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Lançamento Gênesis do Conhecimento - O Enigma da Religião - Rubem Alves


RUBEM ALVES

O ENIGMA DA
RELIGIÃO


PREFÁCIO À 1aEDIÇÃO.

Estas meditações, faz tempo que as escrevi. Reli-as agora, e
confesso não ter encontrado boas razões para mudar grandes
coisas. Assim, elas ficam, do jeito como eu fui: cada coisa
que se escreve é um pedaço do próprio corpo que se
compartilha com outro... Fui deste jeito.
Mudei. Fiquei mais velho. Coisas belas e coisas tristes me
aconteceram. Estou diferente, e isto aparece nas coisas que
escrevo hoje... Criei coragem para dizer as coisas com
simplicidade. E comecei a perseguir a beleza, mais que a
verdade. É que descobri, tardiamente, através da surpresa de
amizades inesperadas, o fascínio da poesia. Que poema será
verdade? Que poema será reflexo especular fiel das coisas do
nosso mundo? Poemas, invocações de ausências, funduras
onde nadam os desejos: é aí que os corpos se preparam para
as batalhas. Seria possível isto, uma política que nascesse da
canção, do transbordar da fonte? Política da ternura e não da
azia, da visão utópica e não do ressentimento? Visitando a
mim mesmo e lendo coisas dos mundos mágicos e dos
mundos dos sonhos, aprendi que o corpo não é coisa
biológica: poemas que se fizeram carne. Somos moradas de
palavras, possessões demoníacas ou o vento indomável do
Espírito. Palavras: continuação das mãos. Mas, forma visível
das palavras. Há de se buscar a palavra que se transforma em
carne: aqui, o segredo do dizer mágico. Não basta o saber; é
preciso o sabor. É preciso que as palavras sejam belas, para
seduzir... Criei coragem tanibém para dizer o riso. Ele
sempre esteve em mim. Mas a seriedade do mundo da
ciência não permite brincadeiras. Por isto que lhe falta o
poder para exorcizar demônios. Tudo sério, tudo triste. Não,
me enganei... Quem fica triste pode sempre ficar alegre. Mas
no mundo da ciência também isto é proibido. Há de se
cultivar a objetividade, uma fala vazia de lágrimas e de risos,
aquele que escreve sempre ausente. Mudei-me pra outro
lugar. Acontece que eu também sou parte da realidade, com
minhas alegrias e tristezas, e o meu riso são as cócegas com
que percorro cavalos arreados e exames de doutoramento.
Falta de seriedade? Se o riso faz correr o medo por que não?
Com freqüência o humor entorta a arma. Os dominadores
ficam tranqüilos quando vêem o medo e a tristeza: sinais de
que movam na alma dos dominados...
Beleza e riso são partes do que penso sobre a religião.
No Paraíso, segundo os poemas bíblicos da criação, não
existia nem a ética e nem a política: mas existia a estética.
Não foi esta a tentação da serpente, que se o fruto mágico
fosse comido os olhos do homem e da mulher se abririam, e
seriam então como deuses, conhecendo o bem e o mal? Mas
a beleza já estava lá, coisa boa para os homens, coisa boa
para os deuses. No final das contas, não será por causa da
beleza que fazemos todas as lutas? O ético é um instrumento
do estético. Amo a justiça porque, ao passar por seus limites,
o mundo fica um deleite para os olhos... E não será verdade
que aqueles que viram a beleza têm mais coragem para o
combate? Como são belas as multidões que levam rosas nas
mãos e canções nas suas bocas... Elas nos dizem da teimosia
da vida, que não se assusta nem com dentes e nem com
cascos, e continua a rir e a dançar...
Quanto ao riso, lembro-me da afirmação de Reinhold
Niehuhr, de que o riso é o início da oração. Só Deus tem o
direito de se levar a sério. Quem compreende isto tem a
liberdade não só de rir dos outros que se levam a sério,
como também de rir de si mesmo. E quem é capaz de rir de
si mesmo começou a andar no caminho da bondade e da
mansidão. Os sérios estão condenados a ser inquisidores.
Medito sobre a religião como um caminho para o riso e paia
a beleza... Mas são estas coisas que deixei escondidas, nas
entrelinhas, quando escrevi este livro. Se o leitor tiver
paciência e souber escutar, é bem possível que ele ouça risos
e veja invocações de beleza no lugar onde elas se
escondem...
25 de abril de 1984


DO PARAÍSO AO DESERTO
REFLEXÕES AUTOBIOGRÁFICAS

Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição frágil da areia!
Ao mar!
A solidez da terra, monótona, parece-nos fraca ilusão.
Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas
malhas de perigo...
E entre água e estrela estudo a solidão.
E recordo minha herança de cordas e âncoras, e encontro
tudo sobre-humano.
Cecília Meireles

Tanto no Paraíso quanto na Cidade Santa não há templos.
No Paraíso a religião ainda não é necessária, e na Cidade
Santa ela deixou de ser necessária. A religião é a memória de
uma unidade perdida e a nostalgia por um futuro de recon-
ciliação. Por isto a religião pressupõe sempre, sob as camadas
superficiais de felicidade e paz que ela proclama, um eu
irreconciliado com o seu destino.
As mais antigas memórias de minha nostalgia religiosa me
conduzem aos dias de minha infância. Eu tinha onze anos.
Não se tratava de um caso de vocação teológica precoce. Era
antes caso de uma experiência precoce de medo. Aconteceu
quando, pela primeira vez, eu conheci o que significa
ansiedade.
Até então eu vivera numa pequena cidade. Tudo era familiar
e amigo: ruas, árvores, riachos e pessoas. Tudo estava no seu
próprio lugar. Olhava para os meus "outros relevantes" —
pai, mãe, irmãos e amigos — com calma e respeito. Eles
eram partes do meu cosmo. Eu não tinha nem mesmo cons-
ciência de mim mesmo, porque eu e o meu mundo nos
fundíamos num lodo. Acordar pela manhã, brincar, ir à
escola, ir para a cama à noite — estas eram partes de urna
liturgia que se renovava a cada dia e que celebrava um
mundo que fazia sentido.
Mas, sem o saber — e repentinamente —, fui expulso do
paraíso. Mudaram-me para urna grande cidade. Meus
"outros relevantes" se dissolveram em meio à complexidade
incompreensível da vida urbana. Permaneceram como
"outros", mas não mais "relevantes". Deixaram de ser o
centro emocional do meu mundo, de onde eu retirava meu
sentido de identidade e o meu senso de direção. Eles não
podem ser responsabilizados pelo que aconteceu. Eles
também estavam perdidos. Pela primeira vez conheci o
embaraço de ser diferente. Tornei-me consciente de mim
mesmo. Meu sotaque revelava quem eu era — um menino
da roça. E os companheiros de escola não me perdoavam
por isto. Como as crianças podem ser cruéis! Descobri-me
só, sem amigos, diferente e ridículo, e sem saber o que fazer.
E eu não dispunha de recursos humanos para sustentar-me
naquela solidão abismai. Perdeu-se o meu cosmo. Os
sociólogos denominam esta condição de anomia. Quanto
sofrimento se esconde nesta pequena palavra! As cosmogo-
nias primitivas se referem sempre a um conflito primevo
entre a terra seca e as águas. A terra é o espaço onde os
homens podem andar com segurança, e as águas são o
símbolo da horrenda possibilidade, que os ameaça sem
cessar, de que o "vazio e o sem-forma" venham a engolir o
mundo humano. Minha terra seca foi invadida pelas águas e
o meu cosmo destruído pelas ondas.
A consciência, entretanto, não pode sobreviver
indefinidamente à anomia. É necessário resolver o problema
da solidão e da impotência num mundo hostil. E a
consciência lança mão de um artifício para atingir este
resultado. Por um golpe de mágica, ela deseja que o real seja
irreal. E organiza a sua percepção da realidade como se os
seus desejos e aspirações fossem a realidade última. Eles são
ontologizados e reificados. Através do poder mágico da
"onipotência do pensamento" o homem, das profundezas de
sua impotência e das alturas de suas paixões, tece um mundo
verbal que afirma e confirma os seus valores. E este novo
mundo, assim constituído, passa a ser a "gratificação
substitutiva", o novo mundo de felicidade que compensa as
frustrações e sofrimentos contidos na realidade. E
freqüentemente, mas não exclusivamente, esta "gratificação
substitutiva" é a religião.
Este foi o caminho que inconscientemente segui. Tornei-me
religioso.
Não importa que o mundo zombe de nós. A verdadeira
realidade está além.
Se os nossos "outros relevantes" são reduzidos à
insignificância e à impotência, há um Outro Relevante que
nos ama e nos conhece, cujo poder é infinito.
Está longe de minhas intenções reduzir a religião a este tipo
de experiência. Mas como não dizer o que realmente
aconteceu comigo?
Tornei-me um fundamentalista. Um piedoso fundamenta-
lista. Fundamentalismo é uma atitude que atribui um caráter
último às suas próprias crenças. O mais importante não é o
que o fundamentalista diz, mas como ele diz. É a atitude
dogmática e autoritária com respeito ao seu sistema de
pensamento, e inversamente a atitude de intolerância e
inquisitorial ante qualquer tipo de "herege" ou "revisionista"
que o caracteriza. Pode-se ser um revolucionário
fundamentalista (não importa se marxista, Libertação
Feminina ou Poder Negro), um cientista fundamentalista
(especialmente na medida em que o cientista se esquece de
que ele trabalha com modelos, como diz Kuhn, ou com
simples "palpites", como sugere Popper"), um
fundamentalista da contracultura (e a conseqüente
absolutização de experiências privadas), e mesmo um
fundamentalista liberal. O fundamentalista é o homem
consistente, incapaz de jogar uma pitada de humor sobre si
mesmo, que Kolakowski descreve como sendo o "sacerdote"
em oposição ao "bufão". O que importa na caracterização do
fundamentalismo não são as idéias que ele afirma, mas o
espírito com que ele as afirma. Não basta mudar as garrafas
na prateleira. Se as prateleiras não são modificadas o
"arranjo" permanece o mesmo. De uma
forma mais abstrata: é a estrutura que determina a
significação da mentalidade fundamentalista, e não os itens
que constituem o inventário do seu conteúdo?!
O fundamentalismo é, talvez, a grande tentação que nos
assalta. "Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal",
disse a serpente ao homem. Qual é a pessoa que não anseia
por trocar seus palpites por visões da realidade, suas dúvidas
por certezas, sua provisoriedade por eternidade, suas
inquietações e incompletude por paz e realização? A solução
fundamentalista nos liberta do doloroso confronto com uma
realidade sempre inacabada, sempre em mutação, sempre
perturbadora, sempre questionadora. Converta-se ao
fundamentalismo (não importa de que tipo)! Você se
descobrirá livre do processo sem fim de construir, destruir,
para começar tudo de novo da estaca zero. O
fundamentalista é alguém que já chegou tão bem descrito
por Nietzsche como o inimigo do futuro, porque isto é
muito funcional. Sob esta perspectiva a religião nos dá
certezas. E para quem quer que tenha encontrado esta
religião o caminho natural a seguir é o de tornar-se um após-
tolo da sua verdade. Assim, fui para o seminário.
Mas a linguagem (não se esqueça de que é a linguagem que
sustenta o nosso mundo e estrutura a nossa personalidade) é
imprevisível. A linguagem é como um instrumento. Ela é
criada, usada e, portanto, preservada na medida em que
funciona de forma adequada para a solução do nosso
problema existencial. Suponha agora que este problema
básico, esta matriz emocional em torno da qual estruturamos
a nossa experiência, se altera. A linguagem antiga se torna,
repentinamente, supérflua. Ela não tem mais nenhuma
função a desempenhar. A função da minha linguagem
fundamentalista era resolver a anomia que surgira da minha
solidão. No seminário, entretanto, encontrei um punhado de
companheiros como eu mesmo, e os "scripts" de nossas
biografias eram muito semelhantes. Tornamo-nos amigos.
Formou-se uma comunidade. E no compartilhar de nossas
fraquezas encontramos "graça". A anomia foi vencida e a
linguagem fundamentalista se tornou obsoleta. Não era mais
necessária.
Wittgenstein observou certa vez que a linguagem tem um
poder "enfeitiçante". As estruturas lingüísticas tendem a nos
colocar dentro de um círculo encantado que nos impede de
ver o mundo a não ser sob a forma que ela o programou.
Assim, quando alguém "esquece" uma linguagem, é como se
começasse a ver o mundo de uma forma totalmente
diferente. É uma experiência de "maravilhar-se" em frente a
coisas que estiveram ali, todo o tempo, mas que estavam
escondidas. E vem a pergunta: "Como é que eu fui incapaz
de ver tantas coisas? Como é que ignorei tantas dimensões
da realidade que estavam ali bem diante dos meus olhos?
Descobrimos as raízes sociais de nossa religião e também as
suas origens neuróticas. A negação do mundo, a
absolutização da eternidade, um medo da vida, o mal-estar
diante de qualquer coisa humana, sensual, corporal, a
rejeição da liberdade, a revolta contra tudo o que fosse
provisório — não era verdade que todos estes elementos
conspiravam contra a própria vida?
Horizontes se tornam diferentes, de acordo com o ponto de
vista a partir do qual os contemplamos. A nova visão do
nosso espaço, nosso tempo e nossas vidas revelou-nos uma
Bíblia que estivera até então oculta aos nossos olhos. Que
descoberta foi perceber que os homens da Bíblia se sentem
em casa no mundo! Do seu princípio até o seu fim há uma
celebração constante da vida e de sua bondade. É bom estar
vivo, é bom ser carne e sangue, é bom estar no mundo. De
repente a obsessão calvinista com a Glória de Deus nos
pareceu profundamente desumana e anti-bíblica. A
felicidade do homem — não é esta a única preocupação de
Deus? Não é esta a sua paixão última? Não é Deus um
humanista, no sentido de que o homem é o único objeto do
seu amor? Bonhoeffer se tornou nosso companheiro. Nós o
lemos com paixão:

Nós não estamos preocupados com o outro mundo, mas
com este mundo. Aquilo que está acima do mundo, no
Evangelho, tem o propósito de existir para este mundo. É
somente quando amamos a vida e o mundo com tal intensi-
dade, que sem eles tudo estaria perdido, que podemos crer
na ressurreição e num mundo novo. Não devemos tentar ser
mais religiosos que o próprio Deus.

A salvação do mundo — este dogma básico do protestan-
tismo brasileiro — não estava em direta oposição à própria
Bíblia? A salvação não pode ocorrer em detrimento do
mundo, pois o homem e o mundo se pertencem. É antes na
luta pela redenção do mundo que o homem conquista a sua
totalidade pessoal. Assim, salvadores de almas se
transformaram em reconstrutores da terra. Uma coisa nos
parecia evidente. A Igreja tinha de se libertar do feitiço da
linguagem fundamentalista que a mantinha cativa. E assim
que isto fosse realizado — esperávamos — a própria Igreja se
tornaria na vanguarda na luta pela transformação do mundo.
Em nossas mentes a reforma da Igreja c a redenção do
mundo eram uma tarefa única. Deixamos o seminário na
certeza de que levaríamos este programa a cabo. A nossa
visão — não era ela inebriantemente bela? Quem poderia
evitar apaixonar-se por ela?
A realidade, entretanto, ria-se de nossas aspirações ingênuas.
Não estávamos preparados para os fatos da vida institucional.
A nova leitura do Evangelho soou aos ouvidos dos líderes
eclesiásticos como uma apostasia da fé. A sua experiência
tinha sido diferente. Eles não podiam, portanto, entender e
amar aquilo que era tão simples e amável para nós. Acusados
como hereges, marcados como pessoas com idéias políticas
perigosas, rejeitados como apóstatas (cometêramos o pecado
de aceitar os católicos como nossos irmãos!), fomos forçados
ao exílio. "Ame-a ou deixe-a, mas não tente transformar a
Igreja".
Duas coisas se tornaram claras.
A Igreja institucional não era a Igreja que amávamos. A
leitura dos profetas nos contou que esta tinha sido também a
experiência de Oséias: "Vós não sois o meu povo" — grito
que se cristalizou no nome de um dos seus filhos. A
comunidade da liberdade e do amor, a Igreja por que
aspirávamos, não se encontrava dentro do limites
institucionais da organização eclesiástica. Tivemos de
abandonar o ideal de reformá-la. Não se pode costurar
remendo novo em pano velho e nem colocar vinho novo
em odres velhos. Isto é impossível e mais do que isto: tolice.
Mas como sobreviver em solidão, à parte de uma
comunidade? Valores, se não são compartilhados, são
esquecidos. Na medida em que valores não são fatos, eles são
entidades ausentes. Ainda não nasceram. Permanecem
como uma possibilidade, como uma promessa, como uma
esperança. A sua existência no presente depende de uma
linguagem que anuncie seu advento. Nossa desilusão com a
organização eclesiástica não significou, portanto, que
tivéssemos abandonado a esperança de encontrar uma
comunidade. Exatamente o contrário. Começamos a
procurá-la em lugares onde não havíamos procurado antes.
E as nossas perguntas passaram a ser: "Será possível que a
Igreja hoje esteja espalhada, escondida, incógnita no
mundo? Não será possível que aqueles que vivem pela espe-
rança do Reino não conheçam o Seu nome?" E para surpresa
nossa, encontramos mais sinais do Espírito fora dos limites
fechados de nossas comunidades eclesiais que dentro delas.
Emergiu um tipo de ecumenismo totalmente diferente do
ecumenismo institucionalizado, que ocorre nas altas esferas
hierárquicas, e que depende de acordos sobre doutrina e
ordem eclesiástica. Descobrimos uma nova unidade nas
fronteiras da preocupação pelo homem e pela renovação do
mundo. Parece-me, na verdade, que quanto mais a Igreja se
volta para si mesma, ainda que a preocupação deste voltar-se
seja encontrar uma unidade perdida, mais a Igreja se atola
em suas próprias contradições. Ao contrário, ao abandonar-
se numa entrega apaixonada à causa da redenção do homem,
de forma concreta e sofrida, ela descobre aquilo que não
havia buscado: a sua própria unidade.
A nossa segunda conclusão decorreu da primeira. Os
patrocinadores de Deus, os que pretendiam deter o
monopólio do divino, usavam este nome num estilo que se
assemelhava muito ao da Inquisição. Deus se tornou uma
arma ideológica para a preservação do poder, para justificar
as coisas, tais como elas eram, para executar os dissidentes.
Assim, de forma muito concreta, a palavra Deus ficou
repentinamente sem sentido. Ou melhor: esvaziou-se,
dentro do contexto institucional e teológico tradicional. Seu
nome não era ali o símbolo de liberdade e amor. Para muitos
isto significou a morte de Deus. Descobiram-se sozinhos em
frente à tarefa de reconstruir o mundo. Das frustrações
eclesiásticas surgiu um humanismo secular. A teologia foi
trocada pela sociologia, a Igreja pelo mundo, Deus pelo
homem.
Outros, entretanto, não puderam tomar este caminho. De
suas esperanças, de suas frustrações, de sua leitura da Bíblia e
de sua leitura dos jornais surgiu algo novo, uma nova forma
de falar sobre Deus, uma nova forma de pensar a
comunidade da fé. A este novo modelo deu-se o nome de
teologia da libertação. Trata-se, essencialmente, de uma
hermenêutica dialética que lê a Bíblia a partir das ansiedades
e esperanças do presente e lê o presente a partir das
ansiedades e esperanças de qua fala a Bíblia. Lógico: há um
ato de fé envolvido neste procedimento. Pressupõe-se, com
Paulo, "que a criação toda, em uníssono, geme agora em
dores de parto". Dores de parto misturam lágrimas com
sorrisos. Elas apontam para uma nova realidade que emerge.
O Espírito engradivou a criação e esta, com o ventre cheio
de nova vida, espera — aguarda ansiosamente o advento do
novo que já se manifesta nos próprios gemidos que brotam
do nosso íntimo (Rom 8,22-23). A teologia da libertação não
pode contentar-se com um transcendente para além do
mundo, para além da vida. O Evangelho, não é ele as boas-
novas da encarnação? A vida de Cristo, não é ela o
testemunho da solidariedade de Deus com os homens? Não
se trata de uma redução sociológica da fé. O que se afirma é
antes que a transcendência se revela de forma concreta
tanto nos gemidos pela liberdade, quanto na luta contra tudo
aquilo que oprime o homem.

