
coberta da proa - disse Costas. - Espere até ouvir o que
encontramos ontem.
Hiebermeyer parecia estar cada vez mais exasperado,
erguendo os olhos e levantando o punho no ar, depois ouviu
atentamente ao telefone e deu um olhar de alívio. Acenou
com a cabeça em direção a Maria, fechou o celular e
aproximou-se, apertando as mãos de Jack e de Costas. -
Achei que ia fazer vocês perder seu tempo. - Sua voz estava
ligeiramente rouca por causa do estresse, seu sotaque alemão
mais pronunciado. - Eu não podia acreditar. Tudo o que fiz
foi sair por um curto período ontem para telefonar para
vocês. Eles não estavam querendo nos deixar entrar de
novo.
- Todos estão prontos? - perguntou Maria, levantando sua
mochila e prendendo-a na tira em sua cintura, e voltando-se
para subir a rampa. - Maurice e eu aprendemos da maneira
mais difícil que, quando temos que ir em frente neste local,
vamos em frente rapidamente. O lugar fica a cerca de mil e
oitocentos metros em direção ao oeste partindo daqui, mas
temos que sair do terreno e andar em descida por algumas
passagens escuras. Nos encontraremos na entrada. - Ela
olhou para a mochila que continha a máquina fotográfica de
Costas. - E cuidem de seus objetos de valor, certo?
Lembrem-se de onde estamos.

CAPÍTULO 7

Vinte minutos mais tarde, pararam do lado de fora de uma
porta baixa no final de uma ruela escura na moderna cidade
de Ercolano. Estava fazendo calor sob o sol do meio-dia, e
eles se abrigaram na sombra, encostando-se numa parede. A
cena era surpreendentemente parecida com a de uma rua
desenterrada na antiga Herculano, algumas centenas de
metros distante dali, e por uma fração de segundo Jack se
sentiu completamente deslocado, sem saber se estava no
passado ou no presente. Ele foi trazido de volta para a
realidade pelo eco muito pequeno de uma motoneta Vespa
quando ela passava por uma ruela próxima, e pelos
inconfundíveis aromas modernos que se erguiam ao redor
deles. Havia lixo espalhado nas laterais da ruela e um
caramanchão ao lado da entrada mostrava seringas
hipodérmicas usadas jogadas no chão.
- Cuidado com o pé - disse Maria. - Este é o local favorito
para o uso de drogas ilegais.
- Ópio - disse Costas. - Quanto mais muda...
Maria olhou para ele interrogativamente. - Mais tarde - disse
Jack. - Conseguimos algumas notícias fabulosas. Uma
descoberta incrível. Mas vamos executar primeiro o que
viemos fazer aqui.
A porta se abriu, e um guarda de segurança armado
apareceu. Hiebermeyer disse algumas poucas palavras
vacilantes em italiano e o homem olhou de maneira dúbia
para Jack e Costas. Ele sacudiu a cabeça, com má vontade
pegou os papéis de autorização que Hiebermeyer lhe
ofereceu e empurrou-o para fora, para a ruela, fechando a
porta de novo na cara do arqueólogo.
- Toda vez acontece isso - disse Hiebermeyer, em voz baixa.
- Sempre há um guarda novo e eles sempre precisam ver a
papelada. Depois insistem em ficar com os papéis, e eu
tenho que conseguir outros fornecidos pela
superintendência em Nápoles. Levou duas semanas para eles
deixarem Maria entrar.
- Não sei como você suporta isto - disse Costas.
- Paciência 101, 101 citações sobre a paciência - disse Jack. -
Um curso obrigatório de introdução à arqueologia.
- Não posso imaginar como você conseguiu passar nesse
curso, Jack.
- Paguei a Maurice para fazer o exame por mim.
A porta reabriu, e o guarda fez um gesto com a cabeça para
entrarem. Hiebermeyer inclinou-se para passar pela porta e
os outros entraram em fila atrás dele. Eles se encontraram
em um pequeno pátio cinza, e o guarda fez um gesto com a
sua submetralhadora em direção a uma outra entrada. Costas
manteve o seu olhar de desprezo por bastante tempo, e o
homem gelou.
- Não faça isto - falou Jack em voz baixa. Pegou Costas pelo
braço e conduziu-o rapidamente atrás de Maria e
Hiebermeyer em direção à outra entrada. O guarda
permaneceu enraizado no chão, depois o ouviram afastar-se
lentamente para um lado. Eles passaram pela entrada e
encontraram outra pequena passagem estreita.
- Eu acho que você é a estrela, a atração do momento, por
aqui - resmungou Costas para Hiebermeyer. - Um
arqueólogo estrangeiro famoso, que veio do Egito para
ajudar na escavação de um dos locais mais importantes
jamais encontrados.
- Esta é a face pública da história - disse Hiebermeyer,
mantendo a voz baixa. - Atravesse aquela entrada, e a
história é diferente. Eles não deixam nem mesmo um filme
entrar aqui. Este lugar esteve fechado durante duzentos
anos, e alguém quer que permaneça assim.
- Nada da vila está aberta ao público?
- Depois de um enorme lobby internacional, uma pequena
seção foi aberta com uma grande cerimônia poucos anos
atrás. Passamos pela entrada no caminho para cá. Pela
primeira vez, as pessoas podem visitar um pouco da
escavação feita no século XVIII. Fizeram um grande
espetáculo com essa abertura, até conseguiram que o
príncipe Charles viesse de Londres para cá cortar a fita.
Vocês não fazem idéia de quantos eruditos e filantropos têm
tentado apressar o início do trabalho neste lugar. Mas, do
nosso ponto de vista, todo esse suposto progresso tem sido
um benefício confuso. Permitiu que as autoridades
descrevessem isso como uma grande realização, desviando a
atenção da necessidade de retomar as escavações.
- Então, sem aquele terremoto no mês passado que abriu
este novo túnel, nós não estaríamos aqui - disse Costas.
- Não teríamos chance alguma.
- Agradecemos a Deus pela catástrofe natural.
- Você pode se manifestar assim sobre este local.
- Isto é estranho - disse Maria calmamente quando
alcançaram o final da ruela. - É como se eles nos odiassem
por estarmos aqui, e fizessem tudo que está em seu poder
para impedir-nos. Demorou uma era geológica para Maurice
conseguir um ventilador centrífugo aqui dentro para limpar
o túnel. Mas, na informação à imprensa, Maurice é uma
grande estrela. Ele tem toda a documentação necessária aqui.
Então, quando entramos, é como se eles realmente
quisessem que encontrássemos algo, mas apenas o suficiente
para eles poderem fechar todo o espaço novamente durante
um bom tempo.
- E agora estamos quase chegando nesse estágio - disse
Hiebermeyer. - Eu estou convencido de que esta é a última
vez que nos deixarão entrar. Vocês verão a razão disso
dentro de poucos minutos. Muito bem. Aqui vai.
Comportem-se adequadamente. - Ele os conduziu ao redor
de uma esquina para dentro de uma valeta profunda, ao ar
livre, como o buraco para a fundação de uma grande casa.
As paredes eram de lama vulcânica cinza, idêntica à dos
terrenos de Herculano, e eles podiam ver antigas paredes
incompletas de alvenaria e uma curiosa coluna romana se
salientando. Meia dúzia de operários e uma mulher, com
uma prancheta para anotações, estavam agrupados em torno
de algumas ferramentas e colocando tábuas na parede mais
distante do buraco, e mais dois guardas de segurança
estavam andando, parando com freqüência, e fumando em
um outro canto. Os guardas agarraram os canos de suas
submetralhadoras e olharam com suspeita para eles.
Hiebermeyer deu-lhes um aceno amigável e prosseguiu
levando seus companheiros para atravessar rapidamente o
chão do buraco. - Os guardas estão aqui para impedir que o
local seja saqueado durante a noite.
- Isto é uma piada - disse Costas. - Aqueles macacos parecem
que foram recrutados na máfia local.
- Fale baixo - disse Maria insistentemente. - Há alguma
autoridade por trás disso tudo que mantém até os guardas
sob controle, e eu não acho que seja a máfia. - Ela tomou a
dianteira, seguindo seu caminho ao redor dos pilares
formados por antiga arte de alvenaria em direção a uma
estrutura de madeira diante do outro lado do buraco, que
evidentemente escondia uma espécie de via de acesso.
Todos os operários olharam rapidamente para eles enquanto
passavam, mas a mulher os ignorou deliberadamente.
- Ela é o nosso anjo protetor junto à superintendência -
murmurou Hiebermeyer.
- Sem conhecê-la nem cumprimentar? - perguntou Costas.
- Sem chance. Ela tem ordens estritas para não
confraternizar com o inimigo.
- Doutora Elizabeth D'Agostino - murmurou Jack. - Ela
estava em Roma quando tivemos que pedir ao Vaticano para
nos deixar entrar na câmara secreta do Arco de Tito.
- É ela mesma - sussurrou Hiebermeyer. - Trabalha para a
agência nacional de arqueologia, não apenas para a
superintendência local. Conhece o seu assunto, mas alguém
definitivamente lhe deu ordem de não falar.
- Sua amiga, Jack? - perguntou Costas.
- Tivemos um caso. - Ele deu uma olhadela para Maria,
depois se voltou rapidamente para Hiebermeyer. - Ela se
junta a vocês dentro do túnel?
- Oficialmente não. Eles têm medo de que o túnel
desmorone. Esta é a razão oficial que utilizam para se recusar
a autorizar uma escavação completa. A abertura de qualquer
outro túnel aumenta o risco de desmoronamento,
ameaçando a moderna cidade que está acima. É melhor selar
o túnel novamente por mais duzentos anos.
- E extra-oficialmente?
- Ontem, assim que achamos o que eles queriam, ela e
aqueles operários entraram dentro do túnel com a rapidez de
um tiro. Imagino que eles tentaram retirar o que
encontramos enquanto estivemos ausentes. Mas ela não
estava conosco quando prosseguimos adiante no túnel, e
vocês logo verão por que eles não tentaram sozinhos. -
Hiebermeyer puxou a fechadura da estrutura de madeira,
depois fez um gesto com a mão para um dos guardas. -
Temos que esperar que o guarda a abra - ele resmungou. -
Outro pequeno ritual. - O guarda o viu, mas propositalmente
continuou conversando com o outro guarda, sem fazer nada.
Um operário deu partida numa rede elétrica, colocando-os
fora do alcance de voz. - Os guardas sabem perfeitamente
bem o que eu quero. E tudo acontece em seu devido tempo.
- Bem-vindos à Vila dos Papyri - disse Costas tristemente.
- Não pensei que isto iria ser tão ruim - murmurou Jack.
- Há alguns arqueólogos excelentes aqui, e tenho alguns
amigos na superintendência - disse Hiebermeyer. - Eles
fazem o que podem. Mas têm de combater o sistema.
Alguns acabam progredindo dentro do próprio sistema,
sendo sugados por ele. Outros caem e ficam à margem, são
eliminados.
- Você quer dizer são afastados? - perguntou Costas com voz
rouca. - Eles realmente fazem isso aqui?
- Usualmente não é tão dramático, outras vezes sim, como
uma colisão de carros ou um acidente de barco. Comumente
é algo mais mundano. Ameaças, suborno, intimidação,
falsificação de registros financeiros pessoais. As pessoas
podem ser facilmente derrubadas neste lugar, quando são
honestas.
- Quando são honestas - repetiu Costas, sacudindo a cabeça.
- Mas há algumas pessoas boas que alcançam o topo e que se
recusam a ser intimidadas - disse Hiebermeyer. - A atual
superintendente é uma delas. Nós não estaríamos aqui se ela
não tivesse nos dado a autorização, apesar de todo tipo de
pressão. Não é preciso dizer que ela tem guarda-costas
permanentes, mas isto não é incomum para os altos oficiais
em Nápoles.
- Ainda não compreendo o que a Máfia poderia querer deste
lugar - disse Costas.
- Nunca fica claro. Eu nem tenho certeza ainda de que a
Máfia está envolvida. Você nunca sabe ao certo. Ninguém
parece saber. Só precisamos assumir que é assim. Não se
trata apenas do comércio de antiguidades roubadas, e
podemos ter certeza de que isto acontece aqui. Há também
uma grande quantidade de dinheiro ligado ao turismo
arqueológico.
- Falando de arqueologia, do que se trata aqui? - perguntou
Costas.
- Tudo começou em 1750 - disse Hiebermeyer, subitamente
animado. - Um engenheiro do exército suíço chamado Karl
Weber assumiu o comando das escavações em Herculano.
Algumas semanas mais tarde fizeram uma descoberta
enterrada profundamente, um chão de mármore,
provavelmente bem no lugar em que nós estamos agora.
Possivelmente eles abriram túneis por todo este lugar, e
Weber percebeu que tinham descoberto uma enorme vila,
muito maior do que tudo que haviam visto. Ela estava
arrebentada e saqueada, estátuas, mosaicos, qualquer coisa.
Depois começaram a encontrar manuscritos carbonizados.
Não perceberam o que eram, e alguns escavadores até os
levaram embora e os usaram para acender o fogo. Depois se
deram conta de que eram papiros. Por fim, a maioria dos que
estavam legíveis foram interpretados como fazendo parte de
uma biblioteca grega de um obscuro filósofo chamado
Filodemo.
- Provavelmente ele era protegido pelo rico proprietário
desta casa - disse Jack. - Uma espécie de mascote filósofo. Se
também havia ou não uma biblioteca em latim, essa sempre
foi a grande questão.
- E o túnel, este onde vamos entrar, revelado pelo
terremoto?
- Este é um dos primeiros túneis, que leva para uma área da
vila onde a biblioteca foi encontrada. Ela foi selada quando
Weber ainda estava no comando.
- Você tem alguma idéia do motivo?
- É para descobrir isto que estamos aqui.
- Tem alguma idéia de quem era o proprietário deste lugar? -
perguntou Costas.
- Esta é a beleza do período que precedeu a erupção -
replicou Jack. - Conhecemos uma grande quantidade de
nomes dos aristocratas pelos historiadores romanos como
Tácito, Suetônio, Plínio e meia dúzia de outros. Achamos
que esta vila era propriedade de um homem chamado
Calpúrnio Piso, de uma proeminente família romana. Um
busto dele de bronze foi encontrado em Herculano, e tudo
dentro da vila é consistente com o que conhecemos sobre
seus interesses e gostos.
- Um sinal para seu primeiro divertimento - disse
Hiebermeyer, sorrindo.
- Foi isto o que alertou a superintendência sobre a
conseqüência do terremoto neste lugar. Parte da parede de
lama solidificada desmoronou, naquele lado. Podemos ainda
ir olhá-la agora enquanto o nosso guarda termina seu
cigarro.
Caminharam passando pelo grupo de operários que agora
estavam retirando pedaços grossos de conglomerado de
rocha, e chegaram a uma abertura onde uma parte da parede
escavada havia caído. A mulher que usava uma carteira de
identificação da superintendência e com um capacete
protetor como o usado por operários de construção estava
apenas alguns metros adiante com uma prancheta para
anotações, falando rapidamente ao celular. Jack tentou atrair
o seu olhar, mas falhou. - Levará meses até que eles limpem
tudo isso - Hiebermeyer resmungou para Jack, enquanto
escolhiam cuidadosamente seu caminho por entre o
entulho.
- Encontrarão alguma razão para um retardamento. Alguém
importante, realmente importante, quer que este local seja
fechado, e eu acho que eles vão conseguir.
- Não se pudermos impedir - murmurou Jack.
- Existem três forças poderosas nesta região - continuou
Hiebermeyer calmamente, secando o suor da testa. - A
primeira é o vulcão. A segunda é a Máfia, o crime
organizado.
- E a terceira é a Igreja - disse Jack.
- Correto.
- É uma mistura bastante volátil - disse Costas pesadamente,
depois tossiu quando viu a mulher com a prancheta olhar
para eles.
- Isto faz com que a arqueologia no Egito seja algo muito
fácil - murmurou Hiebermeyer. - Algumas vezes eu penso
que eles estão desejando uma outra erupção para selar este
lugar para sempre. A enorme perda de vidas que resultaria
disso, a destruição desses locais e toda a arqueologia e a
perda do dinheiro de turistas não seria nada quando
comparado ao perigo representado pelo que pode ser
encontrado aqui. Eu não sei o que poderia ser, mas alguém
tem medo de alguma coisa. Acho que alguém poderoso
dentro da Igreja está preocupado com alguma grande
revelação, algum antigo documento que poderia arruinar
gradativamente sua autoridade. Lembrem-se de quanta
obstrução houve quando os Manuscritos do Mar Morto
foram revelados em Israel. Um outro fluxo piroclástico do
Vesúvio eliminaria a ameaça aqui para sempre.
- Vamos esperar que o que você encontrou seja o suficiente
para manter a porta aberta antes que isto aconteça.
- Você vai ficar surpreso - sussurrou Hiebermeyer, olhando
intensamente para ele. - Com o que eu encontrei. Creia-me.
- Chegaram perto de uma mesa coberta com equipamentos
de segurança, e ele se virou e disse em voz alta. - Vestir
capacetes protetores. Regras de segurança e de saúde.
- Eles têm estas coisas em Nápoles? - disse Costas
propositalmente. A mulher que segurava a prancheta deu
mais uma olhada ao redor, e Jack lançou para Costas um
olhar de advertência. Ele colocou um capacete laranja,
seguido pelos outros. Pararam juntos debaixo de uma
saliência dentro de uma cavidade com cerca de cinco metros
de profundidade, diminuindo na altura até que, no ponto
onde Maria se encontrava, do outro lado, ela era forçada a se
agachar. Costas se arrastou para dentro ao lado de Jack e
pressionou a mão na superfície cinzenta irregular acima
deles.
- Você percebe o que quero dizer? - perguntou Jack. - É
duro como rocha.
- Deve ter sido um pesadelo escavar aqui.
- Chegamos. - O capacete de Hiebermeyer era muito
grande, e fazia suas orelhas se projetar quando ele
pressionava a cabeça contra o teto. Costas tentou não olhar
para ele e concentrou-se na geologia, voltando a estar ao
lado de Jack de modo que ficaram de frente para o mesmo
caminho. Emergindo da lama solidificada na frente deles
havia uma placa polida de pedra não lavrada, com veios azuis
e verdes visíveis na superfície branca polida.
- Cipollino - murmurou Jack, batendo de maneira
apreciativa na superfície. - Mármore de Euboia, da Grécia,
Muito bonito. Não pouparam gastos nesta vila.
Hiebermeyer ligou a headlamp em seu capacete, e
imediatamente eles puderam ver que a placa estava coberta
com uma inscrição. Era formada por três linhas, letras
maiúsculas brilhantes profundamente esculpidas dentro do
mármore.

HBOYAHKAIOAHMO?AEYKIONKAAIIOPNION
AEYKIOY YION IIEI??NA
YONAYTOKPATOPAKAIIIATP?NATH?TIOAE??

- É uma inscrição grega! - exclamou Costas.
- Estes tipos de inscrições eram altamente utilizados na
época - disse Hiebermeyer. - Também eram encontradas no
Egito, desde a época anterior aos romanos, quando os gregos
governavam. O conselho e o povo reverenciam Leukios
Kalpornios Peison, o filho de Leukios, o governador e
patrono da cidade.
- Governador e patrono - Costas assobiou. - Será que era o
chefe da máfia local?
Jack sorriu. - Eu lembro disso. Há uma inscrição idêntica na
Grécia. Calpúrnio Piso era o governador romano na ilha de
Samotrácia no mar Egeu. Ele deve ter trazido isto de volta
como uma lembrança.
- Juntamente com um navio carregado de estátuas e outras
obras de arte - murmurou Maria. - Maurice me mostrou o
material que encontraram aqui no século XVIII, e que está
no museu de Nápoles. É inacreditável.
- Este Calpúrnio Piso, em particular, era provavelmente o
pai ou o avô daquele sobre quem mais sabemos, que viveu
na época dos imperadores Cláudio e Nero - disse
Hiebermeyer. - Esse Calpúrnio parece ter sido
especialmente leal a Cláudio, mas armou uma conspiração
contra Nero que fracassou. Piso se retirou para sua casa,
talvez esta mesma onde estamos, onde cortou suas veias e
sangrou até a morte. Isto aconteceu no ano 65 d.C.,
quatorze anos depois da morte de Cláudio e quatorze anos
antes de o Vesúvio entrar em erupção. Não sabemos quem
era o proprietário da vila na época da erupção, mas
provavelmente era um outro membro da família ou esta
inscrição não estaria ainda aqui. Talvez um sobrinho, um
primo, alguém que escapou ao expurgo efetuado por Nero
que a família sofreu, em seguida à tentativa de assassinato.
- Então, isto encerra o assunto - disse Jack olhando para
Hiebermeyer. - Esta foi realmente a casa de Calpúrnio Piso.
Outro pequeno avanço para a arqueologia. Parabéns,
Maurice.
Saíram ao ar livre de novo. Hiebermeyer tirou o capacete
protetor e virou subitamente a cabeça para a presença que
apareceu atrás dos cimos dos telhados. - Não me congratule,
Jack. Foi o vulcão que fez isso, não eu. Esta inscrição foi
revelada depois do terremoto. Foi o que alertou as
autoridades para o que mais poderia ter sido denunciado.
Então, eles viram a entrada do túnel.
- Para mim, isto aqui em volta parece ser mais grego que
romano - disse Costas, limpando a poeira das mãos. - Eu não
fazia idéia.
- Há camadas aqui - disse Jack. - Primeiro a dos gregos que
colonizaram a baía de Nápoles, depois a dos romanos que
redescobriram a Grécia quando eles a reconquistaram. Os
generais romanos na Grécia saquearam todas as grandes
obras de lugares como Delfos e Olímpia, e uma grande
quantidade de arte grega começa a aparecer em Roma, com
freqüência colocadas em monumentos romanos. Depois,
opulentos colecionadores particulares como Calpúrnio Piso
trazem de volta o que acumularam, algumas obras-primas,
mas sobretudo obras menores, o que foi deixado. Depois, na
época de que estamos falando, o primeiro período imperial,
os artesãos gregos estão produzindo artigos especificamente
para o mercado romano, assim como os oleiros chineses ou
os que produziam móveis indianos os faziam para o gosto
ocidental no século XIX. É por isso que em Pompéia e
Herculano você vê, principalmente, objetos de arte à moda
grega, mais estilo do que substância.
- Eu olho para uma escultura - disse Costas com
determinação. - Eu gosto dela ou não, e não ligo para a
etiqueta.
- Muito razoável - sorriu Jack. - O tipo mais confiável de
especialista. Mas você realmente tem que conhecer o
contexto aqui, e nisto consiste a beleza desses lugares. Você
pode ver como os romanos usam sua arte, como eles a
apreciam.
Para eles não importa se possuem um antigo mestre grego
ou uma excelente reprodução, porque na verdade trata-se
apenas de decoração. O que de fato importava para eles eram
os retratos de seus ancestrais, imagens que personificavam as
virtudes que eles tanto admiravam, que enfatizavam a
continuidade da família. Os quadros eram mantidos
separados, em uma sala privada, e eram com freqüência de
cera e madeira, de modo que não subsistiram ao tempo. Os
romanos tiveram muitas publicações desfavoráveis porque
os historiadores de arte do período vitoriano, que
glorificaram a Grécia clássica, viram principalmente coleções
de esculturas antigas tiradas de seu contexto e alinhadas em
galerias e museus. E parecem revelar um julgamento
indiscriminado, mau gosto e vulgaridade. Quando chegamos
aqui, podemos ver que nada está mais afastado da verdade.
Ao contrário, foram os gregos deste período que se
sobressaíram.
- O que nos aproxima muito nitidamente dos motivos pelos
quais estamos aqui - sorriu Hiebermeyer, colocando
novamente o seu capacete muito grande.
- Somos todos ouvidos - disse Costas, com o rosto
inexpressivo, olhando para Jack sem conseguir atrair o olhar
deste.
Eles observaram quando o guarda finalmente se ergueu,
andando a passo lento até a entrada de madeira e fazendo
uma grande exibição para destrancá-la. - A maior biblioteca
perdida da Antiguidade - disse Hiebermeyer baixinho. - E
um dos maiores buracos negros na arqueologia. Até agora.

CAPÍTULO 8

Jack agachou-se atrás de Hiebermeyer na entrada do túnel
dentro da antiga vila. A temperatura já estava mais fria, um
alívio para o sol que queimava do lado de fora.
Imediatamente na frente deles havia uma centrífuga com a
largura de um metro com um motor elétrico, e atrás dela um
tubo flexível e ondulado prosseguia desde a temporária
estrutura de madeira na frente da entrada até uma serpentina
de tubos e uma passagem elevada situada numa parede acima
do local.
- Depois que saí daqui ontem, eu falei exageradamente sobre
o elemento perigoso, só para me assegurar de que não
tentariam entrar aqui - disse Hiebermeyer, mas realmente
há gases tóxicos armazenados aqui, metano, carbono,
monóxido. A maior parte deles é resultante de material
orgânico que está começando a se decompor, devido à
introdução de maior quantidade de oxigênio depois que o
túnel foi aberto.
- Não há corpos - disse Costas esperançoso.
- Neste local, ou há apenas esqueletos ou eles estão
incinerados - replicou Hiebermeyer. - Usualmente -
acrescentou.
- Quanto tempo temos que esperar? - perguntou Maria.
- Vamos aguardar alguns minutos mais, depois traga o
ventilador para dentro e reative-o quando alcançarmos a
grade.
Jack fez uma pausa. - Acho que esta é a primeira vez que
escavamos juntos desde Cartago. - Voltou-se para Costas. -
Nós três estudávamos juntos, e nossa primeira experiência
foi partilhada com uma equipe da UNESCO em Cartago.
Mergulhei num antigo ancoradouro, Maurice desapareceu
dentro de um buraco no chão e Maria registrou inscrições.
- Eu me sinto o estranho aqui - disse Costas.
- Acho que você pode juntar-se ao nosso clube. - Jack
cutucou Hiebermeyer, que olhou impassível para Costas
através de seus óculos com lentes de cristal, o cabelo
emaranhado e o rosto sujo com fuligem. Jack escondeu um
sorriso. - Maurice encontrou os restos de um grande forno
de bronze exatamente como ele foi descrito pelos romanos,
essa é uma primeira evidência definitiva de sacrifício de
crianças em Cartago. Foi fantástico.
- Foi fantástico - repetiu Costas debilmente. - Sacrifício de
crianças. Eu achei que havíamos deixado tudo isto para trás
com os toltecas no México.
- O passado, por vezes, é um lugar habitado por coisas
bastante repugnantes - disse Jack de maneira seca. - Você só
tem que pegar o que consegue, ir com o fluxo.
- Ir com o fluxo - repetiu Costas. - Sim, está certo. - Ele
olhou para o local escurecido atrás do porão da entrada na
frente deles, depois de novo para Jack. - Então, quais
prazeres este local guarda para nós?
- Você já esteve na Vila Getty?
- A Vila Getty. Em Malibu, Califórnia. Sim - disse Costas
vagamente. - Eu me lembro de ter ido com a escola.
Desenho clássico, grande quantidade de estátuas. Um grande
tanque central, excelente para remover impurezas das
superfícies de moedas.
Hiebermeyer ergueu os olhos, e Jack sorriu novamente. -
Bem, este local foi a base para o projeto da Vila Getty.
Costas olhou de modo ambíguo para o buraco negro na
frente deles. - Não brinque.
- Muito bem, vamos entrar - disse Hiebermeyer. Ele ergueu
o ventilador centrífugo e segurou-o à frente, puxando a
mangueira de exaustão atrás de si. Jack e os outros o
seguiram e, depois de alguns metros estavam
completamente cercados pelo túnel. Esse tinha a largura de
cerca de um braço e era suficientemente alto para permitir
que Jack ficasse ereto. A superfície era parecida com a de
uma antiga mina para a extração de minérios, coberta com
marcas de talhadeiras e de picaretas. Jack sentiu como se
estivessem voltando para o século XVIII, olhando para o
local através dos olhos dos primeiros que abriram o túnel,
que tinham talhado seu caminho na lama dura como rocha,
sob o olhar do engenheiro Karl Weber quando ele tentou
descobrir o sentido do labirinto que seus homens escavavam
buscando pilhagem. Jack seguiu Hiebermeyer que virou uma
esquina, e o túnel ficou mais escuro. - Ainda não tem luz
elétrica - disse Hiebermeyer pesaroso. - Mas mantenha sua
headlamp desligada por um instante. Muito bem, você pode
ligá-la agora.
Jack ativou seu feixe de luz e focalizou adiante. Ele sufocou
um suspiro e tropeçou levemente quando se adiantou. A
cabeça de Anúbis estava olhando fixamente para fora da
lateral do túnel bem na frente dele, as orelhas negras eretas e
o focinho desafiador exatamente como Hiebermeyer e
Maria o tinham visto pela primeira vez no dia anterior.
- Veja seu segundo divertimento. - Hiebermeyer virou-se
para trás, depois de colocar o ventilador centrífugo a sua
frente. - Esta é a descoberta-chave, eu acho, o argumento
decisivo para a superintendência. É exatamente o que eles
querem. Algo espetacular. Você pode ver que eles até já
esvaziaram o nicho ao redor da estátua, tudo está pronto
para retirá-la mais tarde. Amanhã de manhã, ela estará em
todas as primeiras páginas dos jornais. Um pretexto para
fechar este túnel. Permanentemente.
- Assombroso. - Jack ainda estava intimidado pela imagem, e
colocou cuidadosamente a sua mão no focinho. - Eles
encontraram uma destas estátuas na tumba do faraó
Tutankamon - ele disse para Costas, que estava atrás.
- Pelo menos aquele estava no lugar ao qual pertence, no
Egito - murmurou Hiebermeyer.
- É o acolhedor das almas no inferno, e protetor delas em
sua jornada - Maria disse atrás dele. - Maurice me contou
algo assim.
- Eu não gosto do que estou ouvindo - resmungou Costas. -
Pensei que você disse que não havia corpos mais adiante.
Jack colocou o capacete de viés e olhou além do focinho de
Anúbis, para dentro da escuridão. Ele sentiu como se o
século XVIII tivesse dado lugar agora para um passado muito
mais antigo, saindo com ímpeto através das paredes, como a
cabeça de Anúbis. Também teve uma sensação de perigo.
Poucos metros além da estátua havia uma grade de metal
temporária no outro lado do túnel que trazia a palavra
PERICOLO e o símbolo da morte, um crânio atravessado
por ossos longos. Hiebermeyer destrancou uma pequena
porta através da grade e puxou o ventilador centrífugo para
dentro. Pressionou um botão, e uma luz vermelha começou
a lampejar, acompanhada por um zumbido eletrônico baixo.
- Este é um bom começo - ele disse. - Acredite ou não, o
cabo condutor da extensão verdadeiramente funciona.
Conseguimos eletricidade. - Ele examinou ama informação
proporcionada por um computador na parte de trás do
ventilador. - Em cerca de dez minutos, isto deverá ter
limpado o túnel à frente até onde nós fomos ontem, até o
ponto em que o túnel termina em uma outra parede.
Quando a luz se tornar verde, nós o levaremos adiante até
que o sensor solte lampejos vermelhos novamente. - Olhou
para Jack e falou baixinho. - Eu poderia ler posto isto para
funcionar antes da sua chegada, mas não quis que ninguém e
a tentação de vir aqui dentro sorrateiramente para roubar.
Nossa amiga superintendente parece perfeitamente feliz
com Anúbis. De fato, ela está obcecada por ele.
- Isto faz sentido - replicou Jack também baixinho. -
Elizabeth era uma egiptóloga apaixonada quando eu a
conheci. Ela nunca se interessou realmente este lugar,
arqueologia romana, mas alguma coisa a trouxe de volta para
cá. Relacionamentos familiares.
- Você parece conhecê-la bem - murmurou Maria.
- Fomos amigos durante algum tempo. Mas não somos mais,
parece.
Hiebermeyer empurrou os óculos para cima. - O final da
linha. No que concerne a eles, a investigação alcançou seu
resultado, e o que estamos fazendo agora é um assunto
puramente secundário, um reconhecimento, antes que a
coisa toda seja considerada arriscada e selada para sempre.
No momento, estou feliz em concordar com isso.
- Quão arriscado isto é exatamente? - perguntou Costas.
- Bem, o túnel não está escorado, e há o risco de um outro
tremor de terra. O local está repleto de gás tóxico. O
Vesúvio pode entrar em erupção novamente. Nós podemos
ser esmagados, asfixiados, incinerados.
- Arqueologia - suspirou Costas. - Imaginem, eu rejeitei uma
posição na Cal Tech em troca disso tudo. Uma casa na praia,
surfe, martinis tirados do barril.
- Também podemos ser metralhados pela máfia -
acrescentou Maria.
- Formidável. Isto é mais do que é realmente necessário. -
Costas suspirou, depois olhou de novo para Anúbis. - De
todo jeito, eu acho que no período romano este material
egípcio estava todo ultrapassado - ele disse. - Eu explico, o
que vocês estavam dizendo sobre aquele sujeito Calpúrnio
Piso. Os acessórios de estilo. Tudo tinha que ser grego.
- Um colecionador que aprecia as obras de Andy Warhol
não joga fora necessariamente sua coleção de família de
velhos mestres - disse Maria.
- De fato, ter obras do Egito antigo foi a grande última moda
- disse Jack. - O Egito foi o último dos grandes e antigos
lugares a ser anexado por Roma, depois da derrota de
Cleópatra em 31 a.C. Muitos dos obeliscos encontrados em
Roma hoje em dia, aquele na Praça de São Pedro, vieram de
navios enviados pelos primeiros imperadores. Foi
exatamente como uma repetição da pilhagem da Grécia.
Cada um queria ter uma peça da batalha.
- Bárbaros - Hiebermeyer resmungou. Naquele momento, o
ventilador centrífugo mostrou lampejos verdes e o
ventilador se deteve. Hiebermeyer fez um gesto para que
avançassem, e rastejou para passar pela grade. Jack e Costas
pegaram o tubo ondulado e o seguiram, com Maria logo atrás
deles. À frente, o caminho estreito não estava iluminado, a
não ser pelos feixes de luz oscilantes de suas headlamps. Jack
havia se perguntado quando iria ter aquela mesma impressão
de novo, e foi naquele momento, dentro de um túnel, que
ele repentinamente se sentiu removido do mundo exterior,
quando o avanço à frente parecia estar além de sua vontade,
quando o próprio túnel parecia puxá-lo adiante. Era como se
o ar tóxico tivesse se derramado ao redor deles e preenchido
o túnel atrás, encerrando-os em uma cápsula que poderia
implodir a qualquer momento, sugando-os para dentro do
redemoinho do passado. Continuaram se empurrando à
frente, puxando com barulho o tubo atrás deles. O túnel era
mais comprido do que esperara, penetrando profundamente
nos recônditos do terreno da vila, bem além dos túneis que
ele tinha visto no plano de Weber. Aproximadamente trinta
metros adiante, chegaram ao fim do túnel, na fenda escura
na parede onde Maria e Hiebermeyer tinham parado no dia
anterior. Jack podia ver nitidamente as marcas de picareta
feitas no século XVIII, e olhou-as atentamente. Algumas das
marcas foram feitas em pedra e não em lama solidificada. O
túnel claramente terminava em uma espécie de estrutura,
uma via de acesso feita de pedra. Hiebermeyer ergueu o
ventilador e o colocou dentro da fenda ativando-o
novamente. - Ele ainda está mostrando luz verde, mas de
todo modo vou esperar mais cinco minutos. É melhor estar
seguro do que lamentar depois. - Ele olhou para Jack. - Foi
até aqui que avançamos antes de eu sair e telefonar para
você. Depois de eu dar uma olhada dentro.
- Mal posso esperar para ver. - Jack voltou-se e olhou
atentamente para o corredor atrás, onde podiam distinguir
uma luz elétrica oscilante e ouvir vozes, depois o som de um
poderoso equipamento sendo testado. - Alguém vai se juntar
a nós?
- Eu duvido - disse Hiebermeyer. - Eles estão alargando o
corredor para retirar Anúbis. Até mesmo a nossa dama
guardiã não passaria por aquela grade.
- Quem sabe eles acham que o lugar é amaldiçoado -
murmurou Costas. -Talvez Anúbis represente isso para eles.
- Se houvesse uma maldição, eles nos contariam acerca dela
- disse Hiebermeyer. - Colocaram diante de nós todos os
outros obstáculos para impedir a escavação deste local. Nós
fazemos parte do jogo deles. Um gesto simbólico, de
maneira que possam dizer que fizeram tudo o que podiam,
mas podem dizer também que o lugar é simplesmente
demasiado perigoso.
Como se acontecesse exatamente no momento certo, houve
um tremor e o ar encheu-se de poeira. O tremor
desapareceu tão rapidamente como veio, mas não havia
dúvida sobre a causa. Hiebermeyer tirou seu oscilador
cósmico e pressionou-o contra a parede lateral. Fez-se
silêncio por um momento, depois ouviu-se uma tosse baixa
de Maria, e todos eles colocaram suas máscaras contra
poeira.
- Talvez eles tenham razão - disse Costas. - Há alguma coisa
mais para ver, Maurice? Quero dizer, algo realmente
importante? Eu estou pronto para ir embora.
- É muito tarde para voltar para trás agora - disse
Hiebermeyer, olhando para Jack. - Odeio ter que admitir,
mas estou começando a entender aqueles que abriam túneis
no século XVIII. Sei de que lugar eles vinham. Você não
quer demorar-se muito tempo aqui embaixo. Não acho que
estamos aqui para uma escavação meticulosa. Não
exatamente para roubo e pilhagem, mas para algo parecido
com uma incursão arqueológica.
- Eu o estou ouvindo - disse Jack.
- Enquanto esperamos, qual é a questão sobre o ópio, a
propósito?
- Você não vai acreditar no que encontramos no navio
naufragado.
Naquele momento, ocorreu um resmungo e uma maldição. -
Acho que conseguimos algo aqui. - Costas tinha se
introduzido na frente dos outros e agora emoldurava um
buraco imperfeito no fim do túnel. - Acho que pode ser uma
outra estátua. - Os outros rapidamente se aproximaram atrás
dele, seus feixes de luz convergindo para o lugar onde o
choque sísmico provocara o desmoronamento de uma parte
da parede ao lado da fenda. Dentro da cavidade havia uma
forma humana em tamanho natural, deitada sobre a barriga,
um braço estendido e o outro dobrado debaixo do peito, as
pernas estendidas para trás, em direção à entrada. Ela parecia
estar despida, mas a superfície estava obscurecida por uma
camada carbonizada, o que tornava difícil determinar o
material debaixo dela.
- Isto deve ter acabado de ser revelado - disse Hiebermeyer
baixinho. - Por aquele tremor que ocorreu há pouco. Esta
forma não estava visível ontem.
Jack se ajoelhou e examinou a cabeça, depois tentou
enxergar através de um pequeno buraco logo abaixo de uma
orelha. Pôde discernir que a forma era oca, como a de uma
estátua de bronze, mas não havia metal visível, nem mesmo
uma camada de corrosão. Pensou durante um momento,
depois olhou de novo. - Bem, eu vou ser condenado - ele
murmurou.
- O que é? - perguntou Costas.
- Você lembra que lhe contei sobre os corpos em Pompéia,
formas preservadas como moldes ocos na cinza solidificada?
Costas pareceu consternado. - Você não está dizendo que
este é um corpo como aqueles. - Ele empurrou-se para trás.
- Só que não está preservado em cinzas - disse Hiebermeyer.
Ele tinha vindo para perto de Jack e tirado sua própria
espátula velha e gasta, usando-a para pegar uma pequena
amostra do material escurecido do lado do corpo. - Isto é
estranho. Parece estar preservado em uma espécie de
material carbonizado, alguma coisa fibrosa.
- Meu Deus - disse Jack. - Você tem razão. Eu posso ver as
fibras cruzadas. Talvez alguma roupa. - Olhou atentamente
para Hiebermeyer, que olhou de volta para ele de maneira
sugestiva. Jack pensou novamente, e sentiu seu queixo cair.
- Não é roupa - ele sussurrou. - É papiro.
- Espere até ver o que tem dentro - sussurrou Hiebermeyer
em retorno, dirigindo sua espátula para a fenda na parede
diante deles.
- Estes eram manuscritos? - murmurou Maria. - Este homem
estava coberto com manuscritos escritos em papiro?
- Eles estavam caindo de um lugar que fica atrás de nós -
replicou Hiebermeyer. - É como se este homem tivesse
caído dentro de um local coberto de manuscritos, e eles
caíram deste outro lugar por cima dele quando a explosão
ocorreu. Quando encontraram a biblioteca de Filodemo no
século XVIII, uma grande quantidade de manuscritos estava
espalhada ao redor, como se alguém estivesse tentando
escapar com eles.
- Ou estava procurando no meio deles, buscando
freneticamente por algo precioso para recuperar antes de
escapar - disse Maria.
- Vamos esperar que estes livros sejam apenas mais alguns
dos manuscritos gregos de Filodemo - murmurou Jack - e
não a biblioteca latina perdida.
Costas estendeu a mão e cuidadosamente tocou no ombro
do corpo. Instantaneamente, a forma inteira bruxuleou e
desapareceu numa lufada de carvão. Seu dedo foi deixado
suspenso no ar, e por um momento fez-se silêncio.
- Uau! - ele disse.
Hiebermeyer gemeu.
- Não se preocupe - suspirou Jack. - Um momento
Agamenon.
- Hein?

- Quando Heinrich Schliemann escavou o terreno
arqueológico da Idade do Bronze em Micenas, ele levantou
uma máscara mortuária de ouro de uma sepultura real e
pretendeu ter visto o rosto do rei Agamenon. Talvez tenha
realmente visto algo, tenha tido uma impressão fugaz do que
estava debaixo da máscara. Você lembra da Atlântida, a
forma espectral do touro no altar? Algumas vezes você
verdadeiramente chega a ver fantasmas.
- E veja o que está debaixo - disse Hiebermeyer,
repentinamente excitado. - É muito mais interessante, de
um ponto de vista judicial. - Ele se curvou aproximando-se
do lugar onde a cabeça havia estado e pegou um removedor
para limpar as lentes da máquina fotográfica, retirando
cuidadosamente a poeira. Uma outra forma estava
emergindo por baixo, cinzenta e escurecida. - Este é o
crânio - ele anunciou. - Ele também está parcialmente
carbonizado, mas parece que se conservou. E posso ver as
vértebras, as costelas. - Hiebermeyer colocou o dedo dentro
de uma massa escura e pegajosa dentro do crânio, depois a
cheirou, primeiro com cautela, depois profundamente. De
repente se esforçou para vomitar, depois engoliu com
dificuldade. - Assombroso - ele disse com voz rouca,
esfregando o dedo contra a parede. - Nunca descobri algo
assim dentro de uma múmia, e enfiei meu dedo em uma
porção delas.
- O que é isto? - perguntou Costas. - Algum tipo de resina,
de piche?
- Não exatamente. - Os óculos de Hiebermeyer tinham
escorregado pelo nariz, e ele os empurrou para cima com o
mesmo dedo, deixando uma faixa escura entre os olhos.
Olhou para Costas, sorridente e excitado. - Quando o
inferno atingiu este lugar, os manuscritos devem ter sido
carbonizados instantaneamente, mas eles deviam conter
alguma coisa, um material resinoso preservativo, o que fez
com que a massa carbonizada formasse uma cobertura ao
redor do corpo. Esta vedou a carne e impediu a entrada do
oxigênio, de modo que ela não pôde incinerar-se. Em lugar
disso, ela cozinhou.
- Foi cozinhado vivo - disse Maria.
- Ele quer dizer, que este sujeito derreteu - acrescentou Jack,
olhando para Costas.
- Oh, não. - Costas encostou-se à parede oposta do túnel. - E
você meteu o dedo na massa.
Hiebermeyer levantou o dedo novamente, e olhou
atentamente para ele com um pouco de reverência. - Isto é
fantástico. Provavelmente há um pouco de cérebro aí. Seria
perfeito para uma análise de DNA.
Maria tinha pouco a pouco voltado para o lugar onde
estiveram os pés do homem, olhando cuidadosamente, e
depois se aproximou silenciosamente de Hiebermeyer e
olhou dentro da caixa torácica. - Olhe! Ele estava usando um
anel de ouro! - ela exclamou. Hiebermeyer seguiu o olhar
dela, reconhecendo os ossos dos dedos que estavam
contorcidos debaixo da caixa torácica como se o homem
tivesse estado apertando o peito nos espasmos da morte. Ele
pegou um mini-lanterna Maglite, e colocou o rosto bem em
cima dos ossos. - Este é um anel sinete, para pressionar
sobre a cera que sela documentos. Ele está parcialmente
derretido dentro do osso, mas eu posso ver o desenho. É
uma gravação de uma águia.
- É um anel de sinete imperial - disse Jack. - Este sujeito
deve ter estado a serviço do imperador.
- Eu não tenho certeza se este corpo pertencia a um sujeito,
precisamente - Hiebermeyer murmurou, pondo-se de
joelhos com a mão no quadril. - Há algo estranho a respeito
desse esqueleto. Decididamente estranho. O arredondado do
rosto, áreas de estrutura óssea que se espera que sejam mais
desenvolvidas em um homem e um alargamento
extraordinário da região pélvica. Não é exatamente uma
mulher, mas não está muito longe de ser. Estranho.
- Eles não tinham eunucos? - perguntou Costas.
- É um pensamento interessante - murmurou Jack. - No
início do século IV d.C., o imperador Constantino, o
Grande, cercou-se de eunucos, e os últimos imperadores
bizantinos fizeram a mesma coisa. Eles achavam que os
eunucos eram uma escolha melhor como secretários e
funcionários de Estado, provavelmente menos competitivos
e ambiciosos. Alguns estudiosos pensam que o ex-escravo de
Cláudio, Narciso, era um eunuco. - Fez uma pausa por um
momento, depois falou novamente, quase para si mesmo. -
Mas não poder ser. Narciso foi morto quando Cláudio foi
envenenado, em 54 d.C. Isto ocorreu quase um quarto de
século antes da erupção do Vesúvio. Deve ter havido outros
eunucos em volta. Toda esta região atraiu pessoas esquisitas,
aberrações que vinham aqui para divertimento dos ricos,
bem como aleijados e outros desafortunados que
procuravam curar-se junto aos respiradouros de onde saíam
gases de enxofre nos Campi Flegrei. Este é o outro lado da
vida aqui durante o período romano, não é exatamente a
imagem para turistas.
- Seja quem for e o que quer que tenha sido, ele pode ter
terminado como um homem liberto imperial, mas
certamente começou a vida como escravo. - Hiebermeyer
deslocou-se até onde terminavam os pés do esqueleto, e
depois voltou para perto do ventilador centrífugo
exatamente no meio da via de acesso adiante deles. - Seus
tornozelos mostram as contusões características causadas
por correntes, curadas anos antes. Acho que era um homem
idoso quando morreu, muito velho para este período, talvez
com cerca de oitenta anos ou até mesmo noventa. Mas
passou por um período bastante duro muito tempo antes,
talvez quando criança.
- Ele foi acorrentado, depois castrado e chegou a isto - disse
Costas, com os olhos cuidadosamente afastados da massa
ensebada e negra debaixo do esqueleto. - Vamos esperar que
os anos durante o intervalo entre os dois eventos não
tenham sido muito ruins.
- O seu fim foi provavelmente muito rápido - disse
Hiebermeyer, quebrando um pouco daquele material escuro
em sua espátula e colocando-o dentro de um frasco pequeno
de amostra. - Ao suportar o terrível choque da rajada forte e
repentina de calor e em seguida ficar com o pulmão cheio, a
pessoa morre. Ele deve ter tido apenas alguns poucos
segundos de consciência.
- Deve ter sabido que algo ruim estava acontecendo - disse
Costas, forçando-se a olhar de novo. - Acho que o vulcão já
estava em erupção há horas.
- Sim, mas o fluxo piroclástico que varreu Herculano do
mapa apareceu de lugar nenhum, precipitando-se
repentinamente por aquela montanha em anéis de fogo mais
rápidos do que qualquer coisa que Roma jamais vira. Antes
dessa investida, a erupção deve ter parecido uma catástrofe
aterradora, mas não necessariamente uma sentença de
morte. Depois disso foi realmente o apocalipse. Ninguém
teria escapado de Herculano com vida.
Jack começou a sentir o odor do lugar, não apenas o odor
familiar de poeira e velhas tumbas, mas o cheiro de morte
recente, o cheiro rançoso de sangue, o odor de medo
animal. Por um instante, o túnel perdeu sua solidez e se
tornou um redemoinho giratório de morte que havia
enclausurado este homem, um lugar claustrofóbico,
aterrorizante, que momentos antes tinha sido um santuário
de beleza, uma expressão suntuosa de liberdade e confiança.
O lugar inteiro parecia traumatizado, ainda tremendo no
pós-choque quase dois mil anos atrás. Jack fechou os olhos
brevemente, depois se aproximou silenciosamente atrás de
Hiebermeyer dirigindo-se para a via de acesso adiante deles.
Ele olhou para trás, para o lugar onde ainda podia ver o
focinho de Anúbis, que se salientava da parede lateral e que
perscrutava sem ver, olhando para a luz fraca atrás, quase
invisível. Podia ouvir o barulho da perfuratriz trabalhando
onde a entrada do túnel estava sendo alargada, mas ainda
não havia ninguém para ver. Voltou-se para a fenda escura
na parede adiante.
- Você está pronto para isto? - perguntou Hiebermeyer,
desligando o ventilador. Agora não se escutava barulho à
frente deles, apenas o silêncio da tumba, e até mesmo o
barulho distante da perfuratriz havia parado. Jack olhou para
o rosto encardido a poucos centímetros dele, o rosto de um
homem que num piscar de olhos podia ter sido um menino.
- Você se lembra de quando estávamos na escola, quando
enchemos aquele celeiro com artefatos feitos em casa e
depois o lacramos, fingindo que era a tumba do faraó
Tutankamon? Eu era Howard Cárter, você era Lord
Caernarvon.
- Não. - Hibermeyer sacudiu sua cabeça decididamente. -
Foi ao contrário. Você era Caernarvon, eu era Cárter.
Jack sorriu, depois olhou à frente, o rosto coberto de
excitação. - Certo. Vamos entrar.

CAPÍTULO 9

Jack olhou cuidadosamente dentro da câmara oculta no final
do túnel. De início, tudo que podia ver eram sombras,
formas empoeiradas cinzentas, escuridão. Depois viu uma
mesa, possivelmente uma mesa de pedra, e um certo tipo de
estrutura de prateleiras na parede. Alguma coisa não estava
certa. Depois, para seu espanto, percebeu o que era. Não
havia cinza, nem lama solidificada.
- A câmara está perfeitamente preservada - ele sussurrou.
Hiebermeyer ergueu o ventilador centrífugo alguns
centímetros para frente dentro da câmara, e ele começou a
lampejar vermelho de novo. Hiebermeyer cautelosamente
lhes disse para permanecer atrás. - Esta sala é um milagre -
ele replicou. - Existem outras salas em Herculano que
escaparam da lama, do fluxo piroclástico. Ninguém entende
realmente o que aconteceu, mas deve haver algum perito
em computador da IMU que pode explicar isto. O fato
extraordinário sobre esta câmara é que ela escapou também
ao efeito fornalha. Isso pode ter tido algo a ver com a
elevação, a câmara estava empoleirada no último andar da
vila acima do nível do topo dos telhados da cidade,
assumindo ares de superioridade em relação a ela. A rajada
quente certamente se introduziu rapidamente e com força
violenta em todas as outras partes da casa passando direto até
a câmara superior, por cima daquele corpo na entrada. Mas
ela deixou escapar esta câmara. Nós sempre soubemos que
algo assim era possível em Herculano.
- Maurice, eu consigo ver manuscritos - disse Jack, com a
voz tensa pela excitação. - Manuscritos danificados. Sem
nenhuma dúvida. Em jarras, debaixo daquelas prateleiras.
- Foi isso que vi ontem - replicou Hiebermeyer, quase
sussurrando. - Foi por isso que o chamei para cá. Agora você
pode entender o que quero dizer. Isto realmente poderia ter
se passado assim.
- Você pode imaginar o que pode estar contido nas jarras? -
A voz de Jack estava rouca.
O ventilador parou de repente, e Hiebermeyer soltou uma
imprecação em alemão. - Não agora. Por favor, Deus, não
agora. - Ele inclinou-se sobre a máquina, e parecia estar
rezando. - Eu peço profusamente perdão por tudo o que
sempre disse ou pensei sobre Nápoles. Apenas mais cinco
minutos. Por favor.
- Isto já aconteceu antes - murmurou Maria. - Havia uma
rede elétrica manhosa em Ercolano. Os guardas não podiam
ser incomodados para ligar o gerador de emergência, e nós
tínhamos que sair apressados. Mas, agora, a
superintendência está planejando usar perfuratriz elétrica ao
redor da estátua de Anúbis, então há um pouco mais de
incentivo para os guardas tomarem providências. Nós só
precisamos parar de forçar o ventilador e esperar.
Jack olhou para o esconderijo escurecido com os
manuscritos, quase incapaz de se conter. Fechou os olhos e
respirou profundamente. Eles rastejaram para trás através da
entrada até o ponto inicial. Costas estendeu a mão nas trevas
perto da parede e pegou algo. - Examine isto - ele disse de
maneira excitada. Segurou para cima o que tinha apanhado,
e retirou a poeira. Era um disco de metal com cerca de dois
centímetros e meio de diâmetro, verde-escuro e com uma
figura gravada. - Parece um medalhão.
- Não é um medalhão - murmurou Hiebermeyer, olhando
bem de perto. - É um sestércio de bronze, a maior base de
metal indicativa do primeiro século d.C. Um pouco como
uma moeda de um quarto de dólar americano.
- Ela também é o maior tipo de moeda romana, a melhor
para gravar retratos. - Jack se aproximou mais de Costas. -
Há algo visível?
- Nero! - exclamou Costas. - Eu consigo ler. O imperador
Nero! - Passou a moeda para Jack, que olhou para ela com
muita atenção, virando-a de um lado para outro sob a luz de
sua lanterna. - Você está certo quanto ao nome, errado
acerca do imperador - ele murmurou. - Eu estou olhando
para o reverso, o lado de trás. Ele mostra NERO Cláudio
DRUSO GERMÂNICO. Este é Druso, irmão do imperador
Tibério. Nero era o nome de família. Druso era um dos
generais romanos mais capazes, um homem decente e um
herói do povo. Um verdadeiro guia no início do império,
uma época de grandes promessas, mas também de grande
perigo, um pouco como a América dos anos 1960, mas na
época indivíduos como aqueles eram típicos daqueles
períodos. Sua morte por envenenamento e depois o
assassinato de seu filho Germânico foram como o assassinato
de Keneddy, lançaram uma mortalha sobre toda a dinastia
imperial inicial.
- Isso foi muito anterior ao nosso período - murmurou
Hiebermeyer. - Druso foi assassinado em 10 a.C., durante o
reino de Augusto, quase oitenta anos antes da erupção do
Vesúvio.
Jack assentiu concordando, e continuou, olhando
atentamente para a moeda. - A imagem no meio é a do arco
triunfal em Roma, que tem em cima uma estátua de Druso
montado a cavalo galopando entre troféus. Mas esta não é
uma moeda de Druso. Ele nunca foi imperador. - Jack virou
a moeda novamente. - Esta é uma moeda de seu outro filho,
irmão de Germânico, aquele que sobreviveu à loucura de seu
tio Tibério e seu sobrinho Calígula. Ela data de mais de
cinqüenta anos depois da morte de Druso. A inscrição
mostra TI CLAUDIUS CAESAR AVG PM TR P. Isto
significa Tibério Cláudio César Augusto, Pontifex Maximus,
Tribuna Potestas. O imperador Cláudio.
- Pobre Cláudio - murmurou Maria. - Cláudio, o aleijado.
- Esta é a caricatura - disse Jack. - Mas é um pouco parecida
com o sentido que Shakespeare dá ao rei inglês Ricardo III,
o corcunda. Cláudio era consideravelmente muito mais do
que este apelido.
- Ele foi imperador de 41 a 54 d.C. - disse Hiebermeyer,
olhando novamente para o ventilador centrífugo e
verificando que ele ainda mostrava a luz vermelha. - Morreu
em Roma um quarto de século antes da erupção do Vesúvio,
provavelmente envenenado por sua esposa Messalina.
- Ele tinha má sorte com suas esposas - disse Jack. Seu único
verdadeiro amor foi a prostituta Calpúrnia, mas ela também
foi assassinada por volta da mesma época. - Jack fez uma
pausa admirando a imagem novamente. - A cunhagem desta
moeda de Cláudio sempre foi a minha favorita, uma das
minhas moedas preferidas entre todas as de Roma. Ela é uma
moeda rara, um retrato muito atraente. Olhe para este rosto,
a sua expressão. Ele não está aleijado aqui, é um rosto
bonitão, mas não há glorificação, nenhuma idealização.
Podemos distinguir as feições características da dinastia
Julius-Cláudio, a testa, as orelhas, aspectos herdados de seu
tio-avô Augusto, e de Júlio César antes disso. Cláudio deve
ter conhecido os retratos de seus ancestrais intimamente, e
deve ter ficado orgulhoso ao olhar para este retrato de si
mesmo, ao ver a dignidade que há nele. A fim de ver além
de suas deformidades, de saber que ele compartilhava as
feições de seus ancestrais venerados. Há inteligência
também neste rosto, um anseio, mas também tristeza e dor.
Um jovem homem com o rosto coberto de
desapontamento, olhos mais velhos do que a sua idade.
- Provavelmente, ele teve paralisia - murmurou
Hiebermeyer. - Paralisia cerebral, com alguns elementos
espasmódicos. Não há cura, dificilmente existe qualquer
tratamento paliativo a não ser copiosas quantidades de
vinho.
- E o ópio? - Costas interrompeu subitamente. - A morfina?
Hiebermeyer voltou-se e lançou a Costas um olhar cheio de
piedade. – Nós estamos falando acerca do primeiro século
d.C. Deixe a Nápoles moderna fora disso.
- Eu não estou brincando. Você escutou falar do que nós
encontramos no navio naufragado?
- Mais tarde. - Jack olhou para Costas, e naquele momento o
ventilador centrífugo recomeçou a funcionar.
- Falando da moderna Nápoles - murmurou Hiebermeyer. -
Parece que alguém subornou o operador da rede elétrica
para nos fornecer um pouco de eletricidade. Ou os guardas
levantaram seus traseiros. Seja como for, nós podemos
prosseguir. Como você diria. - As palavras soavam
levemente absurdas no seu sotaque alemão, e Jack abafou
um sorriso. Hiebermeyer empurrou os óculos para cima e
lançou um outro olhar para Costas, dessa vez mais
zombeteiro do que piedoso.
- Ei. Ele é um de nós afinal. - Costas devolveu o olhar com o
rosto inexpressivo, depois olhou para Jack, em seguida de
novo para Hiebermeyer. - Recebido e entendido.
Jack pressionou as costas contra a lateral recortada do túnel
para deixar Maria passar. - Acho que está na hora da nossa
especialista em manuscritos tomar a dianteira.
- Concordo com isso. - Hiebermeyer olhou de modo
interrogador para Costas, que levantou o polegar com
entusiasmo, depois falou seriamente. - De agora em diante,
vamos tocar apenas no que for necessário. Os manuscritos
em papiro que se encontram aí dentro podem estar
extraordinariamente bem conservados, mas também podem
estar frágeis. Mesmo nas tumbas mais secas no Egito, os
papiros que não têm resina preservativa podem se
desintegrar em pó com um toque. - Olhou intencionalmente
para Costas. - Depois de todos os esforços que tivemos de
fazer para obter das autoridades a permissão para entrar aqui,
eu não quero ser o último em uma longa fila de
investigadores que destroem mais do que recuperam deste
local. Muito bem. O ventilador mostra a luz verde. Vamos
em frente.
Alguns momentos mais tarde, Jack, cuidadosamente, ficou
em pé no meio da câmara. Tinha a certeza de que era o
primeiro a fazer isso em quase dois mil anos. Retirou sua
máscara contra poeira e respirou com cuidado. O ar tinha
um cheiro levemente penetrante e doentio, mas continha
pouca poeira. Pela primeira vez ele olhou adequadamente
para a sala, focalizando sua headlamp em todas as paredes ao
redor, em seguida trabalhando metodicamente e voltando a
ver tudo o que havia visto.
- É possível desligar o ventilador agora, Maurice? - ele
murmurou. - Estou preocupado de que nossas vozes possam
viajar e ser ouvidas na saída do sistema de ventilação.
- Feito. - Hiebermeyer virou o comutador, e tudo ficou
sinistramente silencioso. Em seguida, ouviram o som de
tinidos e de vozes distantes mais abaixo no túnel, e os
queixumes da perfuratriz elétrica. - Bom. Este barulho
deverá nos dar cobertura.
- Esta sala é bastante austera - disse Costas, ficando em pé
atrás de Jack e olhando em volta. - Não há muita coisa aqui.
- Era este o costume romano - disse Jack. - Eles gostavam de
ter o chão e as paredes cobertos com cores e ornamentação,
mas muito poucos móveis.
- A sala é toda de pedra, mármore branco pela sua aparência
- disse Maria. Jack olhou atentamente ao redor de novo,
absorvendo o que podia, tentando encontrar um sentido
para tudo aquilo. À direita, no lado sul, a parede estava
perfurada por duas entradas, ambas bloqueadas com material
vulcânico sólido. Ele supunha que elas davam para um
balcão, que contemplava do alto a cidade de Herculano.
Devia ter sido uma vista espetacular, com o Vesúvio
erguendo-se a esquerda e a ampla extensão da baía de
Nápoles à direita, o contorno da costa sendo visível até
Misenum e Cumas. Jack mudou de posição e o feixe de luz
da sua headlamp iluminou uma longa mesa de mármore,
talvez com três metros de comprimento e um metro de
largura, com duas cadeiras de pedra dispostas em sentido
contrário ao da sacada. Sobre a mesa encontravam-se duas
jarras de cerâmica, três copos de cerâmica e o que pareciam
ser potes de tinta. Apenas visível e apoiada em uma perna da
mesa havia uma pequena ânfora de vinho. Jack olhou de
novo para o topo da mesa. Potes de tinta. Seu coração se
acelerou com a excitação. Viu formas empoeiradas que
poderiam ter sido papel, papiro. Estreitou os olhos. Tinha
certeza disso. Forçou-se a permanecer no lugar, e virou seu
feixe de luz para a esquerda. Viu as prateleiras que tinham
visto da entrada, que Hiebermeyer havia visto no dia
anterior. Prateleiras de livros cheias de manuscritos
empilhados. Mais manuscritos se espalhavam pelo chão, da
mesma maneira como Weber havia encontrado em outro
local no século XVIII. Jack virou mais para a esquerda, em
direção ao buraco por onde tinham entrado. Ao lado da
entrada havia manuscritos em uma espécie de cesto de
vime, diferentes dos manuscritos espalhados no chão, com
diferentes remates arredondados aparecendo na parte final
de cada um. Não havia dúvida sobre o que deveriam ser.
Livros terminados.
Dirigiu seu feixe de luz novamente para a parede esquerda
da sala, entre o cesto e as prateleiras, em direção a duas
cabeças obscuras, bustos de pessoas colocados em uma
pequena prateleira olhando em direção à mesa. Deu alguns
passos cuidadosos em direção a eles. Precisava descobrir
quem havia estado ali, quem tinha sido a última pessoa a se
sentar naquela mesa de leitura, quase dois mil anos antes.
Ficou parado na frente dos bustos, e viu que eram em
tamanho natural. Por um momento pareceram ser uma
aparição, como se os ocupantes da vila, naquele dia fatídico,
tivessem saído da parede e estivessem olhando fixamente
para ele. Jack se obrigou a olhar imparcialmente. Eram
típicos bustos de pessoas do início do período imperial,
extraordinariamente naturais, como se tivessem sido feitos a
partir de máscaras mortuárias de cera. Cabeças bonitas, bem
proporcionadas, orelhas ligeiramente protuberantes, eram
nitidamente membros da família imperial. Eram tão
parecidos que poderiam ter sido irmãos. Jack olhou
atentamente para os pequenos pedestais debaixo de cada
busto e leu os nomes.

T. CLÁUDIO DRUSO NERO
T. NERO DRUSO SEMPRÔNIO GERMÂNICO

- Druso e Germânico - sussurrou Jack.
- Os dois sujeitos que você acabou de mencionar um pouco
antes? O sujeito da moeda? - perguntou Costas. - O pai e o
irmão de Cláudio?
- Parece ser uma incrível coincidência - disse Maria.
A mente de Jack estava acelerada. Ele ainda tinha a moeda
na mão, e segurou-a levantada de modo que a cabeça
gravada ficasse emoldurada pelas cabeças dos dois bustos. A
semelhança era notável. Seria possível? - Há alguma coisa a
respeito desta moeda - ele murmurou. - Algo está nos
encarando de frente.
- Esta moeda não é necessariamente muito significativa -
disse Maria. - Esta vila era como uma galeria de arte, um
museu. Os grandes proprietários de vilas na Itália, durante a
Renascença, colecionavam medalhões, moedas antigas. Por
que não os romanos?
- Possivelmente. - Jack olhou pensativo ao redor da câmara.
- Mas acho que estamos no quarto de uma pessoa idosa, ele é
despojado e possui apenas o essencial. Não se trata do
minimalismo romano, e sim de uma verdadeira austeridade.
Livros, uma mesa de leitura, alguns poucos retratos
venerados, vinho. Sem pinturas nas paredes, nem mosaicos,
nada do hedonismo que associamos com a baía de Nápoles.
O quarto de alguém preparado para o próximo passo, para a
vida após a morte, já tendo feito uma limpeza geral do
passado. O crepúsculo de uma vida.
- Isso parece muito estranho para uma vila pródiga - disse
Costas. - Quero dizer, este quarto é como um cubículo de
monge.
Hiebermeyer se agachou, e ficou olhando atentamente para
um dos manuscritos que estavam no chão. - Este papiro está
fantasticamente bem preservado - ele murmurou, erguendo-
o cuidadosamente com os dedos. - Ele é até mesmo
dobrável. Eu posso ler o grego.
- Ah. Está em grego - repetiu Jack.
- O que há de errado com isto? - perguntou Costas.
- Nada. Nada de errado. Nós queremos apenas manuscritos
em latim.
- Más notícias, Jack - disse Hiebermeyer, olhando
atentamente para o manuscrito, depois empurrando os
óculos para cima e olhando para ele. - Eu posso tê-los
trazido para cá para uma busca sem esperança.
- Filodemo.
- Receio que sim.
- Pensei que os filósofos gregos fossem muito apreciados -
disse Costas.
- Nem todos eles - disse Jack. - Uma série de romanos,
homens educados como Cláudio, Plínio, o Velho, pensavam
que muitos desses gregos eram impostores e charlatães,
aproveitadores nas vilas dos mais abastados. Mas há uma
grande quantidade deste material por aqui, e provavelmente
era muito mais verossímil encontrar um livro de alguém
como Filodemo do que de um dos grandes nomes que
reverenciamos hoje. Lembrem-se, os textos clássicos que
sobreviveram, que foram salvos e transcritos no período
medieval, representam somente o apogeu da realização
antiga, e apenas uma pequena parte dela. Eles nos dão uma
falsa impressão e nos levam a pensar que todos os
pensadores antigos eram mentes notáveis. Olhem para o
mundo acadêmico de hoje. Para cada grande erudito, há
dúzias de medíocres, os charlatães ocasionais. Mas todos eles
são ainda chamados professores. Foi apenas um azar para nós
que Calpúrnio Piso tenha protegido um dos menos dotados.
- Confio em Deus que nós não tenhamos nos deparado
apenas com o trabalho de Filodemo - disse Hiebermeyer. -
Isto sempre foi um risco, mas eu ficaria embaraçado.
- Que pena! - disse Maria, encurvando-se ligeiramente. - Um
filósofo de segunda classe. É difícil acreditar que alguém
estivesse tentando salvar tudo isso - ela continuou,
mostrando com a mão os manuscritos espalhados pelo chão.
- Talvez eles não estivessem - disse Costas. - Quem sabe eles
estavam tentando desembaraçar-se deles.
- Ou procurando por alguma coisa, como você disse antes. -
Jack deu uma nova olhada para a forma macabra do
esqueleto na entrada, com a mão parecendo se dirigir em
direção aos manuscritos para agarrá-los. - Mas há alguma
coisa a respeito desta sala. Não acho que seja a sala de estudo
de um filósofo grego. Não no final, pelo menos. Ela é
demasiado romana. É uma sala particular, a expressão de um
indivíduo, não é para exibição pública. Não posso imaginar
um grego escolhendo ter em sua sala dois bustos imperiais
romanos como sua única decoração, a única coisa para ser
vista desta mesa de leitura.
Hiebermeyer deu uma sacudidela no ventilador centrífugo,
e a luz lampejou vermelha. - Vamos esperar mais alguns
minutos - ele disse. - Acho que está tudo bem quanto ao
barulho. Não acho que eles podem nos ouvir lá embaixo
com aquela perfuratriz funcionando.
Voltaram outra vez para a entrada, agrupando-se em torno
dela, e Jack ergueu a moeda. Olhou novamente para as
estátuas, depois de volta para a moeda. Percebeu que a
moeda havia sido bastante manuseada, no mesmo lugar, dos
dois lados. - Talvez ela fosse a lembrança de um velho
soldado - ele murmurou. - Talvez a lembrança de alguém
que serviu sob o comando de Cláudio na invasão da Grã-
Bretanha, ou até mesmo sob Germânico, sessenta anos
antes. Um velho que venerava seu general, o irmão e o pai
de seu general. - Fez uma pausa, perturbado. - Mas isto ainda
é estranho.
- Por quê? - perguntou Costas. - Ela é um grande achado,
mas, como disse Maria, é apenas uma moeda.
- Bem, ainda assim teria sido arriscado - disse Jack. - Você
não se apega a velhas moedas, a menos que as colecione.
Antigamente não era como hoje em dia, quando a razão
principal por que não vemos antigas cunhagens de moedas
em circulação são mudanças em denominação, ou em
modificações nos tamanhos das moedas. No período
romano, a pessoa simplesmente não queria ser vista com
moedas de um imperador anterior. As moedas eram
instrumentos importantes de propaganda, um meio vital de
transmitir a imagem de um novo imperador, confirmando
assim o seu poder. E o reverso da moeda era um pouco
como selos de correio, imagens comemorativas que com
freqüência continha propaganda ostensiva, que celebrava
uma realização nacional. No caso das moedas romanas, elas
ilustravam as realizações do imperador e de sua família.
- O triunfo sobre os judeus de Vespasiano - disse Costas. -
Judaea Capta. A menorá.
Jack sorriu. - Como podíamos esquecer. A cunhagem
daquela moeda foi feita dois anos depois da erupção do
Vesúvio. Um outro famoso exemplo são as cunhagens de
moedas que Cláudio mandou fazer sobre a Grã-Bretanha,
celebrando sua conquista da Grã-Bretanha em 43 d.C.
- Mas esta moeda comemora seu pai. - Costas olhou para a
moeda que Jack segurava, e olhou atentamente de perto
com sua headlamp. - Isto parece uma coisa altruísta para um
imperador fazer, até mesmo um pouco tocante. Acho que
gosto deste sujeito.
- Não é bem o que parece - disse Jack. - Esta moeda data do
primeiro ano do reinado de Cláudio, antes que ele tivesse
qualquer coisa para se vangloriar. Referir-se a um ancestral
glorioso era uma maneira de dar autoridade para sua
reivindicação, lembrando para as pessoas as virtudes de seus
ancestrais. Em 41 d.C., Roma havia acabado de passar quatro
anos de sofrimento sob o reinado insano de Calígula,
sobrinho de Cláudio. O que as pessoas desejavam
desesperadamente era um retorno para os velhos costumes
consagrados. Honra pessoal, integridade, continuidade da
família, viver à altura de seus ancestrais, isso era muito mais
o modo de vida romano. Pelo menos em teoria.
- Na Itália - murmurou Costas. - A importância da família.
Soa familiar.
- Cláudio foi o imperador mais obstinado de Roma -
continuou Jack. - Arrastado de detrás de uma proteção pela
guarda pretoriana quando já estava na meia-idade,
antegozando os anos que lhe restavam como erudito e
historiador. Mas ele reverenciava a memória de seu pai, e
durante toda a sua vida desejou ser bastante apto para se
juntar ao exército como seu irmão Germânico, que ele
adorava. Ser imperador, finalmente, lhe deu uma chance. E
a aclamação de cada novo imperador, mesmo a de Calígula e
de Nero, sucessor de Cláudio, era sempre acompanhada por
uma declaração que prometia solenemente uma volta aos
costumes do passado, o fim da devassidão e da corrupção e
um retorno às virtudes de seus ancestrais.
- Será que Cláudio viveu à altura disso? - perguntou Costas.
- Ele poderia ter vivido, se não fosse dominado por suas
esposas - disse Hiebermeyer.
- A Grã-Bretanha foi um grande triunfo - continuou Jack. -
Cláudio estava condenado a nunca se cobrir com glória
pessoal, afastando-se das ondas do Canal Inglês de modo um
tanto absurdo, montado em um elefante treinado para
combate, chegando a tempo de ver os cadáveres dos
britânicos vencidos, mas não a tempo de conduzir suas
legiões na batalha. Mas era um bom estrategista, um
visionário do tipo que tinha passado sua vida estudando o
império e a conquista e podia enxergar além da campanha
individual, do triunfo. O mundo seria um lugar diferente
hoje se Cláudio não tivesse conquistado a Grã-Bretanha. E
lembrem-se, para os homens que formavam as legiões, nada
poderia ser pior do que Calígula forçando-os a se dispor no
lado francês do Canal Inglês e atacar o Deus do mar Netuno.
Eles não se importavam de ter um aleijado como imperador,
desde que ele fosse sensato. Cláudio escolheu comandantes
muito capazes e fiéis, generais como Vespasiano, oficiais de
médio escalão como Plínio, o Velho, e eles eram leais a
Cláudio. - E os legionários veneravam a memória de seu pai
e de seu irmão. - Jack fez uma pausa, e olhou novamente
para os bustos. - Assim como o ocupante desta sala.
- A lealdade deles não impediu que Cláudio fosse
envenenado - disse Hiebermeyer.
- Não - murmurou Jack. - Mas, para um imperador do
primeiro século, este também era o costume romano.
- Falando em veneno, que história é essa de ópio? -
perguntou Hiebermeyer. - Eu continuo tentando extraí-la
de vocês.
- Você não vai acreditar no que encontramos naquele navio
naufragado.
- Apenas diga-me. - Hiebermeyer olhou para Jack,
empurrou o capacete para baixo, depois olhou para Costas. -
Como vocês podem ver, sou todo ouvidos. - Naquele
momento, a luz lampejou verde, e Hiebermeyer estendeu a
mão e desativou o ventilador. - Vou ter que esperar.
Jack agachou-se de novo para entrar no quarto e foi direto
para a mesa, perto do lado mais distante da entrada, entre as
cadeiras. Examinou a superfície. Ele estava certo. Elas
estavam cobertas com matéria cinzenta, mas não havia
engano. Havia folhas de papel, folhas em branco, papiros.
Uma folha de papiro presa com alfinetes, preparada para ser
escrita. Potes de tinta, um estilo (haste pontiaguda) colocado
em equilíbrio pronto para ser mergulhado na tinta, deixado
onde tinha sido abandonado quando o lugar se tornou um
inferno na terra. Jack desviou o olhar perturbado, depois
ergueu-o de novo para os dois bustos. Druso e Germânico.
Havia romanos vivos em 79 d.C. que ainda se refeririam
àqueles dias gloriosos. As mortes prematuras de dois heróis
significavam que sua memória continuaria viva durante
gerações. Jack lembrou-se de algo que pensara antes. Um
romano devia conhecer as figuras de seus ancestrais
intimamente. E esta era uma sala particular, uma sala onde
um homem mantinha a sua herança tradicional mais
preciosa, as figuras de seus ancestrais.
Jack estava começando a pensar o impensável.
A figura de seu pai. De seu irmão.
As peças subitamente estavam começando a se encaixar.
Jack experimentou um movimento impetuoso de excitação.
Mais alguma coisa irrompeu em sua mente, da conversa com
Costas sobre Plínio, o Velho, no dia anterior. Ele procurou
dentro de sua mochila, o coração martelando, tirou o
pequeno livro vermelho e colocou-o sobre a mesa, debaixo
do feixe de luz de sua headlamp. Ele se apoiou no lugar em
que o livro deixou sua marca na poeira, pegou
cuidadosamente uma folha antiga de papiro, sacudiu-a
ligeiramente, e iluminou-a com sua lanterna Maglite.
Ele riu silenciosamente para si mesmo. - Bem, eu serei
condenado ao inferno.
- O que foi? - perguntou Costas.
Jack ergueu cuidadosamente o papel até a luz de maneira
que os outros pudessem ver. - Olhem, vocês podem ver uma
segunda camada de papiro debaixo desta, mais grossa que a
camada de cima. Isto significa que a superfície é de ótima
qualidade, mas o papel é reforçado, menos transparente. E a
menos que eu esteja enganado, a folha mede exatamente um
pé romano de lado a lado (58,9 centímetros de
comprimento e 29,45 centímetros de largura).
- E daí?
Jack recolocou a folha na mesa e pegou o livro, a sua cópia
da História natural. Ouçam o que Plínio tem a dizer sobre o
papel. Livro 12, capítulo 79, quando fala em árvores:

O imperador Cláudio impôs uma modificação para melhorar
a qualidade porque a finura do papel na época de Augusto
não era capaz de resistir à pressão da pena de escrever. Além
disso, permitia que a escrita fosse percebida do outro lado, e
isto causava receio por causa dos borrões provocados pela
escrita nas costas do papel. Além disso, a excessiva
transparência do papel parecia invisível em outras
circunstâncias. Assim, a camada inferior do papel foi feita
com folhas de segunda qualidade, e as faixas em cruz do
papiro de primeira qualidade. Cláudio também aumentou a
largura da folha para 30,6 centímetros.