Muitos anos já se passaram. Nossas esperanças seculares não
se realizaram. Vivemos em meio aos escombros de nossas
expectativa religiosas. Os gemidos pela liberdade
permanecem como gemidos. Uma forma de cativeiro é
abolida para ser imediatamente substituída por outra. E
agora, ao tentar fazer sentido de nossas biografias, nos damos
conta de que estivemos todo o tempo batendo em retirada.
Nossas costas estão contra a parede. Não há mais para onde
ir. O êxodo com que sonhávamos foi abortado. Em seu
lugar, descobrimo-nos na situação de exílio e cativeiro.
Explico-me. Nascemos num mundo iluminado por certezas
transcendentais e valores absolutos. Nossas esperanças eram
inabaláveis. Nosso mundo era um cosmo cuja significação
lhe era dada pela visão de Jerusalém Celeste. Deus estava nos
céus. Tudo estaria bem na terra.
Mas nossos deuses morreram. Ou, se não morreram, ficaram
mudos e silenciosos. Foram, como nós, exilados. E em seu
lugar surgiram os heróis. A política se transformou em
religião. Através dela aquilo que na religião aparecia apenas
como gemido e aspiração seria realizado de forma concreta.
Mas os nossos heróis morreram também. Não pudemos
levar a cabo aquilo a que nos propúnhamos. O cosmo foi
invadido pelo caos. Que nos restava fazer? Bater em retirada
uma vez mais. Sem deuses e sem heróis, ainda tínhamos os
nossos valores domésticos. É incrível como nossos
horizontes encolheram. No início, com a religião, eles iam
até os confins do tempo e do espaço. Com a política
tornaram-se mais acanhados. Seus limites não iam além dos
limites da história. Mas agora o nosso cosmo se comprime
dentro do estreito espaço de nossa casa e do curto tempo de
nossa vida. Sem deuses, sem heróis, temos ainda esposa e
marido, filhos e amigos, a profissão, a música e a
contemplação da natureza. Disseram-me que após a
frustrada revolução estudantil na França, em 1968, houve
um aumento substancial nas vocações relacionadas com a
vida agrária. Isto é muito interessante. Pelo menos o cultivo
da terra é uma esfera em que, podemos ter certeza, não
colheremos espinhos se plantarmos uvas. Se não podemos
controlar a história, podemo-nos resignar a um mundo
menor. Mas também esta retirada está condenada ao
fracasso. Não podemos preservar valores domésticos num
mundo tecnocrático. O camponês que experimentava
anomia ao seu mudar do campo para a cidade podia sempre
resolver o seu problema voltando ao seu inundo original.
Hoje, entretanto, o problema não é mais espacial. Alguma
coisa ocorreu com o nosso espaço. Ele foi globalmente
tomado pelo novo tempo que a sociedade tecnológica e
burocrática criou. Não podemos conquistar a anomia
voltando ao paraíso perdido, porque ele não mais existe. O
caos invadiu todos os setores da nossa civilização. Nossa
anomia é global, metafísica. Assim aqueles que um dia viram
seus deuses morrer, que abraçaram os heróis para vê-los
morrer também, que se encolheram dentro dos limites
domésticos, descobriram repentinamente que a menos que
eles fossem capazes de dar à luz novos deuses, só lhes
restava a loucura. Mesmo Nietzsche, que proclamou a morte
de Deus, sentiu que um universo em que Deus morreu é frio
e escuro.

A biografia e a história se pertencem. Como Marx muito
bem observou: "o homem não é um ser abstrato, agachado
fora do mundo. O homem é o mundo do homem". Mesmo
se cercarmos o nosso espaço com sinais de "propriedade
privada", mesmo que nos recusemos a olhar para o mundo
que nos agride, mesmo que tenhamos a ilusão de estar
vivendo nossas vidas individuais, o fato, entretanto, é que os
nossos destinos pessoais estão profundamente enraizados
nos destinos da civilização. Nossa biografia é sempre, de
uma forma ou de outra, um sintoma das condições que
prevalecem no nosso mundo. Esta é a razão por que
freqüentemente descobrimos que, a despeito do fato de
vivermos em lugares diferentes, em contextos políticos
distintos, as nossas biografias surpreendentemente são como
versões diferentes de um mesmo "script". Têm a mesma
estrutura. Elas exibem a mesma trama, a mesma seqüência
de esperanças e frustrações.
É esta estória pessoal que me compele a fazer teologia. Perdi
meus pontos de referência. Não encontro sinais concretos
que me permitam ter esperança. O que nos é dado, em nossa
situação histórica, não nos permite nenhum tipo de
otimismo. Sei, entretanto, que o homem não pode
sobreviver sem esperança. É a esperança que nos dá aquilo
que Prescott Lecky chamou de auto-consistência. A
psicoterapia descobriu que objetivamente não há esperança
para os pacientes que subjetivamente não têm esperança.
Porque é a esperança, a aposta na possibilidade da realização
dos nossos valores, que nos dá as energias emocionais para
viver através da frustração e da impotência. Sinto-me, assim,
distendido entre a necessidade antropológica de esperança e
a impossibilidade histórica de esperança. Não sei como
juntar a minha estória com a história, o pessoal e o
estrutural, o existencial e o material. Não disponho de
nenhum paradigma que me permita reconstruir o meu
cosmo.
Este é o problema que se encontra nas raízes da minha
teologia. Teologia é uma atividade para aqueles que
perderam a unidade paradisíaca original, ou para aqueles que
ainda não a encontraram. É uma busca de pontos de
referência, de novos horizontes que nos permitam fazer
sentido do caos que nos engole. É uma tentativa de arranjar
os fragmentos de um todo que foi destruído. Nas suas
origens está o problema da esperança, isto é, a questão da
plausabilidade dos valores humanos que amamos, num
mundo que conspira contra eles.
A teologia e a biografia, assim, se pertencem. "A religião",
escreve Feuerbach, "é o solene desvelar dos tesouros ocultos
do homem, a revelação dos seus segredos íntimos, a
confissão aberta dos seus segredos de amor". A religião é a
proclamação da prioridade axiológica do coração sobre os
fatos brutos da realidade. Ela é a recusa, por parte do
homem, de ser digerido e assimilado ao mundo que o cerca,
em nome de uma visão, de uma paixão, de um amor.
Quando o coração constrói uma utopia, não está ele
colocando em palavras um mundo que seria divino? Não
encontramos aqui a nostalgia pelo Reino? Quando anseio
pelo amor e pela justiça, a despeito do fato de que não vejo
nenhuma possibilidade concreta de amor e justiça no
mundo, não estou dizendo, no meu coração, mesmo que eu
seja um ateu professo: "Que bom seria se houvesse um Deus
para confirmar os meus valores. Muito embora não possa
crer neste Deus, como eu desejo que ele existisse". E quando
suspiro sob a tristeza e a opressão, com sentimentos que são
por demais profundos para palavras, não estou, sem o saber,
orando?
É necessário reconhecer as origens humanas da religião.
Se houvesse tal coisa como uma religião que não nascesse da
situação existencial do homem, como poderia eu entendê-
la? Como poderia ela ser o objeto do seu amor? Temos de
concordar com Nietzsche, em que "o ventre do ser não fala
aos seres humanos a não ser como homem". Se isto soa por
demais humano a ouvidos piedosos, seria bom reler um
pouco de Lutero. O homem só pode ter uma atitude
religiosa para com aquilo que ele apreende como valor,
aquilo que tem a ver com sua vida e sua morte. Assim, é
totalmente errado dizer que religião é mera antropologia.
Estaríamos mais próximos da verdade se disséssemos que a
antropologia é religião para o homem. "Se as plantas
tivessem olhos, gustação e capacidade de pensar, cada uma
delas declararia que a sua própria flor era a mais bonita", diz
Feuerbach. De forma idêntica, "o absoluto para o homem é a
sua própria natureza".
Teologia é a tentativa do homem de ajuntar de novo as
pétalas de sua flor, que é contínua e cruelmente destruída
por um mundo que não ama flores. Ela é o "suspiro da
criatura oprimida" (Marx) que, incapaz de fazer reviver a flor
morte, é, a despeito disto, capaz de ter a esperança de que as
suas sementes irão germinar depois de passado o inverno. A
teologia é uma expressão do projeto inconsciente e sem fim
que é o coração do homem: a criação de um mundo com
uma significação humana. "É o ego humano que leva a cabo
a busca de um mundo de amor", observa Norman O. Brown.
Em outras palavras, o eu não permanece fechado dentro de
si. Ele deseja transbordar, fecundar a natureza com o seu
sêmen, humanizá-la, engravidá-la de futuro, transformar o
universo físico numa ordo amoris (Max Scheler). Aquilo que
está morto, que é fato bruto, que é incapaz de sentir, tem de
se tornar numa extensão do corpo humano, um instrumento
para as suas mãos, uma expressão do seu coração:

Na medida em que o homem se externaliza, ele constrói o
mundo no qual se externalizar. No processo de
externalização ele projeta as suas próprias significações sobre
a realidade. Universos simbólicos, que proclamam que toda a
realidade é humanamente significativa e que invocam o
cosmo todo para testemunhar da validade da existência
humana, constituem a extensão mais ampla desta projeção.
Esta é a origem, a função e a significação da teologia. Invoco
as palavras de um anti-teólogo, Nietzsche, para exprimir
aquilo que se encontra por detrás da loucura da teologia:
"Deixa que o futuro e o mais distante sejam para ti, a causa
do teu hoje". Teologia é um contemplar do hoje sob a
perspectiva do futuro, um encarar os fatos sob a perspectiva
da sua abolição e realização (Aufhebung), um dissolver
mágico da objetividade em nome de uma ordem utópica que
se constitui em horizonte e destino.
"Mas se este é o caso", você poderia ponderar: "se teologia é
antropologia, se a teologia é uma projeção dos desejos
humanos, ela não tem nenhuma validez objetiva. Nada mais
é que uma ilusão, um ópio, uma gratificação substitutiva que
o homem inventa a fim de proteger-se contra os duros fatos
da realidade". A fim de esclarecer esta questão teremos de
abandonar, por um momento, a linha de pensamento que
estamos seguindo, e começar de um outro ponto.
Nossas maneiras de pensar são condicionadas por uma série
de pressuposições inconscientes que aceitamos como ponto
de partida do conhecimento. São os "acordos silenciosos" a
que se referia Wittgenstein, ou os "God-terms" que Philip
Rieff menciona. Estes acordos silenciosos funcionam como
os nossos olhos: vemos através deles, mas não os vemos.
Constroem a nossa realidade, mas não nos damos conta de
que eles mesmos foram construídos. Em conjunto,
constituem um inconsciente coletivo que está por detrás dos
nossos processos mentais? São inconscientes, não os vemos,
e esta é a razão por que permanecem, na maioria das vezes,
inacessíveis à nossa crítica. Esta é a razão por que eles
podem exercer um estranho poder "enfeitiçante" sobre nós:
eles tornam impossível contemplar o mundo de qualquer
forma que se desvie daquela que eles programam.
Nossas maneiras de ver a realidade são condicionadas por
uma série de "acordos silenciosos" que a ciência cristalizou.
Em primeiro lugar, pressupomos que conhecer é reduplicar.
Por detrás do ideal científico de objetividade encontramos a
pressuposição de que o conhecimento é nada mais e nada
menos que uma simples cópia ou reflexo daquilo que é dado.
A sociologia acadêmica ocidental, a este respeito, em nada
difere da assim chamada ciência marxista. Lembro-me da
observação de Engels de que o socialismo moderno nada
mais é que "um reflexo, no pensamento daquilo que ocorrer,
de fato". Quer o reconheçamos ou não, somos empiricistas e
pressupomos que o pensamento deva ser uma cópia do
dado. E pressupomos, em decorrência disto, que as
proposições só têm um sentido quando podem ser
verificadas por meio de uma comparação com aquilo que é
dado empiricamente.
O segundo dogma do nosso inconsciente coletivo deriva-se
naturalmente do primeiro. Se conhecimento é reduplicação
uma pessoa é considerada normal na medida em que os seus
processos mentais não contradizem as regras do copiar. É
interessante notar que Freud considera como neuróticas
aquelas pessoas que seicomportam a partir de uma
""excessiva valorização dos seus desejos. Em outras palavras:
define-se como não-sadio o comportamento que toma os
valores como os seus pontos de referência. Como Freud o
disse, de forma concisa, "sei, com certeza, de apenas urna
coisa, que os julgamentos de valor do homem seguem
diretamente os seus desejos de felicidade e, portanto, eles
são tentativas de apoiar as suas ilusões com argumentos".
Não há como fugir: ao ideal científico de objetividade, no
nível epistemológico, corresponde um padrão psicossocial
de normalidade em termos de ajustamento.
A nossa metafísica inconsciente afirma, ainda mais, que os
processos históricos e sociais são independentes do homem.
A essência da ciência marxista, observa Lukács, consiste no
"conhecimento da independência das forças que realmente
movem a história em face da consciência psíquica que os
homens possam ter delas". Nas palavras do próprio Marx, "é
totalmente irrelevante o que este proletário ou mesmo o
proletariado inteiro diretamente imagine. O que importa é o
que é e o que será obrigado a fazer por causa desta
realidade". Quais são as causas do comportamento humano?
Que é o que o explica? As intenções e aspirações dos
homens? De forma alguma. O conteúdo da consciência é um
fenômeno secundário. Ele é um efeito, mas não uma causa
dos processos sociais. É a estrutura social que explica a
consciência e não o inverso. Na sociologia acadêmica do
Ocidente aceita-se o mesmo axioma. As estruturas sociais
são independentes e autônomas e, portanto, auto-
explicativas. "Uma vez firmemente organizadas", observa
Peter Blau, "uma organização tende a assumir uma
identidade própria que a torna independente das pessoas que
a fundaram ou que são seus membros". Aquilo que
Althusser, disse da ciência marxista pode ser aplicado aqui, a
fim de conhecer o mundo humano o cientista tem de
colocar o próprio homem entre parêntesis. O homem
concreto não contribui de forma alguma, para o
conhecimento e a compreensão das instituições a que ele
pertence. Assim, o "anti-humanismo teórico de Marx... é a
pré-condição absoluta (negativa) do conhecimento
(positivo) do próprio mundo humano e de sua
transformação prática".
Esta pressuposição não é característica apenas das ciências
sociais. O behaviorismo psicológico, especialmente sob a
influência de B. F. Skinner, toma tal pressuposto como o seu
ponto de partida. O comportamento humano deve ser
compreendido como uma simples resposta a estímulos. A
ação humana é, na realidade, reação. O complexo de
estímulos desempenha, para o behaviorismo, a mesma
função que as estruturas sociais desempenham para as
ciências sociais. Em última análise o homem não é um fator.
Ele não faz história. Sua ação não brota de sua liberdade,
mas antes dos determinismos concretos que o cercam.
O último axioma que desejo sublinhar está implícito no
terceiro. A imaginação não faz história. A luta de Freud
contra o neurótico é idêntica ao ataque de Marx contra os
socialistas utópicos. Tanto o neurótico quanto o utópico não
aceitam o veredicto da realidade. Eles se comportam como
se os seus valores fossem capazes de alterar o curso
inevitável da realidade objetiva. Eles pensam que a
imaginação é capaz de criar novas condições. Mas desde que
a imaginação representa uma recusa em aceitar e reduplicar
aquilo que é dado, e implica uma transfiguração mágica do
mundo objetivo (Sartre), ela tem de ser abandonada como
falsa consciência e como uma forma de enfermidade.
É este último axioma que nos interessa mais, porque o que é
a religião senão uma forma de imaginação. Religião é
imaginação e, inversamente, a imaginação tem sempre uma
função religiosa, para o homem. É evidente que a religião
não deseja descrever aquilo que é dado na experiência.
Como Feuerbach observou, "a religião é um sonho da mente
humana. [Através dela] vemos as coisas reais no esplendor
mágico da imaginação... ao invés de vê-las sob a simples luz
diurna da realidade e da necessidade". Assim sendo, de
acordo com a lógica da mentalidade científica, a religião,
juntamente com a imaginação, tem de ser classificada como
uma forma de doença ou de falsa consciência..
Assim, quando nos descartamos da religião como mera
imaginação, estamos inconscientemente aceitando a
metafísica oculta que controla a mentalidade científica.
Estamos pressupondo que (ponhecimento é reduplicação e
que normalidade é ajustamento. A consciência deve ser algo
semelhante a uma câmara fotográfica que tira retratos mas
antes transfigura o dado de acordo com a lógica do coração,
ela é descartada como destituída de significação.
O mundo do homem, entretanto, como ser concreto, não é
o mundo objetivo da abstração científica. Como Dewey
observou, "as coisas, empiricamente, são emocionantes,
trágicas, lindas, cômicas, estabelecidas, perturbadoras,
confortáveis, irritantes, áridas, rudes, consoladoras,
esplêndidas, terríveis". A experiência que o homem tem do
seu mundo é primordialmente emocional. "Bem", poderia o
cientista objetivo retorquir, "isto é assim porque o homem
ainda não se treinou para o conhecimento verdadeiro puro e
desinteressado". Não. As coisas são assim porque o homem
ao se relacionar com o seu ambiente, se encontra sempre
face a face com o imperativo da sobrevivência. E porque ele
deseja viver, o ambiente nunca é percebido como algo
neutro. O ambiente promete vida e morte, prazer e dor — e
portanto, qualquer pessoa que se encontre realmente em
meio à luta pela sobrevivência é forçada a perceber o mundo
emocionalmente. E é esta experiência imediata — emotiva,
e na maioria dos casos não verbalizada e não verbalizável —
que determina a nossa maneira de ser no mundo. Esta é a
matriz emocional que estrutura o mundo em que vivemos.
Estou afirmando que a consciência não é pura. A mente não
é uma entidade independente da matéria, como afirma a
filosofia cartesiana. Não é razão pura, livre e acima da
interferência dos componentes vitais e emocionais do
sujeito, como Kant cria. A consciência é uma função do
corpo. Ela existe para ajudar o corpo a resolver o problema
da sua sobrevivência. E porque a sobrevivência é sempre o
valor último do homem mesmo quando ele comete suicídio!
— a consciência se estrutura em torno de uma matriz
emocional. O corpo, Nietzsche proclamava, é a nossa
Grande Razão. E aquilo a quem denominamos razão é na
realidade uma pequena razão — um instrumento e um
brinquedo de nossa Grande Razão.
Se o coração da consciência é emoção e valor, a consciência
é radicalmente religiosa. A consciência, como observamos
antes, não é um mecanismo de reduplicação de uma ordem
dada empiricamente. Como Piaget observa, "o
conhecimento não é uma cópia, mas uma organização do
real". E como o real é destituído de significação humana, ele
se torna um mundo humano somente depois que o homem
o estrutura de acordo com as exigências dos seus valores. Em
outras palavras, aquilo a que denominamos realidade é uma
construção da matriz religiosa da consciência. Como
Durkheim indicou na sua obra As Formas Elementares da
Vida Religiosa, a religião é a origem e o fundamento das
categorias da razão.
A razão por que tendemos a nos descartar da religião como
mera imaginação é que, enfeitiçados pelo nosso
inconsciente coletivo, nós somos programados a conhecer
somente de acordo com a lógica da relação sujeito-objeto —
ou, numa linguagem de Martin Buber, em termos da relação
Eu-Isso. Qual o sentido do critério científico de verificação,
se não qué cada sinal deve apontar para um objeto? Mas a
vida se dá anteriormente a esta clivagem, porque vida é
relação. Para a vida se processar o organismo e o seu
ambiente devem estar num processo perpétuo de relações
dialéticas. Cessado este processo, a vida é conquistada pela
morte. O pensamento religioso, na medida em que ele tem a
ver com a vida, e não com abstrações mortas, tem como seu
ponto de referência reduções que antecedem a dicotomia
sujeito-objeto. A religião, por isto mesmo, não faz
primariamente uso de sinais, mas de símbolos. A função de
um símbolo é representar uma relação vivida. Relações não
são vistas. Elas não são objetos. Elas são antes o meio em que
a vida se dá.
Uma das grandes contribuições da psicanálise foi a
descoberta de que sonhos têm uma significação. O absurdo
aparente dos sonhos é uma forma velada de revelar uma
verdade. O problema é que a sua significação está oculta. Se
tentarmos decifrá-los de acordo com a lógica da relação
sujeito-objeto, a única coisa que obtemos é um absurdo,
porque nos sonhos cobras não são cobras, rios não são rios,
montanhas não são montanhas. Eles são símbolos. Eles
revelam e escondem ao mesmo tempo. Se pensarmos que
nos sonhos estamos lidando com sinais que indicam certos
objetos, e ignorarmos que aí nos encontramos no domínio
dos símbolos que exprimem relações, a sua significação
permanecerá para sempre escondida ao nosso
entendimento.
Mas o que é a religião, senão um sonho de grupos humanos
inteiros? A religião é, para a sociedade, aquilo que o sonho é
para o indivíduo. Se isto é verdade, então cometemos um
grande erro ao classificá-la como uma forma de falsa
consciência. A religião revela a lógica do coração, a
dinâmica do "princípio do prazer", na medida em que ele
luta por transformar um caos não-humano ao seu redor
numa "ordo amoris".

Mas você poderia bem retrucar: "Você faz uma apologia da
religião. Suponha que nós a aceitemos. Entretanto, você não
mostrou ainda, de uma forma convincente, por que deve-
mos fazer teologia. Você não mostrou por que devemos ir
além da fantástica variedade de experiências religiosas que
estão agora emergindo naturalmente, a fim de nos envolver-
mos com coisas que aconteceram séculos atrás, nos tempos
bíblicos".
Você está certo. Mas vou tentar.
Você sabe que todos, em maior ou menor grau, somos
neuróticos. Não somos livres. Vivemos as nossas vidas coti-
dianas sob o poder de um sem-número de "maus espíritos"
que o nosso passado nos legou. As nossas histórias pessoais,
que nos moldaram, estão carregadas de frustrações, de
sentimentos agressivos, de tendências sado-masoquistas, de
sentimentos de culpa, de temores. Não importa que lutemos
contra eles com todas as nossas forças. Somos derrotados dia
após dia. Na medida em que nos mantivermos dentro dos
limites das nossas biografias podemos embaralhar e
reembaralhar nossos deuses e nossos maus espíritos.
Podemos mesmo ter experiências emocionais diferentes.
Mas os atores do nosso "script" permanecem os mesmos. E
para nosso desespero descobrimos que nada muda de forma
substancial.
A grande descoberta de Lutero, quando passou por seus
conflitos pessoais, foi que não existe esperança para o
homem, se ele tenta resolver as suas contradições sem sair
de si mesmo. Você sabe que nós nos tornamos pessoas na
medida em que o Outro se defronta conosco. Somos o que
somos em virtude dos "outros relevantes" com quem
conversamos. O Eu se constitui na medida em que ele
responde ao Tu. Se estamos presos dentro de nós mesmos e
sob o poder do "eles anônimo" (Heidegger, Das Man) que
nos circunda, a única saída é encontrar outros "outros
relevantes". Isto é que é teologia, como eu a entendo. Trata-
se de um, esforço para conquistar a biografia por meio da
história. É um esforço para ampliar os "outros relevantes"
com quem estamos em conversação, a fim de ir além dos
limites estreitos em que a nossa biografia nos aprisionou. No
que se refere à minha experiência pessoal, já percebi que
quase nenhuma conversa séria ocorre entre mim e as
pessoas com quem estou relacionado espacialmente. Nossa
conversa se move de um discurso funcional-burocrático,
através de uma ginástica intelectual, ao outro limite de
banalidade, trivialidade e repetições. Tenho estado
envolvido em conversação séria — questões de vida e morte
— quase que exclusivamente com pessoas que estão
ausentes, que não mais existem: Jeremias, Jesus, Lutero,
Nietzsche, Kierkegaard, Berdyaev, Buber, para não me
referir aos artistas como Bach, Scarlatti, Mozart e Vivaldi.
Assim, entendamos em primeiro lugar que a teologia tem a
ver, antes de mais nada, com os "outros relevantes" que
incluímos em nosso diálogo sobre a questão de viver hoje.
O que está em jogo não é um artigo a ser publicado ou um
livro a ser escrito — estes são subprodutos da questão última
de sobreviver como ser humano num mundo frio que exilou
os nossos valores. Este não é um problema neutro que pode
ser abordado de forma objetiva e desapaixonada. O que está
em jogo é o meu destino — e por isto a conversa exige uma
paixão infinita (Kierkegaard) por parte daqueles que dela
participam. Fazer teologia é tomar uma decisão sobre as
batalhas que devem ser travadas. E inversamente, sempre
que estou lutando com esta questão — mesmo que não faça
uso de um jargão teológico ou de símbolos religiosos —
estou profundamente metido na religião e na teologia.
Entretanto, isto não é tudo que deve ser dito. Se você vai
jogar xadrez, é necessário conhecer as regras do jogo. A
conversa é um jogo. Se não concordamos acerca dos seus
"acordos silenciosos" nenhuma comunicação acontece.
Poderemos falar, mas no final seremos exatamente iguais ao
que éramos no início. Os limites e as estruturas da nossa
personalidade permaneceram intocados. Assim, antes de
começar a conversa que denominamos teologia, temos de
tomar consciência de quem é que estabelece as regras do
jogo. Podemos decidir que somos os Senhores do jogo. Na
realidade, é isto que acontece na maioria dos casos. A minha
experiência é absoluta. O que importa é o que eu sinto. Sou
o umbigo do mundo. O meu eu se torna no critério último
para a compreensão do mundo inteiro. E na medida em que
assim procedemos, afirmamos que a realidade deve ser
submetida aos critérios de minha própria experiência. O
problema é que a despeito da nossa ingenuidade e otimismo
acerca de nós mesmos, a despeito das ginásticas mentais ou
corporais que façamos, não há nenhuma forma de sair da
armadilha de nossas próprias neuroses, se tomarmos o nosso
eu neurótico como o critério para a nossa compreensão de
nós mesmos. O que estou tentando dizer é algo na linha da
sabedoria evangélica: "Aquele que salvar a sua vida, perdê-
la-á..." Lutero dizia que o homem é, na sua natureza mais
íntima, um cor incurvatum in se ipsum: um coração
encurvado sobre si mesmo. Começamos a partir de nossas
próprias experiências, nós as absolutizamos, e passamos por
todos os rituais para ter uma nova visão da realidade. Vemos
uma nova face. E então anunciamos: "Eu vejo, eu vejo. Eu vi
a face de Deus". E não percebemos que o que vemos nada
mais é que nossos próprios temores, frustrações, fantasias,
boas intenções e ingenuidade, os demônios e ídolos que
habitavam o nosso mundo inconsciente. E a experiência de
salvação nada mais é que a nossa própria condição de
perdição. Não somos salvos. Somos enfeitiçados pelas nossas
ilusões.
Se vamos nos engajar nesta conversação que se chama
teologia cristã, temos de compreender que não somos nós
que estabelecemos as regras para o jogo. Podemos entrar
nele com uma alta dose de criatividade, mas há certas regras
que não podqm ser quebradas — por que caso contrário o
jogo seria um outro — e não teologia. Creio que a regra
fundamental, de que todas as outras dependem, é que a fim
de nos libertarmos do cor incurvatum in se ipsum a nossa
estória não pode ser o critério final do jogo. Não é a minha
estória que dá sentido à história. É a história que dá sentido à
minha estória. Não sou o horizonte do mundo. Eu me
encontro no mundo e sou eu que tenho necessidade de
horizontes. Sem horizontes não temos senso de direção. E
sem senso de direção entramos na esfera da insanidade.
Horizontes! Que infinidade de horizontes se oferecem a
mim. O homem não possui um único passado. Há
inumeráveis passados por detrás dele, que a um tempo
atraem e repelem. Infelizmente não há formas de saber qual
deles aponta de forma mais clara para a verdade. Todos eles
têm pretensões idênticas de verdade. Assim, a opção não é
um resultado de lógica fria, mas um produto de amor e
paixão. Há sempre um elemento de risco envolvido. Se, por
um acaso, nos apaixonamos pelos horizontes bíblicos,
começamos a fazer teologia. Segundo a entendo, a teologia
cristã é nada mais e nada menos que uma conversação sobre
a vida que ocorre na medida em que ouvimos as vozes e
contemplamos os horizontes do mundo bíblico.
E é esta a razão por que, na busca de horizontes, identifico-
me de forma emocional com a experiência do Cativeiro.
"Junto às águas de Babilônia nos assentamos e choramos,
lembrando-nos de Sião" (SI 137,1). O cativeiro se caracteriza
pela justaposição dolorosa entre os sonhos de liberdade e a
consciência da impotência. Somente os sonhadores e
visionários se sentem impotentes. Quem não sonha, quem
não tem visões, mergulha no mundo estabelecido. Ajusta-se
a ele. Torna-se funcional. E é feliz. Esta é a razão por que
tenho tantas suspeitas para com a psicanálise. Porque ela
pretende resolver o problema da neurose não pela
transformação do pólo objetivo da experiência, mas antes
pela alteração da subjetividade, de forma que ela se ajuste à
realidade instaurada. O ajustamento implica sempre a
aceitação passiva de um mundo não redimido. Sentir-se
cativo, ao contrário, é recusar-se a aceitar o mundo, tal
como é. Mas recusa dolorosa e triste, porque não é
acompanhada pelo otimismo daqueles que se sentem fortes
para levar a cabo a transformação exigida pela consciência.
Os cativos estão condenados à tristeza. E a tristeza só não se
transforma em desespero ou ajustamento se, em meio ao
exílio, ela puder vislumbrar uma esperança de libertação.
Mas a esperança de libertação não se constrói sobre nossa
própria força. Somos impotentes. Só se espera pela
libertação, no cativeiro, se se espera pelo impossível, pelo
inesperado. Ou, na velha linguagem da religião, se se confia
no Deus que chama à existência as coisas que não existem e
que faz a estéril dar à luz.
Por que escolhei este horizonte e não outro?
Não sei. Em última análise c uma questão de amor e
esperança. Mas isto é válido para todas as dimensões da vida.
Mesmo na ciência, como Kuhn indicou, não se pode ir para
frente §em o risco da fé e uma visão de esperança. Talvez
façamos uma opção errada. Mas não há alternativa. Não
fazer uma opção e também lazer uma opção. Estamos
condenados aos deuses e aos demónios. Estamos
condenados à religião. É bem possível que nos
envergonhemos disto e que vistamos nossos valores e
nossos sonhos de amor com as respeitáveis vestes da ciência.
De uma coisa estou certo: não se pode viver por certezas,
mas por visões, riscos e paixão. "Todos aqueles que tiveram
de criar", observa Nietzsche, "tiveram também os seus
sonhos proféticos e sinais astrais — e fé na fé".