Hiebermeyer inclinou-se sobre a mesa e olhou de perto e
com muita atenção com uma pequena lente. - E, a não ser
que eu esteja errado, esta é a tinta de melhor qualidade
disponível naquela época - ele disse muito excitado. - Tinta
natural, com toda a probabilidade, feita a partir do pequeno
besouro do deserto. Sei um pouco sobre isto, porque estudei
tipos de tintas quando encontramos documentos em papiro
reutilizados como envoltórios de múmia no Egito. Plínio
também escreve sobre ela.
- Então vou apresentar meu argumento - disse Jack,
recolocando cuidadosamente a folha sobre a mesa e olhando
atentamente para os outros. - Parece incrível, mas tenho
absoluta certeza de que estamos dentro do estúdio de
Tibério Cláudio Druso Germânico César. - Ele ergueu a
moeda, permitindo que a luz ressaltasse a figura. - Não o
imperador Cláudio, não o deus Cláudio, mas Cláudio, o
erudito. O Cláudio que agora acredito deve ter fingido o seu
próprio envenenamento e sobrevivido durante um quarto
de século depois de seu desaparecimento de Roma,
escondido em um lugar retirado como esta vila. Cláudio, que
deve ter morrido, assim como Plínio, no cataclismo de 79
d.C.
Fez-se um silêncio ensurdecedor, e Costas olhou de modo
penetrante para Jack. - Bem - ele disse baixinho. - Esta é
uma outra pequena parte da história que você vai ter que
reescrever.
- E não a única parte. - Maria estava de costas para eles, e
estava inclinada sobre a prateleira mais baixa no canto da
sala. - Há mais manuscritos aqui, Jack. Muito mais. Muitos e
muitos livros.
Jack deu a volta na mesa e todos eles se agacharam à volta
dela. Ouviu-se um suspiro coletivo de perplexidade. À frente
deles encontravam-se duas prateleiras atulhadas com várias
dezenas de caixas cilíndricas, cada uma com cerca de
quarenta e cinco centímetros de altura. - Elas estão
tampadas, seladas com algum tipo de argamassa - murmurou
Hiebermeyer. - Foram escavadas na rocha e tornadas
côncavas, pelo aspecto parece um mármore egípcio. Elas são
semelhantes aos canópicos. Nenhum gasto foi poupado aqui.
- Este aqui está aberto. - Maria pegou sua lanterna Maglite,
acendeu-a e iluminou o topo do cilindro que estava do lado
direito na prateleira inferior. O interior oco tinha quase 30
centímetros de largura e dentro dele puderam ver outras
formas cilíndricas mais estreitas, com um espaço onde uma
delas parecia ter sido removida.
- Heureca - disse Hiebermeyer baixinho.
- O que é isso? - perguntou Costas.
- Manuscritos em papiros - disse Hiebermeyer. -
Manuscritos em papiro enrolados e introduzidos
firmemente.
- Jack, eles não estão carbonizados - disse Maria. - Isto é um
milagre.
- Vocês têm alguma idéia do que eles são? - perguntou
Costas.
- Deve haver sillyboi, etiquetas descrevendo cada livro -
disse Jack. - Os manuscritos não possuem lombada como os
livros, por isso eram identificados com etiquetas coladas, que
usualmente ficavam penduradas para fora da prateleira. Eu
não vejo nenhuma aqui.
- Espere um segundo. - Maria olhou atentamente para o
topo do cilindro selado próximo àquele com a tampa
deslocada. - Há marcações. Gravações na pedra. Palavras em
latim. Eu consigo lê-las. Carthaginia Historiae.
- A História de Cartago - sussurrou Jack. - A perdida História
de Cartago, de Cláudio. Fantástico. Quem mais além do
próprio Cláudio teria isso, em uma biblioteca particular?
- Espere aí, Jack. - Hiebermeyer tinha se aproximado
silenciosamente do cesto de manuscritos perto da porta, e
estava segurando uma ponta de um papiro preso a uma das
alças decorativas do cesto. - Historiae Naturalis, G. Julius
Plinius Secundus. Parece que nós conseguimos uma edição
completa da História natural, de Plínio.
- Afinal, parece que você encontrou a biblioteca em latim -
disse Costas.
Jack experimentou uma sensação irresistível de certeza.
Olhou para o manuscrito, lembrou da sensação que tivera
quando viu da sala pela primeira vez, daqueles dois bustos. -
Havia alguém mais aqui, uma outra presença. Há algo mais
me incomodando a respeito deste lugar - disse Jack. - Acerca
de quem estava aqui.
- O que é?
- Bem, nós conseguimos o que parece ser uma cópia
completa da História natural de Plínio, recém-saída do
scriptorium. Como Cláudio entrou em posse disso?
Costas virou a cabeça em direção ao esqueleto perto da
porta. - Talvez ele tenha mandado o eunuco comprar os
livros para ele.
- Vamos simplesmente pensar a respeito - disse Jack. -
Vamos dizer que eu estou certo em dizer que Cláudio estava
vivendo aqui em segredo na época da erupção, em 79 d.C. E
um dos fatos mais famosos da história antiga é que Plínio, o
Velho, também estava aqui, na baía de Nápoles, morando
em Misenum distante apenas algumas milhas, almirante da
esquadra romana, e que ele morreu na erupção.
- Você está dizendo que eles se conheciam? - disse Costas.
Jack abriu nas páginas do índice de sua cópia da História
natural. - Foi isso que me despertou a atenção. Plínio
menciona Cláudio um certo número de vezes, sempre
atenciosamente, enaltecendo suas realizações. Ele deve sua
carreira a Cláudio, quando este foi imperador, mas as
passagens na História natural são quase demasiado
laudatórias, para um imperador que supostamente estava
morto havia um quarto de século. Ouçam isto. Ele fala da
realização de Cláudio ao mandar escavar um túnel para
drenar o lago Fucine perto de Roma, que empregou 30 mil
homens e levou onze anos, uma operação imensa "que as
palavras não tinham o poder de descrever". Esta última frase
é estranha, por si só. Para Plínio, absolutamente nada estava
além do poder das palavras. E uma outra coisa. Ele deveria
ter se referido a Cláudio como Divus Cláudio, o divino
Cláudio, mantendo assim o seu status como imperador
deificado, anos depois de sua divinização. Mas, em vez disso,
Plínio se refere a ele como Cláudio César. E essa maneira de
falar é quase demasiado familiar, quase como se Cláudio
ainda estivesse vivo quando ele estava escrevendo sua obra.
Os indícios estão todos aí.
- Isso faz sentido - murmurou Hiebermeyer.
- Cláudio parece ter sido um homem gregário, como Plínio
era - disse Jack. - Cláudio pode ter sido forçado a viver como
um recluso, mas sempre apreciou ter companhia. E Plínio
teria sempre estado em busca de informantes, pessoas que
pudessem ajudá-lo em seu livro História natural. Ele era um
romano prático, simples e direto, e Cláudio deve ter
parecido um sopro de ar fresco para ele, neste lugar que dava
a impressão de estar infestado com gregos amantes do
hedonismo, romanos sob o feitiço de filósofos fracos de
espírito como Filodemo.
- E vice-versa - disse Maria. - Provavelmente Cláudio sentia
o mesmo a respeito de Plínio.
- Cláudio devia ter admirado Plínio - continuou Jack. -
Soldado, erudito, fantasticamente laborioso, um homem
decente. Uma vez, Plínio teve uma visão do pai de Cláudio,
Druso, dizendo-lhe para escrever a história das guerras
germânicas. Com o busto de seu amado pai diante dele aqui,
Cláudio teria gostado de ouvir aquela história do próprio
Plínio, junto com alguns cântaros de vinho.
- Cláudio também teria sido fantasticamente instruído -
acrescentou Hiebermeyer, apontando para as prateleiras. -
Teria sido um verdadeiro encontro de mentes. Ele devia ter
sido uma grande fonte para Plínio em relação à Grã-
Bretanha, embora eu não lembre de muita coisa sobre a Grã-
Bretanha na História natural.
- Possivelmente porque Plínio morreu antes de poder
incorporá-la - murmurou Jack. - Ele tinha morado em
Nápoles apenas por um ano antes da erupção, e
provavelmente não encontrou tempo. Também era bastante
sociável para o seu próprio benefício, e estava
constantemente indo à casa dos amigos, das damas também.
Mas Cláudio deve ter sido uma extraordinária descoberta
para ele, um tremendo segredo. Acredito que Plínio esteve
presente nesta sala. Posso sentir que esteve. Acho que
Plínio veio visitar Cláudio, e eles começaram a trabalhar
juntos. Plínio deve ter dado para Cláudio a cópia mais
recente de sua História natural, mas estava provavelmente
pronto para fazer acréscimos, assim que percebeu a mina de
ouro que havia encontrado.
- Talvez fosse para cá que Plínio estava realmente vindo
quando saiu de barco em direção ao Vesúvio durante a
erupção - disse Costas. - Aquela carta que você leu para
mim, de seu sobrinho. Talvez ele tenha apenas dito a seu
sobrinho que vinha para cá por causa de uma mulher. Quem
sabe, na verdade, ele estivesse vindo para salvar Cláudio, esta
fabulosa biblioteca.
- Mas ele estava muito atrasado - murmurou Maria.
- Eu estou curioso para saber o que de fato aconteceu com o
velho Cláudio, e se ele realmente estava aqui - disse Costas.
- Ele estava aqui - disse Jack veementemente. - Eu posso
quase sentir o seu odor. Vinho envelhecido e derramado por
uma mão trêmula. Um cheiro de enxofre, talvez trazido até
aqui depois de uma visita a Cumas para ver a Sibila, que nós
sabemos que ele consultava quando era imperador. O cheiro
de tinta natural velha. Ele estava aqui, isto é bem certo.
Reconheço isso em meus ossos.
Jack caminhou de volta até a mesa de leitura enquanto
falava. Havia palavras visíveis, onde elas não estavam antes.
De repente, ele percebeu que a folha de papiro debaixo
daquela que ele tinha pegado estava coberta com escrita,
protegida e perfeitamente conservada por quase dois mil
anos. Ele olhou-a atentamente e leu em seu topo:

HISTORIA BRITANNORUM CLAUDIUS CAESAR

- Meu Deus - ele murmurou. - Uma História da Grã-
Bretanha por Cláudio Caesar. Você pode imaginar o que isso
contém? - Examinou com cuidado as linhas de uma escrita
admirável e precisa e depois olhou novamente para o título.
Embaixo havia duas palavras, escritas pela mesma mão, mas
menores:
NARCISO FECIT

- É evidente - exclamou Jack, com a voz rouca por causa da
excitação. - Narciso fez isto. Narciso escreveu isto. - Ele
olhou novamente em direção à entrada, onde a mão
estendida do esqueleto era visível em seu feixe de luz. -
Então, é você afinal de contas - ele murmurou consigo
mesmo, depois olhou para os outros. - Vocês lembram que
eu disse que Narciso era o ex-escravo de Cláudio? Bem, o
seu título oficial era praepositus as epistulis, escritor de
cartas. Isto encerra o assunto. Sabemos, afinal, quem era
aquele esqueleto. Ele era o copista de Cláudio, o seu escriba.
Sabemos que Plínio sempre teve um, e Cláudio deve ter tido
um também, especialmente por causa da sua paralisia. - Jack
olhou de novo para a página, depois para algumas outras
páginas espalhadas por perto, sem escrita, mas cobertas por
manchas de um tom vermelho-escuro como manchas de
vinho. - Isto tudo é fantástico. Só espero que possamos
encontrar algo escrito de próprio punho por Cláudio.
O som da perfuratriz na entrada do túnel havia parado, e
uma voz de mulher estava gritando, com um pesado sotaque
inglês. - Doutor Hiebermeyer? Doutor Hiebermeyer?
Estamos fechando o túnel agora. Venha imediatamente para
fora.
Hiebermeyer gritou de volta dizendo sim em italiano várias
vezes. Maria pegou imediatamente uma câmera digital e
começou a tirar fotos, calma e rapidamente, movendo-se
sem interrupção e passando por tudo o que tinham visto,
terminando com uma seqüência de fotos, tiradas de perto,
da página escrita que estava sobre a mesa. Em seguida,
recolocou a folha de papiro em branco sobre ela.
- Jack, precisamos decidir o que fazer - disse Hiebermeyer
em voz baixa. - Imediatamente.
- Tão logo estivermos fora do alcance dos ouvidos desse
pessoal, vou telefonar para o meu amigo da agência de
notícias Reuters - disse Jack. - Maria tem agora um disco
cheio de imagens, e elas podem ser enviadas diretamente
por e-mail. Mas ficamos em silêncio até lá. Se vazar a
mínima coisa disso agora, nós nunca veremos esta sala de
novo. Você precisa jogar com a carta pericolo, Maurice, para
ganharmos tempo. Dizer que nós não encontramos nada de
interesse, gastamos o nosso tempo examinando alguns
fragmentos de alvenaria que se salientavam da parede. É
extremamente perigoso para qualquer um aventurar-se além
daquela grade novamente. Diga-lhes que a perfuratriz
desestabilizou ainda mais o túnel, e que houve um
desmoronamento. Mas, amanhã de manhã, quando as
imagens saírem, divulgadas pelas manchetes dos jornais e
pelos noticiários de TV por toda parte, eles não terão escolha
a não ser abrir este local. Este será um dos achados mais
sensacionais jamais feitos em arqueologia. E, a propósito,
Maurice e Maria. Muitas felicitações.
- Ainda não, Jack - murmurou Hiebermeyer, andando em
meio aos manuscritos no chão em direção ao ventilador
centrífugo. - Já passei muito tempo lidando com estas
pessoas para ser otimista. Vamos adiar a festa com
champanhe até este lugar se tornar mais do que
simplesmente uma invenção de nossa imaginação.
- Jack, há um manuscrito aberto aqui. - Costas estava parado
ao lado das prateleiras. Olhando atentamente para o nicho
atrás das jarras de mármore.
- Há manuscritos por toda parte - disse Jack. - Este lugar é
uma caverna de Aladim.
- Você disse que queria ver a escrita de Cláudio. Eu não
tenho certeza, mas este manuscrito parece ter sido escrito
com duas mãos diferentes, uma delas mostrando letras um
pouco finas e desiguais. Parece que alguém acrescentou
anotações nas margens.
- Provavelmente o velho louco Filodemo - comentou
Hiebermeyer.
- Acho que Cláudio estava colocando fora os livros de
Filodemo - disse Jack.
- Acho que ele estava abrindo espaço nas prateleiras para o
seu próprio material.
- Caminhou até onde se encontrava Costas, que se deslocou
para o lado, e olhou atentamente para o lugar que o outro
apontava. O manuscrito estava aberto, as duas extremidades
parcialmente enroladas, com alguns centímetros de escrita
visível entre elas. O manuscrito parecia ser idêntico àqueles
que se encontravam no cesto perto da porta, os volumes da
História natural de Plínio, com os distintivos remates
redondos nas alças. Alguém devia ter estado consultando o
manuscrito, depois o colocou de lado aberto em uma página.
A voz da mulher surgiu no túnel outra vez, áspera, aguda.
Maria e Hiebermeyer já estavam de novo perto da entrada,
tirando o ventilador centrífugo para fora da sala.
Jack petrificou-se.
Ele olhou novamente. Duas palavras. Duas palavras que
podiam mudar a história. Sua mente estava acelerada, seu
coração martelando.
Em seguida, pela primeira vez em sua vida, Jack fez o
impensável. Ergueu o manuscrito, enrolou cuidadosamente
as duas extremidades até que se juntassem, e enfiou-o dentro
de sua mochila caqui. Ele fechou a mochila e prendeu as
correias. Costas o observava em silêncio e estupefato.
- Você sabe por que estou fazendo isso - disse Jack
calmamente.
- Sou bom nisso - replicou Costas.
Jack se voltou para os outros dois. - Muito bem. Está na hora
de encarar a inquisição.

CAPÍTULO 10

O homem vestido com a sotaina preta passou pelo
baldaquino em direção ao molhe de Santo André, fazendo o
sinal da cruz em direção ao elevado altar quando passou em
sua frente. Ele era alto, já no final da meia-idade, com
feições finas e aquilinas e óculos de pessoa estudiosa, mas
com a energia sem dureza de um jesuíta que passou anos no
campo. Fez um breve gesto de cabeça para a guarda suíça
que estava parada perto da baixa via de acesso dentro do
molhe, depois olhou para trás, para o baldaquino. Os grandes
pilares pretos que haviam sido moldados por Bernini com o
bronze tirado do Panteão, o templo pagão para todos os
deuses, fora aqui transformado em um esplendor barroco e
atraía a atenção sob a cúpula da maior igreja da cristandade.
Para aquele homem, este lugar sempre fez com que a
sensação de domínio romano sobre a natureza parecesse
insignificante, fraca, assim como o lugar fazia parecer
insignificantes as pessoas que ficavam hoje numa posição
mais baixa que ela. Era um lugar onde tudo podia mostrar a
ascendência da Santa Sé, sobre uma congregação muito
maior do que poderia ter sido imaginada pelos imperadores
na época de Cristo.
Ele aspirou o ar, e enrugou levemente o nariz. O ar parecia
pesado com a exalação de milhares de peregrinos e turistas
que haviam passado por lá naquele dia, como em todos os
outros. As pessoas eram o poder da Igreja, entretanto o
homem achava a realidade da humanidade desagradável e
era sempre aprazível passar distante, dentro dos santuários
dos que receberam as ordens sacras. Lembrou-se por que
estava ali naquela noite. O homem recomeçou a andar a
passos largos e retomou propositadamente seu caminho
descendo as escadas que davam para a gruta debaixo da nave
da Igreja, descendo até o nível do declive romano onde
antigamente havia existido um hipódromo de Calígula e de
Nero e uma cidade dos mortos, escavada dentro da rocha.
Agora era o cemitério dos papas, e o venerado lugar de
repouso de são Pedro. O homem fez novamente o sinal da
cruz enquanto passava por aquele lugar sagrado, depois foi
desviando por entre os alicerces da basílica de Constantino,
o Grande, até uma outra porta e um outro lance de degraus,
que levavam para as profundezas da antiga necrópole. A
porta tinha sido aberta para ele, mas, enquanto passava por
ela, retirou uma chave de debaixo de sua sotaina e com a
outra mão movimentou uma pequena tocha. No final dos
degraus, o feixe de luz iluminou paredes de pedra bruta
alinhadas com nichos e reentrâncias sombrias. Agachou-se
para entrar numa galeria à direita, descendo alguns degraus
entalhados na rocha que davam para uma tumba vazia e
inclinou-se ao longo da parede, achando rapidamente o que
tinha vindo procurar. Enfiou a chave no buraco e uma porta
escondida que se abria para dentro apareceu. Entrou
rapidamente, depois se voltou e trancou a porta novamente.
Estava dentro.
Ele ainda se lembrava de sua impressão na primeira vez em
que se agachou neste lugar. Foi durante a escavação da
necrópole, quando toda a atenção estava focalizada na tumba
de são Pedro. Ele e outro noviço tinham descoberto esta
galeria, uma primeira catacumba cristã fechada desde a
Antiguidade. Ela estava mais conservada do que o restante
da necrópole, com os nichos ainda rebocados e os sepulcros
intactos. Tinham ido juntos, apenas os dois. Então, tinham
feito sua extraordinária descoberta. Somente alguns poucos
ficaram sabendo dela, o pontífice, o chefe do conselho de
cardeais, o homem que detinha a posição que agora era dele,
os outros membros do concilium. Este era um dos grandes
segredos da Santa Sé, uma munição para o dia em que as
forças da escuridão alcançassem os portões sagrados, quando
a Igreja necessitasse reagrupar todas as suas reservas para
lutar por sua própria existência.
Continuou a caminhar em direção a um bruxuleante
reservatório de luz no final da galeria. Ao longo do caminho
revisou as imagens que tinham visto naquele primeiro dia,
expressões simples e rústicas daquela antiga fé que ainda o
comovia poderosamente, mais visceral do que qualquer um
dos ornamentos que enfeitavam a igreja acima. Cristo em
um barco, atirando uma rede, uma mulher sentada ao lado
dele. Cristo em fogo, ascendendo com os seus dois
companheiros crucificados acima das chamas, uma
montanha em chamas como pano de fundo. E nomes por
toda parte, nos nichos das tumbas, nomes formados com
simples mosaicos pressionados no reboco. Priscilla in Pace.
Zakariah in Pace. Símbolos Qui-Rô, imagens gravadas nos
cestos de pão, uma pomba segurando no bico um ramo de
oliveira. Imagens que se tornavam mais freqüentes à medida
que ele se aproximava da fonte de luz, como se as pessoas
desejassem vivamente ser enterradas próximas daquele local,
aglomerando-se ali. E então ele chegou. A galeria alargava-se
ligeiramente, e ele podia ver que a luz que havia à frente
vinha de velas em cada canto de um pedestal colocado no
chão, uma tumba. Era uma estrutura simples, erguida alguns
centímetros sobre o reboco, e coberta com grandes telhas
romanas. Ele podia ler o nome rabiscado na superfície. Fez
novamente o sinal da cruz, e sussurrou as palavras que
outros tinham suspeitado, mas que só ele e poucos outros
sabiam ser verdade. A Basílica de São Pedro e São Paulo.
Duas outras pessoas já se encontravam ali, figuras vestidas
com sotainas e sentadas em nichos baixos talhados na rocha
de cada lado da tumba, os rostos obscurecidos pelas sombras.
O homem de novo fez o sinal da cruz. - In nomine patre,
filii et spiritu sancti - ele disse. Curvou-se ligeiramente para
cada um deles. - Eminências.
- Monsenhor. Por favor, fiquem sentados. - As palavras
eram ditas em inglês, com um ligeiro sotaque europeu do
leste. - O concilium está completo.
A catacumba estava úmida, o que mantinha a poeira no
chão, mas a fumaça espiralada das velas fazia seus olhos
arderem, e ele piscou fortemente. - Vim assim que recebi
sua convocação, Eminência.
- Você sabe por que estamos aqui.
- O concilium só se reúne quando a santidade da Santa Sé
está ameaçada.
- Durante quase dois mil anos tem sido assim - disse o outro.
- Desde a vinda de são Paulo para a irmandade, quando o
concilium se reuniu pela primeira vez nos Campos de Fogo.
Somos soldados de Nosso Senhor, e seguimos seu comando.
Dies irae, dies illa solvet saeclum infavilla.
- Amém.
- Nós aceitamos somente a verdadeira palavra do Messias,
nenhuma outra.
- Amém.
- Nós já nos encontramos uma vez este ano. Já nos
opusemos à busca dos perdidos tesouros judaicos do Templo.
Mas agora uma escuridão muito maior nos ameaça, uma
heresia que vai destruir a própria Igreja. Durante séculos
soubemos disso, usamos todo o nosso poder e até a fraude
para lutar contra ela. Mas agora um novo perigo surge.
Aquele que pensávamos estar destruído, perdido para
sempre, foi encontrado. Uma blasfêmia, uma mentira, meios
de ataque do Demônio.
- O que o concilium quer que façamos?
A voz, quando respondeu, estava dura como o aço, gelada,
uma voz que impedia qualquer argumentação, que não
admitia réplica.
- Procurem-no.

O céu apresentava faixas douradas enquanto Jack dirigia o
helicóptero Lynx em direção às luzes de aterrissagem na
popa do Seaquest. Ele levou menos de uma hora para voar
para o sul da baía de Nápoles, seguindo o contorno da massa
escura das montanhas da Calábria e depois dando uma
guinada em direção à posição do navio, cerca de dez milhas
ao norte do estreito de Messina. O anoitecer estava claro,
quase translúcido, o ar limpo e o mar ondulado pela leve
brisa expirante que vinha do oeste, mas quando o rotor
bateu fortemente no propwash de ambos os lados do navio,
foi como se estivessem descendo através de um redemoinho
de água, as luzes de aterrissagem iluminando o borrifo da
água como um ciclone rodopiando na popa. O Lynx parou
com um barulho alto e Jack esperou os rotores pararem
antes de soltar a fivela da correia e abrir a porta, soltando
uma exclamação de satisfação para o chefe da equipe que
estava amarrando os pontões ao convés. Jack retirou o
capacete, esperou que Costas e Maria fizessem o mesmo e
depois saiu e conduziu-os direto para uma escotilha no final
dianteiro do heliporto. Momentos depois encontraram-se no
laboratório de conservação em alto-mar e a porta fechou-se
atrás deles. Jack escolheu uma estação de trabalho com um
computador no console em um dos lados e uma mesa com
luz do outro lado, ativou um bulbo fluorescente em um
braço de metal retrátil acima da mesa e sentou-se. Retirou de
seu jaleco de vôo um rádio transmissor e receptor e
pressionou o canal de segurança da IMU. Ouviu-se um
estalido e ele falou no receptor. - Maurice, aqui é Jack.
Estamos no Seaquest, sãos e salvos. Eu o manterei
informado. Câmbio. - Esperou uma confirmação, depois
colocou o rádio ao lado do monitor e pôs a correia da
mochila caqui, que tirou do pescoço, em seu colo e enfiou
um par de luvas de borracha que pegou em uma caixa
debaixo da mesa.
- Você acha que ele pode agüentar firme? - perguntou
Costas.
- Maurice? Ele é um profissional. Ele sabe exatamente como
fechar uma escavação. Tudo que precisa fazer é dizer que o
túnel não é seguro, está em perigo de desmoronar, e eles vão
fechá-lo com tábuas. De qualquer modo, eles não querem
que se faça esta escavação. E ele conseguiu Anúbis para
abastecer a imprensa, o que é mais do que o suficiente para
lhes mostrar que a arqueologia foi encerrada. Estamos
prosseguindo com o plano revisado. A Reuters foi avisada,
mas não sobre a biblioteca. Logo que soubermos para onde
isto está nos levando, eu darei um telefonema para expor o
assunto todo. Maria tirou centenas de fotografias digitais, e
elas estão todas aqui. Parecem-se com aquelas primeiras
vistas da tumba do faraó Tutankamon. É absolutamente
sensacional, um material de primeira página. As autoridades
não terão escolha a não ser abrir o local, para que o mundo
possa ver o que nós vimos.
- Eu vou voltar para ficar com Maurice assim que tivermos
acabado aqui - disse Maria.
- Isto é crucial, Maria. Você pode manter a pressão
sanguínea dele baixa. Vocês dois formam obviamente uma
ótima equipe. - Ele sorriu para ela, depois abriu sua grande
mochila. - Agora, vamos ver o que conseguimos.
Segundos mais tarde, o achado extraordinário que Jack havia
tirado da câmara da vila estava diante deles na mesa
iluminada. Ele dava a mesma impressão que Costas e Jack
tiveram quando o viram pela primeira vez, com cada lado do
manuscrito enrolado ao redor de uma vara de madeira, um
umbilicus, e linhas visíveis com a antiga escrita onde o
manuscrito ficava aberto entre as partes enroladas. Jack
colocou dois pequenos protetores com fios retrateis nas
extremidades de cada umbilicus e cuidadosamente puxou o
rolo estendendo-o em toda a sua extensão, cada fio preso na
extremidade da mesa iluminada e atado a um dispositivo
mecânico que controlava o movimento rotacional. Agora
podiam ver a coluna inteira do texto, semelhante a uma
página de um livro moderno. - É assim que os gregos e os
romanos lêem estes manuscritos de lado a lado,
desenrolando-o para revelar a página dessa maneira a cada
vez - disse Maria. - As pessoas pensam com freqüência que
os manuscritos eram difíceis de manejar porque assumem
que eles foram escritos como um texto contínuo de uma
extremidade à outra, e desenrolado aos poucos a cada vez.
De fato, eles eram tão convenientes quanto um códice, um
livro moderno.
- Temos uma sorte incrível por poder ver uma coisa como
esta - murmurou Jack. - Os manuscritos carbonizados
encontrados na vila no século XVIII levaram anos para ser
desenrolados, milímetro por milímetro. Mas tudo o que
vimos naquela sala está incrivelmente bem preservado, e
parece haver algum tipo de resina ou de cera no papiro, o
que significa que ele ainda está flexível.
- Parece que dois parágrafos foram escritos por uma mão,
com uma seção no meio escrita por uma mão
completamente diferente - disse Costas.
- Você tem razão - disse Maria. - O texto principal é como
uma página impressa, escrita pela mão exercitada de um
copista, um escriba. A outra escrita é um pouco espalhada,
se parece mais com uma escrita à mão pessoal, legível, mas
certamente não é a escrita de um copista.
- O que são estas manchas grandes?
- De início pensei que elas pudessem ser sangue, mas depois
as cheirei - disse Jack. - Elas são as mesmas que vi espalhadas
sobre a mesa na câmara. São manchas de vinho.
- Vamos confiar que o vinho era de uma boa safra naquela
última noite - murmurou Maria.
Costas apontou para uma papeleta colada no topo do
manuscrito, como uma etiqueta. - Então, este é o título?
- Eram chamados sillybos - disse Jack, concordando. -
Plinius, Historia naturalis. Eu estava certo. Este manuscrito
foi tirado de entre aqueles que estavam no cesto perto da
porta, indubitavelmente é um texto completo. Eu ainda mal
posso acreditar nisso. Nada como isto sobreviveu em
nenhum outro local da Antiguidade, a primeira edição de
um texto escrito por um dos escritores mais famosos do
período clássico.
- Posso perceber isso - disse Costas. - Mas por que estamos
sendo tão reservados a respeito disso?
- Certo. - Jack apontou para a linha superior do manuscrito.
- O primeiro indício foi a palavra Iudaea. Plínio, o Velho,
menciona a Judéia em vários lugares. Ele nos relata a origem
e o cultivo da árvore balsâmica, e fala a respeito de um rio
que seca em cada Sabá. Isso é típico de Plínio, uma mistura
de história natural competente e de fábula. Mas a discussão
principal se encontra em seu capítulo geográfico, onde ele
nos relata tudo o que ele pensa que vale a pena acerca do
lugar. É isto que conseguimos aqui. - Jack abriu a moderna
edição da História natural de Plínio numa página marcada do
livro, e apontou-a com um dedo. Eles podiam ver o original
em latim do lado esquerdo, e a tradução em inglês do lado
direito. Leu em voz alta a primeira linha:

Supra Idumaeam et Samariam Iudaea longe lateque funditur.
Pars eius Syriae iuncta Galilaea vocatur.

Jack olhou atentamente para a primeira linha do manuscrito,
depois de novo para o texto impresso, lendo-o novamente
em voz baixa. - Elas são idênticas. Aqueles monges
medievais que transcreveram isso fizeram-no de forma
correta, afinal. - Ele leu a tradução. - Além de Edom e de
Samaria estende-se a ampla vastidão da Judéia. A parte da
Judéia que se junta com a Síria é chamada Galiléia.
- Então começou a percorrer o texto, seus olhos movendo-
se rapidamente da tradução para o manuscrito e de volta à
tradução, fazendo uma pausa ocasionalmente quando a falta
de pontuação no manuscrito tornava difícil prosseguir.
- Plínio estava fascinado pelo mar Morto - murmurou. -
Aqui, ele nos conta que absolutamente nada podia afundar
nesse mar, e como mesmo os corpos de touros e de camelos
flutuavam ao longo dele. Ele gostava desse tipo de coisa. Esta
é a dificuldade. Ele estava certo a respeito do mar Morto,
mas havia outras maravilhas sobre as quais ele escreveu que
são inteiramente fabulares, e Plínio não era muito bom em
distinguir fato de ficção. Se ele tinha algum tipo de princípio
diretor, era o de incluir tudo que escutava. Ele confiava
quase inteiramente em fontes de segunda mão.
- Pelo menos em Cláudio ele encontrara um informante
confiável - disse Maria. - Um erudito bastante sólido, de
acordo com a opinião geral.
- Aqui vamos nós - disse Jack. - Isto é logo antes da
disparidade no texto do manuscrito, antes que mudem os
estilos da escrita. Iordanes aminis oritur e fonte Paniade. A
fonte do rio Jordão é a nascente do Panias. - Depois há uma
descrição mais longa:

In lacum se fundit quem plures Genesaram vocant, xvi p.
lomgitudinis, vi latitudinis, amoenis circumsaeptum oppidis,
ab oriente Iuliade et Hippo, a meridie Tarichea, qui nomine
aliqui et lacum appellant, ab occidente Tiberiade aquis calidis
salubri.
Ele se expande em um lago comumente chamado mar de
Genesaré, dezesseis milhas de comprimento e seis de
largura, limitado pelas agradáveis cidades de Iulias e Hippo
ao leste. Tarichae ao sul, sendo que algumas pessoas também
dão ao lago o nome de cada um desses lugares, e Tiberíades,
que possui fontes quentes saudáveis no oeste.

Jack apontou para um mapa que tinha colocado no outro
lado da mesa iluminada. - Dessa vez ele não fala sobre o mar
Morto, mas sobre o mar da Galiléia, cerca de oitenta milhas
ao norte na parte superior do vale do Jordão. Genesaré era o
nome romano para ele, assim como o moderno nome
hebraico Kineret. Tiberíades é hoje a principal cidade no
mar da Galiléia, um recanto popular. Ele se enganou quanto
a Tarichae, ela não fica ao sul, mas a oeste, algumas milhas
ao norte de Tiberíades. Tarichae era o nome romano para
Migdal, o lar de Maria Madalena.
- O lugar onde Jesus começou seu ministério - disse Maria.
Jack assentiu com um gesto de cabeça. - Ao longo da
margem ocidental do mar da Galiléia. - Fez uma pausa e
sentou-se novamente. - Agora estamos chegando à
disparidade no texto do pergaminho. Não há nenhuma
disparidade no texto moderno impresso, baseado na
transcrição medieval, que continua direto falando sobre
betume e o mar Morto.
- Então, o nosso manuscrito deve ser uma versão posterior -
murmurou Costas. - Talvez fosse um em que ele estivesse
trabalhando quando morreu, com atualizações e alterações.
- Ele pode ter pedido ao seu escriba para fazer uma cópia
deixando lacunas, onde achava que era provável que fizesse
acréscimos - disse Maria. - E essa podia ser a cópia que
trouxera consigo para Cláudio.
- A História natural era um processo orgânico, e é difícil
acreditar que uma mente que estava sempre à procura de
novos dados como a de Plínio fosse capaz de deixá-la
isolada, completamente terminada - disse Jack. - E lembrem-
se, mais lugares estavam sendo conquistados e explorados
pelos romanos a cada ano, de modo que havia muita coisa
para acrescentar. Cláudio devia ter sido capaz de contar
muito mais coisas que eram novas para Plínio sobre a Grã-
Bretanha, especialmente pelo fato de que, como sabemos,
ela estava em primeiro lugar na mente de Cláudio na época
da erupção, com a sua própria história da Grã-Bretanha em
andamento. E se Plínio sobreviveu à erupção do Vesúvio,
minha impressão é que ele tinha um capítulo
completamente novo sobre vulcanologia para acrescentar.
- Você pode ler o que está escrito no espaço com outra
letra? - perguntou Costas.
- Eu meramente posso lê-lo - disse Jack. - Ele está escrito
por uma mão completamente diferente daquela que
escreveu o texto principal no pergaminho, com linhas finas
e desiguais, meticulosas. Não tenho dúvidas de que esta é a
verdadeira mão de Plínio, o Velho. - Jack teve uma visão
momentânea, de repente, sentiu-se transportado, de volta,
para aquela sala escondida na vila, quase dois mil anos atrás,
ao pé do vulcão ameaçador, a tinta ainda acabando de secar e
as manchas de vinho ainda cheirando a uvas e álcool, como
se os personagens em cada lado dele não fossem Maria e
Costas, mas Plínio, o Velho, e Cláudio, incitando-o a juntar-
se a eles na exploração da última revelação de seu mundo.
- Bem, fale logo - disse Costas, olhando para ele de maneira
interrogativa. Jack saiu de seu devaneio e debruçou-se sobre
o texto. - Certo. Aqui vai.
Aqui é onde aparecem os nomes, as palavras que vi quando
descobrimos o manuscrito. O motivo para o segredo. - Deu
uma olhada para Costas, depois fez uma pausa, examinando
cuidadosamente o texto para localizar o início e o fim das
sentenças e para pôr o latim em inglês e numa ordem
coerente. - Eis a primeira sentença:

Cláudio César visitou este lugar com Herodes Agripa,
quando eles encontraram o pescador Josué de Nazaré,
aquele que os gregos chamavam Jesus, que meus
marinheiros em Misenum chamam agora de Cristos.

Jack sentiu como se ele tivesse soltado um raio junto com
trovão. Fez-se um silêncio ensurdecedor que foi quebrado
por Costas. - Cláudio César? Cláudio, o imperador? Você
quer dizer o nosso Cláudio? Ele encontrou Jesus Cristo?
- Com Herodes Agripa - sussurrou Maria. - Herodes Agripa,
rei dos judeus?
- Assim parece - replicou Jack com voz rouca, tentando
manter a voz sob controle. - E ainda há mais. - Ele leu
lentamente: - O nazareno deu para Cláudio sua palavra
escrita.
- Sua palavra escrita - repetiu Costas lentamente. - Um
compromisso, uma espécie de promessa?
- Eu traduzi literalmente - disse Jack. - Tenho certeza de que
isto significa algo escrito.
- Sua palavra - murmurou Maria. - Seu evangelho.
- O Evangelho de Jesus? A palavra escrita do Cristo? - Costas
sentou-se subitamente, com o queixo caindo de assombro. -
Santa Mãe de Deus. Percebo o que você quer dizer. O
segredo. Herculano, a Igreja, tudo. Isto é exatamente o que
eles mais temeram.
- E, no entanto, isto é algo que muitos esperaram sem
esperança que algum dia pudesse ser encontrado - disse
Maria, quase num sussurro. - A palavra escrita de Jesus de
Nazaré, com sua própria mão.
- Será que Plínio sabe o que aconteceu com isto? -
perguntou Costas. Jack terminou de acertar as sentenças
seguintes em sua mente e leu a tradução em voz alta:

Genesaré, que é Kineret na linguagem local, é dito derivar
da palavra para o instrumento de corda ou lira, kinnor, ou de
kinnara, a fruta doce e comestível produzida por uma árvore
cheia de espinhos que cresce na vizinhança. E, em
Tiberíades, existem fontes que restauram a saúde de maneira
notável. Cláudio César diz que beber daquela água clareia e
acalma a mente, que soa para mim como ingerir morfina.

- Ah - exclamou Costas. - Morfina. Eu queria que
Hiebermeyer visse isso.
Jack fez uma pausa, e murmurou em voz baixa. - Vamos,
Plínio. Continue com isso. - Ele leu o que vinha depois para
si mesmo, resmungou impacientemente e depois repetiu em
voz alta. - E o mar de Genesaré, na verdade um lago, fica
muito abaixo do nível do mar do Meio ou Mediterrâneo. E,
enquanto o mar de Genesaré é de água fresca, meu amigo
Cláudio me lembra que o mar Morto é notavelmente
salgado, e parte dele não é água, mas betume.
- Meu amigo Cláudio - repetiu Costas, pesando as palavras. -
Este é um belo deslize, não é? Quero dizer, acho que a
sobrevivência de Cláudio devia ser mantida em segredo.
- Isto prova que ele estava vivo - disse Jack. - Acho que este
manuscrito em particular era uma versão anotada pelo
próprio Plínio, uma que ele tencionava levar embora
consigo. Ela foi deixada na sala de estudo de Cláudio,
provavelmente de maneira deliberada. E acho que era para o
próprio benefício de Cláudio também. Vocês devem
imaginar Cláudio sentado ao lado de Plínio enquanto ele
escreve isto, tomando goles e derramando seu vinho, lendo
sutilmente por cima do ombro do outro homem.
Certamente, como sabemos pelo texto conhecido, Plínio já
estava perfeitamente ciente de que o mar Morto era salgado
e produzia betume.
- Ele estava lisonjeando Cláudio - disse Maria.
- Uma clássica técnica de interrogação - replicou Costas. -
Nunca pare no que você já conhece, então as pessoas lhe
dirão mais coisas.
- Há algo mais? - perguntou Maria. - Quero dizer, sobre
Jesus? Plínio parece ter se perdido em uma digressão.
- Talvez haja - disse Jack. - Mas há um problema.
- Qual?
- Olhe para isto. - Jack apontou para o final da disparidade de
letras no texto do manuscrito, depois para a margem do lado
direito. - Li tudo o que podia no texto díspar. Mas você pode
ver no final que algumas poucas linhas foram manchadas,
apagadas. Depois ele escreveu alguma coisa na margem ao
lado delas, muito menor. Ele não tinha reabastecido sua
tinta, talvez até mesmo deliberadamente, de modo que é
quase ilegível. Dá a impressão de que ele tinha escrito no
fim da seção com sua letra algo que desejava ter na edição
publicada, depois pensou melhor naquilo e apagou o que
tinha escrito, depois pensou mais um pouco e colocou uma
nota na margem, talvez uma nota para si mesmo que não
queria que ninguém mais lesse.
- Mas você pode lê-la - disse Costas.
- Não exatamente. - Jack girou a plataforma giratória até que
o manuscrito ficasse a noventa graus, depois puxou uma
lente de aumento presa a um braço retrátil e a colocou sobre
as linhas minúsculas da escrita, muito pouco visíveis na
margem. Ele empurrou sua cadeira para trás para que Maria e
Costas pudessem dar uma olhada. - Digam-me o que
pensam.
Ambos abaixaram a cabeça, e Costas falou imediatamente. -
Isto não é latim, é? Algumas destas letras me parecem
familiares. Há um lambda, um delta. Será que é grego?
- São letras gregas, mas não é a linguagem grega - murmurou
Maria. - Parece ser o precursor do alfabeto grego, aquele que
os gregos adotaram do Oriente Próximo. - Ela olhou para
Jack. - Você se lembra do curso do professor Dillon em
Cambridge sobre a história antiga da linguagem grega? Já faz
um bocado de tempo agora, mas tenho certeza de
reconhecer algumas daquelas letras. Será semítico?
- Você é a estrela da lingüística, Maria, não eu. O professor
orgulhava-se de você. De fato. Ele ainda ele ainda se
orgulha, como demonstrou quando eu falei com ele do
Lynx. Quando peguei este manuscrito da prateleira em
Herculano, dei uma olhada na escrita e tive um súbito
pressentimento. Pedi a Dillon para nos enviar sua última
versão do Projeto Hanno para baixarmos aqui. Ele deve estar
em operação agora.
- Jack! - exclamou Costas. - Computadores? Você fez tudo
sozinho?
Jack fez um gesto em direção ao teclado ao lado dele. - Não
se preocupe. Ele é todo seu.
- O Projeto Hanno? - perguntou Maria.
- Dois anos atrás, nós escavamos um antigo naufrágio de
navio na altura da Cornualha, não longe do campus da IMU.
Costas, você se lembra do Mounts Bay?
- Hein? Sim. Fazia frio. Mas havia grandes peixes em
Newlyn, onde se localiza uma das maiores frotas de pesca do
Reino Unido. - Costas estava sentado na frente do
computador, e digitava ativamente. Ele se voltou e olhou
para Jack. - Eu peguei o que o professor Dillon mandou.
Você quer ver?
Jack assentiu com a cabeça, e Costas empurrou a lente de
aumento e posicionou um braço móvel com um escâner
sobre a margem do manuscrito. Jack voltou-se para Maria. -
Era um naufrágio de um navio fenício, o primeiro
encontrado em águas da Grã-Bretanha, datava de quase mil
anos antes da chegada dos romanos. Encontramos lingotes
gravados com letras fenícias, e uma misteriosa placa de
metal coberta com escrita fenícia. Dillon tem trabalhado
sobre ela desde então. Nós chamamos a tradução de Projeto
Hanno por causa de um famoso explorador cartaginês.
Apenas um nome tirado de um chapéu.
- Então, você acha que a escrita no manuscrito é fenícia?
- Eu sei que é.
- Plínio conhecia o fenício?
- O fenício era semelhante ao aramaico falado ao redor do
mar da Galiléia na época de Jesus, mas isto pode ser uma
coincidência. Não, eu acho que isso tem a ver com Cláudio.
Você se lembra dos manuscritos na prateleira inferior em
sua sala? Era sua história de Cartago, seu maior trabalho
histórico, um que se pensava estar completamente perdido,
mas que agora foi milagrosamente descoberto. Bem, Cláudio
teria aprendido esta língua para poder ler nas fontes originais
a linguagem falada pelos mercadores fenícios que fundaram
Cartago. Ela era virtualmente uma língua morta na época da
Roma Imperial, e acho apenas que este é o tipo de coisa que
posso imaginar Cláudio ensinando para Plínio no tempo
livre que passavam juntos depois de terminar de escrever,
além de tomar vinho e jogar dados. Então, quando Plínio
resolve colocar esta nota, ele escolhe esta linguagem, que
era virtualmente um código. Cláudio está observando e teria
ficado contente e lisonjeado por isto também.
- Eles devem ter sido as únicas pessoas por lá que podiam ler
esta língua.
- É isso mesmo.
- Está pronto - disse Costas. - Há quatro palavras que a
concordância identificou como transliteração, que são
nomes próprios, e foram traduzidas primeiro em latim e
depois em inglês para nós. Uma palavra é Cláudio. A outra,
Roma. E as outras palavras estão todas no léxico fenício de
Dillon. Há uma aqui que até eu sei. Bos, touro. Eu lembro
dela do Bósforo.
O coração de Jack acelerou com a excitação. Podia ser isso.
- Está aparecendo na tela agora.
Maria e Jack ficaram atrás de Costas. Na parte superior do
escâner podiam ver que o manuscrito tinha sido aumentado,
com as letras em estilo grego muito mais claramente visíveis
agora. Abaixo delas havia a tradução:
Haec Implacivit Claudius Caesar in urbem sub sacra bos
iacet.
O que Cláudio César me confiou está em Roma debaixo dos
touros gêmeos.

Jack olhou fixamente de novo. Sua mente estava acelerada.
Apenas um dia depois de encontrar o navio naufragado de
são Paulo eles tinham se deparado com algo extraordinário,
o maior prêmio entre todos. Ele sabia agora que tinha estado
certo em pegar o manuscrito, de mantê-lo escondido até que
seguissem a pista até o fim.
A palavra de Jesus. A palavra final, a palavra que iria ofuscar
todas as demais. O último evangelho.
- Bem? - Maria disse, erguendo o olhar para ele. - Touros
gêmeos?
- Eu acho que sei onde fica isso.
- O divertimento continua - disse Costas.

CAPÍTULO 11

Na manhã seguinte, Jack e Costas pararam ao lado da Via Del
Fori Imperiali no coração da antiga Roma. Eles voaram no
helicóptero Lynx do Seaquest para o aeroporto Fiumicino
em Roma, situado no terreno do grande porto construído
pelo imperador Cláudio, e tinham pegado o trem que seguia
o curso do rio Tibre para entrar na cidade. Jack ficou falando
ao telefone muito concentrado, depois o desligou. Um
furgão transportando seus equipamentos iria encontrá-los
dentro de duas horas ao pé do monte Palatino. Deu um
aceno de cabeça para Costas, e eles se juntaram a um
pequeno grupo de turistas que se encontrava atrás da mesa
de venda de entradas, do lado de fora do antigo fórum.
- Não me parece certo - resmungou Costas. - Quero dizer,
um célebre arqueólogo e seu assistente. Eles deveriam pagar
para você.
Jack colocou o celular dentro de sua mochila caqui e retirou
uma câmera Nikon 90, pendurando-a ao redor do pescoço. -
Eu sempre acho que é melhor permanecer anônimo perto
de sítios arqueológicos. É menos provável que o observem.
De todo jeito, eu jamais os convenceria com essa sua
aparência. - Jack usava botas de deserto, e vestia uma calça
caqui de algodão e uma camiseta solta, mas Costas estava
usando um extravagante conjunto havaiano, completado
com um chapéu da palha e seus óculos escuros de grife.
- Eles devem estar acostumados com isso - disse Costas. - É
assim que os arqueólogos se vestem, quero dizer. Veja
Hiebermeyer.
Jack sorriu, pagou as entradas e guiou Costas para o sítio
arqueológico, descendo uma rampa e dirigindo-se em
direção à ruína de uma pequena construção circular, com
restos de colunas ainda em pé. - Este é o Templo de Vesta -
disse Jack. - Um santuário, na verdade, porque, por alguma
razão, ele nunca foi consagrado formalmente como um
templo. Neste local, o fogo sagrado era cuidado pelas vestais
virgens, ou sacerdotisas vestais. Elas moravam na construção
ao Lado, naquela grande estrutura aninhada ao pé do
Palatino, que era semelhante a um convento de freiras.
- Um convento de freiras bem extravagante - murmurou
Costas. - Então, todo esse assunto é realmente verdade? O
que contam sobre as vestais virgens?
- É claro. Mesmo o que dizem sobre elas serem queimadas
vivas. Não há testemunho mais sensato do que o do nosso
amigo Plínio, o Moço, que escreveu as famosas cartas sobre
a erupção do Vesúvio. Em outra carta, ele escreveu como o
imperador Domiciano ordenou que a principal Vestal
Virgem fosse queimada viva, por ter violado seus votos de
castidade. Domiciano foi uma figura sórdida no melhor dos
tempos, e a acusação foi forjada. Mas ser emparedada num
subterrâneo era a punição tradicional para as vestais que se
desviavam, e ela foi levada para o local designado e murada
viva.
- Isto soa como um domínio do macho quando as coisas dão
muitíssimo errado.
- Você provavelmente está certo. Depois que o primeiro
imperador Augusto se tornou pontifex maximus, o
imperador e a Virgem principal entraram em conflito
frontal. A deusa Vesta era muito poderosa, a guardiã do
círculo familiar. O fogo eterno, o ignis inextinctus,
simbolizava a eternidade do Estado, e o futuro de Roma se
encontrava, portanto, nas mãos das Virgens. Eles a
chamavam de Vesta Mater, Vesta, a Mãe. Ela era como a
Sibila, uma fusão de uma antiga deidade local da Itália com
uma outra importada dos gregos, supostamente trazida por
Enéias de Tróia.
- Mas qual era sua conexão com a Sibila?
- Existem mais semelhanças, algumas delas bastante
notáveis. As vestais eram escolhidas quando meninas entre
as aristocratas de Roma, exatamente como tinha sido feito,
conforme eu acredito, com a Sibila de Cumas. Podemos
descobrir mais coisas aqui. Venha.
Jack levou Costas para subir a Via Sacra passando pelo Arco
de Tito, onde pararam e olharam silenciosamente para a
escultura de soldados romanos em procissão triunfal,
carregando a menorá dos judeus. Depois continuaram até o
monte Palatino e entraram nos Jardins Farnese e em seguida
se dirigiram para as grandes ruínas do Palácio Imperial, no
lado oeste do monte Palatino, que contemplava do alto o
Circo Máximo. Eles foram tocados por uma brisa refrescante
quando chegaram ao topo, mas mesmo assim o calor estava
queimando e Jack levou Costas para um lugar sombreado ao
lado de uma parede.
- Então esta era a região por onde Cláudio andava - disse
Costas, tirando os óculos de sol e enxugando o suor de seu
rosto. - Antes de ele encenar o seu ato de desaparecimento
ao estilo de Bilbo Baggins. Isto parece um grito longínquo
daquela cela de monge em Herculano.
- Foi aqui que ele cresceu e onde passou a maior parte de seu
tempo como imperador afora sua visita à Grã-Bretanha -
replicou Jack. - Mas com a imagem que temos desse lugar
naquele tempo, a imagem de Hollywood, podemos nos
esquecer em grande parte de como de fato era. Nossa visão
do passado é com muita freqüência condicionada por
acréscimos posteriores, anacronismos. O Coliseu ainda não
tinha sido construído, somente foi inaugurado em 80 d.C., o
ano seguinte à erupção do Vesúvio. O Palácio Imperial, a
enorme construção diante de nós, foi começada apenas por
Domiciano, o imperador que teve a luta final com as vestais.
Isto aconteceu quando a megalomania realmente virou
moda, quando os imperadores realmente começaram a viver
como deuses. Mas para Cláudio, como para seu avô Augusto,
era crucial manter a ambição da República, a idéia de que
eles eram simplesmente zeladores. Eles viviam em uma casa
modesta, de fato menor do que a Vila dos Papiros em
Herculano.
- Onde ela era?
- Você está recostado nela agora.
- Ah. - Costas colocou a mão contra o revestimento de tijolo
gasto. - Então Cláudio esteve aqui - ele murmurou.
- E Plínio, o Velho, em 79 d.C. - disse Jack.
- Eu estava me perguntando quando você chegaria a isto.
- A construção na nossa frente, entre a Casa de Augusto e o
Palácio de Domiciano, é o Templo de Apolo - disse Jack. - É
pouco provável que tenha sobrado alguma coisa agora, mas
você tem que imaginar uma estrutura impressionante em
mármore branco, ornamentada com algumas das mais
famosas esculturas da Grécia clássica, tomadas pelos romanos
quando eles conquistaram o leste. Bem aqui onde estamos
sentados era o pórtico, uma estrutura com colunatas que
rodeava o templo. Augusto tinha um encrave construído
dentro do pórtico perto de sua casa, onde estamos agora. Ele
incluía uma biblioteca, aparentemente bastante ampla para
abrigar assembléias do Senado. O encrave pode ter tido
funções administrativas particulares, que incluíam talvez um
escritório em Roma para os almirantes de esquadra.
- Ah - disse Costas. - Plínio, o Velho. Almirante em
Misenun.
Jack fez com a cabeça um aceno de assentimento. - Ele deve
ter conhecido muito bem este lugar. Augusto também
construiu um novo santuário para Vesta, provavelmente
para suplantar o do fórum.
- Bem debaixo da janela de seu quarto de dormir - disse
Costas. - Isso sim e que é controle.
- Parece que as vestais virgens resistiram à idéia de mudar
seu santuário sagrado, e continuaram a favorecer o antigo. E
eis a coisa realmente fascinante, 2 razão pela qual nós
estamos aqui. O santuário para Vesta no fórum continha um
adytum, um santuário interior, um local oculto onde vários
artigos sagrados eram guardados. O fascinum, os falos eretos
que afastavam o diabo, o pignora imperii, os misteriosos
penhores pela duração de Roma, o palladium, a estátua da
deusa Palas Atena supostamente trazida de Tróia por Enéias.
Somente as vestais e o pontifex maximus podiam entrar
neste local, e estes artigos sagrados nunca eram mostrados.
- Uma câmara secreta - Costas refletiu. - Se Augusto estava
planejando este novo santuário como uma réplica do antigo,
ele também construiria uma câmara dentro do novo?
- É exatamente o que eu estava pensando.
- Mas se os artigos sagrados permaneciam no santuário do
fórum, este novo teria ficado vazio.
- Ou não completamente vazio.
- Você está dizendo aquilo que eu acho que está?
Jack abriu sua mochila e retirou uma prancheta com uma
fotografia aumentada de uma moeda romana na parte
dianteira. - Esta é a única representação conhecida do novo
santuário, o Santuário de Vesta no monte Palatino. É de uma
moeda do imperador Tibério, de 22 ou 23 d.C. Você pode
perceber uma construção circular com colunatas muito
semelhante ao velho santuário no fórum, rivalizando
nitidamente com ele. A forma circular pretendia copiar a
forma de cabana da primeira residência romana, a assim-
chamada casa de Rômulo, que foi cuidadosamente
preservada como uma antiguidade sagrada do outro lado da
casa de Augusto. Você ainda pode ver os buracos para
colunas na rocha. O que mais você pode ver nesta moeda?
Costas pegou a prancheta. - Bem, as letras S e C acima do
santuário. Senatus Consultum. Até eu sei isso. E o santuário
tem uma coluna de cada lado, um pedestal com uma estátua.
Há animais, possivelmente cavalos ou touros.
- É isto que decide o assunto - disse Jack muito excitado. -
Nós sabemos que duas estátuas se encontram diante do
Santuário de Vesta em Palatino. Estátuas de animais sagrados
que são oferecidos em sacrifício para os ritos das vestais. As
duas estátuas eram originariamente gregas, esculpidas pelo
famoso escultor Miron do século V a.C. Estátuas de vacas.
- É claro.
- Lembre-se de nosso indício - disse Jack entusiasmado. -
Sub sacra bos. Debaixo das sagradas vacas. Estas duas estátuas
formavam um par único, não há nada semelhante a elas em
Roma. Só pode ser isso que Plínio queria dizer. Ele escondeu
o manuscrito aqui, na câmara vazia debaixo do Santuário de
Vesta no Palatino.
- Exatamente onde? - Costas havia pegado um GPS receptor
e estava examinando ao redor, olhando para o chão sem
traços característicos e as paredes empoeiradas de maneira
vaga.
- Meu melhor palpite é aqui onde nos encontramos agora,
com mais ou menos dez metros de cada lado - disse Jack. -
Desapareceu qualquer sinal do santuário, mas parece claro
que ele devia ter estado deste lado do pórtico do templo,
bem ao lado da casa de Augusto.
- E não podemos usar o GPR, o radar que analisa o solo?
- Há muito mais coisas que acontecem aqui. O local é como
um favo de mel, construção feita em cima de construção.
Até mesmo o leito de rocha está cheio de brechas e fissuras.
- Então, o que fazemos agora? Conseguimos uma
escavadeira?
- Nós nunca encontraremos o local do santuário dessa
maneira. Pelo menos não sem uma quantia enorme de
dinheiro, uma quantidade imensa de procedimentos
burocráticos, e cerca de um ano para conseguir a permissão.
Não, não vamos escavar aqui embaixo.
- Então, o que podemos fazer?
- Podemos ser capazes de subir.
- Hein?
Jack pegou de volta a prancheta, fechou a mochila e
levantou-se com um salto. Deu uma olhada no relógio. -
Vou explicar no caminho. Venha.

Vinte minutos mais tarde, estavam parados em um terraço
ao norte dos arredores arqueológicos do Fórum Romano,
com uma vista magnífica do centro da antiga Roma
estendendo-se diante deles e com a vasta magnitude do
Coliseu ao fundo. - Este é o melhor lugar para se ter uma
noção da topografia - disse Jack. - Retire todas as
construções e você pode ver como o fórum foi construído
em um vale, com o monte Palatino no lado oeste. Agora,
olhe direto em frente e veja como o vale se estende em
direção ao rio Tibre, além dos declives do Palatino. Onde
estamos agora é a colina do Capitólio, o ápice da antiga
Roma, o local onde a procissão triunfal alcançou seu clímax.
Logo à nossa direita está a Rocha Farpeia, onde os
criminosos condenados à morte eram atirados dentro de um
precipício.
- As vestais depravadas?
- Tradicionalmente acredita-se que seu lugar de execução se
situava fora das paredes da cidade, mas Plínio, o Moço, só
menciona uma câmara subterrânea. Ela pode ter estado bem
perto.
- Então fale-me sobre o subterrâneo de Roma - disse Costas.
- Não que eu queira ir até lá. Três mil anos de lama
acumulada.
Jack sorriu, abriu sua mochila e retirou a prancheta
novamente. Guardando de volta a folha com a imagem da
moeda para revelar uma cópia de uma antiga gravura, a
palavra ROMA em grandes letras na parte superior. - Este é
o meu mapa favorito de Roma - ele disse. - Desenhado por
Giovanni Battista Piranesi no século XVIII, mais ou menos
na mesma época em que a Vila dos Papiros, em Herculano,
estava sendo explorada pela primeira vez. Os planos
fragmentários das construções ao redor das extremidades
são, na verdade, partes do famoso Plano Mármore, um
imenso mural originalmente exibido no Templo da Paz de
Vespasiano. Somente dez por cento do Plano Mármore
sobrevive. O mapa de Piranesi reflete exatamente nosso
conhecimento da Roma antiga, como um jogo de quebra-
cabeça de um quadro recortado com algumas áreas
conhecidas com grandes detalhes, outras, muito poucos.
- Ele mostra a topografia com muita clareza - disse Costas.
- É por isso que eu gosto dele - replicou Jack. - Piranesi
manteve as peças do quebra-cabeça até as extremidades,
deixou de lado as construções, e concentrou-se nas colinas e
vales. É isso que eu quero que você veja. - Jack dispôs o
mapa em ângulo de modo que ele ficasse com a mesma
orientação da vista na frente deles, e colocou o dedo no
centro. - Nas épocas pré-históricas, quando Enéias
supostamente chegou aqui, a área do fórum era um vale
pantanoso na extremidade de uma planície inundada.
Quando os primeiros assentamentos se espalharam,
descendo os declives das colinas e dirigindo-se em direção à
terra alagada, o curso de água foi canalizado e finalmente
coberto. Isto se tornou a Cloaca Máxima, o Grande Dreno,
estendendo-se além de onde você pode ver o Coliseu agora
bem debaixo do fórum, depois passando impetuoso ao redor
e bem na nossa frente e derramando-se no Tibre. Havia
afluentes, rios correndo para dentro dele, bem como
construções subterrâneas artificiais, canais de aquedutos.
Tudo isso ainda se encontra ali, um vasto labirinto
subterrâneo, e somente uma fração dele foi explorada.
- Onde se encontra o ponto de acesso mais próximo?
- Estamos nos dirigindo para ele agora. Siga-me. - Jack
conduziu Costas para fora do terraço e entraram na Via di
San Teodoro, as ruínas do Palatino erguiam-se à esquerda e
as construções da cidade medieval à direita. Viraram à direita
e entraram em uma rua estreita que se abria em um pátio em
forma de V, com o tráfego fazendo barulho atrás dele. Em
primeiro plano havia uma grande quantidade de volumosa
ruína, um arco com quatro faces construído sobre enormes
pilares de concreto em cada esquina. - O Arco de Janus -
disse Jack. - Não é a ruína mais gloriosa de Roma, ele é
bastante desprovido de qualquer coisa interessante. Mas
situa-se com cada um dos pilares sobre a Cloaca Máxima. O
local onde o dreno desemboca dentro do rio está somente
cerca de duzentos metros distante, além da via principal. -
Eles passaram por uma abertura na grade de ferro que
rodeava o arco e andaram sob a pedra esbranquiçada. No
átrio do outro lado, o furgão estava parado e dois grupos de
equipamentos de mergulho estavam apoiados sobre as
pedras arredondadas da pavimentação, com dois técnicos da
IMU fazendo verificações em um dos circuitos fechados do
rebreather.
- Isto parece um projeto - resmungou Costas.
- Pensei em lhe apresentar este projeto como uma surpresa
depois de lhe proporcionar uma compreensão do propósito.
Isto é fantasticamente excitante, a chance de explorar locais
completamente desconhecidos no coração da antiga Roma.
- Jack, não me diga que vamos mergulhar em um cano de
esgoto.
Um homem dirigiu-se a eles de onde tinha estado agachado
junto ao arco. Tinha um físico magro e agradáveis feições
italianas, embora parecesse singularmente pálido para um
romano. - Massimo! - disse Jack. - Va bene?
- Va bene. - A voz soava trêmula e o homem era
ligeiramente grisalho. -Você se lembra de Costas? -
perguntou Jack. Os dois homens assentiram com a cabeça e
trocaram um aperto de mãos. - Parece que foi apenas ontem
que nos encontramos na conferência em Londres.
- Foi meu imenso prazer - disse Massimo em um inglês
perfeito, com um sotaque muito leve. - Trabalhamos aqui
sob os auspícios da superintendência arqueológica, mas
somos todos amadores. Foi um privilégio passar algum
tempo com profissionais.
- Desta vez as coisas estão trocadas - disse Jack, sorrindo. -
Esta será a minha primeira aventura em arqueologia urbana
debaixo d'água.
- É a arqueologia do futuro, Jack - disse Massimo, com
paixão. - Nós entramos em antigos lugares partindo de uma
posição mais baixa, e deixamos a superfície intacta. Isto é
perfeito em lugares como Roma. Isto supera ficar
dependurado, como garotos, na barra da camisa de
incorporadoras, esperando por uma chance fugaz de
encontrar alguma coisa antes que uma terraplanagem a
destrua.
- Você está começando a falar como um profissional,
Massimo.
- É um prazer ajudar. Estamos desesperados para ir onde
você está pretendendo. Estávamos esperando o
equipamento adequado para isto.
- Como vocês se chamam? - perguntou Costas.
- Arqueólogos urbanos.
- Ratos de túneis - Jack sorriu.
- Tenha cuidado com esta palavra, Jack - disse Massimo. - O
local onde você está prestes a ir pode voltar para assombrá-
lo.
- Ah, aviso anotado. - Jack pareceu sério. - Você tem um
mapa?
- Ele está debaixo do arco. Seu pessoal vai trazer o
equipamento. Siga-me. - Jack e Costas acenaram para os dois
técnicos, e se dirigiram para uma porta em um dos pilares de
pedra. - Isto sobe para um complexo de pequenas câmaras e
corredores dentro do arco. Que eram usados quando o arco
foi convertido em uma fortaleza medieval - disse Massimo. -
O que ninguém sabia é que a escada se estende também para
baixo, para dentro da Cloaca Máxima. Pressupomos que lá
deva existir um ponto de acesso em algum lugar debaixo do
arco, e viemos procurá-lo alguns meses atrás. A
superintendência nos permitiu remover as pedras. - Ele
apontou para uma boca de lobo coberta, com cerca de um
metro e meio de diâmetro, logo depois de passar a porta. -
Mas, primeiro, alguma orientação. O mapa. - Ele procurou
atrás da porta e pegou um longo tubo de papelão, depois
retirou um papel enrolado e o manteve aberto apoiado na
lateral do pilar.
- Este é um plano de tudo o que sabemos acerca deste
subterrâneo nesta parte de Roma, entre a entrada dentro da
Cloaca Máxima debaixo do Coliseu até o rio Tibre,
exatamente do outro lado de onde estamos.
- É nisto que eu estou verdadeiramente interessado - disse
Jack, usando as duas mãos para apontar para os braços de rio
que davam início ao curso principal da Cloaca Máxima,
depois reunindo as mãos no espaço vazio entre eles.
- Este é um dos nossos achados mais excitantes - disse
Massimo. - Isto se parece com um túnel artificial que se
estende direto sob o Palatino. Pensamos que era do tempo
do imperador Cláudio.
- Cláudio? - disse Jack, surpreso.
- Ele teria amado este tipo de coisa. Ele é o nosso herói. Um
rato de túnel póstumo e honorário. Os maiores projetos dele
eram subterrâneos, debaixo d'água. Escavando o túnel para
drenar o lago Fucine. Construindo o grande ancoradouro em
Óstia. Seu aqueduto dentro de Roma, o Aqua Claudia.
Achamos que um túnel de drenagem debaixo do Palatino
teria sido genuinamente uma especialidade dele. E ele era
um historiador, teria ficado fascinado por qualquer coisa que
encontrassem, ele próprio pode ter descido. Era um de nós.
- Que mundo pequeno - murmurou Costas.
- O que você quer dizer?
- Bem - Costas começou, então Jack lhe lançou um olhar de
advertência.
- Bem, Jack estava exatamente me contando sobre Cláudio,
o ancoradouro, enquanto voávamos para Fiumicino. Um
sujeito fascinante.
- Eu acho que podemos deixar Cláudio de lado até que
realmente encontremos alguma coisa - disse Jack
severamente. - Lembrem-se que estamos em busca de
períodos que datam de centenas de anos antes da época de
Cláudio. Aquilo que falamos ao telefone. A gruta de
Lupercal.
- A gruta de Lupercal - repetiu Massimo com reverência,
depois olhou furtivamente ao redor. - A gruta sagrada dos
ancestrais de Roma, onde Rômulo e Remo foram
alimentados por uma loba. Se você puder encontrar um
caminho para ela no subterrâneo, então nós fizemos
história.
Costas olhou de maneira atenta e interrogativa para Jack, que
se voltou para ele com um rosto sem expressão. - Minhas
desculpas, eu estava esperando até agora para lhe contar
atrás do que nós estamos realmente, eu não quis que
ninguém ouvisse por acaso, que nenhuma palavra
transpirasse - ele disse com um jeito impetuoso, olhando
para Massimo. - Este é um achado assombroso. Arqueólogos
perfurando o chão na Casa de Augusto, no Palatino, abriram
caminho dentro de uma câmara subterrânea, uma cavidade a
uma profundidade de pelo menos quinze metros. Eles
enviaram uma sonda para dentro dela e viram paredes
incrustadas com mosaicos e conchas, como uma gruta. Podia
ser um lugar reverenciado na Antiguidade, mas perdido para
a história, um dos mais sensacionais achados da arqueologia
romana. Estamos aqui para ver se descobrimos uma entrada
subterrânea. Massimo até manteve a superintendência no
escuro. Sua equipe está preocupada com saqueadores que
podem se infiltrar, e querem explorar completamente o local
antes que o achado venha a público.
- O misterioso Palatino com grutas e fissuras - disse Massimo
com entusiasmo. - Só Deus sabe o que mais se encontra aqui
embaixo. A gruta de Lupercal podia ser apenas a ponta.
- Você tem certeza de que esta é a melhor entrada, aqui
debaixo do arco? -perguntou Jack.
- Do outro lado do Palatino, o túnel se estende da Cloaca
Máxima em algum lugar perto do Atrium Vestae, a Casa das
Vestais Virgens - ele replicou. - Nós não fomos além disso.
Este lado aqui definitivamente é o melhor palpite. O braço
do rio que vai para o Palatino encontra-se no curso do
Velabrum, uma antiga corrente que fazia parte
anteriormente de uma outra área pantanosa, canalizada e
formada em arcos por volta de 200 a.C. Fomos até a
extremidade do Palatino, mas depois o túnel desce e se torna
completamente submerso. Ainda não somos mergulhadores
de cavernas. Daquele ponto em diante achamos que são
apenas mais ou menos duzentos metros até onde se situa o
Lupercal e cerca de trinta metros acima.
- O que diz a geologia? - perguntou Costas.
- Tufo calcário, pedra vulcânica. Facilmente trabalhada por
um transportador de lama forte e bom. E algumas vezes
também encontramos formações de calcita, até mesmo
estalactites e estalagmites, onde um lençol de água rico em
cálcio gotejou dentro dos condutos romanos.
- Vamos dar uma espiada naquele buraco - disse Jack,
lançando a cabeça em direção à porta aberta. - Quero ter
uma idéia de com que estamos lidando.
Massimo entrou e parou, depois engoliu fortemente, como
se estivesse a ponto de vomitar. Ele olhou para aqueles que
estavam atrás. - Vocês podem querer respirar
profundamente algumas vezes. Está cheirando um pouco
forte aqui.
- Ergueu a cobertura da boca de lobo, e eles vislumbraram o
início escuro de uma escada em espiral. Um cheiro
indescritível os atingiu. Massimo fechou a tampa
rapidamente, e recuou para fora, apertando a boca.
- Muito bem. Percebo o que você quer dizer. Vamos colocar
o equipamento necessário aqui, fora - disse Jack.
Massimo engoliu fortemente, e sua voz estava rouca. -
Vocês verão uma corda fluorescente cor de laranja se
estendendo ao longo da extremidade da Cloaca Máxima,
depois dentro do Velabrum até onde nós conseguimos ir -
disse Massimo. - Depois disso, vocês estão por sua conta.
- Você não vem conosco? - perguntou Jack.
- Gostaria de ir, mas sofri uma limitação. Tive uma má
experiência ontem, logo abaixo do Fórum de Nerva. Um
cano repentinamente expeliu um bocado de líquido amarelo
dentro da Cloaca e ele se dispersou em uma névoa. Não
tenho idéia alguma do que era, nem quero saber. Eu não
havia colocado o respirador. Estupidez. Tenho vomitado a
cada meia hora mais ou menos desde então. Isto já
aconteceu antes. Só preciso de um pouco de tempo. Um
risco profissional.
- Vocês, caras, se arriscam - murmurou Jack - Então, o que
há aí embaixo? Líquido, suponho?
- Você quer o cardápio completo?
- À la carte - disse Jack.
- Bem, é uma mistura de escoamento das ruas, as coisas que
vivem aí embaixo e vazamentos.
- Vazamentos - murmurou Costas. - Ótimo.
- Lama, diesel, urina. Carcaças de ratos em decomposição. E
uma matéria viscosa cinzenta, bem, ela não deveria estar aí,
mas as saídas da água de esgoto não são exatamente o que
deveriam ser. - Massimo lhes deu um sorriso ligeiramente
macabro, e tossiu. - Mas esta é uma cidade antiga. Sempre
haverá um pouco de permuta.
- Permuta? - perguntou Costas.
- Bem, um conduto fornece água limpa, água para viver, o
outro leva embora o efluente pútrido. Ou, colocando de
outra forma, os canos de água de esgoto levam aos drenos,
os drenos levam esta água embora, o rio flui para o mar. Esta
é a ordem natural das coisas.
- Pura poesia - resmungou Costas. - Não é de admirar que o
rio Tibre pareça verde. É como eu estou começando a me
sentir.
- Nós ficaremos bem, dentro dos macacões de mergulho da
IMU - disse Jack. - Completamente vedados dentro deles,
nenhuma exposição de pele. Eles foram experimentados e
testados nas condições mais extremas, certo, Costas? Se isto
der certo, Massimo, vamos lhe doar todo o nosso
equipamento.
- Isto seria excelente, Jack. Perfetto. - Inclinou-se para um
lado e parecia estar prestes a vomitar. - É melhor começar a
andar. Acreditem ou não, os meteorologistas estão prevendo
uma chuva forte nesta tarde, e a Cloaca pode se tornar uma
torrente. Vocês não querem ser arrastados com ímpeto para
dentro do rio.
- Não gosto da palavra arrastado - resmungou Costas.
- A notícia boa é que, assim que virarem no canto do dreno
principal em direção ao Velabrum, a água se torna clara - ele
disse. - A água debaixo do Palatino vem de fontes naturais e,
como ninguém mais mora por lá, dificilmente há alguma
poluição. Bem embaixo do monte ela deve ser clara como
cristal.
Jack retirou a sua velha mochila caqui, e arremessou-a na
cabeça de Massimo. - Defenda isso com a sua vida, Massimo,
e me esforçarei para que nosso conselho de diretores premie
Costas com uma transferência especial para cá como seu
consultor técnico.
- O quê? - Costas pareceu consternado.
- Um outro rato de túnel honorário. - Massimo lançou para
Costas um sorriso exaltado, e deu-lhe um tapa nas costas. -
Negócio fechado. E agora é minha vez de doar algum
equipamento. - Ele voltou para a câmara dentro do pilar de
pedra e saiu com dois equipamentos profissionais compactos
para escaladas, com dois carabiners de metal, um martelo e
pregos grandes e fortes para serem encravados nas rochas a
fim de sustentar as cordas e um rolo de corda. - Não é
exatamente o que vocês imaginam que iriam necessitar
debaixo de Roma, mas confiem em mim, isto pode salvar-
lhes a vida.
Jack assentiu. - Muito obrigado. - Ele colocou os dois
equipamentos ao lado do restante de seu equipamento e
acenou de maneira amigável para os dois técnicos da IMU
que haviam voltado para perto do furgão para esperar. Olhou
de novo para a tampa da boca de lobo em cima do buraco da
Cloaca Máxima, o lugar para onde logo eles iriam, e respirou
profundamente algumas vezes. Seus gracejos tinham
mantido sua ansiedade de molho, mas agora ele não tinha
outra escolha a não ser se confrontar com o seu pior medo, a
única coisa que realmente podia perturbá-lo. Costas sabia o
que era, e Jack sentiu que ele estava sendo observado muito
de perto. Puxou o macacão de mergulho para si, e agachou-
se para retirar as botas. Ele permaneceria concentrado. Um
prêmio extraordinário poderia estar à espera deles. E túneis
subterrâneos sempre tinham saídas.
Costas olhou atentamente para ele. - Pronto para ir?
- Pronto para ir.
CAPÍTULO 12

A tampa da boca de lobo, acima de Jack deslizou para o seu
lugar com um tinido ressoante, e ele e Costas ficaram
completamente separados do forte barulho de tráfego que
havia em Roma do lado de fora. Tinham dado o sinal de
aprovação final para Massimo e para os dois integrantes da
equipe de trabalho da IMU alguns momentos antes, e Jack se
sentiu tranqüilizado porque os outros ficariam do lado de
fora da boca de lobo, esperando o retorno deles. Mas ele
havia assumido um risco calculado, e agora que estavam
enterrados na Cloaca Máxima ele se viu mais uma vez
ponderando as probabilidades. Não havia assistência de
segurança, nenhum mergulhador completamente em alerta
pronto para auxiliar em um resgate. Era novamente um
outro risco calculado, como o do mergulho deles no navio
naufragado de são Paulo. Mas Jack sabia, pelas experiências
difíceis por que havia passado, que a assistência de segurança
era mais psicológica do que prática, que os problemas eram
solucionados com maior freqüência no local ou então não
eram, e sua habilidade para se sair bem de um mergulho
perigoso dependia dele mesmo somente e de seu
companheiro. E se eles utilizassem mais equipamento e
pessoal isto tornaria sua operação mais visível, e gastaria um
tempo precioso que quase não podiam se permitir. Olhou
para Costas agachado atrás dele, depois dirigiu sua luz para a
escuridão da escada em espiral. Era assim. Eles estavam
sozinhos novamente.
- Irei primeiro - disse Costas pelo intercomunicador.
- Eu achei que esta não era exatamente a sua especialidade.
- Decisão tomada. Estou sempre pronto para experimentar
uma nova bebida. Você está de acordo?
- Conduza.
Costas ergueu-se e desceu fazendo barulho pelas escadas na
frente de Jack, o feixe halogênio de sua headlamp oscilando
ao longo das antigas paredes de alvenaria. Estavam usando os
mesmos macacões da IMU que usaram para mergulhar até o
naufrágio, todo feito de Kevlar reforçado e impermeável que
lhes serviram bem tanto no Ártico como no mar Morto,
com poder de flutuação e sistemas de ar condicionado. Os
capacetes amarelos com máscaras que cobriam
completamente o rosto continham um mostrador digital de
telefone que mostra os dados de apoio à vida, inclusive a
composição da mistura de gás computadorizada alimentada
pelos rebreathers compactos de circuito fechado em suas
costas. A única concessão que se permitiram para estas
circunstâncias fora do comum foram os equipamentos
profissionais para escalada que Massimo insistiu a que eles
levassem. Ajustados e testados antes que colocassem seus
rebreathers alguns minutos antes.
- Isto me lembra de quando nós entramos naquele
submarino afundado no mar Morto - disse Costas, ao andar
com passos pesados ao redor das escadas. - Sinto como se
pudesse cortar o ar com a faca.
Jack engoliu com força. Imediatamente antes de fechar seu
capacete tinha aspirado uma lufada de ar fétido que vinha de
baixo e ainda sentia o gosto nauseante na boca. A última
coisa de que necessitava agora era que este ar entrasse
dentro de seu capacete. Esta era uma realidade humana que
os engenheiros da IMU falharam em considerar. Ele engoliu
novamente. - Bem que os sujeitos que desenham o
equipamento podiam ter feito uma sacola para vômito.
- Eu estava pensando na mesma coisa.
Depois de cerca de trinta degraus, a escada em espiral
terminava em uma pequena plataforma diante de uma porta
em forma de arco, escurecida e encharcada com uma
substância viscosa. Jack aproximou-se e ficou atrás de Costas
e ambos orientaram suas headlamps para a porta. - Aqui está
- disse Jack, tentando soar animado. - O Grande Dreno. -
Adiante deles, o lance direto de escadas conduzia para baixo,
para dentro de um largo túnel, com pelo menos oito metros
de diâmetro e cinco metros de altura, construído de pedra e
tijolo, completamente coberto com alga. Enchendo o túnel
pela metade havia uma massa de líquido negro que se movia,
investindo na direção deles, vindo da escuridão à frente e
fora de vista abaixo. Jack ligou o seu sensor auditivo externo,
e sua cabeça encheu-se com o som quase ensurdecedor da
torrente. Ele o desligou novamente e apontou para a corda
fluorescente cor de laranja que começava onde as escadas
desapareciam debaixo da água. - Esta deve ser a corda de que
Massimo falou - ele disse. - Ela ficou amarrada, e nós
podemos nos arrastar ao longo dela. Há uma saliência na
rocha a cerca de um metro e meio abaixo dela que
comumente fica acima da água, mas tenho a impressão de
que iremos andar a vau. A entrada para o Velabrum fica a
apenas vinte metros adiante de nós.
- Vai ser um inferno de um passeio por um parque aquático
se cairmos dentro.
- O túnel desemboca no Tibre, mas Massimo diz que há uma
grande grade de metal no caminho. Pode não ser um final
feliz.
Costas andou com cuidado, dando o primeiro passo no
túnel. Algo largo e escuro passou a grande velocidade ao
longo de uma saliência estreita e comprida na frente dele. -
Parece que Massimo deixou um de seus amigos aqui
embaixo - disse Costas com desgosto.
- Pelo menos não deveremos ver nenhum destes lá onde
estamos indo - disse Jack, que estava atrás. - De acordo
com Massimo, o conduto que conduz por baixo do Palatino
é puro, não contém matéria suficiente para sustentar formas
de vida mais superiores.
- Isto é tranqüilizador - disse Costas. Continuaram a descer
lentamente, depois alcançaram a corda fluorescente. Costas
movimentou sua headlamp sobre a torrente impetuosa logo
abaixo deles. Ela se parece com o café expresso - ele
murmurou. - Aquela espuma em cima.
- Schiuma, você quer dizer - disse Jack. - É exatamente
como Massimo a chama.
Costas colocou um pé dentro da torrente, segurando
fortemente a corda com as duas mãos. O seu pé criou um
amplo rastro, com uma corrente de espuma passando dos
dois lados. Ele o levantou, e o que parecia ser espuma
marrom, saiu com ele, mas era uma massa viscosa de cor
marrom. Ele empurrou o pé para trás e balançou-o
violentamente. - Jack, esta foi quase a pior coisa que já me
aconteceu - ele disse, ofegante. - Para que passar por isto?
Na Sicília há águas claras e cristalinas. Eu poderia ter ficado
deitado à beira de uma piscina, tirando longas férias e muito
bem merecidas. Mas não, nós viemos mergulhar em um
esgoto.
- É fascinante. - Jack estava se agachando no degrau atrás de
Costas, olhando atentamente para uma pilha de detritos
lavados logo acima da torrente. Costas deu uma virada, com
o pé ainda na água. - Você já encontrou o que queria?
Podemos ir embora agora?
Jack puxou para o lado alguns ossos de roedores, e segurou
no alto um pedaço grosso e enlameado de cerâmica. - Um
pedaço quebrado de uma ânfora romana. Tipo Dressel 2-4, a
menos que eu esteja enganado. O mesmo tipo que
encontramos no navio naufragado, e em Herculano. O
vinho que Cláudio teria bebido. Este material está em toda
parte. - Ele colocou a outra mão dentro da lama e
resmungou. - Há mais aí dentro.
- Deixe aí, Jack.
Jack fez uma pausa, depois retirou a mão e se ergueu. - De
acordo. Só estou sendo um arqueólogo.
- Guarde a sua força para a câmara secreta. Se chegarmos lá.
- Costas pegou o rolo de corda de seu ombro e prendeu uma
extremidade ao prego grande e forte que segurava a corda
fluorescente, e a outra extremidade na correia do seu
equipamento para escalada. - Acho que podemos sacrificar
uma corda aqui por segurança - ele disse. - Eu me recuso a
terminar os meus dias em uma torrente de merda. Fique
firme atrás de mim. - Virou-se de novo e foi descendo até
que o líquido ficasse quase na altura do peito, salpicando seu
visor com espuma. - Eu estou no último degrau - ele disse. -
Vamos em frente agora. - Jack o seguiu, sentindo a pressão
da água empurrar com força suas pernas e seu peito.
Começaram se movimentar para diante com muita
dificuldade e lentamente, poucos centímetros de cada vez.
A sensação era de que a água era pesada, estava saturada, e
Jack podia ver correntes iridescentes de matéria oleosa na
superfície, depois mudando para manchas grandes de
marrom e cinza, uma cor camuflagem. Tentou concentrar
nas paredes, no teto, no trabalho em pedra que tinha sido
feito ali bem antes do Império Romano quando o Velabrum
foi tampado pela primeira vez. Virou a cabeça para trás e
percebeu que o túnel fizera uma ligeira curva para a direita.
Os degraus que tinham descido, da escada em espiral,
estavam agora fora do alcance da vista. Ele virou-se
novamente para frente e retomou a caminhada difícil,
começando a ofegar muito com o esforço. Olhou para baixo
para verificar seu carabiner na corda e depois ergueu o olhar.
Costas tinha desaparecido. Jack pestanejou muito e limpou
sua máscara. Costas ainda permanecia desaparecido. Durante
um instante horrível, Jack pensou que Costas devia ter caído
dentro da torrente, e segurou-se com mais força na corda
grossa e estriada enquanto estava se movendo. Depois, viu
uma luz embaçada saindo da parede cerca de cinco metros a
sua frente, e um capacete amarelo apareceu,
- Este é o túnel lateral - disse Costas. - Amarrei a outra
extremidade da corda a um prego forte lá dentro. - Jack
ergueu-se contra a corrente para dar os poucos passos finais,
então Costas o segurou e o puxou para dentro. Os dois
homens se sentaram por um momento apoiados contra a
parede lateral do túnel, ofegando. Jack sugou a bebida
energética hidratante armazenada dentro de seu macacão,
lavando a boca e soltando-a em seguida para se livrar do
gosto desagradável. Ele olhou em volta. Estavam em um
túnel menor, mas assim mesmo com três metros de altura e
três metros de diâmetro, com um teto arqueado em forma
de abóbada semi-cilíndrica e a superfície inferior plana, um
canal cheio de água fluindo para o centro. O fluxo estava
saindo de dentro da Cloaca Máxima, e a água era clara.
- Está na hora de uma verificação final e real - disse Costas,
olhando para o seu aferidor de pulso. - Aqui deve ser ele. O
Velabrum. Ele está orientado direto na direção do monte
Palatino, e posso ver a corda de Massimo passando adiante
ao longo do lado direito até onde minha vista alcança, seja
onde for que ela se detenha.
Jack colocou a mão na lateral do túnel. - Esta é uma peça de
engenharia impressionante - ele disse. - A Cloaca Máxima, o
Grande Dreno, mostra uma alvenaria e um trabalho em
pedra de vários períodos diferentes desde que foi tampado
no século VI a.C. Mas este túnel é diferente, é uma
construção de um só período. Blocos de pedra retilíneos e
regulares na entrada. Não conheço construção melhor do
que esta. Eu tinha dito que estávamos andando na direção de
um dos maiores canais aquedutos feitos pelos imperadores.
Costas olhou para Jack através de seu visor. - A respeito
deste lugar, Lupercal, Jack. A caverna de Rômulo e Remo.
Não tenho nenhum indício sobre o que você pretende.
- Perdão por apresentar isso de repente para você. Massimo
e eu falamos sobre esse assunto na conferência em Londres,
logo depois que a descoberta da Casa de Augusto foi
anunciada. Eu lhe disse que gostaria de vir e dar uma olhada,
de me juntar ao seu grupo de espeleologia urbana. Quando
percebi ontem que estávamos vindo para Roma, foi o
pretexto perfeito. Assim que me dei conta de que Plínio
havia escondido o manuscrito debaixo do Santuário de Vesta
em Palatino, vizinho à Casa de Augusto e do local onde o
Lupercal foi encontrado. Odeio manter Massimo no escuro,
mas talvez ele nos perdoe assim que lhe contarmos o papel
que ele desempenhou.
Costas resmungou, ergueu-se e começou a ir novamente
para frente, o regato de águas claras que saía da escuridão
adiante se erguia sobre seus tornozelos.
- Odeio dizer isto, Costas, mas você está arrastando alguma
coisa.
Costas se virou, olhou fixamente, e fez um barulho
estrangulado. Uma mistura de filamentos pegajosos de
gavinhas marrons se estendia de seu pé esquerdo até a
Cloaca, e aprisionada no meio delas havia uma forma com
um longo rabo preto se retorcendo. Costas sacudiu o pé
freneticamente, e a massa toda escorregou dentro do dreno
e para fora da vista. - Nunca mais, Jack - ele disse. - Juro por
Deus que você nunca mais vai fazer isso comigo novamente.
- Prometo que vou recompensá-lo. O próximo mergulho
será puro deleite.
- Primeiro temos que sair da versão do inferno. - Costas
retomou sua difícil caminhada subindo o túnel, e Jack o
seguiu de perto. Ele ainda se sentia conectado com o mundo
de fora, que estava a somente uma rápida volta para a base da
escada em espiral, mas, agora, a cada passo que dava, o
subterrâneo parecia estar se fechando sobre ele, havia
escuridão adiante e atrás e apenas as paredes imediatas do
túnel ficavam visíveis sob a luz de sua headlamp. Ele se
obrigou a se concentrar, contando os passos, estimando
quão próximos estavam da base do monte Palatino. Depois
de trinta passos, sentiu que o ângulo havia mudado e que
estavam descendo. As paredes se tornaram repentinamente
salientes, rachadas. A corda fluorescente terminava
abruptamente em um prego forte diante de uma piscina
escura, e ele podia ver onde o teto se inclinava dentro da
água cerca de cinco metros adiante.
- Isto não é natural - murmurou Costas. - Quero dizer que o
túnel não foi desenhado desta maneira. Parece que houve
um abalo sísmico, como algumas daquelas linhas de fratura
em Herculano.
- Eles também tiveram terremotos aqui - disse Jack.
- Um bastante grande, mas há algum tempo atrás. E aqui
pode ser um beco sem saída para nós, embora ainda haja
bastante fluxo passando.
- É hora de nadar - disse Jack.
Costas entrou na poça e espirrou água para os lados, depois
desapareceu em uma grande quantidade de bolhas. Jack o
seguiu de perto, caindo sobre os joelhos e movendo-se
pesadamente adiante, ouvindo o ar em seu macacão sair
quando o seu sistema computadorizado automaticamente se
ajustou para uma flutuabilidade neutra. A água estava
extraordinariamente clara, como no cenote em que tinham
mergulhado no Yucatán, e mesmo aqui Jack se sentiu alegre
como sempre que estava debaixo d'água, a excitação do
desconhecido. Pegou as nadadeiras que estavam enroladas
atrás da barriga das pernas e enfiou-as, e saiu com velocidade
atrás de Costas. Seu aferidor de profundidade mostrava três
metros, depois seis. O terremoto havia criado uma fossa no
túnel e eles estavam voltando para cima novamente. Viu a
sua frente que Costas tinha voltado à superfície, e que o
chão do túnel se elevara para menos de um metro de
profundidade. Nadou para cima tão distante quanto podia,
tirou suas nadadeiras de novo e saiu da água ao lado de
Costas, que estava olhando adiante no túnel.
- Eu tive aquele sentimento outra vez - disse Costas.
- Qual sentimento?
- O sentimento de andar para o passado. Eu o experimentei
em Herculano, mesmo no navio naufragado. Ele é estranho,
como um déjà vu.
- Então, você também teve - murmurou Jack.
- Talvez ele seja a força do impulso.
- Uma vez me explicaram isso - disse Jack. - Não se trata do
fato de que de alguma maneira você já esteve aqui antes,
trata-se de que você já teve este sentimento emocional
antes, em circunstâncias muito similares. Seu cérebro está
lhe pregando peças. É um curto-circuito.
- Não, Jack. Já vi isto em você. É a força do impulso.
- De acordo. É esta força. Você tem razão. Talvez você possa
usar um pouco dela para nos fazer passar pelo obstáculo
seguinte. - Jack apontou para outra depressão no túnel, mais
rachada e com a alvenaria fragmentada, uma outra piscina.
Jack sabia que agora eles deveriam estar na verdadeira
extremidade do monte Palatino, debaixo de pelo menos
oitenta metros de tufo calcário quebrado. Costas entrou
novamente na piscina esparramando líquido e Jack o seguiu.
Desta vez, o túnel recuperou sua forma original e continuou
debaixo da água, mas cerca de dez metros adiante ele ficou
mais apertado. Quando Jack se aproximou nadando,
percebeu que o ponto de constrição era provocado por duas
colunas de cada lado. Além delas, o túnel se estreitava em
uma galeria de escoamento, como um canal de aqueduto,
mais alta do que larga, com um teto em forma de abóbada
semi-cilíndrica. As dimensões permitiam que ficassem em
pé eretos e andassem pelo túnel, em fila simples. Ele
estendeu a mão e tocou a coluna com a mão direita. Ela era
de granito cinzento, com manchas pretas e brancas, uma
pedra vista em todas as ruínas de Roma, nas colunas do
Panteão, na basílica de Trajano perto do antigo fórum. Jack
sabia que o granito vinha do Mons Claudianus no Egito, a
grande pedreira aberta pela primeira vez sob o imperador
Cláudio, um outro de seus feitos inconfundíveis na cidade
eterna.
- Maurice teria amado isso - murmurou Jack. - Seu projeto
de doutoramento era sobre as pedreiras de Cláudio no Egito,
e é de lá que vem esta pedra.
- Jack, dê uma olhada nisto. - Jack girou e olhou para cima, e
percebeu que Costas tinha ido para a superfície cerca de três
metros acima dele, movendo-se para cima e para baixo num
oscilante reflexo de água, sua lanterna de cabeça formando
padrões mutáveis cor de prata. Jack subiu lentamente,
pressionando o seu controle de flutuabilidade para injetar ar,
lembrando de exalar à medida que a pressão ambiente
diminuía. Sua cabeça emergiu fora da água, e ele respirou
com dificuldade, atônito. O feixe de luz de Costas estava
iluminando a face de um rochedo que se erguia diretamente
acima das colunas e da entrada do conduto. Ela se estendia
bem alto acima deles, com pelo menos quatro metros de
altura e cinco metros de largura, escavada na rocha viva.
Acima deles, Jack podia ver o ornamento triangular de um
frontão triangular, projetando-se meio metro para fora da
rocha. Olhou para a água outra vez e viu as colunas. Era uma
via de acesso monumental. Jack olhava para ela,
atemorizado. Era como as fachadas desbastadas na rocha em
Petra no Jordão, no entanto escondida debaixo do Palatino,
uma curiosa mistura de ostentação e sigilo, a criação de
alguém que se preocupava com sua própria realização, mas
não com o que outras pessoas pensavam delas.
- Examine isto - disse Costas. - Dê uma olhada na face da
pedra debaixo daquele ornamento triangular. - Jack ergueu a
cabeça novamente acima da superfície. Um efeito de
redemoinho provocado pela corrente abaixo os tinha
empurrado para mais perto da face da rocha, e ela estava
agora ao alcance da mão. Ele estendeu a mão e a colocou
sobre a rocha. O que parecia ser bolor e muco era rocha
dura, e ele percebeu que era um crescimento por
justaposição de calcita, um vazamento do lençol de água
sobre o qual Massimo falara. Viu regatos de água muito
pequenos correndo pela rocha, evidentemente vindos da
água da chuva muito acima. Depois, notou incisões regulares
na rocha. Jack deu um impulso e orientou sua headlamp para
cima. É claro. Devia haver uma inscrição monumental. A
calcita estava sobre a inscrição como uma cobertura de
açúcar, mas, em vez de manchá-la, parecia clarificá-la,
cristalizá-la. Havia quatro registros, com letras de apenas
sete centímetros e meio de altura, apenas suficientemente
grandes para serem vistas do chão da câmara. Ele tinha
estado certo. Quem quer que fizera esta dedicatória, a fizera
para sua própria satisfação particular e para santificar o lugar,
não para impressionar as massas. Jack a leu:

TI.CLAVDIVS.DRVSI.F.CAISAR.AVGVSTVS.GERMANIC
S
PONTIF.MAXIM.TRIBVNICIA.POTESTATE.XII.COS.V
IMPERATOR.XXVII.PATER.PATRIAE.AQVAS.VESTIAM.
SACRA.SUA.IMPENSA.IN.URBEM.PERDVCENDAS.CVR
AVIT

- Isto é autêntico, não há dúvida a respeito - murmurou
Jack. - Apresenta a ortografia caracteristicamente arcaica da
palavra César, que se refere aos dias de glória de Julius, aos
dias da República. A parede também mostra isso, ela é
esculpida em forma de blocos, em estilo rústico, as
superfícies são deixadas toscas, quase uma falta exagerada de
acabamento. Absolutamente característico de Cláudio, de
construções em que ele tinha um envolvimento pessoal. E é
típico de Cláudio fazer os detalhes das epígrafes retos.
- Você está falando do nosso Cláudio? Isto foi algo que ele
fez? Jack traduziu a inscrição:

Tibério Cláudio, filho de Druso, César, Augusto, Germânico,
Sacerdote Chefe, com Poder Tribunício pela décima
segunda vez, Cônsul por cinco vezes, Imperador vinte e sete
vezes, Pai de seu País, acompanhou a construção à sua custa
das Águas Sagradas das Vestais.

- Isto vai deixar Massimo contente - disse Costas. - É tudo
que precisamos contar para ele. Os seus ratos de túnel
podem organizar uma festa aqui embaixo. Seu herói.
- A fórmula é similar à inscrição de Cláudio no Aqua
Claudia, na Porta Maggiore, onde o aqueduto entrava em
Roma - disse Jack. - Mas a coisa fascinante aqui, a coisa
única, encontra-se naquelas três palavras. Aqua Vestiam
Sacra. As águas sagradas das vestais. O que significa que
Massimo também pode estar certo acerca disso. Uma
conexão com a Casa das Vestais do outro lado do Palatino, o
canal que se junta ao outro que sai da Cloaca Máxima que ele
explorou sob o antigo fórum.
- A coisa que parece estranha é que este não é um dreno da
Cloaca - murmurou Costas. - Ele é exatamente o oposto. O
fato de que a água é clara, como cristal deste lado sugere que
ela deve ser assim também do outro lado, fluindo de volta
em direção ao fórum. Deve haver um indício de uma grande
fonte no meio disso tudo, bem debaixo do Palatino.
- Uma espécie de fonte sagrada - murmurou Jack. - Talvez as
vestais fossem as guardiãs.
Costas olhou de novo para o seu computador de navegação.
- Considerando a direção deste túnel e a angulação provável
do outro túnel debaixo do fórum, o ponto de confluência
deve ser quase exatamente debaixo de onde estávamos
sentados ao lado da Casa de Augusto hoje de manhã. Talvez
aquela gruta, o Lupercal, fosse de fato uma via de acesso em
declive para a fonte, uma passagem secreta que saía do
palácio. Talvez toda aquela tolice daquele mito, de Rômulo e
Remo pudesse ser o que você diz dele.
- Acréscimo por justaposição - murmurou Jack. - Acréscimo
histórico.
- Correto. Acréscimo por justaposição - disse Costas. - O
acréscimo, o mito, podiam até ter realçado a importância da
fonte. O primeiro assentamento de Roma ocorreu no monte
Palatino, correto? Bem, o controle de uma fonte podia ter
sido crucial para o seu sucesso. Talvez estejamos a ponto de
descobrir a razão pela qual Roma se tornou grande.
- Você nunca cessa de me surpreender - disse Jack. - E faz
sentido o fato de que as vestais estivessem envolvidas, um
antigo sacerdócio que data da fundação de Roma,
provavelmente de um costume anterior. Ao santificar este
lugar, ao mantê-lo secreto e puro, eles também estavam
salvaguardando Roma, que era o seu principal propósito.
- Está na hora de descobrir. - Costas saiu de perto da rocha e
soltou ar de seu sistema de flutuabilidade, dirigindo-se para
debaixo da face da rocha entre as duas colunas. Jack tardou
por um instante, olhando para a inscrição, sentindo-se em
estado de limbo, sua excitação repelindo uma apreensão que
ainda não o invadira completamente, mas que estava ali. Ele
mergulhou e seguiu Costas dentro do túnel, que agora estava
completamente submerso de novo, com a abóbada de tufo
calcário acima dele.
- Concreto à prova de água - disse Costas. Jack podia ver o
cone de luz de sua headlamp alguns metros à frente,
direcionado para uma seção da parede do canal que tinha
rachado parcialmente e desmoronado.
- Uma outra especialidade de Cláudio - disse Jack, se
aproximando por trás de Costas. - Foi como ele construiu os
diques debaixo d'água do seu grande ancoradouro em Óstia,
e o concreto é o que eles costumavam usar para alinhar os
aquedutos. Aqui dentro, era provavelmente usado para
impedir o lençol de água de se despejar dentro do canal,
contaminando a água da fonte. O ingrediente indispensável
do concreto hidráulico era um pó chamado pozolana, da
antiga Pozzuoli. Que se chama Puteoli na baía de Nápoles,
ao lado dos Campi Flegrei.
- Um mundo pequeno - murmurou Costas, enquanto se
impulsionava à frente. Jack passou pela seção danificada e
depois chegou debaixo das pernas de Costas, onde este havia
parado, cerca de quinze metros além das colunas que tinham
marcado a entrada para o conduto.
- Está tudo atravancado aqui - disse Costas. - Parece que
houve um desmoronamento.
- Um beco sem saída? - perguntou Jack.
Costas curvou-se e procurou dentro do bolso de ferramentas
em seu macacão. Retirou um dispositivo do tamanho
aproximado de uma colher, ativou-o e o manteve ao seu
lado. Jack observou a luz vermelha cintilante tornar-se
verde. - O medidor de corrente mostra que ainda recebemos
fluxo. Qualquer que seja a localização da fonte, ela ainda está
a nossa frente. - Costas colocou o medidor no bolso e olhou
para o aferidor em seu pulso. - E ainda estamos subindo com
uma ligeira angulação, cerca de dez graus. Com esta
velocidade chegaremos à superfície vinte metros à frente, se
o túnel continuar com a mesma angulação depois deste
entulho.
Jack moveu-se debaixo de Costas, e olhou atentamente para
a mixórdia de fragmentos de tufo calcário no chão do túnel.
Estendeu a mão e deslocou um fragmento, depois deslocou
mais alguns. - Dê uma olhada nisto - ele disse. - Há uma
fenda abaixo de nós, uma fissura na base do túnel. Ela deve
ter se aberto quando o tremor trouxe abaixo o teto. Nós
podemos ser capazes de passar por ela.
Costas desceu até onde Jack estava, e olhou dentro do
buraco, posicionando a cabeça de maneira que o feixe de luz
iluminasse dentro da fenda. - Você pode ter razão - ele
disse. - Ela se alarga a nossa frente, talvez tenha a largura de
um corpo, e continua até onde consigo ver. O entulho
parece ter ficado compactado no topo da fissura, e não caiu
dentro dela. Se pudermos remover mais ou menos dois
metros, poderemos alcançar o ponto em que a fissura se
alarga o suficiente para passar por ela nadando.
- É a minha vez de ir na frente - disse Jack. Costas moveu-se
de costas e olhou atentamente para ele, seu visor quase
tocando o de Jack e fez o sinal de aprovação. Os dois
homens se conheciam muito bem e as palavras não eram
necessárias. Era sempre a segunda etapa que cabia para Jack,
a realização de que a evasão não era simples e fácil, que ele
necessitaria voltar através de vários espaços submersos antes
de alcançar a passagem final para a liberdade. Sua
experiência de quase-morte quando menino num poço de
mina submerso nunca o abandonara, e surgia novamente
todas as vezes em que era confrontado com circunstâncias
similares, todas as vezes em que sua mente começava a
travar dentro da sensação de déjà vu. Ele já tinha
experimentado o aperto gelado da claustrofobia antes que
visse a inscrição, e agora necessitava de todas as suas
reservas de energia para lutar contra ela, sua própria batalha
secreta que apenas Costas conhecia. Tomar a dianteira
ajudava-o a focalizar-se, a concentrar-se, a encarar o
objetivo adiante como sua própria busca pessoal, a sentir
responsabilidade por aquele que agora vinha atrás dele.
- Nós ainda estamos a cerca de seis metros de profundidade -
disse Costas.
- Pelos meus cálculos, estamos a cerca de trinta metros do
ponto diretamente abaixo da Casa de Augusto e daquele
templo onde estávamos sentados no topo do Palatino.
- Muito bem. Lá vamos nós - murmurou Jack. Inclinou-se
para baixo e deu um impulso para passar pela abertura.
Moveu as nadadeiras com empenho, mas não foi a lugar
algum. Ele estava começando a hiper-ventilar. Jack fechou
os olhos, depois sentiu Costas colidir com ele por detrás. - O
seu rolo de corda ficou preso numa rocha. - Ele sentiu um
empurrão forte, e depois estava flutuando livremente dentro
da fissura, que rapidamente se alargou para cerca de dois
metros. Percebeu que estava descendo, e descendo
rapidamente. Olhou para seu aferidor. Já descera quinze
metros. Devia ter desativado o controle automatizado de
flutuabilidade ao se comprimir para passar pela fissura, e se
atrapalhou com os controles na lateral de seu capacete.
Houve um assobio de gás dentro do macacão e ele reduziu a
velocidade, alcançando uma flutuabilidade neutra aos
dezoito metros. Pela primeira vez olhou ao longo da
extensão da fissura a sua frente. A água ainda estava clara, e
horizontalmente ele podia ver pelo menos até trinta metros,
até um ponto em que as paredes toscas de tufo calcário
pareciam juntar-se novamente. Olhou para baixo, uma
escuridão absorvedora, um abismo como ele nunca tinha
visto antes, profundamente abaixo do coração de uma das
cidades mais antigas do mundo.
Ouviu resmungos e imprecações através do seu
intercomunicador, e ergueu o olhar para ver Costas entalado
na fissura. Começou a nadar de volta para ajudá-lo, e depois
Costas passou, descendo até que ambos ficaram no mesmo
nível a doze metros de profundidade. - Este lugar é
fenomenal. - Costas ainda ofegava por causa do esforço, mas
estava olhando com atenção para baixo. - A fenda da
destruição.
- Eu não consigo ver o fundo - disse Jack. - Ele deve estar
pelo menos cinqüenta metros abaixo de nós, até mesmo um
bocado mais.
- Não me preparei com o necessário para um mergulho de
descompressão debaixo de Roma - disse Costas. - Não temos
gás para isso. - Ambos verificaram o registro de informação
do computador dentro de seus capacetes, que mostrou que a
mistura para os seus rebreathers estava se adaptando para a
profundidade.
- Eu diria meia hora, não mais que isso, com vinte e cinco
metros de profundidade no máximo. Qualquer outra
profundidade além desta é um mergulho fanfarrão, então
estamos fora disso.
- Podemos ter sorte - disse Jack. - Olhe ao longo do topo da
fissura. - Ele movimentou o feixe de sua headlamp ao longo
dela, e Costas o seguiu. Podiam ver o reflexo brilhante da
superfície da água no seu ponto de entrada, depois nada
além de rocha por cerca de dez metros, depois uma outra
mancha oscilante de prateado, esta com cerca de três metros
de comprimento. - É como se encontrasse a superfície
novamente - disse Jack. - Vamos subir.
Começaram a subir na direção apontada pelo feixe de luz de
Jack. Costas girou de costas olhando para cima e para baixo
da fissura, depois olhando com atenção para a rocha
diretamente acima deles. - Geologicamente, isto é muito
interessante - ele murmurou, um pouco para si mesmo. - A
fissura é claramente uma fenda sísmica, com dezenas, talvez
centenas de milhares de anos de idade. Parece que ela
sempre esteve cheia de água, suprida pela fonte. Depois,
direto acima dela, há aquele túnel construído por Cláudio,
desmoronado por um terremoto mais recente. Você pode
perceber partes do teto cortado na rocha do túnel acima de
nós. Meu palpite é que nunca se pretendeu que o túnel fosse
dar dentro da fissura, mas que ele se estendesse acima dela
em direção àquela piscina para a qual estamos nos dirigindo.
Isto é exatamente o que eu acho. O túnel deve ser uma
espécie de saída, um conduto para prevenir alagamento
quando a água aqui fica muito alta.
- Olhe para aquilo - exclamou Jack, apontando para a lateral
da fissura. - Há um lance de quatro, cinco degraus talhados
na rocha, conduzindo para a piscina.
- Parece ser uma nascente - disse Costas. - Talvez tenha sido
aqui que eles tiveram acesso à fonte. Estamos chegando
quase diretamente debaixo do lugar onde aquelas cabanas
pré-históricas foram erguidas, a casa de Rômulo, cerca de
sessenta metros acima de nós.
Jack chegou à superfície, primeiro, depois cautelosamente
subiu as escadas, estendendo o pescoço ao redor para ter
certeza de que havia bastante espaço para a cabeça. Olhou
para trás para se certificar de que Costas estava atrás dele,
depois prendeu as nadadeiras atrás das barrigas das pernas
antes de sair da água e ir para uma superfície de rocha plana.
Estava dentro de outro túnel, mas espetacularmente
diferente daquele pelo qual tinham vindo. Jack se virou ao
redor, olhando. Na extremidade norte, cerca de dez metros
a sua frente, o túnel chegava ao fim e se tornava uma
pequena câmara, ligeiramente mais larga que as dimensões
do túnel. Na outra extremidade, a mais ou menos a mesma
distância, o túnel se abria em uma caverna rochosa,
obscurecida em sombras. O próprio túnel era escavado na
rocha viva, com cerca de três metros de largura e cinco de
altura, com um corte transversal trapezoidal como uma
pirâmide truncada. Jack girou ao redor e examinou
cuidadosamente toda a extensão novamente, depois olhou
de perto para uma parede, inspecionando as antigas marcas
de picareta. A parede era antiga, muito mais antiga do que
qualquer outra coisa que eles tinham visto. Olhou de novo.
E subitamente ele compreendeu. - Meu Deus - ele
sussurrou.
- Um outro túnel? - perguntou Costas, com seu físico
gotejante aparecendo ao lado de Jack.
- Não somente um outro túnel - murmurou Jack. - Um
dromos.
- Um quê?
- Onde você viu esta forma antes?
Costas lançou um olhar ao longo do túnel, o perfil retilíneo
das paredes emoldurado por seu feixe de luz. - Na Idade do
Bronze - disse ele, soando triunfante. - Na Idade do Bronze
grega. Aquelas tumbas que você me mostrou em Micenas,
na Grécia. Um dromos era um corredor sagrado. Do tempo
da Guerra de Tróia, Enéias, tudo aquilo.
- E isto pode finalmente fixar a origem de Roma, uma vez
por todas - disse Jack, com a voz baixa. - Nós nos
encontramos na idade do mito novamente, Costas,
exatamente como na Atlântida, o mito tornado real. Mas
estou pensando em algo mais perto de casa. Isto é quase
idêntico ao dromos na Gruta da Sibila em Cumas.
- A Sibila - murmurou Costas. - Então ela também tinha um
apartamento em Roma.
- Tudo isto está começando a fazer sentido - murmurou
Jack. - O Lupercal, a gruta sagrada da origem de Roma.
Aposto que é o que está a nossa frente, aquela caverna. E
acabamos de emergir da fonte, vital para a sobrevivência de
Roma. Um lugar sagrado, santificado e protegido. Sabemos
que o ritual de Cumas envolvia águas lustrais, ritos de
purificação. E depois, há o lado negro.
- O da dissolução de todas as coisas no dia do juízo final -
disse Costas.
- A entrada para o mundo subterrâneo.
- Exatamente como em Cumas, os Campi Flegrei - disse
Costas.
- E no topo de tudo isto fica sentada a Sibila.
- Gostaria de saber se ela já estava aqui quando eles
chegaram, os primeiros romanos, ou se eles a trouxeram
consigo - refletiu Costas. - E também estou curioso em saber
como as vestais virgens participam de tudo isto.
- Talvez existam respostas aqui. Precisamos chegar à
caverna. Venha.
- Antes de fazer isso, você pode querer dar uma olhada na
outra extremidade deste túnel. Há algo no meio daquela
câmara. - Jack se virou para seguir o olhar de Costas. Com os
seus dois feixes de luz concentrados, a câmara ficou mais
iluminada. Caminharam ao longo da via de acesso em
direção a ela. As antigas paredes estavam listradas com os
depósitos de calcita que cobriam o tufo calcário como uma
fina camada de gelo. Alcançaram a entrada da câmara. Ela
era um domo perfeito. Com cerca de oito metros de
circunferência, com pequenas aberturas retangulares no teto
que antigamente poderiam ter sido respiradouros de ar,
evidentemente entupidos agora. No lado mais distante havia
o que pareciam ser os restos deteriorados de uma estátua,
sobre um pedestal. Na frente dela havia uma depressão
circular no solo com cerca de três metros de largura,
rodeada por borda recortada na rocha, e preenchida com
uma massa preta que se parecia com um material resinoso
preto selado debaixo de um depósito de calcita. Jack olhou
para aquilo, e depois para a figura deteriorada atrás dele. - É
claro - ele sussurrou.
- O que é?
- Aquela estátua, parece que ela pode ter sido antigamente
de uma mulher - ele disse. - Uma mulher sentada. Uma
estátua de culto. E isto é um piso, um piso sagrado. - De
repente, Jack ficou muito alegre e excitado. - É por isso que
os santuários de Vesta no fórum e no Palatino nunca foram
inaugurados, nunca se tornaram templos. É porque eles não
eram os locais onde se exerciam as atividades principais, eles
eram apenas a face pública do culto. Esta câmara era o
verdadeiro Templo de Vesta.
- Jack, a estátua. Ela tem uma inscrição.
Jack deu a volta ao redor do piso e seguiu o feixe de luz de
Costas. Na base da estátua havia uma fina placa de mármore
embutido, com cerca de trinta centímetros de lado a lado.
Jack agachou-se e olhou atentamente para ela. – Estranho -
ele disse. - Esta não é uma inscrição dedicatória, nem uma
parte do pedestal. Ela estava desprendida e colocada aqui
como uma escora, ou ao menos estava até que a calcita
colou-a no lugar. - Ele se curvou o mais possível, depois se
encostou ao chão. O latim tornou-se claro sob seu feixe de
luz, e ele leu em voz alta:

COELIA CONCÓRDIA
VESTALIS MÁXIMA
ANNO DOMINI CCCXCIV

- Bem, eu serei condenado ao inferno - ele disse. - Coelia
Concórdia, Principal Vestal, 394 d. C. Ela foi a última vestal,
e naquele ano o culto foi abandonado. Quem sabe ela fez
esta placa e a trouxe para cá ela mesma, no final. É estranho,
no entanto que tenham usado Anno Domini. Ano de Nosso
Senhor. O império já era cristão por quase um século
naquela data, mas se pensava que as vestais tinham resistido
ao cristianismo até o final. Elas não participavam dele.
Costas estava silencioso, e Jack olhou para ele. - Você ainda
está me ouvindo?
- Jack, isto não é uma estátua.
- O que você quer dizer? - Jack fez um esforço para ficar em
pé, depois escorregou e caiu por cima da estátua, segurando-
a perto de si. Ele estremeceu e recuou, inclinando-se por um
momento enquanto flexionava o joelho que tinha batido no
chão, olhando com cuidado para a forma deteriorada que
estava a alguns centímetros de seu rosto. Repentinamente,
ele gelou. Ela não era absolutamente de pedra calcária. Era
um crescimento por justaposição de calcita, uma estalagmite
estranha e sem forma que se erguia mais de um metro acima
do solo, envolvendo um assento de pedra. Ele olhou outra
vez para o que o assustou. Era uma serpente esculpida em
pedra, verde, subindo contorcida pela parte de trás da
cadeira, olhando para ele através de uma máscara translúcida
de crescimento por justaposição.
- Não ali, Jack. Por aqui. Dentro.
Jack se movimentou dando um passo à esquerda e seguiu o
feixe de luz de Costas. Então ele o viu, preso dentro do
cálcio, encostado indolentemente de um lado.
Um crânio humano.
Ele respirou com dificuldade, deu um passo atrás, depois
olhou novamente. Havia mais coisas. Um esterno, costelas,
omoplatas. A estátua não era de jeito nenhum uma estátua.
Costas tinha razão. Era um esqueleto, um esqueleto humano.
Pequeno, quase como o de uma criança, mas com a maxila
de alguém velho, muito velho, todos os dentes estavam
faltando. Então, Jack viu algo mais. O esqueleto ostentava
um colar, um colar de ouro antigo como os usados pelos
gauleses, ouro maciço, uma visão extraordinária no coração
de Roma, alguma antiga pilhagem, talvez do mundo celta. E
acima do crânio, presos no acréscimo por justaposição havia
fragmentos cintilantes de folhas de ouro e de jóias de um
penteado elaborado, o penteado de uma mulher romana
rica, uma matrona.
Então Jack percebeu. Ela tinha vindo aqui para morrer.
Coelia Concórdia, a última das vestais. Mas uma vestal
envolta em serpentes. Não apenas uma vestal. Uma Sibila.
A mente de Jack estava tumultuada. Então a Sibila não
morrera com a erupção do Vesúvio. Ela tinha voltado para
cá, voltado para sua gruta debaixo de Roma, para um outro
lugar na entrada para o Hades. E o oráculo tinha
sobrevivido, vivera por mais de três séculos depois que
Cláudio encontrara a morte, depois que o antigo mundo da
Sibila de Cumas havia sido consumido pelo fogo. Esta Sibila
tinha visto Roma até o fim, visto Roma elevar-se e cair no
final, visto além do mundo pagão e a introdução em uma
nova ordem, uma cujos inícios ela tinha observado todos
aqueles anos antes, entre os proscritos que ficavam perto de
sua gruta ao lado dos Campos de Fogo.
- Jack, dê uma olhada na mão dela.
Jack olhou para baixo, quase incapaz de respirar. Ele olhou
de novo. Então foi isso o que aconteceu com as sibilas. Elas
se tornaram o que tinham previsto. Elas realizaram sua
própria profecia. Ela estava segurando uma cruz.
Repentinamente ele viu um clarão de luz, uma oscilação
momentânea. Por um segundo, Jack pensou que podia estar
alucinando. Depois, foi violentamente arrastado para um
lado, para um canto da câmara, empurrado para o chão. Uma
mão bateu com força na lateral do seu capacete e sua luz se
apagou. Ele ficou totalmente no escuro. A pressão sobre ele
relaxou, e a voz de Costas chegou pelo intercomunicador,
ela estava tensa. - Sinto muito por isso, Jack. Mas há mais
alguém aqui embaixo.

CAPÍTULO 13

Durante alguns momentos, permaneceram no chão da
câmara, em completa escuridão. Seus intercomunicadores
eram praticamente inaudíveis com o alto-falante externo
desativado, embora instintivamente falassem em voz baixa. -
Jack, eu achei que você tinha dito que nada mais estaria vivo
aqui dentro. - Costas se deslocou até a extremidade da
câmara e olhou atentamente ao longo da linha do dromos,
que era um corredor sagrado, em direção à gruta na outra
extremidade. Jack arrastou-se atrás dele. Suas headlamps
ainda estavam apagadas, mas tinham ativado os óculos para
visão noturna dentro dos capacetes. Havia luz natural apenas
suficiente para os sensores trabalharem, não suficiente para
ser percebida a olho nu, mas bastava para que Jack
percebesse a forma de Costas a sua frente, como uma
mancha verde. Fazia sentido que houvesse luz vinda das
fendas e fissuras que conduziam para fora, onde a sonda dos
arqueólogos tinha penetrado dentro da gruta em algum lugar
à frente deles.
- Você tem certeza de que era uma tocha?
- Positivo. Eu estava olhando na direção oposta enquanto
você estava comungando com a morta. Uma olhadela para
aquela coisa bastou para mim. Então eu vi o feixe de luz. Ele
brilhou saindo de algum lugar do lado esquerdo da gruta.
- Ali é onde o outro túnel, aquele da casa das vestais, deveria
entrar - disse Jack. - Mas só Deus sabe como eles entraram
ali.
- Se nós pudemos fazê-lo, outra pessoa também pode.
- O mapa de Massimo mostrava entradas dentro da Cloaca
no Fórum de Nerva e debaixo do Coliseu - disse Jack. - Seus
rapazes foram trazidos de volta por uma galeria de
escoamento alagada, não tinham o equipamento adequado.
Alguém com o equipamento correto poderia ter encontrado
um caminho, mas não um de seus rapazes. Ele teria nos
contado.
- Isto é uma coincidência?
- Você se lembra de Elizabeth em Herculano, a oficial
superintendente? Minha antiga amiga?
- O que ela tem a ver com isso?
- Elizabeth tentou me agarrar logo antes de deixarmos
Herculano, tentou falar comigo, eu acho que ela estava
assumindo algum tipo de risco, ao fazer isso tão
publicamente, fora da entrada da Vila, com todos os
trabalhadores por perto, mas isso foi um aviso. Eu não
pensei muito sobre o assunto naquele momento. Não era
nada que não soubéssemos, mas um aviso.
- Você acha que estamos sendo seguidos?
- Se for quem eu acho que são, eles terão tentáculos por toda
parte. E se sabem que estamos aqui dentro, devem supor que
estamos atrás de alguma coisa. E se, de alguma maneira, têm
alguma idéia de atrás do que estamos, é um prêmio pelo qual
morreriam.
- E matar em nome disso.
Jack ergueu-se atrás de Costas e olhou por cima de seu
capacete. Tudo o que pôde discernir estava manchado de
verde, com manchas mais escuras na extremidade. - A única
coisa que podemos fazer é agir com desembaraço. É
provável que seja só um sujeito. As entradas do Fórum e do
Coliseu são bastante públicas. Poderia ser muito arriscado
entrar mais de um sujeito, sem serem vistos.
- Talvez as autoridades fechem os olhos diante disso.
- Roma não é Nápoles - disse Jack. - Mas você pode estar
certo. No momento, todos os que estão naquela gruta vão
acabar se aborrecendo consigo mesmos por manter a tocha
acesa quando saírem do túnel. Imagino que eles fizeram um
passeio bastante perigoso, a menos que tenham o tipo de
equipamento que nós temos. E quanto mais tempo ficarmos
com nossas luzes apagadas, provavelmente mais eles irão
supor que nós os descobrimos.
- Você quer dizer que devemos continuar como se não
tivéssemos visto nada?
- Eles podem pensar que entramos por uma passagem lateral,
um beco sem saída, e voltamos novamente. Acendemos
nossas luzes, vamos adiante, encontrar o que estamos
buscando. Vamos ter que acender as luzes de todo jeito, para
subir naquela gruta e encontrar o lugar debaixo do santuário.
Eles não vão iniciar qualquer ação contra nós até que
encontremos algo.
- De acordo. Acenda as luzes, vire-as para cima por detrás
como se estivéssemos acabando de chegar de algum lugar.
- Eu não estou armado, Jack.
- Eu tenho o martelo de rocha em minha mão direita -
murmurou Jack. -Lição aprendida. Se eu não tivesse forçado
Ben a sair de férias, ele teria insistido para que trouxéssemos
a Beretta. Há até um bolso para ela no macacão. Fica para a
próxima vez.
- Próxima vez?
Acenderam suas headlamps - depois ficaram em pé no
corredor e começaram a andar para frente, passando pela
borda da piscina através da qual tinham subido. Depois de
cerca de dez metros, alcançaram o final do túnel e a
extremidade da gruta. Giraram seus feixes de luz ao redor, e
puderam ver que se tratava de uma grande caverna natural,
que se estendia pelo menos vinte metros para cima. À
direita havia uma antiga escada talhada na rocha, alargando
os contornos naturais da caverna, os degraus de tufo calcário
tinham sofrido erosão de maneira tão violenta que estavam
inclinados. À meio caminho, subindo a caverna, havia uma
série de fendas muito grandes e deslocamentos na rocha, e
podiam ver a continuação das escadas que prosseguiam
muito acima dali, perto do teto, acima de um precipício
recortado. Diretamente abaixo de uma ponta aguçada no
chão da caverna, puderam ver uma abertura idêntica ao
canal do aqueduto pelo qual tinham passado anteriormente,
com pequenos regatos fluindo dentro dele. - Este é o outro
canal - murmurou Jack, examinando cuidadosamente o que
envolvia a rocha ao redor da entrada. - Você pode ver
alguma coisa?
- Ainda não.
- Mas agradecemos Massimo e à corda que nos deu. Ele
tinha razão. Parece que vamos ter que escalar a rocha.
- Você vai. Eu vou ficar escalando ao redor da base da
caverna, explorando em busca do tesouro perdido, certo?
Posso apagar minha luz, para ter um melhor contraste de
luz, você sabe, para ver aquelas câmaras secretas. Algumas
vezes, você pode me perder de vista.
- Tenha cuidado. É provável que este cara esteja armado.
- Ele não atirará até que encontremos o tesouro.
- Esta é a teoria.
- Então não o encontre.
- Eu lhe direi quando o encontrar - disse Jack. - Em voz bem
alta.
Jack tirou o rolo de corda do ombro com presteza e
começou a subir as escadas. Logo perdeu Costas de vista em
meio às saliências do rochedo, e seu feixe de luz
desapareceu. Jack odiava a sensação de vulnerabilidade,
sabendo que havia olhos espreitando cada um de seus
movimentos. Costas não era assassino, e não era uma figura
das mais imperceptíveis. Jack parou e olhou para cima
ostensivamente. Se jogassem as cartas direito, havia uma
chance. Mas algum tipo de prova final era inevitável. Ele se
enrijeceu e continuou a subir, concentrando-se apenas na
subida. Depois de trinta passos, alcançou o final, o lugar
onde o terremoto arrancara uma grande seção da rocha,
criando uma face íngreme com pelo menos dez metros de
altura. Ele inspecionou o rochedo, avaliando
cuidadosamente os pontos onde podia apoiar-se. O rochedo
podia ser escalado. Ele amarrou a corda na sua correia,
depois soltou o equipamento do rebreather das costas,
colocando-o no degrau atrás dele, soltou as mangueiras do
seu capacete e ergueu o visor. Pela primeira vez desde que
sentiu o bafo fétido do dreno uma hora antes, ele saboreou o
ar. Estava úmido e quente, e Jack podia ouvir água gotejando
ao seu redor. O temporal que Massimo havia predito devia
ter começado. Ele se impulsionou para a face da rocha. O
tufo calcário parecia que podia facilmente se reduzir a pó,
mas ele sabia que era forte, pedra vulcânica boa, onde podia
se agarrar. Ergueu-se, com as pernas e os braços abertos
sobre a rocha, usando seus longos membros para encontrar
apoios. Cerca de cinco metros acima, bateu o primeiro prego
grande com o som reverberando através da caverna. Bateu
um outro prego três metros acima. Depois de mais dois
metros, ele se encontrou acima do precipício principal, com
uma saliência à sua frente e depois havia escadas para cima,
que continuavam dentro da face do rochedo. À direita,
vislumbrou uma fissura larga com decoração de mosaicos,
conchas incrustadas. Devia ser a fissura que os arqueólogos
tinham encontrado debaixo da Casa de Augusto. Agora sabia
com certeza absoluta que as escadas conduziam para debaixo
do perdido Santuário de Vesta no Palatino, para a câmara
secreta que eles estavam procurando, e que estava apenas a
alguns metros à frente.
Ele se virou, martelou um último prego grande, logo acima
da borda do rochedo íngreme, depois amarrou a corda em
sua correia e por debaixo das costas, descendo pela corda os
primeiros poucos metros. O regato abaixo do túnel que
conduzia para o fórum havia aumentado muito, era agora
uma torrente. A água da chuva devia ter feito com que a
água do reservatório da fonte transbordasse, e o túnel estava
agora cumprindo a tarefa que Cláudio havia designado para
ele. Jack fez uma pausa, respirou profundamente. - Está aqui.
- Gritou, tão alto quanto podia.
- Costas, eu o encontrei. Estou descendo.
Ele desceu pulando mais dois metros. De repente, alguém
agarrou seu tornozelo esquerdo como se fosse um torno, e
ele começou a girar descontroladamente. Ele olhou para
baixo, ainda segurando a corda com a mão direita. Uma
figura vestindo um macacão de mergulho estava olhando
para ele, usando uma máscara de mergulho bem ajustada, as
pernas em volta da corda logo acima da escada. Uma mão
segurava o tornozelo de Jack, a outra uma pistola com
silenciador, dirigida para a cabeça de Jack. - Dê o que
encontrou para mim - disse o homem friamente, com um
sotaque italiano pesado. Jack olhou para baixo e não disse
nada. Uma bala passou perto de seu rosto, em seguida o som
abafado do silenciador. Um tiro de advertência. Jack
percebeu algo com o canto de seu olho, uma forma. Ele
girou, como se tivesse perdido o equilíbrio, e mirou a cabeça
do homem, uma pancada assassina. Mas o braço que
segurava seu tornozelo estava mais próximo, e ele atingiu o
pulso do homem, fazendo com que a pistola caísse girando
dentro da caverna. Simultaneamente, Costas atirou-se sobre
as pernas do homem, trazendo-o abaixo com um enorme
estrondo. O homem tentou erguer-se, tropeçou, caiu e bateu
no canal abaixo com um estalido repugnante, e desapareceu,
e foi levado de roldão pela torrente. Jack se deixou cair para
ajudar Costas, que também tinha retirado seu respirador e o
visor. - Você está bem?
- Ótimo - arquejou Costas. - Eu só queria que você acertasse
aquele martelo na testa do pequeno bastardo.
- Não acho que ele vai nos perturbar mais - disse Jack.
Costas limpou um pouco de sangue de sua boca e olhou para
baixo. - Ele foi verdadeira e completamente expulso. -
Ergueu o olhar novamente, para a face do rochedo íngreme.
- Certo. Puxe-me. Isto você pode fazer por mim. Quanto
antes pegarmos o que viemos procurar e sairmos daqui,
melhor.

Vinte minutos mais tarde, estavam em um espaço estreito
acima do lance final de degraus talhados na rocha. Jack se
espremeu em direção à fenda até onde conseguiu ir, os
braços erguidos acima dele dentro da cavidade da câmara.
Ele não pôde perceber nada. Insinuou-se um pouco mais,
mas não adiantou. Sua cabeça estava apertada na lateral
contra o topo da fenda, e tudo que conseguiu ver foi a lateral
da fissura entalhada a alguns centímetros de seu rosto.
Tateou cegamente com as mãos, mas havia somente um
espaço vazio. Arqueou as costas, empurrando fortemente, e
sentiu que se movia insignificantemente à frente, um ou
dois centímetros. Subitamente, seus dedos encontraram uma
resistência. Rocha molhada, alisada, diferente da rocha
irregular da fissura. Separou as mãos e tateou ao redor. Era
uma câmara circular, com cerca de sessenta centímetros de
largura, escavada na rocha viva. Ele a percorreu com os
dedos até onde conseguiu alcançar, e tocou a base da
câmara. Passou lentamente os dedos ao redor da borda.
Nada.
Ela estava vazia.
Jack escorregou ligeiramente, e olhou atentamente para a
face apenas visível debaixo de seus pés. - Posso tatear a
câmara. - Sua voz soou peculiar, ressoando na câmara, mas
depois morrendo na fissura. - É um buraco cilíndrico furado
dentro da rocha. Posso tatear tudo ao redor da base. Não há
nada dentro.
- Tente no meio. - A voz de Costas soava distante, abafada. -
Talvez haja uma outra câmara menor escavada abaixo dela.
Jack virou até onde pôde para a direita, um ou dois
centímetros novamente. Lentamente, estendeu a mão
esquerda até o outro lado, o fundo da câmara. Ela estava
molhada, com pequenas saliências estreitas e compridas e
sulcos, como se tivesse sido terminada de maneira tosca. Ele
alcançou o outro lado, Subitamente, puxou a mão para trás
novamente. Havia uma regularidade nos sulcos.
Ele tateou ao redor, os olhos fechados, seguindo as marcas,
tentando descobrir o que estava tateando. Não havia dúvida
acerca daquilo. - Você tem razão - ele disse excitado. - Posso
sentir o contorno de um outro círculo, um círculo interior
no chão da câmara. Acho que é uma tampa, uma tampa de
pedra. Posso sentir marcações nela.
- Uma alça? - perguntou Costas.
- Não. Ela é completamente plana em cima. Não faço idéia
de como vamos abri-la.
- E aquelas marcações?
- Eu pude contar vinte por enquanto - disse Jack. - Espere. -
Ele recuou com dor quando apertou o capacete contra a
fenda, tentando sentir cada parte da superfície da tampa.
Percorreu tudo ao redor com a mão. - Não, vinte e três. Elas
estão em círculo, ao redor da tampa. São letras, letras
salientes talhadas em pequenos blocos, colocados levemente
dentro da superfície da pedra. É curioso. De fato, eu posso
pressioná-los ligeiramente.
- Você consegue lê-las?
Jack passou os dedos ao redor das letras. Subitamente, ele
percebeu. - É o alfabeto latino, o alfabeto do final da
República Romana e do início do Império. Vinte e três
letras. De alfa a zeta.
- Jack, eu acho que o que você conseguiu aí é uma
combinação de fechadura. Estilo romano.
- Hein?
- Se não há uma alça, a tampa deve ter algum tipo de
abertura por meio de mola, colocada por baixo para
empurrar a tampa para cima. Eu acho que é uma mola de
bronze, colocada ao redor da borda da câmara interior. As
letras devem formar uma combinação para abrir a fechadura,
provavelmente está ligada a pinos de pedra ou de metal que
seguram a tampa dentro da rocha. A combinação pode ser
ajustável, permitindo que a pessoa a use para modificá-la a
cada vez com um novo código. Pressione a combinação
correta, e pronto, a tampa salta fora.
- Vinte e três letras - Jack murmurou. - E não há jeito de
saber quantas é necessário pressionar. Nem quero começar a
calcular o número de possibilidades.
- Vamos começar com o óbvio - disse Costas. - Foi Plínio, o
Velho, quem colocou o manuscrito aqui, certo? Qual era seu
nome completo?
Jack pensou por um momento. - Caius Plinius Secundus.
- Muito bem. Pressione as iniciais.
Jack visualizou o alfabeto latino em sua mente, e passou o
dedo ao redor do círculo até chegar em cada letra. C, P, S.
Ele as pressionou na ordem correta, e elas abaixaram muito
ligeiramente, mas não mais. Tentou de novo, depois em uma
ordem diferente. Ainda nada.
- Não serve - disse Jack.
- Então, seu palpite é tão bom quanto o meu - disse Costas. -
Você também pode tentar combinações ao acaso. Nós não
devemos ficar aqui mais do que uma semana.
- Não. Espere. - A mente de Jack estava acelerando. - É
possível ter o palpite certo. Vamos pensar sobre isto. Plínio
recebeu o documento de Cláudio. Ele prometeu escondê-lo
fora da casa de Cláudio. Plínio mantém a sua promessa, e
nunca adia nada do que precisa fazer. Ele tinha muito mais
coisas a fazer, dirigir a base naval, escrever seus livros. Ele
leva sua veloz galera direto para Roma, subindo o Tibre
direto, vem direto para cá, para o cofre de depósito de
segurança do Almirantado, retorna no mesmo dia para
Misenum na baía de Nápoles, justo a tempo de pegar a
erupção. O nome de quem está fresco em sua memória?
- Você quer dizer o nazareno?
- Não. Não é o suficiente para um código, e ele pode ser
muito óbvio. Eu penso no próprio Cláudio. Tibério Cláudio
Nero Germânico. - Jack fechou os olhos novamente,
movimentou sua mão sobre as letras e pressionou-as. T, C,
N, G. Nada. Ele repetiu. Novamente nada. Ele exalou de
maneira impetuosa. - Não serve.
- Talvez você tenha esquecido uma letra. Imperador?
- Imperador. - Jack encontrou a letra, depois a pressionou.
Ainda nada. Ele pressionou de novo, depois de repente
respirou rapidamente. - Não. Não Imperador. Cláudio não
era mais imperador. Ele precisou se esforçar para dizer isto a
Plínio. Não um imperador. Ele tinha se tornado uma outra
coisa. Algo que devia ter divertido a ambos.
- Cláudio, o Deus - murmurou Costas.
- Divus. - Jack procurou de novo ao redor e encontrou a
letra D. Pressionou-a tão fortemente quanto podia. Algo
cedeu, e a letra abaixou pelo menos dois centímetros. De
repente, a tampa pulou para cima, e Jack rapidamente
retirou a mão para impedi-la de ficar presa. - Acertamos - ele
disse excitado. Colocou a mão onde tinha estado a tampa.
Pôde sentir a espiral de uma pesada mola de bronze, agora
segurando a tampa por cerca de trinta centímetros ou mais
acima da abertura que ela tinha fechado. Ele inseriu a mão.
Sentiu uma forma cilíndrica, estava solta no buraco. Seu
coração começou a bater fortemente. Retirou-a,
desembaraçando-a das espirais de metal da mola. O cilindro
era pesado para seu tamanho, feito de pedra, cerca de vinte e
cinco centímetros de comprimento por quinze centímetros
de largura. - Eu o peguei - ele disse, puxando o cilindro para
fora da câmara e para dentro da fissura, depois o segurou sob
sua headlamp. - Isto é egípcio, um vaso de pedra egípcio
feito à mão. Nós fizemos uma descoberta valiosa, Costas.
Este vaso é idêntico, em sua manufatura, àqueles jarros
grandes na biblioteca de Cláudio onde se encontravam os
manuscritos em papiro. A tampa ainda está selada com
resina. Parece que Plínio não tocou nela depois. Nós
podemos estar com sorte. - Passou o cilindro para baixo,
para Costas, que se estirou do túnel embaixo para alcançá-lo.
Jack desembaraçou-se da fissura, e os dois se agacharam,
curvando-se sobre o cilindro no escuro, seus feixes de luz
iluminavam a superfície de mármore mosqueado enquanto
Costas virava o objeto nas mãos.
- O fazemos agora? - ele perguntou.
- Nós o abrimos.
- Estas não são condições laboratoriais controladas - disse
Costas.
- Minha chamada à ordem. - Jack pegou o cilindro, pegou a
tampa com uma mão e o corpo do jarro com a outra, e girou.
Ele abriu facilmente, a antiga resina ao redor do lacre se
rompeu e caiu no chão do túnel. Jack retirou a tampa e a
depositou no chão, depois olhou atentamente dentro. - Não
há papiro - ele disse, com a voz arrasada. Mas havia outra
coisa, apertada lá dentro. Jack enfiou a outra mão, e retirou
um objeto de pedra de superfície plana de cerca de quinze
centímetros de comprimento e dez de largura, mais ou
menos do tamanho de um pequeno espelho utilizado para
passar cosméticos. Ele era constituído por duas folhas
unidas, com uma dobradiça de um lado e um fecho de metal
do outro. Jack o revirou em suas mãos e depois colocou o
polegar contra o fecho. - É uma tabuleta de escrita - ele disse
excitado. - Um díptico, duas folhas que se abrem como um
livro. A superfície interior deve estar coberta com cera.
- Há alguma chance de que o que está aí dentro possa ter
sobrevivido? - Perguntou Costas.
- Este pode ser um outro momento Agamenon - disse Jack. -
O que está escrito pode ainda estar aí, mas a exposição ao
oxigênio pode degradá-lo instantaneamente. Eu vou abrir.
Não podemos nos arriscar a esperar.
- Estou de acordo com você. - Costas pegou um caderno de
apontamentos à prova d'água e ajoelhou-se ao lado de Jack,
pronto para escrever. Jack pressionou o fecho e sentiu as
folhas de pedra se mexerem. - Aqui vai - sussurrou. Ele abriu
a tabuleta. As superfícies internas eram sólidas, vítreas. Era
de cera, lisa e perfeitamente preservada, mas ficando escura
a cada segundo. Havia algo escrito nela. - Rápido - disse
Jack. Passou a tabuleta para Costas, e agarrou o caderno de
anotações, escrevendo febrilmente tudo o que via. - Feito -
ele disse depois de menos de um minuto. A cera ainda
estava lá, mas o que estava escrito na superfície tinha
virtualmente desaparecido, tinha ido embora como um
fantasma. Costas fechou a tabuleta e imediatamente
envolveu-a em uma folha de papel bolha e um saquinho à
prova d'água, depois a enfiou no bolso do peito. Ele olhou
atento para Jack, que olhava fixamente para o caderno de
apontamentos. - E então?
- Está em latim. - Jack fez uma pausa, pondo em ordem seus
pensamentos. - Seja quem for que escreveu isto, não era um
nazareno da Galiléia. O nazareno só poderia ter escrito em
aramaico, grego talvez.
- Então, isto não é de Cláudio, o documento precioso.
- Ele pode ter sido escrito por Cláudio, ou pode ter sido
escrito por Narciso - Jack murmurou. - É impossível dizer
por esta escrita em uma tabuleta de cera se ela é a mesma
encontrada no estúdio de Cláudio e escrita por Narciso.
Especialmente quando ela desaparece diante de seus
próprios olhos. - Deu uma olhadela para Costas. - Não, este
não é o documento que estamos procurando. Também não é
o fim de nossa pista. - Ele arrancou a página do caderno de
apontamentos e transcreveu suas palavras rabiscadas de
maneira legível numa nova folha, depois a segurou sob seu
feixe de luz de modo que ambos pudessem ler:

Dies irae
Dies illa solvet saeclum infavilla
Teste David cum Sibylla

Inter monte duorum
Qua respiciatam Andraste regia
Uri vinciri verbari
Ferroque necari

- Poesia? - perguntou Costas. - Virgílio? Ele escreveu sobre a
Sibila não foi?
- Seu velho demônio astuto - murmurou Jack.
- Quem?
- Eu acho que Cláudio estava mantendo a sua palavra, mas
ele também estava disputando um jogo, e acho que a Sibila
também disputava jogos com ele.
- Continue.
- Bem, o primeiro verso é bastante fácil. Trata-se da primeira
estrofe do Dies Irae, o Dia da Ira, o hino que costumava ser
fundamental na Missa de Réquiem da Igreja Católica
Romana. Este é um achado incrível, porque a primeira
versão dessas linhas data do século XIII. Muitas pessoas
pensam que era uma criação medieval, especialmente com
aquelas palavras em rima que não são encontradas em versos
latinos antigos, em Virgílio por exemplo. - Jack escreveu às
pressas um texto em inglês ao lado do que estava em latim. -
Eis como ele é comumente traduzido, mantendo a métrica e
a rima:

Dia da ira e do terror surgindo!
Céu e Terra em cinzas se consumindo.
A palavra de David e a destruição prevista pela Sibila se
realizando!

Costas assobiou. - Isto soa como uma premonição da
erupção do Vesúvio.
Jack fez um aceno de cabeça concordando. - Eu acho que o
que temos aqui é uma profecia da Sibila, dada para Cláudio
em Cumas. Ela deve ter dado estas primeiras linhas para
outros, que se lembraram delas e as preservaram
secretamente até elas ressurgirem na liturgia medieval
católica.
- Quem é David? - perguntou Costas.
- O fato de descobrir que estes versos são tão antigos é que é
a coisa fascinante, eles são do primeiro período cristão.
Habitualmente, pensa-se em David como uma referência a
Jesus, que se supunha ser um descendente do rei David dos
judeus. Se isto é verdade, então confirma que a Sibila sabia
sobre Jesus, que a associação da Sibila com o início do
cristianismo, de repente, está baseada em um fato sólido.
- E a segunda estrofe?
- Esta é a nossa pista. Ela tem toda a qualidade típica de uma
forma de expressão da Sibila, um enigma escrito em folhas
diante da gruta em Cumas. Eis como eu a traduzo:

Entre duas colinas
Onde a rainha Andraste jaz,
Para ser queimada pelo fogo, para ser aprisionada por
correntes,
Para ser açoitada, para morrer pela espada.

- O que significa? - perguntou Costas.
- A segunda parte é fácil. Extraordinária, mas fácil. Ela é o
sacramentum gladiatorum, o juramento dos gladiadores. Uri,
vinciri, verberari, ferroque necari. Juro ser queimado pelo
fogo, ser aprisionado por correntes, ser açoitado para morrer
pela espada.
- De acordo - disse Costas baixinho. - Você não pode soltar
nada de novo em cima de mim. Gladiadores. Estou
familiarizado com isto. E a primeira parte?
- Andraste era uma deusa britânica, de antes de Roma.
Sabemos sobre ela por intermédio do historiador romano
Dio Cássio, que diz que Andraste foi invocada por Boudica
antes de uma batalha. Você já ouviu falar dela?
- Boadiceia, como era chamada antigamente? É claro. A
temperamental rainha ruiva.
- Ela conduziu a revolta contra a ocupação romana em 60
d.C. A mais sangrenta batalha na história britânica. - Jack
olhou novamente para a palavra, depois subitamente
experimentou um momento de total clareza, como se
estivesse acabando de acordar. - É claro - ele disse com voz
rouca. - Isto é o que a Sibila quer dizer. A rainha sacerdotisa.
Boudica era Andraste. - Rapidamente, examinou de novo as
linhas finais. - O juramento dos gladiadores. Ad gladium,
pela espada. Nós estamos sendo orientados para uma arena
de gladiadores, um anfiteatro.
- O Coliseu? Aqui em Roma?
- Há muitos outros. - Jack olhou de novo. - Um lugar
construído entre duas colinas, um lugar onde jaz uma
grande rainha. - Subitamente, ele olhou atentamente para
Costas, sorrindo amplamente.
- Conheço este olhar - disse Costas.
- E eu sei exatamente para onde estamos indo - disse Jack
triunfante. -Venha. Provavelmente você não vai querer
ouvir o que tenho a dizer antes de alcançarmos a luz do sol.
Costas estreitou os olhos e olhou desconfiado para Jack. -
Recebido e entendido. - Ele tomou fôlego, e ambos se
agacharam e ambos desceram novamente as escadas, degrau
por degrau, em direção à face do rochedo íngreme,
segurando na corda e colocando seus rebreathers na parte
mais baixa da escada. Ambos vigiaram o túnel que havia ali,
por onde seu assaltante desaparecera, mas o fluxo de água
aumentara mais ainda e claramente não havia chance de
alguém entrar novamente vindo daquela direção. Desceram
pesadamente os degraus que restavam para atingir o chão da
caverna e a beirada da água, e começaram a verificar os seus
equipamentos de respiração antes de colocar e prender seus
capacetes. Costas evitou cuidadosamente olhar no corredor
para a macabra figura sentada na gruta sagrada, mas Jack
ficou paralisado olhando para ela, subitamente consciente da
monumental descoberta que haviam feito. A piscina de água
escura que conduzia de volta para a Cloaca Máxima parecia
menos medonha agora, um caminho para fora do
subterrâneo em lugar de um portal para o desconhecido.
Costas ergueu as duas mãos, pronto para prender seu visor,
depois olhou para Jack. - Nós vamos acabar conhecendo o
velho Cláudio bastante bem, não vamos?
- Ele se tornou um amigo - disse Jack, sorrindo. - Lá dentro
eu realmente senti que ele estava conosco, incitando-nos a
continuar.
- Então, ele não confiava em Plínio, afinal de contas.
- Eu acho que confiava nele como amigo, mas ele sabia que
a curiosidade poderia tomar conta dele. Se Plínio tivesse
sobrevivido à erupção do Vesúvio, eu desconfio um pouco
de que teria voltado aqui algum dia e aberto o cilindro.
Assim, ele lhe deu uma charada. Uma profecia da Sibila. O
que nenhum deles sabia era que o Vesúvio acabaria com
aquela história abruptamente. Aquela tabuleta de cera ficou
sem ser lida desde o dia em que Plínio a depositou quase
dois mil anos atrás.
- Para nós a descobrirmos.
- Acho que era o que Cláudio queria. Não que Plínio
descobrisse a pista, não algum outro romano, mas alguém
em um futuro distante, alguém que seguisse os indícios e
revelasse seu tesouro quando o perigo tivesse passado e ele
pudesse ser revelado com segurança.
- O que ele não tinha previsto era que a ameaça nunca
terminaria - murmurou Costas. - Então, aonde vamos agora?
Jack não disse nada, mas olhou para Costas com uma
expressão de pesar.
- Eu sei - disse Costas com resignação. - Eu sei. Um outro
buraco no chão.
- Precisamos encontrar uma tumba perdida há muito tempo.

CAPÍTULO 14

Vinte e quatro horas mais tarde, Jack levou Costas para perto
da imponência da Catedral de São Paulo no centro de
Londres, passando por um labirinto de ruas e ruelas que
formavam o coração da velha cidade. Tinham passado a
noite anterior a bordo do Seaquest no Mediterrâneo e voado
para o aeroporto de Londres naquela manhã bem cedo. A
primeira tarefa de Jack foi uma reunião com o chefe da
segurança da IMU. Depois de sua experiência em Roma, o
que havia começado como uma pesquisa arqueológica
secreta tinha tomado uma dimensão extremamente nova.
Enquanto eles ainda estivessem pesquisando, enquanto
aqueles que os estavam seguindo pensassem que Roma tinha
proporcionado apenas mais uma outra pista, não o objeto de
sua busca, Jack sentia que eles estavam razoavelmente
seguros. O destino do homem que tinha apontado uma
pistola para a sua cabeça debaixo do monte Palatino era
desconhecido, embora Massimo lhes tivesse assegurado que
as chances de sobrevivência de um corpo que penetrou na
Cloaca Máxima sem equipamento de respiração eram fracas.
Parecia inconcebível que eles tivessem sido seguidos até
Londres, mas Jack não queria correr riscos. Tentariam o
máximo possível não chamar a atenção sobre si, e Ben e
mais dois outros membros da equipe estariam espreitando
em segundo plano, observando, esperando, prontos para
agarrar a presa se houvesse qualquer repetição de seu
encontro na antiga caverna debaixo de Roma.
- Bem-vindo à Londres ensolarada. - Costas deu um passo
atrás muito atrasado quando uma série de táxis pretos passou
fazendo barulho, espirrando água em seus tornozelos.
Ambos vestiam jaquetas azuis Goretex, à prova d'água, com
os capuzes levantados, e Costas estava procurando de
maneira desajeitada lidar com um guarda-chuva. O que se
iniciara como um dia fortemente coberto por nuvens, havia
se estabilizado com uma constante garoa, entremeada com
ocasionais aguaceiros bastante fortes. Costas inalou
sonoramente, depois espirrou. - Então foi para cá que
Cláudio trouxe seu precioso tesouro secreto. Parece que é
uma caminhada bastante longa desde a Judéia.
- Você ficará surpreso - disse Jack, erguendo a voz acima do
tráfego. - Os primeiros cristãos na Grã-Bretanha romana
achavam que eles tinham uma relação direta com a Terra
Santa, ainda não corrompida por Roma. Causou-lhes um
sem-fim de complicações quando a Igreja Romana tentou
afirmar-se aqui.
- Então nós nos encontramos na localização da Londres
romana agora.
- Acabamos de entrar nela. A City de Londres hoje, o
distrito financeiro, é a velha cidade medieval, e esta foi
construída sobre as ruínas de Londinium. Você ainda pode
perceber a linha das paredes romanas no desenho das ruas.
- Deve ter sido água estagnada - disse Costas, patinhando na
água atrás de Jack. - Quem teria vontade de vir para cá?
- Olhe ao seu redor agora, para os rostos - disse Jack,
enquanto passavam pelas calçadas em meio a pessoas
apressadas. - Londres era quase tão cosmopolita como agora
no período romano. Ela foi fundada para comerciar, era um
ímã a comerciantes de todos os cantos do império. - Ele
virou para a esquerda esquivou-se pelo movimento de
pessoas que tinha se tornado tão grande que provocava
paralisação, depois conduziu Costas por uma passagem
estreita do lado oposto. - Não havia nenhuma água estagnada
aqui, embora a tradição celta tenha dado para a Grã-Bretanha
um caráter particular, algo que a faz parecer muito distante
de alguns tipos romanos, um pouco ameaçadora.
- Então foi Cláudio que invadiu este lugar. - Costas
pestanejou por causa da garoa que estava começando a
envolvê-los, e depois puxou o capuz de sua jaqueta mais para
frente. - Deixar a Itália por isto...
Jack enxugou a água que escorria por seu rosto, e depois foi
pulando até uma outra rua. Eles estavam na Lawrence Lane,
dirigindo-se em direção a Guildhall. - Cláudio estava numa
missão. Quase cem anos antes, um tio-tataravô, Júlio César,
tinha vindo para cá com suas legiões na parte final da
conquista da Gália. Era mais uma exibição de força do que
uma invasão, um pouco da antiga diplomacia de
demonstração de força, para manter os bretões do seu lado
do Canal.
Costas olhou tristemente para Jack por debaixo de seu capuz.
- Você quer dizer que César deu uma olhada neste lugar,
pensou melhor e foi embora.
- Ele tinha outras coisas em mente. Mas abriu o caminho
para os comerciantes. Mesmo antes de Cláudio invadir o
local, havia um assentamento de romanos na capital tribal
em Camulodunum, cerca de cinqüenta milhas a nordeste da
moderna Colchester. Eles traziam carregamentos de vinho
dentro de ânforas por navio, exatamente do mesmo tipo
daquelas que descobrimos no navio naufragado e vimos em
Herculano. Perceberam que os britânicos amavam o álcool.
- Estou contente em ver que eles não mudaram. - A voz
amortecida de Costas veio de vários passos atrás, e Jack se
virou para ver sua figura encapuzada parada diante de um
pub. Costas empurrou o capuz e apontou sugestivamente.
Jack sacudiu a cabeça e o chamou com um gesto. - Estamos
quase chegando. Depois haverá tempo para isto.
- É o que você sempre diz - resmungou Costas, patinhando
atrás de Jack. - De volta para a Londres romana, então.
Havia um bando de estrangeiros aqui, portanto um bando de
idéias estrangeiras também.
- Exatamente. - Chegaram à esquina da Gresham Street, e
Jack apontou para a igreja do lado oposto. - É por causa dela
que viemos para cá. Não é tão grande quanto a Igreja de São
Paulo, mas é do mesmo período, do mesmo arquiteto. Uma
das igrejas da City de Londres reconstruída por Sir
Christopher Wren em seguida ao Grande Incêndio de
Londres em 1666.
- St. Lawrence Jewry. - Costas olhou para um mapa turístico
encharcado que tinha retirado do bolso.
- O nome diz tudo. - Jack esperou um barulhento táxi passar.
- Este era o bairro judeu de Londres até os judeus serem
expulsos no século XIII. St. Lawence Jewry é da Igreja da
Inglaterra, anglicana, mas no caminho há igrejas católicas,
capelas protestantes, sinagogas, mesquitas, você pode
escolher. E quem sabe que coisas mais as pessoas estão
cultuando neste mesmo momento ao nosso redor, em
lugares ocultos, atrás de telas de computadores. É o que
penso. Teria sido a mesma coisa na Londres romana. Hoje as
pessoas adoram, sobretudo, versões do mesmo Deus, mas de
algum modo isto não se distancia muito do antiquado
politeísmo que romanos como Cláudio teriam conhecido,
com muitos templos diferentes e variadas formas de rituais.
- Não existia também um culto do imperador?
Jack assentiu, parando apoiado a uma parede por um
instante, fora da garoa do caminho. - Os romanos
construíram um templo para Cláudio em Colchester, talvez
um aqui em Londres também. Particularmente, não acho
que Cláudio tenha pago por isso, se ele realmente
sobreviveu para se ver sendo adorado. Isto teria atingido
excessivamente seu perturbado sobrinho Calígula, e seu
sucessor Nero. Mas, aqui nas províncias, o culto imperial era
um assunto prático, uma maneira de conseguir que os
nativos pagassem tributos a Roma ao mesmo tempo em que
se idolatrava a figura individual do imperador.
- Os romanos não tentavam esmagar as religiões rivais?
- Não habitualmente. Esta é a beleza do politeísmo,
politicamente falando. Se você já tem mais de um deus,
então é bastante fácil absorver mais alguns, é menos
incômodo do que tentar erradicá-los. E a absorção de deuses
estrangeiros confirma a autoridade dos seus deuses sobre os
dos estrangeiros. Foi isso que aconteceu na Grã-Bretanha
romana. O deus celta da guerra foi absorvido no culto de
Marte, o deus romano da guerra, que tinha anteriormente
absorvido o deus grego da guerra, Ares. Os deuses associados
a Boudica, Andraste, eram ligados a Diana e Ártemis.
Mesmo o cristianismo adaptou rituais pagãos para os seus
cultos religiosos, a idéia do templo, sacerdotes. Quase tudo
que você vê sobre aquela igreja lá adiante deve ter sido
desconhecido para os primeiros cristãos, até mesmo a idéia
de uma religião com atos de adoração. Para alguns deles, isso
leria sido anátema.
- Talvez até para o próprio messias.
- Pensamento provocativo, Costas.
- Lembre que eu fui educado na Igreja Ortodoxa. Posso dizer
estas coisas. Em Jerusalém, na Igreja do Santo Sepulcro, os
gregos acham que eles são os mais próximos de Cristo, os
zeladores da tumba. Mas todas as outras congregações
religiosas que lá se encontram pensam o mesmo: os
armênios, os católicos romanos, e as outras que você quiser,
todas comprimidas e em oposição, competindo. É um pouco
ridículo, de rato. Estão tão envolvidas com os detalhes que
perderam de vista o todo.
Jack conduziu Costas animadamente pelo caminho,
passando pela igreja e entrando em Guildhall Yard. Poucos
metros atrás deles ficava a parede ocidental da igreja, e
diante deles, colocado sobre placas de calçamento no pátio,
encontrava-se um grande arco de pedra preta, como uma
parte de um enorme relógio de sol que se estendia sob as
construções circundantes. O celular de Jack tocou e ele
respondeu rapidamente, e depois começou a andar em
direção à entrada da Guildhall Art Gallery ao longo do arco.
- Jeremy já chegou - ele disse. - E lembre-se deste
alinhamento. Ele esclarece o que estamos prestes a ver.

Dez minutos depois, pararam quase exatamente no mesmo
ponto em que estavam antes, mas oito metros abaixo do
chão. Eles estavam num amplo espaço subterrâneo,
iluminado por detrás ao redor das bordas em ruínas, de tijolo
e alvenaria, diante deles. Tinham tirado os casacos, e Costas
estava lendo uma placa descritiva. - O anfiteatro romano -
murmurou. - Eu não tinha idéia.
- Nem ninguém mais tinha, até poucos anos atrás - disse
Jack. - Muito da cidade acima da Londres romana foi
destruída pelo bombardeio alemão durante a Segunda Guerra
Mundial, e a desobstrução e a reconstrução permitiram que
se fizessem muitas escavações arqueológicas. Mas a ocasião
para uma grande escavação em Guildhall Yard só se
concretizou no final dos anos 1980. Este foi o achado mais
surpreendente.
- Aquele arco elíptico no calçamento acima de nós -
murmurou Costas. - Agora entendi.
- Aquele é o contorno da arena, o espaço central do
anfiteatro - disse Jack.
- Qual a data disto?
- Você se lembra da revolta de Boudica? Isso foi no ano 60
d.C., mais ou menos na mesma época do naufrágio do navio
de São Paulo. A Londres romana tinha sido fundada quinze
anos antes disso, logo em seguida à invasão de Cláudio em
43. Boudicca destruiu o local, mas ele logo foi reconstruído
e houve grandes projetos de construção em andamento
dentro de poucos anos. O anfiteatro foi feito de madeira,
mas tinha a parede de pedra e tijolo que você vê ao redor da
arena, e que provavelmente começou em algum período dos
anos 70.
- Na época da segunda visita de Cláudio, aquela em que
esteve incógnito. Jack pegou sua tradução do enigma
extraordinário que tinham descoberto na tabuleta de cera
em Roma. - Entre duas colinas - ele disse em voz baixa. - Era
como Londres se mostrava, com o rio Walbrook correndo
entre elas. Em seguida o juramento dos gladiadores. Para ser
queimado pelo fogo, para ser aprisionado com correntes para
ser açoitado, para morrer pela espada. Esta deve ser a
localização.
- Onde jaz o corpo da rainha Andraste - murmurou Costas.
- Durante séculos, as pessoas procuraram pela tumba de
Boudica - replicou Jack baixinho. - No entanto, ninguém
suspeitou que ela estava bem debaixo dos narizes dos
romanos, no coração de sua capital.
- Mas exatamente onde?
- Há um lugar aqui que não foi escavado, entre o anfiteatro e
a Igreja de St. Lawrence Jewry - disse Jack. - Logo atrás da
parede lá adiante. - Naquele instante, ouviu passos se
aproximando atrás deles, e girou alarmado, depois relaxou. -
Eis aqui alguém que pode ser capaz de nos contar mais a
respeito. - Um jovem alto e magro, com desgrenhados
cabelos loiros e usando óculos aproximou-se com longas
passadas, sorrindo e acenando com a mão como
cumprimento. Com sua jaqueta Barbour encharcada e calças
de veludo, ele parecia a quinta-essência do cavalheiro inglês
do campo, mas o seu sotaque era americano. - Olá, rapazes.
Acabei de sair do trem que vinha de Oxford. Sorte que o seu
chamado me pegou no instituto ontem, Jack. Eu estava
saindo para passar uma semana em Hereford e estudar a
biblioteca perdida na catedral. Maria me deu
responsabilidade completa para isto, você sabe. Vir para cá é
uma mudança muito repentina para mim, e eu estava um
pouco preocupado por cancelar o meu compromisso
anterior. Não consegui falar com ela pelo celular.
- Ela ainda deve estar em Nápoles - disse Jack. - Ela e
Hiebermeyer estão lidando com as regras oficiais que
impedem que as coisas sejam feitas rápida e facilmente. Não
se preocupe, eu lhe enviarei uma mensagem.
- Tive tempo para passar um par de horas no Balliol College
ontem no fim da tarde - disse Jeremy. - Descobri que eles
foram proprietários da Igreja de St. Lawrence Jewry do
século XIII ao século XIX, e ainda possuem o arquivo. Dei
uma olhada no que você queria. Acho que encontrei o
suficiente para você continuar, mas preciso voltar para lá
depois de visitarmos a igreja. Há uma pista verdadeiramente
intrigante que eu quero seguir.
- A propósito, é ótimo encontrá-lo, Jeremy - disse Costas. -
Não esperava vê-lo tão cedo.
- A coisa toda ainda parece um sonho - disse Jeremy. - A
caçada ao tesouro perdido dos judeus, Harald Hardrada e os
vikings, as cavernas subterrâneas do Yucatán. Eu acho que
poderia escrever sobre isso tudo, mas ninguém me
acreditaria.
- Escreva uma história de ficção - disse Costas. - Apenas nos
deixe fora dela. No momento, estamos tentando permanecer
anônimos. Tivemos um encontro ligeiramente desagradável
em Roma. Num subterrâneo.
- Jack me contou a respeito - disse Jeremy. - Vocês parecem
fazer do risco um hábito. Acho que reconheci, na galeria
acima, alguém do Seaquest.
- Ótimo - disse Jack. - Eles estão aqui.
- Temos meia hora antes de podermos entrar na cripta.
- Cripta? - perguntou Costas.
- Não tema - disse Jeremy. - Ela está vazia. A primeira pelo
menos está.
Costas lhe lançou um olhar dúbio, depois se sentou em uma
cadeira e recostou-se, esticando as pernas. - Ótimo. Então
conseguimos um pouco de tempo. Tenho algumas questões.
Atualizem-me. Vocês podem me contar sobre este lugar
antes dos romanos. Sobre Boudica - ele disse.
Jack olhou para Costas, entusiástico. - A Londres pré-
histórica era um lugar estranho. Não era um assentamento,
até onde sei, mas um lugar onde algo estava acontecendo.
Meu melhor palpite é de que era um lugar sagrado. O
problema é que não sabemos grande coisa sobre a religião na
Idade do Ferro, porque eles não construíram templos nem
fizeram representações de seus deuses que sobreviveram.
Quase tudo o que temos para nos basear são os historiadores
romanos, muitos deles tendenciosos, e passam informações
de segunda mão.
- Druidas - disse Jeremy, sentando-se na beirada da parede
do anfiteatro, olhando de modo penetrante para Jack. -
Druidas e sacrifício humano.
Jack fez um gesto de assentimento. - Quando o general
romano Suetônio Paulino ouviu falar da revolta de Boudica,
ele estava atacando a remota ilha de Mona, a moderna
Anglesey ao norte do País de Gales. Essa era a última
fortificação do povo britânico que havia se recusado a aceitar
o domínio romano, e o baluarte sagrado dos druidas.
- Os sujeitos com mantos brancos - murmurou Costas.
- Esta é a imagem vitoriana, um tipo de figura como Gandalf
de O Senhor dos Anéis, um Merlin, que juntava visco e
viajava desarmado em meio a reinos que guerreavam entre
si. A idéia de sacerdotes mediadores provavelmente seja
exata, mas o resto é pura fantasia.
- Tácito descreve uma figura bastante assustadora - disse
Jeremy.
Jack assentiu novamente, tirou um livro de sua mochila
caqui e abriu-o. - Agrícola, o sogro de Tácito, tinha sido
governador da Grã-Bretanha, de maneira que sabia sobre o
que estava falando. Os romanos em Mona eram
confrontados por um grupo relativamente grande de
inimigos ao longo da costa. Entre eles se encontravam os
druidas, que, como ele diz, estavam erguendo as mãos ao
céu e gritando maldições mortais. Depois que os romanos se
saíram vitoriosos, destruíram os bosques sagrados dos
druidas, lugares onde estes encharcavam seus altares com o
sangue de prisioneiros e consultavam seus deuses usando
entranhas humanas.
- Isto soa como os feitos de alguns padres que conheci -
disse Costas. - Poder por meio do terror.
- Existem muitos paralelos históricos, como você diz.
- A Igreja na Idade Média, por exemplo - murmurou
Jeremy. - Submissão, obediência, confissão, vingança,
retribuição.
- Todas as coisas que os primeiros cristãos teriam abominado
- disse Jack.
- E não eram apenas os druidas machos que havia em
Anglesey - disse Jeremy.
Jack abriu o livro novamente. - O que realmente aterrorizou
os romanos, o que lhes causou pavor a ponto de paralisá-los
foram as mulheres.
- Isto está ficando ainda melhor - murmurou Costas.
- Hordas de mulheres fanáticas, mulheres vestidas de preto
com cabelos desgrenhados como Fúrias, brandindo tochas. -
Jack deixou o livro de lado. - Esse foi o pior pesadelo dos
romanos. A imagem da Amazona, a rainha guerreira, era a
que realmente mantinha o romano macho acordado à noite.
Tácito deve ter exagerado esse aspecto da Grã-Bretanha para
brincar com as fantasias romanas a respeito do mundo
bárbaro, um mundo além de controle, um mundo sem
racionalidade ou método aparente. Mas toda a evidência
sugere que ele era verdade, que os romanos realmente
caminharam dentro de sua própria visão de inferno, um
mundo de rainhas amazonas e de espíritos que gritam alto e
são ouvidos quando alguém vai morrer.
- Boudica - Costas disse baixinho. - Vocês estão dizendo que
ela era uma espécie de druida?
- Nós sabemos de uma outra rainha britânica, Cartimandua,
rainha dos Bogantes - replicou Jack. - Mas talvez tenham
existido outras, talvez as mulheres com freqüência
ocupassem o poder. E uma rainha habitualmente significa
uma sacerdotisa importante. Lembre-se que o imperador
romano era pontifex maximus, os faraós egípcios eram reis-
sacerdotes, as rainhas e as pessoas da mesma espécie da
Inglaterra são defensoras da fé.
- Uma rainha ruiva guerreira arquidruida - disse Costas
debilmente. - Deus ajude seus inimigos.
- E como Londres se ajusta nisso tudo? - perguntou Jeremy.
- Eis aqui o lugar onde podemos de fato devotar-nos
seriamente à arqueologia. - Jack desenrolou um mapa no
chão, e Jeremy ajoelhou-se e segurou os cantos. - Ou, antes,
onde ele não está. Este mapa mostra a área de Londres
durante a Idade do Ferro. Como vocês podem ver, não há
uma indicação clara de um assentamento na localização de
Londinium, onde estamos agora. Alguns poucos achados de
cerâmica, algumas das moedas de prata que as tribos
começaram a produzir nas décadas antes da conquista
romana. Não muito mais que isso.
- O que é isso? - Costas apontava para um objeto marcado no
rio Tâmisa a oeste da cidade romana. - Uma couraça?
- O Battersea Shield, um escudo de bronze. Uma das mais
finas peças de trabalho em metal da Antiguidade já
encontradas, que rivalizava com as melhores que os
romanos produziram. Você pode encontrá-la no Museu
Britânico. Provavelmente data do século anterior à chegada
dos romanos, e pode realmente sugerir o que acontecia
neste lugar.
- Continue.
Jack permaneceu agachado. Quase todas as outras maiores
cidades da Grã-Bretanha romana foram construídas sobre as
localizações das capitais tribais da Idade do Ferro, quase
sempre muito próximas das antigas fortificações.
Camulodunum, onde os romanos construíram o seu templo
para Cláudio, era uma colônia para veteranos romanos
instalada no topo da capital tribal dos Trinovantes, uma tribo
celta. Verulamium ficava ao lado da capital da tribo dos
Catuvellauni. Era um sistema engenhoso, projetado para
incutir a autoridade romana no coração do velho mundo
tribal, e também para manter o poder básico dos velhos
líderes tribais que se tornaram novos magistrados. O poder
era delegado, mantendo a ambição da autoridade nativa,
exatamente como os britânicos fizeram na índia.
- Mas Londres era a exceção - disse Jeremy.
Jack concordou. - Depois de começar como um porto de
rio, Londres se tornou a capital provinciana quando foi
reconstruída em seguida à revolta de Boudica. Mas algo
estava acontecendo aqui antes que os romanos chegassem,
algo realmente fascinante. O Battersea Shield era quase com
toda certeza uma manifestação ritual, um objeto valioso
deliberadamente lançado no rio como uma oferenda em
cumprimento de um voto. Há outros achados como este
encontrados no rio Tâmisa e seus afluentes, em rios e
piscinas, espadas, escudos, lanças. Esta é uma tradição que
remonta pelo menos à Idade do Bronze, e dura até o período
medieval.
- Excalibur e a Dama do Lago - murmurou Jeremy.
- Oferendas parecem ter sido feitas nas fronteiras tribais -
continuou Jack. - Talvez para armar o deus de sua tribo, era
uma maneira de afirmar reivindicações territoriais, um
pouco como o ritual medieval de bater tambor, nos limites
da paróquia no dia de prece pública. E Londres era o maior
local com fronteiras entre todos os que existiam, com pelo
menos cinco áreas tribais convergindo para o Tâmisa.
Anglesey pode ter representado a extremidade do mundo
britânico na Idade do Ferro, mas Londres pode ter sido o seu
ápice ritual.
- Ainda assim não foram encontrados templos - disse Costas.
- Você se lembra do relato de Tácito, os bosques sagrados
em Anglesey? Londres estava densamente reflorestada na
época da invasão romana, logo acima da borda da água.
Dentro da floresta, ao longo da margem do rio e seus
afluentes, havia clareiras, bosques, lugares agora perdidos
debaixo das ruas de Londres.
Costas olhou atentamente para o mapa. - E que tal isto? Em
60 d.C., quando Boudica se revoltou, o único lugar que
realmente não puderam submeter foi Londres, o novo
assentamento romano construído em seu local sagrado. Eles
evitaram o pior para ela.
Jack concordou de maneira entusiástica. - Tácito revela sua
importância sem compreendê-la. Depois que os rebeldes
devastaram Camulodunum e compeliram os sobreviventes
romanos para dentro do templo de Cláudio localizado ali, os
guerreiros celtas ouviram um presságio. Na embocadura do
Tâmisa, um assentamento fantasma tinha sido visto em
ruínas. Um mar estava vermelho, cor de sangue, e formas
como cadáveres humanos eram vistos na maré vazante. Para
Boudica, isto era um sinal para onde ir em seguida.
- O que aconteceu quando Boudica atingiu Londres?
- Não havia sobreviventes. O que Tácito diz é que o general
Suetonis e seu exército alcançaram Londres vindos de
Anglesey, antes que Boudica chegasse, mas ele decidiu que
sua força era muito fraca para defender o local. Havia
lamentos e apelos, e os habitantes tiveram permissão de
deixar o local com ele. Aqueles que ficaram, os velhos, as
mulheres, crianças, foram todos massacrados pelos bretões.
- O historiador Cássio Dio relata mais fatos. - Jeremy pegou
um outro livro que Jack tirara de sua mochila. - Segundo me
lembro, ele é a única outra fonte sobre Boudica, e escreveu
mais de cem anos após o evento, mas talvez baseado em
relatos perdidos de primeira mão. - Ele encontrou a página. -
Eis o que os bretões fizeram para os seus prisioneiros":

A pior e mais bestial atrocidade cometida por seus captores
foi a seguinte. Penduraram nuas as mulheres mais nobres e
mais eminentes, cortaram fora seus seios e os costuraram em
suas bocas, de maneira que dava a impressão de que elas os
estavam comendo; em seguida empolaram as mulheres em
espetos afiados que atravessavam todo o comprimento de
seus corpos. Tudo isso eles fizeram com o acompanhamento
de sacrifícios, festas e comportamentos usuais. Isto eles
fizeram em seus lugares sagrados, especialmente no bosque
de Andraste, o nome que davam para a deusa da Vitória.