O ENIGMA DA RELIGIÃO

Religião,
o solene desvelar dos segredos ocultos do homem, a
revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão
pública dos seus segredos de amor.
Ludwig Feuerbach

Por que os homens fazem religião?
Talvez nenhuma outra pergunta tenha tido tantas, tão
variadas e tão contraditórias respostas. Revelação dos deuses,
neurose obsessiva da humanidade, diário em que o homem
escreve os seus mais altos pensamentos acerca de si mesmo,
ópio do povo: há respostas para todos os gostos.
Onde estará a verdade? É difícil dizer. Qualquer resposta que
nos atravessemos a dar poderia ser catalogada como um
palpite a mais, no rol já excessivamente extenso das
explicações oferecidas.
O que torna a religião mais enigmática ainda é o fato de que,
apesar de não entender as suas origens — ou talvez
precisamente por não entendê-las — o homem não
consegue se desvencilhar do seu fascínio. Na realidade, não
se tem notícia de cultura alguma que não a tenha produzido,
de uma forma ou de outra.
Durante algum tempo tornou-se moda falar no fim iminente
da religião. Foi proposta, durante o século passado, a teoria
de que a religião nada mais era que uma reminiscência que o
homem guardava de um período primitivo do seu
desenvolvimento. Ignorando as causas reais que
movimentam o universo, assombrado pelo espectro da
morte, aterrorizado pelos fenômenos naturais que não podia
compreender, transportado para mundos estranhos nas suas
experiências de êxtase e de sonhos — numa época anterior à
ciência — o homem teria sido levado a imaginar a existência
de uma dimensão invisível da realidade, um mundo
misterioso habitado por deuses, demônios e espíritos e
movidos por forças mágicas.
Com o progresso da história e a progressiva emergência das
formas científicas de pensar, acrescentava-se, o homem
estava aos poucos se educando para a realidade, e dentro em
breve deixaria para trás, definitivamente, as suas ilusões reli-
giosas. Da mesma forma como o girino abandona sua cauda
para transformar-se em sapo adulto. Augusto Comte falava,
assim, nas três fases do desenvolvimento humano. A mais
primitiva de todas seria a religiosa. Depois dela veio o
período metafísico que nos seus dias já estava desaparecendo
sob o impacto de uma forma científica, positiva, de
compreender a realidade. Freud sugere uma explicação
semelhante. Nos primórdios do desenvolvimento humano,
antes que o homem tivesse sido forçado a aceitar o
determinismo de ferro do princípio da realidade, ele pensava
que o mundo poderia ser moldado pelo poder dos seus
desejos. Que é a magia do homem primitivo senão a crença
na onipotência do desejo? As lógicas da mente do homem
primitivo, da mente da criança e da mente do neurótico se
unificam em torno deste princípio. Que é, então, a religião?
Ela é uma expressão social desta ilusão, uma forma de
infantilismo, a neurose obsessiva da humanidade. Mas com o
advento do novo deus, a ciência, os velhos deuses teriam
inevitavelmente, de ser relegados ao passado. Em Marx, se a
estrutura da explicação se torna diferente, as linhas gerais do
"script" permanecem inalteradas. Religião é o produto de
uma sociedade irracional e opressiva, um conjunto de
ilusões necessárias para que o homem possa suportar as
correntes que o escravizam. "A religião é o suspiro da
criatura oprimida". Desaparecendo a opressão, por que
suspirar? Com o advento da revolução e a instauração de
uma sociedade livre, a religião haveria inevitavelmente de
desaparecer.
Tudo parecia indicar que a religião vivia os seus últimos dias.
A ilusão estava condenada a desaparecer. Dizia Dietrich.
Tal interpretação da religião é uma expressão da filosofia da
historia que aos poucos se desenvolveu, em decorrência da
revolução científica que se iniciou no século XVI. Assim
como o conhecimento da realidade implica numa
progressiva emancipação da consciência das fantasias que a
imaginação e a emoção criavam, no sentido de uma
conformidade cada vez maior com as estruturas racionais da
realidade, o desenvolvimento do espírito implicava num
abandono paulatino dos seus níveis emocionais,
considerados como irracionais, e na descoberta da razão,
compreendida então como universal e não emocional.
Mesmo Hegel, que tem uma visão positiva da religião, a con-
siderava como estágio preliminar e, portanto, provisório do
Espírito, que somente encontraria sua expressão final numa
filosofia absoluta. O que está em jogo não é apenas uma
interpretação do fenômeno religioso, mas antes uma teoria
global do desenvolvimento do Espírito, de sua infância à
maturidade, e, o que é considerado de fundamental
importância, uma compreensão da emoção e da imaginação
como elementos irracionais e primitivos. Freud, por
exemplo, no seu ensaio "Animismo, Mágica e a Onipotência
do Pensamento", declara que por debaixo da mágica, do
brinquedo, da arte, dos valores da religião encontramos uma
mesma dinâmica psíquica em operação, ou seja, a tendência
de se trocar o imaginário pelo real que, a seu ver é a essência
da neurose. Segue-se, logicamente, que, com o advento da
ciência, a mais alta expressão da razão, os seus estágios e
níveis emocionais anteriores deveriam ser abandonados. A
religião é identificada com o irracional e a ciência com o
racional. É necessário dizer que o Romanticismo, que se
opôs a esta interpretação racionalista da historia, culminando
com Kierkegaard e Nietzsche, permaneceu como uma voz
marginal, que não pode ser ouvida em meio à euforia dos
triunfos da técnica e da ciência.
Bonhoeffer deve ser mencionado neste contexto em virtude
da grande influência que suas cartas, escritas nos anos que
passou na prisão, na Alemanha, exerceram sobre a geração
subseqüente. A sua pergunta fundamental: Podemos
pressupor que a religião é a forma de expressão da fé? Sua
resposta é negativa. Talvez a religião nada mais seja que
"uma forma histórica e temporária de expressão humana (p.
162) e que estejamos atingindo um estágio de sermos
radicalmente sem religião. Neste caso será possível pensar
que a fé irá tomar formas arreligiosas e secularizadas?
Aos poucos, entretanto, a ciência começou a demolir esta
síntese. Onde os homens antes viam poderes miraculosos
em operação, a ciência constatava apenas a presença de leis
fixas e imutáveis. O universo que se abria para o
transcendente e o divino se fechou sobre si mesmo, e tudo
passou a ser explicado em termos de leis imanentes à própria
natureza) A ciência criou um problema habitacional para
Deus. Na medida em que ela penetrava em novos domínios,
Deus se tornava supérfluo e obsoleto, e era despojado. A
realidade foi "desencantada": não mais necessitava de
hipóteses teológicas para se explicar?
A história, entretanto, parece que se deleita em zombar de
nossas previsões científicas. Quando tudo parecia anunciar
os funerais de Deus e o fim da religião, o mundo foi
invadido por uma infinidade de novos deuses e demónios, e
um novo fervor religioso, que totalmente desconhecíamos,
tanto pela sua intensidade quanto pela variedade de suas
formas, encheu os espaços profanos do mundo que se
proclamava secularizado. "A chuva dos deuses cai dos céus
sobre o túmulo do Deus que sobreviveu à sua própria morte.
Ateus têm os seus santos e blasfemos constroem templos". O
fascínio pelo misticismo oriental, a ioga, o zen-budismo, a
meditação transcendental, os cultos demoníacos e a
feitiçaria, (a busca de experiências transracionais, como o
falar de línguas estranhas (não mais explicáveis em termos
de classe social! — todos estes elementos fizeram cair por
terra as previsões científicas acerca do fim da religião.
Mudam-se as vestes. Freqüentemente deixam-se de lado os
símbolos ostensivamente religiosos. Mas sempre, de uma
forma ou de outra, é possível constatar no mundo humano e
nos recônditos da personalidade a presença obsessiva e
incómoda das questões religiosas.
O que é a religião? Pode parecer estranho que façamos tal
pergunta, quando tudo o que já dissemos até agora parece
pressupor que todos sabemos, de uma forma ou de outra,
sobre que estamos falando. Infelizmente, entretanto,
(quando tratamos com fenômenos humanos, não há
respostas unívocas para as perguntas. A realidade aqui possui
várias camadas de significação. Temos que proceder como
alguém que tira as pétalas de uma flor: por um método de
aproximações sucessivas, provisórias e que deverão ser
corrigidas posteriormente.
Para elucidar o nosso problema gostaria de fazer uso de uma
comparação. Em que se constitui a experiência estética?
Todos nós, de uma forma ou de outra, já sentimos o belo:
ouvindo uma sinfonia de Beethoven, uma balada dos
Beattles, contemplando um quadro ou uma cena da
natureza. Sentimos o belo — mas quando alguém nos pede
para descrever a sua essência somos reduzidos ao silêncio.
Palavras são adequadas para descrever objetos: pedras,
árvores, montanhas. Mas a experiência estética não é um
objeto. A experiência do belo não é a sinfonia de
Beethoven, não é a balada dos Beattles, não é o quadro ou a
cena da natureza. Se pedíssemos a um físico para fazer uma
análise da peça musical ele poderia fazê-lo. Uma sinfonia é
um conjunto de sons, e sons são realidade para se entender a
religião no mundo moderno. A secularização não foi a
morte dos deuses, mas antes a promoção, ao status de
deuses, de certos fatores do nosso mundo que se pretendiam
secularizados. Será possível tomar o lugar dos deuses sem se
tornar um deus? Ora, foi isto exatamente que a ciência, a
tecnologia e certas ideologias fizeram. No processo de
secularistação contemplanos a revolta do secular contra os
deuses que habitavam nossos panteons. Os templos foram
invadidos, os deuses foram expulsos e os rebeldes — ainda
com suas roupagens seculares — tomaram seus lugares nos
altares agora vazios.
Ele reduziria os sons a vibrações, e seria capaz de expressar
matematicamente suas intensidades e freqüências. Mais do
que isto, ele nos poderia fornecer um gráfico que nos
revelasse não só a estrutura arquitetônica da obra, como
também as nuanças de interpretação. Mas de posse dos
resultados científicos do seu trabalho perguntaríamos: "Mas,
e o belo? Onde está?" Ele não se encontra em nenhum
ponto de sua análise científica. Como cientista o físico lida
com objetos. Mas a experiência estética não é um objeto.
Tanto assim que ela se desvanece quando soa o último
acorde da sinfonia. E ficamos apenas com a tristeza de que o
belo tenha chegado ao fim. O belo não é nem uma
propriedade do objeto e nem uma propriedade do sujeito.
Ele vem a existir quando o sujeito é levado a vibrar,
emocionalmente, em resposta ao objeto. Esta é a razão por
que, freqüentemente, aquilo que produz em uma pessoa
uma experiência estética profunda e emocional me deixa
totalmente frio. Falta-me a sensibilidade. E por isto, para
todos os efeitos práticos, é como se o belo não existisse para
mim. (O belo não é um objeto, mas uma relação harmônica
entre o sujeito e a obra de arte. Martin Buber afirmava que o
mundo humano não se constitui nem dos objetos que estão
ao nosso redor e nem da consciência pura, fechada em si. É
a maneira de ser em relação ao mundo, o hífen que liga o Eu
ao seu mundo, que é a essência de nossa realidade. É isto
que encontramos na experiência estética. O belo não é nem
o objeto, em si, e nem o sujeito em si, mas antes a relação
que os unifica num êxtase místico.
Muitas das expressões do fenômeno religioso se apresentam
a nós como se fossem coisas. Há mitos que se cristalizaram,
ritos que se solidificaram, instituições que se chamam
religiosas e linguagens que falam acerca dos deuses. É
possível examiná-las, descrevê-las, analisá-las — tal como o
físico fez com a sinfonia de Beethoven. (É possível
proceder frente a tais realidades, seguindo a famosa regra de
Durkheim, considerando-as como se fossem coisas.7 Mas
então seríamos presas de uma das mais freqüentes ilusões do
cientista: quanto mais rigorosa a análise do objeto mais
equivocada seria, porque a essência da religião não é um
objeto, mas uma relação.
Não nos podemos esquecer de que estas realidades não
possuem uma existência autônoma, em si, anterior à
consciência. Quando nos movemos no círculo do mundo
físico percebemos com muita clareza que a existência de
estrelas, gases e átomos é anterior à consciência. Se a
consciência nunca tivesse aparecido, as estrelas, gases e
átomos continuariam a existir, de forma totalmente
indiferente à ausência humana. As realidades do mundo
humano, entretanto, só existem por haverem sido
construídas por uma consciência e uma atividade que as
antecederam. Sempre que consideramos os fatos sociais
como se fossem coisas cometemos o grave erro de
identificar a esfera da realidade humana com a esfera da
realidade da natureza e pressupomos, ainda que de uma
forma não confessada, uma origem mágica para as
instituições, independente das experiências, projetos e
atividades de seres concretos.
As formas institucionalizadas da religião não são
transparentes. Elas não se auto-explicam. Por detrás delas
existe sempre uma experiência religiosa primordial,
freqüentemente enterrada no esquecimento e diluída nas
rotinas que já não mais a expressam. Que são as formas
institucionalizadas de religião? São "modos de
'racionalização' de uma experiência precedente, das quais se
derivam. Elas são tentativas, de uma forma ou de outra,
(...) para adivinhar o enigma que esta experiência propõe,
e o seu efeito é, a um tempo, enfraquecer e manter a própria
experiência. Elas são a fonte de onde surge não a religião
mas a racionalização da religião, que freqüentemente
termina por construir uma estrutura tão pesada de teoria e
um entrelaçado tão plausível de interpretação, que o
mistério' é completamente excluído". O erro de se tomarem
as formas institucionalizadas, reificadas da religião, como o
objeto religioso se deve ao fato de que nada garante, "a
priori", que as instituições que se batizaram a si mesmas
como religiosas realmente desempenhem, para a
consciência, uma função religiosa. "Para entender a cultura"
— no nosso caso a religião, "temos de dar um longo passo
atrás de suas manifestações mais óbvias. É necessário olhar
primeiro para a fonte da cultura" — isto é, para aquelas
experiências humanas que a geraram e a deram à luz. E que
descobrimos? É o ponto de vista de sua origem, o mundo
que se nos apresenta hoje como reificado, como um
conjunto de fatos sociais que podem ser analisados como se
fossem coisas, surgiu como "externalização de significações
subjetivas", como uma "objetivação do Espírito". Assim
como a obra de arte não pode ser adequadamente
compreendida à parte das instituições criadoras e da
intenção do artista, assim como a experiência do belo não
pode ser entendida à parte da consciência que se deixa
vibrar em consonância com a obra de arte, tambémía
religião não se torna transparente a menos que vejamos, por
detrás de suas expressões objetivas, a consciência no seu
momento de experiência religiosa. Freqüentemente as
instituições nada mais são que fósseis de uma experiência
religiosa que há muito desapareceu. Por força do próprio
poder da inércia continuam a habitar o mundo social, a
ocupar espaço e a falar de deuses e demônios, mas os seus
símbolos deixaram de ser expressões de qualquer
experiência vivenciada no presente. É este processo de
distanciamento progressivo das instituições, centrífugo, para
longe das experiências que lhes deram origem, que explica o
inevitável envelhecimento dos deuses e a progressiva perda
de significação da linguagem religiosa, outrora carregada de
conteúdos emocionais. "Por isto de quando em quando
morrem os deuses, porque de repente se descobre que nada
significam, que são inutilidades feitas de madeira e pedra,
fabricadas pelas mãos dos homens. Na realidade, neste
momento o homem simplesmente descobre que nunca
havia pensado coisa alguma sobre as suas imagens". Aqui
estão as raízes deste curioso fenômeno: enquanto o homem
continua por força da rotina e da coerção social, a
reverenciar os deuses que a sociedade entronizou, mas que
perderam o poder para simbolizar e expressar suas vivências
emocionais, ao mesmo tempo ele busca outros deuses,
talvez menos respeitáveis, mas que de alguma forma
corporifiquem as suas experiências vividas.
Que é o que caracteriza a consciência religiosa?
A resposta não é difícil. Notamos que ela não contém um
inventário de fatos sensíveis. Não encontramos ali um
relatório dos dados brutos ao nosso redor. Ela não reflete,
como se fosse um espelho, aquilo que os sentidos nos
comunicam. Ao contrário, fala de deuses e demônios, de
santidade e pecado, de salvação e perdição, de dimensões
invisíveis e estruturas misteriosas. E por mais que
investiguemos a realidade, objetivamente, não encontramos
aí nenhum dado sensível que corresponda aos símbolos que
constituem a linguagem religiosa. É a própria consciência
religiosa que afirma: "Ninguém jamais viu a Deus". Parece-se
mais com um sonho.
"A religião é um sonho da mente humana. Através dela
passamos a, ver as coisas reais no fascinante esplendor da
imaginação e do capricho, ao invés de o fazer sob a luz
mortiça da realidade e da necessidade". Em resumo, a
consciência religiosa é uma expressão da imaginação.
Tal afirmação pode chocar aqueles que amam a religião. Na
verdade, em nossa linguagem cotidiana, usamos a palavra
imaginação como sinônimo de ilusão. "Você está
imaginando coisas", dizemos a alguém. Imaginar coisas, na
melhor das hipóteses, significa que alguém cometeu um erro
perceptual que deverá ser corrigido por observações
posteriores. E na pior, significa que a pessoa está louca, por
atribuir realidade objetiva às fantasias de uma mente que não
mais se subordina ao controle dos fatos.
Não é isto, entretanto, que temos em mente. Antes de mais
nada, é preciso reconhecer que a imaginação é a forma mais
fundamental de operação da consciência humana. Os
animais não têm imaginação. Por isto nunca produziram
arte, profetas ou valores. Por isto também nunca puderam
produzir religião. "A religião tem a sua base na diferença
essencial entre o homem e os brutos — os brutos não têm
religião". A menos que estejamos prontos para eleger a
consciência animal como o ideal de normalidade para o
homem — o que não estou pronto a fazer — é necessário
reconhecer que a imaginação é a origem da criatividade
humana. "Se estivermos prontos a tomar a palavra sonhos
com uma certa liberalidade", observa John Dewey (podemos
afirmar que o homem, exceto nos seus momentos ocasionais
de trabalho e luta, vive num mundo de sonhos e não de
fatos, e num mundo de sonhos que se organiza em função
do sucesso ou da frustração dos desejos que constituem a sua
essência". "Empiricamente" isto é, tais como as
experimentamos realmente — "as coisas são emocionantes,
trágicas, lindas, cômicas, tranqüilas, confortantes,
perturbadoras, áridas, rudes, esplêndidas, ameaçadoras". Em
situação alguma a consciência se contenta em reduplicar os
fatos. Na realidade, "não existe comportamento algum que
sugira uma consciência pura nas suas origens .
Não se pode negar que a consciência humana seja movida
pela imaginação. O problema surge quando tentamos
interpretar a função da imaginação.
Para entender esta questão temos de nos lembrar dos (ideais
epistemológicos que têm dominado a ciência moderna e,
derivativamente, dos ideais de normalidade psíquica que daí
se derivam. Não há nenhum estudante de ciência que ignore
que o conhecimento deve ser objetivo. O que é objeti-
vidade? Objetividade é aquela condição da consciência em
que ela se disciplina para simplesmente refletir e reduplicar
os dados da realidade. Ela não pode permitir que as suas
aspirações, os seus valores, os seus desejos, de qualquer
forma interfiram neste processo. A realidade ignora as
nossas aspirações. Por isto, sempre que permitimos que o
objeto seja representado na consciência pela influência dos
desejos, o objeto é sistematicamente falsificado. Quando isto
acontece o objeto representado não é o que é, na realidade,
mas simplesmente aquilo que desejamos que ele seja. Não é
difícil entender que, dentro desta perspectiva, a imaginação
deva ser rejeitada. A imaginação é filha dos nossos desejos e,
conseqüentemente, sempre que imaginamos "passamos a
ver as coisas reais no fascinante esplendor do capricho". Ao
ideal epistemológico de objetividade, assim, corresponde a
exigência de que a imaginação seja eliminada, como origem
de perturbações no processo de conhecer o mundo. Este
mesmo ideal foi transplantado para o campo da psicologia.
Freud define o neurótico como aquele que troca a realidade
pela imaginação. Qual, então, seria o modelo de
personalidade normal? Normal é a pessoa que sabe que a
imaginação é ilusão, e que portanto voluntariamente a
reprime (já que não é possível eliminá-la), e que se ajusta à
lógica do princípio da realidade.
Estes ideais de conhecimento objetivo e de normalidade
psíquica têm exercido uma influência dominante na ciência
ocidental e têm sido responsáveis, em grande medida, pelo
tratamento que o fenômeno religioso tem recebido nos seus
círculos e, indiretamente, pela nossa forma de compreender
a imaginação. Porque, o que é a religião senão uma forma de
imaginação? E, inversamente, na medida em que a
imaginação é sempre filha do desejo, não será ela sempre
religiosa?
A mitologia popular sobre a psicanálise freqüentemente
pensa que Freud advogava a expressão livre dos instintos.
Puro engano. Se é verdade que Freud deseja libertar a
personalidade das repressões desnecessárias que lhe foram
impostas pelo superego, ele o faz por considerar que há uma
enorme soma de repressões necessárias, exigidas pela
civilização e o princípio da realidade. Urge libertar o homem
das repressões desnecessárias para que ele tenha as melhores
condições para aceitar voluntariamente, se possível, aquelas
que são inevitáveis. Para Freud não há civilização sem
repressão. Os cientistas são aqueles que compreendem a
inevitabilidade da repressão do instinto e a aceitam
voluntariamente. Quanto às massas em geral, elas têm de ser
levadas a renunciar os seus impulsos irracionais pela
coerção. Tudo isto em nome de uma filosofia que identifica
normalidade psíquica com ajustamento social. O parágrafo
que se segue é muito sugestivo. "Tanto é impossível viver
sem o controle da massa por uma minoria quanto eliminar a
coerção na obra da civilização. Pois as massas são
preguiçosas e desprovidas de inteligência; elas não têm
nenhum amor pela renúncia dos instintos e não serão
convencidas da sua inevitabilidade por meio de
argumentos".
Cabe acrescentar a observação que Prescott Lecky faz do
modelo de normalidade em termos de ajustamento. "A
pessoa normal, provavelmente, se houvesse uma pessoa
normal, não acharia nada errado e concordaria com tudo".
Cabe, entretanto, a seguinte pergunta: Se vamos levar o
critério de objetividade até as suas últimas conseqüências,
não será forçoso reconhecer que o ideal de consciência
pura, totalmente objetiva, é um mito? Onde é que a
encontramos como um dado da experiência? A consciência
objetiva não existe. Ela é um ideal, que nasceu de condições
históricas específicas. A própria consciência objetiva é uma
construção normativa da imaginação. Nas palavras de W.
Stark, "o pensamento não-valorativo (value-free) pode ser
um ideal, mas certamente ele não é encontrado em parte
alguma como realidade". Empiricamente, o que é que
encontramos, mesmo naquelas atividades que o homem
pretende serem rigorosamente objetivas, como a ciência?
Encontramos uma consciência concreta, envolvida nos
problemas reais de vida e morte que a condicionam e,
portanto, dominada pela emoção e embalada pela
imaginação. "A ciência, não importa quão pura, é o produto
de seres humanos comprometidos na tarefa excitante de
viver as suas vidas pessoais". Assim, as criações científicas
"não são apenas representações simbólicas dos assim
chamados eventos externos, mas antes arranjos que devem
servir à necessidade humana de auto-consistência. Uma
dimensão fascinante da história da ciência moderna é o
papel que a imaginação e a fantasia desempenharam em
muitas de suas grandes descobertas. Mais curioso ainda é
verificar como os cientistas, ao repensar o seu método de
invenção, não se deram conta disto. Não é possível discutir
este assunto nos limites deste trabalho. O leitor que se
interessar poderá consultar as sugestões bibliográficas que
fazemos.
Estou sugerindo, como nosso ponto de partida, que não
podemos pressupor que a imaginação se oponha ao