- Isto se parece com uma cena de Apocalyse Now -
murmurou Costas.
- Pode não estar muito longe - disse Jack baixinho. - O
nome Boudica significa Vitória, e pode ser que seu bosque
sagrado fosse uma espécie de charco à altura do rio, o seu
Santo dos Santos.
- O seu próprio inferno particular, você quer dizer - disse
Costas.
- Geoffrey de Monmouth achava que houve decapitação em
massa - disse Jeremy baixinho. - Ele estava escrevendo no
século XII, quando crânios humanos começaram a ser
descobertos ao longo de Walbrook. Eles têm sido
encontrados desde então, quando o rio está sendo escavado
de fora para dentro. Crânios, centenas deles, arrastados de
algum lugar e enterrados no cascalho do rio, bem debaixo do
coração da cidade de Londres, onde o Walbrook flui para o
Tâmisa. Geoffrey de Monmouth foi o primeiro a ligar os
crânios com Boudica.
- Eu não entendi. - Costas pegara o livro de Tácito de Jack e
estava folheando as páginas, parando e lendo. - Aqui vamos
nós de novo. Sacrifícios, orgias de carnificina, cidades
inteiras completamente destruídas, todos assassinados.
Homens, mulheres, crianças. Corrijam-me se estiver errado,
mas não parecem ser atos de alguém que simpatiza com o
cristianismo. Eu não entendo por que Cláudio teria trazido
seu documento precioso para Boudica, para sua tumba.
- Nós não sabemos o que estava acontecendo - disse Jack. -
Jesus pode ter sido visto como um camarada rebelde contra
o governo romano, um iconoclasta. E se Tácito e Cássio Dio
estão certos, Boudica agiu por vingança, por desforra
realizada à maneira dos bárbaros, que ela devia saber que
causaria grande temor nos corações dos romanos.
- Ela também devia saber que era um ato suicida e que ela
entrara num caminho sem volta - murmurou Costas. -
Talvez isto a enlouquecesse. Lembrem-se de Apocalyse
Now, o coronel Kurtz. Uma causa nobre, métodos insanos.
Talvez Boudica tenha sido consumida por seu próprio
coração de trevas.
- Falando nisso, está na hora. - Jeremy ergueu-se. - O diretor
está abrindo a cripta especialmente para nós durante o
concerto do meio-dia na igreja. Venham.

Alguns minutos mais tarde, encontravam-se dentro do
pórtico da Guildhall Art Gallery, olhando para o pátio com a
linha elíptica do anfiteatro romano marcada ao longo dele. A
direita deles ficava a fachada do próprio Guildhall, e à
esquerda a forma funcional e sólida de St. Lawrence Jewry,
reconstruída depois da Segunda Guerra Mundial para se
parecer o mais possível com o desenho original de Sir
Christopher Wren como era antes do Grande Incêndio de
Londres em 1666.
- Este local parece imaculado agora, mas ele passou por três
círculos do inferno - disse Jack baixinho, olhando para a
garoa. - A revolta de Boudica em 60 d.C., o massacre,
possivelmente sacrifícios humanos. Depois o Grande
Incêndio de 1666. Dos edifícios por aqui apenas o Guildhall
não foi completamente destruído, por causa dos velhos
carvalhos que não queriam queimar. Alguém que estava aqui
disse que ele parecia um pedaço de carvão claro e brilhante,
como se fosse um Palácio de Ouro ou um grande edifício de
latão queimado. Então, três séculos mais tarde, o inferno o
visitou novamente. Dessa vez de cima.
- Em 29 de dezembro de 1940 - disse Jeremy. - A Blitz.
- Uma noite entre muitas - replicou Jack. - Mas, naquela
noite, a Luftwaffe atacou uma milha quadrada da cidade, a
City de Londres. Minha avó estava aqui, trabalhava como
mensageira no Ministério da Aeronáutica. Ela contou que o
som das bombas incendiárias que caíam era odiosamente
gentil, como uma pancada de chuva, mas que as bombas
altamente explosivas tinham sido aprontadas com tubos de
modo que elas gritavam em lugar de assobiar. Centenas de
pessoas foram mortas e mutiladas, homens, mulheres,
crianças. Aquele quadro famoso da Catedral de São Paulo
envolta em chamas, mas milagrosamente intacta, representa
aquela noite. St. Lawrence Jewry não teve tanta sorte. Ela se
queimou como uma vela romana, as chamas se lançando
acima da cidade. Um dos homens parados perto de minha
avó no telhado do Ministério da Aeronáutica, observando as
igrejas queimarem, era o vice-marechal da Aeronáutica
Arthur Harris, "Bombardeiro" Harris. Ele viu a guerra total
naquela noite. Ele foi o arquiteto da ofensiva britânica de
bombardeio contra a Alemanha.
- Um outro círculo do inferno - murmurou Jeremy.
- Tudo isto ainda está aqui, debaixo de nossos pés - disse
Jack. - A camada de destruição provocada por Boudica, terra
carbonizada e cerâmica quebrada, ossos humanos. Depois
grande quantidade de entulho da antiga igreja medieval
destruída em 1666, limpada e enterrada para dar lugar às
novas estruturas de Sir Christopher Wren. Depois uma outra
camada de detritos resultantes de destruição provocada pela
Blitz, com o trabalho de reconstrução ainda sendo feito.
- Alguma artilharia inexplorada? - perguntou Costas,
esperançoso. - Lembre-se que você me deve a informação.
Por causa daquele material que não queria me deixar tocar
na Sicília.
Jack lançou um olhar a Costas, e depois passeou
animadamente ao longo do pátio de Guildhall Yard. -
Lembre-se de onde estamos, a camada do anfiteatro - ele
disse enquanto pisava na linha curva no pavimento.
Apontou para a parede ocidental de St. Lawrence Jewry,
distante cerca de oito metros. - E a proximidade da igreja. -
Eles alcançaram a entrada da igreja e rapidamente entraram
nela. O concerto do meio-dia estava prestes a começar, e
Jeremy os conduziu apressadamente pela nave lotada de
pessoas sentadas, em direção a uma pequena porta de
madeira na ala ocidental. Ele a abriu, entrou e os chamou
com um gesto de mão.
Costas o seguiu, depois Jack. Quando Jack fechou a porta, a
música começou. O concerto incluía uma seleção dos
concertos para violino de Bach recuperados, e Jack
reconheceu o Concerto em dó menor para solo de violino,
cordas e baixo profundo. A música era audaciosa, confiante,
alegre, o som do barroco agudo dava ordem para a confusão,
estrutura para o caos. Jack demorou-se, e por um momento
pensou em voltar e se sentar anonimamente na audiência.
Sempre amara os concertos recuperados, o resultado de uma
espécie de arqueologia musical que parecia espelhar seus
próprios processos de descoberta, pequenos fragmentos de
certeza reunidos por erudição, por um trabalho de suposição
e intuição, que subitamente se fundiam com uma explosão
de clareza, de euforia. Naquele instante, sentia que precisava
de confiança, sem saber se as peças que tinham encontrado
se juntariam e se a pista que estavam seguindo iria levar a
uma conclusão que fosse maior do que a soma das partes.
- Venha, Jack - disse Costas. Jack fechou a porta e o seguiu
descendo a escada, entrando em uma abóbada subterrânea
abaixo do nível da nave. A vibração da música ainda estava
ali, mas agora apenas como pano de fundo. Ele viu outra
porta aberta e seguiu-os entrando em uma outra câmara,
menor e mais escura. A câmara era antiga, muito mais antiga
que a estrutura de alvenaria da igreja de Wren, e parecia que
fora limpa recentemente. Apenas uma lâmpada elétrica
pendia da abóbada feita de tijolo. Jeremy fechou e trancou a
porta que dava para as escadas, e passou a mão ao longo da
alvenaria perto dele. - Esta é uma câmara de sepultamento
medieval, basicamente é uma cripta particular. Foi
encontrada durante o recente trabalho de escavação. Este é
o ponto mais distante que alguém conseguiu alcançar em
direção à extremidade do anfiteatro.
- Deve ser esta, então - disse Jack. - O que acha, Jeremy?
- Concordo plenamente.
Costas olhou para eles. - Muito bem, Jack. Eu quero uma
explicação para lá de boa sobre o que estamos fazendo aqui.
Jack assentiu, agachou-se e apoiou-se contra uma parede, sua
mochila caqui pendurada em seu ombro esquerdo. Ele
estava excitado, e respirou profundamente. - Muito bem.
Quando trabalhávamos em Roma tentando decifrar o
enigma, a localização me apareceu de repente e
imediatamente pensei em Sir Christopher Wren e esta
igreja. Quando freqüentei a escola em Londres, eu
costumava vir bastante aqui, visitar os locais atingidos pelas
bombas e ajudar na escavação. Isto ocorreu quando minha
avó me contou o que ela tinha vivido aqui naquela noite
durante a guerra. Tendo visto por mim mesmo o que o
bombardeio e a limpeza haviam revelado no centro de
Roma, fiquei fascinado pelo inferno anterior, por aquilo que
Wren podia ter encontrado depois do Grande Incêndio de
1666. Isto foi antes do início da arqueologia, quando muitos
achados quase nunca eram reconhecidos, quanto mais
registrados.
- Com poucas exceções - murmurou Jeremy.
Jack concordou. - O próprio Wren tinha um interesse por
coisas antigas, e mencionou materiais encontrados sob a
Igreja de São Paulo. Foi isto que realmente me estimulou.
Depois, descobri que St. Lawrence Jewry era propriedade do
Balliol College, de Oxford. Um dos meus tios era membro do
conselho do colégio, e me conseguiu uma visita ao arquivo
para ver se havia qualquer registro de achados feitos aqui
depois de 1666. Isto ocorreu anos atrás, e eu não tomei
notas detalhadas. Por isto pedi a Jeremy para verificar.
- E você se saiu melhor do que o esperado - disse Costas.
- Jack disse que o que encontrara era apenas um fragmento,
parte do diário do mestre pedreiro, mas eu o encontrei -
replicou Jeremy, tirando um caderno de apontamentos do
bolso de seu casaco. - Isto é fantástico. Ocorreu quando eles
estavam retirando o entulho e queimando a madeira da
construção no fogo, tentando encontrar buracos
subterrâneos para enterrar o material, buracos não usados,
fossas, galerias subterrâneas. Um dos operários descobriu
uma cripta que deve ser esta câmara. Ele descreveu que
estava andando por uma outra cripta quando viu uma fileira
de grandes pipas com alças, de cerâmica e em pé, apoiadas
contra uma parede feita de barro, de um lado da cripta.
Pensou que elas poderiam ser pipas de drenagem,
provavelmente o revestimento de um poço, portanto as
deixou intactas. Encheram de detritos, o mais que puderam,
o espaço de um dos lados e revestiram com tijolos. Depois
saíram e fecharam com tijolos também a entrada da primeira
cripta. - Jeremy fez um gesto em direção à parede
desmoronada no lado mais distante da câmara, situada em
oposição às escadas. - Lá adiante. Deve ser aquela parede. O
revestimento de tijolo parece ter sido feito apressadamente,
e definitivamente é pós-medieval. Parece que a parede não
foi mexida desde então.
Costas parecia perplexo. - Pipas de drenagem. Então para
onde isso vai nos levar?
Jack tirou uma foto de sua mochila e entregou-a a Costas. -
Isso nos leva - ele disse - de volta para a Idade do Ferro.
- Ah - disse Costas. - Entendi. Não são pipas de drenagem.
São ânforas.
- Mais do que apenas ânforas - disse Jack muito excitado. - É
muito mais. Ânforas intactas por si só seria um achado
fantástico, mas é o contexto que conta.
- O anfiteatro? - perguntou Costas. - Um bar, uma taverna
como aquela que vimos em Herculano?
- Bom chute - disse Jack. - Mas esta foto é de um lugar
chamado Sheepen. Foi exatamente como os arqueólogos as
encontraram. Ânforas de vinho intactas, cinco delas
enfileiradas, taças para beber, outros artigos. Elas são de uma
sepultura.
- Então nós conseguimos uma sepultura romana? -
perguntou Costas.
- Não é romana. Você se lembra do que eu disse sobre a
apreciação celta por vinho? Vinho importado tinha o poder
de despertar respeito, era um sinal de riqueza e de status.
Não, a sepultura é de um guerreiro celta. - Jack subitamente
se sentiu exuberante. - Eu sabia. Todos aqueles anos atrás,
quando era garoto, eu sabia que estava na pista de algo
realmente grande. Seja onde for que esta trilha nos leve, esta
pode ser a realização de um outro sonho que tenho.
Costas olhou para a foto, depois para a parede de tijolos na
frente deles. Começou a falar, mas de repente se deteve,
paralisado. Olhou novamente para a foto, depois para Jack. -
Putz grila - ele disse debilmente.
Jack olhou para ele, e fez um gesto de cabeça. - Sim.
- Não apenas um guerreiro. Uma rainha guerreira - sussurrou
Costas. Jack assentiu, sem dizer nada.
- O que nós sabemos? - perguntou Jeremy.
Jack olhou para seu relógio. - Se tudo estiver dentro dos
planos, o furgão com o equipamento estará lá fora dentro de
uma hora. Até lá o concerto terá terminado e poderemos
introduzir todo o equipamento discretamente, se o pessoal
da igreja concordar.
- Eu só tenho que falar com mais um sujeito, mas é bom
irmos andando - disse Jeremy, olhando para Costas, que
levantou o polegar.
- Não estamos assumindo nenhum risco - disse Jack. -
Pedimos equipamento completo. Pode ser que tenhamos
que descer abaixo do nível do lençol de água, e quem sabe o
que mais pode haver lá embaixo. Eu nem mesmo vou mexer
naquela parede até estarmos prontos. Entrementes, posso
simplesmente subir e ir ouvir música.
- Não, você não pode - disse Costas. - Eu ainda preciso
esclarecer certas coisas. Algumas poucas coisas grandes.
Como, por exemplo, o cristianismo se insere em todo este
assunto da rainha guerreira.
- De acordo - disse Jeremy, empurrando seus óculos para
cima e olhando para Costas. - Quando se trata do início do
cristianismo na Grã-Bretanha, esta pode ser minha área.
Desembuche logo, Costas.
- Antes de encontrar com você esta manhã, fomos à
Biblioteca Britânica - disse Costas. - Jack precisava verificar
algumas informações materiais sobre a igreja, e enquanto ele
estava ocupado eu visitei a exposição de antigos manuscritos.
Eu vi uma das bíblias trazidas por santo Agostinho para a
Grã-Bretanha em 597 d.C. O que ocorreu quase duzentos
anos depois que os romanos foram embora. É nisto que
reside a minha confusão. Eu achava que foi Agostinho quem
trouxe o cristianismo para a Grã-Bretanha. E pensei, como
pode haver cristãos na Grã-Bretanha romana?
Jeremy, que estava sentado encostado na parede, inclinou-se
para frente. - Esta é uma concepção errônea muito comum.
E é isto que os historiadores da Igreja anglo-saxônica
gostariam que as pessoas acreditassem, mesmo grandes
nomes como Beda.
- Eu não entendi.
- A Igreja da Inglaterra, a ecclesia Anglicana, era realmente a
Igreja dos anglo-saxões. Ela estava intimamente ligada com a
realeza e com Roma. Suas origens estão associadas à missão
de Agostinho, que supostamente trouxe o cristianismo para
uma população pagã. Mas mesmo os anglo-saxões sabiam
que havia existido uma Igreja anterior, quando os romanos
tinham governado.
- A Igreja dos bretões - murmurou Jack. - A Ecclesia
Britannorum. A Igreja dos celtas.
- Para entender mais sobre isto, devemos nos reportar a
Gildas - disse Jeremy. - Um monge inglês que viveu no
início do século VI, cerca de uma centena de anos antes de
os romanos saírem, um par de gerações antes da chegada de
Agostinho. Gildas é praticamente o único bretão que
sabemos que pode ter estado vivo na época do rei Arthur. Se
Arthur existiu de verdade, ele era um rei guerreiro britânico
que lutava contra os invasores anglo-saxões naquela época.
- Como Frei Tuck - disse Costas.
- O livro de Gildas se chama De Excidio Brittonum, a "Ruína
da Grã-Bretanha". Ele foi escrito em latim, mas consegui
uma tradução. - Jack procurou dentro de sua mochila e
retirou um livro cinza e azul bastante usado com um
símbolo Qui-Rô na capa. Trata-se de um discurso
bombástico de como os reis que governaram a Grã-Bretanha
depois que os romanos foram embora falharam com seu
dever cristão. Eu me interessei por ele porque Gildas
menciona Boudica.
- A leoa enganosa - disse Jeremy, sorrindo.
- Isto é tudo o que ele diz, mas sugere que a lembrança dela
persistia, mesmo num padre que não sabia nada de história
romana, e pouco da história cristã quanto àquele assunto.
- Você não pode responsabilizar o pobre velho Gildas - disse
Jeremy. - Ele realmente viveu em épocas negras.
- Ele era um clássico reclamão britânico - disse Jack. - Nada
nunca estava certo para ele, no entanto, tinha uma espécie
de visão romântica, não muito precisa, da Grã-Bretanha. Ela
era uma ponte para o céu, suspensa na divina balança que
sustenta o mundo inteiro, mas repleta de pessoas mal-
agradecidas que se recusavam a temer a Deus, a curvar-se
diante de uma autoridade. Hoje em dia, Gildas teria dirigido
incessantemente cartas ao editor, reclamando. Ele teria
amado a Internet. Ouçam isto. O objeto de minha
reclamação é a destruição geral de tudo o que é bom, e o
crescimento geral da maldade através do país.
- Que esclarecedor - disse Costas.
- Mas ele nós dá o primeiro relato feito por alguém da
descoberta da Igreja Britânica, a Igreja Celta - disse Jeremy.
Jack concordou com um gesto, e virou a página. - Aqui está.
- Ele leu em voz alta:

Entretanto, para uma ilha entorpecida com um frio gelado e
muito afastada, como num recanto remoto do mundo, do sol
visível, Cristo deu um presente feito de seus raios, quer
dizer, de seus preceitos, Cristo, o verdadeiro sol, que mostra
seu brilho deslumbrante para a terra inteira, não do
firmamento meramente temporal, mas da mais alta cidadela
do céu, que se estende além de todo o tempo. Isto
aconteceu pela primeira vez, como sabemos, nos últimos
anos do imperador Tibério, numa época em que a religião de
Cristo estava começando a ser propagada sem impedimento:
porque, contra os desejos do Senado, o imperador ameaçou
com pena de morte os informantes contra os soldados de
Deus.

- Pelo menos ele descreveu bem o tempo que fazia na ilha -
resmungou Costas. - Então, o que ele fez? O imperador
Tibério?
- Ele era o imperador romano na época da crucificação -
disse Jeremy. Jack fechou o livro. - O tio de Cláudio
governou de 14 a 37 d.C. Gildas parece pensar que o próprio
Tibério era cristão, em desacordo com um Senado pagão.
Isto está bastante adulterado. Muitos eruditos acham que é
um anacronismo, no que se refere aos problemas que os
imperadores cristãos tinham com o Senado pagão no século
IV d.C., depois que Constantino, o Grande, fez do
cristianismo a religião do Estado. Em nenhum outro lugar
existe a indicação de que Tibério era cristão. Mas o que
encontramos nos últimos dias, em Herculano, em Roma, em
Londres, me fez pensar.
- Não Tibério, mas um outro imperador - murmurou
Jeremy.
- A Igreja Britânica, a Igreja Celta, não deixou registros
escritos. Se houve alguns, eles teriam sido destruídos pelos
anglo-saxões. Mas será que Gildas estava contando uma
verdade distante, uma memória do povo talvez, ou até
mesmo um segredo passado de boca em boca entre os
seguidores da Igreja Britânica durante mais de cinco séculos?
Será que ele estava contando que houve, de fato, um
imperador cristão, ou um imperador bem disposto em
relação a Jesus, não Tibério, mas um outro imperador que
vivia na época de Cristo?
- Cláudio - exclamou Costas.
- Isto é apenas possível. - Jack estava vermelho por causa da
excitação, e gesticulava enquanto falava. - Na época de
Gildas, a verdadeira identidade do imperador pode ter sido
confundida. Cláudio teria sido lembrado como o invasor da
Grã-Bretanha, como o imperador deificado que era adorado
no templo em Colchester. Um cristão bastante improvável.
Mas Gildas teria ficado sabendo de Tibério pelos Evangelhos
como o imperador que tinha presidido a morte de Jesus.
Para Gildas, poderia parecer o triunfo máximo do
cristianismo sugerir que o próprio Tibério era um
convertido. Isto teria sido uma ficção extravagante, mas
Gildas vivia numa época em que muitos acréscimos
fantasiosos estavam sendo feitos à história dos eventos que
envolveram a vida de Cristo.
- Eu ainda não entendi a conexão com a Grã-Bretanha -
disse Costas.
- Gildas estava querendo sugerir que o cristianismo chegou à
Grã-Bretanha mais ou menos naquela época, durante o
primeiro século d.C. - replicou Jeremy. - Ele estava mesmo
sugerindo que o próprio imperador o trouxe, em pessoa. A
sua obra De Excidio Brittonum era um livro exclusivamente
sobre a Grã-Bretanha, não sobre uma história mais ampla.
- Qual é outra evidência da existência do cristianismo aqui
no primeiro século? - perguntou Costas. - Da arqueologia, eu
quero dizer.
- Não há evidência definitiva até o século II, mas é apenas
no século IV que se começam a ver igrejas, sepultamentos,
símbolos visíveis do cristianismo depois que ele se torna a
religião do Estado - disse Jack. - Mas o cristianismo primitivo
era uma religião de palavras, não de ídolos e templos. Ele era
reservado, freqüentemente perseguido. Se não fossem os
Evangelhos e algumas poucas fontes romanas, não
saberíamos absolutamente nada sobre o cristianismo do
primeiro século d.C. Você se lembra do nosso navio
naufragado? Aquele símbolo Qui-Rô rabiscado era a única
evidência visível que percebemos ali de cristianismo, no
entanto era o navio de são Paulo, um dos episódios
importantes na história do cristianismo primitivo.
- Lembre-se também quem estava falando sobre isto no
primeiro período na Grã-Bretanha - acrescentou Jeremy
pensativo. - Ali viviam os imigrantes, comerciantes e
soldados que podiam muito bem ter trazido a idéia de
cristianismo com eles, e chegaram a venerar Cristo como
outros adoravam Mitra ou Isis. Mas a grande maioria da
população era constituída de nativos. Romanizados até certo
ponto, mas conservando muito da forma de viver celta e
seus costumes. Do que Jack me contou, sua religião quase
não deixou nenhum traço arqueológico. Essas pessoas não
tinham tendência para construir templos e altares ou para
esculpir estátuas de seus deuses. A arqueologia nunca nos
diria muita coisa sobre eles.
- Muito bem - Costas estava parecendo desassossegado. -
Aceitamos que existia cristianismo no início da Grã-
Bretanha romana. Mas, se era assim, por que a Igreja anglo-
saxônica deseja negar o fato? Quero dizer, isto não seria algo
a ser celebrado, que sua religião já existia no local havia
centenas de anos antes?
- Mas esta não era a religião deles - disse Jeremy
calmamente.
- Hein?
- A época de Gildas, a época do rei Arthur, não foi apenas
um período formativo na história política da Grã-Bretanha -
disse Jeremy. - Foi também uma época em que um conflito
dentro das comunidades cristãs da Grã-Bretanha começou a
aparecer pela primeira vez de forma ampla, um conflito que
iria configurar a história britânica. Todos conhecem a
história do rei Henrique VIII, sua ruptura com a Igreja
Romana. Mas poucos sabem que as raízes da Reforma
Inglesa no século XVI remontam a esse período, ao tempo
em que a Igreja Britânica se rebelou contra Roma e
proclamou sua conexão direta com a Terra Santa, com Jesus
o homem.
- A heresia de Pelágio - murmurou Jack.
- Pelágio era um outro monge inglês, anterior a Gildas,
possivelmente irlandês, nascido por volta de 360 d.C.,
quando os romanos ainda controlavam a Grã-Bretanha. Na
época de Pelágio, o Império Romano tinha sido oficialmente
cristão durante várias décadas, desde a conversão de
Constantino, o Grande, e esforços tinham sido feitos para
estabelecer a Igreja Romana na Grã-Bretanha. O próprio
Pelágio havia ido estudar em Roma, mas ficou muito
perturbado com o que viu por lá. Ele entrou em conflito
direto com um dos poderosos da Igreja Romana.
- Santo Agostinho de Hipona - disse Jack.
- Correto. Autor das Confissões e A Cidade de Deus. O outro
Agostinho, não aquele que trouxe a Igreja Romana para a
Grã-Bretanha, mas aquele cuja Bíblia você viu na Biblioteca
Britânica, Costas. Vou falar dele dentro de um minuto. O
segundo, Agostinho de Hipona, chegou a acreditar no
conceito de predestinação, que o cristianismo era
completamente dependente da Graça divina, do favor de
Deus. Do ponto de vista dele, o Reino dos Céus só podia ser
procurado através da Igreja, não por livre-arbítrio. Isto era
uma doutrina teológica, mas que proporcionava imensos
benefícios práticos para a Igreja Romana, para o recente
Estado cristão.
- Dominação, controle - murmurou Jack.
- Isto tornava os crentes subservientes à Igreja, que era o
canal da graça divina. Tornava o Estado mais forte, mais
capaz de controlar as massas. Igreja e Estado se fundiam
como um poder inexpugnável, e o palco estava montado
para o mundo medieval europeu.
- Mas Pelágio não estava gostando nada disso - disse Jack.
- Pelágio provavelmente se via como um membro da
comunidade cristã original que existira na Grã-Bretanha
antes que a Igreja Romana oficial chegasse, que remontava
aos primeiros seguidores de Jesus no primeiro século - disse
Jeremy. - A Igreja Celta provavelmente era formada por
muitos bretões romanizados cujos ancestrais eram celtas. O
pouco que sabemos sobre Pelágio é virtualmente a única
evidência direta que temos de suas crenças. Parece provável
que eles consideravam o conceito de céu na terra como
verdade, a idéia de que o céu poderia ser encontrado ao
redor deles, no decorrer de suas vidas terrestres. Para eles, a
mensagem pode ter sido interpretada como encontrar e
glorificar a beleza na natureza, como amor e compaixão
graças a ela. Teria sido um conceito moralmente
fortalecedor, completamente em desacordo com a lassidão
que Pelágio encontrou em Roma. Quando esteve aqui, ele se
pôs contra Agostinho de Hipona, negou a doutrina de
predestinação e de pecado original, defendeu a bondade
humana inata e o livre-arbítrio. Era uma batalha sem
esperança, mas ele era um guia para a resistência e seu nome
ecoou através dos séculos, em lugares ocultos e reuniões
secretas, numa época em que qualquer indício dessas
reuniões poderia significar prisão, tortura, e até mesmo algo
pior.
- O que aconteceu a ele? - perguntou Costas.
- É uma história horrível, e montou o palco para muitas
coisas que aconteceram depois. A doutrina de Pelágio foi
condenada como herética pelo Sínodo de Cartago em 418
d.C. O próprio Pelágio foi excomungado e banido de Roma.
Não fica claro se alguma vez ele voltou para a Grã-Bretanha.
Alguns acreditam que ele foi para a Judéia, para Jerusalém,
para o lugar da tumba de Cristo, e foi assassinado ali.
- Já havia forças sombrias dentro da Igreja, que não tinham
escrúpulos em executar o que consideravam a justiça divina
- disse Jeremy. - Mas elas não puderam controlar o que
estava acontecendo na Grã-Bretanha. Depois da retirada dos
romanos em 410 d.C., depois que as cidades se desagregaram
e se deterioraram, a Igreja Romana, que tinha sido trazida
pelos bispos de Constantino, parece ter virtualmente
desaparecido. Era isto que Gildas lamentava. Provavelmente
ele próprio era um dos últimos monges na Grã-Bretanha da
Igreja Romana do século IV, embora ela fosse bastante
confusa. Com o edifício do Estado removido, a Igreja
Romana não detinha mais controle sobre as pessoas que não
eram atraídas pela doutrina de Agostinho. Então, os anglo-
saxões invadiram a Grã-Bretanha. Eles eram pagãos. E é
assim que chegamos ao segundo Agostinho, Costas. Santo
Agostinho de Canterbury. Ele foi enviado pelo papa
Gregório em 597 d.C. com quarenta monges para converter
o rei Aethelbert de Kent, e depois disso a Igreja Romana
permaneceu na Grã-Bretanha.
- Mas o cristianismo celta continuou - disse Costas.
- Ele sobreviveu ao primeiro Agostinho, e sobreviveu ao
segundo - disse Jeremy. - Havia algo em sua filosofia que
atraía a linhagem celta descendente dos bretões, algo que
eles acreditavam que estava em conformidade com os
ensinamentos originais de Jesus, que também transmitia uma
verdade universal sobre a necessidade de liberdade e de
aspiração individual. Algo que havia sido ensinado a eles
pelo primeiro seguidor de Jesus a alcançar estas praias, talvez
pelo imperador vagamente lembrado por Gildas. Uma
sabedoria que eles mantiveram e apreciavam, uma memória
sagrada.
- As pessoas deviam ter controle e responsabilidade por suas
próprias ações, seu próprio destino - disse Jack.
- Este é o cerne da doutrina de Pelágio. Suas objeções
remontavam ao próprio início da Igreja, como se pode ver
em seu Comentário sobre a Epístola de São Paulo. Quando
Pelágio chegou a Roma, ele viu frouxidão moral, decadência,
e considerou responsável por isso a idéia de graça divina. Se
tudo está predestinado e dentro do capricho de Deus, por
que se preocupar com boas ações ou tentar fazer do mundo
um lugar melhor? Ele objetava a noção de subserviência de
Agostinho, do "dê-me o que você ordena e ordene sua
vontade", que transformava as pessoas em autômatos. Ele
odiava toda a noção de pecado e de culpa. Segundo o seu
ponto de vista, as pessoas podem evitar pecar, o pecado não
é algo que já existe em todos nós, e podemos livremente
escolher obedecer a Deus, viver uma vida santa. A doutrina
de Pelágio dizia respeito ao individual, ao livre-arbítrio, à
força moral. De acordo com ele, o exemplo de Jesus não era
originalmente o de sacrifício, mas sim de instrução. Jesus
mostrou como viver uma boa vida, e os cristãos podem
escolher segui-lo. E o que é realmente fascinante é como
essas idéias podem representar uma continuidade do
paganismo celta, que parece ter defendido a habilidade do
indivíduo de triunfar como pessoa, até mesmo sobre o
sobrenatural.
- O que não entendo é como a Igreja Celta sobreviveu à
Idade das Trevas - disse Costas. - Quero dizer, primeiro os
anglo-saxões invadiram, depois os vikings, em seguida os
normandos. Essa história de linhagem celta deve ter sido
bastante enriquecida na época.
- Ela sobreviveu, mas não apenas naqueles com linhagem
céltica - disse Jeremy. - Este fato tem a ver com o tipo de
pessoa que escolheu vir para a Grã-Bretanha, e persistiu em
ficar. Não foram apenas as pessoas que vieram com as
famosas invasões, mas imigrantes tardios também, os judeus
sefardis, os huguenotes. Eles tinham algum traço comum, os
traços necessários para serem bem-sucedidos aqui.
Independência, obstinação, teimosia, resistência diante da
autoridade, força diante da privação. Tudo perto deste lugar
onde estamos agora. O espírito da Blitz.
- Eu mesmo acho que é algo que tem a ver com o estado
atmosférico - resmungou Costas. - É preciso ter alguma coisa
a mais para sobreviver neste lugar.
- Ele fez uma pausa. - Então, vocês acham que esta igreja, St.
Lawrence Jewry, contém toda esta história nela?
- Não há nada que prove que houve uma igreja aqui antes do
século XI, quando os normandos chegaram - disse Jack. -
Mas ninguém conhece a localização das igrejas perto do final
da Londres romana. Antes disso, as reuniões dos cristãos
eram fechadas, e, mesmo depois que o cristianismo se
tornou a religião oficial, o culto religioso das congregações
nunca se firmou na Grã-Bretanha romana. Mas este é um
local muito provável. Bem perto do anfiteatro, um lugar que
teria sido associado com o martírio de cristãos. E as igrejas
com freqüência eram construídas em locais de rituais
pagãos. Isto pode ter acontecido um grande número de
vezes aqui, algo verdadeiramente sagrado. Este lugar pode
ter ocultado um segredo extraordinário.
- O coração das trevas - murmurou Costas, olhando para a
parede de tijolos no final da câmara.
Jack seguiu seu olhar, com pensamentos e emoções
passando excitados por ele. Olhou para o relógio. A música
tinha terminado no andar superior, e ouviram uma batida na
porta. Ele se ergueu, respirou profundamente e pendurou a
mochila no ombro. - Acho que estamos a ponto de
descobrir.

CAPÍTULO 15

Quatro horas mais tarde, Jack e Costas agacharam-se dentro
da câmara mortuária atrás da luz forte e ofuscante de suas
lâmpadas de tungstênio. Uma aeronave bimotor, turbo-
hélice de médio porte, De Havilland Dash-8, da IMU, havia
trazido todo o equipamento de que necessitavam do campus
de Cornwall para o aeroporto de Londres, inclusive um
novo par de macacões para substituir aqueles que tinham
deixado com Massimo em Roma. Jeremy havia obtido uma
permissão imediata das autoridades da igreja para um
reconhecimento exploratório atrás da parede de tijolos na
parte lateral da câmara. Em uma conversa reservada e
intensa com o clérigo, na cripta, eles tinham concordado
sobre a necessidade de segredo absoluto, e seu equipamento
tinha sido trazido para dentro em um furgão de televisão
emprestado por pessoas disfarçadas de equipe de filmagem.
No andar superior, o concerto do meio-dia havia terminado
e eles podiam ouvir um canto gregoriano chegando até eles,
cantado pelo coro da igreja que estava praticando na nave,
um som que Jack achou estranhamente tranqüilizador
enquanto consideravam outro buraco negro para dentro do
desconhecido.
- Muito bem. Está feito. Definitivamente há um espaço aí
atrás, mas não posso ver muita coisa sem entrar lá dentro. -
Jeremy tinha feito um buraco na parede de tijolo, que
mostrou ter sido deficientemente construída com argamassa
que não tinha assentado, o que permitiu que ele removesse
os tijolos com facilidade.
- Obrigado - disse Jack. - O seu trabalho agora é proteger o
forte. - Jeremy concordou com um gesto de cabeça, voltou
para trás para verificar o ferrolho na porta que dava para a
cripta e depois se sentou apoiado na parede, observando-os
pegar o equipamento necessário.
- Poderíamos ir abaixo do nível do lençol de água. - Costas
estava olhando para uma imagem num laptop, enquanto
verificava a vedação do seu macacão na altura do pescoço. -
Estamos três metros abaixo do atual nível do Guildhall Yard,
cerca de dois metros acima das camadas romanas. Abaixo
disso há um afluente do rio Walbrook em algum lugar bem
na nossa frente. Com toda esta chuva é provável que esteja
bastante molhado.
- De qualquer maneira vamos precisar dos macacões - disse
Jack. - Pode estar bastante tóxico lá embaixo.
Costas resmungou. - Vazamentos de gás?
Jack fez um gesto ao redor da câmara mortuária. - Dois mil
anos de ocupação humana, Costas. Eu não vou explicar isto
nos mínimos detalhes para você.
- Não o faça. - Costas se inclinou e abaixou o visor de Jack,
depois ajustou o regulador na lateral de seu capacete para
verificar o fluxo de oxigênio. Ele rapidamente fez o mesmo
em seu próprio capacete. Repentinamente, ficaram
completamente fechados ao mundo exterior, e apenas
capazes de falar um com o outro através do
intercomunicador. - O oxigênio dos rebreathers deve nos
dar um prazo de quatro, talvez quatro horas e meia - ele
disse.
- Podemos estar de volta dentro de dez minutos - disse Jack.
- Pode ser que nos encontremos em um beco sem saída.
- Se eu tivesse o equipamento de sensoriamento remoto do
Seaquest, então poderíamos introduzir uma câmara lá dentro
e ver o que há atrás daquela parede.
- Nada supera o olho humano - disse Jack. - Venha. - Ele
acenou novamente para Jeremy, que tinha tirado um laptop
de sua mochila e espalhado suas anotações. Jack se pôs de
gatinhas e passou pelo buraco na parede de alvenaria, com
sua headlamp iluminando a escuridão a sua frente. Assim
que ele passou, Costas o seguiu e chegou ao seu lado.
Estavam empoleirados em cima de uma pedra, e na frente
deles cerca de doze degraus conduziam para uma outra via
de acesso, uma entrada baixa e em forma de arco de mais ou
menos um metro e meio de altura. Jack agachou-se e
começou a descer as escadas silenciosamente, com sua
lanterna de mão se deslocando de um lado a outro da escada
de pedra diante dele.
- Vamos esperar que o teto não ceda - murmurou Costas.
Jack ergueu o olhar. - Ele é de pedra sustentada sobre
modilhão, quase tão forte quanto você poderia almejar. A
alvenaria parece idêntica àquela da parte antiga da câmara
mortuária, século XIV, talvez de antes. Posso ver telhas
romanas reutilizadas e de ardósia, provavelmente tiradas das
ruínas do anfiteatro. - Continuou a descer os degraus,
alcançou o último e ficou em pé com as costas inclinadas
desajeitadamente. Na frente dele, a entrada de pedra em
forma de arco estava parcialmente bloqueada pelos restos
podres de uma porta de madeira, com uma janela de grade
de cerca de vinte e cinco centímetros de largura
diretamente na frente dele. Jack passou sua headlamp por ela
enquanto Costas o alcançava.
- Isto se parece com uma cela de prisão - disse Costas.
- É uma cripta - murmurou Jack. - Uma outra câmara
mortuária. Exatamente como o diário do pedreiro descreve.
E ela parece intocada.
- O que você quer dizer com intocada? Pensei que os
rapazes de Wren entraram aí dentro.
- Quero dizer que ela parece repleta. Não há lugar para
entrar dentro dela.
- Oh, não.
Jack empurrou cautelosamente a porta, e ela cedeu
ligeiramente. - Ela ainda está sólida - ele disse. - Estas
condições úmidas são ideais para a sobrevivência orgânica.
Podemos encontrar uma preservação assombrosa lá dentro.
- Oh, isso é bom - disse Costas debilmente.
Jack empurrou de novo com ambas as mãos, e a porta ficou
completamente entreaberta. Olharam com cuidado dentro
do espaço à frente deles. Era uma simples câmara abobadada,
de extensão similar à da câmara mortuária que tinham
acabado de deixar, mas cerca de três vezes mais larga.
Dispostas ao longo de cada lado havia cavidades na pedra,
algumas grosseiramente fechadas com tijolos, outras abertas
e cheias até a borda com conteúdos. Eles podiam ver as
extremidades de velhos caixões de madeira, alguns intactos e
com tampa, outros desagregados e em decomposição, formas
escuras disformes apenas visíveis dentro deles. Jack deu
alguns passos adiante, enquanto Costas permanecia grudado
no local, olhando direto à frente. - Este é o meu pior
pesadelo, Jack.
- Venha - disse Jack. - Todas as partes da vida são como uma
rica tapeçaria. Costas moveu-se à frente pouco a pouco,
parou, depois adiantou-se com resolução e olhou muito de
perto para um dos caixões estourados, tendo nitidamente
decidido que a investigação científica era a melhor terapia. -
Interessante - murmurou, pigarreando. - Há um cano de
porcelana emergindo do alto deste caixão de defunto,
escurecido de um lado. Nunca pensei que as pessoas
fizessem libações em sepultamentos cristãos.
- Bela tentativa, mas errada - disse Jack. - Como você
levantou o assunto, estou lhe contando. Aqueles canos eram
para deixar passar vapores.
- O quê? Não.
- Você encontra estes canos nas catacumbas vitorianas -
disse Jack. - O problema com um caixão de defunto forrado
com chumbo é que ele pode explodir, especialmente se o
corpo é fechado dentro dele muito rapidamente depois da
morte. Trata-se do primeiro estágio da decomposição, você
sabe. A saída de gases.
- Saída de gases. - Costas parecia oscilar ligeiramente, mas
permanecia fixado no esquife.
- Os canos eram acesos para queimar os gases - disse Jack. -
É por isso que eles ficam escurecidos.
Costas balançou para trás, depois escorregou para o chão,
agarrando-se bem a tempo na extremidade de um nicho
aberto na parede oposta. Ele se endireitou de novo, depois
ergueu o pé de uma poça pegajosa que se estendia debaixo
de um dos nichos perto da entrada. - Devemos estar mais
próximos do nível da água do que eu pensava - ele disse. -
Há muita água aqui para ser apenas condensação.
- Eu tenho mais algumas más notícias para você, receio.
Costas olhou para a poça, depois para a mancha escura que
escorria do nicho mortuário localizado acima na construção
de pedra, em seguida de novo para a poça. - Oh, não - ele
sussurrou.
- Saponificação - disse Jack alegremente. - Existe sobre isso
um maravilhoso relato de Sir Thomas Burns, uma espécie de
Plínio do século XVII que gostava de escavar velhas
sepulturas. Eu e Hiebermeyer fizemos uma vez um curso
sobre mumificação com o pessoal forense do Ministério dos
Negócios Interiores, e posso recordá-lo palavra por palavra.
Nós nos deparamos com uma concreção gordurosa, quando
o salitre da terra e a leve e lixiviada secreção orgânica do
corpo coagularam grandes massas informes de gordura, com
a consistência de uma vela de sabão extremamente dura;
parte do que permaneceu conosco.
- Secreção do corpo - sussurrou Costas, esfregando
freneticamente o pé num tijolo caído. - Tire-me fora daqui,
Jack.
- Cera mortuária - replicou Jack. - A lenta hidrólise de
gorduras em adipocera. Especialmente provável de ser
encontrada em condições alcalinas, quando os corpos estão
vedados ao ataque das bactérias, e quando há umidade.
Como eu disse, vamos encontrar assombrosas condições de
preservação aqui.
- Não poderia ser pior do que isto.
- Não conte com isso. - Jack se agachou para examinar a
inscrição no bloco de pedra que, podia perceber agora, se
encontrava diante de cada nicho intacto, construído no
centro do revestimento de tijolos. Ele andou ao longo, de
um para o próximo. - Fascinante - murmurou. - Em geral,
nas igrejas de Londres, as criptas eram usadas
extensivamente por algumas décadas, talvez um século ou
mais, eram preenchidas completamente e depois seladas.
Mas esta aqui é muito estranha. A fórmula de cada uma
destas inscrições é quase idêntica, mas elas variam em um
enorme espaço de tempo. Cada uma delas tem um símbolo
Qui-Rô, seguido por um nome latino. Olhe aqui. Maria de
Kirkpatrick. E ali, Bronwyn de Llewelfyn. A maior parte
deles está em latim, mas são versões de nomes britânicos. E
as datas estão em números romanos. Aquele perto de você,
aquele na prateleira mais baixa perto da porta, é o último de
1664, apenas poucos anos antes do Grande Incêndio que
destruiu a igreja medieval.
- Aquelas figuras. - Costas ainda estava olhando a meia
distância, claramente tentando se concentrar em algo
diferente do que aquele horror físico que via ao seu redor.
Pigarreou. - O diário do pedreiro. Ele diz que a cripta foi
selada pelos homens de Wren nos anos 1680. Isto faz pensar
que não deveria haver mais nenhum sepultamento depois
disso.
Jack alcançou o lado mais distante da câmara, dando a volta
cuidadosamente ao redor do lugar pegajoso no chão. Ele se
agachou de novo, examinando mais algumas inscrições na
pedra, deslocando alguns tijolos quebrados com as mãos. - E
a primeira destas inscrições é incrivelmente antiga - ele
murmurou. - As mais velhas neste lugar se desagregaram,
mas há duas aqui com nomes anglo-saxões. Aelfrida e
Aethelreda. Não posso ler o nome nesta outra, mas posso ler
a data. 535 d.C. Meu Deus - ele disse com a voz rouca. - É
da Idade das Trevas, da época do rei Arthur, de Gildas. Isto é
de antes de Agostinho trazer o cristianismo romano de volta
para a Grã-Bretanha, no entanto, esse sepulcro mostra um
símbolo cristão.
- Os nomes são todos de mulheres - disse Costas baixinho.
- Esta câmara é de uma época mais antiga que a da igreja
medieval - Jack continuou a examinar ao redor. - Parece que
ela foi mantida em reparo durante o período medieval até a
época do Grande Incêndio, mas os modos de sepultar nas
prateleiras mais baixas parecem romanos. - Ele ajoelhou-se,
e passou a mão ao longo do canto da câmara debaixo do
nicho mais distante. - Não há dúvida sobre isto. Estamos
dentro de uma catacumba romana. A única encontrada na
Grã-Bretanha.
- Verifique a inscrição acima da porta de entrada.
Jack examinou em cima da porta, e viu uma um único
registro de letras esculpido na alvenaria, coberto com um
acréscimo por justaposição, escurecido. Costas leu as
palavras lentamente:

URI VINCIRI VERBERARI FERROQUE NECARI

- Bom Deus - exclamou Jack, ficando em pé e olhando, sua
mente girando. - Este é o juramento do gladiador. O
sacramentum gladiatorum.
- A profecia da Sibila - disse Costas. - A tabuleta de cera de
Roma. É a mesma, não?
- Idêntica. Ser queimado pelo fogo, ser acorrentado, ser
açoitado para morrer pela espada. Bom e velho Cláudio -
murmurou Jack. - Acho que estamos exatamente onde ele
quer que estejamos.
- E onde a Sibila queria que ele estivesse.
- Originalmente, aqui deve ter sido a câmara mortuária dos
gladiadores, onde os cadáveres mutilados eram deixados
antes de serem levados para outro lugar e queimados -
murmurou Jack. - E depois ela foi usada como cripta
mortuária, durante mais de mil anos. Uma cripta mortuária
para mulheres, para mulheres que de algum modo eram
ligadas, durante todo aquele tempo.
- Talvez fizessem parte de uma sociedade secreta, uma
corporação - disse Costas. - Talvez elas quisessem ser
sepultadas perto do que quer que esteja deitado atrás daquela
parede.
- De acordo com o diário, foi aqui que as ânforas romanas
foram encontradas pelos homens de Wren - disse Jack. - E
esta deve ser a parede, onde estamos agora.
Costas colocou as duas mãos na parede de tijolos diante dele,
e empurrou cuidadosamente. Recuou enquanto vários dos
tijolos se deslocavam. - Não estão assentados com argamassa
- disse. - Parece que eles simplesmente empilharam os
tijolos.
- Isto faz sentido - disse Jack. - O diário relata que eles
decidiram selar a cripta inteira lá atrás na câmara mortuária,
onde deixamos Jeremy, então devem ter desistido de selar
esta câmara mais profunda, que estava na metade do
caminho para a outra. Vamos ter que tirá-los desde o topo,
tijolo por tijolo.
Costas empurrou, experimentalmente, um pouco mais, e um
dos tijolos que tinha mudado de posição caiu para trás.
Subitamente, a parede inteira desmoronou para dentro, e
ambos se deslocaram para trás enquanto o ar se enchia com
poeira vermelha. Costas, com muito cuidado, evitou a poça
pegajosa no chão.
- Eu estava a ponto de dizer que nós não temos tempo para
delicadezas - disse Jack, limpando a frente do seu visor.
- Examine - disse Costas, se recompondo e indo para frente
novamente. Jack orientou sua lanterna de mão para o local
onde Costas fazia gestos.
Onde tinha estado a parede de tijolos, agora havia um
buraco, mas logo dentro à esquerda, encontrava-se uma
fileira do que pareciam ser antigas pipas de cerâmica para
drenagem, dispostas em uma fileira e apontando para cima.
Jack introduziu-se através da pilha de tijolos caídos e acenou
excitado. - Você reconhece aquelas?
- Ânforas. Ânforas romanas. Exatamente o que estávamos
procurando.
- Certo. E elas são exatamente do mesmo tipo que as ânforas
de vinho que encontramos no navio naufragado de são
Paulo, aquelas fabricadas em Campânia, perto de Pompéia e
Herculano. Você se lembra da data do naufrágio?
- 58 d.C., aceite o meu palpite ou diga o seu.
- Certo. Estas eram as típicas ânforas de vinho daquele
período. E aqui nós estamos na Londres romana, exatamente
onde estas ânforas estavam sendo negociadas. Qual era a data
da rebelião de Boudica? 60, 61 d.C. Se ânforas de vinho
estavam sendo deixadas em sua tumba por seus seguidores,
estas são exatamente do tipo que se esperaria encontrar
naquela época.
Costas comprimiu-se ao lado de Jack e olhou atentamente
para a escuridão além. - Não tenho certeza de onde iremos
dar saindo daqui. Parece ser uma espécie de escavação
vertical.
Jack também olhou atentamente ao redor. À esquerda havia
uma massa instável de entulho, feita de muitos tijolos
quebrados, mas também um pouco de madeira de
construção chamuscada, tudo misturado e comprimido
formando uma massa compacta. Ela se projetava dentro de
uma estrutura vertical formada por madeira de construção
enfileirada de cerca de dois metros de largura e três de
profundidade, com água no fundo. - Muito bem - disse Jack.
- O que temos aqui são detritos da destruição causada pelo
Grande Incêndio de 1666, provavelmente descarregados em
massa durante a reconstrução da igreja feita por Wren. Se
qualquer um de seus homens andou além da cripta, é por
este caminho que deve ter passado. Nunca passaremos por
ela sem uma grande escavação. Isto está fora de questão. A
única esperança é descermos esta escavação vertical.
- O que ela é?
- Parece ser um poço. Havia fontes de água fresca nos
pedregulhos ao lado do Tâmisa. A água de Londres era
notavelmente saudável até se tornar um brejo por causa da
água de esgoto. Em geral, os poços eram rodeados por
madeira de construção enfileirada como este aqui. - Jack
inclinou-se e examinou a madeira. - Fascinante. É madeira
de navio reutilizada. Estas são pranchas sobrepostas e seguras
com pregos revirados, viking. Você se lembra dos nossos
barcos vikings, compridos, que estavam no gelo?
- Nunca pensei que diria isso, mas eu preferiria estar por lá
agora.
- Eu vou entrar. - Jack se movimentou até a extremidade do
buraco, e agarrou a mão de Costas enquanto se dependurava
por cima da beirada, com os pés pendentes um metro ou
mais por cima do poço escuro. - Vamos esperar que ele não
seja um buraco sem fundo. - Ele se soltou e caiu com um
grande barulho sobre uma superfície líquida, parando com
seus joelhos na lama, a parte superior do seu corpo fora da
água. - Agora é você. - Experimentou cuidadosamente ao
redor com o pé. - Eu acho que é uma aterrissagem segura.
Costas resmungou, depois se abaixou muito cuidadosamente
por cima da extremidade, seu visor pressionado contra a
madeira úmida do revestimento do poço. Deslocou-se
ligeiramente ao longo do poço para evitar cair sobre Jack.
Alcançou uma pequena seção da madeira que havia
apodrecido, e, de repente, gelou.
- O que é - perguntou Jack.
Houve um silêncio, e depois a voz de Costas soou distante e
rouca. - Este poço, Jack. Ele não foi escavado através de
cascalho.
- O quê?
- Ele foi cavado através de ossos, Jack - disse Costas, sua voz
soando além dos limites da emoção. - Ossos humanos,
milhares deles, amontoados ao nosso redor. É tudo o que
posso ver.
- Provavelmente não é um poço contaminado - disse Jack
pensativo. - Provavelmente é um ossuário, os ossos foram
despejados aqui trazidos de algum outro local de
sepultamento. Ainda assim, foi bom termos vindo com os
macacões, a título de prevenção.
Costas se soltou, e caiu ao lado de Jack, espirrando muita
água, desaparecendo completamente dentro da água antes de
se erguer em meio a um tumulto de lama. A água se acalmou
e ele ergueu as mãos, olhando para as listras de lama em suas
luvas. - Uma boa sujeira à moda antiga - murmurou. - Acho
que já tive o bastante de resíduo humano em cima de mim.
- O que você disse me faz pensar - comentou Jack. - Sobre
um poço, escavado através de um antigo ossuário. Acho isso
muito improvável. Acho que percebi errado. Acho que o
que de fato temos aqui é uma cloaca.
Costas limpou o visor, deixando-o listrado de marrom, e
olhou sem fala para Jack.
- Na verdade, é muito higiênico - disse Jack. - Cada
habitação tinha uma. Somente quando elas ficavam
inundadas é que se tornavam um problema, e foi quando as
pessoas começaram a usar canos de esgoto que não eram
adequados para o serviço.
- E você acha isso tranqüilizador? - Costas parecia estar à
beira de lágrimas. - Venha mergulhar com Jack Howard.
Nenhuma latrina é demasiado profunda. - Ele tentou
se esforçar para ir para cima, depois subitamente
desapareceu de vista, em seguida sacudiu-se acima
novamente. - Imaginei isto - ele disse. - Ha água fluindo
abaixo de nós. Isto se precipita em uma corrente
subterrânea.
- O afluente do Walbrook - disse Jack. - Acho que, no fim,
tivemos sorte.. Se pudermos entrar no afluente e achar uma
outra abertura, seremos capazes de ir para cima por detrás
daquela obstrução de entulho.
- Ou podemos nos juntar à cidade dos mortos aqui embaixo.
Permanentemente.
- Esta é sempre uma possibilidade.
- Muito bem. - Costas pegou o seu pequeno computador
GPS à prova de água, e procurou um esboço topográfico em
3-D que tinha programado dentro dele enquanto esperavam
que o equipamento chegasse à igreja. - O fluxo é em direção
ao leste, para o Walbrook, que depois flui para o sul, para
dentro do Tâmisa. A beirada exterior do anfiteatro está
apenas a cinco metros ao norte de onde estamos. Se de
alguma maneira formos além daquele ponto, depois também
podemos voltar. Estaremos dentro da área que foi cavada nas
recentes escavações.
- Vou ficar bem atrás de você - disse Jack.
- Eu o vejo do outro lado. - Costas ficou fora de vista.
Durante alguns momentos houve uma comoção na água
quando seus pés atingiram a superfície, depois ela se
acalmou e o poço se tornou de um negro brilhante e
reluzente. Jack se agachou com água até o peito, e ouviu
Costas respirando através do intercomunicador. Durante um
instante pensou no seu medo secreto novamente, a
claustrofobia com a qual lutava tão fortemente para
controlá-la, e percebeu que sua mente sentia que havia
segurança neste lugar, uma saída fácil através da antiga cripta
e da câmara mortuária para a igreja acima delas. O que havia
além deste poço era outro assunto, e ele respirou
profundamente algumas vezes enquanto olhava para a
superfície límpida. Sentiu uma vibração, um tremor através
de seu corpo, e observou a superfície da água iluminar-se
fracamente. Sabia que se tratava de um trem subterrâneo
passando por um túnel em algum lugar bem distante. Por
um instante, a sensação o trouxe de volta para a realidade do
século XXI, e em sua visualização todos os tumultuados
eventos do passado, os sombrios rituais da pré-história, o
sangue do anfiteatro, o Grande Incêndio, a Blitz dos alemães
passaram por ele como um filme de movimentação rápida,
deixando sua impressão maléfica e detestável dentro do
sedimento nauseante ao seu redor. Fechou os olhos, depois
os abriu novamente. Jack pressionou o mostrador de leitura
digital dentro de seu visor, examinando cuidadosamente a
numeração que mostrava a quantidade de oxigênio
remanescente em seu rebreather - os níveis de toxicidade do
dióxido de carbono. Era uma verificação da realidade, e
nunca havia falhado para ele. Ele se ergueu e percebeu que
quase tinha ficado firmemente preso em mais de um metro
de lama no fundo da poça. Depois de se arrancar dali flutuou
com o rosto para baixo na superfície, com o visor debaixo da
água, olhando para um redemoinho escuro com a fraca
quantidade de luz da headlamp de Costas diretamente abaixo
dele. Ele se arqueou e mergulhou na escuridão. Cerca de
dois metros mais abaixo, ele podia sentir o fluxo da corrente
subterrânea, e ver o tumulto da água clara onde o lodo
estava sendo levado de roldão. Ainda havia apenas poucos
centímetros de visibilidade, mas era melhor do que o caldo
escuro na superfície do poço.
- Há uma obstrução. - A voz de Costas chegou pelo
intercomunicador. - Estou quase perto dela.
Jack podia sentir os pés de Costas quase diante dele,
formando redemoinhos na água enquanto ele se içava ao
redor de uma curva no túnel. Jack permaneceu atrás para
evitar ser chutado, e depois, quando a turbulência se
acalmou, ele se deixou apenas cair para diante, as mãos
abertas à frente para sentir qualquer obstáculo. Depois de
dois metros sentiu algo liso, metálico, e em seguida seu peito
tocou nos pés de Costas. Houve um movimento em
ziguezague, depois mais nenhum movimento, seguido por
uma pancada metálica abafada, e finalmente apenas o som de
sua respiração.
- É um detonador Série 17. Bom.
- O que é? - perguntou Jack. - O que é bom?
- Isto. - Ouviu-se um barulho ressoante, seguido de uma
imprecação.
- O quê? Eu não consigo ver nada.
- Esta bomba.
O coração de Jack quase parou de bater. - Que bomba?
- Uma SC250 soltada pelos alemães durante a Segunda
Guerra Mundial, com o propósito geral de bombardear.
Bombardeiros e caças: Stuka, Junkers 88, Heinkel 111. Eles
jogaram milhares delas por aqui. Simples rotina.
- O que você quer dizer com simples rotina?
- Quero dizer que elas não eram detonadores de ação
retardada, então eram jogadas como simples rotina.
Jack teve outra sensação de que ia desmaiar. Pensou de novo
no tremor, na vibração do trem. De repente, este lugar
parecia menos confiável, menos estável, pronto para a
história ter um outro prosseguimento. - Não me conte o que
você está fazendo.
- Está tudo bem. Já fiz. Fiz tudo o que podia. - Os pés de
Costas se deslocaram para frente, e Jack desceu mais um
metro. - O pequeno detonador dianteiro estava bem na
frente do meu nariz, e por acaso eu tinha a ferramenta
correta. O detonador posterior é que é um problema. Posso
senti-lo, mas ele está todo enferrujado. Não é do meu feitio,
mas temos que deixá-lo como está.
- Sim, nós podemos - disse Jack baixinho. - Isso é muito
perigoso?
- O suplemento usual era de apenas 127 quilos de Amatol e
TNT, mistura de 60/40.
- Apenas? - exclamou Jack incrédulo.
- Bem, nós seríamos torrados, é claro, mas o círculo
financeiro do mundo provavelmente permaneceria intacto.
- Acho que possivelmente já houve bastante sacrifício
humano neste lugar - disse Jack. - Quão estável ele é?
- O problema está no detonador enferrujado - disse Costas. -
Ele tem estado dormindo feliz por quase setenta anos, mas,
com a nossa chegada, quem sabe o que pode ocorrer.
- Você quer dizer depois que mexeu indevidamente nele,
quem sabe... - O lodo tinha se depositado levemente, e Jack
podia ver o invólucro da bomba a cerca de sete centímetros
de seu rosto. Estava corroído, profundamente enterrada sem
marcas visíveis, e parecia tão ameaçador quanto Jack podia
imaginar. Estava fazendo os cálculos mentais habituais, e
desta vez as probabilidades vantajosa: não pareciam boas. -
Acho que está na hora de irmos.
- Oh, não.
- Como não? Esta coisa ainda está viva. Precisamos sair
daqui.
- Não. Não foi isso que eu quis dizer. Estava falando disso
que está à minha frente. É um outro pesadelo. É o mesmo
pesadelo, apenas tornando-se pior.
- Certo. Estou chegando. - Jack tranqüilizou-se mais
profundamente, o invólucro corroído bem diante de seu
rosto, até que viu onde ele se curvava para o cone do nariz e
o sistema de suspensão LUG. Ele se virou de costas e
colocou a mão no LUG para impedir que seu corpo ficasse se
sacudindo contra o envoltório, que parecia estar
perigosamente suspenso no meio da água. Ele se ergueu
lentamente até sentir o envoltório entre as pernas, e depois
debaixo dele. No ponto em que imaginava onde estariam a
placa de base e as nadadeiras da cauda, repentinamente
chegou à superfície, seu rosto a alguns centímetros de uma
parede de lama viscosa. Ele havia se sentido bem na lama
debaixo da água, com o rosto pressionado muito perto do
envoltório, mas subitamente se sentiu nervoso, como se
estes poucos centímetros extras de visibilidade fossem
apenas suficientes para lhe dar a sensação do quanto este
espaço era confinado. Sabia que precisava lutar muito agora,
para se concentrar inteiramente no que estava fazendo.
Girou devagar o corpo, tomando cuidado para não mexer no
envoltório da bomba, até ficar ao lado de Costas, olhando
para a mesma direção. Podia sentir o pedregulho
compactado do leito do rio debaixo dele, mostrando que
tinham chegado abaixo das camadas arqueológicas. Jack
dirigiu sua headlamp para cima. Encontravam-se dentro de
uma espécie de estrutura, uma câmara, com troncos não
lavrados de árvores revestindo o teto a cerca de dois metros
acima dele. Viu vigas maciças de carvalho escurecido e
amarração de tábuas de madeira ao redor das paredes. Olhou
para baixo, e então ele a viu, diretamente na frente de
Costas. Fechou os olhos, respirou profundamente, depois
olhou de novo.
Era um crânio humano, escurecido pelo tempo, deitado
sobre a parte de trás e olhando diretamente para cima, a
mandíbula ainda em posição. Ele podia ver as vértebras do
pescoço, as omoplatas, tudo assentado sobre um material
fibroso vermelho. Depois ele se deu conta. Era cabelo.
Cabelo vermelho.
Jack movimentou novamente seu feixe de luz para baixo,
para algo que tinha visto sobre os ossos do pescoço. Colocou
as mãos sobre uma tábua de madeira molhada e ergueu-se
ligeiramente. Jack respirou com dificuldade sem acreditar no
que via. Era ouro, resplandecente, um colar de ouro maciço.
Exatamente como aquele que eles tinham visto no dia
anterior, em outro corpo, em um local profundo debaixo de
Roma. Um torque. Depois Jack percebeu. Esta não era uma
cripta mortuária medieval. De repente não havia dúvida
quanto a ela. Eles tinham encontrado algo que as pessoas
tinham estado procurando havia centenas de anos, no
coração da City de Londres, em um pequeno local do solo
inalterado em um dos lugares mais revolvidos, escavados e
bombardeados do mundo.
Jack olhou novamente para o crânio. Inclinou-se sobre ele,
e olhou mais cuidadosamente, bem em cima das órbitas
oculares vazias. O acréscimo por justa-posição preto que
cobria o crânio não era bem preto. Era azul, azul-escuro. Ele
suspirou e percebeu. Isatis tintoria, murmurou. - Bem, eu
vou ser condenado ao inferno.
- Hein?
- Ísatis. Ísatis azul. Ela foi pintada com ísatis azul. - Ele se
voltou para Costas, sua apreensão subitamente esquecida. -
Acho que você pode ter acabado de descobrir para nós uma
rainha da Idade do Ferro.
Costas parecia estarrecido, preso ao solo, esparramado na
beirada da poça de água barrenta, olhando para o crânio
através de seu visor.
- Este é um novo momento Agamenom? - perguntou Jack.
- Aquela coisa não é um fantasma. Ela é real - sussurrou
Costas. - Depois da decomposição orgânica do corpo e tudo
o mais. Eu nunca mais vou dormir.
- Ora - disse Jack. - Isto é inacreditável. Mas não vou ficar
rodando por aqui mais do que o necessário, tendo por
companhia uma bomba enferrujada aquecendo lentamente.
- Rastejou para fora do buraco, e Costas se arrastou para fora
com dificuldade. Ambos se puseram em pé, gotejando
profusamente, com seus capacetes e equipamentos de
respiração ainda colocados, a lama escorregava suavemente
sobre seus macacões como tinta marrom. Jack aumentou a
largura do feixe de luz da headlamp e pegou uma tocha de
halogênio. Olharam para a cena diante deles cheios de
admiração.
Era uma visão de tirar o fôlego. Jack instantaneamente viu
imagens que lhe eram familiares, os tipos de artefatos, a
exposição dos bens da sepultura, mas nada do que havia sido
encontrado antes na Grã-Bretanha estava tão intacto como
se encontrava ali. Ela se parecia com uma das tumbas que
Jack tinha visitado de um antigo nobre da Cítia nas estepes
russas, envolta por tábuas de madeira maciça e
milagrosamente preservada no subsolo permanentemente
congelado; no entanto, esta se encontrava no coração de
Londres. De alguma maneira, a atmosfera saturada de água e
a densa lama que circundava a tumba tinha impedido que as
madeiras apodrecessem e que a tumba implodisse.
E essas condições não preservaram apenas o esqueleto. Jack
percebeu que ela tinha sido deitada em um esquife, uma
plataforma quadrada de madeira de cerca de três metros de
lado a lado, a um metro mais ou menos das extremidades da
câmara. Havia formas estranhas, formas curvas, na frente
dele, de cada lado das pernas do esqueleto. Jack reteve a
respiração quando percebeu o que era. - Isto é uma
carruagem funerária - ele exclamou. - Estas são as duas rodas
inclinadas em direção ao corpo. Podem-se perceber os raios
da roda, o aro de ferro e os cubos da roda.
- Dê uma olhada nisso. - Costas estava olhando atentamente
para a base do esquife, para as pernas do esqueleto, e depois
entre as rodas. - Há antigas marcas de cortes nos ossos,
marcas de golpes cortantes, um par de fraturas curadas.
Parece que ela participou de guerras. Esta era uma dama
forte. E ela está descansando em uma espécie de canoa.
Jack deslocou-se, escorregando na lama. Costas tinha razão.
O esqueleto estava deitado em uma canoa de madeira de um
tronco só. - Fantástico - ele disse. - Existem botes funerários
do período anglo-saxão avançado, navios funerários vikings,
mas eu nunca vi um como este da Idade do Ferro.
- Talvez esta seja a canoa com a qual eles costumavam levá-
la para subir o rio até o santuário, até o seu núcleo de trevas
- disse Costas. - Talvez eles a tenham colocado nisso e a
arrastado corrente acima na sua jornada final.
Jack se ergueu o mais que podia, e olhou direito, pela
primeira vez, para o torso do corpo. Era uma das coisas mais
incríveis que ele jamais vira, como uma imagem gerada por
computador de um perfeito sepultamento da Idade do Ferro.
Começou a se mover pouco a pouco ao longo da lateral do
esquife, depois escorregou e caiu sobre um joelho ao lado de
uma das rodas da carruagem.
- Atenção - disse Costas, alarmado. - O cubo da roda tem um
prego de metal saliente.
Jack olhou para a protrusão de ferro corroído, e sentiu seu
peito se comprimir ao perceber quão perto estivera de ser
espetado. Fechou os olhos, forçou-se a se concentrar. Olhou
novamente. Era um prego comprido e forte, perigoso, um
dos três que tinham se projetado do cubo da roda por cerca
de um metro, curvados como as lâminas da hélice de uma
aeronave. Esta não era uma carruagem comum. Jack ergueu-
se com cuidado e movimentou-se indo ficar ao lado de
Costas, que dera a volta ao redor de Jack e estava agachado
perto do torso. - Parece que esta dama estava se preparando
para lutar com os deuses - murmurou Costas. - E acho que
ela ia ganhar. - Ambos olharam com admiração para as peças
e ornamentos em cima do esqueleto. Ao redor deles havia
lanças pontudas moldadas em chapas finas de ferro, suas
hastes se romperam quando as lanças bateram nos degraus
de pedra. Espalhados por cima havia numerosos cones de
pinheiros, carbonizados nos locais em que foram queimados
como incenso. Paralela ao corpo, desde o pescoço até o
quadril esquerdo, havia uma grande espada de ferro, tendo
ao lado uma bainha decorada em bronze. A decoração
gravada na bainha combinava com a forma do fio incrustado
no cabo da espada, linhas de ouro que descreviam
movimento circular para cima em direção a uma grande
pedra preciosa verde engastada no botão do punho da
espada. Do outro lado encontrava-se um pedaço de madeira,
como uma varinha de feiticeiro. Mas a visão mais
extraordinária de todas estava colocada de lado a lado do
torso do esqueleto, um grande escudo de bronze com a
forma de um oito, com um ornamento central, em esmalte,
rodeado por formas curvilíneas girando e uma decoração de
ornamentos metálicos em relevo.
- O escudo de Battersea - disse Jack com voz rouca. - Ele é
virtualmente idêntico ao escudo de Battersea, encontrado no
rio Tâmisa no século XIX.
- Ele é feito com finas folhas de bronze - disse Costas,
olhando com atenção para a borda. - Não é muito prático
durante a batalha.
- Provavelmente ele era um escudo usado em cerimônias -
disse Jack - Sempre se pensou no escudo de Battersea como
sendo um objeto ritual, depositado no rio como uma
oferenda aos deuses, como aqueles crânios encontrados
apenas algumas centenas de metros daqui no rio Walbrook.
- A espada parece ser bem real. E também aquelas segadeiras
sobre as rodas da carruagem.
- Você não encontrou apenas a sepultura de uma rainha -
murmurou Jack - Você encontrou a sepultura de uma rainha
guerreira. - Olhou novamente e, de repente, elas brotaram
dele, imagens que não tinha registrado de início, mas que
agora pareciam unir todos os artefatos deixados e que se
encontravam à sua frente. Havia cavalos, cavalos por toda
parte, girando de uma parte a outra através dos padrões
curvilíneos no escudo. Correndo ao longo da bainha da
espada, gravados nas madeiras do esquife. Sua mente estava
acelerada, ousando acredita no inacreditável. Cavalos, o
símbolo da tribo dos icenos, a tribo da grande rainha
guerreira. Ele viu moedas espalhadas debaixo do escudo, e
inclinou-se para pegar uma. Sua excitação aumentou. Era
exatamente o que ele esperava encontrar. De um lado um
cavalo, abstrato, com uma crina flutuante, símbolos
misteriosos acima dele. Do outro lado uma cabeça,
dificilmente reconhecível como humana, com um cabelo
longo e desordenado. A imagem de uma pessoa que não
deixou retratos, no entanto aqui ele estava parado na frente
dela, uma rainha que tinha sido reverenciada como deusa,
cuja imagem ninguém ousou capturar. Jack recolocou a
moeda cuidadosamente, depois olhou de novo ao redor,
avaliando catalogando em sua mente, permitindo-se ver o
inesperado. - Os emalhetamentos nas tábuas mostra que esta
tumba foi feita depois que os romanos chegaram, por
carpinteiros que conheciam as técnicas romanas -
murmurou. - Mas não bi artefatos aqui dentro. Ela não teria
permitido. Aquelas ânforas devem ter estado fora da tumba,
oferendas feitas depois do sepultamento.
- Jack, você está errado. Parece que ela tinha uma obsessão
por gladiadores. - Costas tinha voltado para onde estavam os
pés dentro do esquife, e fez um gesto chamando-o. Jack se
aproximou escorregando e foi confrontado com outra visão
impressionante. Havia uma fileira de capacetes, cinco
elaborados capacetes dispostos em fileira logo abaixo do
nível do esquife, de frente para o esqueleto.
- Inacreditável - ele disse. - Mas estes não são capacetes de
gladiadores. São capacetes de legionários romanos, de nível
bastante elevado por sua aparência. Centuriões, talvez
comandantes de coortes. E eles estiveram em ação. -
Estendeu o braço e virou com cuidado o que estava mais
próximo, que tinha um amassado profundo de lado a lado do
topo. Era mais pesado do que esperava, e estava fixado à
madeira. Puxou com força e ele cedeu. Jack o deixou cair e
recuou chocado. Eles ainda estavam ali.
Costas também os viu, e gemeu. - Beam me up, Scotty.
Jack se enrijeceu e olhou mais de perto, ao longo da fileira
de capacetes. Cada um deles tinha um crânio humano,
olhando de soslaio, alguns deles esmagados e fragmentados.
Os crânios estavam brancos, haviam sido branqueados,
claramente eram de cabeças que tinham sido expostas e se
decompuseram antes de serem colocadas dentro da tumba. -
São troféus de batalha - murmurou Jack. - Eles foram
recolhidos no campo ou, mais provavelmente, são cabeças
de prisioneiros executados. - Sua mente estava novamente
acelerada. A última batalha da rainha guerreira. Ele se
lembrava dos relatos de Tácito e Dio Cássio. Troféus de
guerra vivos, trazidos com ela para sacrifício, no lugar mais
sagrado, enviados a ela em eterna submissão.
Em seguida, Jack as viu. Enormes formas disformes
emergindo da parede mais distante da tumba. Formas que
pareciam lutar e levantar-se do chão nas patas traseiras,
como os cavalos do Partenon de Atenas, só que estes não
eram esculpidos, e sim reais, com a pele escurecida e as
crinas ainda esticadas sobre os crânios, dentes expostos e
ameaçadores, presos para sempre nos espasmos da morte.
Era uma visão aterradora, muito mais que a fileira de crânios
romanos, e Jack começou a se sentir nervoso novamente,
com a sensação de que não pertencia a este local.
- Está na hora de partir - disse Costas baixinho.
Jack se desprendeu da imagem. - Nós não encontramos o
que estávamos procurando. Há algo aqui, sei disso. Dê-me
um momento. - Escorregou de volta em direção ao esquife,
e olhou novamente com atenção para a rainha morta e suas
armas. Costas pegou a sua bússola e apontou-a em direção ao
esquife. - Ele está alinhado exatamente na posição norte-sul
- disse. - Aponta diretamente para a arena do anfiteatro.
- Aquele anfiteatro foi construído mais tarde - murmurou
Jack. - Se isto é o que penso que é, ela foi sepultada pelo
menos uma década antes que começasse o trabalho de
construção do anfiteatro.
- Você viu o eixo das rodas? - perguntou Costas. - Está
colocado debaixo aos ombros dela. Com a vara da carruagem
alinhada na posição norte-sul debaixo do seu corpo, isto
forma uma cruz.
Jack resmungou, ouvindo apenas pela metade. - O eixo
geralmente era colocado debaixo dos pés. - Subitamente ele
ficou ofegante, e estendeu a mão para o escudo. - Eu sabia.
Isto estava saliente e bem diretamente na nossa cara. Foi
colocado direto sobre o ornamento do escudo.
- Quem fez isso?
- Alguém que esteve aqui antes de nós. - Jack começou a
estender a mão para o objeto, um cilindro de metal. Em
seguida parou e retirou a mão.
- Você deve ser o único arqueólogo que tem problema
para pegar artefato* dos sepulcros, Jack.
- Eu não poderia violar a sepultura de Boudica.
- Concordo com você nisso. Não gostaria que esta dama se
erguesse de seu leito de morte. E, se ela vier atrás de nós,
não teríamos nenhum lugar para fugir. - Costas fez uma
pausa. - Mas, se você está certo, este cilindro não fazia parte
dos artefatos originais da sepultura. Não acho que pegá-lo
significa violá-la. Estou querendo assumir o risco. - Estendeu
a mão e pegou o cilindro, depois o passou para Jack. - Tome.
O feitiço está quebrado.
Jack segurou o objeto, girando-o lentamente em suas mãos,
olhando para ele. Uma corrente dependurada de um rebite
de um lado. Podia perceber que o cilindro era feito de
lâminas de bronze, marteladas na junção para formar o tubo,
e que uma extremidade tinha sido dobrada sobre um disco
de bronze que formava a base. Sobre ela havia um disco de
esmalte vermelho, e movendo-se para cima e em torno do
cilindro havia ornamentos esculpidos de forma curvilínea.
Jack virou o cilindro e viu que o ornamento tinha a forma
de um lobo, um animal grande e abstrato que envolvia o
cilindro de forma que seu focinho quase tocava seu rabo. - É
um trabalho em metal feito na Grã-Bretanha, não há dúvida
quanto a isto. Existe um cilindro de bronze exatamente
como este na sepultura de um guerreiro em Yorkshire. E o
lobo é também um símbolo dos icenos, a tribo de Boudica.
- E a tampa? - perguntou Costas.
- Há uma grande corrosão, doença do bronze - replicou
Jack, olhando atentamente para a outra extremidade do
cilindro. - Mas você está certo. Ela é definitivamente uma
tampa, não foi dobrada como a base. Há algum tipo de
material resinoso ao redor da junção, mas ele está bastante
rachado. - Jack empurrou o dedo com muito cuidado contra
a crosta bastante desenvolvida de corrosão no topo, depois
retirou o dedo quando ela se rompeu. - Graças a Deus, os
responsáveis pela manutenção dos museus não me viram
fazer isto. - Ao redor da borda havia os restos de esmalte
vermelho de um disco semelhante ao da base. Mas aqui o
esmalte parecia ter sido grosseiramente quebrado e
substituído por uma decoração entalhada. A incisão era
angular, desconjuntada, não se assemelhava às linhas
harmoniosas do lobo na lateral do cilindro, e se parecia mais
com o grafite que viram rabiscado nas ânforas romanas
encontradas no navio naufragado, Jack olhava para aquilo.
De repente, ele gelou.
Era um nome.
- Bingo - disse Costas.
As letras eram largas, trêmulas, o nome se curvava na parte
de cima, a outra palavra estava embaixo, como uma inscrição
em uma moeda:

CLAVDIVS DEDIT

- Cláudio deu isto - disse Jack, subitamente em êxtase. - Nós
estamos certos. Cláudio de fato veio até aqui. Ele veio aqui,
onde estamos agora, e colocou e cilindro na tumba de
Boudica. - Jack segurou o cilindro com súbita reverência,
olhando para o nome e depois para a junção quebrada na
tampa, quase sem ousar pensar no que podia estar lá dentro.
- Como Cláudio chegou a possuir um cilindro de bronze da
Grã-Bretanha? - perguntou Costas.
- Talvez ele o tenha conseguido quando veio pela primeira
vez para a Grã-Bretanha durante a conquista - disse Jack. -
Talvez a própria Boudica o tenha dado a ele, e mais tarde ele
o usou para esconder seu tesouro, aquele que estamos
procurando. Este cilindro seria menos óbvio do que um
daqueles jarros de pedra egípcios.
- Ele teria se encaixado exatamente dentro de um daqueles
vasos, como o que encontramos em Roma - murmurou
Costas. - Talvez também haja um daqueles por aqui.
- Não se este cilindro estava inalterado - disse Jack.
- Você vai abri-lo?
Jack respirou profundamente. - Estas não são exatamente
condições controladas por laboratório.
- Já escutei isso antes.
Jack olhou de novo para a mistura de água e lama por que
tinham passado para entrar na tumba, ainda se
movimentando para frente e para trás e nitidamente
marrom sob a luz de sua tocha. - Estou preocupado com o
fato de que o lacre pode ter apodrecido. Se o levarmos de
volta passando por esta lama, podemos destruir o que está
dentro para sempre. E não quero arriscar voltar para
conseguir um recipiente impermeável. Quem sabe nunca
voltemos para cá. E o lugar inteiro pode ser pulverizado.
- A qualquer momento - disse Costas, olhando para a cauda
da bomba erguendo-se acima da água. - Muito bem, vamos
abri-lo.
Jack assentiu com a cabeça, e pôs a mão sobre a tampa.
Fechou os olhos, e silenciosamente murmurou umas
palavras para si mesmo. Tudo pelo qual eles estavam se
esforçando parecia subitamente depender deste momento.
Abriu os olhos, e girou a tampa. Ela saiu facilmente. Muito
facilmente. Ele inclinou o cilindro em direção ao feixe de
luz, e olhou dentro.
Estava vazio.

CAPÍTULO 16

Na manhã seguinte bem cedo, Jack se sentou na nave da
Catedral de São Paulo em Londres, debaixo da grande
abóbada do altar superior dirigido para o leste. A catedral
havia sido aberta ao público havia apenas alguns minutos
antes e ainda estava quase vazia, mas Jack tinha escolhido
uma fileira de assentos bem no meio da ala central da nave
onde havia menor probabilidade de serem ouvidos. Olhou
para o relógio. Havia combinado se encontrar com Costas às
nove horas e faltavam apenas cinco minutos, e Jeremy
voltaria de Oxford assim que pudesse. Jack e Costas tinham
passado a noite no apartamento da IMU na City de Londres,
um lugar onde Jack ficava com freqüência durante o
intervalo entre dois projetos, quando necessitava fazer
pesquisas em alguns museus ou bibliotecas de Londres.
Tinha ficado muito cansado para conversar, e muito
estarrecido para ficar desapontado. Somente agora estava
começando a ser penetrado pelo que acontecera. Reclinou-
se no assento, esticou-se e fechou os olhos. Ainda se sentia
esgotado pela exploração extraordinária do dia anterior, e o
seu café da manhã não tinha caído muito bem. Ele se sentia
estranhamente desanimado, sem saber se sua busca tinha ido
até o máximo que podia, se devia reavaliar o que tinham
descoberto, começar a participar com prazer dos achados
dos últimos dias pelo que eles eram e deixar de vê-los como
indícios para algo maior. Jack abriu os olhos e olhou para a
magnífica abóbada acima dele, muito parecida com a
abóbada da Catedral de São Pedro no Vaticano, com a
abóbada romana do Panteão, cerca de cento e cinqüenta
anos mais nova que esta. No entanto, aqui Jack sentia que
não estava olhando para uma continuidade, mas para um
esplendor único realizado por Sir Christopher Wren. A
abóbada semicircular acima dele havia sido colocada abaixo
da abóbada ovóide do exterior, era uma maneira de elevar a
catedral externamente, assegurando ao mesmo tempo que a
visão interior da abóbada fosse agradável aos olhos. Isto se
devia ao gênio de um homem, não a algum processo
inevitável da história. Jack estreitou os olhos. E nada era
exatamente aquilo que parecia.
- Bom dia, Jack. - Costas se aproximou ladeando os assentos
da ala central, e Jack olhou para ele um pouco preocupado.
Costas estava vestindo uma das roupas de pescadores da
Guernsey que Jack deixara no apartamento, um pouco
demasiado apertada para ele no corpo, mas dois tamanhos
maior no comprimento, com as mangas dobradas para
mostrar os músculos de seus braços. Ele parecia um pouco
pálido e estava vermelho ao redor do nariz, e seus olhos
estavam cheios de água. - Não pergunte - ele disse, largando-
se repentinamente sobre o assento ao lado de Jack e
parecendo infeliz, fungando e procurando por um lenço de
papel em seu bolso. - Usei todos os descongestionantes que
pude encontrar. Não sei como você consegue respirar
quando o ar está tão úmido. E frio. - Espirrou, fungou e
gemeu.
- Reuni todas as informações que obtivemos no local sobre a
bomba - disse Jack.
- Eles estão removendo as barreiras agora. A equipe para
retirar a bomba dirigiu-se direto para baixo do pavimento do
Guildhall, para retirá-la e levá-la embora de helicóptero no
meio da noite para provocar depois uma explosão
controlada. Foi realmente uma comoção. Eu me assegurei de
que eles escavassem partindo do ponto leste, de modo que
não acho que houve algum dano para a bomba.
- Acabei de falar com os meus amigos do serviço
arqueológico em Londres - disse Jack - Eles têm um
verdadeiro desafio em suas mãos. Precisam fazer uma
espécie de bolha protetora no local para manter as condições
atmosféricas na tumba, para impedi-la de deteriorar.
Puseram a melhor equipe de conservação em prontidão.
Provavelmente isso vai levar meses, mas deverá ser
fantástico, quando for revelado. Sugeri que deixassem a
tumba in situ, fizessem um museu no local. Poderia ser
completamente subterrâneo, com entrada pelo anfiteatro.
- Nós não queremos perturbar a rainha Boudica - fungou
Costas. - De modo algum.
- Eles deixaram você entrar durante a ação? - perguntou
Jack.
- Acontece que o oficial de comando da Unidade de
Mergulho é um antigo companheiro meu, um oficial do
Corpo Real de Engenheiros da Escola de Mergulho de
Defesa. Nós nos conhecemos quando fizemos juntos o curso
para Eliminação de Minas e de Engenhos Explosivos em
Devonport, dois anos atrás. Você se lembra? Eu o avisei de
que o segundo detonador estava muito corroído para
perfurá-lo com broca, que eles deveriam preenchê-lo para
neutralizá-lo. Mas ele não me permitiu ajudá-los.
Regulamentações de segurança e saúde, você as conhece. -
Costas fungou. - Este é o problema com este país. É super-
regulamentado.
- Você gostaria mais que estivéssemos baseados na Itália,
vamos dizer?
Os olhos de Costas se iluminaram. - Falando nisso, quando
vamos voltar para o navio naufragado de são Paulo? Não sei
você, mas eu estou saturado de andar no escuro e em túneis
úmidos. Um par de semanas no Mediterrâneo me conviria
muito bem. Pode até curar este resfriado.
- O Seaquest ainda está parado, e o avião a jato da Embraer
está de prontidão - replicou Jack. - Acabei de falar com
Hiebermeyer por telefone sobre o momento de soltar o
press release sobre os achados em Herculano. A não ser que
Jeremy encontre algo, eu não vejo para onde ir daqui
seguindo a seqüência lógica de Cláudio. O que encontramos
já constitui um fabuloso acréscimo para a história, as
extraordinárias descobertas que fizemos em Roma e aqui em
Londres, mas o paradeiro do manuscrito pode simplesmente
ter de permanecer como um dos grandes mistérios
insolúveis. - Jack ergueu a vista, depois olhou atentamente
para a abóbada de novo. - Não faz o meu gênero largar as
coisas, mas um beco sem saída é um beco sem saída.
Podemos ir liberar a matéria para publicação hoje à tarde.
Depois disso, todo o mecanismo de arqueologia pública
assume, e nós podemos voltar ao que fazemos melhor.
- Você quer dizer descobrir coisas. Como o gim com tônica
ao lado da piscina do meu tio na Grécia.
- Depois do trabalho no navio naufragado de são Paulo. E
nosso retorno ao mar Negro.
Costas resmungou, depois olhou ao redor. - Vejo que você
esteve estudando as imagens que Maria tirou da sala em
Herculano. - Apontou para o tecido encharcado na página
com pequenas imagens no laptop de Jack, que estava aberto
em seu colo.
Jack assentiu, depois olhou novamente para Costas com uma
expressão de expectativa.
- Conheço este olhar - disse Costas.
- Só estava procurando as fotos para o press release, depois
subitamente me lembrei - disse Jack. - Aquela página de
papiro que encontrei, colocada debaixo da mesa sob as
folhas em branco. Historiae Britanniorum Narciso Fecit. -
Jack clicou em uma pequena imagem, e uma página do
antigo texto apareceu na tela. - Graças a Deus Maria tirou
muitas fotos.
Costas assuou o nariz. - Eu sabia que você tinha encontrado
algo.
- Retirei aquela página de minha mente porque desconfiava
que ela fazia parte de um tratado sobre estratégia militar, o
tipo de coisa que Cláudio, um general de poltrona teria
apreciado, para mostrar que realmente conhecia seu assunto
e era merecedor de seu pai e seu irmão. Talvez algo sobre a
direção para a invasão, sobre seu planejamento com os
comandantes das legiões, tudo meticulosamente perfeito.
Mas então eu lembrei. Eu me vi novamente em Herculano,
naquela sala. Nas semanas que culminaram com a erupção
do Vesúvio, Plínio, o Velho, estava visitando Cláudio na
vila. Plínio era um militar, um historiador também, ele
próprio um velho veterano, mas tinha estado ali, concluído
aquilo, e o que realmente o interessava nos seus últimos
anos era a sua História natural, a coleta de quaisquer fatos e
trivialidades que pudesse colocar nela.
- Como aquela página sobre a Judéia, você quer dizer, suas
anotações adicionais - disse Costas.
- Precisamente. E o que realmente o estimulou acerca de
Cláudio teria sido a conexão com a Britannia. Não a
campanha militar, a invasão, mas qualquer coisa que Cláudio
pudesse lhe contar sobre a história natural, a geografia, o
povo, a história, qualquer coisa incomum, extravagante.
Posso vê-lo sentado com Cláudio naquela sala, questionando
constantemente, mantendo-o afastado do triunfo, extraindo
qualquer trivialidade que Cláudio pudesse ter encontrado,
com o velho Narciso sentado à mesa transcrevendo
pacientemente o que Cláudio dizia. Afinal, Cláudio tinha
visto o local com seus próprios olhos, tinha visitado a Grã-
Bretanha não só uma vez, em razão de seu triunfo, mas duas,
quando ele veio em segredo visitar a tumba já como um
homem velho, pouco antes da erupção. A Grã-Bretanha foi a
sua grande realização, e ele teria gostado de contar a Plínio
tudo sobre ela, desempenhando o papel de um velho general
falando sobre o seu passado, de sua conquista para a glória de
Roma e a honra de sua família.
- Continue. - Costas espirrou violentamente.
- Eu agora li a página, e claramente ela faz parte de um
preâmbulo, um capítulo introdutório, montando o cenário. -
Jack apontou para a fina escrita a mão na tela. - O latim fácil
e claramente escrito. Devemos agradecer a Narciso por isso.
O texto é sobre religião e rituais, exatamente o tipo de coisa
que Plínio teria gostado.
- E exatamente o que necessitamos - Costas fungou. - Toda
aquela discussão ontem sobre a Idade do Ferro, sobre
Boudica. Ainda permanecem alguns belos buracos negros.
Jack assentiu. - A primeira parte realmente me surpreendeu
muito. Ela é o final da descrição de um grande círculo de
pedra que Cláudio visitou. 'Eu vi estas coisas com os meus
próprios olhos', ele diz.
- Será que ele estava pensando em Stonehenge?
- Ele nos conta que as pedras foram colocadas por pessoas da
Grã-Bretanha para honrar a raça de gigantes que veio do
leste, escapando de uma grande inundação - disse Jack. - As
pedras representam os reis-sacerdotes e as rainhas-
sacerdotisas, que mais tarde governaram esta ilha.
- O êxodo do mar Morto - murmurou Costas. - As
sacerdotisas da Atlântida. Isto mostra que Cláudio não estava
sendo informado com um monte de mentiras.
- "Estes gigantes trouxeram consigo uma Deusa Mãe, que
mais tarde foi venerada na Grã-Bretanha" - traduziu Jack. -
"Os descendentes desses reis-sacerdotes e rainhas-
sacerdotisas foram os druidas." - Ele voltou para o original
em latim: - "Praesidium posthac inpositum victis excisisque
luci saevis superstitionibus sacri: nam cruore captive adolere
aras et hominum fibris consulere deos faz haberant, que
consideram como seu dever sagrado cobrir seus altares com
o sangue de suas vítimas. Eu mesmo os observei dentro do
círculo de pedra, o lugar que eles chamam Druidaeque
Circum, o círculo dos druidas."
- Nas nossas últimas expedições, nós nos deparamos com
toltecas, cartagineses e agora antigos bretões - disse Costas. -
Sacrifícios humanos por toda parte.
- É fantástico - disse Jack. - Os primeiros que lidaram com
objetos antigos e raros pensavam que Stonhenge tinha sido
um círculo druida, e tinham razão, afinal. Mas este é o
argumento decisivo. Ouça isto. "Escolheram as altas
sacerdotisas entre as famílias nobres dos bretões. Eu mesmo
conheci aquela que foi escolhida, a menina Andraste, que
também chamava a si mesma de Boudica, que foi trazida até
mim como uma escrava, mas que a Sibila ordenou-me que
lhe concedesse a liberdade. Porque a Sibila de Cumas diz
que a alta sacerdotisa destes druidas é a décima terceira
dentre elas, o oráculo de todas as tribos de Britannia."
- Pare bem aqui - disse Costas.
- Final da página. É isto.
- Você está dizendo que Boudica, a rainha guerreira, aquela
que acabamos de encontrar, era uma alta sacerdotisa? Que
Boudica realmente era uma druidesa? A arquidruida?
- Eu não estou dizendo isso, é Cláudio quem diz.
- E a alta sacerdotisa dos druidas era uma das sibilas?
- É o que ele diz. E Cláudio devia saber. Segundo todos os
relatos, ele era um freqüente visitante da gruta dela em
Cumas.
- Isto porque a Sibila era sua fornecedora de drogas.
- Acho que há alguma coisa extraordinária acontecendo
aqui, alguma coisa que as pessoas intuíram, mas que nunca
foram capazes de provar - disse Jack, colocando o
computador no assento ao seu lado e erguendo o olhar para
o altar. - Vamos retroceder por um momento. Cláudio
recebe um documento de um homem que morava na
Galiléia, um nazareno.
- Nós sabemos de quem estamos falando, Jack.
- Sabemos? Havia grande quantidade de pretensos messias
vagando ao redor do mar da Galiléia naquela época. João
Batista, para começar. Não vamos saltar para conclusões.
- Ora, Jack Você está representado o advogado do Diabo.
- Vamos deixar o Diabo fora disso. Já tivemos que lutar
bastante contra ele dentro da própria igreja. - Jack fez uma
pausa. - Então, já um homem velho, Cláudio faz uma viagem
secreta para a Grã-Bretanha, para Londres. Ele levava o
manuscrito consigo, dentro de um cilindro de metal, um
que lhe fora dado em uma visita anterior por uma princesa
dos icenos. - Jack passou a mão de leve em uma
protuberância em sua mochila. Costas olhou para a
protuberância, depois para Jack.
- Jack, roubar cilindros está se tornando um hábito.
- É apenas uma precaução. Para o caso de a bomba estourar.
Devemos ter alguma evidência de que realmente o vimos.
- Não precisa explicar para mim, Jack.
- E, como todos os bons escondedores, ele deixa um indício.
Ou melhor, uma série de indícios, alguns deles por
intermédio de seu amigo Plínio.
- Acho que Cláudio estava se divertindo conosco - disse
Costas, fungando.
- Cláudio é viciado em ler as folhas, fez isto durante toda a
sua vida, basta ver todas as visitas que fez para a Sibila. Ela o
mantinha bem envolvido sob seus dedos enrugados, é claro.
Ele se torna como um entusiasta por palavras cruzadas, um
criptologista. E isto parece fazer parte da psicologia de
esconder um tesouro - disse Jack. - Se tiver que esconder
algo, deve escondê-lo tão secreta e seguramente quanto
possível, mas você deve sentir que em algum lugar ao longo
do caminho, se algo acontecer a você, alguém mais possa
encontrá-lo. Uma espécie de maneira de assegurar sua
imortalidade, até mesmo dois mil anos depois.
- Então ele encontra a sepultura de Boudica, e aqui estamos -
disse Costas. - Sempre esconda as coisas nos lugares mais
improváveis. - Espirrou. - A palavra do messias enfiada nas
mãos mortas de uma rainha pagã.
- Este é um fio da nossa história - disse Jack. - Cláudio, com
suas motivações, foi quem o desenrolou. Mas o segundo fio
tem me fascinado. Diz respeito a uma mulher.
- Katya, Maria, essa Elizabeth? Cuidado, Jack. Esta é uma
coisa que você não parece ser capaz de controlar.
- Estou me referindo a mulheres no passado.
- A deusa mãe? - perguntou Costas.
- Se o sacerdócio sobreviveu desde a época neolítica, então
temos todo o direito de pensar que o culto da deusa mãe
também sobreviveu - disse Jack. - Ela se encontra lá dentro
do panteão greco-romano, Magna Mater, a Grande Mãe,
Vesta, cujo templo encontramos em Roma, e entre os
deuses celtas também. Mas não estou pensando apenas em
deusas mulheres. Estou pensando nos praticantes terrestres
de religião, os padres, os oráculos.
- As sibilas?
- Alguma coisa está começando a se encaixar, algo quase
demasiado fantástico para acreditar - murmurou Jack. - Ela
tem estado olhando para nós durante séculos, a profecia da
Sibila em Virgílio, o Dies Irae. E agora encontramos o
elemento suplementar que repentinamente torna tudo
plausível, que inclina a balança para a realidade.
- Continue.
- Trata-se do início do cristianismo. - Jack subitamente
experimentou um aumento de excitação quando percebeu
para onde seus pensamentos o estavam levando. - Sobre as
mulheres no cristianismo primitivo.
- A Virgem Maria?
- O culto da Virgem Maria provavelmente incorporava
crenças pagãs em uma deusa mãe - disse Jack. - Mas estou
pensando nos primeiros crentes, os primeiros seguidores de
Jesus, quem eles eram. - Remexeu na mochila, e tirou um
livro de capa dura vermelha. - Você lembra que lhe contei
como era ilusória a evidência escrita para o cristianismo
primitivo, como virtualmente nada sobrevive além dos
Evangelhos? Bem, uma das raras exceções é o nosso velho
amigo Plínio. Não Plínio, o Velho, mas seu sobrinho, Plínio,
o Moço.
- Aquele que escreveu sobre a erupção do Vesúvio. E sobre
as vestais virgens.
- O relato do Vesúvio se encontrava em uma carta para o
historiador Tácito, escrita cerca de vinte e cinco anos depois
do evento. Bem, aqui está ele de novo, em outra carta escrita
pouco antes de morrer em 113 d.C. Naquela época, ele era o
governador romano de Ponto e Bitínia, a área da Turquia ao
lado do mar Negro, e está escrevendo para o imperador
Trajano sobre as atividades dos cristãos em sua província.
Plínio não era exatamente um aficionado do cristianismo,
mas na época ele estava seguindo a linha oficial. O que havia
começado na época de Cláudio como um culto obscuro,
uma outra religião misteriosa do leste, cinqüenta anos mais
tarde se tornara uma verdadeira preocupação para os
imperadores. Diferente de outros cultos orientais, diferente
da adoração de Isis ou de Mitra, os primeiros cristãos
desenvolveram um lado político. Romanos de visão
avançada podiam ver a Igreja se tornar um foco de discórdia,
especialmente quando o cristianismo atraía escravos, a classe
social mais baixa nas sociedades romanas. Os romanos
estavam sempre aterrorizados com a possibilidade de uma
insurreição de escravos, desde a época de Espártaco. Eles
também ficavam desnorteados com o fanatismo dos cristãos,
a disposição para morrer por suas crenças. Isto não era visto
em nenhum dos outros cultos. E havia uma outra coisa que
os assustava.
- Mulheres - disse Costas, depois espirrou. - Esses romanos
eram todos homens.
Jack concordou com a cabeça, e abriu o livro. - Ouça isto.
Uma carta de Plínio para o imperador Trajano. Plínio
procurando conselho sobre como perseguir os cristãos,
como ele nunca fez antes. Chama o cristianismo de culto
degenerado, que atingia graus extravagantes. Ele executou
cristãos que não se arrependiam, embora poupasse
generosamente aqueles que faziam oferendas de vinho e
incenso para a estátua de Trajano, o deus vivo. Mas eis a
atitude predominante. A fim de extrair a verdade sobre suas
atividades políticas, ele ordena a tortura de duabus ancillis,
quae ministrae dicebantur, escravas, que eles chamam de
diaconisas.
- Sacerdotisas - disse Costas.
- Era isso que realmente atemorizava os romanos - disse
Jack. - Era isso que os amedrontava acerca dos bretões,
igualmente, acerca de Boudica. Ela os fascinava, os excitava,
mas também os aterrorizava. As mulheres eram o poder que
havia por detrás das cenas em Roma, mulheres como Lívia,
a mulher de Augusto, ou as intrigantes esposas de Cláudio,
mas era um sistema dominado pelos homens. O cursus
honorum, o rito de passagem através de cargos públicos e
militares seguidos por romanos de classes superiores como
Plínio e seu tio, jamais teria admitido uma mulher.
Exatamente como a selvagem e bárbara rainha guerreira, a
idéia desse novo culto com sacerdotisas teria sido
horripilante, pior ainda se tivesse sacerdotisas escravas.
- Mas eu achava que a Igreja cristã era dominada por
homens.
- Esta é a coisa fascinante que há na carta de Plínio. Aquele
pequeno fragmento de informação sobre diaconisas. A Igreja
não começou dominada por homens. Em algum lugar no
meio do caminho, talvez na época de Plínio, seus líderes
mais politicamente dispostos devem ter percebido que
nunca derrotariam Roma frontalmente, que estavam em
uma posição em que tinham boa chance de ser extintos
completamente, da maneira como as coisas estavam
andando. Em vez disso, o sistema poderia ser conquistado de
dentro, caso se convertessem homens que pudessem
perceber como a Igreja se ajustava às suas ambições pessoais,
suas carreiras políticas. Em última análise, era preciso
conquistar o próprio imperador, como aconteceu duzentos
anos depois de Plínio com Constantino, o Grande. Trata-se
sempre de homens. Mas, no início do cristianismo, antes
que a Igreja se desenvolvesse como força política, o caso
não era esse. A mensagem de Jesus arrebatava igualmente
homens e mulheres.
- Fale-me sobre a Sibila novamente, Jack. Ainda não
percebo a ligação.
- Certo. - Jack fechou o livro, ergueu os olhos para a
abóbada, depois estreitou os olhos. - Eis uma teoria. Uma
especulação, uns poucos fatos.
- Solte tudo. - Costas espirrou violentamente.
- No final do primeiro século d.C., no início do Império
Romano, o poder da Sibila estava diminuindo - disse Jack. -
Para a Sibila em Cumas, os romanos que chegaram a ocupar
os antigos assentamentos gregos na baía de Nápoles eram
uma moeda de duas faces. Por um lado eles a mantinham
ocupada. Os romanos se dirigiam aos Campi Flegrei para
procurar curas, profecias e ficavam boquiabertos com o fogo
e o espetáculo da entrada do mundo subterrâneo. Por outro
lado, para muitos romanos, a música da Sibila tinha se
tornado artificial, um papel de parede, uma habilidade
inventiva, um embelezamento grego como aquelas estátuas
na Vila dos Papiros ou aqueles filósofos impostores que eram
sustentados para entreter os convidados depois do jantar. E,
como agora suspeitamos, a Sibila começou a depender mais
de distribuição de narcóticos para se sustentar do que de
emitir profecias divinas que as pessoas assumissem
seriamente.
- Mas certamente o poeta Virgílio a levava a sério - disse
Costas. - Veja a profecia em seu poema, o advento da Idade
do Ouro.
- É difícil saber se ele a levava a sério ou se simplesmente
usava o imaginário para enfeitar sua poesia, usando a forma
de expressão da Sibila - disse Jack. - Mas acredito que a Sibila
via nele um homem cujas palavras lhe sobreviveriam, um
homem predestinado a uma realização suprema, assim como
ela viu o mesmo em Cláudio uma geração mais tarde. Ela
deu a Virgílio o que ela queria que sobrevivesse, o que ela
queria ver imortalizado em sua escrita. As sibilas eram
manipuladoras astutas. Como todos os místicos de sucesso,
como aqueles que reivindicam possuir um sexto sentido ou
algum insight especial, ela sempre teria tentado se manter
um passo à frente de seu cliente, saber mais sobre eles do
que poderia parecer plausível. Não tenho dúvida de que as
sibilas mantinham uma extensa rede de espiões e
informantes que as mantinham a par de tudo que estava
acontecendo. Lembre-se da gruta que encontramos debaixo
do Palatino, bem no centro das coisas. Se é verdadeira
aquela extraordinária afirmação de Cláudio naquela página de
seu livro sobre as sacerdotisas na Grã-Bretanha, então,
talvez, as sibilas em Cumas também fossem escolhidas
dentro das famílias mais abastadas, assim como as vestais,
que podiam ser escolhidas até mesmo dentro da família
imperial. Talvez a gruta em Roma fosse o lugar onde elas
eram criadas. E a educação de uma sibila provavelmente se
referia a todas as maneiras de pedir com insistência
informações pessoais e particulares das pessoas, sem que elas
percebessem.
- O que é especialmente fácil, se o seu cliente está drogado -
disse Costas.
- Provavelmente foi assim que Cláudio revelou seu segredo
para ela - disse Jack.
- Ainda não entendi a conexão com o cristianismo.
- É nisso que a coisa fica realmente engraçada - disse Jack. -
No período em que Virgílio visitou Cumas, na época do
primeiro imperador, Augusto, a Sibila já sabia que seus dias
estavam contados. Roma tinha conseguido governar o
mundo, e elas viam o panteão de deuses romanos e de
crenças se estabilizando ao redor deles como os templos e
palácios da própria Roma, construídos em pedra para durar
mil anos. Mas também tinham em mira o leste, o leste além
da Grécia, e percebiam novas forças prestes a tragar o
mundo romano, forças mantidas latentes enquanto Roma
lutava dentro de si mesma, e lutava para conquistar as
antigas terras outrora governadas por Alexandre, o Grande.
As sibilas previram o culto oriental do governante divino
chegando a Roma, o imperador se tornando um deus vivo. E
viram algo mais. Viram os escravos e proscritos que se
escondiam nos Campi Flegrei, os nativos do leste que
vinham em bandos para a baía de Nápoles atraídos pela paz
estabelecida por Augusto, assim como Plínio, o Velho, devia
ver o mesmo em meio a seus marinheiros no Misenum.
Novos movimentos religiosos vindos do leste, novos
profetas, um messias. Um mundo onde as sibilas não seriam
mais capazes de manter sua influência, onde as pessoas não
desejariam mais ser escravizadas por oráculos e sacerdotes
para conhecer a palavra de Deus.
- A chegada da Idade do Ouro - murmurou Costas.
- Já na época de Virgílio, a Sibila percebera isto. Na época de
Cláudio, ela já sabia. O culto de Jesus e seu ministério havia
chegado.
- E ela ouviu o estrondo distante dentro do subterrâneo -
disse Costas. -Literalmente.
- Aconteceu um enorme terremoto na baía de Nápoles em
62 d.C. - disse Jack. - Você ainda pode ver as construções
sendo consertadas em Pompéia para voltar a ser como elas
eram dezessete anos mais tarde, quando houve a erupção do
Vesúvio. E, sentada em sua gruta nos Campi Flegrei, a Sibila
deve ter ouvido o que se passava no subterrâneo mais do
que uma vez, deve ter adivinhado que alguma coisa
catastrófica estava para acontecer, talvez até tenha feito a
conexão com o Vesúvio. Estamos falando de observação
empírica aqui. E é perfeitamente concebível que a memória
de catástrofes vulcânicas do passado fizessem parte do antigo
saber transmitido para as sibilas, a erupção do Thera no Egeu
durante a Idade do Bronze, erupções anteriores no nordeste
no início da civilização. Mas, talvez ela acreditasse
verdadeiramente na existência de algum poder divino por
detrás de suas afirmações, via sinais, augúrios, de que sua era
havia acabado. Com a erupção do Vesúvio, seu deus Apolo
teria desaparecido, extinguido para sempre.
- Era o momento para uma rápida saída - murmurou Costas.
- Você pode imaginar isso - disse Jack - Um espetáculo
flamejante nos Campi Flegrei, com o Vesúvio em erupção e
as nuvens negras surgindo em grande quantidade. Como
uma cena do inferno de Dante, dirigida pela Sibila.
- A festa no fim do mundo - disse Costas fungando. -
Gostaria de saber se Cláudio foi convidado.
- Provavelmente ele era a estrela da festa - disse Jack. - Teria
na época oitenta e nove anos e estava pronto para a sua
viagem para o subterrâneo, embora talvez não contasse com
o bilhete só de ida naquele dia. Evidentemente, ele ainda
estava trabalhando muito na sua história sobre a Grã-
Bretanha. Talvez esta fosse a última gargalhada da Sibila, seu
ato final de domínio sobre ele, sobre um homem que era
adorado como um deus. Mas a festa só começou depois que
ela soube que ele tinha feito a vontade dela.
- Você quer dizer, depois que ele trouxe seu precioso
segredo para ficar com Boudica.
- Este é o elemento final, a grande mudança repentina -
disse Jack. - No tempo de Cláudio, o Imperador, a Sibila teria
visto a profecia que fizera para Virgílio como verdadeira. O
nascimento de um menino, a iminência da Idade do Ouro.
Ela devia ter visto os cristãos nos Campi Flegrei. Devia ter
ouvido falar de Jesus e de Maria Madalena. Devia ter sabido
que os cristãos eram constituídos de homens e de mulheres.
Devia ter visto que não havia sacerdotes.
- Estamos falando de mulheres aqui, não estamos, Jack? Era
para isso que você estava se encaminhando. O poder das
moças.
- O poder das moças. - Jack sorriu. - Eu sabia que você
entendera. Nada de deusas mães, mas mulheres reais. Foi
isso que a Sibila viu. Em Roma, o poder da mulher na
religião estava diminuindo. As vestais virgens ficavam
virtualmente aprisionadas dentro das paredes do palácio; era
quase uma fantasia despótica de submissão feminina. O culto
imperial, o culto do imperador, era dominado pelos homens,
com um sacerdote masculino exclusivamente. Para as sibilas,
seu próprio sacerdócio, sua própria vocação, não era
realmente para Apolo ou para os primeiros deuses que elas
podem ter servido. Era para o matriarcado, para a
continuação da linhagem feminina que remontava à Idade
da Pedra, para a época em que as mulheres governavam a
família e o clã. No cristianismo, a Sibila viu uma esperança
para o futuro, para a continuação do matriarcado.
- Por que uma atenção especial foi dada para a Grã-Bretanha?
- perguntou Costas.
- Porque é sempre na periferia que acontecem as maiores
mudanças - disse Jack. - Em Roma, no centro do império, a
civilização tinha se tornado endurecida, corrupta,
decadente. O cristianismo tinha vindo da periferia, do limite
oriental do império, e ele se situava na periferia em direção
ao noroeste, tão afastado que muitos perceberam que havia
uma grande esperança para seu sucesso. A Grã-Bretanha
devia ter parecido quase como o Novo Mundo. Os bretões
eram ferozmente independentes, truculentos, com uma
religião misteriosa que nunca podia ser completamente
compreendida e manipulada pelos romanos, sobre os quais
os deuses romanos nunca poderiam verdadeiramente ter
influência. As tribos da Grã-Bretanha tinham sido
governadas por grandes rainhas guerreiras, por Boudica e as
que vieram antes dela. E como sabemos por intermédio de
Cláudio, seus próprios sacerdotes, os druidas, eram
controlados por uma alta sacerdotisa. Se os druidas eram
dominados por mulheres, então eram mulheres que reuniam
as tribos guerreiras do mundo celta, assim como vinham
fazendo havia milhares de anos.
- Você está tentando me dizer que Boudica era cristã?
- Ela certamente sabia a respeito do cristianismo. O próprio
Cláudio pode ter lhe falado a respeito, quando ela foi trazida
diante dele ainda adolescente, em sua primeira visita à Grã-
Bretanha durante a invasão. Algo acerca dela, sobre o que
ele sentiu e viu na Grã-Bretanha, pode ter influenciado
Cláudio e o impelido a lhe contar sua história, sua visita à
Judéia e o encontro com o nazareno. A lembrança do
próprio imperador romano trazendo o cristianismo para a
Grã-Bretanha pode ter se estendido, se tornado parte do
folclore dos primeiros cristão na Grã-Bretanha. E Cláudio
pode ter sabido sobre a conexão da Sibila com os druidas,
posto que ele já estava sob a influência da Sibila em Cumas.
A Sibila pode ter manipulado, em primeiro lugar, sua decisão
de invadir o local, talvez fosse uma maneira de reunir mais
estreitamente a Grã-Bretanha dentro de seu mundo, numa
época em que podia ainda ter existido alguma esperança de
que o poder das sibilas continuasse. Ela podia ter lhe deixado
uma mensagem nas folhas.
- É espantoso o que as pessoas são capazes de fazer por seus
fornecedores de drogas - murmurou Costas.
- Nos anos que se seguiram àquela visita, Boudica deve ter
conhecido mais a respeito do cristianismo - continuou Jack.
- Como as filhas e os filhos de muitos príncipes vencidos, ela
deve ter sido criada da maneira romana, aprendido latim e
talvez viajado para Roma, quem sabe até mesmo para a baía
de Nápoles e para a gruta em Cumas. Em Londres, como em
Misenum, ela deve ter encontrado marinheiros e soldados
que traziam idéias de leste, o culto à Mitra, a adoração de
Isis, o cristianismo. Depois, quando ela foi introduzida no
sacerdócio, preparada para o seu papel de alta sacerdotisa,
como a Sibila da Grã-Bretanha, ela se tornou participante da
rede secreta de conhecimento que ligava todas as outras
sibilas de lado a lado do mundo romano, as treze. E, em
seguida, ela pode ter começado a ver a mesma coisa que a
Sibila em Cumas via no cristianismo, algo que a atraiu para
mais perto ainda depois que ela se rebelou contra os
romanos. A religião que também parecera estar em
desacordo com os romanos, aqueles romanos que tinham
abusado dela e violentado suas irmãs, era a religião de
desafio. E as idéias que ouviu, do céu sobre a Terra, pode ter
alcançado facilmente os bretões, pessoas cujas crenças
estavam sintonizadas com o mundo ao redor deles, com o
mundo natural, e não fossilizadas em templos e sacerdotes.
Talvez não tenha mostrado nenhum sinal exterior disso, mas
ela pode ter decidido que aquelas idéias podiam funcionar
para ela, para a sobrevivência do matriarcado.
- Um cristianismo antes da Igreja Romana - murmurou
Costas. - O que era mesmo que você e Jeremy estavam me
contando no anfiteatro? Sobre os seguidores de Pelágio.
- Esta é a explicação - disse Jack. - E acredito que essa é a
razão por que a Sibila de Cumas fez Cláudio trazer o seu
precioso documento para cá. Para proporcionar um presente
secreto para os primeiros cristãos na Grã-Bretanha, que
pudesse fortalecê-los contra aquilo que ela via acontecer
diante de seus olhos nos Campi Flegrei, nos anos que se
seguiram à chegada de são Paulo.
- Você quer dizer os primórdios da Igreja, a Igreja
organizada - disse Costas, assoprando o nariz.
- Havia alguma coisa no documento de Cláudio, algo que só
podemos adivinhar, que deu esperança para a Sibila. Algo
que ele deve ter dito quando estava letárgico diante de sua
gruta. Alguma coisa que a fez perceber que aquilo que ele
possuía era extraordinariamente precioso e que precisava ser
escondido secretamente e sem demora em algum lugar onde
pudesse sobreviver e favorecer sua causa. E algo que ela
também sabia era que algumas pessoas que viviam ao redor
de Cláudio fariam de tudo para colocar as mãos nesse
documento, até mesmo destruí-lo.
- Homens. - Costas espirrou e assoprou o nariz novamente. -
Você está falando sobre homens. Não sobre aquelas
mulheres que Plínio viu, aquelas diaconisas, mas homens,
sacerdotes homens. Os primeiros sacerdotes do culto de
Jesus. E isto assustou-a. Ela viu o cristianismo seguir o
mesmo caminho que todos os outros cultos em Roma.
- Você percebeu o que aconteceu.
- Então, ela ameaçou Cláudio de retirar-lhe as drogas a
menos que ele obedecesse a sua ordem.
Jack sorriu. - Este podia ter sido o resultado final, mas
duvido que ele tenha se entregado tão simplesmente. Ela
sabia exatamente por que ele continuava voltando, por
maior quantidade de droga, que era o que mitigava a sua dor,
mas o próprio Cláudio podia não ter estado tão seguro. Tudo
o que ele sabia era que precisava obedecer a sua ordem, e
que cada vez que ele ficava parado na entrada daquela gruta
enfumaçada ele se sentia bem de novo. Provavelmente ela
lhe ofereceu uma retribuição, algo que ela sabia que faria
com que ele retornasse para sua gruta, para o local da
entrada para o mundo subterrâneo. Talvez como Enéias, na
história de Virgílio, ela ofereceu levá-lo para baixo, para ver
novamente seu pai e seu irmão. Isto era o que ele mais
ansiava. Como qualquer bom adivinho, ela conhecia a
psicologia do seu cliente. Tinha ouvido o que ele dissera
durante anos quando ele aparecia diante de sua gruta,
conhecia detalhes íntimos que ele próprio havia esquecido,
o suficiente para convencê-lo de que ela tinha uma espécie
de sexto sentido.
- E ela sabia que ele gostava de um bom mistério.
- Ela lhe deu uma profecia. Uma mensagem escrita nas
folhas. Cláudio a pegou, apreciou o desafio. A mensagem foi
aquela que ele encontrou em Roma, o Dies Irae. Uma
profecia de destruição e de esperança. Sabia quem era
Andraste, e também sabia onde encontrar a sua tumba. A
Sibila sabia que ele sabia. Escreveu a profecia, lacrou-a
naquele cilindro de pedra, aquele que deu para Plínio
guardar em Roma. Tudo o que Cláudio tinha que fazer era
cumprir a profecia, levar o manuscrito e colocá-lo na tumba
junto com Andraste, e ele conseguiria aquilo que implorara
para a Sibila, sua visita ao mundo subterrâneo.
- Bela diversão - murmurou Costas.
- Quando a profecia se realizou, naqueles momentos finais
de inferno antes do instante da destruição, ela pode ter
parecido correta. Ele pode ter fechado os olhos, e visto
apenas aquelas estátuas que encontramos em sua sala,
aquelas imagens de seu pai e de seu irmão que devem ter
sido ficado marcadas em sua mente.
- Jack, eu acho que você encontrou uma outra alma gêmea -
disse Costas. - Sai Harald Hardrada, rei dos vikings e entra
Cláudio, o imperador de Roma.
- Eu me sinto exatamente como me senti naquela pequena
ilha ao norte de Newfoundland - suspirou Jack, fechando o
livro. - Harald nos levou a uma aventura extraordinária em
busca de seu tesouro, mais distante do que jamais
poderíamos ousar imaginar. Eu me sinto da mesma maneira
agora, mas sinto que Cláudio nos deixou, ele nos levou até
onde pôde. Sinto que devo a ele encontrar os indícios, ir ao
local que ele quer que eu vá. Mas não consigo ver um passo
adiante.
- Falando em almas gêmeas, aqui está uma das minhas - disse
Costas, fungando e gesticulando, com os olhos
lacrimejantes, para a figura andando ao longo dos assentos
em direção a eles. - E talvez ele tenha conseguido o que
precisamos.

CAPÍTULO 17

A mulher tropeçou quando eles a arrastaram para fora do
carro e a empurraram sobre a superfície rochosa irregular.
Ela estava com os olhos vendados, mas sabia onde se
encontravam. O cheiro a tinha atingido assim que eles
abriram a porta do carro, a rajada acre do enxofre que fazia
queimar a ponta de sua língua. Ela podia sentir a abertura do
espaço à frente, a quente corrente ascendente da fornalha
nas profundezas da terra. Ela conhecia o motivo. Eles ou
fariam aqui ou a levariam para baixo. Ela estivera neste lugar
muitas vezes antes, quando criança, quando eles haviam
tentado fortalecê-la, fazendo com que descobrisse o terror, a
súplica, a incontinência, algumas vezes a serena compostura,
a aceitação das velhas maneiras como elas sempre tinham
sido, a futilidade da resistência.
Uma mão guiou-a para a esquerda, e continuou a empurrá-
la, para descer um caminho rochoso. Então seria embaixo.
Eles não estavam se arriscando. Com um puxão fizeram-na
parar, e brutalmente desataram sua venda. Ela pestanejou
com força, e olhou dentro da escuridão. Sentia a magnitude
do Vesúvio sobre a baía atrás dela, mas sabia que, se se
voltasse para um último olhar ela seria espancada e a venda
posta de novo. Sabia que a tinham removido somente para
facilitar a descida deles pelo caminho rochoso até o chão da
cratera, mas esperava que a deixassem sem a venda até o
final. Este era o seu único medo, o de que fosse
experimentar o momento final na escuridão, incapaz de
distinguir entre cegueira e morte.
Ela mantinha os olhos à frente, só olhando para baixo
quando tropeçava, suas mãos amarradas atrás. Alcançaram a
parte mais baixa. Restava um lance de degraus atrás, como
defesa. Esta era a maneira usual de fazer as coisas. Outrora
isto tinha sido dela, quando eles haviam tentado assimilá-la
mais profundamente dentro da família, antes que tivessem
encontrado uma outra forma de fazê-la servi-los. Ela se
lembrava da entrevista, do obscuro homem de Roma, o
homem que ela nunca mais viu e com quem nunca mais
falou novamente. Depois disso, houve algumas chamadas
telefônicas ocasionais, solicitações, instruções, ameaças que
ela sabia serem reais e depois a exigência para que aceitasse o
trabalho em Nápoles. Nada ocorreu durante vários anos e
em seguida veio o terremoto, logo depois os pesadelos
retornaram, os telefonemas no meio da noite, solicitações
urgentes, mais ameaças, o seu mundo de conhecimento
desabando. Ela pensou nos primeiros tempos, quando
parecia estar livre disto. Pensou em Jack. Depois os dois
degraus que restavam ressoaram na cratera, empurraram-na
para frente. As mãos a fizeram parar de novo, e a venda foi
recolocada sobre seus olhos. - Não - ela disse furiosamente
em italiano. - Isto não. Você se lembra do quanto isto me
aterrorizava quando éramos crianças? Quando eu tomava
conta de você. Meu irmãozinho.
Não houve resposta. As mãos se detiveram, depois
afrouxaram. A venda se prendera no cordão da carteira de
identidade da superintendência ao redor do seu pescoço, e
foi violentamente arrancada. Parecia que seu pescoço tinha
sido chicoteado. Ela manteve resolutamente os olhos à
frente, mas percebeu o gesso que cobria o pulso dele. - O
que lhe aconteceu, mia caro'? - ela perguntou. - Deixe-me
cuidar de seu braço. - Não houve resposta, e ela foi
empurrada à frente, desta vez violentamente, pelo coque de
seus cabelos. Ela cambaleou para diante. Cinqüenta passos
para frente. Uma mão agarrou seus cabelos de novo, e um pé
a chutou atrás de seu joelho direito. Ela desabou no chão da
cratera, os joelhos batendo com estrondo na lava. Manteve a
compostura, permaneceu ereta. Suas pernas foram separadas
com chutes. Alguma coisa fria foi fortemente empurrada
contra sua nuca, enviando um formigamento ao longo de
sua coluna. - Espere - ela disse, com voz forte, sem vacilar. -
Solte as minhas mãos. Devo me reconciliar com Deus. In
nomine patri, filii et spiritu sancti.
Durante alguns momentos, nada aconteceu. A boca da arma
de fogo ainda estava pressionada contra seu pescoço. Ela se
perguntou se era assim, se já havia acontecido, se isto era a
morte, se a morte significava ficar gelada no momento da
passagem. Depois a boca da arma foi retirada, ela ouviu bater
no chão uma caneca de metal espalhando líquido e mãos
apalpavam seus pulsos. Seu coração estava começando a
bater mais rápido agora, parecia estar dando pancadas, e seus
joelhos fraquejaram. Ela fechou os olhos e respirou
profundamente, saboreando o ato, até mesmo o odor
nauseabundo daquele local. Não queria cair. Ela não queria
deixar a família cair. Queria manter a honra. Abriu os olhos,
e olhou diante dela. A fenda estava ali, preta como carvão,
com lava solidificada ao redor das beiradas. Ela sabia o que ia
acontecer. O som curto e agudo da Beretta com silenciador,
o jato de sangue misturado com miolos, estranhamente
independente das coisas externas, como uma mangueira,
vibrando com as últimas batidas do coração. O corpo
empurrado para dentro da fenda, o combustível da caneca
esvaziado sobre ele, o cigarro arremessado. Ela desejava que
a própria fenda a levasse, se tornasse viva como havia ficado
quando o vulcão tinha batido como um coração vivo
debaixo deste lugar, o cerne ardente do mundo subterrâneo.
Ela queria ser abraçada por ele. Queria que ele queimasse.
Houve um som de dilaceramento quando a fita adesiva que
amarrava suas mãos foi arrancada, um último choque de dor.
Deixou a mão esquerda cair livre-mente, sacudiu-a, sentindo
a circulação retornar. Lentamente ergueu a mão direita
diante de seu peito e fez o sinal da cruz e tocou sua testa.
Sua mão estava firme, sem tremor. Ela ficou contente.
Deixou-a cair. Seus olhos estavam bem abertos, olhando
fixamente para a fenda. Juntou as mãos, sentiu o anel que ele
lhe havia dado. A boca da arma pressionou sua nuca de
novo, Ela inclinou a cabeça leve-mente. O ângulo seria
melhor. Mais rápido. Ouviu o toque de um celular, e depois
a voz atrás dela, uma voz que trouxe de volta a ternura da
infância, que tinha gostado de escutar cada manhã quando
ela afagava sua testa, vendo-o acordar.
- Eminência? Va bene. Está feito.
Depois nada.

Costas espirrou de novo, e abriu espaço para Jeremy, que
tinha chegado à catedral alguns minutos antes, mas
descobrira um oficial e fora direto falar com ele. Jeremy se
aproximou vindo pela nave de novo, carregando um guarda-
chuva gotejante e uma pasta de papéis e vestindo uma
jaqueta vermelha Goretex. Costas e Jack tinham acabado de
retornar ao seu lugar na Catedral de São Paulo alguns
momentos antes, depois de terem ido rapidamente até a
farmácia que havia do lado de fora na Strand, e Costas estava
ruidosamente inalando um descongestionante e examinando
a etiqueta de um frasco. Pegou um punhado de
comprimidos, um trago de água e inclinou-se para trás para
deixar Jeremy passar, deixando espaço no assento entre ele e
Jack. Jeremy retirou a jaqueta, sentou-se, aspirou o ar pelo
nariz de maneira audível, tirou os óculos para enxugar a água
da chuva, depois aspirou o ar de novo. Inclinou-se para
Costas, depois recuou ligeiramente. - Tem alguma coisa
cheirando mal por aqui.
- Bom dia para você, também - disse Costas, falando com
voz nasalada.
- É uma espécie de cheiro de doença - disse Jeremy. -
Verdadeiramente repugnante.
- Ah - disse Jack. - Secreção do corpo. De alguma maneira,
ela sempre permanece com você.
- Ah - replicou Jeremy forçosamente. - Esqueci-me do lugar
onde vocês estiveram. Corpos mortos. É por isso que prefiro
as bibliotecas.
- Não diga esta palavra. Preferir - disse Costas, parecendo
infeliz.
- Venham. Por aqui - disse Jeremy, juntando suas coisas e
levantando-se, mantendo distância de Costas
ostensivamente. - Consegui uma sala privada.
- De onde você conhece todas estas pessoas? - perguntou
Costas.
- Eu sou um perito em manuscritos medievais, você se
lembra? - replicou Jeremy. - Uma grande quantidade dos
melhores documentos ainda são mantidos pela igreja. Este é
um mundo pequeno. - Jack rapidamente fechou o seu
laptop, e seguiu Jeremy, caminhando pela nave em direção a
uma capela lateral. Jeremy fez um gesto de cabeça para um
homem vestindo sotaina que esperava discretamente
próximo, segurando um aro com chaves pesadas, e ele se
aproximou e destrancou uma porta de aço com grades para
eles. Jack deslizou para dentro sem fazer barulho, depois dos
outros dois. Eles estavam na Capela de Todas as Almas,
dominada por um retrato de Lord Kitchener e o
monumento para os britânicos mortos da Primeira Guerra
Mundial, mas que continha também uma pietà, uma
escultura da Virgem Maria segurando o corpo de Cristo.
Jeremy os conduziu para detrás do memorial de guerra, fora
do alcance de voz da ala exterior e agachou-se encostando as
costas na estátua. Retirou um notebook de sua mochila e
olhou para Jack, seu rosto ruborizado pela excitação. - Muito
bem. Você me contou pelo telefone suas descobertas, sobre
a tumba de Boudica. Isso é inacreditável. Agora é a minha
vez.
- Fale logo.
- Passei a maior parte do dia de ontem em Oxford. Eu estava
seguindo aquele indício de que lhe falei. Aqui vai. O
arquivista do Balliot College é meu amigo. Nós procuramos
em todos os documentos não publicados relativos à Igreja de
St. Lawrence Jewry, e encontramos um livro de relatos da
reconstrução de 1670. Ninguém se interessou muito por ele,
e parecia que ele repetia, em sua maior parte, os livros de
relatos de Wren que já haviam sido publicados. Mas algo
chamou minha atenção, e o examinamos mais
detalhadamente. Era um adendo, de 1685. Uma velha
câmara mortuária debaixo da igreja tinha sido desobstruída, e
a equipe de Wren voltou para lacrá-la e verificar as
fundações. Eles encontraram uma cripta trancada.
Conseguiram quebrar o ferrolho e abrir a porta, e um deles
entrou lá dentro.
Jack assobiou. - Bingo. Esta é a nossa cripta, Costas. Você
sabe quem entrou?
- Todos os mestres artífices estavam presentes na câmara
mortuária. Isto ocorreu cinco anos depois de a igreja ter sido
completada, e a visita de 1685 foi uma visita de inspeção.
Edward Pierce, pedreiro, escultor e entalhador decorativo.
Thomas Newman, pedreiro. John Longland, carpinteiro.
Thomas Mead, modelador de gesso. O próprio Christopher
Wren se encontrava entre eles, descansando do seu trabalho
na Igreja de São Paulo, onde estamos agora. E havia um
outro homem, um nome desconhecido para mim, Johannes
Deverette.
- Francês? - perguntou Jack.
- Flamengo. Meu amigo bibliotecário já tinha visto o nome
antes, e encontramos bastante coisa sobre ele para esboçar
uma curta história. Era um refugiado huguenote, um
protestante calvinista que escapara dos Países Baixos um
pouco antes naquele ano. 1685 foi o ano em que o rei
francês revogou o Édito de Nantes, que tinha dado proteção
aos protestantes.
- Nada extraordinário que um huguenote se encontrasse no
comércio de construção em Londres naquela época -
murmurou Jack. - Alguns dos melhores e mais conhecidos
carpinteiros ou marceneiros de Wren eram huguenotes, o
escultor Grinling Gibbons por exemplo. O trabalho dele
pode ser encontrado em toda parte ao redor de nós, aqui na
Igreja de São Paulo.
- O que era incomum era a ocupação de Deverette. No
caminho fui até a Biblioteca Bodleian e fiz a mesma
pesquisa. Ele descreve a si mesmo como um Music Meister,
um mestre de música. Aparentemente, Wren o empregou
por recomendação de Grinling Gibbons para confortar o seu
filho mais novo, Billy, que tinha deficiência mental.
Deverette cantava cantos gregorianos.
- Música gregoriana - Costas espirrou. - É aquela música
tradicional da liturgia católica romana?
- É ela mesma, e ela se relaciona estreitamente com o lugar
para onde nós estamos nos dirigindo com isso - disse
Jeremy. - Como os anglicanos, os huguenotes rejeitaram a
Igreja Romana, mas havia muitos que se apegaram às antigas
tradições apenas por razões estéticas. Descobri que
Deverette vinha de uma longa linhagem de músicos
gregorianos que clamava ser descendente do próprio são
Gregório, o papa que formalizou o repertório dos cantos
religiosos sem acompanhamento de instrumentos no século
VI. A coisa realmente intrigante é que Sir Christopher Wren
partilhava daquela estética. Simplesmente olhem para este
lugar. - Jeremy fez um gesto que abrangia as paredes da
catedral. - Dificilmente podemos dizer que é um lugar
austero de encontro de protestantes, não é? Ela é uma
construção que quase se parece exatamente com a grandeza
de São Pedro no Vaticano, alguns diriam que é até superior.
- Arrancou uma folha de um caderno de anotações. - Esta
citação é quase tudo o que sabemos sobre os pontos de vista
religiosos de Wren, mas ela é reveladora. Quando jovem, ele
era muito apegado a uma casa de campo de um amigo. Dizia
que era um lugar "onde a piedade e a devoção de uma outra
época, afugentada por nossa impiedade e nossos crimes,
havia encontrado um santuário, no qual todas as virtudes
não são apenas observadas, mas também nutridas". Nunca
ninguém desconfiou que Wren fosse um católico escondido,
mas ele certamente lamentava os aspectos desmancha-
prazeres da Reforma.
- O canto religioso sem acompanhamento de instrumentos
não se origina muito antes dessa época, no ritual judaico? -
perguntou Jack.
- O canto sem acompanhamento pode muito bem remontar
a um período anterior ao da fundação da Igreja Romana, aos
primeiros cristãos, à época dos apóstolos - disse Jeremy. -
Ele era, provavelmente, um canto responsorial, versos
cantados por um solista alternando com respostas de um
coro. Esse tipo de canto pode ter sido, na verdade, um dos
primeiros rituais de congregação, cantados nos lugares
secretos onde os primeiros seguidores de Jesus se reuniam,
até mesmo antes de se chamarem cristãos. Ele até é
mencionado nos Evangelhos. - Olhou para o seu caderno de
anotações. - Mateus, 26,30. Depois que cantaram o hino,
eles saíram do monte das Oliveiras.
- Então, esse Deverette esteve aqui em Londres durante a
reconstrução da Catedral de São Paulo feita por Wren - disse
Costas.
- Desde 1685, quando chegou à Inglaterra. Os homens que
trabalhavam com Wren tinham terminado a nova estrutura
da Igreja de St. Lawrence Jewry alguns anos antes, mas 1685
foi o ano em que eles abriram caminho dentro da abóbada
subterrânea, a antiga cripta. É aqui que as coisas se tornam
realmente fascinantes. Deverette tinha uma outra paixão.
Era um antiquário perspicaz, um colecionador de relíquias
romanas e cristãs do primeiro período. Wren descobriu isso,
e deu-lhe um novo serviço. Wren também estava
interessado em todo o antigo material que encontrava.
Deverette estava ali para resgatar quaisquer artefatos. Uma
espécie de vigilante arqueológico, em suma.
- Eis o nosso homem - disse Jack muito excitado. - Alguém
entrou dentro daquela tumba e encontrou aquele cilindro.
Deve ter sido ele.
- Ele manteve algum registro? - perguntou Costas, tossindo.
- Verifiquei em toda parte. Examinei de novo todos os livros
publicados sobre Wren, tudo que pude encontrar sobre as
igrejas, todos os seus papéis particulares. Nada. Então, eu
tive um monte de idéias. Fui até os Arquivos Nacionais em
Kew, cheguei ali a tempo, ontem à tarde. Fiz uma busca em
todos os registros do Tribunal de Prerrogativas de
Canterbury.
- Você encontrou o seu testamento - exclamou Jack.
- Muitos dos testamentos eclesiásticos estão on-line, mas o
dele estava em uma pilha recentemente descoberta que
havia sido arquivada de maneira errada e estava começando
a ser catalogada. Tive uma sorte incrível.
- Vamos ver o que conseguiu.
Jeremy retirou uma imagem escaneada de sua pilha de
papéis. Era a cópia de uma página amarelada, com cerca de
vinte linhas de uma escrita à mão nítida. Debaixo da escrita à
mão havia um selo vermelho e uma assinatura, com mais
assinaturas e uma anotação, de legitimação de um
testamento, feita com letra ilegível na parte inferior da
página. Jeremy começou a ler:

Em nome de Deus, Amém. Eu, Johannes Deverette, Mestre
de Música de Sir Christopher Wren, Cavaleiro, Inspetor
Geral de suas Obras Grandiosas, do sexo masculino e adulto,
ordeno e faço desta a minha última Vontade e Testamento
como se segue. Desejo que meu corpo possa ser
decentemente sepultado sem pompa de acordo com o
critério do dito Sir Christopher Wren, neste documento
nomeado único Executor e Curador.

- Meu Deus - murmurou Jack. - Wren foi o seu executor.
Deve ter tido conhecimento de quaisquer antiguidades que
Deverette possuía, de qualquer coisa que ele descobrira em
Londres e mantivera para passar adiante.
- Deverette morreu apenas alguns meses depois de fazer seu
testamento, quando seu filho e herdeiro ainda era menor de
idade, de modo que Wren deve ter tido a salvaguarda de
qualquer legado em herança - replicou Jeremy. - Mas
esperem para ver. Há o palavreado usual sobre bens móveis
e propriedades rurais, mas as sentenças finais são as
essenciais. - Continuou a ler:

Todos os meus livros, músicas e instrumentos musicais, eu
dou e lego em herança para meu filho John Everett. Para o
meu dito filho também lego em herança todas as minhas
raridades antigas, meu Gabinete de Curiosidades e Relíquias
das diversas escavações feitas em Londres pelo dito Sir
Christopher Wren, inclusive o Godspelle que peguei das
mãos da Antiga sacerdotisa. Este último mencionado para
ser mantido em Segurança, em Custódia mais sagrada, e
legado em herança por meu dito filho para o seu próprio
filho e herdeiro, em perpetuidade, em Nome de Cristo, Jesus
Domine. Assinado e Lacrado pelo acima mencionado
Johannes Deverette como e em nome de sua última
Vontade e Testamento na nossa presença, nós que
subscrevemos nossos nomes como escritos em sua presença,
neste sexto dia de agosto de 1711. Cris, Wren, Grinling
Gibbons.

- Godspelle - disse Costas. - Que diabo é isso?
O coração de Jack tinha estado acelerado desde que Jeremy
leu a palavra. Sua voz estava rouca. - Jeremy o disse alguns
momentos antes. Trata-se de inglês arcaico e quer dizer "boa
palavra". Ela significa Evangelho. Deverette encontrou o
manuscrito naquele cilindro, e deve tê-lo lido.
- De acordo com o que posso perceber, esta é a única razão
pela qual ele o chamou de Godspelle - disse Jeremy. - Caso
contrário, por que não chamá-lo de manuscrito, ou de uma
escrita antiga?
- Esta é uma nova descoberta fantástica - murmurou Jack. -
Ela é a primeira indicação que nós tivemos do que aquele
documento pode ter contido. - Olhou para Jeremy. - Mal
ouso perguntar. Você foi mais além disso?
- Foi muito fácil seguir a pista de sua descendência - replicou
Jeremy. - Os huguenotes mantêm registros familiares
bastante bons. O próprio Deverette anglicizou seu nome, fez
seu filho se chamar Everett. A tradição musical pode ter
continuado, mas eles chegaram a ganhar para sua
subsistência como construtores e arquitetos. Durante várias
gerações eles foram membros respeitáveis da Carpenter's
Company, uma das corporações mais proeminentes de
Londres. Eles estavam estabelecidos em Lawrence Lane, de
onde se podia ver a igreja, apenas a alguns metros da cripta
onde Deverette fizera sua descoberta.
- Guardiões da tumba - murmurou Costas.
- Isto está começando a fazer sentido - disse Jack baixinho. -
A cripta secreta, os sepultamentos daquelas mulheres que
descobrimos, a sucessão desde a época dos romanos até o
Grande Incêndio. Acho que faziam parte de uma seita
secreta que sabia sobre a tumba da rainha guerreira, foram os
guardiões originais. Mas, depois, o Grande Incêndio de 1666
interrompeu a sucessão, queimou a igreja e soterrou a
entrada para a cripta e a tumba.
- Talvez isto tenha sido como a erupção do Vesúvio para as
sibilas - disse Costas. - Fogo e cinza previsto de antemão,
tudo aquilo. O fim de sua época.
- E depois, por pura sorte, a tumba foi novamente
encontrada, seu tesouro sagrado foi removido, mantido
secreto, e o ciclo de proteção foi renovado - murmurou
Jack.
- A forte tradição da família huguenote conta em nosso
favor - disse Jeremy. - Não há outra referência às relíquias
em nenhum dos testamentos, mas o poder daquele legado
no Testamento de Deverette teria mantido sua influência
através das gerações. E há algo mais, uma verdadeira prova
contundente. No início do século XIX, Samuel, o bisneto de
Deverette, era um subscritor do Movimento de Oxford, a
renovação dos anglo-católicos. Seu filho John Everett era
membro de uma sociedade vitoriana chamada os Novos
Adeptos de Pelágio, que clamavam seguir o ensinamento de
Pelágio, o monge britânico rebelde. Eles acreditavam ser os
herdeiros da tradição cristã inicial na Grã-Bretanha, não
aquela que foi trazida por Agostinho no século VI, mas da
tradição dos primeiros tempos, daqueles que trouxeram a
palavra de Jesus para este lugar no primeiro século d.C.
Falávamos sobre isto ontem.
- Cláudio? - murmurou Jack - Será que podemos remontar
tudo isto até ele?
- Até aquele que ele encontrou na Judéia - murmurou
Costas.
- Os Everett continuaram a ser proeminentes na City de
Londres no século XIX, sempre próximos à St. Lawrence
Jewry e ao Ghildhall. John Everett, o adepto de Pelágio, era
um membro do Conselho da Corporação de Londres, e um
ex-escravo da City. Seu filho era Mestre da Carpenters
Company. Mas então algo estranho aconteceu. Seu filho
mais velho, Lawrence Everett, era arquiteto como seu pai.
Mas, quase imediatamente após a morte do pai em 1912, ele
fechou seu negócio, abandonou sua família e desapareceu.
Foi quase um outro ciclo prognosticado, como Costas disse,
como se o cataclismo das guerras mundiais que
aconteceriam mais tarde fosse uma outra erupção de fogo e
de enxofre. Foi como se o último dos guardiões
interrompesse a sucessão e levasse o tesouro embora antes
que o inferno desencadeasse a fúria da guerra durante a
Blitz.
- Você tem alguma idéia de para onde ele foi? - perguntou
Jack.
- É preciso verificar os registros de imigração, as declarações
dos passageiros. Há uma grande quantidade de material a ser
pesquisado. Tive um indício promissor.
- Você sempre consegue - disse Jack. - Você está se
tornando indispensável, sabe?
- Posso precisar ter que retornar aos Arquivos Nacionais.
Isso me tomaria mais um dia.
- Vamos, então, continuar com isso.

Cinco minutos mais tarde, eles se encontravam sob a
entrada da Catedral de São Paulo, olhando para fora através
de extensas cortinas de chuva, procurando uma brecha em
meio ao dilúvio. Jack sentiu como se estivesse em uma ilha,
como se a solidez da catedral e a velada sensação de mal-
estar do lado de fora refletissem exatamente, como um
espelho, o seu estado de espírito. As revelações assombrosas
das últimas horas tinham dado um enorme impulso à sua
busca, e fez com que ela parecesse tão real como a imensa
estrutura acima deles; no entanto, a sua meta ainda se
parecia com um farol despercebido em algum lugar do outro
lado da chuva, na parte baixa de alguma aldeia escura que
eles podiam nunca encontrar. Jack novamente teve uma
súbita lembrança da biblioteca perdida de Herculano, porém
a visão em sua mente parecia agora ondular passando por
uma sucessão de câmaras, as portas abertas até onde sua vista
podia alcançar, mas a meta longe da vista na distância. Sabia
que sua única esperança agora dependia de Jeremy, que
alguma revelação encontrada nos arquivos pudesse levá-los
em direção àquela última porta, ao lugar que Cláudio queria
que eles encontrassem.
- Não me diga que estamos indo para o túnel, Jack - disse
Costas em voz baixa e áspera. - Eu não vou entrar no
subterrâneo de novo.
- Por coincidência, eu sempre quis ver o Grande Canal -
replicou Jack, piscando para Jeremy. - Um canal subterrâneo
construído no século XIII para trazer água fresca da
correnteza do Tyburn, cerca de três quilômetros a oeste
daqui. As cisternas de pedra parecem impressionar, mas os
aquedutos construídos pelos engenheiros romanos teriam
sido assustadores. Eles vazavam, e a circulação por gravidade
estava toda errada. Um grande exemplo da marcha do
progresso para trás. Isto bem vale uma visita.
- Não - disse Costas com voz monótona. - De maneira
alguma. Você vai. De agora em diante eu só ando de táxi.
Jack sorriu, depois percebeu uma folga na chuva e deu um
passo para fora da entrada da catedral. Naquele momento,
um homem vestido com um terno separou-se de um grupo
de pessoas que se abrigavam debaixo da entrada e caminhou
parando diante de Jack, bloqueando seu caminho. - Doutor
Howard? - ele disse decididamente. Jack olhou para o rosto
do homem e não o reconheceu, deu um passo atrás
alarmado. O homem lhe entregou uma folha de papel. -
Amanhã, às 11 da manhã. A vida de vocês pode depender
disso. - Afastou-se e rapidamente desceu as escadas,
desaparecendo dentro da multidão matinal que chegava para
trabalhar na City. Rapidamente, Jack deu um passo atrás
voltando a ficar na entrada da catedral e leu a nota, depois a
passou para Jeremy. - Você o reconheceu? - Perguntou Jack.
- Não tenho certeza. - Jeremy dava a impressão de estar
preocupado, e ansiosamente examinou as demais pessoas
que se encontravam nas escadas. - Não é uma coisa boa você
ter sido rastreado até aqui, Jack.
- Eu sei.
Jeremy olhou para o pedaço de papel, e franziu os lábios. -
Puxa! Bem no centro das coisas. - Devolveu o papel para
Jack. - Você vai?
- Não acho que tenhamos qualquer escolha.
- Eu iria, mas tenho que ficar e descobrir o que puder sobre
Everett.
- Concordo - disse Jack em voz baixa.
- Leve Costas com você. Talvez precise de um guarda-
costas.
Jack olhou para a forma de ombros caídos, em condição
miserável, encostado na coluna de pedra atrás deles,
gotejando e espirrando. Foi até onde Costas estava, pegou-o
pelos ombros e dirigiu-o para as escadas. A chuva tinha
começado a cair com força novamente, e Costas dava a
impressão de que ia se dissolver.
- Venha - disse Jack, olhando para cima e deixando a água da
chuva escorrer pelo rosto, apreciando isso. - Acho que
podemos fazer alguma coisa acerca desse seu resfriado.

CAPÍTULO 18

Quando faltavam cinco minutos para onze horas, na manhã
seguinte, Jack conduziu Costas através da Praça de São Pedro
no Vaticano, guiando-o em direção à Ufficina Scavi, o
escritório de escavações arqueológicas, no lado sul da
basílica. Tinham voado de Londres naquela manhã, no avião
Embraer da IMU, chegando ao aeroporto Leonardo da Vinci
bastante afastados do exame público, e Jack tinha certeza de
que não estavam sendo seguidos. A vasta extensão da praça e
a seqüência de colunas ao redor faziam com que a multidão
de turistas e de peregrinos parecessem anões, e eles
passaram de maneira tão imperceptível quanto podiam.
Quando se aproximaram da Ufficina, Jack começou a
examinar os rostos ao redor deles, procurando algum sinal,
algum reconhecimento. Não tinha idéia do que deveria
esperar. Depois, saindo do nada, um jovem se pôs a andar ao
seu lado, vestido de modo casual com jeans e usando óculos
de sol. - Doutor Howard? - o jovem perguntou em voz
baixa. Jack olhou para ele, e assentiu com um gesto de
cabeça. - Por favor, siga-me. - Jack olhou para Costas, e
seguiram o homem quando ele avançou com passos largos.
Depois de passar a Ufficina, ele se aproximou da Guarda
Suíça na entrada do Arco delia Campane, e mostrou sua
carteira de identidade. - Estes são os meus dois convidados -
ele disse em italiano. - Um passeio particular. - O guarda fez
um gesto de concordância e ergueu o seu rifle automático
para deixá-los passar. Cruzaram a pequena praça, e depois
entraram no anexo sul das Grutas debaixo da Basílica de São
Pedro. Na terceira sala, o jovem lhes fez um sinal para
esperar, e depois se encaminhou para uma porta trancada. -
Nós não seremos perturbados - ele disse em inglês. - A
Ufficina fechou esta parte das Grutas para mais um trabalho
de escavação. Esperem aqui. - Pegou uma série de chaves e
abriu a porta, entrando por ela e deixando sozinhos Jack e
Costas, subitamente envoltos pelo silêncio e pelas antigas
paredes.
- Você tem alguma idéia do que está acontecendo? -
perguntou Costas baixinho, a voz nasalada por causa do
resfriado. - Tem alguma idéia de onde estamos?
- Em primeiro lugar, o seu palpite é tão bom quanto o meu.
Em segundo, estas paredes são virtualmente tudo o que foi
deixado da basílica anterior, aquela construída pelo
imperador Constantino, o Grande, depois que ele se
converteu ao cristianismo no início do século IV d.C. Antes
disso, aqui era um circo romano, uma pista de corridas. E
por onde o nosso guia desapareceu é a entrada de uma
necrópole, uma rua mausoléu desbastada na rocha, datada do
primeiro século d.C., descoberta quando as escavações
começaram aqui nos anos 1940. A grande descoberta da
tumba de são Pedro, a nossa frente, debaixo do Alto Altar.
A porta se abriu e o jovem reapareceu. Deu para Jack e para
Costas uma vela e as acendeu com um isqueiro. - Aonde
você vir uma vela no chão, vá direto, mas apague-a e leve-a
com você - ele sussurrou. - Há doze degraus para descer,
depois você verá uma outra vela através de outra porta.
Passe por ela, e feche a porta atrás de si. Estarei esperando lá
por vocês. Vão.
Costas parecia atormentado. - Nós vamos descer ao
subterrâneo de novo, Jack?
- Isto é bem o tipo de coisa de que você gosta. Uma cidade
dos mortos.
- Ótimo.
Jack fez uma pausa, olhou para o jovem durante um
momento, decidiu não falar, depois fez um gesto com a
cabeça assentindo e dirigiu-se para a porta, com Costas atrás
dele. Passaram pela porta, que foi imediatamente fechada
atrás deles. Estava escuro como breu, a não ser pelas velas e
um brilho apagado em algum lugar mais adiante. Do lado de
fora estava quente e seco, mas ali o ar era frio e úmido
enquanto eles desciam, um pouco bolorento. Jack mostrava
o caminho, descendo cuidadosamente os degraus até que
alcançaram um chão de pedra áspera. Podiam ver que o
brilho adiante era de uma vela no chão. Depois de alcançá-
la, Jack fez como lhe fora instruído, apagando-a com os
dedos e pegando-a, depois virou à direita e desceu outro
lance de escadas, entrando em uma câmara escavada na
rocha, evidentemente um antigo mausoléu despojado de
seus conteúdos havia muito tempo. No fundo da câmara, à
esquerda, havia uma porta com superfície de pedra que se
abria para dentro da rocha, e, através dela, puderam ver
outro foco distante de luz. Passaram através dela, e Jack
empurrou a porta para trás até que se fechasse, ajustando-se
sem emenda na rocha, como se fosse uma via de acesso
secreta.
- Incrível - murmurou Jack, olhando ao redor sob a luz
tremeluzente da vela, percebendo os nichos e as decorações
das paredes. - Esta é uma catacumba. O mausoléu pelo qual
acabamos de passar originalmente ficava acima do chão
durante o período romano, uma rua de tumbas. Mas esta
parte interior deve ter sido sempre subterrânea, desbastada
na rocha viva. O Vaticano nunca revelou isto antes.
- Isto me faz pensar nas outras coisas que eles nunca
revelaram - murmurou Costas.
Jack deu um passo à frente, percebendo de cada lado dele
imagens, inscrições, pinturas. Parou ao lado de uma, e
segurou a vela à frente. - Assombroso - sussurrou. - Está
intacta. As catacumbas estão intactas, os sepulcros ainda
estão aqui.
- Era exatamente o que eu queria saber - disse Costas.
- Os túmulos ainda estão lacrados, cobertos com gesso
calcinado. Olhe, esta inscrição é legível. In Pace. - Jack
balbuciou. - Isto é do antigo cristianismo, do cristianismo
muito antigo. Data de uma época bem anterior a
Constantino, o Grande. Um lugar de sepultamento secreto,
usado quando os cristãos em Roma eram proscritos,
perseguidos. Este é um achado fantástico. Não posso
entender por que não o tornaram público.
- Talvez tenha algo a ver com isto. - Costas estava de novo à
frente agora, não distante da vela no chão, e cuidadosamente
Jack foi até onde ele se encontrava. - Esta é uma área
elevada, coberta com telhas de cerâmica - disse Costas.
Caminhou ao longo do lado esquerdo da via de acesso e
agachou-se ao lado da vela.
- É uma tumba - disse Jack baixinho. - Algumas vezes são
encontradas no chão das catacumbas, bem como ao longo
das laterais. Às vezes eram as mais importantes.
- Jack, acho que estou alucinando. Estou tendo um
flashback. Aquele déjà vu que você teve em Roma. Talvez
seja um efeito retardado do nitrogênio.
- O que é?
- Aquela telha. Debaixo da vela. Há uma inscrição rabiscada
nela. Ou eu estou vendo coisas ou é uma palavra idêntica a
uma que vimos antes.
Jack moveu-se pouco a pouco até chegar atrás de Costas.
Podia distinguir os rabiscos ao redor da beirada da telha,
como uma grinalda de gavinhas de videira. No centro, viu o
que fizera Costas estremecer. Era um nome, inequívoco, um
nome que eles tinham visto antes rabiscado em cerâmicas
como esta, em um antigo navio naufragado e a centenas de
milhas distante dali, perdido por quase dois mil anos, nas
profundezas do mar Mediterrâneo. O nome de um homem,
escrito em latim.

PAULUS.