conhecimento do real. Não posso classificá-la nem como
fonte de erros cognitivos e nem como raiz de nossas
neuroses. Fazer isto seria equivalente a admitir que a
evolução cometeu um erro fatal, na transição do macaco nu
para o homem — porque os animais não têm imaginação.
Aceitemos, portanto, a imaginação como um dado primário
da experiência humana. É deste fato primordial, irredutível,
teimosamente empírico, que temos de partir.
O homem faz religião, os animais não. O homem tem
imaginação, os animais não. Penetramos, através da
imaginação, numa das diferenças fundamentais entre a
consciência do homem a consciência do animal. O animal
tem uma vida simples, diz-nos Feuerbach. "Nele a vida
interior é idêntica à exterior. O homem tem, a um tempo,
uma vida interior e uma vida exterior. Durkheim o repete
quase que literalmente: "os animais conhecem apenas um
mundo, aquele que percebem por meio da experiência,
tanto interna quanto externa. Somente os homens têm a
faculdade de conceber o ideal, de acrescentar algo ao real.
Nos animais, a experiência se esgota com as informações que
seus sentidos captam do mundo exterior. Por isto, não
podem eles suspeitar que o possível seja maior que o real.
Realidade e possibilidade se identificam. Ou mais
precisamente, os limites do real denotam os limites do
possível. Protótipos de realismo. Por isto, não podem
transcender o seu mundo. Resta-lhes apenas a alternativa de
ajustamento e adaptação às condições dadas. Com o homem
não é assim. Há, dentro dele, um reduto de resistência, uma
parcela do eu que se recusa a socializar-se, que se recusa em
aceitar como final o veredito da realidade. Assim, quando as
informações do mundo exterior lhe dizem: "Assim são as
coisas!" Ele retruca: "Mas serão mesmo? Não será possível
que elas venham a ser de forma diferente?" O homem é,
assim, um ser dividido. Se a sua consciência lhe diz como é
o mundo, esta mesma consciência se recusa a sacralizá-lo.
"O que é não pode ser verdade". Este fenômeno único que
Durkheim descreveu como sendo a capacidade de
"conceber o ideal, de acrescentar algo ao real", essência da
religião, assim, se nos revela como uma recusa de promover
ao status de realidade última a ordem instaurada, seja a
ordem natural, seja a organização da civilização. A essência
do realismo que, em nome da realidade objetiva, bania a
religião como ilusão, não está em sua aparente
irreligiosidade, mas antes na sua sistemática transformação
de fatos em valores. Mas é exatamente isto que a imaginação
se recusa a fazer. A imaginação só se torna compreensível se
percebemos que ela se constrói a partir de uma suspeita de
que é provável que os limites do possível sejam muito mais
extensos que os limites do real. A imaginação é a
consciência de uma ausência, a saudade daquilo que ainda
não é, a declaração de amor pelas coisas que ainda não
nasceram. "Dar nome às 'coisas que estão ausentes' é quebrar
o feitiço daquelas que estão presentes". Nas palavras de
Mannheim, a imaginação surge da insatisfação do homem
com a realidade existente, e por isto, em todas as suas
multiformes expressões, encontramos sempre uma indicação
daquilo "que faltava na vida real". É este fato que levou
muitos filósofos e místicos no passado a formular a hipótese
de que o homem é um ser com uma dimensão
transcendente. Sim, é verdade que o homem é um corpo, e
que o corpo está sujeito a todos os processos que regem a
realidade físico-química. Entretanto, como explicar que de
uma certa realidade surjam os pensamentos que vão mais
além desta mesma realidade? Como explicar que ele seja
capaz de compor uma música, quando a música não é um
objeto entre os objetos do mundo material? Como explicar
que ele seja capaz de imaginar uma sociedade perfeita de
amor e justiça, seja nas visões utópicas políticas, seja nas
visões religiosas de um "Reino de Deus", quando a sociedade
empírica se baseia em expedientes práticos, na coerção e na
lei do mais forte? Assim, concluíam eles, a única explicação
para os vôos da imaginação está em que o homem deva
participar de uma ordem espiritual superior de existência,
onde ele tenha contemplado o belo, o bom e o verdadeiro.
Para os nossos propósitos, não importa que aceitemos ou
não esta explicação filosófico-religiosa da imaginação. O que
importa é simplesmente constatar que através da imaginação
o homem transcende a facticidade bruta da realidade que é
imediatamente dada e afirma que o que é não deveria ser, e
que o que ainda não é deverá ser.
Nossa compreensão da imaginação se deve muito às
fascinantes observações que Freud fez sobre o assunto. O pai
da psicanálise percebeu que a vida mental se caracteriza por
um conflito instintual, que nunca poderá ser resolvido de
forma satisfatória. A busca do prazer e as duras arestas da
realidade se escondem em cada ato mental nosso. "O que
decide o propósito da vida é simplesmente o princípio do
prazer. Este programa domina a operação do aparato mental
desde o seu início".
Pode ser que para muitas pessoas a idéia do prazer traga
associações desagradáveis, talvez relacionadas apenas com o
prazer sexual. Substituam a palavra prazer por felicidade. O
resultado será o mesmo. Quando os teólogos cristãos se
referiam a Deus como o "summum bonum", que é que eles
queriam dizer senão que Deus era o maior prazer a que a
alma podia almejar? A psicologia de Agostinho se baseia toda
ela sobre este princípio: é o "eros" que impulsiona o coração
na sua ânsia permanente por um objeto que haverá de
satisfazer as suas aspirações. O ego traz em si mesmo "uma
busca de um mundo que possa ser amado: ou antes, no nível
inconsciente do ego este projeto guia a consciência humana
na sua busca incansável de um objeto que possa satisfazer o
seu amor, como em S. Agostinho: 'Eu ainda não amava, mas
eu amava amar; eu buscava o que eu pudesse amar no meu
amor pelo amor'.
O problema, entretanto, é que o ego se encontra lançado
num mundo que é absolutamente insensível às suas aspira-
ções. A realidade é fria e determinista. O programa estabele-
cido pelo princípio do prazer choca-se frontalmente com o
mundo todo, tanto o macrocosmo quanto o microcosmo.
Todas as leis que regulam o universo são contrárias ao
princípio do prazer. "Sinto-me inclinado a dizer", Freud
conclui, "que a intenção de que o homem fosse 'feliz' não
está incluída no plano da 'Criação' "ao Em outras palavras: a
realidade objetiva não pode satisfazer as aspirações do
coração. A consciência se descobre violentada, resistida,
negada pela realidade. Não pode reconciliar-se com ela.
Surge daí um conflito que não pode ser resolvido. Estamos
diante daquilo que separa o homem de todos os outros
animais: "o homem é a única criatura que se recusa a ser o
que ela é". Para Freud é este. conflito que é definido como
neurosevMas nada existe que nos obrigue a aceitar tal
diagnóstico. Preferimos, com Albert Carnus,, ver aqui a
própria essência da humanidade, e a raiz da criatividade que
elevou o mundo da cultura acima do mundo dos ajustes
biológicos que caracteriza o animal: "com a rebelião nasce a
consciência".
Que alternativas se abrem ao homem? Para o pai da
psicanálise só existe uma: o ajustamento. O ego deve
compreender que os seus desejos estão condenados ao
fracasso e deve, por isto mesmo, renunciá-los e reprimi-los
voluntariamente. Mas o ego pensa de outra forma. Recusa-se
a aceitar os fatos como se fossem valores e, ao contrário,
proclama: antes os meus valores que os fatos. Constrói,
então, para si, um mundo diferente, em que os fatos são
abolidos, e os seus valores são transformados em realidade.
Surge o mundo da imaginação. Na imaginação o homem se
liberta da necessidade séria e insensível que o rodeia, e entra
num mundo encantado em que o seu amor reina supremo.
Mundo mágico que funciona segundo a lógica da
"onipotência do desejo". A imaginação dissolve a realidade
que a resiste, e traz à existência aquilo que não existe. A
função da imaginação é realizar o irrealizável, possibilitar o
impossível. Para Freud a origem da imaginação se cerca de
mistério. Só pode ver nela uma função disfuncional, que
impede que a consciência se ajuste ao real. "Na ocasião em
que se deu o desenvolvimento do senso de realidade a
imaginação foi separada para o propósito de realizar os de-
sejos que não podiam se realizar com facilidade", diz ele.
Qualquer que seja o nosso diagnóstico, entretanto, uma coisa
parece certa: para o homem, o que importa são as fantasias.
Não são os fatos que determinam sua maneira de ser, mas
sim os fatos transfigurados pela emoção. O homem é um so-
nhador, mesmo acordado. Esta é uma das contribuições mais
importantes do pai da psicanálise para a compreensão do
enigma do homem. São as fantasias que estruturam as nossas
experiências, no sentido de transformá-las, nas palavras de
Max Scheler, numa "ordo amoris". Nossas fantasias povoam
o nosso passado, determinam o nosso presente e criam o
nosso futuro. Por isto elas determinam o nosso ser e o nosso
agir.
A imaginação nos revela as intenções mágicas que habitam
os níveis mais profundos da personalidade. "O ato da
imaginação", observa Sartre, "é um ato mágico. É um
encantamento destinado a produzir o objeto que desejamos,
de forma que dele possamos nos apropriar". Feuerbach
muito tempo antes havia chegado à mesma conclusão. Ao
analisar a natureza da fé (não nos esqueçamos do que já foi
sugerido antes, acerca da identidade entre a religião-fé e a
imaginação!) ele diz: "A fé não se limita a si mesma por meio
da idéia de um mundo, de um universo, da necessidade
(...). Onde a fé se levanta o mundo submerge — não! —
ele já se submergiu no nada (...). A essência da fé.. é a
idéia de que o que o homem deseja realmente é! O poder do
milagre, portanto, nada mais é que o poder da imaginação...
pois a imaginação é a única faculdade que corresponde aos
sentimentos pessoais, pois ela coloca de lado todos os
limites, todas as leis que são dolorosas para o sentimento, e
assim torna objetiva, para o homem, a satisfação imediata,
absoluta e ilimitada de todos os seus desejos subjetivos".
Em Freud, a constatação de que existe uma identidade entre
os mecanismos da imaginação e os mecanismos da mágica
levou-o a concluir que a persistência da imaginação nas
operações da consciência deve ser interpretada como uma
"sobrevivência" de um estágio primitivo e infantil do
desenvolvimento humano. Mas a ciência já demonstrou que
a realidade não se move pelo poder do desejo. Portanto, o
homem tem de renunciar as suas intenções mágicas, não
importa a forma de sua manifestação: seja na própria magia,
seja no brinquedo infantil, seja nos valores, seja na religião.
Todas estas são construções do desejo, manifestações da
resistência da consciência à realidade e, em última análise,
expressões de neurose.
O problema está em se fazemos justiça às intenções mágicas
da consciência ao interpretá-la através do prisma da
mentalidade científico-positivista. Temos de perguntar: que
é que o homem está dizendo através da imaginação? Que
mensagem ele externaliza através de seus rituais mágicos ?
Na mágica, seguindo as sugestões de Malinowski, nós nos
encontramos com um homem que sente a sua impotência
frente à realidade mas que, ao mesmo tempo, afirma a
prioridade dos desejos sobre a realidade que os nega. Para
decifrar o segredo da imaginação é necessáririo
compreender que a sua intenção não é técnica ou descritiva,
mas ética. Cassirer observou que "o mundo ético nunca é
dado. Ele está sempre sendo feito. Viver no mundo ideal",
conclui ele citando Goethe, "é tratar o impossível como se
fosse possível". Mas não é exatamente isto que caracteriza a
imaginação, na sua intenção mágica? O princípio do prazer
exige que o mundo, para corresponder às aspirações do
desejo, deve passar por uma verdadeira transubstanciação. É
por isto que a imaginação representa para a consciência um
mundo qualitativamente diferente, que de forma alguma
corresponde aos fatos. Os dados sensíveis da realidade
externa são libertados da lógica natural e determinista que os
torna cruéis e frios e são imediatamente reestruturados
segundo as exigências éticas do desejo. Na imaginação
realiza-se, simbolicamente, o grande sonho utópico da
consciência, que a mantém na busca permanente que a
caracteriza: a humanização da natureza. A natureza, como
realidade em si, é abolida, e ressuscitada como natureza para
o homem, como extensão do seu corpo e objetivação dos
seus valores. Seu novo espaço e o seu novo tempo perderam
sua autonomia e se transformaram em funções do amor.
Realiza-se então, na liturgia da imaginação, a mais alta
pretensão mágica da consciência: a criação de um mundo à
imagem e semelhança do homem.
É neste nível que encontramos as origens da religião: o
conflito entre o projeto inconsciente de ego de encontrar
um mundo que possa ser amado, e a dura realidade do
mundo objetivo, que ignora totalmente as exigências do
coração. Por isto todas as análises institucionais da religião
permanecerão sempre incompletas e unilaterais. Quanto
maior for o seu rigor metodológico, tanto maior o seu
distanciamento das raízes da religião. As instituições, como
parte do mundo, são elas mesmas objeto do protesto
religioso. A razão por que, no seio das formas
institucionalizadas da religião, sempre existiram místicos que
condenaram o seu formalismo, profetas que denunciaram
sua exterioridade e hereges que se rebelaram contra os seus
dogmas, não se deve, em última instância, ao fato de que
estas instituições resolvem de forma falsa a contradição
estrutural que se instaura na própria interioridade da
consciência?
O A crítica da religião tem, sistematicamente, cometido o
engano de considerá-la como uma explicação primitiva do
mundo — como se sua intenção fosse ser teoria científica —
apresentar uma descrição objetiva dos fatores e dos poderes
que movimentam a realidade. Uma vez adotada tal
perspectiva não se pode fugir à conclusão de que a religião
terá, mais cedo ou mais tarde, de ser substituída pela ciência.
Mas a intenção da religião não é explicar o mundo. Ela
nasce, justamente, do protesto contra este mundo que pode
ser descrito e explicado pela ciência. E descrição científica,
ao se manter rigorosamente dentro dos limites da realidade
instaurada, sacraliza a ordem estabelecida de coisas. A
religião, ao contrário, é a voz de uma consciência que não
pode encontrar descanso no mundo, tal como ele é, e que
tem como seu projeto utópico transcendê-lo.
A linguagem científica pretende descrever o mundo. A
linguagem religiosa exprime como o homem vive, em
relação ao mundo. Temos aqui a chave para interpretar a
significação da linguagem religiosa. A religião não é uma
hipótese acerca da questão filosófica da existência de deuses.
O ego não se propõe tal questão, no início de suas operações.
O que importa é a "paixão infinita" (Kierkegaard), o "ultimate
concern" (Paul Tillich), que estão instaladas no interior da
consciência, e em torno das quais a personalidade se unifica.
Kant estava absolutamente certo quando concluiu que Deus
não é um objeto de conhecimento. Ele não pode ser
incluído na categoria da existência com pedras, vermes e
galáxias. Nenhum objeto de conhecimento, em si, é
religioso. Fenomenologicamente, assim como a dimensão
estética da experiência não é um atributo do objeto.
Separemos, portanto, de uma vez por todas, a questão da
existência de Deus — que é uma questão filosófica — da
experiência religiosa. A primeira é uma hipótese acerca de
um objeto. A outra é uma paixão subjetiva. Sem a paixão
subjetiva, não existe a religião. Poderá haver instituições que
cristalizaram rotinas litúrgicas e fórmulas doutrinais. Nada
garante, entretanto, que tais "objetos" sejam, no momento
da análise, expressões de uma paixão infinita. É sempre
possível — e provável — que nada mais sejam que fósseis
sem vida de uma experiência outrora rica, mas agora morta.
Realidades sociais? Sim. Religião? Duvidoso. Talvez ninguém
tenha percebido este problema com maior clareza que
Kierkegaard. Vejam esta parábola:
Se uma pessoa que vive no meio da Cristandade e vai à casa
de Deus, à casa do verdadeiro Deus, com a verdadeira
concepção de Deus em seu conhecimento, mas ora num
falso espírito; e um que vive numa comunidade idólatra e
ora com a inteira paixão do infinito, embora seus olhos
estejam na imagem de um ídolo: onde está a maior verdade?
Um deles ora verdadeiramente a Deus embora cultue um
ídolo; o outro ora falsamente ao verdadeiro Deus, e
conseqüentemente cultua de fato um ídolo.
A verdade da religião não se encontra na correspondência
entre os seus símbolos e os objetos para a qual eles parecem
apontar. Porque, como nos sonhos, os símbolos religiosos
são revelações das condições da subjetividade. A verdade da
religião, assim, não está na infinidade do objeto, mas antes
na infinitude da paixão. "Verdade é subjetividade". Mágica,
brinquedo, arte, valores — são todos, expressões da
imaginação, são todos simbolizações do Eros. Surgem de
uma mesma dinâmica emocional. São todas elas "suspiros da
criatura oprimida" em busca de um mundo para ser amada.
A religião é uma destas expressões. A mais ambiciosa, a mais
universal. Na mágica, no brinquedo, na arte, nos valores, a
imaginação ainda se apresenta modesta, tolhida por um certo
pudor frente à presença massiva do princípio da realidade.
Sua busca por um mundo significativo contenta-se em
expressar-se nos espaços acanhados e nas gretas que o
princípio da realidade lhe permite, como áreas de
sublimação. Na religião, entretanto, o ego lança fora a sua
modéstia. Explode além dos seus limites: "projeta suas
significações sobre a realidade e proclama que toda a
realidade é humanamente significativa e invoca o cosmos
inteiro para significar a validade da experiência humana".
O que foi dito até aqui, entretanto, é unilateral. Porque na
religião não encontramos apenas a expressão dos nossos
desejos. Aqui está a séria limitação das teorias de Feuerbach
e Freud. A linguagem religiosa está cheia de símbolos sinis-
tros. Ela fala de culpa e punição, de demônios e maus espíri-
tos. E freqüentemente estes aspectos parecem preponderar.
Se, nas religiões politeístas, os aspectos graciosos e os demo-
níacos da religião estavam dissociados e encarnados em
divindades diferentes, nas religiões monoteístas o divino e o
demoníaco são duas faces distintas de um mesmo símbolo. É
o mesmo Deus que abençoa e que amaldiçoa, é um mesmo
Deus que salva e lança no inferno, é um mesmo Deus que
perdoa e que assombra a consciência com as dores da culpa.
A mentalidade positivista se rirá. Demónios, inferno,
punição, culpa — nada mais são que as ilusões do homem
ainda prisioneiro de superstições que já se tornaram há
muito obsoletas, e que ainda não submeteu a sua consciência
à elucidação científica! Para o homem moderno,
secularizado, tais fantamas foram deixados para trás.
Novamente o mal-entendido. Símbolos religiosos não são
retratos de entidades que se movem no mundo das coisas.
Símbolos religiosos são expressões de experiências de vida,
experiências que, por se situarem na esfera das relações do
homem com o mundo, só podem ser exprimidas de forma
indireta. Não nos esqueçamos de que na religião nos
encontramos no mundo dos sonhos. Mas mesmo aí, como
nos lembrou Feuerbach, o homem não se encontra no
vazio. A consciência não constrói sobre o nada. Ela não é
como a aranha que tece a sua teia de materiais tirados do seu
interior. Consciência é relação. Ela revela sempre uma forma
de ser em relação ao mundo. Por isto, se é verdade que a
consciência religiosa projeta sobre o mundo os seus
sentimentos, é necessário ter em mente que a cada projeção
corresponde uma introjeção. As construções da imaginação
não importa o quão divorciadas estejam, aparentemente, do
mundo concreto, são sempre simbolizações de situações
realmente vividas. Como bem observa Cockelmans, "cada
ato da consciência... exige um certo objeto porque cada ato
consciente está dirigido para algo) Se, portanto, um ato de
uma certa estrutura está presente, por meio deste mesmo ato
um certo objeto está também presente".
Se o homem, na sua experiência religiosa, se refere a
demônios, é porque uma face da sua experiência se lhe
apresenta como demoníaca. E que é o demoníaco senão a
horrenda possibilidade de que os valores, que se constituem
no objeto da paixão infinita do homem, venham, no final
das contas, a se reduzir a nada? Não existe consciência
religiosa que ignore esta polaridade. Pensar o mundo
humano, a "ordo amoris", o cosmo sagrado, jimplica,
automaticamente, pensar a possibilidade de sua dissolução.
Nos mitos cosmogônicos a terra seca, o jardim primordial
onde habita o homem emerge das trevas que se misturavam
com as águas. "A terra era sem forma e vazia. Havia trevas
sobre a face do abismo e um forte vento varria a superfície
das águas" (Gên 1,1-2). Os mitos cosmogônicos não são
teorias cosmólogas primitivas. "Os mitos são, antes de mais
nada, manifestações psíquicas que refletem a natureza da
alma". O abismo, as trevas, as águas, o vento forte: símbolos
do caos que permanentemente investe contra a ordem.
Destruição e morte estão sempre presentes. Assim, o mundo
dos deuses está sitiado pelas hostes do inferno. O princípio
do prazer, o projeto utópico do ego, as cristalizações do
amor que se expressam na imaginação e na cultura são
permanentemente assombradas pela certeza de sua
precariedade. É por isto que Heidegger sugere que a angústia
é o mais primordial dos fenômenos. "A angústia é uma das
expressões básicas da condição do homem como ser-que-se-
encontra-no-mundo". A angústia é o sentimento de que o
Ser, em última análise, se reduz a nada. Por mais titânico que
seja o seu esforço, o homem sabe que ele não tem condições
para superar esta condição fundamental, da qual a angústia
nada mais é que um simples sintoma. Os símbolos do
demoníaco são criações e projeções da consciência. Mas "a
palavra projeção é inadequada", observa Jung, "pois nada foi
tirado da consciência e lançado ao exterior. Ao contrário, a
consciência chegou, por meio de uma série de atos de
introjeção, à complexidade que hoje conhecemos". Por isto,
a experiência do demoníaco, longe de ser uma alucinação de
uma consciência doente, emerge das próprias condições da
existência, infectada pela presença do Nada que se avoluma
e deixa, a cada dia que passa, as marcas da morte impressas
no próprio corpo, como estigmas de posse.
Como o disse Kierkegaard, "o homem é uma síntese do
infinito e do finito, do temporal e do terno, de liberdade e
de necessidade". Como viver a paixão infinita num mundo
onde esta paixão nada mais é que um amor e um palpite,
uma saudade do ausente e uma visão do que não se pode
ver. Desta contradição surge a religião. Ou mais
precisamente: esta contradição é a religião. )
Marx via na religião uma ilusão produzida por uma sociedade
injusta. Abolidas as condições de injustiça, a religião teria de
desaparecer. Como seria bom se a contradição da existência
se devesse a arranjos institucionais que podem ser abolidos!
ipreud estava mais perto da realidade ao perceber que a
contradição da existência se instaura no próprio ser do
homem — problema sem solução., A terapia poderia ajudá-
lo a compreender a sua miséria, e a aceitá-la de forma
estóica. Cura é impossível. Consciente, por fim, de que ele é
cronicamente enfermo, o homem psicológico pode, não
obstante, pôr um fim à antiga busca dos seus predecessores
de uma doutrina de cura. A sua experiência com a última
destas doutrinas, a de Freud, poderá finalmente ensiná-lo de
que cada cura irá expô-lo a uma nova enfermidade. Por isto,
a profecia de Freud acerca do futuro da religião, como a de
Marx, se assenta sobre um engano. Enquanto o homem
viver o seu ego estará cronicamente envolvido na busca
incessante por um mundo de amor. E enquanto ele viver a
própria vida lhe dirá que a busca está fadada ao fracasso.
Porque, mais cedo ou mais tarde, a morte trará um fim aos
seus projetos. Por isto a religião continuará, até o fim, como
expressão de amor e como expressão de medo.) O homem
viverá, para sempre, num mundo de deuses e demônios,
símbolos de suas aspirações e temores — ainda que estes
mesmos símbolos se envergonhem de suas próprias origens
e, como travestis, se vistam com roupagens seculares. Como
muito bem observou Burkheim, "há algo de eterno na
religião que está destinado a sobreviver a todos os símbolos
particulares com que o pensamento religioso sucessivamente
se envolveu".
A MORTE DE DEUS
COMENTÁRIOS À AUTOBIOGRAFIA DO
HOMEM

Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá
esperança: sempre um milagre é possível, o mundo resolve.
Mas, se não tem Deus, há de a gente perdidos no vai-vem, e
a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas
horas, não se podendo facilitar. . . Tendo Deus, é menos
grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo.
Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de
coisa nenhuma! Se eu estou falando às flautas, o senhor me
corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em
meus gostos. O que eu invejo é a sua instrução do senhor...
Riobaldo/Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

I. A MORTE E O NASCIMENTO DOS DEUSES

Como (Leszek Kolakowski), muito bem observa, uma das
ironias de nossa época é que enquanto os "ateus têm os seus
santos e os blasfemos constroem capela" os pregadores,
profetas e santos proclamam a morte de Deus. A "morte de
Deus" não é mais monopólio dos ateus. Ainda que isto
pareça ser uma contradição absurda a "morte de Deus"
passou a ser um símbolo para exprimir aquela experiência
humana que em outros tempos fazia uso do símbolo "Deus"
para articular-se. Daí esta conjugação curiosa de termos que
se negam na expressão "teologia da morte de Deus": uma
teologia (ou seja, um universo de discurso — logos — que
fala sobre Deus) que toma como ponto de partida a ausência
do substantivo que lhe dava conteúdo.
Querendo ou não, somos, em parte, o passado que
herdamos. É isto que nos torna seres históricos. A tradição
grego-hebraico-cristã que nos formou, de forma consciente
ou inconsciente, faz parte do nosso ser. E a palavra Deus
desempenha uma função crucial na sua estruturação.
Quando falamos da morte de Deus, portanto, não podemos
evitar que emerjam imagens que indicam o colapso de uma
tradição cultural: o universo perde o seu centro, um cortejo
fúnebre que atravessa os espaços cósmicos e metafísicos,
outrora carregados de sentido, agora frios, vazios, silenciosos
com o apagar do seu sol; o réquiem silencioso que as hostes
celestiais ausentes entoam diante da morte da própria vida.
Será o anúncio da morte de Deus o obituário de um ser
eterno? Não é bem isto. O que está em jogo é a Constatação
de que as estruturas de pensamento e de linguagem que o
teísmo oferecia entraram em colapso. Chegou ao fim uma
certa visão do universo. Uma nova maneira de pensar a vida,
de encarar os seus problemas — e conseqüentemente de
falar — está surgindo, o que contradiz, de modo radical, a
forma velha. O cristianismo, na realidade, já desapareceu há
muito tempo não apenas da razão mas da própria vida da
humanidade, afirmava Feuerbach, no último parágrafo do
prefácio à A Essência do Cristianismo. O cristianismo, tal
como existe hoje, continua ele, "nada mais é que uma idéia
fixa, numa flagrante contradição com nossas companhias de
seguro de vida ou seguro contra fogo, nossas estradas de
ferro... nossas galerias de pintura e escultura, nossas escolas
militares e de engenharia, nossos teatros e museus
científicos". Na realidade, um mundo que já compreendeu
que a natureza é previsível, manipulável, racionalizavel, já
enterrou uma realidade à mercê da intervenção miraculosa
do dedo de Deus. O diagnóstico do herético Feurebach é
retomada por Bonhoeffer nas cartas que escreveu da prisão:

O movimento que se iniciou no século XIII... na direção
da autonomia do homem... completou-se, de certa forma,
em nossa época. O homem aprendeu a lidar com todas as
questões de importância sem recorrer a Deus como uma
hipótese funcional... Cada vez se torna mais evidente que
tudo funciona normalmente sem Deus. Já se admite que o
conhecimento e a vida são perfeitamente possíveis sem ele.
Desde Kant ele foi relegado à esfera para além da expe-
riência.
O problema da "morte de Deus" é metafísico sem dúvida.
Mas a metafísica, não é ela o produto do perguntar-se do
homem acerca da realidade? Respostas só podem ser com-
preendidas em função das perguntas que são levantadas. Por
isto, a "morte de Deus" é, antes de mais nada, um problema
antropológico. Ele indica que há certas perguntas que são
feitas cada vez mais com menor freqüência. Por sua vez,
este perguntar-se nos envia às próprias condições da lógica
que se instaurou no mundo moderno. Por que a ausência de
certo tipo de questões não indica que elas não existam, mas
talvez que elas sejam questões proibidas, reprimidas por uma
ordem instaurada, perguntas que tenham deixado de ser
"respeitáveis". Pode o cientista como cientista levantar a
pergunta acerca de Deus? Não implicaria esta pergunta que
ele já rompeu com a ortodoxia da ciência? A morte de Deus,
assim, se apresenta como um silêncio túrgido de
significações antropológicas e sociais. Vivemos numa época
que proibiu o mistério — que o relegou aos "primitivos",
ignorantes e doentes. Porque o grande dogma do mundo
que se chama científico é que a realidade é auto-explicativa,
e que a razão dispõe dos instrumentos para decifrar o
enigma que lhe é proposto. Talvez que, ao invés de falar da
morte de Deus, seria mais correto falar do "eclipse de Deus",
como Martin Buber sugere. Entremos dentro do problema.
E para tal fim creio que ninguém, melhor que Feuerbach,
como mestre de cerimônias.
Feuerbach foi uma estranha combinação. Religioso e ateu ao
mesmo tempo. Para nossos hábitos mentais aqui estão duas
atitudes que se excluem. Para ele, o contrário, são atitudes
que se pressupõem: ateu porque religioso.
O homem, diz-nos ele, é um ser dividido. É isto que o
distingue dos animais. Dividido por não ajustar-se às
condições concretas em que se encontra lançado. Conflito
permanente entre essência e existência. Por isto transcende-
se. E este transcender-se se expressa em sua vida mental. O
homem, diferentemente dos animais, não é apenas um
reduplicador de dados. O homem projeta, cria imagens que
não correspondem aos fatos do mundo exterior. Que é o que
é assim projetado? O que ele vê? Ele projeta o que existe
reprimido e latente em sua própria natureza, suas
potencialidades não realizadas em sua experiência histórica.
Feuerbach se coloca, desta forma, em radical oposição ao
positivismo que identificava o real com os objetos oferecidos
à contemplação, e que necessariamente reduz a imaginação
a uma função alienante. O homem pensa o seu real não
através de um ato de conformação às suas condições. Isto é
o que caracteriza os brutos: sua incapacidade para
transcender. O homem, ao contrário, expressa a sua
humanidade no ato pelo qual suas funções psíquicas
colocam diante dele mesmo a sua essência, negada pelas
condições da existência. É isto que é a religião. A "religião",
diz-nos ele, "é o ato pelo qual o homem se separa de si
mesmo e no qual ele contempla a sua natureza latente".
Deus é o símbolo para a resposta à pergunta: "Quem sou?"
"O que o homem declara acerca de Deus, ele na realidade
afirma acerca de si mesmo". Se a religião é um espelho, Deus
é a imagem que o homem, neste ato de transcender-se,
projeta de si mesmo. Pode-se assim dizer: "E o homem criou
Deus à sua imagem e semelhança".
Até aí não existe quase nada de radicalmente novo na
interpretação de Feuerbach. A teologia, no passado,
freqüentemente se referia a Deus como o "summum
bonum", como a resposta à sede do homem por mais-ser.
Desde Agostinho tal idéia era comum e ortodoxa no
pensamento cristão. Mas Feuerbach dá um passo a mais e
rompe a estrutura toda do sistema. E isto acontece quando
ele pergunta acerca da origem das idéias, e, portanto, acerca
da significação da linguagem.
O que é a linguagem? Donde vem as idéias que a formam?
Ao contrário dos filósofos que construíam mundos para
além do nosso a partir de suas idéias, que mediam a realidade
do pensamento na razão direta de sua imaterialidade, que
"arrancavam os olhos a fim de ver melhor" e Feuerbach
declara: uma análise da gênese das idéias revela que as idéias
não descem dos céus para a terra, mas sobem da terra aos
céus. "A religião é um sonho da mente humana. Mas mesmo
nos sonhos não nos encontramos no vazio ou nos céus, mas
na terra, na esfera da realidade". Os símbolos da imaginação
não existem independentemente. Eles devem ser
sistematicamente reduzidos às suas raízes vitais. Aqui está o
ponto fundamental da crítica de Feuerbach: a teologia ignora
a gênese das idéias. Em conseqüência ela atribui uma
realidade separada e autônoma a Deus, como se ele fosse um
objeto em si. Não percebe que por detrás do símbolo Deus
está um mecanismo de projeção do homem, e não de
revelação de um mundo além. Deus é "o diário onde o
homem registra os seus mais altos pensamentos e
sentimentos, o álbum genealógico onde inscreve o nome
das coisas que lhe são mais caras e sagradas". A conclusão de
sua análise é inevitável: "teologia é antropologia". "O teísmo
é o segredo da própria religião".
Feuerbach não descreve os funerais de Deus. O ateísmo
tradicional anuncia que os espaços metafísicos estão vazios.
Mas para tal anúncio ele tem de pressupor os espaços
metafísicos. Se assim não fosse, como dizer que eles estão
vazios? O teísmo como a afirmação da existência do ser
Deus, e o ateísmo como a sua negação, são, na realidade,
duas expressões de uma mesma visão de mundo. O ateísmo
de Feuerbach é algo totalmente distinto do ateísmo clássico.
Ele compreende que o pensamento não pode transcender os
limites que são impostos pela existência. Nas linhas da
filosofia crítica de Kant, entende que a linguagem só pode se
referir ao mundo das experiências. Por isto, a sua
hermenêutica exige que todos os símbolos que parecem
apontar para o além sejam traduzidos como projeções do
aqui. Mas, mais do que isto, em oposição aos positivistas,
Feuerbach entende que a linguagem não é uma simples
cópia do que é contemplado. Se assim fosse, a religião seria
nada mais que uma fantástica criação da mente humana,
totalmente destituída de significação, por não se referir a
objetos exteriores ao sujeito, Feuerbach afirma que a
linguagem religiosa, muito embora não tenha objetos
exteriores como ponto de referência, possui uma
significação por ser uma expressão de um "objeto" a um
tempo interior e universal: a essência do homem. É por isto
que fantasias e sonhos têm sentido. Eles expressam esta
essência, e por isto mesmo assumem a forma de
transcendência sobre as condições da existência. Assim, se a
religião é um sonho da mente humana, e se Deus é um ator
que a mente cria para representar neste teatro da
imaginação, ela é a mensagem enigmática que a essência do
homem, o homem que pode vir a ser no futuro, dirige ao
homem que existe no presente.
Não há como negar a grande contribuição da análise
feuerbachiana. Mas não podemos ignorar que ela sofre de
uma deficiência: simplifica demais as coisas ao descrever o
fenômeno religioso em termos puramente psicológicos. O
fato é que a linguagem nem pode ser entendida como uma
coletânea de instantâneos do mundo, e nem como uma série
de instantâneos da essência psicológica do homem. Ela
reflete antes uma relação entre o homem e o mundo. E isto
porque o mundo nunca é acessível ao homem a não ser
como mundo-em-relação-ao-mundo e o homem nunca é
acessível a si mesmo (como pensava Descartes) a não ser
como homem-em-relação-ao-mundo. Linguagem não é arte
fotográfica: é interpretação. "Contra aquele positivismo que
se detém diante dos fenômenos dizendo 'há somente fatos',
eu (Nietzsche) diria: "não, são precisamente os fatos que não
existem, mas apenas interpretações..." Como ser-no-meio-
do-mundo o homem apreende este mundo como um
problema, uma mensagem, um desafio, mas nunca como
uma simples imagem. o homem que compreende e
interpreta o mundo e por meio deste ato o constrói para si. É
esta relação que a linguagem articula. Não se pode, portanto,
admitir que a linguagem religiosa seja o resultado da
projeção de uma essência interior e inata ao homem e,
portanto, a histórica, pois a consciência não é uma entidade
auto-suficiente, mas o resultado de um relacionamento.
Se assim entendemos o nascimento da linguagem,
entendemos neste mesmo ato o nascimento de "Deus".
Sabemos que a religião do "primitivo" se articula por meio de
mitos. A princípio o assim chamado homem moderno
considerou o mito apenas como uma forma pré-científica de
explicar o mundo, e que juntamente com a religião deveria
ser considerado como uma reminiscência de nossa infância.
Mesmo Rudolf Bultmann, que tanta influência exerceu
como teólogo, via no mito uma construção absurda que
deveria ser eliminada. O seu programa, como se sabe, foi o
da demitologização. É inevitável que, se pensarmos o mito
como um relato com pretensões de explicar a realidade
objetiva e cientificamente, ele nada mais é que uma
explicação equivocada. A inteligibilidade dos mitos (e de
qualquer texto) só se revela em resposta às perguntas que
lhes dirigimos. Como perguntar aos mitos? O que importa
não é o que dizem, mas como dizem. Não são relatos de
explicação, mas de expressão. E o que exprimem eles? O
como do homem em relação ao seu mundo, uma in-
terpretação em que o sujeito e o objeto se fundem. O
absurdo aparente dos mitos se deve não a eles mesmos, mas
antes à nossa maneira ocidental de perguntar e de obter
respostas, maneira que cristalizou a clivagem entre sujeito e
objeto que o mito desconhece. No mito o homem e o
mundo não podem ser separados, porque ambos se refletem
e se interpenetram. E é neste universo de discurso que
nascem as palavras que irão funcionar como "Deus": palavras
que exprimem e resolvem a problemática da relação
homem-mundo, homem-tempo, homem-comunidade,
homem-morte. Assim, o símbolo Deus nasce como
expressão de uma relação. Deus, afirma Martin Buber, não
está aqui, não está ali, mas está entre. Dada a relação
primária Eu-Mundo, a palavra Deus não se refere nem ao Eu
e nem ao Mundo mas antes ao hífen, à relação invisível que
os une. Na mesma linha se coloca Paul Tillich que rejeitando
o teísmo — o Deus que é um objeto entre objetos —
interpreta o símbolo Deus como se se referindo à dimensão
de profundidade da existência.
Temos, portanto, de falar no nascimento de "Deus". Lá,
onde e quando pela primeira vez o homem emerge de uma
relação indiferenciada com o mundo, lá quando nasce o
homem como homem, forma-se o embrião desta linguagem
de relação, que veio a se cristalizar no símbolo ou símbolos
que funcionam como "Deus". Realmente é mais correto falar
no plural. Há tantos deuses quantas relações existenciais do
homem com o seu mundo. Esta, talvez, seja a razão por que
no Velho Testamento é impossível encontrar uma
elaboração filosófica do monoteísmo. Ao contrário: os vários
deuses se digladiam numa luta permanente, o Deus de Israel
e os deuses das nações. Na realidade, conflito entre duas
interpretações da realidade. Para a tradição profética do
Velho Testamento, o símbolo "Deus" remete o homem a
uma experiência de libertação política, o Êxodo. Do evento
surge a linguagem, nasce o símbolo. Deus simboliza uma
perspectiva histórica da experiência: o homem marcha do
cativeiro para um futuro aberto. A experiência do Êxodo se
torna a geratriz de uma visão global na qual a própria
naturezg é compreendida como subordinada à história e à
liberdade. Em contraposição, os deuses das nações
expressam uma atitude passiva frente à natureza. É de sua
fertilidade, mãe sempre grávida de vida nova, de que o
futuro depende. Seus deuses, portanto, "expressam a
exigência de integração no ritmo natural da vida. Esta é a
razão por que com muita freqüência seus deuses têm um
caráter sexual e os órgãos genitais são símbolos sagrados.
Fertilidade é um produto da sexualidade. Se a natureza é
fértil é porque nas suas profundezas deuses e deusas se
interpenetram numa cópula sem fim. Daí a natureza sexual
também dos seus cultos: a cópula humana catalisa a cópula
dos deuses.
Deus morreu. Mas ele nasceu também. Nasceu como parte
da história do homem, como símbolo que as culturas
criaram para fazer sentido do seu mundo. Sua morte,
portanto, é um evento, não da história dos deuses, mas da
história do próprio homem. Foi o homem que mudou.
Enfrenta o seu mundo de forma diferente, percebe-o de
forma diferente. Uma nova problemática, uma nova
interpretação. Com isto as palavras ficam velhas, deixam de
comunicar significações. Deus, como símbolo solidário com
uma frequentação do mundo, teve de envelhecer e morrer.
Não foi Deus que morreu, mas o homemque um dia fez uso
desta palavra para orientar-se no mundo. Por outro lado, isto
significa que um outro homem está se formando, um
homem que vê com olhos diferentes, que busca horizontes
diferentes.

II. AS FACES DO NOVO HOMEM

a) O advento da maioridade
Em 1784 Kant publicou um pequeno panfleto intitulado O
Que é o Iluminismo? Trata-se de uma descrição do novo
homem que ele julgava ver nascer. Livre da tutelagem de
forças externas a ele mesmo, não mais submisso a qualquer
poder heteronômico, este novo homem anuncia a sua
bandeira: "Supere aude! Ousa saber. Tem coragem de usar a
tua razão". Abre-se um mundo novo como permissão e
convite. Nasce o homem livre e com coragem para
conhecer e dominar tal mundo. Transformação
fundamental. De santo a cientista.
Com o nascimento do cientista Deus começa a morrer.
Muito embora os cientistas freqüentemente se recusem a
confessar, eles têm de aceitar a sua cumplicidade no
assassinato. Todos se lembram do conflito entre Galileu e a
Igreja. Todos são unânimes em condenar a Igreja. Mas ela
tinha profundas razões para fazer o que fez. A questão não
era uma verdade científica a menos ou a mais. Galileu estava
demolindo a própria habitação de Deus. Depois dele Deus
nunca mais teve morada certa. Expulso do centro do
universo, não lhe resta hoje nenhum lugar senão nas
margens da existência. O homem que um dia foi expulso do
paraíso por comer da árvore da ciência do bem e do mal se
vinga agora comendo da árvore do conhecimento do
segredo do universo, e com isto expulsa Deus do universo
que ele habitava.
Mas, como é que isto aconteceu? A Idade Média tinha uma
magnífica visão do Universo. Seres que se organizavam
estruturalmente, numa hierarquia que subia do mais baixo
nível, em prateleiras espaciais de densidade ontológica cada
vez maior, num "crescendo" constante até o ápice do
Universo, onde todas as contradições, toda a intranqüilidade
histórica, toda a transitoriedade do tempo se resolviam e se
consumavam no "Summum Bonum", para Deus Ali cada
elemento visível era um símbolo do invisível; cada partícula
perecível, uma parábola do imperecível; cada segundo do
tempo, um anúncio da eternidade. Vive o homem no tempo
somente em função do eterno. Toda a esfera natural só
encontra seu sentido no nível sobrenatural. Os movimentos
são verticais, de baixo para cima. Por isto mesmo a expressão
máxima da arte medieval é a catedral gótica, na qual o
homem ocupa o rés do chão, enquanto que os espaços
vazios se abrem sobre sua cabeça, simbolizando as estruturas
angélicas invisíveis que o contemplam de cima, enquanto
que as torres se elevam, apontando para os céus onde Deus
habita, que coincidem com os espaços astronômicos. E o
homem ideal — não o homem natural, que se localiza nos
níveis mais baixos da hierarquia — já se elevou pela vocação
por um estado religioso; seus olhos não olham para baixo:
voltam-se lânguida e beatíficamente para o alto. Aqui o
símbolo "Deus" é inseparável de um universo ordenado e
vertical, em cujo topo se encontrava o Ancião Eterno, de
olhar severo, como o representava a arte contemporânea.
Ora, esta compreensão de Deus estava intimamente
comprometida com uma visão definida do universo que
Bultmann denomina o universo de três andares: inferno,
terra e céu, e que não podia subsistir lado a lado com uma
teoria astronômica que colocava por terra todas as suas
estruturas cuidadosamente organizadas numa síntese
científico-teológica. Não apenas os cientistas. Também a
Reforma Protestante participou do "complô". A
historiografia católica com muito acerto — nos anos pré-
ecumênicos — acusou a Reforma de conter em si o germe
da desintegração da síntese medieval. E, logicamente,
acrescentamos, culpada de agravar aquele problema de
habitação que a ciência criava para Deus. A Reforma
representou a rejeição da peça central no arranjo estrutural:
a Igreja. Rejeitada a Igreja como mediadora da graça celes-
tial, rejeitou-se automaticamente todo o Universo que ela
sustentava. Não, não se tratava de uma heresia a mais: o
mundo inteiro desmoronava.
O Deus do universo medieval sofre então uma metamorfose:
de princípio unificador que era para o santo, passa a ser
problema, um desagradável pesadelo para o povo homem
que nascia então.
Quem é o novo homem? É um homem que experimenta
uma hilariante sensação de Uberdade e permissão. Se o uni-
verso não é mais parte de uma estrutura sagrada, se a Igreja
não tem mais o direito de se proclamar guardiã das estruturas
da ordem hierárquica, o mundo deixa de ser tabu. Ele é
profano. Nada há nele que impeça o exercício da liberdade
humana para conhecê-lo e dominá-lo. Seculariza-se o
mundo e seculariza-se o conhecimento. Kant descreve a sua
Crítica da Razão Pura na qual estabelece uma epistemologia
para a ciência e, ao mesmo tempo, desfere um golpe mortal
na "Rainha das Ciências" medievais, a teologia. Ele indica
que não há conhecimento sem um conteúdo de sensação
que lhe corresponde. Sem as sensações o mundo mental é
um vazio completo da mesma forma que, sem a função
ordenadora da razão, os dados sensoriais são um caos.
Portanto, todos os tradicionais argumentos para provar a
existência de Deus nenhuma validez científica têm. Deus é
expulso do mundo científico e da experiência secular do
homem. Se o mundo em que vivemos, mundo de espaço e
tempo, de acordo com Kant, é o mundo que só pode ser
conhecido e dominado em termos da razão científica, a
linguagem acerca de Deus se torna cada vez mais inaudível
nos círculos intelectuais. A linguagem da ciência não faz
nenhum lugar para a linguagem das orações e a esperança de
milagres. O Deus que com o seu dedo fazia milagres e
respondia orações ficou sob os escombros do edifício
medieval. Assim, oração nada mais é que uma "ilusão
supersticiosa" num mundo que não é vulnerável aos nossos
desejos, e a religião só pode sobreviver como moralidade,
"no reconhecimepto de todos os deveres como se eles
fossem mandamentos divinos "Y4 Da ordem universal quase
nada sobrou.
Ela é substituída por um mundo horizontal, profano e sem
forma a ser construído pela razão científica e pelas disposi-
ções morais do homem.
Eis aqui o homem que crê dispor dos instrumentos para
conhecer e o poder para realizar! Não importa que o edifício
pronto, construído por Deus, tenha caído. A tarefa agora é
construir a cidade dos homens. E da razão sairá não apenas a
forma da nossa ordem como também a determinação para
realizá-la. Nesta esperança se formou a Revolução Francesa
para destruir os últimos resquícios de uma ordem velha e
para inaugurar uma nova era. Observa-se aqui uma
secularização da esperança escatológica cristã, formulada por
Agostinho. Se em Agostinho é possível e necessário ter
esperança porque a história é um drama presidido pelo Deus
que a levará à consumação, agora Deus não é mais
necessário porque a razão é imanente à história. O homem
pode ter esperança porque a razão é mais forte que o
animalesco, os imperativos morais mais poderosos que os
estímulos instintuais, para dar mais ímpeto ainda a esta visão
triunfalista da história que caminha adiante sem auxílio de
Deus, surge a teoria da evolução orgânica que faz a
imaginação explodir de euforia. Se o reino orgânico dos
instintos apresenta um padrão de progresso ascendente, se a
semente do aperfeiçoamento e da seleção lhe é imanente, o
homem pode ter a certeza de que a ordem que ele constrói
evoluirá de forma a transformar-se na cidade de Deus. Aqui
a exuberância racional e vital do homem vai lado a lado com
o exílio de Deus.
Bonhoeffer indicou a situação esquisita e incômoda da
teologia, como resultado do "problema habitacional" que o
mundo científico criou para Deus. "Como conseqüência do
fato de que as fronteiras do conhecimento se alargam cada
vez mais", comenta ele, "Deus tem de ser pensado somente
como um tapa-buracos". Na medida em que o homem
avança vitorioso, com o seu conhecimento, Deus faz novas
retiradas estratégicas para aquelas fronteiras ainda não
exploradas pelo homem — na esperança de que ali, talvez,
ele poderá voltar a desempenhar o papel que desempenhou
no mundo medieval. O que indica que esta apologética é
incapaz de articular a problemática do homem moderno em
relação ao seu mundo.