Seria possível? Jack olhou ao redor, viu a amplitude da
passagem, as outras tumbas se amontoando neste lugar, mas
não sobre ela, como se quisessem ficar muito perto de Paulo,
em reverência. Viu símbolos cristãos por toda parte, uma
pomba apenas visível na parede ao seu lado, um peixe, a
fórmula cristã repetida várias vezes, in pace. E então,
quando Costas movimentou sua vela sobre a telha,
Jack viu levemente rabiscado ao lado do nome o símbolo
Qui-Rô. O sinal de Cristo. Não havia dúvida a respeito.
- A tumba de são Paulo - ele disse em tom incrédulo,
descansando a mão sobre uma telha. - São Pedro e são Paulo,
enterrados no mesmo lugar, ad catacumbus, exatamente
como diz a tradição.
- É isso mesmo.
Jack deu um passo atrás, amedrontado. Era uma outra voz,
uma voz que vinha de um nicho sombrio oposto a eles, na
parede ao lado da cabeceira da tumba. Podia distinguir
apenas a sotaina sobre as pernas, mas não a parte superior do
corpo. A voz era autoritária, e tinha uma certa aspereza, o
inglês apresentava um leve sotaque, possivelmente do leste
da Europa. - Não tente se aproximar de mim. Por favor,
apaguem as velas. Sentem-se no banco de pedra atrás de
vocês. - Jack parou por um segundo, depois fez um gesto a
Costas, e fizeram como foi instruído. A única fonte de luz
agora era a da vela na tumba, e todo o resto ficou reduzido a
sombras bruxuleantes e escuridão. A outra figura se deslocou
ligeiramente, e eles puderam discernir apenas uma cabeça
coberta com capuz, mãos colocadas sobre os joelhos. - Eu os
convoquei hoje aqui dentro do maior segredo. Queria que
vissem o que acabaram de ver.
- Quem é você? - perguntou Costas.
- Você não saberá meu nome, nem quem eu sou - repetiu o
homem. - Não pergunte outra vez.
- Esta é verdadeiramente a tumba de são Paulo? - perguntou
Jack.
- Esta é - o homem repetiu.
- E a Igreja de San Paulo Fuori le Mura? - indagou Jack.
- A tradição diz que ele foi enterrado ali, em um vinhedo -
replicou o homem. - Ele, de fato, foi levado para lá depois de
sua morte, mas foi secretamente trazido de volta para cá para
reunir-se a Pedro, no lugar de seu martírio.
- Isto é verdade, então - murmurou Jack.
- Eles foram martirizados juntos pelo imperador Nero, no
circo construído neste lugar por Calígula. Pedro foi
crucificado de cabeça para baixo, e Paulo foi decapitado. Os
romanos martirizaram os dois maiores pais da Igreja inicial, e
ao fazer isso os imperadores pagãos ajudaram a trazer a Santa
Sé para este lugar. In nomine patri, filii et spiritu sancti,
amen.
- Você nos trouxe aqui para nos mostrar isso? - perguntou
Jack.
Houve uma pausa, e o homem se deslocou de novo. A vela
sobre a tumba vacilou, alongando a sombra de maneira que,
durante alguns momentos, ele ficou completamente
obscurecido, depois a chama queimou ereta outra vez. -
Você já deve saber, a essas alturas, que o imperador romano
Cláudio fingiu o seu próprio envenenamento, e sobreviveu
em segredo durante muitos anos além do final de seu
reinado em 43 d.C.
Jack olhou atentamente dentro da sombra, sem saber o
quanto revelar. - Como você sabe disto?
- Ao lhe contar o que estou prestes a revelar, eu ponho à
prova o meu vínculo com a santidade da Igreja. Mas assim
será. - O homem fez uma pausa, e depois estendeu a mão e
pegou das sombras ao seu lado, e ergueu, um antigo volume
encadernado em couro que colocou sobre o colo. Podiam
agora ver suas mãos, finas, mãos com dedos longos que
tinham realizado muito trabalho físico pesado, mas não
conseguiam ainda ver o rosto do homem. - Em 58 d.C., são
Paulo veio do leste para a Itália, sobrevivendo ao famoso
naufrágio do navio durante o caminho. Isso se passou como
foi contado nos Atos dos Apóstolos, exceto que o naufrágio
do navio foi na Sicília e não em Malta.
Costas olhou de maneira interrogativa para Jack, que lhe
devolveu um olhar vivo. Nenhum deles falou.
- São Paulo veio em primeiro lugar para a baía de Nápoles,
para Misenum, e se reuniu com irmãos cristãos que
encontrou aqui, como foi contado nos Atos - disse o
homem calmamente, quase sussurrando. - Depois da
crucificação, este foi o evento mais importante na história
inicial do cristianismo. Paulo foi o primeiro a tomar a palavra
de Jesus além dos judeus, o primeiro verdadeiro missionário.
Quando Paulo deixou Misenum e foi para Roma, aqueles que
primeiro ele instruiu chamaram a si mesmos um concilium,
o concilium ecclesasticum Sancta Paula.
- O concílio da Igreja de São Paulo - murmurou Jack.
- Eles eram em número de três, e permanecem sendo três
hoje.
- Hoje? - perguntou Jack, grandemente surpreso. - Esse
concilium ainda existe?
- Durante gerações, por quase três séculos, o concilium foi
uma organização secreta, um pilar de força para a Igreja
quando ela estava lutando por sua sobrevivência, enquanto o
cristianismo ainda era uma religião subterrânea. No início
houve um lugar de encontro secreto nos Campi Flegrei,
perto de Misenum, e eles assumiram o controle da gruta da
Sibila em Cumas, depois que a última das sibilas desapareceu.
Mais tarde, quando o cristianismo se firmou, o concilium
mudou para Roma, para estas catacumbas onde estamos
sentados agora, para o lugar onde o corpo martirizado de são
Paulo foi sepultado em segredo por seus seguidores depois
de decapitado, próximo ao lugar do sepultamento santificado
de São Pedro.
- E esse concilium tem se reunido aqui desde então? -
perguntou Costas.
- Na época de Constantino, o Grande, o concilium havia
aumentado em número, com a participação de membros de
cidades de lado a lado do Império Romano. Mas, à medida
que o número de participantes aumentava, a sua força e
propósito enfraqueciam. Com a conversão do Império
Romano sob Constantino, no século IV, os chefes do
concilium viram seus propósitos decair e se dispersar, e
lacraram a catacumba de são Paulo. Sua localização foi
perdida, e só foi redescoberta durante a escavação da
necrópole depois da Segunda Guerra Mundial. Somente a
partir daí esta câmara se tornou de novo um local de
reunião.
- O concilium foi recriado nos tempos modernos -
perguntou Jack.
- Não. Ele foi reativado por Constantino, o Grande, perto do
final de seu reinado. Ele reconstituiu o concilium no seu
número original, com três participantes, e no maior dos
segredos. Ele próprio era um, o fundador. Constantino tinha
feito um grande investimento ao converter a nação para o
cristianismo. Como estadista, como soldado, ele via a
necessidade de defender a Igreja contra todos os que
chegavam, de criar um conselho de guerra que enviaria
soldados para lutar em nome de Cristo, que não mostrariam
clemência diante do Diabo, que não seguiriam nenhum
regulamento. Durante séculos, o concilium repeliu a mais
perniciosa das heresias, aquelas que a Ufficina, a Inquisição
da Santa Sé, foi incapaz de derrotar. Lutaram contra aqueles
na Grã-Bretanha que procuravam arruinar gradativamente a
autoridade da Igreja, os adeptos de Pelágio, perseguindo-os,
destruindo-os, assim como suas obras, enviando o próprio
Pelágio para o fogo do Inferno. Lutaram contra os
protestantes depois da Reforma, uma guerra secreta de terror
e assassinato que quase destruiu a Europa. Em sua raiva
contra o demônio, ordenaram a destruição dos maias e dos
astecas e dos incas, temendo uma profecia da antiga Sibila
que profetizou uma escuridão vinda do oeste.
- E esses eram homens de Deus - disse Costas.
- Eles eram crentes, e acreditavam, sobretudo, na santidade
e no poder da Igreja, na Igreja como o único caminho para a
salvação e o Reino dos Céus - disse o homem. - Constantino,
o Grande, era um estadista astuto. Sabia que a sobrevivência
da Igreja dependia de lealdade completa e inabalável, de fé
na igreja como o único caminho para Deus. No seu
concilium recriado, ele encontrou seus perfeitos executores.
- Você pode provar tudo isso? - perguntou Costas.
O homem ergueu ligeiramente o livro para que pudessem
vê-lo. - Está tudo aqui. Os registros do concilium
ecclesiasticum Sancta Paula. Um dia o mundo ficará
sabendo. A história será reescrita.
- O que isto tem a ver com Cláudio? - perguntou Jack.
O homem se inclinou ligeiramente adiante, e a luz da vela
tremulou no contorno indistinto do seu rosto. - Esta é a
maior ameaça que o concilium jamais enfrentou, e seu maior
medo. Esta é a razão pela qual eu os trouxe aqui. Vocês e sua
equipe estão sujeitos aos mais graves perigos, muito
diferentes que aqueles que podem conceber.
- Sabemos como é olhar para a boca do cano de uma Beretta
93R com um silenciador - disse Costas. - Dentro de uma
caverna debaixo do monte Palatino.
- Ele tinha instruções para não atirar - replicou o homem.
- Então, talvez o concilium deva empregar companheiros de
crime mais obedientes - disse Costas em voz baixa.
- Como você soube? - perguntou Jack. - Como o concilium
soube que estávamos em Roma? - O homem ficou silencioso
e Jack persistiu. - Havia alguém escutando no túnel em
Herculano? Era a inspetora, a doutora Elizabeth D'Agostino?
- Sabemos que ela falou com você fora da vila.
- Como você sabe?
- Há espiões por toda parte.
- Mesmo a bordo do Seaquest?
- Você precisa fazer todo o possível para encontrar o que
está procurando e para revelar sua descoberta ao mundo
antes que eles cheguem até você - disse o homem. - Assim
que souberem onde está o que você busca, eles farão tudo
que estiver em seu poder para destruí-lo. Fiz tudo o que
pude, mas não posso detê-los por mais tempo.
- Por que você quer nos ajudar? - perguntou Jack.
O homem fez uma pausa. - Deixe-me primeiro contar-lhes
sobre Cláudio. - Abriu o livro no início. Eles podiam ver
com dificuldade a antiga escrita, com notas explicativas e
nitidamente escrita com mãos diferentes, mas similar à
página da História natural de Plínio que tinham encontrado
em Herculano, porém em piores condições e mais
manchada, como se tivesse sido manuseada repetidas vezes.
- Esta página narra detalhadamente a criação do concilium, o
original, no primeiro século d.C. - disse o homem, fechando
o livro novamente e colocando as mãos em cima dele. - Um
dos três primeiros membros era um homem chamado
Narciso, um ex-escravo do imperador Cláudio.
- Meu Deus - murmurou Jack.
- O eunuco? Nós o encontramos - disse Costas. - Deitado de
atravessado perto da porta de entrada para o estúdio de
Cláudio. Parecia que estava entrando, procurando por
alguma coisa. Ele ficou um pouco chamuscado.
- Ah. - O homem ficou quieto por um momento. - Vocês
encontraram a sala dele. Durante quase dois mil anos
tentamos descobri-la.
- Acho que agora eu adivinho o que Narciso estava fazendo
ali - murmurou Jack.
- Como vocês sem dúvida sabem, Narciso era, havia muito
tempo, o praepositus ab epistulis, o escriba, de Cláudio -
disse o homem. - Quando Cláudio resolveu desaparecer de
Roma, ele também planejou o falso envenenamento de
Narciso para que este pudesse acompanhar seu mestre para o
seu refúgio em Herculano, e ajudá-lo com seus livros. Mas,
depois de 58 d.C., houve outro motivo para Narciso ficar.
Ele sempre acompanhava Cláudio em suas visitas noturnas
para a gruta da Sibila, onde Cláudio procurava uma cura para
a sua paralisia. Narciso devia conhecer os cristãos que se
escondiam nos Campi Flegrei e ele mesmo se converteu
depois de encontrar São Paulo. Narciso já sabia que Cláudio
tinha ido para a Judéia quando era jovem, que havia se
encontrado com Jesus e retornado com o precioso
documento. Paulo nunca tinha se encontrado com Jesus, e
ficou espantado em saber que algo da mão do messias
pudesse ter sobrevivido. Instruiu Narciso para que
encontrasse e levasse o documento para ele em Roma, seu
próximo destino. A história apossou-se de Paulo, é claro, e
ele foi martirizado e Narciso nunca encontrou a
oportunidade de ficar sozinho no estúdio do seu mestre por
tempo suficiente para procurar o documento. Mas o clamor
pelo documento cresceu entre os irmãos nos Campi Flegrei,
e espalhou-se a palavra até Misenum de que Cláudio era um
ungido, que ele tinha tocado em Cristo. Os outros dois
membros do concilium viram a ameaça que isto colocava,
uma ameaça contra a Igreja, e imploraram a Narciso para
encontrar o documento, para destruí-lo. Eles acreditavam
que o documento era falso, uma heresia, uma fábula sonhada
por Cláudio. Finalmente, uma noite, Narciso deixou Cláudio
na gruta da Sibila e voltou para Herculano, com a intenção
de pôr fogo no estúdio e queimar todos os livros. Aquela
noite foi a de 24 de agosto de 79 d.C.
- Quando todo o resto desapareceu em chamas, exceto
aquela sala - murmurou Costas.
- O concilium não tinha jeito de saber se Narciso tinha tido
sucesso ou não. Mas, com o desaparecimento de Herculano
durante a erupção, a ameaça parecia ter-se extinguido para
sempre - disse o homem. - O documento, o falso evangelho,
foi recordado como herético, como a primeira de muitas
falsificações que tinham a intenção de derrubar a Igreja, e
como a primeira das muitas batalhas que foram ganhas pelo
concilium. Então, mais de mil anos depois da queda de
Roma, os reis Bourbon de Nápoles começaram a escavar o
sítio de Herculano, e uma verdade agourenta foi revelada. A
cidade de Herculano não tinha sido destruída na erupção.
Ela tinha sido milagrosamente preservada. Pior ainda, um
dos primeiros locais a ser explorado foi a Vila de Calpúrnio
Piso, a Vila dos Papiros, que o concilium sabia que tinha sido
o esconderijo de Cláudio. Em seguida, muito pior ainda, os
livros começaram a ser encontrados, manuscritos
carbonizados, mas alguns deles ainda legíveis. O concilium
não teve escolha a não ser agir. Durante mais de dois
séculos, o concilium tem feito tudo em seu poder para
prevenir explorações posteriores em Herculano, na Vila dos
Papiros. Tem usado quaisquer meios a sua disposição.
Infiltrou-se no meio de autoridades arqueológicas, no
serviço do museu, na polícia, na máfia. A corrupção em
Nápoles não seria tão desenfreada se o concilium não
quisesse que fosse assim, o poder do submundo não seria tão
grande se ele não o apoiasse. O concilium tem toda a riqueza
e os recursos da Igreja à sua disposição, mais do que o
suficiente para escavar inteiramente a cidade de Herculano,
ou impedir sua escavação para sempre. Ou é assim que eles
pensam. Exatamente como em 79 d.C., uma catástrofe
natural interveio de novo. O terremoto do mês passado
revelou aquele túnel que tinha sido lacrado no século XVIII,
aquele que podia abrigar mais manuscritos, que levava à sala
de Cláudio. De repente, com toda a imprensa do mundo
presente, não havia mais maneira de impedir uma
investigação. O trabalho do Diabo podia ainda tornar-se
público. Foi quando vocês foram chamados à cena.
- Puxa! - Costas tinha se sentado apoiado na tumba, depois
subitamente percebeu o que tinha feito e deu um pulo,
limpando o gesso. - Isto explica algumas coisas.
- Isto não explica quem é você, e como resolveu contar estas
coisas - disse Jack. - Você é um membro do concilium?
Houve um silêncio, e em seguida o homem falou
novamente. - Durante muitos anos fui missionário jesuíta.
Uma vez, em uma canoa no lago Petén, no Yucatán, eu vivi
uma manifestação divina, uma experiência reveladora.
Quando se está na água, o movimento dela parece, ao
mesmo tempo, concentrar e libertar a mente, até que se
chega a não pensar em nada a não ser naquilo que se está
experienciando, as sensações do momento. - O homem fez
uma pausa, e Jack assentiu com a cabeça, sentindo que este
podia ser um homem em quem podia confiar. - Comecei a
pensar em Jesus no mar da Galiléia. Comecei a pensar que o
mar era seu Reino dos Céus, que sua mensagem para os
outros era que aquele Reino podia ser encontrado, do
mesmo modo que ele havia encontrado. Que o Reino dos
Céus se encontra na Terra.
- Como esta experiência o fez se desviar do concilium? -
perguntou Jack.
- Ame o seu próximo, porque é mais fácil que odiá-lo.
Ofereça a outra face, porque é mais fácil do que resistir.
Liberte sua mente de tais preocupações, e concentre sua
energia na descoberta do Reino dos Céus. Esta era a
mensagem de Jesus. O concilium tinha uma causa sagrada,
mas não prestava atenção a esse chamado. A procura por
heresia, por blasfêmia, se tornou completamente
desgastante, e o objetivo do cristianismo foi perdido. Os seus
métodos se tornaram mórbidos. E agora há um entre os três
membros que se dirigiu para uma região remota e escura,
como já aconteceu com outros no passado. O Diabo atingiu
sua meta e arrastou-o para dentro de seu rebanho.
- Quem é ele? E como você sabe sobre nós?
- Vocês já chamaram a atenção do concilium antes. Aquele
de quem eu falo também era membro da fraternidade
nórdica que preservava o segredo do tesouro perdido do
Templo dos judeus, o félag, o companheiro.
- E foi quem assassinou o padre Patrick O'Connor - disse
Jack severamente.
- Meu amigo e um notável erudito. Assassinado cruelmente
e sem necessidade em nome da Igreja, parece.
- Os instrumentos usados pelo concilium sempre foram
insensíveis. Mas agora eles recrutaram forças das trevas bem
além do alcance de Deus. - O homem fez uma pausa e
mergulhou no meio das sombras, sua voz agora era pouco
mais que um sussurro. - O padre O'Connor era meu amigo.
Era o outro iniciado, anos atrás, que encontrou este lugar
comigo, a tumba de são Paulo. Investigou muito
profundamente um passado que o concilium não queria que
fosse revelado. Ele sabia acerca deste livro que eu seguro
agora em minhas mãos. Acreditava que a vida de um cristão
devia ser uma vida de verdade. E eu também acredito.
- Você pôs sua vida em risco - disse Jack.
- Tenho feito tudo que posso para proteger vocês. Você
deve jurar manter segredo de tudo que eu disse até que eu
possa me revelar. Tenho que continuar a trabalhar no
interior, no lugar onde eu me encontro. E você deve
compreender. Onde a verdadeira palavra de Jesus for
encontrada, o concilium se regozijará. Onde a palavra provar
ser falsa, como eles acreditam que possa ser, então os cães de
guerra serão soltos para devorar aqueles que a transmitirão,
aqueles que espalharão tal blasfêmia. Vocês devem ser
cuidadosos. Não tentem me encontrar novamente. Agora
vão.

Meia-hora mais tarde, Jack e Costas estavam sentados no alto
sobre o topo do telhado ao lado da abóbada da São Pedro,
espirrando água e deixando-se penetrar pelo sol da tarde
enquanto olhavam para a grande Praça Bernini lá embaixo.
Além das amplas colunas dispostas em semicírculo que
rodeavam a praça, eles podiam distinguir o Castelo Santo
Angelo, o antigo mausoléu dos imperadores romanos ao lado
do rio Tibre, e, mais ao sul, podiam ver o coração da antiga
cidade, o Capitólio e o monte Palatino. Costas reclinou-se
sobre os cotovelos, o rosto inclinado e os olhos fechados
atrás de seus óculos de sol de grife. - Considerando tudo, eu
prefiro ficar no alto que no subterrâneo - ele murmurou.
- Acho que já tive o suficiente de lugares subterrâneos
úmidos. - Olhou atentamente para Jack. - Você confia nesse
sujeito?
- O que ele disse nós já tínhamos adivinhado, e o resto se
ajusta perfeitamente.
- Não confio em ninguém que envia um outro para me
apontar uma arma, desertor ou não.
- O momento crítico vai ser quando e se realmente
encontrarmos algo.
- Ou se ficar claro que não vamos encontrar - disse Costas. -
Eu não posso imaginar que queiram nos ver contar nem a
metade desta história. A lista crítica se torna maior com cada
nova pessoa que comprometemos nisto, Jack. Heibermeyer
e Maria devem estar no topo da lista. Jeremy foi visto
conosco, por aquele sujeito que nos deu a mensagem em
Londres. Só Deus sabe o que mais foi ouvido sem que
saibamos, quando conversávamos na catedral. Deveríamos
ter sido mais cuidadosos.
- O sujeito que eu conheço na Reuters se encontra à
distância de um telefonema apenas.
- Não há uma evidência sólida, Jack. Esse concilium pode ser
uma completa invenção de nossa imaginação. E qualquer
repórter investigativo vai pensar duas vezes antes de aceitar
uma informação como esta. - Ele mostrou com o polegar a
abóbada atrás deles.
- Nós simplesmente temos que confiar que o homem lá
embaixo seja realmente quem diz que é - murmurou Jack. -
E que Jeremy consiga algo em Londres.
Costas resmungou, e deitou-se. Jack ainda estava repetindo
de memória o que tinham ouvido. Tinham mais uma hora
para esperar antes que chegasse o táxi que os levaria para o
aeroporto, e ele falara pelo celular com os Hiebermeyer e
seu antigo mentor, o professor Dillen, informando-os sobre
os últimos acontecimentos, passando cuidadosamente em
torno das desmedidas revelações que lhes haviam sido feitas
havia pouco. Muitas peças do quebra-cabeça tinham se
ajustado, mas ele estava apenas começando a registrar a
enormidade da dificuldade com a qual tinham de lidar.
Concentrou-se na vista que se descortinava abaixo deles. Era
alguma coisa para desviar o seu pensamento, sabendo que
não havia nada que pudessem fazer, não havia indícios que
pudessem seguir até que Jeremy esgotasse todos os possíveis
caminhos de averiguação na Inglaterra. - Alguns dias atrás
você me perguntou acerca do tamanho do navio de são
Paulo - ele disse a Costas, guardando o celular no bolso. - Dê
uma olhada no centro da praça.
Costas se ergueu, e olhou por cima do parapeito. - O
obelisco?
- Trazido do Egito para cá pelo imperador Calígula, para
decorar a parte central do circo que havia neste local, o lugar
onde Pedro e Paulo foram executados - disse Jack. - Tem
vinte e cinco metros de altura e pesa pelo menos duzentas
toneladas. Esta é a melhor maneira de medir exatamente o
tamanho dos maiores navios romanos, inclusive o navio
com carregamento de grãos como aquele que Paulo trazia. O
navio portador do obelisco foi afundado por Cláudio em seu
novo ancoradouro em Óstia, enchendo-o com concreto
hidráulico para fazer um dique. Plínio, o Velho, relata tudo
isto em sua História natural.
- Bom velho Plínio - murmurou Costas, depois se deitou
outra vez para curtir o sol. Jack olhou atentamente ao redor
para várias outras pessoas que tinham vindo para o telhado
da abóbada, com os olhos alertas em busca de qualquer coisa
suspeita, sua vigilância aumentada depois da advertência que
ouviu nas catacumbas. Não tinham motivo para acreditar
que estavam sendo seguidos, e provavelmente estavam mais
seguros ali do que na cidade lá fora. Jack relaxou
ligeiramente, e olhou de novo sobre o parapeito. Tinha uma
ampla visão da praça, cuja grandeza equivalia aos
monumentos da Roma pagã, igualando-os, mas não os
obscurecendo. Jack observou as pessoas que cruzavam a
praça distante. Era como se estivesse vendo uma imagem
gerada por computador de um épico de Roma produzido por
Hollywood, da Roma da maneira que as pessoas pensavam
sobre ela, não da maneira que era, como se, com uma
inspeção mais atenta, as pessoas lá embaixo revelariam ser
não de carne e sangue, mas figuras de madeira, meros
ornamentos da arquitetura, transitórias e sem significado.
Jack pegou sua carteira no bolso e tirou um papel que cobria
a moeda de Cláudio que encontraram em Herculano,
retirou-a do papel e segurou-a no alto de modo que ela
tampava a sua visão da praça entre a seqüência de colunas do
telhado.
- O meu achado! Você o roubou. Bom homem. Ninguém
jamais a veria novamente se a tivéssemos deixado por lá. -
Costas estava olhando com atenção para Jack e para a
moeda.
- Eu a peguei emprestada.
- Certo.
- Estou pensando nas pessoas de novo - disse Jack. - Acho
que história é dirigida por pessoas, não por processos.
Aquelas pessoas lá embaixo são pessoas reais, e elas não estão
subordinadas a toda esta coisa. Em algum lugar lá embaixo
existe alguém que poderia criar algo mais grandioso que a
Catedral de São Pedro ou destruí-la. Essas decisões são
individuais, dependem de suas próprias fantasias, isto faz a
história. E a beleza disso é que as pessoas também se
divertem. Veja para onde Cláudio nos conduziu.
- Divertimento não é exatamente a palavra que me vem a
mente, Jack. - Costas ficou de bruços. - Deixe-me ver. Ratos
mortos, água de esgoto, secreções corporais, uma
aterrorizante rainha que prediz a morte.
- Mas você conseguiu uma bomba não detonada.
- Nem consegui desativá-la.
O telefone de Jack produziu um som melodioso, e ele
rapidamente embrulhou a moeda e colocou-a no bolso.
Pegou o telefone, ouviu com atenção durante alguns
minutos, falou brevemente e depois o recolocou no bolso.
Ele mostrava um amplo sorriso no rosto.
- E então? - perguntou Costas. - Você está de novo com
aquele olhar.
- Era Jeremy. Ele teve um pressentimento e fez uma busca
nos registros de mortos disponíveis na web. Pesquisou todos
os lugares óbvios onde Everett poderia ter desaparecido em
1912, Austrália, Canadá, Estados Unidos. Você vai adorar
isto. O avião Embraer da IMU está sendo abastecido com
combustível enquanto falamos.
- Ponha-me à prova.
- Quando foi a última vez que você esteve no sul da
Califórnia?

CAPÍTULO 19

Jack estava se esforçando para recuperar a consciência e
percebeu a vibração do avião, onde estava encostado contra
o vidro da janela. Imagens tinham circulado por sua mente,
sensações e lembranças de suas extraordinárias descobertas
dos últimos dias. O símbolo Qui-Rô no antigo navio
naufragado, o nome rabiscado de são Paulo. A cabeça escura
de Anúbis olhando de soslaio para o túnel como um
demônio, convidando-os a entrar na câmara que se
encontrava atrás dele. Outros lugares escuros, a gruta da
Sibila, o labirinto subterrâneo em Roma, a cabeça escurecida
da rainha britânica morta havia muito tempo, olhando para
ele de sua tumba. Imagens ao mesmo tempo vívidas e
opacas, desarticuladas, mas de algum modo mantidas juntas,
imagens que retornavam repetidas vezes, como se ele
estivesse preso em um movimento circular contínuo.
Sentiu-se como Enéias no mundo subterrâneo, embora sem
a Sibila para guiá-lo de volta, apenas com alguma força
maligna que o empurrava para baixo enquanto ele lutava
para encontrar a luz, prendendo-o em uma armadilha dentro
de um labirinto escuro de seu próprio imaginário. Ele se
sentiu perturbado, confuso, e foi um alívio abrir os olhos e
ver a figura confortadora de Costas inclinada no assento
oposto. Percebeu que a sensação de opressão em sua cabeça
tinha sido aumentada pela pressão do ar durante a descida, e
expirou pelo nariz para equalizá-la. O ruído que o avião da
Embraer fazia com seus dois motores a jato varreu as
imagens de sua mente. Jack inclinou-se para frente e olhou
pela janela.
- Algum sonho ruim? - Jeremy estava na mesma ala, sentado
ao seu lado, e fechou o velho notebook onde estivera
estudando.
Jack resmungou. - É como se os ingredientes estivessem
aqui, mas não estamos obtendo um resultado. Esta viagem é
tudo ou nada. Se não chegarmos a nada hoje, eu fico sem
opções. - Respirou profundamente, acalmou-se, depois
olhou com curiosidade para o livro de Jeremy. - É sobre
criptografia?
- Esta é uma das minhas paixões do tempo de criança. Eu
examinava todos os códigos quebrados pelos aliados durante
a Primeira Guerra Mundial. Estava apenas tentando
recuperar minha rapidez. Estava olhando para alguns
acrósticos cristãos iniciais que eram criptografias. Percebi
que é difícil ser muito hábil neste jogo.
- Parece - disse Jack coçando a barba curta - que você tem as
qualidades essenciais de um arqueólogo. Maria tinha razão.
Talvez eu deva desistir agora e deixar tudo isto em suas
mãos.
- Talvez dentro de vinte anos - replicou Jeremy pensativo,
depois sorriu para Jack. - Isto me daria tempo de passar na
seleção para as forças especiais, para aprender tudo que é
necessário saber para mergulhar, sobre armas e helicópteros,
saber o nome de alguns, vencer todo medo e, mais
importante ainda, descobrir como lidar com o seu estimado
colega sentado na nossa frente.
Costas gemeu e roncou em seu sono, e Jack riu. - Ninguém
lida com ele. Ele é o chefão por aqui.
- O problema é que, num período de vinte anos, todos os
mistérios do mundo estarão resolvidos.
- Nisso você está errado - disse Jack com fervor. - Se há
alguma coisa que eu aprendi, é que o passado é como era o
Novo Mundo para os colonizadores. Você acha que já
encontrou tudo, depois vira uma esquina e um novo El
Dorado aparece no horizonte. E olhe onde estamos hoje. Os
maiores mistérios podem sempre estar aí, chamando-nos
com um gesto, e nunca conseguirmos resolvê-los.
- Todas as coisas deixadas incompletas se reúnem, a virtude
é recompensada - murmurou Jeremy. - Ninguém quer um
final convencional.
- E você não encontrará um final comigo - sorriu Jack. -
Outra coisa que eu aprendi é que o tesouro encontrado
raramente é aquele que se estava procurando.
- Aqui está. - A aeronave inclinou-se e fez uma curva
fechada a bombordo, e Jeremy apontou para o contorno da
costa cerca de dez mil pés abaixo. - Pedi para o piloto nos
conduzir para entrarmos em Los Angeles pelo norte, para
termos uma visão de Malibu. É uma vista bastante
espetacular.
- Praias - murmurou Costas. - Dá para surfar bem? - Ele
dormira a viagem inteira desde o aeroporto John E Kennedy
em Nova York, e antes disso, durante a maior parte da
viagem transatlântica de Londres. Parecia ter acabado de sair
de um estado de hibernação, e inclinou a testa contra o
vidro da janela enquanto olhava com olhos lacrimejantes
para baixo.
- Nada mal - replicou Jeremy. - Não que eu conheça as
praias, é claro. Quando estive aqui, fiquei trabalhando em
minha tese.
- Certo. - Costas ainda soava como se estivesse com o nariz
obstruído, mas o pior de seu resfriado parecia ter passado. -
Estou olhando para frente a fim de descobrir o que estamos
fazendo aqui, Jeremy, mas não estou reclamando.
- Contei toda a história a Jack enquanto você estava morto
para o mundo. Encontrei John Everett no registro de mortos
do estado da Califórnia. Mesma data e local de nascimento,
não há dúvida sobre a identidade. Ele vivia ao norte daqui,
em Santa Paula, onde chegou aqui depois de deixar a
Inglaterra. Por causa de um pressentimento, telefonei para
um amigo em Vila Getty E acontece que ele pode nos
contar mais, muito mais. Para começar, Everett era católico
romano, um convertido.
- Hein? - Costas esfregou os olhos. - Pensei que tudo isto
fosse sobre a Igreja da Grã-Bretanha, sobre algo tão distante
de Roma quanto possível.
- É isto que espero que esta viagem esclareça para nós.
- Então, não estamos indo surfar?
- A pista está aquecida novamente, Costas - disse Jack.
- Vocês podem vê-la agora - disse Jeremy. - A Vila Getty.
Ela está situada na fenda, lá nas colinas, contemplando o mar
das alturas.
Jack examinou com cuidado o agrupamento de construções
visíveis exatamente em frente à rodovia costeira.
Subitamente, foi como se tivesse voltado para Herculano,
olhando para o plano da Vila dos Papiros feito por Karl
Weber mais de dois séculos antes. Podia ver o grande pátio
rodeado por colunas, estendendo-se em direção ao mar,
com a parte principal da estrutura da vila aninhada ao fundo,
na parte de trás do vale.
- A única coisa que é bastante diferente é o alinhamento -
disse Jeremy. - A vila em Herculano fica paralela à linha da
costa, com o pátio e as construções muito próximas à frente
do mar. Tirando isso, a Vila Getty segue fielmente o plano
de Weber. É uma criação fantástica, o tipo de coisa que só se
torna possível com a filantropia americana, com visão livre e
uma riqueza ilimitada. Ele é também um dos museus de
melhor qualidade em todo o mundo no que diz respeito a
antiguidades, e é o local onde consegui escrever o melhor de
meus trabalhos. O que quer que seja que nos aguarda lá
embaixo, vocês estão aqui como convidados.

Três horas mais tarde, estavam parados ao lado de uma
piscina retangular pouco luminosa no pátio principal da Vila
Getty. Tinham entrado, sem serem parados, por uma porta
pequena na extremidade oeste, e agora estavam parados
imóveis como as estátuas que enfeitavam o jardim,
transpirando muito sob a luz solar e a luminosidade da cena.
Era como se tivessem entrado em um cenário para filmar
um épico romano, além do mais com uma familiaridade e
detalhes raramente vistos nos amplos panoramas da história.
A piscina media aproximadamente cem metros de
comprimento, estendendo-se do pórtico frontal da vila para
o lado que dava para o mar onde eles tinham caminhado
vindos da rodovia costeira. Em cada extremidade da piscina
havia reproduções de antigos bronzes encontrados na vila
em Herculano, um Sileno embriagado e um fauno
adormecido, e oposto a eles havia um Hermes sentado, tão
semelhante à realidade que parecia prestes a entrar na
piscina a qualquer momento. Entre a piscina e as colunas do
pórtico que rodeavam o pátio havia árvores e canteiros de
plantas que faziam com que o mármore parecesse ser
saliências naturais do leito rochoso, rodeado e protegido pela
vegetação. O jardim inteiro era uma extensão ordenada do
mundo exterior, isolado e protegido pelo engenho humano.
A piscina refletia as colunas e as árvores, criando uma cena
ilusória como as pinturas nas paredes que eles quase podiam
distinguir no interior do pórtico, como se estivessem sendo
puxados além do jardim para outras criações fantasiosas da
mente humana, e não para a realidade desordenada do
exterior. Jack se lembrou da parede pintada do Vesúvio que
havia mostrado para Costas quando voaram em direção ao
vulcão, uma imagem que resumia todos os sonhos idílicos da
antiga Roma, um resplendor débil por cima da realidade que
fez voar pelos ares e destruiu completamente o caminho
naquele dia fatal quase dois mil anos antes.
- Tudo é autêntico - disse Jeremy. - O plano da vila está
baseado no documento original de Weber da vila que ele viu
nos túneis no século XVIII, e as estátuas são reproduções
exatas dos originais que foram encontrados naquela época.
Até a vegetação é autêntica, há romãzeiras, loureiros,
palmeiras em forma de leque trazidas do Mediterrâneo.
Jack fechou os olhos, depois os abriu novamente. As colinas
da Califórnia tinham o mesmo aspecto, uma beleza
queimada pelo sol que ele amava no Mediterrâneo, e o
aroma das ervas e do mar que chegavam até ele. A vila não
era uma interpretação do passado, mas uma perfeita
representação daquele passado, repleta de luz e sombra,
animada por pessoas gesticulando e respirando. Poucas
outras reconstruções históricas fizeram isso por ele, e aqui
ele se sentia bem. Quando olhava para a vila, colorida e
precisa, em sua mente ele via as construções escavadas de
Herculano movendo-se repetidamente em segundo plano
como um negativo fotográfico. Surpreendeu-se lembrando-
se dos tempos em que tinha testemunhado a morte, o
momento de transição quando o corpo subitamente se torna
uma casca, quando a cor se torna cinza. Depois da visão
daquela transição, Herculano ficou muito opressiva para
confortá-lo, mais difícil de observar do que outros lugares
que tinham deteriorado e se tornado encobertos pelo tempo
como velhos esqueletos. Era o cadáver destruído de uma
cidade, ainda cheirando desagradavelmente e cheia de lodo,
como uma vítima queimada depois de um terrível acidente.
No entanto, aqui na Vila Getty parecia que alguém havia
injetado uma grande quantidade de adrenalina dentro do
cadáver, como se o antigo lugar tivesse se recuperado
milagrosamente, estivesse pulsando novamente e
sobressaindo-se com uma clareza deslumbrante.
- Somente na América pode existir algo assim - disse Costas.
- Acho que pelo fato de Hollywood estar distante apenas
poucas milhas da costa, isto é o que se deve esperar.
- Quando a vila foi inaugurada em 1974, a reação foi de
assombro - disse Jeremy. - Muitos a criticaram acerbamente.
Os romanos algumas vezes recebem comentários muito
ruins da imprensa por aqui. Na vila há influência da Bíblia e
Hollywood, do universo de Pôncio Pilatos, imperadores
devassos, que atiravam os cristãos aos leões. Quando a vila
foi aberta, foi uma revelação. A cor, o brilho, o gosto.
Alguns eruditos se recusaram a acreditar no que viam.
- Este lugar se refere totalmente à arte no seu conjunto -
disse Jack. - Colocar a arte de volta onde ela deve estar para
ser vista é com freqüência um choque para a sensibilidade
moderna. Os aristocratas europeus que pilharam a Grécia e
Roma achavam que estavam fazendo isso, conseguindo
estátuas para pôr em pedestais em suas casas de campo de
estilo neoclássico, mas a idéia que tinham de contexto
clássico estava mais baseada nas ruínas embranquecidas da
Grécia que na realidade de Pompéia e Herculano. Aqui se
trata da coisa real, com obras como estes bronzes vistas
como componentes de um todo mais amplo. Com a vila
sendo em si mesma uma obra de arte. Os estudiosos clássicos
durante muito tempo veneravam estas coisas como obras de
arte no sentido moderno. O que os críticos não apreciaram é
que a vila fazia com que eles parecessem frívolos, a coisa
toda era mais excêntrica e divertida que aquilo que
esperavam. Mas é com isto que ela realmente se parecia.
- E é isto que gosto nela. - Costas agachou-se com uma
moeda presa na curvatura do dedo e avaliou o comprimento
da piscina. - Se os romanos podiam se divertir, eu também
posso. - Jack lhe lançou um olhar de advertência quando um
homem apareceu pela entrada do pórtico e caminhou
animadamente ao lado da piscina em direção a eles. Era de
altura média, e usava uma barba curta. Ergueu a mão para
cumprimentar Jeremy, que fez um gesto em direção a Jack e
Costas.
- Permitam-me apresentar-lhes George Maclean - disse
Jeremy. - É um velho amigo, meu mentor quando eu estive
aqui. Está trabalhando temporariamente na Brigham Young
University. Permanentemente, parece.
Costas e Jack trocaram apertos de mão com ele. - Obrigado
por nos receber tão rapidamente - disse Jack calorosamente.
- Sua permanência aqui tem algo a ver com o projeto dos
papiros de Herculano desenvolvido pela universidade?
- Foi por isso que vim para cá - disse Maclean. - Sou um
especialista em Filodemo, e a espectrometria de
infravermelho nos antigos manuscritos estava me
submergindo com o novo material. Preciso de um espaço
para respirar, algum lugar onde possa colocar tudo em
perspectiva.
- E nada melhor do que a própria Vila dos Papiros. - Jack
sorriu e fez um gesto mostrando ao redor. - Sinto inveja. -
qualquer momento em que desejar passar um ano sabático
aqui, faça-me saber - Maclean sorriu. - A sua reputação o
precede.
Jack sorriu. - Fico agradecido. - Olhou para Jeremy. - Talvez
dentro de mais ou menos vinte anos.
- Eu sei que vocês também se beneficiam de uma fundação
particular na IMU - disse Maclean.
- Você conhece Efram Jacobovich, nosso benfeitor?
- Ele também é membro do nosso conselho de curadores.
- Sei que ele se ofereceu para financiar inteiramente a
escavação da Vila dos Papiros - disse Jack.
- Ele não é o único. Há uma fila de filantropos batendo à
porta.
- Batendo suas cabeças contra uma parede de tijolos, você
quer dizer - comentou Costas.
- Com um pouco de sorte - disse Jack para Maclean -, você
pode nos ajudar a derrubar aquela parede.
Maclean olhou com atenção para Jack, os olhos se
estreitando, depois assentiu com um gesto de cabeça. -
Entendi, pelo que disse Jeremy, que vocês estão com um
horário apertado. Sigam-me.
Ele os conduziu ao longo de uma lateral do pátio rodeado
por colunas, em seguida em direção ao pórtico oeste da vila,
passando pelas portas de bronze abertas que serviam de
entrada para o museu. Subiram um lance de escadas de
mármore para o andar superior, e chegaram a um segundo
pátio interior, outro lugar perfumado e colorido, verdejante
e ressoando com os esguichos e a espuma efervescente das
fontes. Debaixo do telhado coberto com telhas, fileiras de
colunas desciam para rodear um jardim distribuído
proporcionalmente da maneira romana, com estátuas de
bronze de cinco donzelas no centro parecendo extrair água
de uma poça. Novamente Jack sentiu a proximidade
extraordinária do passado. O que quer que ele ainda
obtivesse neste dia, esta vila romana na Califórnia tinha sido
um revelação inesperada, uma nova imagem vívida do
mundo antigo.
Costas parou perto da balaustrada, e abaixou a cabeça. - A
menos que eu esteja enganado, era para cá que o velho
Anúbis deveria vir.
Maclean olhou para baixo. - Jeremy contou-me sobre isso. É
um achado incrível. Talvez acrescente um aspecto
ligeiramente mais negro a este local, embora ele possa
simplesmente ter sido uma curiosidade recuperada por
Calpúrnio Piso de um negociante na Grécia ou em
Alexandria. Pessoalmente, o meu voto é para Sais, no delta
do Nilo, onde Heródoto descreve a existência de uma galeria
inteira com este tipo de coisas. Se vocês algum dia
retornarem para a vila e puderem fazer um escaneamento a
laser, isto seria uma magnífica retribuição. Fazemos questão
de autenticidade aqui.
- Vou conseguir que o nosso colega Maurice Hiebermeyer
venha para cá.
- Ah! Bom velho Maurice.
- Você o conhece? - Perguntou Jack
- Eu o encontrei cerca de três meses atrás, em uma
conferência. Estava todo excitado com uma descoberta ao
lado do mar Vermelho, mas não queria falar muito no
assunto. Estava indo contar-lhe acerca disso. Você estava em
Istambul, eu acho.
Jack lançou para Costas um olhar culpado. - Este é o nosso
próximo projeto. Depois do papiro sobre a Atlântida,
qualquer coisa que Maurice descubra, estamos dentro.
Enquanto isso, ele está afundado até o pescoço dentro da
burocracia italiana.
- Esse é outro dos prazeres de estar aqui - disse Maclean. -
Você obtém todas as glórias do passado, mas nenhum dos
impedimentos que a moderna arqueologia encontra.
- Espero intensamente que isto continue assim - disse Jack,
olhando para o pátio. Estreitou os olhos, e falou de memória.
- "Jardins encantadores e fileiras de colunas requintadas e
tanques de lírios rodeando-as, espalhando-se tão distantes
quanto os olhos em êxtase podiam alcançar" - ele
murmurou. - A palavra de Herodes Agripa, rei da Judéia, em
uma carta para sua esposa Cipros. Sempre vou me lembrar
daquela descrição, pois eu a traduzi pela primeira vez das
histórias de Tácito quando era estudante. Sempre se pensou
que Herodes era um anticristão, o homem que ordenou a
execução de Jesus, mas para mim aquelas palavras poderiam
estar descrevendo uma antiga imagem do céu.
- Herodes Agripa, o amigo de Cláudio? - perguntou Costas.
- É ele mesmo.
Costas examinou o pátio cuidadosamente. - Então, se esta é a
vila onde Cláudio terminou os seus dias, ele não abandonou
completamente uma vida de prazeres - ele disse.
- Ele tinha esta vila para olhar, é claro, mas acho que Cláudio
se importava muito pouco com ela - replicou Jack. -
Contanto que tivesse seus livros e as estátuas de seus amados
pai e irmão, provavelmente ficaria contente em levar uma
vida miserável em uma caverna com cheiro forte e
desagradável no monte Vesúvio.
- Cláudio? - perguntou Maclean, confuso. - Qual Cláudio?
- O imperador romano Cláudio.
- Jeremy não mencionou nenhum imperador. - Maclean fez
uma pausa, e depois olhou para Jack de modo gozador. -
Acho que vocês têm algumas explicações a dar.
- Nós temos - Jack sorriu. - Conduza-nos.
Maclean os dirigiu alguns passos adiante para uma sala nos
fundos do pórtico. Abriu a porta, introduziu-os e fez um
gesto em direção à mesa de mármore no centro. - Pedi café
e mais algumas coisas. Estão com fome?
- Pode apostar. - Costas se lançou sobre um prato de
croissants e Maclean verteu o café. Depois de alguns
momentos, fez um gesto para três lugares ao redor da mesa,
caminhou ao redor dela até o outro lado com a sua xícara de
café e sentou-se.
- Muito bem. - Jack sentou-se na cadeira do meio, e
inclinou-se adiante. -Você sabe por que estamos aqui.
- Como eu disse, Jeremy me pôs a par. Ou, pelo menos,
acho que ele o fez. - Maclean girou em sua cadeira a fim de
olhar para Jack, depois tomou um gole de café e colocou a
xícara sobre a mesa. - Quando Jeremy conseguiu sua bolsa
de estudos aqui, nós trabalhamos intimamente ligados, e
quando me telefonou ontem, ele descobriu que tenho
interesse em John Everett. Eu sempre mantive isto
reservado, mas é claro que lhe contei quando ele perguntou.
É incrível. Pensei que eu fosse o único, mas houve uma
outra inquirição esta manhã.
Jack pareceu alarmado. - Quem?
- Um endereço anônimo de correio eletrônico.
- Você respondeu?

- Depois de minha conversa com Jeremy, achei mais
prudente alegar ignorância. Mas percebi que era alguém que
não queria ir embora. Verifiquei as re-servas de entradas
para o museu feitas on-line, e alguém, com o mesmo
endereço anônimo, reservou uma entrada para amanhã.
- Poderia ser uma coincidência - murmurou Jeremy. - Não
posso imaginar como eles ficaram sabendo.
- Quem ficou sabendo? Com quem você conversou sobre
isto? - perguntou Maclean.
Jeremy ficou silencioso por um momento, olhou para Jack e
depois de novo para o outro lado da mesa. - Eu não lhe
contei tudo. Disse que nós achamos que Everett tinha algo
extraordinário para esconder, um manuscrito cristão dos
primeiros tempos. Esta é a peça-chave. Vamos ouvir o que
você tem a dizer, e depois direi o resto.
Maclean parecia perplexo. - Eu não tenho motivos para ser
discreto. Meu conhecimento, as coisas aqui estão
disponíveis para todos. Este é o caráter fundador distintivo
do museu.
- Infelizmente, isto seguiu um caminho que ultrapassa a
erudição - disse Jack. - Há muito mais coisas em jogo aqui.
Vamos ouvir tudo o que você sabe, depois o poremos a par
rapidamente antes de deixarmos esta sala.
Maclean pegou uma caixa de documentos. - Concordo. Não
tenho certeza para que lugar vocês estão se dirigindo com
isto, mas posso lhes dar uma biografia romanceada.
- Diga-nos.
- O motivo pelo qual sei acerca de Everett é que ele se
correspondia com J. Paul Getty, o fundador do museu. As
freiras que cuidavam de Everett no final de sua doença
encontraram o papel timbrado de Getty entre seus
pertences, e alguns desenhos de arquitetura. Elas pensaram
que isso poderia nos interessar. Eu os encontrei por acaso
quando estava pesquisando o início da história da Vila Getty,
e achei que eles poderiam ter alguma relação com o
interesse da família de Getty por antiguidades. - Abriu a
caixa de documentos e espalhou um punhado de papéis,
páginas amarelecidas cobertas com palavras e figuras feitas
por uma mão cuidadosa e precisa, e uma página com um
plano descartado de uma estrutura absidal. - Everett estava
fascinado com os problemas matemáticos, o jogo de xadrez,
as palavras cruzadas. Há uma grande quantidade deste tipo
de material, muito dele em um estilo que desconheço. Mas,
antes que viesse para a América, ele tinha sido arquiteto, e
há um manuscrito inacabado no qual tenho estado
colocando notas explicativas para publicá-lo. Estava
interessado na arquitetura das primeiras igrejas, nas
primeiras evidências arqueológicas para lugares de culto
cristão.
- Fascinante - murmurou Jack. - Mas por que entrar em
contato com Getty?
- Os dois homens tinham uma quantidade surpreendente de
coisas em comum - disse Maclean. - Getty tinha estudado
em Oxford, Everett em Cambridge. Getty era um anglofilo
apaixonado, e ficara contente em descobrir um espírito afim
na Califórnia. E os dois homens haviam desistido de suas
carreiras profissionais, Getty para ser um playboy milionário
em Los Angeles, Everett para ser um católico asceta. Parece
que entre eles existe um mundo de diferenças, mas sua
correspondência mostra que ambos se liberaram mais ou
menos da mesma maneira. E há um motivo mais particular.
- Continue.
- Getty estivera em Pompéia e Herculano antes da Primeira
Guerra Mundial, havia visitado o sítio da Vila dos Papiros, e
ficara fascinado por ela. Então, no final dos anos 1930,
Everett ouviu falar sobre uma nova descoberta
extraordinária em Herculano, e quis a opinião de Getty
sobre ela. Everett ficou realmente intrigado por ela, a ponto
de ficar obcecado.
- A Casa do Bicentenário? - perguntou Jack.
- Você adivinhou.
Jack se voltou para Costas. - Eu a mostrei para você na nossa
rápida viagem para Herculano, quando chegamos ao local na
semana passada.
- Um outro buraco negro, receio - disse Costas pesaroso. -
Acho que eu ainda estava adormecido.
- Bicentenário refere-se ao aniversário de duzentos anos da
descoberta de Herculano, em 1738 - disse Maclean. - A
escavação foi uma das poucas que ocorreram, em qualquer
escala, desde o século XVIII. O ditador italiano Mussolini
estava por trás disso, fazia parte da sua busca por todas as
coisas romanas. No entanto, parece ter havido resistência da
Igreja aos seus planos de escavação mais grandiosos e o
projeto de Herculano foi quase natimorto.
- Por que isto não me surpreende? - murmurou Costas.
- Eles descobriram uma sala que chamaram de capela cristã -
continuou Maclean. - Deram-lhe esse nome porque
encontraram a inserção da forma de uma cruz no gesso
acima de um gabinete de madeira, como um recinto de
prece. Em uma casa próxima eles encontraram o nome
David rabiscado em uma parede. Nomes hebraicos não são
incomuns em Pompéia e Herculano, mas em geral eles são
latinizados. Pensava-se que Jesus era descendente do rei
David dos judeus, e alguns acham que esta era uma maneira
secreta de se referir a ele, antes que se começasse a usar a
palavra grega para designar o messias, Christos. - Maclean
fez uma pausa e pareceu pensativo. - Esses achados eram
muito controversos, e um número bastante grande de
estudiosos ainda não aceita a interpretação, mas esta pode
ser a evidência arqueológica mais antiga, em qualquer lugar,
de um local para o culto cristão.
- Apenas poucas centenas de metros afastado da Vila dos
Papiros - murmurou Jack. - Eu me pergunto se Everett teve
algum pressentimento, se ele sabia quão próximo se
encontrava da fonte daquilo que possuía?
- Do que vocês estão falando? - perguntou Maclean.
- Primeiro, vamos terminar a história de Everett - disse Jack.
- Você sabe algo mais sobre ele?
Maclean empurrou uma folha que estava sobre a mesa. - O
interesse de Everett pode ter sido um fator de apoio para a
contínua fascinação de Getty com Herculano e pode até ter
ajudado a estimular a criação desta vila. Mas, depois de sua
breve correspondência, Everett deslizou de volta para a
obscuridade. Esta é a única imagem que temos dele, uma
antiga fotocópia de uma fotografia tirada por sua filha. Ela
conseguiu descobrir o seu paradeiro e o visitou em 1955, um
ano antes de sua morte. Eu a encontrei, e consegui esta
fotocópia.
Jack olhou atentamente para a imagem granulada em preto e
branco, quase esmaecida. No centro havia um homem
idoso, bem-vestido, apoiado em bengalas, mas parado em
pé com dignidade, seu rosto virtualmente indiscernível.
Atrás dele havia uma cabana de metal ondulado, enfeitada
com grinaldas de hera e rodeada por uma vegetação
luxuriante.
- Esta foto foi tirada do lado de fora do convento de freiras,
ao lado da cabana onde ele morava havia mais de trinta anos
- continuou Maclean. - As freiras preocupavam-se com ele,
cuidaram dele quando ele ficou muito doente para subsistir
sozinho. Como retribuição ele cuidava de seus jardins, fazia
trabalhos ocasionais. Tinha sido professor de coral em sua
juventude, e cantava música gregoriana para elas. Ele
abrigava mendigos, pessoas fisicamente debilitadas,
alimentava-as e as vestia, sustentava-as em sua cabana, toda
essa coisa de caridade cristã.
- Isto soa um pouco messiânico para mim - murmurou Jack.
- Não acho que ele tinha qualquer ilusão acerca disso -
replicou Maclean. -Mas a Califórnia, em seus dias, era o
mundo de Steinbeck, de Cannery Row e Tortilla Fiat, havia
toda uma subcultura à margem da sociedade. E eram aqueles
com os quais ele se sentia mais à vontade, exilados,
andarilhos, pessoas que tinham abandonado seus próprios
antecedentes e sua educação, como ele próprio. - Fez uma
pausa, e depois falou em voz baixa. - O que vocês sabem
sobre os adeptos de Pelágio?
- Sabemos que de alguma forma Everett estava envolvido
com eles.
- Ótimo. Isto me poupa um bocado de explicações - replicou
Maclean, relaxando visivelmente. - Há uma estranha
conexão entre o pelagianismo e o catolicismo romano. Dois
opostos exatos. Em uma de suas cartas, ele revela suas
crenças em Pelágio, algo sobre o que ele claramente
desejava falar, e isto explica bastante acerca de onde estamos
indo nesta tarde. Era como se ele estivesse vivendo uma
vida dupla, um católico asceta e devoto por um lado, e, por
outro, quase o maior herético radical que vocês possam
imaginar, do ponto de vista da Santa Sé.
- Quando aquela carta foi escrita? - perguntou Jack.
- Por volta da Segunda Guerra Mundial. Já estava bastante
doente nessa época, divagando um pouco, e não houve mais
correspondência.
- Isso explica a coisa - murmurou Jack. - Não acho que ele
teria arriscado revelar isso antes dessa época. - Respirou
profundamente. - Muito bem. O que você sabe sobre as suas
origens?
- É uma história surpreendente. Ele nasceu em Londres, em
Lawrence Lane, onde a família viveu durante gerações. Eles
eram huguenotes, e o seu pai era um arquiteto proeminente.
Ele cursou o Pembroke College, Cambridge, onde se
graduou como wrangler, a mais alta distinção em
matemática oferecida por Cambridge. Um dos seus tutores
foi o filósofo Bertrand Russel. Ofereceram-lhe um cargo
como membro da universidade, mas ele declinou, tendo
prometido para seu pai que faria sociedade com ele. Viveu
dez anos prósperos como arquiteto, irrepreensíveis, casou-
se, teve três filhos, depois seu pai morreu e subitamente ele
abandonou tudo, família, profissão e desapareceu na
América.
- Ele deu alguma explicação? - perguntou Costas.
- Everett se converteu ao catolicismo romano e tornou-se
um religioso devotado. O pai de sua mulher era
violentamente anti-católico. O pai lhe deu um ultimato,
depois livrou-se dele. Foi simples assim. A educação das
crianças foi paga por seu avô, com a condição de que nunca
mais tivessem contato com seu pai. Uma história triste,
porém não única, dada a antipatia que existia entre
protestantes e católicos mesmo na era vitoriana.
- Mas nós sabemos qual foi a razão pela qual ele abandonou
tudo - murmurou Jeremy. - A morte de seu pai, o
testamento, sua súbita responsabilidade pelo valioso objeto
que era uma herança tradicional da família. A questão é por
que ele veio para cá, e o que ele fez com aquele objeto.
- Eu não entendo a conexão católica - disse Costas. - Se ele
tinha aquilo que estamos procurando, então certamente a
grande atração pela América teria sido todos os movimentos
não conformistas, pessoas que teriam escutado avidamente
algo como aquilo que estava com ele, algo que parecia vir
diretamente do Cristo.
- Foi precisamente por causa disso que ele se converteu -
disse Jeremy. - Não haveria lugar melhor para desaparecer
de que dentro dos meandros da Igreja Católica, o lugar
menos provável. Precisava ser cuidadoso, escolher o lugar e
o momento para revelar o que tinha, encontrar alguma
maneira de passar adiante o segredo. E ele já era anglicano,
anglo-católico, de modo que não tinha muito mais práticas
religiosas para levar em conta. Aqui, no seu vale remoto
perto de Santa Paula, ele estava bastante distante do papa e
do Vaticano para ignorar tudo isso durante bastante tempo.
- Ele chegou primeiro a Nova York em 1912, assumiu a
cidadania americana, depois foi para o oeste - disse Maclean.
- De acordo com o que me contou Jeremy, eu agora acredito
que o que ele fez precisou de enorme força de vontade, uma
decisão de preservar um tesouro extraordinário, não para o
seu próprio benefício, mas para o benefício da humanidade,
para o futuro. Uma vez assegurado da educação de seus
filhos, ele fez o maior sacrifício que um pai poderia fazer, e
foi embora aceitando nunca os ver de novo.
- Só espero que tenha valido a pena - disse Costas.
- É para descobrir isto que estamos aqui - disse Jack,
voltando-se para Maclean. - Você sabe mais alguma coisa
sobre a sua vida, qualquer coisa que possa nos fornecer
indícios?
Maclean fez uma pausa. - Agosto de 1914. Os países da
Europa se separam, a Grã-Bretanha se mobiliza. A Primeira
Guerra Mundial inicia.
- Ele vai lutar? - pergunta Costas.
Maclean faz que sim com a cabeça. - Dentro da loucura e do
horror da Primeira Guerra Mundial, as pessoas com
freqüência esquecem que existiam muitos, no início, que
acreditavam que a guerra era justa, uma guerra contra a
desgraça iminente. Em algum lugar na Alemanha, o
imperialismo lança as sementes do nazismo. Everett se
sentiu moralmente compelido a juntar-se aos combatentes.
Winston Churchill escreveu sobre homens como ele. -
Maclean inclinou-se para trás de modo a poder ler a
inscrição debaixo de um retrato emoldurado em sua parede,
mostrando um jovem em uniforme. - "Vindo por sua
própria e livre vontade, sem uma convocação nacional ou
obrigação, um estranho do outro lado do oceano vem para
lutar e morrer em nossas fileiras, ele resolveu pagar um
tributo de excepcional valor para a nossa causa.
Compreendeu que não meramente causas nacionais, mas
causas internacionais da mais alta importância estavam
envolvidas e precisavam agora ser decididas pelas armas."
- Um parente seu? - perguntou Costas.
Maclean sacudiu a cabeça. - Um amigo de Churchill, o
tenente Harvey Butters, da Real Artilharia de Campo (REA),
um americano morto na ofensiva do Somme em 1916. Getty
era um grande admirador desses homens.
- Juntar-se aos combatentes teria sido consistente com o
senso de responsabilidade que levou Everett a sacrificar sua
carreira e sua vida familiar por aquilo que ele estava
escondendo - murmurou Jack.
- Ele foi para o norte, para o Canadá e se alistou. Em 1916,
ele era oficial no regimento dos fuzileiros reais de Dublin, na
linha de frente ocidental. Em junho daquele ano, foi atacado
com gás tóxico e ferido na terrível batalha de Hulluch, perto
de Loos, na França. Durante sua recuperação, suas
habilidades matemáticas foram descobertas, e foi transferido
para a inteligência militar britânica, o original MI-1. Ele
trabalhou no Escritório de Guerra em Londres, e depois foi
auxiliar a inteligência naval do Almirantado, viajando para o
sul, indo trabalhar num complexo altamente secreto
conhecido como Sala 40, e tornou-se decifrador de códigos.
- Aha! - Jeremy inclinou-se adiante, - Criptografia.
- Eles estavam desesperados para conseguir homens como
ele - continuou Maclean. - E foi bem a tempo. O que
aconteceu em seguida pode bem ter ajudado a ganhar a
guerra.
- Continue.
- Vocês já ouviram falar do telegrama de Zimmerman?
- Sim - disse Jeremy imediatamente. - Fez a América
participar da Primeira Guerra Mundial.
- Um telegrama em código enviado em janeiro de 1917 por
Arthur Zimmerman, o secretário alemão de Assuntos
Estrangeiros, para o embaixador alemão no México. Ele
revelava a intenção alemã de iniciar uma guerra submarina
irrestrita, e a ajudar o México a retomar os estados do Sul dos
Estados Unidos. O plano parece ridículo agora, mas era
mortalmente sério na época. Os britânicos interceptaram e
decifraram o telegrama, depois o passaram para o
embaixador dos Estados Unidos na Grã-Bretanha. O
sentimento nos Estados Unidos já era bastante contra os
alemães por causa dos submarinos U-boat que tinham
matado muitos americanos. Pouco mais de um mês mais
tarde, o presidente Woodrow Wilson pedia ao Congresso
para declarar guerra contra a Alemanha.
- Deixe-me adivinhar - disse Costas. - O telegrama foi
decifrado na Sala 40.
- Correto. Os decifradores de códigos na Sala 40 tinham um
livro de códigos para uma versão anterior do criptograma,
roubado de um agente alemão no Oriente Médio, mas,
mesmo assim, a decifração executada pela equipe de
Londres foi um trabalho de gênio.
- E o nosso homem estava envolvido.
- O seu nome nunca foi liberado. Depois da guerra, os
britânicos se esforçaram extraordinariamente para manter as
atividades de seus decifradores de códigos secretas, e só
revelaram o suficiente para contar a história essencial.
Alguns dos decifradores da Sala 40 foram trabalhar em
Bletchley Park durante a Segunda Guerra Mundial, e os seus
nomes nunca chegaram a ser conhecidos.
Costas assobiou. - Então, Everett de fato teve um lugar na
história. Trazendo quase sozinho a América para a Primeira
Guerra Mundial.
- Se você acha que ele ocupa um lugar na história, espere
pelo que vou contar em seguida.
- Continue - disse Jack.
- Uma grande parte do material ainda permanece secreto.
Mas eu sei que ele trabalhou ao lado de dois homens cujos
nomes foram revelados e celebrados, o reverendo William
Montgomery e Nigel de Grey. Desses dois, Montgomery é o
mais intrigante. Ele era pastor presbiteriano, um civil
recrutado pela inteligência militar britânica. Era uma
autoridade reconhecida sobre santo Agostinho, e um
tradutor talentoso do alemão de obras teológicas. Era mais
conhecido por sua tradução da obra A busca do Jesus
histórico, de Albert Schweitzer.
Jack repentinamente sentiu os cabelos se eriçarem na nuca.
- Repita o que disse.
- Albert Schweitzer, A busca do Jesus histórico.
O Jesus histórico. Jack sentiu que ficava tenso com a
excitação, e depois falou calmamente. - Então, tivemos dois
homens, ambos brilhantes decifradores de códigos,
Montgomery e Everett, ambos apaixonados pela vida de
Cristo. Um deles é guardião de um extraordinário
documento antigo, algo que está escondendo em outro
lugar. Talvez o horror daquela guerra, sua experiência de
quase morte, sua convicção de que não iria sobreviver,
provocasse nele uma necessidade esmagadora de partilhar
seu segredo, de assegurar que a tocha fosse mantida acesa
em algum lugar. Ele conta tudo para Montgomery e
inventam um código.
- Isto é pura especulação, mas, se isso de fato aconteceu,
provavelmente foi aqui - disse Maclean.
Jack pareceu espantado. - Você quer dizer aqui? Na
Califórnia?
- Em Santa Paula. Onde Everett passou o resto de sua vida.
Um pequeno convento de freiras nas colinas, situado a
pouca distância do mar, onde Everett encontrou o que
estava procurando quando chegou à América antes de
guerra. Paz, reclusão, uma comunidade em cuja congregação
de fiéis ele podia entrar sem esforço, anonimamente, na qual
podia permanecer pelo restante de seus dias, buscando o
momento e o local adequado para passar adiante seu
segredo.
- Do mesmo modo que o imperador Cláudio, dois mil anos
antes - murmurou Jeremy. - E, exatamente como Cláudio, o
curso da história parece ter tragado os seus planos, a
Primeira Guerra Mundial estourou com ímpeto, assim como
a erupção do Vesúvio no último dia.
- Não compreendo como ele voltou para a Califórnia, como
ele e Montgomery estavam aqui durante a guerra - disse
Costas.
- Isto foi em maio de 1917. A publicação do telegrama de
Zimmerman havia acabado de fazer com que a América
entrasse na guerra. Montgomery e Everett foram convidados
a vir para cá para ajudar a estabelecer uma nova unidade de
decifração de códigos nos Estados Unidos. Isso era altamente
secreto. Mas havia bastante tempo para uma rápida visita à
Califórnia.
- Será que o convento de freiras ainda existe? - perguntou
Jack. Maclean empurrou a cadeira para trás, levantou e
andou até a janela, a voz subitamente cheia de emoção. -
Quase durante toda a minha vida profissional eu morei e vivi
neste lugar. Eu estava aqui quando o museu foi inaugurado, e
realizei o meu melhor trabalho nesta sala. Há uma atmosfera
aqui, uma atmosfera do passado que tem inspirado o meu
trabalho. Uma antiga vila romana nas colinas da Califórnia.
Mas ela também me assombra. Esta sala, onde agora nos
encontramos, é desconhecida, obscura. O museu está
baseado no plano do século XVIII que Weber fez para a Vila
dos Papiros como vemos nos túneis; no entanto, toda esta
seção da vila é conjetural, corresponde a uma parte que
nunca foi escavada. Com as novas descobertas de vocês na
vila, é como se o passado estivesse finalmente vindo à tona,
como se a verdade que criamos aqui estivesse prestes a ser
desmascarada pelo que ela é, como se estivéssemos prestes a
perder toda a solidez e certeza que havíamos criado. Isto é
assustador, mas também excitante. - Ele voltou à mesa, e
pegou um molho de chaves, depois voltou a sentar de
maneira decidida. - Terminei. Mas, antes de irmos, acho que
vocês me devem o resto da sua história. Quero ouvir o que
têm a dizer sobre Cláudio.

CAPÍTULO 20

Três horas mais tarde, Jack estava parado nos limites de um
pequeno vale fora de Santa Paula, nas colinas da Califórnia,
cerca de vinte milhas a nordeste da Vila Getty. Era uma
tarde brilhante, o céu era de um azul profundo e uma brisa
refrescante soprava sobre o vale vinda da costa do Pacífico
ao oeste, fazendo as folhas sussurrarem. Estava parado em
um bosque de nogueiras com nozes maduras e escuras, o
bosque era interpenetrado por ocasionais árvores de
choupo-do-canadá e carvalhos cujo desenvolvimento ainda
estava retardado. As árvores tinham sido plantadas,
deliberadamente, não em fileiras uniformes, mas habilmente
dispostas ao longo de terraços que desciam pelos declives,
dando para cada árvore o espaço para crescer até a
maturidade e em conformidade com os aspectos naturais da
paisagem. A casca das nogueiras era grossa, apresentando
estrias profundas, e cada tronco bifurcado próximo ao solo
dava a impressão de duas árvores que cresceram juntas, os
troncos divergiam para criar espaços vazios que formavam
abrigos de folhagens e que tentavam Jack a entrar mais
profundamente no bosque. Era um lugar mágico e
reservado, completamente separado do mundo exterior, e,
no entanto, revelava toda a luz e a cor que a Califórnia tinha
para oferecer.
Maclean, seguido por Costas e Jeremy, aproximou-se vindo
do lugar onde deixara o carro. - A cabana de Everett era
onde você está parado, e seu túmulo se encontra em algum
lugar por perto - disse Maclean. - Os dois estão
desaparecidos agora, mas, de certa maneira, ele está em todo
lugar aqui. Ele plantou todas estas árvores, planejou toda a
paisagem. Mas espere até ver o que há ali perto. - Continuou
ao longo do caminho e depois mudou de direção ao longo da
linha de um terraço, descendo por um corredor sussurrante
de folhas de nogueiras. Jack deixou-se ficar mais um
momento, depois os seguiu, rapidamente alcançando Costas
e Jeremy. Passaram por um curso de água borbulhante e
chegaram à entrada de um edifício, uma estrutura comprida
e baixa que corria ao longo do declive por um lado e descia
em direção ao vale por outro. As paredes tinham uma base
formada por pedras cortadas irregularmente, e acima delas
eram construídas com tijolos compridos e grossos. Uma
camada de tijolos escuros tinha sido colocada no centro da
parede, pondo em relevo a aparência da fachada. O telhado
era inclinado e coberto com telhas largas e planas amarradas
por outras sobrepostas de forma semicircular, ao estilo
mediterrâneo. Jack parou mais atrás e apreciou a estrutura,
quebrando a cabeça. Tudo parecia estranhamente familiar.
- Bem-vindos ao Convento de Santa Maria Madalena - disse
Maclean.
- Você já esteve aqui antes? - perguntou Costas.
- Só me permitiram o acesso durante o último ano. Ainda é
uma grande revelação para mim. Originalmente, este local
era um retiro jesuíta, uma espécie de típica missão
espanhola, toda feita de lodo seco e gesso caiado - disse
Maclean. - Depois, foi completamente reconstruído no
início do século XX. O que vocês vêem aqui é uma das jóias
arquitetônicas da Califórnia. - Olhou para Jack. - Você
provavelmente já adivinhou.
- Posso ver que Getty não foi o único a recriar a antiga Roma
- murmurou Jack.
- Quando Everett veio para cá em 1912, a construção da
antiga missão estava desmoronando, era quase não habitável
- disse Maclean. - Além da guerra, esta foi a sua principal
ocupação durante a década seguinte. Construiu isso tudo
virtualmente sem auxílio, até que sua saúde o fez
interromper o trabalho.
- Então, afinal de contas, ele não desistiu da arquitetura -
comentou Costas.
- Longe disso - disse Maclean. - Aqui ele foi realmente capaz
de abandonar-se a sua paixão, capaz de fazer algo que nunca
conseguiria realizar na Inglaterra durante o período
eduardiano. Nos anos 1890, quando ele era um estudante de
arquitetura, as pessoas estavam apenas começando a
perceber como eram bonitas as vilas na região rural da Grã-
Bretanha romana, lugares que estavam sendo escavados
adequadamente, pela primeira vez, naquela época.
- Demorou um pouco, mas eu reconheci a construção -
disse Jack. - É um dos meus lugares favoritos. A vila romana
de Chedworth em Gloucestershire. Até o ambiente é
semelhante, um pouco mais úmido na Inglaterra, talvez.
- Você acertou - disse Maclean. - E a ambientação era
crucial para ele. As grandes casas da Itália romana eram
locais circundados, introspectivos, completamente separados
do mundo natural. Pense na Vila Getty, na Vila dos Papiros.
Há uma vista magnífica para ser apreciada do lado de fora,
mas o pátio rodeado por colunas a exclui, encerra-a dentro
de sua própria organização. E, em lugar de janelas para o
mundo exterior, você tem todas aquelas paredes pintadas
que mostram cenas de jardins e paisagens, deliberadamente
irreais, artificiais, míticas. O lugar inteiro representa um
controle completo sobre a natureza.
- Ou falta de controle - disse Jack.
- Ou negação - disse Costas. - É mais fácil pintar o Vesúvio
na parede de sua vila como uma espécie de sonho dionisíaco
do que olhar pela janela e ver uma realidade que nunca
poderá ter a esperança de controlar.
- Na Grã-Bretanha romana, algo diferente estava
acontecendo - disse Jack. - Vocês lembram de Boudica, dos
druidas? Eles eram pessoas que faziam cultos religiosos em
clareiras na floresta, que não tinham templos. Estavam
muito mais em sintonia com a natureza, viam a si mesmos
como parte dela. A natureza não era algo para eles
controlarem. Então, quando a elite celta queria ter vilas ao
estilo romano, eles as construíam como parte da paisagem,
não excluídas dela. Foi isso que Everett fez aqui. Em lugar de
um pátio rodeado por colunas, há uma única estrutura de
área comprida que se estende ao longo do topo do vale para
o sul, os dormitórios das freiras, exatamente como o espaço
do lado oeste em Chedworth. A estrutura se ajusta
admiravelmente dentro dos contornos e das cores da
paisagem, se torna parte dela. Esta era a visão de Everett.
- Então, ela é realmente diferente da Vila Getty - disse
Costas.
- Everett deve ter apreciado o desafio - disse Maclean. -
Deve ter sido como a história da lebre e da tartaruga. Getty
tinha milhões incontáveis, Everett tinha apenas caridade.
Getty podia chamar arquitetos e construtores de todas as
partes do mundo, Everett tinha apenas a si mesmo. E, ainda
assim, Everett terminou este lugar primeiro, décadas antes
que a Vila Getty fosse inaugurada. E a Vila Getty era um
espetáculo público, uma extravagância de um bilionário, mas
também uma obra beneficente para o mundo, ao passo que
este lugar é quase tão secreto quanto possível. O estatuto da
ordem das freiras proíbe os estranhos de entrarem além do
vestíbulo, ou de ter qualquer contato direto com as freiras. É
um grande privilégio para nós a permissão de estar aqui.
- Podemos olhar dentro do vestíbulo? - Perguntou Jack.
- Foi para isso que eu os trouxe aqui.
Maclean os conduziu através de um pátio de pedras
irregulares e em direção a uma porta simples e
despretensiosa, rodeada por placas verticais e coberta por
um lintel feito com pedras locais que Jack tinha visto no
terraço. A porta era feita de pranchas esculpidas de madeira
dura que parecia ser de nogueira, e estava ligeiramente
entreaberta. Maclean empurrou-a um pouco mais, e depois
deu um passo atrás e apontou para o chão. - Primeiro olhem
para a soleira da porta.
Abaixaram o olhar. Na frente deles havia um mosaico em
preto e branco, feito de ladrilhos cortados grosseiramente,
polidos e lustrosos. Media cerca de um metro de lado a lado
e ocupava exatamente cada lado da entrada, metade dentro e
metade fora. Jack tinha visto uma soleira como aquela antes,
um mosaico em preto e branco em uma soleira em Pompéia
ostentando as palavras latinas CAVE CANEM, "Atenção ao
cachorro". Mas esta era diferente. As letras tinham sido
dispostas em um retângulo, e a mensagem não tinha um
significado óbvio. Cada linha formada por uma palavra:

ROTAS
OPERA
TENET
AREPO
SATOR

Jack olhou atentamente por um momento, e então ficou
claro. - Está escrito em latim. "Arepo, o semeador, segura as
rodas cuidadosamente."
- É alguma espécie de código? - perguntou Costas.
- Não exatamente. - Jeremy pegou de seu bolso um caderno
de apontamentos e um lápis e rapidamente rabiscou algumas
palavras, depois arrancou a folha e entregou-a para Costas. -
Isto é uma palavra-quadrado (que pode ser lida tanto na
horizontal como na vertical), é um caso especial do
acróstico, um quebra-cabeça. Rearranje as letras e isto é o
que se consegue. - Costas segurou o papel de modo que Jack
também pudesse ver:

A

P
A
T
E
R
A PATER NOSTERO
O
S
T
E
R

O

Costas assobiou. - Inteligente.
- Inteligente, mas isto não foi uma criação de Everett - disse
Jack. - Isto é romano antigo, e foi encontrado rabiscado em
um fragmento de ânfora na Grã-Bretanha.
- Isto me soa familiar - disse Costas. - desde que
encontramos o navio naufragado, eu estou começando a
olhar para modestos potes antigos de uma forma
inteiramente nova. - Deu um passo à frente e olhou com
atenção para o vestíbulo. - E, falando nisso, isto aqui
também me parece familiar. Penso ter visto um símbolo
Qui-Rô.
- Dois deles, de fato - disse Maclean. - Um no chão e outro
na parede. Entraram no vestíbulo. A sala era simples,
austera, em conformidade com o exterior da vila. As paredes
eram cobertas de gesso pintado em vermelho com
acabamento fosco, no estilo romano. Não havia janelas, mas
uma série de aberturas, logo abaixo do teto, ao redor de toda
a sala; tinham sido habilmente projetadas para deixar feixes
de luz cair no meio do chão e sobre a parede do lado oposto
à entrada, sobre os objetos centrais que constituíam as duas
decorações da sala. Um deles era um outro mosaico no chão,
mas desta vez em várias cores, que cobria toda a largura da
sala, talvez com três metros de um lado a outro. Os ladrilhos,
o mosaico tesserae, tinham cerca 1,25 cm quadrado, e a
gama de cores se limitava, talvez, a meia dúzia. O mosaico
estava executado em estilo linear, arrojado, com imagens
delineadas de maneira rígida e com pouca sutileza na
graduação de cor. Das beiradas da sala, uma série de círculos
concêntricos avançavam para o interior, formando padrões
abstratos de gavinhas, linhas entrelaçadas e arabescos
separados por faixas brancas. No centro, havia a imagem que
Costas tinha visto, um monograma Qui-Rô, dentro de um
medalhão com cerca de sessenta centímetros de lado a lado,
elevando-se acima da cabeça e o torso de uma figura
humana, colocada na frente como se o símbolo Qui-Rô fosse
um halo.
- Extraordinário - murmurou Jack. - O mosaico de Hinton
St. Mary, no condado de Dorset. É uma cópia exata do
famoso mosaico de Cristo.
- Uma outra vila da Grã-Bretanha? - perguntou Costas.
Jack fez que sim de uma maneira ausente, depois se
agachou, absorvido nos detalhes. - Ele até usou os mesmos
materiais - murmurou. - Tijolo para o vermelho, pedra
calcária para o branco, arenito para o amarelo, xisto para o
cinza. Ele tinha acesso a uma grande quantidade de outras
cores aqui, quartzos, verdes, azuis, as cores que vimos nos
mosaicos da Vila Getty, mas ficou preso a uma gama de
cores usada na Grã-Bretanha.
- Posso supor que esta seja uma representação de Cristo? -
perguntou Costas.
- Esta é uma boa questão - respondeu Maclean.
Jack ficou de novo em pé. - Não achei que houvesse alguma
dúvida. Esta é uma representação bastante padrão no século
IV. Bem barbeado, o rosto quadrado, cabelos compridos,
vestindo uma espécie de toga. Pura fantasia, é claro. Isto
poderia facilmente ser uma imagem grosseira do primeiro
imperador cristão, Constantino, o Grande, ou de seus
sucessores, que podem não ter impedido a confusão de suas
imagens com a de Cristo.
- Este é o problema - disse Maclean.
- Qual é?
- Bem, por tudo que sabemos, os primeiros cristãos na Grã-
Bretanha parecem ter se distanciado da Igreja Romana, ter
acreditado que faziam parte de uma tradição mais pura,
alguma coisa relacionada com a sua própria ascendência
pagã. A última coisa que o proprietário daquela vila em
Hinton St. Mary poderia ter desejado era uma imagem de
Jesus quase idêntica à imagem do imperador, na moeda que
tinha em sua bolsa. E a elite cultivada da Grã-Bretanha perto
do fim do período romano era bastante sofisticada. As
pessoas sabiam perfeitamente bem qual era a aparência dos
que vinham do levante, da Judéia. Provavelmente, havia até
uma pequena quantidade de sangue oriental nas pessoas da
Grã-Bretanha por causa do seu contato com os fenícios
séculos antes. A idéia de que Jesus devia ser apresentado
bem barbeado, com um aspecto quase angélico, é
nitidamente irracional. Era um pescador do mar da Galiléia
queimado pelo sol. Mas olhem novamente. Os cabelos
longos, os olhos amendoados, este manto que podia ser uma
toga, podia ser uma beca. Esta figura pode não ser Jesus.
Pode nem ser a imagem de um homem.
- Ela é uma mulher! - exclamou Costas.
- Era nisto que Everett acreditava. E para Everett, para os
adeptos de Pelágio, era conferido para Maria, a companheira
de Jesus, um significado diferente do que o dado pela Igreja
Romana, um significado muito maior. Para eles, as imagens
andróginas de Cristo, imagens quase femininas, são vistas em
algumas das obras de arte romanas tardias, de Cristo
personificando tanto homem como mulher, Cristo
deificado. Para os seguidores de Pelágio, Jesus era o homem,
e Maria a mulher. Eles consideravam a iconografia de Cristo
na tradição romana como um pouco popularesca, como se a
imagem de Jesus tivesse sido transformado em algo
diferente, não em uma imagem elevada e deificada, mas
reduzida a um mero motivo decorativo, um pasticho dentro
de uma conspiração de poder que pouco tinha a ver com ele
ou com seus ensinamentos. Segundo eles, era vendo Jesus
como o homem que ele era que conseguiam conhecer
melhor sua palavra. Era assim que eles se conectavam com a
palavra Deus, por meio do homem, e não do Cristo
ascendido. E lembrem-se de onde estamos. Esta é uma
imagem apropriada. Este é o convento de Santa Maria
Madalena.
- Fascinante - murmurou Jack.
- E vocês irão reconhecer a pintura na parede.
Seguiram a linha do P no mosaico Qui-Rô até que
alcançaram um outro símbolo Qui-Rô; este último fazia
parte do segundo desenho decorativo na sala, pintado de
preto sobre um fundo azul-claro com as letras gregas alfa e
ômega de cada lado. O símbolo era rodeado por uma
grinalda pintada em azul-escuro com hastes pintadas, e Jack
conseguiu distinguir letras gregas menores no meio de
gavinhas de videira, enroladas de maneira decorativa ao
redor das flores e folhas da grinalda. Na parte inferior havia
uma pequena cruz com remates adornados; tratava-se
nitidamente de uma cruz armênia, com as palavras Domine
Ivimus.
- "Senhor, nós viemos" - traduziu Jack. - Fora isso, esta é
uma cópia do mosaico de Lullingstone em Kent - disse ele
em tom decidido. - Este é outro símbolo famoso do início
do cristianismo na Grã-Bretanha. Ele realmente tem uma
atração por vilas romanas na Grã-Bretanha, não é?
- Este é o ponto importante - disse Maclean. - Olhe ao seu
redor. Não é só para estas imagens que devemos olhar, é
para a ambientação. Este é o brilhantismo deste lugar, e
também o da Vila Getty. Everett queria que nós víssemos a
arte no seu conjunto, como fez Getty. E enquanto Getty se
inspirou em Herculano, Everett encontrou estímulo nas
descobertas do século XIX na Inglaterra, uma redescoberta
do mundo romano na Grã-Bretanha e sua adoção do
cristianismo que realmente incentivou o movimento dos
adeptos de Pelágio, mais ou menos na época em que Everett
era um jovem. Perceberam que as práticas cristãs iniciais na
Grã-Bretanha tinham sido realizadas em casas particulares,
em salas dentro de vilas, provavelmente do mesmo modo
como tinha sido feito em lugares como Pompéia e
Herculano antes que a Igreja se firmasse. Everett chamava
esta sala de scholarium, o lugar de aprendizagem. Nem uma
igreja, nem uma capela, nem um lugar de culto religioso,
nem mesmo um lugar de encontro, mas um lugar de
aprendizagem. Um local onde as pessoas podiam se reunir e
ler os Evangelhos, ou ler para aqueles que não podiam ler.
Um lugar que não tinha espaço para púlpitos, ou pregadores,
nem para padres.
- Um lugar onde ele podia ter vislumbrado revelar o último
texto - comentou Costas.
Jeremy tinha estado pensativo, mas agora falou em voz
baixa. - A ironia é que ele tinha se convertido ao catolicismo
para se esconder, para evadir-se dentro do cerne da
instituição que mais gostaria de ter conseguido o seu
segredo. No entanto, aqui, neste convento católico nas
colinas da Califórnia, ele encontrou um lugar onde podia
expressar sua verdadeira convicção com total liberdade, criar
um lugar onde podia aproximar-se de Jesus e de seus
ensinamentos mais do que fizera em qualquer outro lugar
anteriormente.
Jack olhou ao redor, e por um momento pareceu estar se
olhando como se estivesse fora de si mesmo, avaliando seus
sentimentos. Com o passar dos anos, ele aprendeu a aceitar
seus instintos sobre arte, a conhecer e a apreciar sua própria
sensibilidade e a não se forçar para achar beleza só por
obrigação. A Vila Getty era magnífica, mas este lugar, de
certa forma, lhe parecia mais familiar, tocava o seu próprio
passado. Sua relação com a natureza, as cores, o uso da luz e
da sombra, refletia um ajustamento particular com o mundo
que parecia se amoldar ao próprio mundo de Jack, com o
conjunto de componentes naturais de sua própria
ascendência ilustre. Mas havia mais que isto. Durante os
últimos dias, ele tinha começado a sentir que estava
procurando duas versões diferentes de beleza, de verdade.
Olhou para o rosto no mosaico, e pensou sobre o que
Maclean acabara de dizer sobre os seguidores de Pelágio,
sobre encontrar o homem Jesus. Muito da tradição cristã
havia sido encoberta por arte de alta qualidade, criando
imagens que eram impressionantes, remotas, inatingíveis.
No entanto, havia outra verdade, uma mais grosseiramente
moldada, talvez, mas não menos bela, com um poder
elaborado através de sua intimidade com os próprios
homens e mulheres, não com formas idealizadas. Estar ali
neste dia, ver a Vila Getty e depois este lugar, havia ajudado
Jack a cristalizar esses sentimentos, a avançar nesse mistério
que parecia tornar-se mais complexo e fascinante à medida
que eles o investigavam.
Jack saiu de seu devaneio, respirou profundamente, e olhou
para o mosaico e a pintura novamente. - Venham - ele
murmurou.
- O que é? - perguntou Costas.
- Deve estar aqui - disse Jack. - Se Everett deixou qualquer
tipo de indício para nós, ele deve estar incrustado nestas
imagens. Tenho certeza disso.
Jeremy caminhou para a parede pintada, e olhou para a
imagem da grinalda que circundava o símbolo Qui-Rô. - Esta
é uma cópia exata? - perguntou.
- Ele fez algumas mudanças - disse Maclean. - Aqueles
folíolos são de nogueiras, as flores são orquídeas, de que ele
gostava. Também acrescentou as letras gregas. Eu as
comparei, depois que vim aqui pela primeira vez, com cada
acróstico possível, mas não consegui nada. São puramente
decorativas.
- Isso não parece ser algo que Everett faria - disse Jeremy
- Não, não parece, mas tentei de tudo.
Jeremy deu um passo atrás, e pareceu pensativo. - Qual é a
cronologia deste lugar? - ele disse. - Quero dizer, você sabe
quando ele fez esta decoração?
Maclean encolheu os ombros. - Pude conversar uma vez
com a madre superiora, através de um intermediário. Ela era
uma jovem iniciada quando Everett estava morrendo,
cuidou dele em sua cabana durante seus meses finais.
Aparentemente, ele já tinha completado esta parte do
convento antes da Primeira Guerra Mundial, dois anos
depois de chegar à América. Voltar para cá parece que lhe
proporcionou um fervor adicional, redobrou sua convicção,
como se ele tivesse que justificar a decisão que havia tomado
de deixar sua família e sacrificar toda a sua vida anterior.
- Então ele fez a decoração mais tarde, depois da guerra?
- Já havia terminado os mosaicos, inclusive a palavra-
quadrado na entrada. Mas a parede pintada ele a fez quando
retornou da guerra. Quando a madre superiora era jovem,
algumas das freiras mais velhas que estavam aqui desde
jovens lembravam disso. Everett tinha voltado
transformado, retraído e perturbado, com os pulmões
permanentemente prejudicados. Ele virtualmente trancou-
se nesta sala, durante meses a fio. Elas não faziam idéia do
que ele tinha visto, o que havia experimentado. O sul da
Califórnia ficava muito distante do inferno de Flandres. Para
mim, a sua versão do Qui-Rô de Lullingstone é rígida, com
uma superfície desigual e preta como carvão, como se o
símbolo tivesse sido estragado pelo fogo. Ele me faz lembrar
daquelas fotografias de cidades em preto e branco ao longo
da frente de batalha ocidental, Ypres, Loos, Passchendaele,
onde ele foi ferido; eram locais de total desolação, com
apenas alguns fragmentos ainda em pé espalhados, como as
imagens mais negras possíveis da colina do Gólgota, com as
cruzes das crucificações vazias retorcidas e empenadas pelo
fogo.
Jeremy foi novamente até a parede pintada, e passou o dedo
pela grinalda.
- Contei cinqüenta e três letras no total, todas gregas - ele
murmurou. - Sem ordem, sem racionalidade. Elas não
parecem formar palavras, nem para frente nem de trás para
diante.
- Eu lhe disse que já tentei esta forma - disse Maclean. - Não
cheguei a coisa alguma. O único pedaço legível é formado
por aquelas palavras Domine Ivimus no final, com a cruz em
estilo armênio acima delas. Isto também não nos leva a lugar
algum. Parece que é puramente decorativo.
- Era um matemático brilhante - murmurou Jeremy,
parecendo absorto. -Ele também gostava de quebra-cabeças
de palavras, de jogos de quebra-cabeça, como muitas pessoas
com aquele tipo de mente. Você pode perceber isto naquela
palavra-quadrado na porta. Depois ele vai para a guerra,
retorna e faz esta pintura, acrescentando letras na sua versão
da pintura romana original. O que lhe aconteceu? - Jeremy
olhou atentamente para a parede, pressionando-a com uma
mão e batendo de leve seus dedos, depois se voltou
subitamente e olhou para Maclean. - Recorde-me. Em 1917.
Ele volta para cá, para o convento, onde estamos agora?
Maclean assentiu, dando a impressão de que era impossível
explicar. - Depois que a América entrou na guerra, depois
que ele foi envolvido na decifração do telegrama de
Zimmerman, ele e seu companheiro criptógrafo, William
Montgomery vieram para a Califórnia, para este lugar.
- Como decifradores de códigos - disse Costas simplesmente.
- É isto mesmo. Eu entendi. - Jeremy correu até a mochila
que tinha deixado perto da porta, e retirou um velho
notebook. - Lembra-se disso, Jack? Estava lendo durante o
vôo. Eu tinha um pressentimento de que poderia ser útil.
- Rapidamente fez o notebook funcionar, percorreu um
arquivo e parou numa dada página. - Isto contém o código
completo de Zimmerman - ele disse muito excitado. -
Ouçam. Isto foi o que aconteceu para ele durante a guerra. O
que Costas disse. Ele ficara com neurose de guerra, ferido,
mas também se tornou um decifrador de códigos. Esta é a
chave. Volta da guerra, e quer deixar um indício, assim
como Cláudio fizera dois mil anos antes. Ele está imerso em
códigos, ainda tinha o código de Zimmerman girando em
sua cabeça. Talvez ele e Montgomery tenham planejado o
indício nesta mesma sala quando a visitaram em 1917.
Talvez o texto estivesse aqui, escondido em algum lugar da
sala, e o levaram com eles quando voltaram para o
estrangeiro. - Fez uma pausa, e olhou com atenção para a
pintura. - Não acho que aquelas letras sejam simplesmente
decorativas, ou um jogo de palavras. Acho que elas são um
código.
- Continue falando - disse Jack.
- O código de Zimmerman era numérico, certo? - Jeremy
buscou outra página no notebook. - Grupos de números que
parecem palavras, dispostas no telegrama como sentenças.
Isto era bastante óbvio. O problema era designar valores para
os números. A descoberta importante estava naquele livro
de códigos, comprado do agente do Oriente Médio.
- Você pode dar às letras gregas que estão aqui um
equivalente numérico? -perguntou Costas.
- Isto seria um começo. - Jeremy revistou o bolso atrás de
um lápis, procurou uma página nova no seu caderno de
apontamentos e começou a copiar as letras da pintura à
medida que elas apareciam no sentido do movimento dos
ponteiros de um relógio, a partir de um intervalo no topo da
grinalda, depois rascunhou embaixo os números de 1 a 22 ao
longo deles. - Muito bem, eu consegui. - Os outros ficaram
apinhados ao redor dele e ele segurou o notebook sob um
feixe de luz. Puderam ver as letras gregas com sua
transcrição numérica embaixo:

OP?TYOX?0HZA0IK?ANAOIIBTY0ZH?P?TRBN
12 3 4 5 21 14 15 14 2 3 7 5 6 12 13 15 20 21 4 5 7 6 3 2 1
4 5 6 23 34 21 45 6 45 12 2

- Certo. Estamos em atividade! - Jeremy correu de novo até
a mochila, e tirou um computador do tamanho de uma
palma e ligou-o, agachando-se sobre um joelho enquanto os
outros se aglomeravam em volta. - Quando eu me interessei
pela primeira vez pelo código Zimmerman, ainda criança, eu
resolvi pesquisar como a tecnologia moderna poderia ter
ajudado a decifração - disse.
- Eu gosto cada vez mais de você, sabe, Jeremy - murmurou
Costas.
- Everett teria amado isso. Mas ele teria visto que nenhum
resultado mágico do computador pode substituir o cérebro
humano. A decifração do código de Zimmereman depende
de uma compreensão muito íntima do alemão que o criou,
de sua percepção de mundo, de seu vocabulário.
Ele digitou um comando e apareceu uma página com
seqüências numéricas, com palavras e sílabas ao lado delas. -
O conceito é muito simples. Cada agrupamento de números
é uma palavra, ou uma frase ou uma letra. O livro de código
é usado quase como um índice. O problema é que os
alemães não previram algumas das palavras de que iriam
necessitar, de maneira que algumas palavras devem ser
formadas a partir de componentes menores. Aqui vocês
podem ver a palavra Arizona, formada com quatro
diferentes agrupamentos de números, para AR, IZ, ON e A.
Isto se refere à parte da carta em que os alemães iriam ajudar
os mexicanos a reconquistar os estados do Sul, acreditem ou
não. Eu acho que foi aqui que Everett entrou. Estava mais
familiarizado do que qualquer outra pessoa na Sala 40 com a
América, por ter vivido aqui durante vários anos antes da
guerra. Ele pode ter sido quem sugeriu que deveriam
procurar os nomes geográficos, nomes de lugares que
poderiam não estar no livro de códigos. - Jeremy fez uma
pausa, digitou de novo no teclado e sentou-se. - Muito bem.
Vou fazer funcionar estes números. Isto pode levar um ou
dois minutos.
- Ele estava se divertindo, não estava? - perguntou Costas.
- A que você se refere?
- Bem, todo este assunto era terrivelmente sério para ele, é
claro, salvar o evangelho e deixar um indício, mas também
estava se divertindo.
- Ele gostava de quebra-cabeças, jogos - replicou Jeremy. -
Como você disse. Era um decifrador de códigos.
- Um pouco como Cláudio.
- As melhores caças ao tesouro são como um jogo de xadrez
jogado com alguém no passado - disse Jack. - Eles estão do
seu lado e também colocam pequenos sinais ou buracos
contra você, para encorajá-lo a continuar, deixando indícios,
mas também apreciando uma competição.
- Eu achava que você era um arqueólogo, não um caçador de
tesouro, Jack - disse Costas, com um brilho no olhar. - Estou
ficando preocupado com você.
- Bingo - disse Jeremy muito excitado. Seis palavras
apareceram juntas na tela. - Funcionou. Seu velho patife.
Fantástico.
- Bem eu vou ser condenado ao inferno - murmurou Jack.
- Está em alemão, é claro. -Ah.
- Jack, como está o seu alemão? - perguntou Jeremy,
rabiscando as palavras no caderno de apontamentos.
- Enferrujado. - Jack fez uma pausa. - Ausgangwier. Acho
que é igreja, embora o significado possa ser mais específico.
Mas nós conhecemos um homem que pode ajudar. - Tirou o
celular do bolso, abriu-o e digitou o número da linha de
segurança da IMU. - Sandy, aqui é Jack. Por favor encontre
Maurice Hiebermeyer e diga-lhe para me telefonar tão logo
quanto possível. Obrigado. - Ficou segurando o telefone
cheio de expectativa, e um momento depois ele soou. -
Maurice! - Jack pegou a folha do caderno de apontamentos
de Jeremy, e saiu para o exterior. Alguns momentos depois,
ele voltou, ainda segurando o telefone aberto. - Li as
palavras, e ele vai ponderar um pouco sobre elas e me
chamar em seguida.
- Como está meu amigo? - perguntou Maclean.
- Ele está em uma pizzaria em Nápoles - replicou Jack. -
Parece que houve uma mudança de opinião por lá. Ele
realmente gosta daquele lugar. Quer dizer que quando de
fato se deseja enganar a burocracia, é muito fácil. Tudo o que
se deve fazer é aparecer na superintendência de manhã e
atirar uma outra chave de fendas nas obras, depois é possível
ir embora e relaxar pelo resto do dia. Só é necessário perder
horas em salas de espera se quiser que as coisas sejam feitas.
Ele disse que precisava de férias, e está em seu segundo
circuito de pizzarias diante do ancoradouro. Maurice disse
até que se for permitido entrar de novo no vestíbulo em
Herculano, ele não vai mais se adaptar.
- Uma sugestão seria retornar para a sua última descoberta
no deserto egípcio, aquela que ele ficou tentando nos contar
durante muito tempo - disse Costas. - Espaços enormes e
abertos, nada de corredores estreitos, mais espaço de
manobra. Você se importaria de juntar-se a ele? Finalmente?
- Não. Ele nem sequer mencionou isto. Sua boca estava
cheia. - O telefone soou, e Jack correu para fora novamente.
Voltou um momento mais tarde, guardando o celular no
bolso, olhando para o caderno de apontamentos. - Aqui está.
- Pigarreou, e leu lentamente: - "A palavra de Jesus
encontra-se na Sala Sagrada."
A palavra de Jesus encontra-se na Sala Sagrada. Fez-se
silêncio durante um momento, e todos eles olharam para a
pintura sobre a parede.
- A palavra de Jesus - disse Costas. - Certamente isso
significa o evangelho, aquilo que estamos buscando.
- Pode ser - murmurou Jack.
- E a sala sagrada. Deve ser esta sala. Está nos dizendo que o
evangelho está em algum lugar nesta sala!
- Ou ele está nos dizendo que esta é uma sala sagrada. Nada
mais.
- Não há ninguém como você para ser pessimista, Jack.
- Isto não acrescenta nada. - Jack olhou ao redor para o
interior austero, e de volta para a pintura. - Podia tê-lo
escondido aqui. Mas isso é demasiado óbvio. Devia saber
que qualquer um que ficasse parado aqui, qualquer um que
conseguisse decifrar aquelas letras gregas, deveria conhecer
sua vida, seus antecedentes. Há algo mais aqui, alguma coisa
que nós não encontramos. Está faltando uma parte grande.
- 1917 - Jeremy murmurou. - Este é o ano chave.
- Eu não posso ver qual outra informação podemos tirar
daqui - disse Jack.
- Everett permaneceu aqui depois que Montgomery foi
embora? - perguntou Costas.
Maclean ergueu o olhar distraído. - Hein?
- 1917. Everett e Montgomery vieram para cá. A guerra
ainda continuava. Então Everett permaneceu nos Estados
Unidos?
- Ah, sim. Eu esqueci de dizer. - Maclean pigarreou. -
Depois daquela conferência em Londres, onde encontrei
Maurice, passei alguns dias nos Arquivos de Documentos
Nacionais em Kew. Para meu espanto, encontrei um arquivo
de sua correspondência pessoal, especialmente relativa aos
seus ferimentos, relatórios médicos, informações de
avaliações médicas, um material que o serviço secreto não
conseguia classificar porque eram documentos oficiais de
rotina, não relacionados com as atividades do serviço de
inteligência. O que eles esqueceram é que os relatórios
médicos avaliavam a aptidão para o cargo e especificavam
para onde um soldado está sendo transferido. Confirmou-se
que ele já tinha sido designado para a sua próxima
transferência antes da viagem para a América. O exército
britânico percebeu que eles precisavam de peritos em
decifração para permanecer em terra; idealmente seriam
oficiais com experiência de campo que pudessem operar no
corpo do exército ou na divisão de pessoal. Everett se tornou
um oficial criptógrafo nas forças britânicas do Oriente
Médio, na outra linha de frente britânica da Primeira Guerra
Mundial, no combate contra o Império Otomano.
Acompanhou o general Allenby na libertação de Jerusalém.
Jack subitamente ficou silencioso. Deixou o lápis cair, e
ergueu o olhar para Maclean. - Repita isso.
- Everett esteve em Jerusalém. Nós só temos o retrato
esmaecido dele como um homem idoso, mas acredito que
você possa distingui-lo naquela famosa fotografia de Allenby
e sua equipe desarmada, caminhando através do Portão de
Jaffa em 11 de dezembro de 1917. Ele é um dos oficiais atrás
de T. E. Lawrence, Lawrence da Arábia. Sabemos que eles
andaram pela Cidade Velha, para a Igreja do Santo Sepulcro,
onde rezaram na praça. Os documentos mostram que
Everett permaneceu em Jerusalém como oficial do serviço
de inteligência com as forças britânicas de ocupação até o
fim da guerra. Eles tinham muito tempo livre depois da
derrota turca, e isso explica como ele esboçou um tratado
sobre a arquitetura do Santo Sepulcro, aquele manuscrito
sobre o qual lhe falei que encontrei em seus documentos no
arquivo da Vila Getty e sobre o qual tenho trabalhado.
Depois da desmobilização, ele voltou para a América e
passou o resto de sua vida aqui neste convento. Seus
pulmões ficaram tão danificados no ataque com gás em 1915
que no final da vida ele se tornou um inválido.
Jack ainda estava de costas para eles, e olhava para a pintura.
- Bem eu serei condenado ao inferno - ele sussurrou.
- Esta frase comumente significa alguma coisa - disse Costas.
- Eu sei exatamente onde Everett enterrou seu tesouro. - Ele
se ergueu rapidamente e se virou com um amplo sorriso no
rosto. - Não em uma sala sagrada. Maurice nos deu uma
tradução literal. Não havia motivo para ele fazer de outra
maneira. Mas o meu alemão não está tão enferrujado. Eu
sabia que aquela palavra era familiar, por causa da última vez
que estive em Jerusalém. Ela é a palavra alemã para Santo
Sepulcro.
Ouviu-se um suspiro coletivo. Jack sentiu uma enorme
descarga de adrenalina, como se todos os becos sem saída
parecessem juntar-se novamente e apontar em uma única
direção. Pegou o celular de novo e digitou o número da
linha direta da IMU. - Sandy? É Jack de novo. Quanto tempo
leva para você nos conseguir, o mais rapidamente possível,
três passagens aéreas para Tel Aviv?
Maclean gesticulou e apontou para si.
- Consiga quatro passagens - disse Jack, depois ficou
escutando por um momento, respondeu rapidamente e
desligou o telefone. - Podemos começar a nos dirigir para o
aeroporto agora. - Ele se voltou para a parede, colocou sua
mão sobre ela e sacudiu a cabeça. - A história simplesmente
nunca para, não é? Nós temos seguido uma pista deixada
para nós dois mil anos atrás, e agora estamos em outra pista.
E esse sujeito era tão inteligente quanto o velho Cláudio.

CAPÍTULO 21

Uma mulher se separou de um grupo de monges
amontoados no topo do telhado da Igreja do Santo Sepulcro
e caminhou, atravessando o pátio cheio de sol, com o manto
branco flutuando ao seu redor.
- Jack? Jack Howard? - dizia, à medida que se aproximava.
Jack protegeu os olhos e olhou-a. Estava cansado mas alegre,
e não conseguira dormir no vôo de Los Angeles. A viagem
de carro por Tel Aviv tinha sido quente e poeirenta, mas,
quando a Cidade Velha apareceu diante deles, ele
experimentou uma grande descarga de adrenalina, uma
sensação de que tinham vindo para o lugar certo, que o que
quer que encontrassem no final da pista seria aqui e em
nenhum outro lugar. Junto com o sentimento de certeza
surgiu uma ansiedade crescente. Desde o encontro deles
com a misteriosa figura na catacumba debaixo de Roma, ele
se sentia apanhado por um processo inexorável, em funil,
que ia se estreitando, sem saber quem os estava observando,
sem controle. Por quase dois mil anos aqueles que os
estavam seguindo haviam ganhado todas as batalhas, não
tinham apresentado nenhuma falha. E com cada nova pessoa
trazida para o grupo, Jack sabia que havia um outro nome
acrescentado à lista. Olhou para a figura que se aproximava,
depois lançou um olhar para Costas que estava atrás dele,
lembrando. Se você puder calcular o risco, então o risco
pode ser assumido. Mas ele odiava brincar com a vida de
outras pessoas.
A mulher chegou até ele sorrindo. Tinha faixas de
ornamento colorido na frente e nos pulsos de sua veste, e
usava um colar de ouro e brincos. Seu longo cabelo negro
estava amarrado atrás, e ela tinha os ossos malares altos e as
feições bonitas de uma etíope, com surpreendentes olhos
verdes. Estendeu a mão e Jack abraçou-a calorosamente. -
Meu velho amigo de escola - ela disse para Costas. - Helena
Selassie.
- Este sobrenome me traz algo à lembrança - disse Costas,
apertando-lhe a mão e sorrindo.
- O rei era um parente distante - ela disse, com um inglês
perfeito e um leve sotaque americano. - Como ele, todos
éramos etíopes ortodoxos. Este é o nosso lugar mais sagrado.
- Virgínia? - murmurou Costas, estreitando os olhos. -
Maryland?
A mulher sorriu. - Belo chute. Você é de Nova York? Meus
pais eram exilados etíopes e eu cresci em uma comunidade
de expatriados no sul de Washington D.C. Eu e Jack
estudamos na mesma escola quando o meu pai tinha um
posto em Londres, depois novamente no MIT. Engenharia
aeroespacial.
- Realmente? Eu devo ter deixado você escapar. Cursei a
mesma faculdade, fiz robótica submarina.
- Nós não nos misturávamos com o pior dos piores.
- A Cidade Velha de Jerusalém é um grito distante
proveniente de foguetes lunares e espaço cósmico - disse
Jack.
Ela lhe deu um sorriso sem entusiasmo. - Depois que a
NASA eliminou o programa de ir e voltar, eu reconsiderei e
procurei o caminho espiritual. Ele leva mais rápido até lá.
- Você sabia que iria acabar aparecendo por aqui.
- Isto está no sangue - ela replicou. - Meu pai veio para cá,
minha avó, o pai dela antes. Um número regular de
mulheres ao longo do caminho. Sempre há pelo menos
vinte e oito de nós aqui no telhado, na maior parte monges,
mas quase sempre há um par de freiras também. Tem sido
assim por quase dois séculos agora. Nossa presença no Santo
Sepulcro é a coisa mais importante, mantém o nosso sentido
de identidade. Não quero dizer apenas a Igreja Etíope, quero
dizer minha família estendida, a própria Etiópia.
- Parece que tem muita gente lá embaixo - disse Costas.
- É verdade. Aqui se concentram os gregos ortodoxos, os
armênios apostólicos, os romanos católicos, os coptas
ortodoxos e os sírios ortodoxos. Gastamos mais tempo
negociando quando poderemos utilizar uma toalete do que
rezando. Este lugar é como um microcosmo do mundo,
contém o bom, o ruim e o horrendo. No século XIX, os
turcos otomanos que governavam Jerusalém impuseram algo
chamado o Status Quo dos Lugares Santos, numa tentativa
de impedir as brigas. A idéia era de que qualquer novo
trabalho de construção, qualquer mudança nos acordos de
custódia no Santo Sepulcro, exigiria uma aprovação do
governo. O problema é que isto deixou o governo
convencido e foi usado para um aumento de rivalidades e de
brigas. Nós nunca podemos limpar o gesso que cai em nossas
capelas sem perder semanas em negociações, sem conseguir
uma aprovação formal de outras congregações. Cada uma
delas está sempre espionando as outras. Nunca estamos a
mais de um passo de uma guerra declarada. Alguns anos
atrás, um monge egípcio copta quis fazer valer seus direitos
aqui e moveu sua cadeira do lugar combinado para dentro da
sombra, e onze monges tiveram que ser hospitalizados.
- Mas pelo menos vocês estão na linha de frente no telhado
- disse Jack.
- Metade do caminho para o céu - sorriu Helena. - Pelo
menos é como os monges se consolam no meio do inverno,
quando está abaixo de zero e os coptas acidentalmente de
propósito cortam a eletricidade.
- Você vive aqui em cima? - perguntou Costas sem querer
acreditar.
- Você sentiu o cheiro nas toaletes? - ela perguntou. - Você
deve estar brincando. Instalações e medidas sanitárias são
básicas, ora. Tenho um bonito apartamento no convento do
monte do Paraíso, a cerca de vinte minutos de caminhada
daqui. Aqui realizo apenas o meu trabalho diário.
- Que é?
- Oficialmente, eu trato de recuperar todos os antigos
manuscritos, os que são mantidos aqui pelas outras
congregações. Eles são fáceis de localizar, com inscrições
Geez e encadernados em capas de pinturas coloridas, a
assinatura da cultura cristã da Etiópia.
- Você os recupera? - perguntou Costas. Ela suspirou. - É
uma longa história.
- Conte a parte importante dela.
- Certo. A Etiópia, a antiga monarquia de Aksum, foi uma
das primeiras nações a adotar o cristianismo, no século IV
d.C. Muitas pessoas não sabem que os africanos negros da
Etiópia são uma das comunidades mais antigas associadas
com o Santo Sepulcro. As chaves da igreja nos foram dadas
pela mãe do imperador romano Constantino, o Grande,
Helena, minha xará. Mas durante séculos nós mantivemos
uma rivalidade pecaminosa com a Igreja Copta, os monges
egípcios de Alexandria. Nosso maior erro foi nossa recusa de
pagar taxas para os turcos otomanos quando eles
conquistaram a Terra Santa. Depois, em 1838 uma doença
misteriosa liquidou a maior parte dos monges etíopes no
Santo Sepulcro. Em seguida, quase a totalidade de nossas
propriedades foram confiscadas. Os monges sobreviventes
foram banidos para o telhado, e mantivemos nossa posição
estabelecida aqui, trazendo lama e água nas mãos desde o
vale de Kibron para construir estas cabanas. Muitos de
nossos livros foram tirados e queimados. Diziam que os
manuscritos estavam infetados com a peste.
- Em outras palavras, havia alguma coisa neles que os outros
não queriam que fosse revelada - disse Costas. - Isto me soa
familiar.
- A mesquinhez disso é que, provavelmente, eles temiam,
sobretudo, alguma evidência histórica de que estávamos aqui
no Santo Sepulcro alguns anos antes deles, que pudéssemos
reivindicar algum tipo de supremacia. A tragédia é que
sabemos, por nossa tradição, que alguns desses documentos
datam de uma época anterior à fundação da Igreja do Santo
Sepulcro, no século IV. Eram manuscritos em pergaminho
de cabra com quase dois mil anos de idade. Alguns deles
podem ainda existir, trancados em algum lugar abaixo de nós
agora, nas bibliotecas de nossos rivais. Meu sonho é
encontrar um deles, encontrar um pergaminho que data da
época em que Jesus vivia e de seus seguidores, daqueles que
o viram e realmente escutaram sua palavra, e abrigá-lo em
uma biblioteca construída especialmente. Algo que fale ao
peregrino que vem em busca de Jesus, não das rivalidades e
mesquinhez que existem aqui. Isto recolocaria a
comunidade etíope solidamente no mapa de novo, faria dela
alguma coisa mais do que um punhado de indivíduos
excêntricos acampados no telhado.
Jack protegeu os olhos com a mão e olhou para as
desbotadas estruturas cinzentas das celas dos monges e
depois para a santa cruz no alto da abóbada sobre a tumba de
Cristo erguendo-se atrás da fileira ocidental de pátios diante
dele. -Concordo - ele murmurou. - Este seria o lugar
perfeito. Adoraria ajudá-la.
- Nós não temos muito apoio lá embaixo, perto da tumba,
mas aqui em cima sentimos que conseguimos uma
vantagem. Logo acima do lugar onde Cristo ascendeu, tão
alto quanto se pode obter.
- Você realmente acredita que foi neste lugar? - perguntou
Costas.
Ela fez uma pausa. - É como tudo o mais que tem a ver com
o cristianismo antigo. É preciso retirar muitas camadas de
crostas para alcançar a verdade, e algumas vezes a verdade
simplesmente não se encontra ali para ser descoberta.
- Incrustação - murmurou Costas. - É engraçado, Jack
também usa esta palavra.
- Por causa da mesma escola, eu suponho - sorriu Helena. -
A Igreja do Santo Sepulcro só foi consagrada trezentos anos
depois da morte de Jesus, e já a busca por um passado
fantasioso começara entre o clero cristão, um passado que
preenchesse as expectativas da Igreja naquela data, e as
necessidades políticas do imperador Constantino, o Grande.
A história de sua mãe Helena encontrando um fragmento da
Verdadeira Cruz em uma das antigas cisternas de água
debaixo da igreja provavelmente é apenas isto, incrustação.
Mas há verdades aqui, também. Este lugar era uma antiga
colina, fora dos muros da cidade, havia sepulturas aqui na
época de Jesus, e pode ter sido um lugar de execução. Sim,
eu acredito que o lugar era este.
- Você está arriscadamente parecendo uma arqueóloga,
Helena - disse Jack.
- É o que por baixo de tudo isto eu quero, os ossos nus.
- Eles nem sempre estão desnudos, em minha experiência -
murmurou Costas.
- Não ligue para ele - disse Jack. - Está traumatizado. -
Voltou-se para Helena. - Sei exatamente o que você quer
dizer.
- Ocorre algo quando se passa o tempo neste topo de telhado
- disse Helena entusiasmada. - Estar aqui, acima do Santo
Sepulcro, dia e noite. Não se trata apenas de minha vocação.
É como se tudo que está lá embaixo ficasse suavizado
debaixo do grande peso do passado. Aqui em cima, com
nada além do céu sobre nós, é como estar em cima de um
grande pedaço da história, irradiando para cima, para algum
distante ponto focal. E, ao olhar para baixo, é como ver a
Terra de uma aeronave, todas as obsessões e estranhas
influências repressoras das interações humanas se tornam
subitamente triviais, nossas próprias preocupações se
retiram, as formas das coisas se tornam visíveis naquilo que
elas são realmente, as simples verdades. Isto me fez pensar
que um dia eu encontrarei o Jesus real, o homem Jesus. Eu
me sentei ao lado do mar da Galiléia poucos dias atrás, havia
apenas água e colinas distantes e o céu, e parecia-me ver
tudo muito claramente diante de mim.
Jack olhou para Helena. - Podemos solicitar para você
participar de nossa busca, partilhar um pouco da nossa
investigação. Mas antes precisamos de sua ajuda. Com muita
urgência. Foi por isso que eu lhe telefonei. Há algum lugar
onde possamos ir?
Naquele momento, Maclean subiu as escadas e entrou no
pátio do telhado. Como Jack e Costas, ele estava usando
calças de algodão caqui e camisa solta, mas carregava um
chapéu de palha que colocou quando entrou no pátio
ensolarado em busca deles.
- Bem-vindo ao Reino dos Céus - disse Costas.
- Está muito quente, parece mais ser o inferno - disse
Maclean, depois olhou, desculpando-se, para Helena e
estendeu a mão. - Você deve ser a irmã Selassie.
- Doutor Maclean.
- Encantado por conhecê-la pessoalmente. - Apertaram as
mãos e olharam para os outros dois. - Eu e Helena falamos
pelo telefone ontem à noite antes de deixarmos a Califórnia ,
depois que Jack nos apresentou. A chamada foi feita através
da linha de segurança da IMU, mas mesmo assim falamos o
mínimo possível. Há ainda muita coisa a ser dita. - Olhou
para Jack. - Você já a colocou a par?
- Estávamos prestes a fazê-lo - replicou Jack. Eles já estavam
a meio caminho de uma fileira de portas no outro lado do
pátio, seguindo Helena. As paredes e a estrutura superior da
igreja que rodeava o pátio mantinham o barulho exterior da
cidade mais afastado, mas houve uma súbita algazarra em
algum lugar perto dali seguida por uma série de ecos de
percussão. - Barulho de arma de fogo - disse Jack. - Parece
ser um .233, M16. Armada israelense.
- Há um toque de recolher - disse Maclean. - Houve algum
tipo de distúrbio no Muro das Lamentações e ele se espalhou
até o Bairro Cristão. Alguns turistas foram esfaqueados.
Conseguimos entrar na Cidade Velha bem a tempo.
Todos os portões foram fechados. Eu apenas começara meu
reconhecimento do Santo Sepulcro e ele também foi
fechado.
- Esta é outra vantagem de ficarmos aqui em cima no
telhado - disse Helena. - Estamos acima de tudo isso. Mas
não é comum um turista ser atacado.
- Não é disso que precisamos - murmurou Jack, sentindo-se
subitamente desconfortável. - Toque de recolher, ausência
de turistas, a polícia e o exército distraídos em outro lugar.
Isto nos deixa altamente vulneráveis. Espero que Ben
consiga chegar até nós. - Olhou para Helena. - É o nosso
chefe de segurança. Ele saiu de Londres cedo, hoje de
manhã, e deve chegar de Tel Aviv mais ou menos agora.
- Se alguém puder conseguir que os portões sejam abertos
para ele, este alguém é Ben - disse Costas.
- Ele já está em contato com o chefe da polícia daqui - disse
Jack. - Eles se conhecem de quando estiveram juntos nas
Forças Especiais, alguma operação combinada entre Israel e
a Inglaterra da qual nem mesmo eu sei a respeito. As Forças
Especiais formam um mundo bastante pequeno.
- Vocês certamente formam uma rede - disse Helena.
Jack lhe lançou um olhar estranho. - Qualquer pessoa pensa
que ser Indiana Jones é um espetáculo feito por um único
homem, esqueça.
Alcançaram uma porta, quase não distinguível das outras ao
longo da lateral do pátio. Helena a destrancou, acendeu uma
lâmpada elétrica que havia dentro e ajudou-os a entrar. -
Bem-vindos ao meu escritório - ela disse. Todos se
comprimiram lá dentro, ficando em pé e sentando onde
podiam. Era uma cela de monge, com um banco duro e
imagens de caráter devocional de um lado, mas do outro
havia prateleiras abarrotadas com livros, desenhos
arquitetônicos presos à parede e uma escrivaninha estreita
com um laptop dos mais modernos. - Eu roubo eletricidade
dos armênios, e entro na Internet sem fio do mosteiro grego
que fica na porta seguinte. - Ela sorriu e sentou-se num
banquinho baixo atrás da escrivaninha. - Como vocês
podem ver, trata-se realmente de uma irmandade que
compartilha as coisas.
Maclean estava pressionado contra a parede ao lado das
prateleiras de livros, e olhou para um dos desenhos, que
mostrava um croqui retilíneo formado por estruturas simples
e dominado por lineamentos que pareciam naturais, os
contornos de afloramentos rochosos e do terreno. - O Santo
Sepulcro? - ele perguntou. - A igreja primitiva?
- Estou trabalhando em uma história arquitetônica do lugar
em que a Igreja de Constantino foi estabelecida no século
IV. Há ainda uma grande quantidade de coisas para ser
encontrada e estudada, muito mais coisas ocorreram aqui
durante o período romano antigo, depois da crucificação, do
que as pessoas poderiam imaginar. Este é o meu projeto
secreto, mas agora vocês o conhecem. Considero que, se
vou ficar sentada no topo de um dos lugares mais
complicados da história durante os próximos anos, posso
muito bem fazer algo mais do que manter meus monges em
ordem.
- Então você vai amar o que eu consegui - disse Maclean
excitado, dando pequenas pancadas em sua mochila. -
Alguém mais estava fazendo o mesmo que você, quase cem
anos atrás. Seu trabalho ficou inacabado, e nunca foi
publicado anteriormente. Ele trata principalmente das
construções medievais, mas há algumas observações sobre o
material romano debaixo delas que vão deixar você sem
fôlego. Ele achava que, quando Herodes Agripa reconstruiu
as paredes da cidade na metade do século I, também colocou
um santuário neste lugar, um monumento ao próprio Cristo,
apenas poucos anos depois da crucificação. Se você puder
me ajudar a seguir os indícios dele, poderemos ter a
revelação mais definitiva, nunca alcançada antes pela
arqueologia, sobre a cristandade primitiva, que prova, se
necessário, de que este realmente foi o lugar onde Cristo foi
sepultado.
Helena parecia estar enraizada em seu assento, e ficara
pálida. - Você está brincando comigo. Espere até ouvir o que
eu encontrei. Quem era esse sujeito?
Jack tirou vários papéis da sua desbotada mochila caqui, e os
colocou em seus joelhos. Costas se inclinou no banco onde
estava sentado e fechou a porta atrás deles. - Isto foi o que
eu não consegui lhe contar pelo telefone - disse Jack. -
Durante os quarenta minutos seguintes, ele calmamente
repassou todos os fatos, sobre o navio naufragado,
Herculano, Roma, a tumba em Londres, os indícios que
tinham encontrado no dia anterior no convento na
Califórnia. Quando terminou, olhou para Helena, que o
olhava estarrecida e sem fala, e depois colocou uma
fotografia sobre a escrivaninha dela da pintura na parede do
convento feita por Everett com o símbolo Qui-Rô e as letras
gregas. - Isso lhe diz alguma coisa?
Helena olhou direto para a parte inferior da fotografia. Ela
parecia atordoada e sem fala.
- E então?
Ela pigarreou, e deu a impressão de se apoiar na lateral da
escrivaninha. Piscou fortemente, depois olhou atentamente
de perto para a imagem. Pigarreou de novo. - Bem, esta é
uma cruz armênia. A haste inferior é mais longa que os
braços e a haste superior, e aqui estão os dois braços
característicos.
- Isto nos ajuda?
- Bem, se você está procurando por algo armênio dentro do
Santo Sepulcro, você deve ter pensado na Capela de Santa
Helena, debaixo da igreja, na antiga pedreira. É uma parte da
igreja pela qual os monges armênios são responsáveis. - Ela
se deteve abruptamente, agarrou a mesa e depois sussurrou.
- É claro.
- O que foi?
Helena falou em voz baixa. - Muito bem. O meu interesse
particular tem sido o que jaz debaixo da igreja. Eis os meus
achados. Tudo que está acima, entre a rocha e o telhado, é
incrustação, a mesma palavra novamente, Costas. Um
registro fascinante da história do cristianismo, mas uma
incrustação de qualquer verdade que este lugar possa
oferecer sobre a vida e a morte de Jesus de Nazaré, homem
Jesus.
- Continue - disse Jack.
- Isto foi o que Maclean disse sobre Herodes Agripa, os
muros. E, subitamente, o que ele disse atingiu-me como um
clarão ofuscante. Desde a primeira vez que vim aqui, desde a
primeira vez que entrei naquela capela subterrânea, fiquei
convencida de que existem mais evidências aqui, do tempo
de Jesus e dos apóstolos. Por tudo o que você acaba de me
contar, por todas as peças que você tentou juntar sobre o
que aconteceu aqui em 1918, decorre que nós temos
seguido os mesmos indícios.
- Explique.
- Você disse que aquele homem, Everett, John Everett,
esteve aqui durante a Primeira Guerra Mundial? Era um
oficial da inteligência britânica? Um homem devoto que
passava muito tempo dentro do Santo Sepulcro? Um
arquiteto de profissão?
Maclean bateu em sua mochila. - Foi ele que escreveu
aquele tratado de arquitetura de que lhe falei. Tenho uma
cópia em CD para você.
- Nunca soube o seu nome, mas eu conheço esse homem -
murmurou Helena. - Eu o conheço intimamente. Sinto a sua
presença cada vez que entro naquela capela.
- Como? - perguntou Jack.
- Desde três anos atrás, quando cheguei aqui pela primeira
vez. A chave para a porta principal da Igreja do Santo
Sepulcro é guardada por duas famílias muçulmanas, uma
tradição que remonta ao tempo de Saladino, o Grande, um
curdo muçulmano que era o sultão do Egito e da Síria. Uma
família cuida da chave, a outra abre a porta. Eles têm sido
mais simpáticos com os etíopes do telhado que alguns dos
nossos camaradas e irmãos cristãos e eu me tornei apegada
ao velho patriarca de uma das famílias. Antes de morrer, ele
me contou uma estória extraordinária de sua juventude. Foi
no início de 1918, quando era um garoto de dez anos. Os
turcos tinham sido expulsos, os britânicos controlavam
Jerusalém. Os zeladores muçulmanos se lembravam de
décadas anteriores nas quais os oficiais britânicos com
freqüência demonstravam um grande interesse pela história
e a arquitetura do lugar, engenheiros como o coronel
Warren e o coronel Wilson, que mapearam e exploraram
Jerusalém nos anos 1860. Por causa disso os zeladores
estavam muito mais interessados nos britânicos que nos
turcos, que eram camaradas muçulmanos, mas com interesse
pelo Santo Sepulcro. O velho patriarca me contou que um
oficial britânico que falava um pouco de árabe veio com dois
inspetores do exército e passou muitos dias dentro da igreja,
mapeando as capelas subterrâneas e explorando os entalhes
da antiga pedreira e as cisternas de água. Depois disso, o
oficial veio muitas vezes sozinho e tornou-se amigo do
garoto. O oficial era triste, algumas vezes chorava, dizia que
tinha filhos que não via há anos, nunca veria de novo. Ele
tinha sido ferido seriamente por um ataque de gás na frente
ocidental, e tinha dificuldade para respirar, tossia muito.
- Este é o nosso homem - murmurou Jack muito excitado.
- Aparentemente, na sua ultima visita, ele passou uma noite
inteira dentro da igreja. As pessoas sabiam que ele era muito
devoto e o deixaram sozinho. Quando ele saiu, estava
desnorteado e encharcado, tremendo, como se tivesse
estado debaixo de um cano de esgoto. O homem lhes disse
que eles tinham agora o maior tesouro jamais conhecido sob
sua proteção, e que deviam guardá-lo para sempre. As
pessoas pensaram que talvez ele estivesse delirando, e se
referindo ao Santo Sepulcro, a tumba de Cristo. Ele foi
embora, e nunca mais o viram ou ouviram falar dele de
novo. Por seus pulmões serem fracos, pensaram que sua
última noite, na qual fizera grandes esforços, podia tê-lo
matado.
- O seu amigo falou sobre algo que podiam ter encontrado? -
perguntou Jack. - Alguma coisa na capela, na Capela de
Santa Helena? Estamos procurando um esconderijo.
- Nada. Mas os curadores sempre souberam que há muitos
lugares inexplorados debaixo do Santo Sepulcro, câmaras
antigas que outrora poderiam ter sido sepulturas, cisternas
escavadas dentro do solo de sepultamento. Entradas que
foram lacradas durante o período romano e nunca foram
abertas desde então.
- Só precisamos seguir nossos faros - disse Jack.
- Tenho passado muitas horas lá embaixo, dias - disse
Helena. - Há muitas possibilidades. Cada pedra em cada
parede pode ocultar uma câmara, um corredor. E quase
todas elas estão cobertas com argamassa, rebocadas.
Conheço pelo menos meia dúzia de blocos de pedra que têm
espaços atrás delas, onde podemos perceber fendas através
da argamassa. E fazer qualquer tipo de exploração invasiva
está fora de questão. Em primeiro lugar, os armênios vão
desaprovar o fato de eu levá-los lá embaixo, quanto mais o
uso de britadeiras.
Jack pegou a fotografia que tinha colocado sobre a
escrivaninha, e abriu a sua pasta de papéis. - Vamos apenas
fazer uma experiência. Há alguém mais que sabe que nós
estamos aqui. Estou convencido disso. Se nós não
tentarmos, eles o farão. Você pode conseguir que a porta do
Santo Sepulcro seja destrancada para nós?
- Eu posso abri-la. - Helena deu mais uma olhada para a
fotografia na mão de Jack, depois agarrou subitamente o
braço dele. - Espere! O que é isso? Debaixo da cruz?
- Uma inscrição latina - disse Jack. - Domine Ivimus.
Helena ficou quieta por um momento, depois suspirou. - É
isto. Agora eu sei onde Everett foi. - Ela ergueu-se com os
olhos brilhantes.
- Aonde?
- Você é um arqueólogo náutico, Jack. Qual é a descoberta
mais recente e incrível no Santo Sepulcro? Sigam-me.
CAPÍTULO 22

Meia hora mais tarde, Jack estava parado perto da entrada
principal da Igreja do Santo Sepulcro, dentro do pátio
fechado debaixo da fachada construída quase mil anos antes
pelos cruzados. Ele ficara para trás com Maclean por alguns
minutos enquanto desciam do mosteiro etíope, no teto do
telhado, e, logo antes de alcançar o pátio, Jack tinha passado
para Maclean o disco compacto que tirara de sua mochila.
No final das escadas foram recebidos por um homem com
trajes comuns que segurava uma pistola Glock fora do
coldre. O homem olhou de maneira inquisitiva para Helena,
que apontou para Maclean, e, depois de fazer um contato
visual, o homem acompanhou Maclean atravessando o pátio
em direção ao sul. À frente deles, dois policiais israelenses
avançaram subitamente, com um equipamento completo
para deter pessoas e carregando carabinas Colt M4 prontas
para atirar. O som de arma de fogo ecoou nas ruas do lado de
fora, seguida por gritos em árabe. Maclean e seu guarda-
costas se agacharam contra uma parede no lado oposto do
pátio. Maclean olhou para trás, e Jack bateu em seu relógio
de maneira significativa. Maclean assentiu com a cabeça, e
depois se ergueu e seguiu o outro homem ficando
rapidamente fora de vista ao virar em uma esquina. Jack
ergueu o olhar para o céu. O sol tinha desaparecido atrás de
uma barreira cinzenta, e o ar estava opressivo, úmido e
pesado. Ele murmurou uma prece silenciosa por Maclean, e
depois seguiu Costas e Helena para as portas de entrada da
igreja. Helena havia dito que queria que ambos ficassem
com ela. Parecendo sair do nada, dois homens vestidos com
roupas árabes apareceram de cada lado de Costas, que deu
um passo atrás alarmado, mas Helena estendeu a mão de
maneira tranqüilizadora. Um homem passou um aro com
antigas chaves para o outro, que então começou a destrancar
as portas. Eles as empurraram para abrir só um pouco.
Helena olhou para os dois árabes inclinando a cabeça
ligeiramente, e deixou Jack e Costas entrar na frente dela. As
portas se fecharam atrás deles. Eles estavam dentro da igreja.
- Há um corte de eletricidade em todo o bairro cristão da
Antiga Jerusalém - disse Helena com voz baixa. - As
autoridades algumas vezes desligam o interruptor. Isto ajuda
a fazer sair os maus sujeitos de seus buracos. – Eles ficaram
parados por um momento, acostumando os olhos com a
escuridão. À frente, uma luz natural entrava através das
janelas que circundavam a abóbada acima da rotunda, e em
todos os lugares ao redor as sombras estavam pontuadas com
pequenos buracos, como os feitos por um alfinete, cor de
laranja. - Joudeh e Nussebeh, os dois zeladores árabes que
destrancaram as portas, vieram aqui e acenderam as velas
para nós depois que eu lhes disse que viríamos.
- Mais alguém sabe que estamos aqui? - perguntou Jack.
- Somente minha amiga Yereva. Ela tem a chave dos
próximos lugares para os quais estamos indo. Ela é uma freira
armênia.
- Armênia? - espantou-se Costas. - Pensei que vocês não se
davam.
- Os homens não se dão. Se este lugar fosse dirigido pelas
freiras, poderíamos obter algum resultado melhor.
Ela os conduziu adiante e à esquerda, para a extremidade da
rotunda. Jack ergueu o olhar para o círculo de janelas que
deixavam entrar a luz nublada do dia, e olhou atentamente
para o interior da abóbada, restaurada no lugar em que a
abóbada da primeira igreja tinha sido construída por
Constantino no século IV. Pensou nas outras grandes
abóbadas debaixo das quais estivera nos últimos dias, na de
São Paulo em Londres, na de São Pedro em Roma, muito
mais grandiosas, no entanto lugares que agora pareciam
distantes da realidade da vida de Jesus. Mesmo aqui, o
significado expressivo do lugar e as verdades enterradas na
rocha debaixo deles, pareciam obscurecidas pela construção
ao redor, pela própria estrutura que pretendia glorificar e
santificar os atos finais da vida daquele que milhões de
pessoas vinham aqui para cultuar.
- Percebo o que você quer dizer com incrustação da história
- murmurou Costas. Estava olhando para a estrutura
enfeitada demais no centro da rotunda. - Esta é a tumba?
- Este é o próprio Santo Sepulcro, a Edícula (o túmulo de
Cristo) - replicou Helena. - O que você vê aqui foi
construído, em sua maior parte, no século XIX, no lugar da
estrutura destruída em 1009 pelo califatímida al'Hakim,
quando os muçulmanos governavam Jerusalém. Foi esse
evento, acima de todos os outros, que acelerou as Cruzadas,
mas, mesmo antes que os cruzados chegassem, o viking
Harald Hardrada e sua guarda varegue de Constantinopla
veio para cá por ordem do imperador bizantino, para
supervisionar a reconstrução da igreja. Mas acho que vocês
conhecem tudo isto.
- Bom velho Harald - disse Costas, sacudindo a cabeça. -
Existe algum lugar para onde ele não foi?
- A antiga tumba dentro da Edícula foi identificada pelo
bispo Macróbio em 326 como a tumba de Cristo - continuou
Helena. - Vocês devem imaginar toda esta cena na nossa
frente como uma ladeira feita de rocha, consideravelmente
tão alta quanto a rotunda é agora. Logo atrás de nós havia
uma pequena elevação conhecida como Gólgota, o lugar da
caveira, onde Jesus foi crucificado. A colina à nossa frente
tinha sido uma pedreira, que datava de um período tão
anterior como o da cidade de David e de Salomão, mas na
época de Jesus era um local de sepultamento, provavelmente
perfurada com tumbas escavadas na rocha.
- Como sabemos que o bispo escolheu a tumba certa?
- Não sabemos. Tudo o que temos a fazer é consultar os
Evangelhos, e eles são bastante escassos em detalhes. Eles
nos relatam que a tumba foi desbastada na rocha viva, e que
uma pedra rolou na frente dela. Vocês precisam se inclinar
para olhar dentro dela. Havia uma sala para pelo menos
cinco pessoas, sentadas ou agachadas. A plataforma para o
corpo era uma pedra elevada um lugar de repouso para o
sepultado, provavelmente um acrosolium, um sarcófago
debaixo de um arco baixo.
- Tudo isto podia descrever uma tumba típica daquele
período - acrescentou Jack. - Esta não era uma tumba de
praxe construída para Jesus, mas uma tumba que foi doada
por José de Arimatéia, um judeu rico e membro do conselho
de Jerusalém. Era uma tumba nova, e não haveria
sepultamentos posteriores, não havia pequenas cavidades ou
nichos como são encontrados em muitas outras tumbas
desbastadas nas rochas. Ela nunca foi usada como tumba
familiar.
- A menos - Helena hesitou, depois falou em voz muito
baixa, quase um sussurro, - A menos que uma outra pessoa
tenha sido colocada ali.
- Quem? - perguntou Jack. - O que você quer dizer?
- Um companheiro - ela sussurrou. - Uma companheira.
- Você acredita nisso?
Ela levantou as mãos e pressionou as pontas dos dedos
juntas, ligeiramente, sem dizer nada, depois olhou para a
Edícula. - O problema é que os engenheiros de Constantino
cortaram fora a maior parte da colina circundante para
revelar a tumba, a câmara desbastada na rocha, deixando
intacta apenas a superfície em forma de prateleira escavada
na rocha para o sarcófago. Isto foi quase intencional, como
se os bispos de Constantino quisessem eliminar qualquer
razão plausível para dúvidas, qualquer motivo de disputa. A
partir de então, o Santo Sepulcro seria uma questão de fé,
não um fato arqueológico. Era isso que eles queriam. A
Igreja naquela época estava sendo formalizada pela primeira
vez, assumindo a forma familiar de hoje em dia. Uma grande
quantidade de fatos inconvenientes foi escondida, destruída.
Algumas coisas que eram necessárias, histórias, como mitos
de origem, foram criadas, inspiradas não se sabe onde.
Supostos artefatos foram descobertos e algumas relíquias
sagradas. Constantino encontrava-se por trás de tudo isso,
sempre atento à Igreja como um instrumento político. Tudo
de que ele necessitava devia ser assentado em pedra, com
alguns fatos e muita ficção, uma versão do que ocorreu aqui
durante o século I d.C. e que convinha para a nova ordem, a
fusão da Igreja com o Estado.
- E atrás de Constantino havia um corpo secreto de
conselheiros, guardiões da Igreja inicial - disse Jack. - Há
uma coisa que ainda não lhe contamos.
- Eu sei - replicou Helena com voz baixa.
- Você sabe?
- Assim que me contaram o que estavam procurando, eu
soube que vocês iriam se deparar com um problema. O
concilium.
Jack olhou para ela muito surpreso, depois concordou
lentamente com a cabeça. - Tivemos uma audiência secreta
com um deles, em Roma, dois dias atrás.
- No local da tumba? A outra tumba?
Jack olhou de novo fixamente para ela, surpreso, depois
assentiu. - Você sabe a respeito disso?
- Eles são firmes, Jack. Nunca deixam brecha alguma. Vocês
precisam ser incrivelmente cuidadosos. Quem quer que seja
que você tenha visto, ele deve ter-lhe contado um pouco de
verdade, mas ele pode não ser quem você pensa que era. O
concilium tem sido paralisado, mas nunca derrotado. São
como um sonho ruim, que volta incessantemente. Nós
deveríamos saber disso.
- Nós?
- A memória daquela outra tumba, da tumba de são Paulo
nas catacumbas secretas em Roma, não foi completamente
perdida. Havia pessoas entre meus antepassados que se
lembravam dela, que mantiveram o segredo. Nós, etíopes,
acreditamos que somos da verdadeira Igreja inicial, derivada
dos primeiros seguidores de Jesus. Existem outros como nós,
outros da periferia do mundo cristão. A Igreja Britânica, que
existe desde o século I d.C., desde que a palavra de Jesus
alcançou pela primeira vez as costas da Grã-Bretanha, assim
como alcançou a Etiópia, o reino de Aksum. E sempre
fomos bons em manter segredo. Temos a Arca da Aliança,
Jack. Mas somos uma inconveniência, aquelas pessoas
provocadoras de desordem que os conselheiros de
Constantino queriam manter afastadas. Sempre, desde o
século IV, temos sido perseguidos pelo concilium, caçados,
exatamente como foram os nossos irmãos na Grã-Bretanha.
Nós sempre mantemos nossa ligação com nossas igrejas
irmãs, nossa força. Nós, mulheres, seguidoras de Jesus e de
Maria Madalena. Na Grã-Bretanha, eles a viam através da
memória de sua própria alta sacerdotisa, sua rainha guerreira.
- Nós a encontramos - disse Costas.
- O quê?
- Nós encontramos sua tumba - acrescentou Jack.
- Então, tudo entra em seu lugar - sussurrou Helena. - Este
realmente é o momento.
- A peste, o extermínio dos monges etíopes em 1838? -
disse Jack. - A destruição das bibliotecas? O concilium
esteve atrás de tudo isso?
Helena olhou para trás furtivamente, e sussurrou
novamente. - Ele esteve atrás de toda a perseguição que
sofremos. A razão de nosso mosteiro se localizar no terraço.
Só agora estou começando a chegar na causa de tudo isso, o
que me aterroriza. Trata-se de algo que esteve por trás de
todas as rivalidades neste lugar, todos os absurdos. Algo que
queria nos destruir, e queria manter este lugar em um estado
de quase isolamento. Olhe para o Santo Sepulcro. Você
quase não pode vê-lo por causa da incrustação. As pequenas
capelas das congregações eclesiásticas rivais, aglomerando-se
sobre a tumba, sufocando-a. É quase como se elas tivessem
devorado o máximo que podem da tumba, logo acima da
plataforma mortuária, e ficam ao mesmo tempo bloqueadas
em um impasse permanente. É uma loucura.
- Teriam servido muito bem se não fosse a tumba
verdadeira, não teriam? -perguntou Costas.
- No entanto, mantê-las ali, mantê-las em permanente
isolamento, também pode servir aos propósitos do
concilium - disse Jack. - Talvez haja algo mais aqui, algo que
eles não querem que seja revelado. Alguma outra
inconveniência.
- A tumba do Cristo está neste lugar, tenho certeza disso, e
esta é a coisa mais importante - disse Helena, olhando para o
relógio. - Venham. Minha amiga Yereva deve aparecer a
qualquer momento.
Ela os guiou de volta pelo caminho por que tinham vindo, e
em seguida para o lado oposto da igreja. Alguns momentos
mais tarde, pararam no topo de um lance de escada que
levava para baixo, para dentro da escuridão. Jack havia
estado aqui uma vez, e sabia que os degraus conduziam para
a Capela de Santa Helena, uma antiga gruta escavada na
pedreira cinco metros abaixo do nível da igreja. Era um lugar
misterioso e labiríntico, preenchido com espaços separados
por paredes e antigas cisternas de água, cavadas
profundamente na rocha. Por um momento ele ficou
sozinho, quando Helena e Costas saíram para procurar velas.
Tudo o que podia ouvir era um som como uma exalação
distante, como se os ecos de dois milênios de preces
estivessem presos dentro do leito de rocha, para ressoar para
sempre. Por um instante, sentiu-se como um daqueles
peregrinos, no final de um caminho desconhecido,
carregado de perigos e de incertezas, que o conduziu por
fim para o mais Santo dos Santos. Helena e Costas
retornaram, e pararam de cada lado dele, cada um com meia
dúzia de velas em uma mão, uma acendendo a outra.
Começaram a descer. Nas paredes úmidas, além dos degraus,
Jack viu centenas de antigas cruzes, talhadas nas rochas por
peregrinos que passaram por ali antes dele. Sabia que cada
centímetro do leito de rocha ao redor deles havia sido
modelado e alisado por mãos humanas, mas, à medida que
desciam em profundidade, Jack sentiu como se estivessem
se afastando da história fabricada e indo em direção à
verdade, se afastando da esperança e anseios e fantasias
incorporadas nas paredes acima para se aproximar da
verdade dura do passado, daquilo que realmente aconteceu
nesta rocha desnuda quase dois mil anos atrás. Parou
novamente, tentando escutar, mas não ouviu nada. Olhou
para o relógio e pensou em Maclean. Tinham menos de duas
horas para ir embora. Era um empreendimento arriscado,
mas ele sabia que precisava assumi-lo, que esta era a linha
final de defesa. A palavra escrita. Agora eles deviam fazer
tudo que pudessem para alcançar sua meta. Estava a apenas
alguns degraus do chão da capela, e Jack podia ver que à
frente havia sombras profundas e luzes cor de laranja
emitidas por velas colocadas em algum lugar nas paredes.
Em seguida, eles se encontraram sobre o chão de pedra,
andando em meio a colunas escurecidas em direção a uma
porta de ferro gradeada do outro lado, perto do altar.
- Esta porta dá para a Capela de São Vartan - murmurou
Helena. - O antigo desbaste da pedreira abaixo de nós só foi
escavado nos anos 1970, e parte do espaço circundado foi
feito dentro de uma pequena capela armênia. Ela nunca foi
aberta para o público. Temos que esperar por minha amiga
Yereva para trazer a chave. - Olhou para o relógio. - Ela
esperava estar aqui neste horário, mas trabalha para o
patriarca e muitas vezes tem dificuldade para se afastar.
Houve um ruído sussurrante nas escadas que tinham
acabado de descer e uma figura saiu da escuridão em direção
a eles, vestindo um manto marrom e o capuz triangular
característico dos armênios. O capuz foi colocado para trás
para revelar uma jovem, com a pele cor de oliva e cabelos
encaracolados. Ela segurava uma vela em uma mão e um
grande aro preto com uma única chave na outra. Dirigiu-se
diretamente para a porta fechada, fazendo um gesto de
cabeça para Helena. - Estes são seus amigos? - perguntou em
voz baixa, num inglês com forte sotaque.
- São aqueles de quem lhe falei. Jack Howard e Costas
Kazantzakis.
- Tive que contar ao patriarca que estava vindo para cá. - A
mulher falou de novo em voz baixa.
- Durante o toque de recolher? - perguntou Jack.
- Temos nossos próprios corredores privados.
- Yereva é a curadora não oficial da capela - disse Helena. -
Por ser uma freira modesta, não lhe permitem ficar com as
chaves. Ela deve pedi-las a cada vez para o patriarca.
- Oficialmente, eu vim apenas para acender as velas e rezar
uma prece - disse a mulher. - Mas vou retornar
imediatamente, para o caso de haver alguma suspeita. Se eu
voltar logo para o patriarca, ninguém terá motivo para vir
me procurar. Vocês devem ficar sossegados até o final do
toque de recolher, o que deve durar pelo menos um par de
horas.
- Você não disse mais nada para ele? - perguntou Helena.
- Nada mais. Nada diferente de nossa rotina habitual.
- Vocês duas se encontraram antes aqui? - perguntou Jack.
- Helena lhe dirá - disse a mulher. - Adoraria entrar aí
dentro com um arqueólogo tão famoso, mas espero que
possamos nos encontrar de novo. - Ela virou a chave na
fechadura, e a porta se abriu. - Deus esteja convosco.
- Que Deus também esteja com você, Yereva - murmurou
Helena. - E seja cuidadosa. - Helena parecia ter perdido seu
sangue-frio, e pela primeira vez pareceu ansiosa. Acenou
com a cabeça para a outra mulher, que recolocou o capuz e
saiu apressadamente, andando com passos miúdos e rápidos
pelo chão de pedra e subindo as escadas. Helena se voltou
para Jack e Costas. - Venham. Podemos não ter muito
tempo. - Ela os conduziu por uma passagem escura,
acendendo as velas na parede com a sua própria vela à
medida que passava. Jack podia ver as paredes desbastadas
grosseiramente do leito de rocha ao redor deles, as marcas
de picaretas da antiga pedreira. A superfície parecia velha,
muito mais velha que a pedra na Capela de Santa Helena, e
estava esburacada como metal velho. Debaixo de uma grade
havia um buraco escuro, o fundo era invisível. Helena os
conduziu para uma câmara à direita e, acima de uma seção
da antiga parede, três camadas de tijolos acima, os blocos
estavam densamente cobertos com argamassa, um retoque
que parecia ter sido feito recentemente. Helena acendeu
mais velas, e eles puderam ver outra parede, em estilo
diferente, com a face acidentada de rochas cortadas ao redor
deles. Ajoelhou-se ao lado da parede e colocou sua vela na
frente. Os blocos mais distantes à esquerda, na metade do
espaço, estavam cobertos com uma manta pendurada, e
Helena a levantou e enrolou-a, prendendo-a em cima.
Abaixo se encontrava uma moldura com uma janela de vidro
cobrindo o bloco, e atrás dela Jack conseguiu distinguir a
superfície de uma rocha. Sabia para o que eles estavam
olhando mesmo antes de ela erguer a manta. Era uma
inscrição, feita de maneira irregular sobre a rocha, de uma
embarcação na Capela de São Vartan, o achado mais
extraordinário feito quando a pedreira foi escavada. Ele se
ajoelhou, Costas a seu lado. Podia ver claramente agora as
linhas do desenho, grosseiro, mas arrojado, os traçados
confiantes de alguém que sabia o que estava descrevendo,
que inscreveu os detalhes corretos mesmo neste local tão
distante do mar. Um homem do mar experiente, um
peregrino, um viajante cristão, um dos primeiros. Os olhos
de Jack se desviaram do desenho da embarcação para as
palavras escritas embaixo. Então ele se lembrou. Tinha
esquecido completamente que o grafito tinha uma inscrição.
Subitamente seu coração começou a acelerar. Leu
vagarosamente:

DOMINE IVIMVS

- É claro - ele sussurrou.
- O que é? - perguntou Costas.
- Você se lembra? Esta é a mesma inscrição que
encontramos na Califórnia, na pintura de Everett. - Olhou
excitado para Helena. - Foi isto que você reconheceu na
fotografia.
- Foi quando eu soube - ela disse.
- Everett deve ter estado aqui quando explorou o Santo
Sepulcro, e encontrou esta câmara. Foi daqui que ele copiou
a inscrição. - Jack apontou para as palavras grosseiramente
pintadas. - Domine Ivimus. Isto certamente encerra o
assunto. Everett esteve aqui, bem aqui onde estamos agora.
Era isto o que ele estava tentando nos dizer, o indício. De
alguma maneira, esta pedra é a chave para a coisa toda.
- Qual é a sua opinião sobre esse navio, Jack? - perguntou
Helena.
- Ele é romano, com certeza - murmurou Jack tentando
controlar sua excitação, estreitando os olhos. - A alta curva
da proa, a amurada reforçada, uma proa característica. É um
barco a vela, não uma galera. O mastro foi arriado, o que era
feito em grandes barcos nos ancoradouros. Dois outros
aspectos sugerem que era uma embarcação grande. Ela tinha
remos duplos de direção, e o que se parece com um
artemon, um mastro inclinado na proa. Meu palpite é que
estamos olhando para o tipo de navio visto no ancoradouro
da Cesaréia Marítima na costa da Judéia, um dos navios com
carregamentos de grãos que paravam ali no seu caminho
para o norte de Alexandria, no Egito, antes de se dirigir para
o oeste, para Roma. O tipo de navio que um peregrino do
oeste poderia tomar para retornar de sua viagem.
- Você pode datá-lo?
- São apenas conjeturas, mas parece ser mais do início do
que do final do período romano. Se eu tivesse visto isto em
algum outro lugar, teria dito século I d.C.
- A inscrição foi sem dúvida feita na mesma época, a mesma
largura e estilo de traçado - disse Helena. - Mas você é o
especialista.
- Bem, ela está em latim, o que naquela área significa não
antes que o primeiro século d.C., quando os romanos
chegaram à Judéia. Além disso, é difícil dizer. O formato das
letras certamente parece antigo, e não medieval.
- A inscrição pode ser traduzida como "Senhor nós iremos",
ou "Vamos à casa do Senhor" - disse Helena. - Ela tem sido
associada com o primeiro verso do Salmo 122, um dos
Cânticos das Subidas (também chamados de Cânticos da
Ascensão ou Cânticos dos peregrinos) que é cantado pelos
peregrinos que se aproximavam de Jerusalém. "Alegrei-me
quando me disseram, vamos à casa do Senhor".
- Isto realmente não nos ajuda a estabelecer as datas -
murmurou Jack. - Os Salmos eram originalmente hebraicos,
e foram provavelmente cantados pelos primeiros cristãos,
aqui na tumba e em outros lugares onde se reuniam nos
primeiros anos depois da crucificação.
- Verifiquei isso, e estas duas palavras juntas não aparecem,
de fato, no latim da Vulgata, a Bíblia romana do início do
período medieval - disse Helena. - Se elas são uma tradução
do Salmo 122, podiam ser do período inicial, antes que a
tradução latina fosse formalizada. Elas podiam ser uma
tradução feita por um dos primeiros peregrinos cristãos,
talvez de Roma.
- As embarcações vêm e vão, não é? - perguntou Costas. -
Quero dizer, isto não significa necessariamente um
peregrino vindo para cá. Podia ser alguém indo embora,
deixando Jerusalém. Aquela primeira tradução, "Senhor nós
iremos". Talvez seja de um dos apóstolos, praticando um
pouco de latim antes de se dirigir para o mundo amplo e
enorme.
Helena permaneceu silenciosa, mas sua expressão estava
transbordando de excitação. Jack olhou com atenção para
ela. - O que você não está nos contando? - ele perguntou.
Helena procurou algo no interior de seu manto e retirou um
pequeno plástico que abrigava uma moeda. Ela entregou-a
para Jack. - Eu e Yereva encontramos isto alguns dias atrás.
Nós praticamos um bocado de arqueologia não oficial. Havia
um gesso caído debaixo do grafito. A moeda estava
enterrada na base daquela pedra, em uma cavidade feita para
ela. É como aquelas moedas das quais você me falou, que os
romanos colocam na base dos mastros das embarcações, para
se precaver contra o infortúnio. Uma moeda de boa sorte,
um apotropaico.
- Nunca antes ouvi falar disso em uma construção -
murmurou Jack. - Você se importa? - Ele abriu a embalagem
e tirou a moeda. Segurou-a pela borda, e a luz da vela refletiu
o bronze gasto. Ele viu a imagem de uma cabeça de homem,
não refinada, com o pescoço grosso, com uma única palavra
embaixo. - Bom Deus - ele exclamou.
- Você percebe o que quero dizer? - replicou Helena.
- Herodes Agripa - murmurou Costas. - O amigo de Cláudio?
- O rei da Judéia, de 40 a 43 d.C. - disse Helena, assentindo.
Jack tocou a parede. - Então esta alvenaria não foi construída
pelo imperador Adriano, afinal de contas, como as pessoas
pensavam. Ela tem quase um século a mais.
- Quando a parede foi revelada durante as escavações, não
havia nada para fixar a data. Ela era nitidamente anterior à
parede de embasamento datada do século IV da igreja de
Constantino, que vocês podem ver ali adiante - disse Helena
apontando para sua esquerda. - O único registro de qualquer
construção neste local antes disso vem do livro de Eusébio
de Cesaréia, A vida de Constantino. Eusébio era um
contemporâneo do imperador, então provavelmente ele é
confiável no que diz respeito ao que se passava aqui no
início do século IV, quando o bispo Macróbio de Jerusalém
identificou a câmara desbastada na rocha debaixo do Edícula
como a tumba de Cristo, e Helena, a mãe de Constantino,
fez construir a primeira igreja aqui. Eusébio era inflexível ao
afirmar que o local tinha sido construído duzentos anos
antes, quando o imperador Adriano fundou Jerusalém de
novo com o nome de Colônia Aélia Capitolina.
- Ela era, aparentemente, um templo de Afrodite - disse
Costas, olhando à luz de vela um velho guia de viagem que
Jack lhe havia dado.
- Isto é o que Eusébio diz - replicou Helena. - Mas não
podemos ter certeza. Ele tinha a visão de um revisionista
cristão, que dizia que Adriano a construiu deliberadamente
no local da tumba para destruí-la, para insultá-la. Afrodite, a
Vênus romana, a deusa do amor, era considerada como uma
particular abominação pelos padres da Igreja em seus dias, de
modo que podia simplesmente ser alguma coisa que Eusébio
ou seus informantes imaginaram para o seu público leitor
cristão.
- Um bando de desmancha-prazeres - murmurou Costas. -
Qual era o problema deles com as mulheres? Achei que
Jesus era completamente a favor do amor.
Helena encolheu os ombros de maneira esquisita. - No
entanto, provavelmente Eusébio tinha razão acerca da data
da construção. Há outras seções aqui que são claramente da
época de Adriano. Mas ele não era um historiador de
arquitetura e nos seus dias pode não ter havido registro ou
memória de qualquer estrutura anterior, de alguma que
pudesse ter sido datada antes da destruição de Jerusalém
pelos romanos logo depois da Revolta Judaica em 70 d.C.
Jack estava olhando fixamente para a parede, com a mente
em tumulto. - Herodes Agripa - ele murmurou. - Isto
começa a fazer sentido.
- O que é? - perguntou Costas.
- Trata-se de uma das maiores questões não respondidas
neste local, no Santo Sepulcro. De um ponto de vista
arqueológico, quero dizer. Nunca entendi por que razão
ninguém a tratou apropriadamente. Talvez seja por causa da
Ressurreição, medo de se aproximar muito de um evento tão
sacrossanto, ou de revelar algo que ninguém queria que
fosse revelado.
- Isto está começando a me soar familiar - murmurou Costas.
- Continue.
- Helena tem razão. Além dos Evangelhos, não há evidência
escrita confiável sobre este local antes de Eusébio. Mas
ocorreu um evento logo depois da crucificação e do
sepultamento que nos proporciona uma possibilidade
arqueológica. O rei Herodes Agripa tinha planos grandiosos
para a Judéia, para sua capital Jerusalém. Ele se imaginou
como imperador do Leste, uma espécie de co-regente com
seu amigo Cláudio. Esta foi a destruição de Agripa. Antes de
sua morte em 43 d.C., provavelmente envenenado, um
plano que ele completou foi o grande aumento do tamanho
de Jerusalém, ao construir um circuito inteiramente novo de
paredes em direção ao noroeste. Ele abarcou a colina do
Gólgota e o lugar da antiga pedreira, onde nos encontramos
agora.
- O antigo cemitério, a necrópole - murmurou Helena.
- Precisamente. Quando os muros da cidade eram
aumentadas dessa maneira, freqüentemente as velhas
tumbas era esvaziadas, limpadas, e até mesmo usadas
novamente como habitações. Na tradição romana, nenhum
cemitério podia existir dentro da linha sagrada do
pomerium, dos muros da cidade. Herodes Agripa foi criado
em Roma, e pode ter fantasiado consigo mesmo ser bastante
romano para observar este costume.
- De qual data estamos falando? - perguntou Costas.
- De 41 a 43 d.C., provavelmente logo depois que Cláudio se
tornou imperador.
- E Jesus morreu em 30 d.C., talvez em 33 - disse Helena.
- Então, cerca de uma década depois da crucificação, as
tumbas devem ter sido limpadas - murmurou Costas. - Será
que Herodes Agripa tinha conhecido Jesus, sabia da
crucificação?
Jack respirou profundamente, e estendeu a mão para tocar a
parede. - Helena, provavelmente, está um passo a minha
frente neste assunto, mas realmente acredito que Herodes
Agripa tenha tido conhecimento de Jesus. Houve um tempo
anterior na vida de Herodes quando o contato foi possível.
E, desde o momento da crucificação em diante, não tenho
dúvidas de que o lugar de sua morte teria sido venerado pela
família de Jesus e por seus seguidores, que ele tenha se
tornado um lugar de peregrinação. E quando Herodes
construiu seus muros, as autoridades religiosas em Jerusalém,
e ele próprio no papel formal romano de pontifex maximus,
principal sacerdote, teria ordenado que todas as tumbas
dentro dos muros fossem esvaziadas. Mas, ao mesmo tempo,
ele ordenou a construção de uma estrutura de alvenaria
neste local. Por quê? Será que ele estava insultando Cristo,
tentando erradicar a tumba?
- Ou tentando protegê-la - murmurou Helena.
- Eu não entendo - disse Costas. - Protegê-lo? Herodes
Agripa?
- Pode ter havido todo tipo de fatores em jogo - disse Jack. -
Um pressentimento, um encontro casual, alguma
experiência anterior. Ou mesmo por uma razão política.
Podia ter estado profundamente em desacordo com as
autoridades judias, e ter mandado construir apesar deles.
Talvez não saibamos nunca. Permanece o fato de que temos
uma estrutura construída no provável lugar da tumba de
Cristo apenas alguns anos depois da crucificação, em uma
época em que esta colina já era o solo sagrado para os
primeiros cristãos.
- Então, há uma outra coisa que eu não entendo - disse
Costas. - A tumba de Cristo, o Santo Sepulcro, fica na
rotunda atrás de nós, pelo menos a oitenta metros na direção
oeste daqui, segundo meus cálculos. Se esta parede a nossa
frente, esta que vocês acham que foi construída por
Herodes, pertence a uma estrutura que de alguma maneira
recobre a tumba, então o grafito da embarcação se encontra
do lado de dentro. Dentro da estrutura que circunda a
tumba, em um local escondido. Isto simplesmente não faz
sentido para mim. Olhando para o lugar e considerando o
desgaste da alvenaria, eu diria que é mais provável que se
encontre do lado de fora de uma estrutura.
Jack agachou-se de novo. - Meu trabalho de adivinhação
terminou. A bola está com você agora, Helena - ele disse,
devolvendo-lhe a moeda.
- Fique com ela - murmurou Helena. - Há outras pessoas
que podem suspeitar que eu detenho alguma coisa, e é mais
seguro que ela fique com você até que tudo isto termine. -
Ela apontou para a mochila caqui, e Jack assentiu,
recolocando a moeda em seu invólucro e enfiando a moeda
bem no fundo da mochila. Ela o observou, depois pegou de
cada lado da peça de vidro que cobria o grafito, erguendo-a e
retirando-a. Colocou cuidadosamente o vidro no chão,
depois se ajoelhou e começou a remexer com os dedos
dentro do pedaço de argamassa colocado debaixo do bloco. -
Há algo que eu ainda não lhes mostrei - ela disse, retraindo-
se quando a rocha arranhou sua mão. - Quero que vocês
considerem isto primeiro independentemente, para obter
uma avaliação objetiva.
- Acerca do grafito da embarcação? - perguntou Jack.
Helena retraiu-se novamente, e depois agarrou dois pontos
debaixo da argamassa, e houve um ligeiro movimento. -
Consegui - ela disse. Retirou um pedaço da argamassa e
colocou-o ao lado do vidro. Metade da base do bloco estava
revelada agora, com uma fenda escura debaixo. Ela se
ajoelhou e soprou na face inferior do bloco, afastando-se
rapidamente para evitar a pequena nuvem de poeira. - Ali -
ela disse.
Jack e Costas se ajoelharam onde ela estivera. Havia mais
marcações, inscrições. Viram um símbolo Qui-Rô,
grosseiramente talhado na rocha. Ao lado havia outra
inscrição, uma palavra pintada, claramente parte do mesmo
grafito como o da embarcação e da inscrição em latim, o
mesmo formato de letras e o mesmo movimento do pincel.
Costas estava mais perto, e olhou atentamente tentando
obter um ângulo melhor. Afastou-se novamente. Ambos se
olharam com olhos arregalados.
- Jack, estou sentindo a estranha sensação de déjà vu
novamente.
Jack quase se sentiu desmaiar. Ele se deu conta de onde
tinha visto aquele estilo de letra antes. A forma do V, o
elemento quadrado na composição do S. O antigo navio
naufragado.
O navio naufragado de são Paulo.
- Meu Deus - ele sussurrou. - Paulus. - Engoliu com
dificuldade, e sentou-se. - São Paulo, o apóstolo, esteve aqui.
São Paulo, cujo nome vimos uma semana atrás, trezentos
metros debaixo do mar, rabiscado em uma ânfora que estava
em um navio naufragado. Não podia haver dúvida a respeito
daquilo. Este grafito havia sido entalhado por são Paulo. Este
é o seu navio. Domine Ivimvs. Senhor, nós iremos. Costas,
você estava certo. O homem que traçou isto estava indo,
não vindo. Ele veio para cá contar para seu Senhor que ele
estava prestes a partir em sua grande missão, para espalhar a
palavra fora da Judéia. Paulo esteve aqui, sentado na ladeira
no mesmo lugar em que estamos agora, ao lado da parede
construída por Herodes Agripa apenas poucos anos antes.
- No local da peregrinação - disse Helena. - Na tumba de
Cristo.
- Na tumba de Cristo - repetiu Jack. Ele viu que Helena
estava apontando para a fenda debaixo do bloco. - Jack, dê
uma olhada lá dentro. Não foi colocada argamassa ali.
Lembra que eu lhe contei que sabia da existência de alguns
blocos com espaços atrás deles? A argamassa que você pode
ver ao redor do bloco é moderna, depois há uma outra
camada lacrada que também é relativamente recente, feita
dentro dos últimos cem anos mais ou menos.
- 1918? - perguntou Jack.
- Estou convencida disso.
- Everett - murmurou Costas. - Você está dizendo que ele
encontrou isto e removeu o bloco. Nós também podemos
removê-lo?
- É por isso que eu precisava de vocês dois aqui - disse
Helena. - Quando eu e Yereva encontramos pela primeira
vez a inscrição de Paulo, percebemos que havia um espaço
atrás. Vocês podem vê-lo através da fenda. Pode ser apenas
um espaço não utilizado atrás da parede, ou uma outra
cisterna de água. Há pelo menos onze cisternas debaixo do
Santo Sepulcro para coletar água de chuva, muitas delas fora
de uso ou lacradas. Ou pode ser alguma outra coisa. Não
houve maneira de conseguirmos deslocar este bloco, e, se
fôssemos encontradas tentando fazê-lo, haveria mais um par
de crucificações neste local.
- Você contou para mais alguém sobre a inscrição de Paulo?
- perguntou Jack
- Vocês são os primeiros. Mas outras pessoas sabem, e
mantiveram o segredo. A argamassa em cima da inscrição é
recente, do período da escavação nos anos 1970. Eles a
encontraram, depois a esconderam.
- Não compreendo - disse Costas. - Certamente uma
descoberta como esta daria para os armênios uma vantagem,
realmente aumentaria sua importância, não é?
- Trata-se sobretudo da manutenção do status quo neste
local - murmurou Helena. - Eles podem ter receado que a
inveja das outras congregações rompesse o sistema de
controle mútuo entre elas, reduzisse os direitos e privilégios
que eles deram duro para manter no decorrer dos séculos. É
melhor deixar uma descoberta como esta como seu segredo,
fortalecer seu senso de superioridade, uma munição que
poderia ser necessária para o futuro.
- E pode ter havido outros fatores em jogo - murmurou Jack.
- O concilium? - perguntou Costas.
- O medo de atrair forças sombrias sobre si, forças que
fariam de tudo para erradicá-los simplesmente por causa do
que eles sabiam, exatamente como quase aconteceu com os
etíopes - murmurou Jack.
- Vamos - disse Helena. - Vamos continuar. - Ela começou a
retirar mais pedaços de argamassa ao redor do bloco com
seus dedos. Eles saíam de maneira surpreendentemente
fácil, em pedaços grossos que pareciam ter sido removidos
anteriormente e depois lacrados de novo. Depois de alguns
minutos, o bloco inteiro tinha saído, formando uma fenda
ao redor das extremidades de alguns centímetros de largura,
o suficiente para fazer entrar pela abertura uma mão aberta.
Jack remexeu em sua mochila e retirou uma headlamp de
alpinista, acendendo-a e empurrando-a através da fenda até
o ponto mais largo. - Percebo o que você quer dizer - ele
murmurou, com o rosto próximo da fenda. - Com a retirada
do bloco, nós estaríamos olhando para um espaço de cerca
de um metro de comprimento por meio metro de largura,
grande o suficiente para uma passagem estreita e baixa.
- Você acha que pode fazê-lo? - perguntou Helena. - Quero
dizer mover o bloco?
- Só há uma maneira de descobrir. - Jack passou a lâmpada
para ela, depois fez um gesto para Costas. Cada um deles
colocou as mãos debaixo de um canto do bloco. - Temos que
tentar balançá-lo para retirá-lo - ele disse. - Vamos fazer isto
suavemente. Em direção a você primeiro. - Eles o ergueram
e o bloco se moveu. Costas gritou de dor. - Você está bem? -
perguntou Jack. Costas retirou uma mão, balançando-a e
soprando sobre ela, e assentiu. Enfiou-a de novo debaixo da
pedra, que agora estava alguns centímetros fora da parede. -
De novo. - Eles a empurraram para frente e para trás mais
meia dúzia de vezes, a cada vez puxando-a mais para fora.
Ela saía de maneira inesperadamente fácil. Mudaram de
posição de modo que ficaram de frente um para o outro,
com ambas as mãos debaixo da pedra. - Erga - disse Jack.
Cada um deles com uma das mãos por debaixo da
extremidade exterior da pedra, movimentava a outra mão de
volta cada vez que a pedra vinha para frente, mantendo as
mãos perto da parede. Eles se aproximavam da possibilidade
de erguer a pedra inteira cada vez que a puxavam um pouco
para fora. Helena ergueu um par de pranchas de madeira que
havia encontrado ao lado da grade exterior da capela,
posicionando-as debaixo da pedra. - Muito bem. É isso -
disse Jack. - Vamos tentar retirar a pedra por um metro.
Cuidado com as costas. - Ambos se endireitaram o mais que
puderam, olharam um para o outro, e se puseram de acordo
com um gesto de cabeça. Com um movimento rápido,
retiraram o bloco da parede, o arrastaram para fora e o
colocaram nos lugares predeterminados. Os dois homens
retiraram as mãos, balançando-as e respirando com força. -
Muito bem - disse Jack, ofegante. - O que conseguimos?
Helena já estava olhando atentamente dentro do espaço,
segurando a headlamp de Jack tão distante quanto podia. - O
espaço adentra por cerca de cinco metros, depois há uma
outra parede, uma parede desbastada na rocha, pela sua
aparência - ela disse. - Depois a parede parece baixar para
algum lugar. - Helena se ajoelhou voltando para trás, e
passou a lâmpada para Jack. - Se é uma cisterna, ela podia ser
submersa - ela disse. - Estamos no lugar mais profundo
debaixo do Santo Sepulcro, e tem chovido muito durante os
últimos dias. E agora?
Jack olhou para Costas, que lhe devolveu o olhar, seu rosto
estava inexpressivo.
- Jack, nós temos um trato - disse Costas. - Nada de irmos a
lugares subterrâneos.
- Você está fora da situação difícil desta vez. O lugar é muito
estreito.
- Você concorda com isso? Quer dizer, em ir sozinho?
Jack olhou dentro do espaço. - Não acho que vou fugir deste
aqui.
- Não, você não vai.
Jack ajeitou sua lâmpada sobre a cabeça, depois pegou a
mochila caqui e empurrou-a para frente dentro do buraco,
tanto quanto podia.
- Sua mochila da sorte - disse Costas para Helena. - Ele
nunca vai a nenhum lugar sem ela.
Helena olhou nervosamente para a entrada da capela. - Seja
rápido - ela disse. - Precisamos sair logo daqui. - Ela voltou o
olhar para Jack, depois tocou em seu braço. - Domine
Ivimus - ela murmurou. - Boa sorte.

Momentos mais tarde, Jack se encontrava dentro do espaço
onde estivera o bloco de pedra, movendo-se lentamente à
frente sobre seu estômago, todo esticado e achatado
empurrando a mochila para frente. A entrada pela parede se
encontrava apenas poucos metros atrás, mas ele já se sentia
completamente isolado, separado da capela atrás dele,
fazendo parte de um outro espaço que podia ver na frente
de si dentro do feixe de luz de sua headlamp. Lembrou-se de
Herculano, o extraordinário sentimento de retroceder no
tempo quando entraram na biblioteca perdida. Ele sentia a
mesma coisa aqui, como se fazendo parte do mesmo
continuam, como se tivesse se introduzido
despercebidamente mais além naquela descoberta e se
encontrasse agora um passo mais recuado na história, tão
distante quanto sentia que podia retroceder. Por uma vez,
sua claustrofobia não o atacara, e ele se sentia estranhamente
confortado pela antiga pedra, protegido por ela. As últimas
palavras de Helena continuavam a girar em sua cabeça, as
duas palavras em latim, e ele se surpreendeu murmurando-
as, um canto profundo que parecia vir por instinto, que o
mantinha concentrado. Ele se empurrou para frente até não
haver mais nenhuma luz vindo da entrada atrás de seus pés.
A rocha à direita era uma continuação da parede com o
grafito, formando ângulos retos com ela. A sua esquerda e
acima dele era um leito de rocha, entalhado e cortado de
acordo com as marcações da pedreira, tão velhas que elas
quase pareciam fazer parte da ordem natural das coisas,
como se a antiga marca do homem tivesse perdido seu
significado e se tornado apenas um outro processo de erosão
e de transformação que havia dado forma a este lugar.
Adiante dele, o túnel terminava abruptamente no lugar onde
Helena percebera a parede, mas ele podia ver onde ela se
juntava a um outro espaço à direita. Empurrou a mochila
para o canto esquerdo e posicionou o corpo ao redor,
comprimindo-se dentro da abertura. Ela quase não era
suficientemente larga, e as beiradas cortantes o arranhavam,
rasgavam sua camisa e esfolavam-no. Avançou pela abertura,
retraindo-se onde a rocha o prendia. Encontrava-se num
espaço mais largo agora, o suficiente para rastejar sobre as
mãos e os pés. A sua direita, formando um ângulo de
noventa graus com o túnel, havia uma parede de alvenaria,
com pelo menos cinco camadas de largos blocos talhados.
Seu rosto encontrava-se a poucos centímetros dela, e ele viu
que ela era formada pela mesma pedra que a da parede
exterior com o grafito do navio, só que aqui a superfície da
pedra não era gasta, não era estragada. Percebeu que o
espaço que rastejara o levara ao longo da lateral de uma
estrutura retilínea construída contra a face da pedreira, e que
agora ele se encontrava atrás dela, dentro de uma cavidade e
que a estrutura tinha sido construída para escondê-la. Virou
a cabeça para a direita, em direção à face da pedreira. O resto
da pedra era natural, um leito de pedra. Acima dele havia
grandes talhos retilíneos, a extremidade de uma pedreira
antiga. Abaixo dos talhos, viu uma estreita abertura que se
abria para uma câmara desbastada na rocha, seu teto e as
laterais superiores de alguns metros eram visíveis. Abaixo
disso, a câmara estava cheia de água, uma piscina preta que
brilhava quando a headlamp incidia sobre ela. Rastejou até a
beirada e olhou-a atentamente. Pôde perceber que ela era
profunda, pelo menos tão profunda como as cisternas de
água que ele tinha visto no caminho dentro da Capela de São
Vartan.
Havia pouco espaço para manobra, e ele se debateu sobre as
costas, abriu o zíper e tirou as botas, retirou todas as suas
roupas. Rastejou de volta para a beirada da piscina, ainda
com sua headlamp e deslizou para dentro dela. A água estava
fria, refrescante, instantaneamente purificadora. Por um
momento, ele flutuou tranqüilo na superfície, o rosto para
baixo, os olhos fechados. Depois, olhou para baixo. Sem uma
máscara, a imagem ficava indistinta, pobremente definida, e
seus olhos sofriam com o frio. Mas a água era clara e
cristalina, e ele podia ver a dança do feixe de luz na rocha,
nas paredes talhadas, nos cantos. Era formada por um corte
profundo, de pelo menos cinco metros até o fundo,
retilíneo. Girou a cabeça para um lado para obter mais ar,
depois imergiu o rosto novamente, com os olhos abertos.
Quando o feixe de luz passou embaixo, ele viu que havia
uma ampla abertura na lateral da câmara, arqueada em cima,
plana embaixo, uma saliência em forma de prateleira
bastante larga para dois ficarem deitados lado a lado. Abaixou
a cabeça e olhou, mas se deparou com um brilho de luz
ofuscante, que refletia uma superfície polida. Ficou ali
olhando para o resplendor cheio de partículas, sem registrar
nada, com a mente paralisada de assombro. Aquela não era
água de cisterna.
Subiu em busca de ar, depois rapidamente olhou de novo
para baixo. Saindo do nada, ele teve uma imagem de
Elizabeth, depois de Helena, e, por uma fração de segundo,
talvez por um truque da luz, percebeu uma forma humana,
um reflexo do seu próprio corpo flutuando na beirada da
prateleira polida. Arremessou a cabeça para cima, respirando
com dificuldade, em busca de ar, e sua headlamp escorregou
para fora da cabeça, indo em espiral para baixo através da
água e para fora de seu alcance. Piscou fortemente, depois
olhou de novo. A prateleira não era mais visível no escuro, e
tudo o que ele conseguiu ver foi o final da câmara, uma
imagem borrada de sombras e de luz, do feixe de luz onde a
lâmpada havia caído refletindo apenas cantos da rocha.
Encheu os pulmões de ar, arqueou as costas e mergulhou,
empurrando-se para baixo com fortes braçadas, sentindo a
alegria da liberdade novamente, de estar debaixo d'água, de
estar no lugar ao qual ele pertencia.
Então ele o viu.
Um cilindro de pedra pousado no fundo, branco,
exatamente igual aos que vira antes, metade de uma vida
atrás, em uma antiga biblioteca debaixo de um vulcão, uma
biblioteca que era de propriedade de um imperador romano
que tinha vindo aqui para a Terra Santa, procurar a salvação
nas palavras daquele que morava ao lado do mar da Galiléia.
Então ele se deu conta.
Everett havia encontrado a tumba.
Ele atingiu o fundo.

CAPÍTULO 23

Jack puxou-se de volta para a extremidade do espaço onde
eles tinham retirado o bloco, sua mochila empurrada adiante
dele. Colocou-a no chão da capela, depois esticou as mãos
para baixo e usou-as para conduzir-se para fora. As velas
ainda estavam acesas, mas não havia ninguém à vista. -
Costas? - ele chamou, a voz ecoando de volta para ele. -
Helena? - Não houve resposta. Puxou as pernas para fora e
agachou-se, retirando a correia da mochila do seu pescoço.
Sacudiu os cabelos e enxugou o rosto. Eles talvez tivessem
voltado para a primeira câmara, para a Capela de Santa
Helena. Verificou o relógio. Faltavam vinte minutos para
meia-noite. Se Maclean tivera sucesso, Jack agarrou a
mochila, aquele empreendimento também poderia ter
sucesso. E o que quer que acontecesse agora para eles, o
mundo ficaria sabendo.
Ergueu-se dolorido e caminhou em direção à entrada da
capela, saiu dentro da gruta da pedreira. Jack enxugou o
rosto novamente com as costas da mão, percebeu como
estava encardido, ainda gotejante. A sua frente podia ver a
porta gradeada, pela qual tinham entrado, ainda aberta. Atrás
dela havia luz de vela na Capela de Santa Helena, as colunas
centrais escurecidas, os degraus na escuridão mais atrás que
conduziam para o andar principal do Santo Sepulcro, depois
para o mundo exterior. Caminhou para frente. Ainda nada.
Algo estava errado. Depois um som, um som que estava
deslocado, metálico. O som de uma arma sendo engatilhada.
Então era isso. Ele se manteve no lugar, o coração acelerado,
e olhou ao redor. Lentamente, caminhou para dentro da
capela.
- Doutor Howard. Nós nos encontramos novamente. - A
voz instantaneamente se tornou familiar, com o vestígio de
um sotaque do Leste europeu. Era a voz do homem que
encontrara em outro subterrâneo dois dias atrás, um homem
que ele e Costas nunca viram a não ser na sombra.
Subitamente, Jack sentiu um aperto frio na boca do
estômago. Helena tinha razão. Ele não disse nada, a mente
paralisada, mas continuou a caminhar cautelosamente sobre
o chão de pedra irregular, mantendo os olhos afastados das
velas para se acostumar com a escuridão. Então a figura
parou na frente dele, nas sombras novamente, ao lado do
altar e de uma estátua de uma mulher segurando uma cruz,
Santa Helena. Jack ficou parado e silencioso, os pés
separados, olhando de um lado a outro, tentando distinguir
outras pessoas na escuridão.
- Quero vê-los - gritou Jack rispidamente.
Fez-se uma pausa, um som de dedos estalando, depois,
alguém com uma veste desgrenhada de monge, foi
empurrado para frente, tropeçando na rocha e caindo
pesadamente sobre um cotovelo. Era Yereva, com o rosto
queimado e intumescido. - Eu não disse nada, Helena - ela
deixou escapar, olhando para a escuridão atrás dela. -
Alguém me seguiu. - Depois o silenciador de uma pistola foi
colocado contra a sua cabeça, e ela foi puxada de volta para
as sombras.
- Você vê, nós sabemos de tudo durante o tempo todo -
disse o homem, seu rosto invisível. - Temos olhos e ouvidos
por toda parte. Muitos irmãos de boa vontade. - Jack o viu
estalar os dedos novamente. Uma outra figura apareceu,
empurrada, um homem de barba vestindo um manto
episcopal, apertando uma cruz ornada ao seu peito. Jack viu
uma pistola movendo-se de um lado ao outro em direção ao
bispo, que se voltou para Jack e olhou de modo suplicante,
torcendo-se para um lado. Jack disse irado. - Este é um de
seus irmãos de boa vontade? - ele perguntou.
O bispo falou rapidamente em sua própria língua,
implorando. O homem que estava nas sombras se voltou
para ele, com a voz baixa, malévola. Disse alguma coisa em
latim. O bispo parou de falar, parou enraizado no local,
depois começou a tremer, chorando.
- Você vê? - disse o homem, voltando para trás. - Todo
aquele que serve à Igreja tem boa vontade.
- Quero ver Costas e Helena - disse Jack de novo
rispidamente.
Dentro das sombras, o homem falou, em italiano, dirigindo-
se para um lado. - Pronto - ele disse. Os dedos estalaram
novamente. Houve uma briga, e uma exclamação com
ruídos. Costas foi subitamente empurrado para debaixo da
luz da vela, tropeçando e ficando ereto depois, com uma fita
adesiva colocada sobre a boca e as mãos atadas atrás das
costas. Estava respirando muito alto, absorvendo o ar através
de suas narinas bloqueadas, o peito se levantando. Jack podia
ver o tubo preto de um silenciador atrás de seu pescoço, e o
contorno escuro de uma figura atrás dele. Uma figura com o
braço dentro de uma atadura rígida. Agora a mente de Jack
estava trabalhando ativamente. O assaltante deles em Roma.
Costas prendeu o olhar de Jack, seus olhos estavam
arregalados, desesperados.
- Tire a fita adesiva - gritou Jack, ríspido. - Ele não pode
respirar.
- Ele não tem nada a dizer - replicou tranquilamente o
homem perto da estátua. - E nem você.
Jack subitamente ficou sabendo, com uma certeza
desapaixonada. Aquele local não era mais uma capela. Era
uma câmara de execução. Olhou para o relógio. Precisava
esticar aquele momento. Apenas mais dez minutos.
Acrescentou sua prece àquelas que tinham sido ditas antes. -
Presumo que aquele pequeno tumulto nas ruas não foi
coincidência - ele disse. - As facadas, o toque de recolher, o
corte de eletricidade.
- Isto sempre serve ao nosso propósito de manter o estado
judeu em desordem - disse o homem. - E sempre tem sido
fácil infiltrar grupos extremistas, em ambos os lados.
- Quando nos encontramos antes você disse que queria pôr
um ponto final nisso.
- Eu precisava convencê-lo.
- Você nos contou a verdade sobre o concilium, sobre
Cláudio e o último evangelho.
- Precisava lhe dar material suficiente para encontrar o que
nós queremos. Para nos trazer a este lugar. Para resolver o
assunto, como você diz. Por intermédio de Narciso,
sabíamos que Plínio pegara o que Cláudio lhe dera para levar
a Roma, e que Cláudio havia visitado a tumba em Londres. O
resto era trabalho seu. E depois houve outras pistas. O
Museu Getty, o convento em Santa Paula, aqui. O seu jovem
colega americano confia demasiado em seus amigos. Não
que isso deva lhe importar agora.
- Jeremy. - Jack sentiu novamente um frio na boca do
estômago.
- Está vivo. Por enquanto. Assim como os seus colegas em
Nápoles. Seguros no meio dos grupos de pessoas de nossa
extensa família - O homem fez um gesto de assentimento
para a figura escurecida pelas sombras atrás de Costas. -
Quando chegar a hora, será rápido. Uma bala na cabeça, um
outro corpo incinerado. Ninguém nunca saberá. Este tem
sido sempre o nosso método.
- Como você sabe que eu não teria contado para outros?
Sobre o concilium?
- Porque você precisava manter isto em segredo até que o
que procuramos fosse encontrado. Eu o induzi a acreditar
que outras pessoas também estavam procurando por isto,
seguindo sua pista. E eu estava dizendo a verdade. Eu vi
através de você, doutor Howard, eu vi através de você,
quando estava sentado diante de mim em Roma, ao lado da
tumba de são Paulo. Nós somos o seu pior pesadelo. Você
nunca pode escapar de nós. Estamos sempre com o
controle.
- Você realmente acha que são Paulo teria desejado tudo
isto? - perguntou Jack.
- São Paulo foi o nosso iniciador. Nós protegemos a sua
Igreja. Ele nunca podia ter previsto as guerras que temos que
lutar, os sacrifícios que temos que fazer. In nomine patre,
filii et spiritu sancti. A nossa guerra é a guerra de toda a
humanidade. O Diabo é onipresente.
- Somente dentro da sua mente - disse Jack. - O concilium
procurou dissidência, e criou furor a fim de justificar a si
mesmo. Auto-satisfazendo a si mesmo e se autodestruindo.
- Eu não penso assim, doutor Howard - disse o homem
friamente.
- Você não irá longe com esses assassinos como ajudantes.
- De onde eu venho há muito mais pessoas. - O homem
retirou a cabeça para as sombras detrás dele. - Nossa extensa
família, como eu disse.
- A família? Eles não parecem se importar com o que
fizeram para seus parentes, seus pais, seus vizinhos.
Elizabeth d'Augustino era minha amiga.
- Ah, Elizabeth. Depois, ela os traiu, a sua família. Sabemos
que ela tentou avisá-lo, quando vocês estavam em
Herculano. Mesmo então, ela conhecia seu destino. Este
tem sido sempre o método.
- O que vocês fizeram para ela?
- O caminho ficará limpo.
- Se eu fosse você, teria muito cuidado ao escolher em quem
confiar. Eles são traficantes de drogas agora, não servidores
do Senhor. Um dia, virão atrás de você.
- Blasfêmia - sibilou o homem. - Eles têm sido nossos fieis
servidores por centenas de anos. Nada mudou, e nada
mudará.
- É nisso que você está errado. Há muitas dificuldades para
ultrapassar em seus métodos. Outros procurarão por vocês.
Por causa do que fizeram. O peso de sua própria história os
destruirá.
- Ninguém ficará sabendo. Nunca deixamos um rastro. - O
homem fez um gesto para alguém dentro da escuridão atrás
dele. - Há onze cisternas de água escavadas profundamente
na rocha debaixo deste lugar. Você já está dentro da sua
própria tumba. - Fez um gesto com a cabeça para a figura nas
sombras, depois retirou um celular de seu bolso e o ergueu. -
Quando você desaparecer, eu vou sair e telefonar para
Nápoles, depois Londres. No final do dia, todos vocês terão
desaparecido. Nada disso jamais terá acontecido.
Jack olhou para o seu pulso. Só dois minutos. - O cheiro da
morte - ele disse. - Você não pode esconder o cheiro da
morte. - Ele olhou para Costas, que subitamente estava
olhando fixamente para ele, e parecia ter parado de respirar.
- Nós seremos encontrados.
- Tudo aqui cheira a morte - o homem riu com escárnio. -
Você já esteve alguma vez no monte das Oliveiras? O cheiro
repugnante e adocicado da morte se encontra por toda parte.
E você não será o primeiro. De Pelágio em diante, outros
trouxeram suas ilusões para cá, e não foram adiante. E aqui
estamos no maior templo para a morte, a própria tumba de
Cristo, Nosso Senhor.
- Você acredita nisso? Que ele foi enterrado aqui? -
perguntou Jack.
- Eu só conheço a ascensão de Cristo. Sei pouco sobre Jesus
o homem.
- Este é o seu problema.
- Você vai nos dar o que encontrou. Não faz diferença se os
seus companheiros morrem agora ou dentro de dois
minutos. Capisce? - ele disse de dentro das sombras, e Costas
e Helena subitamente balançaram bruscamente, o homem
com o silenciador atrás deles. - Dê agora para mim o que
você encontrou e o fim será rápido.
Jack respirou profundamente, enfiou a mão dentro de sua
mochila e tateou em volta, cobrindo o que estava
procurando com sujeira molhada. Ele o puxou para fora,
caminhou adiante e colocou o objeto ao lado de uma vela no
altar, perto da estátua da mulher com a cruz. Deu um passo
atrás. Costas e Helena olharam ambos para aquilo, mas não
disseram nada. Era o cilindro de bronze encontrado na
tumba de Boudica, o mesmo cilindro que Cláudio colocara
ali, o cilindro que Jack levara secretamente consigo para
Jerusalém. O homem estendeu a mão e agarrou-o. - Você
nos conduziu até ele, e nós o encontramos. Isto se passou
como deveria ser. A vontade do Senhor está feita.
- Você pode querer verificar dentro dele - disse Jack em voz
baixa. Olhou novamente para o seu relógio. Zero hora.
- Isto é uma blasfêmia - o homem sibilou de novo. - Eu não
vou abri-lo. Uma impostura criada por aquele Cláudio louco.
Uma falsidade que iludiu todos aqueles que a procuraram.
Isto será triturado e queimado e atirado em sua tumba. Você
pode tratar com carinho seu tesouro por toda a eternidade.
Chegou o momento. - Ele estalou os dedos, e Costas foi
empurrado em direção a um buraco negro no chão ao lado
dele, o cano da arma encostado em sua nuca. Jack avançou
adiante e ergueu sua mão. - Espere - ele disse. - Há uma
coisa que você deveria ver primeiro. Algo mais que eu
consegui. Agora. - Estendeu a mão para o bolso de sua
mochila. A pistola girou abruptamente em direção a sua
cabeça. Deteve sua mão. - É um computador. - Ninguém se
moveu e fez-se silêncio. Jack cautelosamente continuou, e
retirou um laptop do tamanho de uma palma de sua mochila.
Caminhou de volta e colocou-o no altar diante da estátua,
abrindo-o. Ele já estava funcionando. A tela mostrava uma
manchete da CNN. - Isto foi levado ao ar uma hora atrás,
antes que entrássemos na igreja - ele disse. Jack bateu de
leve em uma tecla. O artigo apareceu, a manchete do artigo
chamando a atenção no topo da tela.

O ÚLTIMO EVANGELHO?
TUMBA PERDIDA É DESCOBERTA

Jack voltou-se para o homem. - Você vê? - ele disse. - Eu
também tenho amigos. Irmãos de boa vontade, como você
diria. Enquanto nós conversamos, esta história está sendo
divulgada através de agência noticiosa ao redor do mundo.
Planejei para que ela fosse publicada às dezenove horas, e já
passamos desta hora. A história inteira foi publicada. Meu
nome, o seu nome. Este lugar. Dois mil anos de terrorismo,
de assassinatos. Tudo o que você nos contou de maneira tão
proveitosa sobre o concilium.
- Você não sabe o meu nome - sibilou o homem.
- Aqui você se engana. Esta é a única coisa que Elizabeth
conseguiu me dizer. Cardeal Ritter.
O homem soltou um grito de raiva, caiu para trás,
arrastando-se em busca da parede. Naquele momento,
houve um estrépito e uma luz ofuscante brilhou vinda da
entrada da capela. Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Costas
foi rapidamente adiante, depois girou para trás, batendo com
o ombro na figura atrás dele, agarrando-a pelo estômago e
jogando-a estatelada no chão. Eles ouviram gritos em
hebraico, e duas figuras uniformizadas avançaram saindo do
lugar iluminado. Carabinas M4 apontadas à frente. Um deles
arrancou a fita adesiva da boca de Costas e cortou a corda
que amarrava seus pulsos. Costas espirrou profusamente,
depois se abandonou em cima de Jack, respirando com
dificuldade. - Isto entrou em cena de maneira conveniente -
ele disse ofegando e acenando com a cabeça para o cilindro
de bronze. Helena se aproximou para ajudar Costas, e Jack
podia ver Ben mantendo a guarda na entrada da sala, um
inspetor de polícia israelense, e Maclean ao lado dele. Jack
estendeu a mão e segurou Costas pelos ombros. - Graças a
Cristo por isso. E agora você sabe. Eu não me tornei um
caçador de tesouros, afinal de contas. Tudo tem um
propósito mais elevado.
- Não tente me dizer que você planejou tudo isto muito
antes - ofegou Costas.
- Foi simplesmente uma precaução. Mas enviar Maclean
para montar um press release foi um empreendimento
arriscado. Custou-me um bocado de tempo.
- Isso não se parece com você, Jack.
- Atirariam ovos em nossas caras se não encontrássemos
nada, mas, ainda assim, seria melhor do que aquilo que o
nosso amigo tinha em mente para nós - disse Jack,
mostrando a cisterna com a cabeça. - Achei que algo assim
poderia acontecer.
- Muito bem concebido, Jack - disse Helena, se
aproximando e colocando as mãos em volta dele. - Não é o
Jack Howard de que me lembro. Planejar o futuro nunca foi
o seu forte. Você sempre seguia o seu faro.
- Isto me lembra de algo - disse Costas, espirrando
novamente. - Obrigado por aquele momento em que falou
sobre o cheiro da morte. Foi um belo toque. Quase vomitei
dentro daquela mordaça. Exatamente o que eu queria.
- Achei que você precisava de um pouco de incentivo.
- Nunca, nunca mais faça isso, Jack. Jamais.
- Nunca - prometeu Jack solenemente.
O homem nas sombras permanecia fixado ao lado da estátua.
Jack tinha mantido o olhar sobre ele, e subitamente
percebeu que toda a atenção tinha sido concentrada no
homem com a arma atrás de Costas, o homem que estava
junto com o cardeal e que os policiais tinham visto quando
irromperam dentro da capela. De repente, o cardeal
arremeteu para frente e agarrou o cilindro de bronze, depois
saiu correndo com ele em direção à entrada que dava para a
antiga pedreira, a porta gradeada. - Agora eu o peguei. Vou
destruí-lo. Vocês nunca saberão o que ele contém.
- Você está errado de novo. - Jack enfiou a mão dentro de
sua mochila, e cuidadosamente retirou um outro cilindro,
aquele que ele tinha pegado na câmara subterrânea alguns
minutos atrás. - O que você tem em mãos é um cilindro de
bronze que peguei na tumba de uma rainha britânica em
Londres. Um artefato muito bonito, é notável realmente. E,
casualmente, ele está vazio.
O homem gritou de modo ríspido e, com um movimento
rápido, girou a tampa do cilindro, olhando dentro. Ele
pendeu para um lado, depois pareceu imobilizar-se no lugar
onde estava. Jack passou o cilindro de pedra para Costas,
entendeu-se com ele pelo olhar, depois se atirou à frente.
Em um instante, agarrou o homem com uma chave de
cabeça, forçando seu braço esquerdo atrás das costas até que
o homem gritasse de dor. Jack afrouxou o aperto
ligeiramente, manteve-o preso, e tirou o cilindro de bronze
do homem, colocando-o debaixo da estátua. Depois,
empurrou o braço de volta até que o homem choramingasse.
Jack o segurava como se o prendesse em um torno de
bancada, bem apertado atrás de sua orelha esquerda. Podia
sentir o cheiro de incenso, suor fresco, medo.
- Você vê? - sussurrou Jack, guiando a cabeça do homem em
direção ao laptop, para que ele visse a manchete berrante, e
depois para o precioso cilindro nas mãos de Costas. - Você
entre todas as pessoas deveria conhecer, Eminência. O
poder da palavra escrita.

CAPÍTULO 24

Na manhã seguinte, eles se espremeram dentro de uma
Toyota 4x4 e Jack os conduziu subindo a grande falha do
vale do Jordão, desde Jerusalém até o mar da Galiléia. Costas
e Helena estavam sentados ao lado de Jack, e Maclean ia
atrás. A eles se juntaram Jeremy e Maria, que tinham vindo
direto de Tel Aviv. Jack lhes havia enviado passagens na
primeira classe imediatamente depois de sair do Santo
Sepulcro, no dia anterior. Ele sabia que muita de sua
ansiedade poderia agora se dissipar, mas, ainda assim, era um
enorme alívio tê-los por perto. Hiebermeyer era um assunto
completamente diferente. A equipe de jornalistas parecia ter
se concentrado nele em Nápoles, e ele se recusou a sair do
lugar. Jack sabia que ele iria participar com prazer a qualquer
momento, mas isto também fazia parte do jogo, era uma
maneira de desviar a atenção de Jerusalém. Ainda tinham
um ato final para representar, uma incorporação final de algo
encoberto na história, evento que os conduziu para a mais
extraordinária caça ao tesouro da vida de Jack.
- Nenhuma palavra ainda? - perguntou Costas. Com a voz
sacudida por causa do balanço do veículo, enquanto Jack o
conduzia por cima de grandes buracos remendados.
- Nada ainda - replicou Jack, lutando com o volante. - Mas
assim é Nápoles. E não nos falamos por mais de dez anos,
então eu não poderia mesmo esperar uma resposta
instantânea.
- Ela podia ser gentil.
- Eu tive uma visão estranha na tumba, sabe - disse Jack. -
Tinha a impressão de vê-la, mas era uma espécie de
combinação curiosa, como se realmente houvesse alguém
deitado naquela laje.
- Um momento Agamenon?
- Acho que ela estava em minha mente.
- Pelo menos o cardeal e sua equipe de assassinos estão fora
do caminho.
- Por enquanto. Mas isto não vai durar muito tempo. E,
depois que o furor popular terminar, ele será tranquilamente
absorvido de novo no rebanho. Este tipo de revelação já foi
feito antes, e nunca parece balançar o barco.
- Ciente da existência do concilium, a lei pode ser capaz de
manifestar um braço mais forte.
- A lei de quem? - perguntou Jeremy lá detrás.
- E isso depende de quanto o povo acredita em tudo isso -
disse Maria por cima do ombro de Jack. - Quero dizer, como
você disse, Jack, que grandes revelações sobre a Igreja
rapidamente se tornam notícias passadas, a não ser que se
possa imputar assassinato e corrupção a elas. E é improvável
sermos os primeiros a reivindicar que encontramos um
evangelho perdido.
- Não se trata de nenhum desses tópicos - disse Helena. -
Vocês estão esquecendo do que Jack disse para o cardeal. O
poder da palavra escrita. Se nós realmente temos o
evangelho, se de fato temos a palavra de Jesus dentro
daquele cilindro, então os crentes podem encontrar tudo de
que necessitam para prosseguir firmemente seu próprio
curso, para encontrar seu próprio caminho.
- Mas as pessoas gostam de ter uma mão que ajude, e gostam
de fazer parte de uma congregação - disse Maria. - Para
alguns, a Igreja é aquilo de que necessitam.
- A liberdade é a chave - disse Helena. - A liberdade para
escolher o seu próprio caminho espiritual, sem medo, sem
perseguição, sem culpa, sem a inquisição e o concilium. É
disto que se trata. Se pudermos desgastar um pouco daquela
incrustação, então teremos praticado algum bem.
- Ainda temos que descobrir o que há dentro daquele
cilindro - disse Costas. - Se Jack nos deixar.
- Tenha paciência - disse Jack. - Apenas uma última parada.
- Estamos vindo para cá por causa daquela nota que
encontramos no manuscrito de Plínio, certo? Aquele que
conta que Cláudio e seu amigo Herodes visitaram Jesus no
mar da Galiléia?
- Aquele mesmo.
- Não haverá buracos no chão desta vez?
- Sem buracos no chão.
Passaram por postes indicadores de caminhos com nomes
que os faziam lembrar da rica e turbulenta história desta
terra: Jericó, Nablus, Nazaré. Quando encontraram a
indicação para o mar da Galiléia, viraram para a esquerda,
passando por recantos e fontes termais de Tiberíades, depois
continuaram mais algumas milhas adiante ao pé dos flancos
imponentes do monte Arbot até chegarem à entrada do
kibutz Ginosar. A terra ao redor deles era queimada,
ressecada, e podiam ver que o contorno do lago havia
recuado certa distância sobre os alagadiços para o leste. Jack
entrou dentro do kibutz e todos eles desceram e se
esticaram, cansados e famintos depois de quatro horas de
viagem. Jack vestia calças caqui, camiseta cinza e botas de
deserto e carregava sua confiável mochila caqui pendurada
no ombro. Costas vestia sua extravagante seleção habitual de
roupa havaiana e os óculos de sol de grife que Jeremy havia
lhe dado, que agora parecia ser um acessório permanente.
Jeremy, Maria e Maclean estavam todos vestidos como Jack.
A única que parecia ignorar o calor era Helena, que vestia a
sotaina branca de freira que estava usando quando a
encontraram pela primeira vez no teto do Santo Sepulcro no
dia anterior.
- Este é o local do antigo Migdal - disse Jack. - Casa de Maria
de Migdal, Maria Madalena. Este litoral era onde Jesus vivia
quando jovem, onde ele trabalhou como carpinteiro e
pescador e andou no meio das pessoas da Galiléia,
espalhando sua palavra.
Depois de um rápido lanche na cantina do kibutz, todos
foram para o Museu Yigal Allon e ficaram dando voltas na
sala central da exposição, recebendo silenciosamente as
impressões causadas por um dos mais notáveis achados
jamais feitos na Terra Santa. Era uma embarcação antiga, as
madeiras da construção estavam escurecidas por causa da
idade, mas maravilhosamente conservadas, tinham pouco
mais de oito metros de comprimento e dois metros de
largura. Costas tirou os seus óculos de sol e inclinou-se sobre
o picadeiro de metal sobre o qual a embarcação se assentava,
inspecionando atentamente uma das madeiras. -
Polietilenoglicol? - ele perguntou.
Jack assentiu com a cabeça. - Não levava muito tempo para
impregnar a madeira, quando a embarcação era encontrada
em água doce e não tinha sal para lixiviar. Foi encontrada no
verão de 1986, num ano de seca como este, quando o nível
do mar tinha baixado. Dois habitantes locais, quando
procuravam moedas antigas, encontraram estas madeiras
salientando-se da lama, a proa virada para a água. Ela era
nitidamente antiga, e de imediato causou sensação. Este era
também um lugar perigoso, onde problemas políticos
podiam surgir e espalhar-se para outras regiões. O Ministério
de Turismo de Israel revelou a possível conexão da
embarcação com Jesus, percebendo uma nova atração para o
turismo diante da intifada. Mas os judeus ultra-ortodoxos se
mostraram contra a escavação, achando que poderia ser
como uma luz verde para a atividade missionária cristã
naquela região. Havia até pessoas rezando para chover para
que o local ficasse inundado e a escavação, frustrada.
- Isto me soa familiar - disse Costas.
- Esta é uma das razões pelas quais eu queria que vocês
vissem isso - disse Jack. - Tudo aquilo está esquecido agora.
Esta embarcação é uma das principais atrações arqueológicas
de Israel, para os cristãos, para os judeus, para todo o povo
da Galiléia, qualquer que seja a sua fé. Esta é sua herança
comum.
- É melhor acomodar a verdade que negá-la, viver com
medo dela - murmurou Jeremy. - Uma descoberta como esta
só pode ser enriquecedora.
- É um achado único, a única embarcação do mar da Galiléia
a sobreviver desde a Antiguidade - disse Jack, apontando os
aspectos. - Ela provavelmente tinha um mastro com um
único cabo para recolher as velas, embora tenha espaço para
dois remadores de cada lado e um remo que servia como
leme. Ele tinha a aresta externa da roda de proa recurvada e
uma proa pontuda, com um talha-mar. As madeiras eram,
sobretudo, de carvalho para a estrutura e de cedro para a
carreira de tábuas, cedro do Líbano. Podemos ver pregos de
ferro, mas também ver como foram colocados um ao lado
do outro no antigo padrão de modelo "casco primeiro", as
pranchas ligadas nas extremidades com encaixe macho-
fêmea.
- Isto parece muito familiar - murmurou Maria -, e acabei de
perceber por que. Maurice me mostrou retratos de uma
embarcação como esta na praia de Herculano, encontrada
em 1980, quando foram encontrados todos aqueles
esqueletos amontoados nas câmaras debaixo do dique. O
tufão formado por gás e cinzas provenientes da erupção
virou a embarcação e a carbonizou, mas as madeiras do
interior ficaram bem preservadas. Ela era construída de
maneira impecável, talvez fosse uma embarcação de passeio
de algum proprietário de uma rica vila.
Por um instante, Jack sentiu aquele frisson da percepção que
tivera pela primeira vez dois dias atrás na Califórnia, de que
estava vendo o passado sob duas aparências externas, uma
majestosa e artificial e a outra ordinária e terrena, mas ambas
igualmente belas. - Se a embarcação de Herculano
correspondia a um Porsche, então esta que se encontra
diante de nós correspondia a um velho trator - ele disse. -
Há grande quantidade de madeira reciclada aqui, pedaços
nitidamente reutilizados. Ela pode não ter a finura da
embarcação de Herculano, mas tem o seu próprio estilo.
Quem quer que seja que a tenha construído e mantido, tinha
um sentimento profundo por esta região, por seus recursos e
sabia como usá-los.
- Há alguma data obtida por carbono 14? - perguntou Costas.
- A embarcação da Galiléia? Ano 40 a.C. mais ou menos
oitenta anos.
Costas assobiou. - É uma ampla margem, mas apresenta
muito boas probabilidades. Jesus morreu em torno de 30
d.C, certo? Quase no final desse espectro. Mas, se as
embarcações se conservam durante gerações no lago,
reparadas e com novo aparelhamento, então mesmo uma
embarcação produzida no início daquele período ainda
poderia estar em uso durante a vida de Jesus.
- Os únicos artefatos encontrados associados com a
embarcação foram uma simples panela para cozinhar e uma
lâmpada a óleo, ambas mais ou menos do mesmo período.
- E sobre Cláudio e Herodes? - perguntou Costas. - Qual é a
data que estamos supondo para a sua visita?
- Acredito que tenham vindo para cá por volta de 23 d.C. -
disse Jack em voz baixa. - Jesus estaria na metade de seus
vinte anos, talvez vinte e sete ou vinte e oito. Cláudio tinha
trinta e dois ou trinta e três anos e Herodes tinha a mesma
idade, ambos nasceram em 10 a.C. Poucos anos mais tarde,
Jesus foi a uma região despovoada e renunciou à sua
ocupação mundana, e o resto é história. Cláudio deve ter
regressado a Roma logo depois de sua visita aqui, e nunca
mais voltou. Nós sabemos o que aconteceu a ele. E Herodes
Agripa se tornou o rei dos judeus.
- Como você conseguiu a data?
- Por causa de algo que eu subitamente lembrei em
Jerusalém. Isto está me aborrecendo desde que vi pela
primeira vez aquelas palavras no laboratório, a bordo do
Seaquest, no manuscrito de Plínio. Em nenhum outro lugar
há uma referência à viagem de Cláudio para o leste. Suponho
que deve ter sido quando ele estava vivendo obscuramente
como um estudioso em Roma, antes de ser arrastado à força
para o trono em 41 d.C. Isso deve ter sido antes de Jesus ser
sacrificado por volta de 30 d.C., no reinado de Tibério.
Também deve ter sido antes de Jesus se cercar de discípulos
que certamente se lembrariam de uma visita de Roma e
teriam deixado algum registro sobre ela. Então pensei acerca
do período inicial da vida de Jesus na Galiléia, antes do
período principal do seu ministério. Depois me lembrei de
Herodes Agripa.
- Se ele era o rei da Judéia, ele deve ter estado por lá durante
aquele período - disse Costas.
Jack sacudiu a cabeça. - Foi Cláudio quem lhe deu a Judéia,
como uma recompensa por sua lealdade em 41 d.C. Até
então, Herodes Agripa havia vivido principalmente em
Roma. Mas houve um outro período, anterior. Ele era o neto
de Herodes, o Grande, rei da Judéia, mas foi criado em
Roma, no Palácio Imperial, adotado por Antônia, mãe de
Cláudio. Ele e Cláudio se tornaram os amigos mais
diferentes, o erudito e o playboy. Um dos companheiros de
bebida de Herodes Agripa foi Druso, o caprichoso filho do
imperador Tibério, que costumava ficar embriagado e
arrumava brigas com a guarda pretoriana. Aconteceu um
incidente obscuro e Druso morreu. Herodes Agripa foi
imediatamente enviado para a Judéia. Isto foi o que eu
lembrei. Foi em 23 d.C.
- Bingo - disse Costas.
- Isto fica melhor. Seu tio, Herodes Antipas, era o
governador da Galiléia naquela época, e conseguiu para o seu
imprevisível sobrinho um emprego simbólico como
inspetor de mercado, um agoranomos. Adivinhe onde? Em
Tiberíades, no litoral do mar da Galiléia, algumas milhas ao
sul daqui. Passamos por lá no caminho.
Costas assobiou. - Então ele realmente podia ter cruzado
com Jesus.
- Herodes Agripa teria chegado a conhecer todo mundo que
valia a pena ser conhecido, bastante rapidamente - replicou
Jack. - Era um homem gregário e impetuoso, falava aramaico
assim como latim e grego, e teria sentido uma afinidade com
as pessoas deste local. Ele pode ter ouvido falar de Jesus
como uma espécie de curandeiro, e é possível, apenas
provável, que Herodes Agripa tenha enviado uma palavra
para o seu amigo aleijado Cláudio, em Roma, que devia
esperar que pudesse ser encontrada uma cura para a sua
paralisia, talvez em algum lugar no leste.
- Herodes Agripa tem uma reputação bastante ruim na Bíblia
- disse Helena.
Jack assentiu. - Sempre achei que Herodes Agripa era
basicamente bem-intencionado, mas o seu hedonismo e o
curso da história o conduziram a alguns lugares sombrios.
Ficou por pouco tempo em Tiberíades, até ser transferido
novamente, por algo suspeito que tinha a ver com um
empréstimo de seu tio. Depois de visitar Antioquia na Síria,
ele voltou para Roma, onde sua alma gêmea seguinte foi o
futuro imperador Calígula. Realmente sabia escolher seus
amigos. Foi Calígula quem lhe conseguiu o cargo de
governador da Galiléia, seu primeiro passo no caminho para
se tornar um dos maiores príncipes do leste. As coisas
finalmente culminaram numa crise em 44 d.C., o ano do
grande triunfo de Cláudio na Grã-Bretanha. Tiago, filho de
Zebedeu, irmão de João, o Apóstolo, foi detido e condenado
à morte. Os Evangelhos nos contam que foi Herodes quem
ordenou essa morte, embora não haja nenhuma outra
evidência em parte alguma de que ele era anticristão.
Provavelmente fosse apenas megalomaníaco, mas isso não
durou muito. Há uma passagem famosa acerca desse final
nos Atos dos Apóstolos.
- O relato do naufrágio do navio de São Paulo? - perguntou
Costas.
- Alguns capítulos e quinze anos esquisitos antes, quando
Herodes estava em Cesaréia na costa da Judéia. - Jack olhou
para Helena. - Você sempre teve uma memória prodigiosa.
Pode se lembrar da passagem?
Ela concordou. - Versão da Bíblia de King James. Faz parte
do meu trabalho.
- Ela começou a narrar:

E, num dia combinado, Herodes vestiu-se com vestes reais,
e sentou-se no trono, e fez uma oração para elas. E as
pessoas gritaram, dizendo: A voz de um deus, e não a de um
homem. E imediatamente um anjo do Senhor atingiu-o,
porque ele não deu a glória a Deus; e ele foi comido por
vermes e morreu.

- Vermes - disse Costas debilmente.
- Provavelmente foi uma doença que destruiu a carne, talvez
uma gangrena - disse Jack. - Uma maneira razoavelmente
padrão de morrer naqueles dias, por causa de uma ferida
aberta.
- Eu sabia que iríamos voltar a falar em cadáveres - queixou-
se Costas.
- Uma teoria diz que Cláudio o envenenou, precisamente
porque Herodes estava se comportando como um deus, e
apenas o imperador podia usar aquele manto. Mas não
acredito em nem uma palavra disso. De tudo o que sabemos
sobre Cláudio, ele devia ter sido supremamente leal aos seus
amigos, em todas as dificuldades por que passavam.
- Então tivemos Herodes Agripa, Cláudio e Jesus juntos aqui,
em 23 d.C. - disse Costas lentamente. - Um encontro que
não foi registrado em lugar algum, a não ser na margem de
um antigo manuscrito que encontramos em um buraco em
Herculano.
- Correto.
- Jesus era carpinteiro - disse Costas pensativo e batendo de
leve na madeira a sua frente. - Isto poderia significar
construtor de embarcações, certo?
Jack assentiu. - Em grego, bem como nas línguas semíticas
daquela época. Aramaico, fenício antigo, a palavra que
traduzimos como "carpinteiro" podia ter toda uma gama de
significados, inclusive o de arquiteto, construtor com pedra,
trabalhador com madeira e até trabalhador com metal.
Poderia ter havido uma grande quantidade de trabalho nesta
região. Herodes Antipas fundou Tiberíades em 20 d.C., e
havia um palácio para construir, a sinagoga, os muros da
cidade. Deve ter sido um período de um grande aumento de
atividade para um carpinteiro local diligente.
- Talvez tenha sido assim que mais tarde ele financiou tudo -
disse Costas. - Quero dizer, mesmo um produtor de milagres
precisa comer.
Jack assentiu. - Mas a mercadoria de demanda constante por
aqui para um carpinteiro sempre seria a construção de uma
embarcação. Meio século mais tarde, mais ou menos, o
historiador Josefo sugere que havia 230 embarcações no
lago, e que esse número provavelmente não incluía as
menores. As embarcações aqui teriam durado muito mais
tempo que no mar, sem os vermes de madeira que havia na
água salgada. Mas, mesmo assim, teria havido necessidade
constante de reparos, bem como a de construir novas naves.
Os anos 20 podem ter sido também, no que se refere à
construção de embarcações, anos de crescimento rápido,
com uma grande quantidade de pedaços de madeira e de
madeiras fora do tamanho padrão entrando em circulação
vindas dos locais de construção de Tiberíades. Olhem para
esta embarcação. Há uma grande quantidade de madeiras
com formas singulares.
Costas olhou pensativo para ela. Pôs a mão na extremidade
da madeira diante de si, depois olhou de novo para Jack. -
Uma vida inteira antes, acho que foi na última terça-feira,
quando estávamos mergulhando no navio naufragado de são
Paulo, perto da Sicília, você me disse que a arqueologia do
início do cristianismo era ilusória, que dificilmente alguma
coisa era conhecida com certeza. - Ele fez uma pausa. -
Agora diga-me. Estou tocando em uma embarcação feita por
Jesus?
Jack colocou as mãos nos quadris, examinou
cuidadosamente as pranchas antigas de madeira e depois
olhou de volta para Costas. - No Novo Testamento, um
enorme problema é descobrir como Jesus via a si mesmo, se
se via ou não como o christos, o messias. Quando lhe
perguntam, quando as pessoas querem saber quem ele é, ele
algumas vezes responde de maneira particular. Esta é uma
tradução, é claro, mas acho que dá a essência do que ele diz:
"É como você diz".
- O que você está dizendo?
- É como você diz.
Costas permaneceu silencioso por um momento, olhou para
Jack como que implorando, depois suspirou e tirou sua mão
da embarcação. - Arqueólogos - ele resmungou. - Não se
consegue obter uma resposta direta de nenhum deles.
Jack sorriu amplamente, depois deu um tapinha em sua
mochila. - Vamos. Ainda não terminamos. Há um último
lugar aonde temos que ir.

Uma hora mais tarde, eles pararam nos limites dos alagadiços
na costa ocidental do mar da Galiléia. Era o início do final da
tarde, e as sombras tinham começado a avançar de detrás
deles para cima dos alagadiços. À distância, a água ainda
cintilava, e Jack se lembrou da estranha sensação que havia
tido ao olhar para o céu perto da Sicília na semana anterior,
como se seus olhos estivessem sendo atraídos pelas partes
em lugar de ver a coisa toda, uma visão muito ofuscante para
que ele pudesse compreender. Agora, agarrando sua
mochila, ele sentiu a mesma excitação de antecipação, o
conhecimento de que estava na cúspide de outra revelação
extraordinária, uma promessa que os trouxera para o lugar
onde o tesouro que se encontrava nas suas mãos havia
começado sua jornada quase dois mil anos antes. Jack sabia
com total convicção que Cláudio estivera neste local, que ele
também deve ter olhado para o contorno distante da costa
das montanhas de Golan, sentido a fascinação do leste
exatamente como Jack sentia. Ele se perguntou se Cláudio
tinha sentido também a inquietação, o perigo à espreita
nesta falha geológica entre o Ocidente e o Oriente, a
tranqüilidade sobrenatural do mar e seu contorno como uma
ilusão de calma semelhante ao olho de um furacão.
Enquanto Jack observava, o sol se pôs atrás deles e a cena se
tornou coerente de novo em sua mente, mais parecida com
uma pintura de Turner que de Seurat, os lampejos se
transformando em manchas matizadas de azul e laranja.
Respirou profundamente, foi até onde estavam os outros, e
começaram a trilhar o caminho em direção aos alagadiços,
através de um entrelaçado de galhos finos que haviam sido
soprados sobre o contorno da costa como ervas daninhas em
desordem.
- Ziziphus spina-crista, se eu não estou enganado - disse
Jeremy. - Dá um fruto excelente. Você deveria
experimentar um dia desses.
- Você soa exatamente como Plínio - disse Maria.
Depois de dez minutos margeando as poças de lama
escurecida eles chegaram a um pedaço de terra elevado de
cerca de noventa metros diante do contorno da costa. Era
um solo duro onde ficavam os pescadores, uma área de
desembarque temporário usada durante a estiagem, e estava
impregnada com o odor de peixe e de velhas redes. No
centro havia uma rocha grande profundamente enterrada,
que tinha sido usada como pedra de amarração, com uma
corda velha e esfiapada emergindo da lama em frente e
jogada em direção à praia. Jack empurrou um pouco da velha
rede e sentou-se, e os outros fizeram o mesmo sobre dois
dormentes que haviam sido claramente puxados até lá para
este propósito. Jack colocou a mochila no colo e todos
olharam para o mar, atraídos pela total tranqüilidade da cena.
Observaram como um homem e uma mulher andavam
vagarosamente ao longo do contorno da praia, o resplendor
da água sobre a lama dava a impressão de que estavam
andando sobre a água, uma miragem. Em um ponto mais
distante, podiam distinguir os barcos de pesca no lago, as
luzes de seus mastros pontilhando a cena como um tapete
de velas mais distante no mar.
- Neste contorno de costa foi onde Jesus passou os anos
formativos de sua vida - disse Helena em voz baixa. - Nos
Evangelhos, seus ditos abundam com metáforas de pescador
e sobre o mar. Quando ele fala do céu da tarde vermelho
que pressagia um dia bom, não estava sendo um profeta, mas
sim um marinheiro e um pescador, alguém que sabia que
poeira no ar significava que o dia seguinte seria seco.
- E as pessoas têm vindo ao mar da Galiléia, desde então,
para procurá-lo - murmurou Jeremy. - Os primeiros cristãos
depois da conversão do Império Romano sob Constantino, o
Grande, aqueles que criaram o Santo Sepulcro. Em seguida
os peregrinos do mundo medieval, do Império Romano, do
Bizantino. Harald Hardrada esteve aqui, conduzindo os
mercenários vikings do corpo de guarda dos imperadores
bizantinos, banhando-se nas águas do rio Jordão. Depois
disso, vieram os cruzados, cavalgando em uma maré de
sangue, achando que tinham encontrado o Reino dos Céus,
apenas para vê-lo desmoronar diante de seus olhos quando o
exército árabe chegou em grande número vindo do leste.
- Aposto que este lugar também não mudou muito - disse
Costas, atirando um seixo em uma poça escura, depois
olhando para Jack. - Você vai nos mostrar o que conseguiu?
- Você sabia que o escritor Mark Twain esteve aqui? - disse
Jeremy, de um modo ausente.
- Pode repetir? - perguntou Jack.
- Em 1867, ele foi um dos primeiros turistas americanos a
visitar a Terra Santa.
- Acho que posso lembrar de suas palavras - disse Helena. -
Eu as li da última vez em que estive aqui e elas me deixaram
uma grande impressão. É algo assim:

O momento para ver a Galiléia é à noite, quando o dia se foi,
mesmo o menos impressionável deve se render às
influências plenas de sonhos deste lugar tranqüilo iluminado
pelas estrelas. No colo das ondas sobre a praia, ele ouve o
mergulho de remos fantasmas; nos ruídos secretos da noite
ele ouve as vozes dos espíritos; no suave roçar da brisa, na
investida de asas invisíveis.

- Houve outras pessoas como ele - disse Jack. - Aquelas que
estavam preparadas para acreditar que as histórias na Bíblia
não eram apenas mitos e lendas, assim como Heinrich
Schliemann e Arthur Evans fizeram em relação às Guerras
de Tróia e à Idade do Bronze grega. Dez anos depois de
Mark Twain, foi o tenente Horatio Herbert Kitchener, do
Corpo Real de Engenheiros, patrocinado pelo Fundo de
Exploração Palestina, que teve sua primeira experiência na
Galiléia com o Inquérito da Palestina antes de se tornar o
maior líder de guerra da Grã-Bretanha - disse Jack. - E T. E.
Lawrence, que veio para cá estudar as classes sociais, antes
de retornar como Lawrence da Arábia, conduzindo suas
legiões por aquelas colinas em direção a Damasco. Tivemos
grandes movimentos da história passando por este lugar, e a
linha de rompimento entre o leste e o oeste passando com
ímpeto por aqui ao longo do vale do Jordão, mas a Galiléia
tem sido com muita freqüência um redemoinho na história,
um lugar onde o indivíduo ainda pode salientar-se.
- Pessoas que vêm para cá com o futuro à frente delas, na
cúspide do destino - murmurou Maria.
Jack enfiou a mão no bolso de seus shorts, e tirou uma
pequena caixa com tampa, daquelas que se abrem com
estalido. Ele a colocou no colo, abriu-a e retirou duas
moedas. Segurou-as no alto, deixando a luz do sol que
esmaecia incidir nos retratos, suas feições acentuadas pela
sombra quando ele as movia lentamente de lado a lado.
- Parece-me como se você estivesse se apropriando
novamente, Jack - disse Costas, com um brilho travesso em
seus olhos. - Esta é uma ladeira escorregadia para se tornar
um caçador de tesouro. Sempre me perguntei quando você
iria transpor o limite.
Jack sorriu, mas permaneceu quieto, olhando com muita
atenção para os rostos nas moedas. Sentira a necessidade de
olhá-las por uma última vez, de tirá-las e tocá-las antes de
abrir sua mochila. O rosto na moeda da esquerda era de
Herodes Agripa, era a moeda que tinham encontrado no
Santo Sepulcro. O retrato estava gasto, mas mostrava um
rosto atarracado, como de um touro, uma imagem que
correspondia mais a um lutador do que a um pensador, mas
com grandes e sensíveis olhos. Isto foi idealizado talvez na
tradição oriental, parecia mais um Hércules ou um
Alexandre do que Herodes Agripa. Ele usava uma coroa de
louros, vista normalmente apenas em moedas de
imperadores romanos. O homem na outra moeda também
usava uma coroa, mas desta vez isto era correto. Jack viu
Cláudio novamente como o imaginara pela primeira vez na
Vila dos Papiros em Herculano, depois parado diante da
tumba da rainha britânica debaixo de Londres. Viu a cabeça
com cabelos abundantes, a testa alta, os olhos profundos e
pensativos, a boca enrugada. Não Cláudio, o aleijado, não
Cláudio, o tolo, mas Cláudio, o imperador, no auge de seus
poderes, um imperador que construiu aquedutos e
ancoradouros e recuperou o mundo romano da beira da
catástrofe, pavimentando o caminho para os cristãos
ocidentais nos séculos vindouros. Os dois retratos eram de
homens que haviam alcançado o auge de suas vidas, um
futuro que dificilmente poderiam ter previsto naquele dia
em 23 d.C. quando se reuniram no mar da Galiléia. Herodes
Agripa, príncipe do Leste. Cláudio, o Deus.
- Eu me pergunto se eles sentiram as trevas antecipadamente
- murmurou Helena.
- O que você quer dizer? - perguntou Costas.
- A única época em que a história realmente alcançou este
lugar. Jack me disse que vocês conhecem algo sobre a
menorá, o tesouro perdido do Templo de Jerusalém.
- Nós sabemos um pouco a respeito - disse Maria em voz
baixa, lançando um olhar para Jack.
- Foi em 67 d.C. - disse Helena. - Mais de duas décadas
depois da morte de Herodes Agripa, mais de uma década
depois do desaparecimento de Cláudio. Três anos antes de os
romanos destruírem Jerusalém e declararem seu triunfo, eles
vieram aqui para o mar da Galiléia. Os judeus rebeldes
tinham escapado em barcos, mas o filho de Vespasiano, Tito,
havia construído uma embarcação especial e foi atrás deles.
A batalha de Migdal foi uma das batalhas navais mais
extraordinárias na história, mas foi também um massacre. O
historiador judeu Josefo nos conta que o contorno da costa
ficou inundado de sangue. Um horrível mau cheiro
espalhou-se sobre a região, a praias ficaram cobertas com
destroços de naufrágio e corpos inchados.
- Os rebeldes usaram barcos pesqueiros locais? - perguntou
Costas. Helena assentiu. - Eles requisitaram todos os barcos
que havia no lago. O barco da Galiléia pode ter sido um
deles, abandonado e afundado depois que seus ocupantes
foram massacrados. Para algumas pessoas em Israel hoje em
dia, o barco é um símbolo da história judaica, da resistência
judaica.
- Mas ele podia ter sido construído mais cedo, usado durante
a vida de Jesus.
- Alguma coisa para todos - disse Helena.
Jack pôs as moedas de lado, enfiou a caixa de novo em seu
bolso e tirou um pacote todo embrulhado de sua mochila. -
Não tenho dúvida de que eles viram algo do futuro - disse. -
Herodes Agripa veio de uma das dinastias mais voláteis do
leste, e cresceu em Roma. Conhecia tudo sobre a natureza
caprichosa do poder. Cláudio também havia estado lá, e ele
era um historiador, talvez um dos maiores historiadores da
Antiguidade. Já devia ter visto as sementes da decadência no
reino de Tibério. E o outro que eles encontraram aqui, o
pescador de Nazaré, pode ter vivido sua vida protegido dos
momentos significativos da história, mas deve ter sentido o
que se preparava adiante, visto onde seu ministério podia
conduzir.
- Nenhum deles poderia ter visto à frente de um período de
dois mil anos - disse Costas.
- Na época em que estava perto do fim, quando fez a última
viagem para a Grã-Bretanha, Cláudio deve ter visto como o
ciclo da história romana estava se desenvolvendo, deve ter
sentido que as amarras seriam sempre tênues - disse Jack. -
Um bom imperador seguido por um mau, uma idade de ouro
seguida por miséria e corrupção. Augusto, depois Tibério e
Calígula. Cláudio, depois Nero. E agora Vespasiano e Tito,
uma nova idade de ouro, a época em que o Vesúvio entrou
em erupção e Cláudio finalmente desapareceu da história. E
o ciclo continuou, com o nadir de Domiciano. Quando
Cláudio visitou a Grã-Bretanha pela última vez para esconder
o seu tesouro, ele a visitou durante um período
consideravelmente longo. E quando Everett foi para
Jerusalém, para o Santo Sepulcro, ele fez a mesma coisa. O
seu mundo era aquele em que o futuro era negro, estava
mais próximo do apocalipse do que Cláudio jamais poderia
imaginar. E os dois homens sabiam como os ventos volúveis
da história podiam arrebatar seu prêmio.
Jack removeu uma camada final de plástico-bolha revelando
o pequeno cilindro de pedra. Ele o ofereceu para Helena. -
Você quer quebrar o lacre?
Ela fez o sinal da cruz e pegou o cilindro. Lentamente,
cuidadosamente, girou a tampa. Esta saiu facilmente,
quebrando o material de resina escurecida que havia lacrado
o encaixe. Ela o devolveu para Jack, que retirou a tampa. Os
outros se apinharam em volta dele, Maria e Jeremy
ajoelhando-se na frente e Costas olhando por sobre o
ombro. Ouviu-se um suspiro coletivo quando viram o que
havia dentro. Era um pergaminho, amarronzado pela idade,
mas aparentemente bem preservado.
- Ele era impermeável ao ar - respirou Jack, aliviado. -
Graças a Deus por isso. - Segurou a extremidade do
manuscrito com dois dedos, experimentando-o suavemente.
- Ainda está flexível. É espantoso. Há alguma espécie de
conservante sobre ele, um material feito de cera.
- Sábio Cláudio - murmurou Maria.
- Sábio Plínio, você quer dizer - comentou Jeremy. - Aposto
que foi de quem Cláudio aprendeu.
Jack puxou o manuscrito. Eles estavam silenciosos, e tudo o
que podiam ouvir era um som distante de motor, e um
ligeiro roçar de brisa que vinha do oeste. Jack prendeu a
respiração. Não havia nada escrito para ser visto. Apenas a
superfície amarronzada do papiro. Segurou o manuscrito no
alto de modo que ele ficasse dentro da luz remanescente que
brilhava nas colinas atrás deles, e desenrolou alguns
centímetros no lugar que tinha experimentado como sendo
a extremidade.
- Bem, eu serei condenado ao inferno - ele murmurou,
depois sorriu largamente.
- Conseguiu algo? - perguntou Costas.
- Olhe para as camadas cruzadas. Você pode vê-las quando a
luz incide através delas. Este é o primeiro nível, este papiro
é exatamente igual àquela folha que encontramos na
escrivaninha de Cláudio em Herculano. E aqui está. - Sua
voz estava quase inaudível. - Posso vê-la.
- O quê?
- A escrita. Ali. Olhe. - Jack desenrolou o papiro
lentamente. Primeiro uma linha foi revelada, depois outra, e
mais outra. Desenrolou o manuscrito inteiro, e puderam ver
cerca de vinte linhas. O coração de Jack estava acelerado. A
tinta era preta, quase preto-azeviche, conservada intacta
pelo conservante. A escrita era contínua, sem pausas entre
as palavras ou pontuação, à maneira antiga. - É grego - Jack
sussurrou. - Está escrito em grego.
- Há algo escrito na parte inferior, uma escrita mais antiga -
disse Costas, olhando para o papel por detrás de Jack. -
Apenas as poucas primeiras linhas, apagadas. Quase não se
pode discerni-las, mas parecem escritas por uma outra mão,
talvez uma letra diferente.
- Provavelmente a letra de Cláudio - murmurou Jack. - E, se
for assim, talvez esteja em latim. Algo que ele começou a
escrever e depois apagou, talvez sejam anotações que fez
sobre a jornada. Isto seria bastante fascinante. Não temos
nada com a própria escrita à mão de Cláudio.
- Espectrometria de massa - disse Costas. - Isto fará a escrita
aparecer. Uma ciência difícil.
Jack não estava ouvindo. Ele tinha lido as primeiras Unhas
do texto visível, as linhas que encobriam as palavras
apagadas. Sentiu a cabeça girar, e o manuscrito parecia
tremular em suas mãos, ou por causa de sua emoção
extraordinária ou por uma lufada de vento, ele não
conseguia dizer. Deixou as mãos caírem, e manteve o
manuscrito aberto sobre os joelhos. Voltou-se para Helena. -
Kyriam bonum - ele disse. - Estou certo ao usar a tradução
literal, Casa do Senhor?
Helena concordou. - Estas palavras podem significar a
congregação como um todo, a Igreja no sentido amplo.
- E naos? É a palavra grega para templo?
- Ela provavelmente significa igreja como entidade física,
como uma estrutura.
- Você está pronta para isto?
- Se estas são suas palavras, Jack, eu não tenho nada a temer.
- Não, você não deve temer. - Jack fez uma pausa, e durante
um momento extraordinário ele sentiu como se estivesse
olhando para baixo de uma grande altura, não para eles no
alagadiço, mas para um ponto de luz muito pequeno em um
vasto mar, para duas formas indistintas inclinadas uma para a
outra, em uma antiga embarcação, quase invisíveis na
escuridão. Fechou os olhos, depois os abriu e começou a ler.
- "Jesus, filho de José de Nazaré, estas são as suas palavras."

EPÍLOGO

O jovem ansioso vestido com uma túnica branca parou e
aspirou a brisa. Nunca estivera no Oriente antes, e as vistas e
os odores dos últimos dias tinham sido estranhos,
surpreendentes. Mas agora a brisa que soprava sobre as
colinas do oeste vinha do mar Mediterrâneo, trazendo
consigo um odor familiar de sal e ervas e de leve
deterioração, um odor que havia sido purificado no dia
anterior pelo vento forte das alturas de Gaulanitis na
margem oposta. Olhou novamente, protegendo os olhos
contra a luz forte e ofuscante. Os alagadiços se estendiam
bem adiante até a beira do lago, uma praia ampla e
tremeluzente onde a água tinha evaporado durante o verão
longo e seco. A superfície distante do lago estava vítrea e
polida como um espelho. Na margem, ele observou
furtivamente uma forma oscilante, uma embarcação
pesqueira talvez, se movendo por lá. Prestou atenção, e
escutou o grito distante e agudo de uma gaivota, depois um
som feito por um funileiro, um ruído de pequenas batidas,
como a da água de chuva caindo de um telhado. Estava
ficando quente, subitamente demasiado quente para manter
o passo que havia estabelecido para si mesmo. Voltou-se
para a montanha que chamavam de Arbot, ergueu o rosto e
desejou que a brisa o tocasse de novo, desejou que o ar frio
do oeste soprasse e o envolvesse.
- Cláudio! - Era a voz de uma menina. - Ande mais devagar!
Você precisa de água.
Ele se voltou de modo desajeitado, arrastando sua perna
doente, e esperou que seus companheiros o alcançassem.
Fazia apenas dez dias desde que haviam desembarcado em
Cesaréia, e cinco dias desde que tinham saído para
Jerusalém, subindo o vale do rio Jordão em direção ao mar
interior que eles chamavam de Genesaré, na região da
Galiléia. Tinham passado a noite na nova cidade de
Tiberíades, construída por Antipas, tio de Herodes, cujo
nome foi dado por causa de Tibério, tio de Cláudio,
imperador de Roma havia quase dez anos. Cláudio ficara
surpreso ao encontrar imagens de Tibério por toda parte, em
templos e estátuas e em moedas, como se o imperador vivo
já fosse adorado como um deus. Parecia que ele nunca
poderia escapar deles, de sua família ignorante, mas naquela
manhã, enquanto caminhavam para longe do alvoroço da
construção, ele tinha sentido um contentamento
extraordinário, uma sensação de liberação no vazio e na
simplicidade das superfícies planas das costas e das margens
tremeluzentes do lago com as colinas de Gaulanitis atrás.
Posteriormente, depois desse dia, eles passaram por aquelas
colinas em direção a Antioquia para levar oferendas ao local
onde o seu amado irmão Germânico tinha sido envenenado
havia quatro anos. Cláudio ainda sentia a dor, a forte dor da
angústia na boca do estômago. Tentou expulsar o
pensamento, e se voltou para observar aqueles que lhe eram
caros e que subiam a estrada empoeirada vindos do sul. Sua
amada Calpúrnia, com seu cabelo vermelho flamejante e a
pele coberta de sardas, apenas saída da adolescência, mas
uma mulher tão sensual como ele nunca vira. Ela estava
vestindo o vermelho que revelava sua profissão, a mais
antiga, mas agora apenas por hábito, não por necessidade.
Ao lado dela, Cipros, a mulher de Herodes, estava coberta
com um véu e adornada com jóias como uma princesa da
Arábia, deslizando ao longo da estrada como uma deusa ao
lado de seu companheiro de cabelos revoltos. E avançando
atrás deles encontrava-se o próprio Herodes, com barba
negra, seu longo cabelo entrelaçado como o de um rei da
Assíria, seu manto guarnecido com uma verdadeira púrpura
real de Tiro, sua voz volumosa e estrondosa regalando-os
com canções e piadas obscenas durante todo o caminho.
Herodes sempre atraía muita atenção porque era mais
atraente e excitante que a maioria das pessoas, um exemplo
de homem; no entanto, ele era o mais velho e mais querido
companheiro de Cláudio, o único entre todos os outros
garotos do palácio que tinha agido como amigo, o único que
havia enxergado além da gagueira e da inabilidade e da perna
definhada.
Cláudio pegou o cantil de couro que Calpúrnia lhe oferecia,
e o bebeu até esgotar a água. Herodes apontou para as
pequenas manchas que se moviam na praia, e eles
abandonaram o caminho e começaram a andar em meio aos
alagadiços. Cláudio tinha visto a torre de Migdal, a próxima
cidade ao longo da costa que ficava em uma depressão nas
colinas, mas agora a torre estava escondida pela neblina que
subia e obscurecia o contorno da costa, como um véu
tremeluzente. Então o sol apareceu através da neblina e
refletiu uma miríade de poças rasas nos alagadiços. Para
Cláudio, a vista parecia se fragmentar, como uma janela de
vidro estilhaçada, o sol se refletia ofuscante em cada poça, e
depois ganhava novamente sua inteireza na neblina. Uma
alusão a um arco-íris pairava no ar, uma suspensão de cor
que não se materializou completamente, que permanecia
apenas além da realidade. Logo, tudo o que ele podia ver era
o movimento ao redor da embarcação que estava à frente
deles, e mesmo aquilo parecia se mover para cá e para lá à
medida que eles avançavam. Cláudio se perguntava se o que
via era real ou um truque do olho, como um dos fantasmas
que Herodes dizia que vira no deserto, um mero reflexo de
alguma realidade distante e inatingível.
Herodes avançou para perto de Cláudio. Ele lhe perguntou,
com a voz volumosa e estrondosa, seu hálito cheirando ao
vinho da noite passada. - Você se lembra do aramaico que
eu lhe ensinei em Roma, quando éramos garotos?
- Meu caro Herodes, como poderia esquecer? E nestes
últimos anos, enquanto você estava representando o
velhaco, eu aprendi sozinho o fenício. Estou planejando
escrever uma história sobre Cartago, você sabe. E
simplesmente não se pode ficar sem ler as fontes originais.
Eu não confio em nada que um historiador romano diga
sobre os bárbaros.
- Nós não somos bárbaros, Cláudio. Ao contrário. - Herodes
empurrou Cláudio divertidamente, quase fazendo com que
perdesse o equilíbrio. - De todo modo, eu não confio nos
romanos, ponto final. Com uma nobre exceção, é claro. -
Empurrou Cláudio com os ombros novamente, depois o
abraçou brutalmente para impedi-lo de cair, e os dois riram.
- Será que ele fala grego, o seu homem? - perguntou Cláudio.
- Sim.
- Então vai ser em grego. Minha querida Calpúrnia é uma
verdadeira bárbara, você sabe. Seus avós foram trazidos
como escravos da Grã-Bretanha pelo meu tio-avô Júlio. Um
lugar fascinante. Calpúrnia me conta essas coisas. Um dia eu
irei para lá. Acredito que os fenícios alcançaram aquelas
praias, mas eu não acredito que legaram sua língua.
- Muito bem então. Vai ser em grego.
Aproximam-se da costa. Cláudio estava novamente andando
à frente, e agora podia ver que a embarcação era real, e
estava içada a alguns metros da beirada da água. Era uma
embarcação de bom tamanho, com uma proa curvada e um
único mastro alto, um pouco semelhante àquela que ele
havia navegado na baía de Nápoles quando garoto e ainda
mantinha em seu barracão em Herculano. Olhou mais
atentamente. Debaixo de um toldo atrás da popa estava
sentada uma mulher, grávida, trabalhando em alguma coisa
no seu colo. Ao lado do casco havia pedaços soltos de
madeira, fragmentos de velhas embarcações, e uma prancha
feita de alguns cepos com um cuidadoso arranjo de
ferramentas, um serrote, uma furadeira de arco, talhadeiras,
um cesto com pregos. Cláudio se deu conta de que esta era a
fonte do som de funilaria que tinha escutado. Depois um
homem se aproximou vindo do outro lado, segurando uma
plaina de carpinteiro. Era forte, musculoso e vestia apenas
uma tanga, sua pele era profundamente bronzeada, tinha
cabelos cortados muito curtos e uma longa barba,
exatamente como a aparência de Herodes quando ele
voltava de uma difícil temporada de operações militares.
Cláudio se dirigiu coxeando para a embarcação, mantendo os
olhos sobre o homem. Ele podia ter sido um dos gladiadores
em Roma, ou um dos escravos que escaparam das pedreiras
de mármore e que Cláudio havia ajudado nos Campi Flegrei
perto de Nápoles, onde sua mãe tinha tentado abandoná-lo,
mas onde ele havia sido cuidado e auxiliado por proscritos e
criminosos.
- Eu sou Cláudio - ele disse, pigarreando. - Meu amigo
Herodes me trouxe de Roma para pedir sua ajuda Eu estou
doente.
A mulher sorriu para ele, depois abaixou o olhar e continuou
o seu trabalho, remendando os fios de corda de uma rede de
pescar. O homem olhou para Cláudio direto no rosto. Seus
olhos eram intensos, ferozes, como nada que Cláudio havia
visto antes. O homem manteve o seu olhar em silêncio
durante alguns momentos, depois abaixou o olhar e
empurrou sua plaina para frente e para trás, continuando a
trabalhar a madeira. - Você não está doente Cláudio. - Sua
voz era profunda, masculina, e o grego tinha o mesmo
sotaque que o de Herodes. Cláudio fez como se fosse
responder, depois se deteve. Estava aturdido, não conseguiu
pensar em nada para dizer. As palavras, quando vieram,
eram impróprias, inconseqüentes, arrependeu-se
instantaneamente. - Você é desta região?
- Maria é do Migdal - disse o homem. - Nasci em Nazaré, na
parte baixa da Galiléia, mas vim para cá, para este lago
quando era criança. As pessoas daqui são o meu povo, e esta
é minha embarcação.
- Você é um construtor de embarcações? Um pescador?
- Este mar é o meu manancial, e as pessoas da Galiléia são
meus passageiros. E somos todos pescadores aqui. Você
pode se juntar a nós, se quiser.
Cláudio capturou novamente o olhar do homem, e se
percebeu assentindo, depois olhou para trás e fez um gesto
para os outros. Herodes pulou. A lama espalhando-se em
suas canelas desnudas, e abraçou o nazareno da maneira
oriental, murmurando saudações em aramaico antes de se
voltar para Cláudio. - Quando Josué vem comigo para
Tiberíades para passar uma noite nas tavernas, nós o
chamamos Jesus, a versão grega de seu nome. Ele solta a
língua mais prontamente, especialmente depois de alguns
jarros do vinho da Galiléia. - Gargalhou, deu uma palmada
nas costas do nazareno e depois se ajoelhou ao lado de
Maria, colocando gentilmente a mão em sua barriga. - Está
tudo bem? - ele perguntou em aramaico. Ela murmurou
sorrindo. Ele saltou para trás, e o nazareno ergueu a mão
saudando Calpúrnia e Cipros quando elas vieram
caminhando na direção dele pela lama com os pés descalços.
Ele passou ao lado delas sem dizer palavra e deslocou uma
âncora de pedra grosseira a que a embarcação estivera
amarrada, destacando uma corda grossa de cânhamo que
estava presa com um laço através de um buraco no centro da
pedra. Herodes e as duas mulheres colocaram os cestos que
estavam carregando dentro da embarcação, e Maria fez um
gesto como para levantar um cântaro ao lado dela, mas o
nazareno rapidamente o tirou dela e colocou a mão em sua
barriga, sorrindo. Enrolou a corda da âncora e arremessou-a
por cima da popa, depois se apoiou contra a viga de madeira
e fez um esforço para erguer o barco, cada músculo de seu
corpo esticado e saliente. Enquanto Cláudio o observava
trabalhar, ele parecia poderoso e sem gordura como a estátua
de bronze de Hércules que vira uma vez na grande vila
debaixo do Vesúvio. A quilha da embarcação deslizou ao
longo da lama lisa até ficar metade dentro das ondas, e então
o nazareno recuou, brilhando de suor, enquanto os outros
passaram por ele e subiram na embarcação. Cláudio subiu
por último, com dificuldade, puxando a perna para cima e
sobre a beirada da embarcação. O nazareno deu algumas
içadas mais e a embarcação ficou flutuando, e ele
rapidamente pulou por sobre a amurada e soltou a vela
redonda de onde estava presa, enquanto Maria se sentava
perto do remo que servia de leme.
Cláudio e Herodes sentaram-se lado a lado, cada um com um
remo, e começaram a remar em uníssono enquanto o vento
levava a vela e empurrava a embarcação para além do lugar
raso. O casco e o cordame rangiam, a água produzia
barulho de gorgolejo e estalava debaixo da proa. Cláudio
participava com prazer do exercício, o rosto afogueado e
radiante. Se lhe tivesse sido permitido ir ao ginásio em Roma
antes que a paralisia se apoderasse dele, então ele poderia
agora estar conduzindo as legiões na Alemanha como o seu
amado irmão fizera. Mas agora, nesta embarcação, enquanto
deslizavam para longe, afastando-se da praia, até que a linha
da costa se perdeu na neblina, toda a dor e infelicidade que
havia começado a anuviar sua vida parecia ir embora, e pela
primeira vez ele se sentiu completo, não mais se debatendo
contra si e contra os outros, aqueles que prefeririam não o
ver nunca retornar, quando ele foi empurrado em direção à
boca do mundo subterrâneo ainda menino.
Andaram à deriva durante horas, impelidos por rajadas de
vento, deitados e cochilando na sombra debaixo da vela. O
nazareno atirou sua rede e pegou apenas poucos peixes, mas
o suficiente para ele cozinhar em uma caçarola sobre um
pequeno braseiro. - Oh, príncipe dos pescadores - brincou
Herodes. - Você nos diz que o seu reino é como uma rede
que é atirada dentro do mar e pega peixes de todos os tipos.
Bem, parece que você tem um reino bem pequeno. -
Gargalhou e o nazareno sorriu, e continuou a preparar a
comida. Mais tarde, Maria tocou a lira, compondo uma
música que parecia tremeluzir e ondular como a superfície
do lago, e Calpúrnia cantou uma melodia bela e triste, uma
canção mística de seu povo. Comeram o que tinham trazido,
pão, azeitonas, nozes, figos, uma fruta que Cláudio nunca
tinha comido antes, produzida por uma árvore de espinhos,
tudo lavado com a água pura das fontes de Tiberíades.
Depois disso, jogaram dados, luta de braços de lado a lado de
uma prancha solta, e Calpúrnia fez coroas para eles com os
galhos finos da árvore frutífera, coroando solenemente
Herodes como rei e Cláudio como deus. Herodes os
entreteve com uma série de histórias e piadas, até que seus
pensamentos começaram a se voltar para o entardecer. -
Dizem que você pode operar milagres, Jesus, filho de José -
ele disse. - Mas você não pode transformar água em vinho,
pode? - Gargalhou novamente, depois pegou com a mão em
concha um punhado de água do lago e espirrou-a sobre a
cabeça do outro homem. O nazareno riu junto com ele, e os
dois homens se empurraram divertidamente, balançando a
embarcação de um lado a outro. - De todo modo - disse
Herodes, sentando-se de novo. - Nós não podemos ficar
aqui muito mais tempo. Estou morrendo de sede. Alguém
que ir para as tavernas?
O crepúsculo estava colorindo o céu de vermelho quando
Cláudio começou a remar de novo, desta vez sentado ao
lado do nazareno. Tinham aportado novamente, e Herodes
pôs-se a caminho para voltar para Tiberíades, ansioso para
procurar sangue novo entre soldados e marinheiros para
passar uma noitada alegre. As três mulheres foram para
Migdal, para a casa de Maria. Mas Cláudio quis ficar com o
nazareno, para fazer este dia durar para sempre, para
perguntar mais, e tinha se oferecido para ajudar o nazareno a
lançar sua rede de arrasto no mar, num local distante
centenas de metros do alagadiço onde eles tinham visto a
embarcação pela primeira vez.
O nazareno remava em silêncio ao lado dele. Depois parou,
e olhou para o céu de um vermelho profundo onde o sol
tinha se posto, da cor de sangue derramado. - O tempo será
bom amanhã - ele disse. - A rede ficará segura aqui da noite
para o dia. Depois chegará o outono para a semeadura dos
campos. O vento do outono soprará do oeste, trazendo
aguaceiros pesados, caindo sobre as colinas da Judéia e
purificando a terra. O mar da Galiléia ficará novamente
cheio, e no lugar onde estávamos em pé haverá água.
- Herodes diz que você é um profeta - disse Cláudio.
- Faz-me bem ver Herodes - replicou o nazareno. - Tenho o
mesmo fogo que ele dentro de mim.
- Herodes diz que você é um escriba, um sacerdote. Ele diz
que você é um príncipe da Casa de David.
- Eu ministro para o haaretz, o povo deste lugar - ele disse. -
Mas não sou um sacerdote.
- Você é um curandeiro.
- O aleijado e o cego irão andar, e verão além do que o olho
de outrem alcança, porque anseiam muito andar e ver.
- Mas quem é você?
- É como você diz.
Cláudio suspirou. - Você fala por parábolas, mas, de onde
venho, nossos profetas são oráculos dos deuses, e eles falam
por charadas. Eu visito a Sibila, você sabe, em Cumas.
Herodes acha que ela é uma velha feiticeira, mas ainda assim
vou vê-la. Ele não entende como ela me faz sentir melhor -
Cláudio fez uma pausa, consciente de si mesmo. - Virgílio
também a visitava. Ele foi o nosso maior poeta. - Cláudio
fechou os olhos, declamando de memória, traduzindo o
verso em latim para o grego:

Agora se aproxima a última época da canção dos cumanos:
A importante direção dos séculos começa de uma maneira
nova.
Agora a Virgem retorna, o reino de Saturno retorna,
Agora uma nova raça desce do Céu lá no alto.
Só você, pura Lucina, sorri com o nascimento da criança,
Sob influência da qual a severa descendência por fim cessará
E uma Idade do Ouro surgirá em toda parte do mundo!

O nazareno ouvia atentamente, depois colocou a mão no
ombro de Cláudio. - Venha. Ajude-me com a rede.
- Você já viu Roma? - perguntou Cláudio. - Todas as
maravilhas da Criação humana se encontram ah.
- Aquelas coisas impedem o caminho para o Reino dos Céus
- replicou o nazareno.
Cláudio pensou durante um momento, depois pegou a
talhadeira com uma mão, a extremidade da rede com a
outra. - Você renunciaria a estas coisas?
O nazareno sorriu e tocou Cláudio de novo. - Deixe-me
contar-lhe - ele disse - acerca do meu ministério.
Meia hora mais tarde, já tinha quase escurecido, e a
embarcação tinha parado suavemente cerca de algumas
milhas distante de onde eles tinham saído. As tochas
ardentes de Migdal e Tiberíades brilhavam na praia, e outras
luzes mais fracas pareciam se agitar ligeiramente a pouca
distância da praia. O nazareno pegou um par de lâmpadas a
óleo feitas de cerâmica, de uma caixa ao lado da base do
mastro, encheu--as com azeite de oliva que havia sobrado
do almoço e habilmente acendeu as mechas com uma
pederneira e ferro. As lâmpadas se acenderam, depois
começaram a queimar fortemente, com chamas douradas e
sem fazer fumaça. Ele as colocou em uma pequena prateleira
na base do mastro e depois se voltou para Cláudio.
- O seu poeta, Virgílio - ele disse. - Posso ler os seus livros?
- Vou pedir a Herodes para trazê-los a você. Espera-se que
ele permaneça em Tiberíades pelo resto do ano, banido de
Roma. Talvez ele mesmo lhe faça uma tradução. Isso poderia
mantê-lo fora das confusões por um tempo.
Cláudio deixou cair os dados que estava carregando. Antes
que eles atingissem o fundo do barco fechou os olhos bem
apertados, como se não querendo ver os números, o
augúrio. O nazareno os pegou, e os colocou sobre a palma da
mão de Cláudio, fechou as mãos em torno deles. Por um
momento, permaneceram daquela maneira, depois ele
soltou a mão. Cláudio abriu os olhos. - Como retribuição,
você deve fazer uma coisa - disse Cláudio. - Você deve
escrever o que acaba de me dizer. Seu euangelion, seu
evangelho.
- Mas o meu povo não lê. O meu ministério é o da palavra
falada. A palavra escrita é um empecilho no caminho para o
Reino dos Céus.
Cláudio sacudiu a cabeça. - Se o seu Reino dos Céus se
encontra verdadeiramente nesta terra, então ele ficará
sujeito à violência, e homens violentos irão maltratá-lo.
Como agradecimento por este dia, eu farei todo o possível
para que sua palavra escrita permaneça salva e segura, pronta
para o tempo em que a memória de sua palavra falada se
tornar a palavra dita por outros, palavras moldadas e
transformadas pela história.
Houve um silêncio. - Você tem papel? - perguntou o
nazareno.
- Sempre tenho - disse Cláudio, procurando sua mochila. -
Eu escrevo tudo, como você sabe. Tenho uma ultima folha
de primeira qualidade, e alguns pedaços de papel. Uso o
papel de boa qualidade para dar minhas instruções especiais.
Utilizei a tinta preto-arroxeada, feita de ferro e sais de
tanino, ao longo da viagem, mas peguei um pouco da
mistura que é considerada como tinta em Tiberíades.
O nazareno ergueu a tábua que tinha usado para fatiar o
peixe, limpou-a na água por cima da amurada do barco
depois a enxugou em uma beirada da tanga. Colocou a tábua
em seus joelhos, depois pegou a folha de papiro e a pena
vermelha que Cláudio lhe oferecera. Cláudio abriu um
pequeno pote com tampa de madeira e o segurou perto do
nazareno, e este mergulhou a pena no tinteiro. Segurou a
pena com a mão direita por cima da extremidade superior
esquerda do papiro, suspendeu-a por um momento,
pensando.
- A Sibila escreve suas profecias em folhas de carvalho -
Cláudio riu. - Quando se quer pegá-las, o vento sempre as
assopra para longe.
O nazareno olhou para Cláudio direto no rosto, com os
olhos penetrantes, depois começou a escrever, com a mão
decisiva, arrojada, lenta e deliberadamente, uma mão de
quem tinha sido bem ensinada, mas que não escrevia com
freqüência. Ele mergulhava a pena na tinta a cada poucas
palavras, e Cláudio se concentrava para manter o pote firme.
Depois que o nazareno tinha começado a quarta linha,
Cláudio olhou pra o que estava escrito, e então falou sem
pensar, derramando a tinta em sua mão. - Você está
escrevendo em aramaico!
O nazareno ergueu o olhar. - É claro. Esta é a minha língua.
- Não - Cláudio sacudiu a cabeça enfaticamente. - Ninguém
em Roma lê o aramaico.
- Escrevo estas palavras para o meu povo, não para o povo
de Roma.
- Não. - Cláudio sacudiu a cabeça novamente. - Sua palavra
aqui, na Galiléia, é a palavra falada. Você mesmo disse. Os
seus pescadores não lêem, e não têm necessidade disto. Sua
palavra escrita deve ser lida e compreendida muito além
daqui, em Roma. Você não quer ter intérpretes, lembra? Se
você escrever em charadas, numa língua estrangeira, suas
palavras não serão mais claras que as expressas pela Sibila.
Você deve escrever em grego.
- Então, você deve escrevê-las em meu lugar. Eu falo grego,
mas não o escrevo.
- Muito bem. - Cláudio pegou a tábua com o papel e a pena,
e entregou o pote de tinta. - Devemos começar de novo. -
Remexeu em sua mochila, pensou durante um momento,
depois pegou um limão cortado da tigela de frutas. Espremeu
o limão sobre a escrita, depois esfregou o papiro
vigorosamente com um pano que tirou da mochila. Ergueu o
papel para que pegasse os últimos raios do sol que estava se
pondo, e viu o que o nazareno escrevera ir desaparecendo,
enquanto esperava o suco do limão secar. Uma brisa soprou
sobre eles, fazendo o papel flutuar, e Cláudio rapidamente o
abaixou e pressionou-o contra a tábua em seus joelhos.
Mergulhou a pena na tinta e testou o papel, inscrevendo um
sinal de cruz como sempre fazia quando iniciava um
documento, para ver se a tinta iria se espalhar. O papel era o
seu próprio e de primeira qualidade, e a tinta não se
espalhou. Resmungou, depois escreveu algumas palavras no
topo da página, com a mão cuidadosa de um estudioso ciente
de que sua escrita usualmente era legível apenas para ele
mesmo.
- Estou falando em grego agora para você, mas falo meu
evangelho para o meu povo em aramaico - disse o nazareno.
- Você deve me ajudar a encontrar as palavras em grego para
o que tenho a dizer.
- Estou pronto.
Uma hora mais tarde, os dois homens se sentavam imóveis,
de frente um para o outro, na embarcação, uma silhueta que
estava ficando cada vez mais escurecida sob o céu sem lua, e
logo desapareceria. As lâmpadas chiaram entre elas, depois
uma se apagou. O nazareno deslizou ao longo da prancha
onde estava sentado em direção a um lado da embarcação,
depois colocou a mão no espaço ao seu lado.
- Nós precisamos remar juntos.
Cláudio ergueu o olhar do papel, e sorriu. - Eu não desejaria
nada melhor. - Olhou novamente para o papel, quase
incapaz de vê-lo agora, e leu as palavras finais que o
nazareno havia dito, que ele tinha traduzido:
O Reino dos Céus é na terra.
Os homens não se interporão no caminho para a palavra de
Deus. E a Casa do Senhor será o Reino dos Céus. Não haverá
sacerdotes. E não haverá templos...


De: Yolanda



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