b) A confrontação com o absurdo
Mas a experiência de otimismo e liberdade não tem vida
longa. Não resiste ao impacto da história. E a expectativa
triunfante dá lugar a um terrível senso de isolamento.
Nietzsche articulou esta sensação de vazio numa parábola.
Um louco, numa manhã de sol, acendeu a sua lanterna e foi
para praça central da cidade dizendo: "Eu busco Deus! Eu
busco Deus!" Como houvesse muitos ateus ao seu redor, as
gargalhadas se sucederam. "Que ocorreu com o teu Deus?
Será que ele se perdeu? Ou se escondeu? Ou tem medo de
nós?"... "Onde está Deus?", gritou o louco. "Eu lhes direi, nós
matamos — vocês e eu. Todos somos assassinos. Mas como
pudemos fazer isto? Como é que pudemos beber o mar?
Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro?
Que fizemos nós ao desligar nossa terra do seu sol? Para
onde se move ela agora? Para onde vamos nós agora? Para
longe de todos os sóis? Não estamos nós mergulhando sem
cessar? Para trás, para o lado, para a frente, em todas as
direções? Não estamos errando como se por um nada
infinito? Não estamos sentindo o hálito do espaço vazio?
Não é verdade que tudo está mais frio? E a noite, não está ela
vindo por todos os lados? Não é verdade que temos de
acender lanternas pela manhã? Já não estamos ouvindo o
barulho dos coveiros que estão sepultando Deus?... Depois
se informou que naquele mesmo dia o louco entrou em
várias igrejas e cantou o seu réquiem aeternam Deo. E
quando foi levado para fora e inquirido acerca de sua atitude
ele respondeu sempre "O que são estas igrejas, se não os
sepulcros, os túmulos de Deus?"
Em Nietzsche, entretanto, esta tristeza é provisória. Ele se
consola e adquire novo ânimo ao descobrir que a vida, afinal
de contas, sorri. Não se permite o otimismo triunfalista do
iluminismo. Não há muitas certezas. Há, entretanto,
convites. Há, fundamentalmente, umafafirmação irrestrita
da vida, do corpo, do futuro. De alguma forma este mundo
de loucos é transfigurado diante da esperança daquilo que
ele pode vir a ser, se o homem se dispuser a construí-lo. Mas
tal não acontece com Kafka. O absurdo do mundo
permanece como o dado irredutível que confronta o
homem. Ler as suas novelas é entrar no mundo dos
pesadelos, das brumas permanentes a trama é sempre a
mesma: o homem sozinho, prisioneiro de uma situação que
não criou, que não entende, diante de uma burocracia
impenetrável e impessoal, com a qual nunca pode realmente
se defrontar. Não há convites, não há possibilidades. As
portas todas estão sempre fechadas. Nenhuma possibilidade
de relação seja com o outro, seja com os fatos, seja com os
poderes dum mundo burocratizado. A morte de Deus —
melhor seria dizer a permanente ausência de Deus — para
Kafka é uma exigência do isolamento em que o homem se
encontra em frente às estruturas que o ignoram mesmo no
ato de destruí-lo. O otimismo de um Leibniz que se referia a
este como o melhor dos mundos possíveis, de um Spinoza
que encarava o processo histórico como a expressão de
Deus, ou de um Hegel que justificava todos os elementos
negativos da história como momentos necessários na vida
do Absoluto, é deixado atrás. Nada há que justifique ou que
explique o mundo. Este é exatamente o protesto que
Dostoiewski coloca na boca de Ivan Karamazovi. Ivan se
refere ao sofrimento de um garotinho que fora forçado a
passar a noite do lado de fora da casa, na neve, como castigo
que seus pais lhe impuseram. Relembra o seu choro perdido
no meio da noite! Tenciona o argumento dos defensores de
Deus que pensavam poder eliminar o caráter brutal do
sofrimento humano, explicando-o como parte de uma
sinfonia cósmica cuja beleza só poderia ser percebida
quando ouvida "sub specie aeternitatis". Sofrimento e dor
são assim, por este jogo de palavras, transformados em mera
ilusão da ótica humana. É contra isto que Ivan protesta.
Nada há no universo — nem mesmo Deus — que possa
eliminar a tragédia contida naquele choro perdido na noite.
Permanece, bem no meio deste universo, esta dor que tudo
enche e que torna o ateísmo uma exigência, um protesto,
uma expressão de solidariedade com o sofrimento humano.
c) No refúgio da subjetividade
Os quadros se sucedem.
Um Universo que transborda de Deus, universo que é Seu
espelho, Seu templo.
Rui o edifício. Deus é exilado. O homem — agora Prometeu,
com o fogo divino em suas mãos — se atira à tarefa de
construir, sobre os escombros do Templo, a cidade dos
homens.
Mas otimismo dá lugar a decepção. O homem acorda do seu
sonho. E a racionalidade histórica — seu deus, sua garantia
de que o futuro lhe pertenceria — entra em eclipse. E em
seu lugar surge a realidade brutal de um mundo irracional,
de um homem sozinho, sem forças e sem esperança.
Rearticula-se a experiência humana. Sem esperança o
homem não pode sobreviver. É preciso trazer Deus de volta
do seu exílio. Mas Ele já não é o mesmo. Não fala a mesma
linguagem, não faz as mesmas promessas, não volta a ocupar
a velha habitação, ainda em ruínas. Continua exilado do
universo físico. Mas o mesmo homem que havia destruído a
ciência de Deus na sua Crítica da Razão Pura o reintroduz na
Crítica da Razão Prática. Já no prefácio à segunda edição de
sua primeira obra Kant declara: "Concluí acerca da
necessidade de negar o conhecimento (de Deus) a fim de
fazer lugar para a fé". Se as exigências de causalidade natural
tornam a linguagem de Deus impossível, as exigências da
subjetividade humana a tornam necessária. Recomeça-se a
construir para Deus a casa que Pascal iniciara muito tempo
atrás. "O coração tem razões que a própria razão
desconhece". Deus surge como exigência da interioridade
humana. Nas palavras de Schleiermacher, como experiência
de um sentimento e não como conhecimento de um objeto.
Ou, com Kierkegaard, como a experiência de uma condição
subjetiva, de uma intensificação da paixão até um ponto de
incondicionalidade absoluta, em oposição ao conhecimento
de um objeto. Tão longe vai Kierkegaard a ponto de afirmar:
todos os fatores objetivos são absolutamente sem
significação alguma, porque é a subjetividade que cria o seu
próprio conteúdo. Deus nasce com a paixão, nela vive e dela
se alimenta. Para ilustrar tal ponto, Kierkegaard contou a
seguinte parábola: Dois homens foram ao templo para orar.
Um, cristão, foi ao templo do verdadeiro Deus, com as
verdadeiras idéias sobre Deus em sua cabeça, mas orou sem
a paixão da subjetividade. O outro, um pagão, foi ao templo
de um ídolo e prostrou-se. Mas orou com toda a paixão do
seu coração, Kierkegaard conclui: Na realidade o cristão
orou a um ídolo e o pagão orou ao Deus verdadeiro. Daí a
sua afirmação de que "a verdade é a subjetividade": Deus é
subjetividade.
A realidade da morte de Deus, como habitante do mundo
objetivo, ou do seu exílio para fora dos limites do universo,
pode ser medida pela atração que a teologia existencialista de
Bultmann tem oferecido. Observamos antes que a revolução
científica, que fez ruir a visão medieval do universo,
transformou Deus de um princípio unificador em um
problema incômodo. Bultmann parte deste fato: a
caducidade do Deus que habitava o universo de três andares
do Novo Testamento e da Idade Média. Se a linguagem de
Deus não pode se separar desta visão do mundo, então, Deus
está morto. Não se pode mais pronunciar o seu nome. Ainda
mais, Bultmann está atento ao caráter absurdo da experiência
humana objetiva. Como afirmar que o mundo é o espelho da
glória de Deus ou a sua habitação, depois de experimentar a
brutalidade dos campos de concentração? O conhecimento
de Deus, assim, não é algo que vai lado a lado com o
conhecimento do mundo. Ao contrário. É uma experiência
subjetiva. Uma nova maneira de o homem se entender a si
mesmo. Uma nova experiência de liberdade: libertação do
passado, liberdade para o futuro, liberdade para o amor. A
linguagem sobre Deus não aponta para um "objeto" que está
lá fora, no mundo, mas para o próprio homem. Concorda
com Feuerbach: "toda afirmação acerca de Deus é
simultaneamente uma afirmação acerca do homem, e vice-
versa".
O existencialismo conseguiu "fazer lugar" para Deus. Mas,
como dissemos atrás, Deus não é o mesmo. Sua voz é
diferente, sua face é diferente, sua habilitação é diferente,
suas promessas são diferentes. Parece que o existencialismo
simplesmente inverteu Feuerbach. Se ele dizia: teologia é
antropologia, agora o existencialismo diz: antropologia é
teologia.
O problema é se esta linguagem é realmente capaz de
articular a experiência humana. Ela preserva um mundo
dividido. De um lado, as estruturas objetivas, impessoais,
impenetráveis, desumanas, onde a liberdade é impossível,
onde a criação do novo é absurda. Do outro, o mundo da
subjetividade, da liberdade, da humanidade. Estaremos
diante de um novo gnosticismo? Parece que sim. E mais do
que isto: trata-se de uma nova forma de ficcionismo. Porque
o existencialismo nos diz "Deus" faz possível liberdade num
mundo onde liberdade é objetivamente impossível, abertura
para o futuro num mundo que está permanentemente
prisioneiro de suas estruturas dominadas pelo passado, ter
esperança quando a história nada mais é que a repetição das
suas irracionalidades presentes e passadas.
d) A luta contra a alienação
Mas há muitos que consideram a perpetuação deste mundo
dividido um preço muito alto para a preservação da vida de
Deus. A exigência primária não é Deus, mas a liberdade do
mundo. Mas isto só seria possível quando o homem com ele
se reconciliasse e aceitasse como sua tarefa a sua transfor-
mação, nas palavras de Nietzsche, "num lugar de recupera-
ção", em nome desta exigência que Freud proclama, em O
Futuro de Uma Ilusão, que a religião precisa ser destruída,
por ser ela uma ilusão psíquica, criada pela capacidade
humana de imaginar um estado de coisas em que os desejos
se realizariam. Por meio dela o homem evita a confrontação
com a dura realidade que o resiste. A eliminação da religião
seria assim uma tarefa indispensável num programa de
"educação para a realidade" — uma educação que levaria o
homem a substituir o seu Deus-ilusão pelo Logos científico,
pois só assim ele poderá conhecer, dominar e transformar o
seu mundo. Freud vê a tarefa de libertação do homem como
o exorcismo de uma ilusão, como uma luta no campo
psicológico. Concordaria, portanto, com Feuerbach.
Eliminada a ilusão, o homem, livre dos "maus espíritos", se
defrontaria com um mundo aberto à sua frente.
Marx compreendeu que as coisas não eram tão simples
assim. E isto, porque esta natureza humana alienada não é
gerada por si mesma. A consciência é dialética. Ela vem a
existir em relação com o mundo, a sociedade, a história que
a cerca? Por isto as idéias não são simplesmente entidades
psíquicas, feias refletem as relações sociais que determinam
a consciência. Esta é assim um espelho, freqüentemente
invertido, do mundo que a condiciona! Esta é a razão por
que Marx não podia concordar com Feuerbach e,
conseqüentemente, não poderia concordar com Freud. A
tarefa de libertação humana não é uma simples terapêutica
psíquica, exorcismo de maus espíritos, porque neste ato as
condições objetivas que determinaram tal consciência e
condicionaram tais idéias permaneceriam intocadas. A
consciência se abriria, mas o mundo permaneceria fechado.
Que é religião? Ela não é uma criação da fantasia do homem?
Suas raízes se encontram nas condições reais do mundo. Por
isto ela é a expressão de uma condição real de sofrimento e o
protesto contra sofrimento real. Ela é o gemido de uma
criatura oprimida! Mas no universo de discurso da religião a
problemática histórica sofre uma transposição e uma
inversão: transpõe-se para "o outro mundo" — mundo da
eternidade — "do qual a religião é o aroma espiritual", e,
como conseqüência, ela se constitui como "consciência
invertida do mundo". Por remeter a problemática histórica
às necessidades eternas de um mundo divino, ou por
explicar as contradições humanas do presente como
momentos necessários no desenrolar do movimento do
Espírito (Hegel), a religião torna impossível a crítica do
mundo. O que é verdadeiro. Consciência religiosa c assim
sinônimo de consciência acrítica, consciência que tem de
"reconhecer como uma concessão dos céus o próprio fato de
ser ela dominada, controlada, possuída". Se a tarefa não se
resume numa simples destruição de ilusões mentais, se a
tarefa é transformar o mundo, então o primeiro passo para
isto seria (a libertação do homem da religião. Portanto, "a
abolição da religião como a felicidade falsa do povo é
necessária em benefício da sua felicidade real... A crítica da
religião é assim, de forma embrionária, a crítica deste vale de
sofrimentos, que tem sobre si a aura da religião... A crítica
da religião tira este homem de sob o domínio de uma ilusão,
de sorte fazê-lo pensar, agir e moldar a sua realidade como
um homem que, livre das ilusões, voltou à razão. .? "Assim,
a crítica dos céus se transforma em crítica da terra, a crítica
da religião em crítica do direito e a crítica da teologia em
crítica da política".
Que é que Marx pretende? Destruir o cordão umbilical que
ligava a terra aos céus, a fim de libertar o homem para a
tarefa de compreender e criticar o seu mundo, não a partir
de uma perspectiva metafísica, mas a partir de uma análise
histórica, horizontal, das condições objetivas que haviam
criado a religião como uma forma de alienação. É necessário
destruir os céus para que se possa construir a terra.

e) A boa-nova da liberdade
A "morte de Deus" que em Feuerbach, Marx e Freud
aparece como uma tarefa, em Nietzsche se transforma no
simples anúncio de uma boa-nova.
"Sentimos como se um novo dia estivesse raiando ao receber
as boas-novas de que "o velho Deus morreu"; nosso coração
transborda com gratidão, assombro, antecipação e
expectativa. Por fim o horizonte se apresenta novamente -
aberto a nós, muito embora ele não esteja muito claro: por
fim nossos navios podem se aventurar pelo mar e fora, para
enfrentar qualquer perigo; toda a ousadia do amante do
conhecimento é permitida novamente; o mar, o nosso mar,
está aberto novamente".
Nietzsche era, antes de mais nada, um amante da terra, da
vida, da liberdade. Com a visão de profeta que o caracteri-
zou, ele pode perceber que a íhistória da civilização ociden-
tal era uma fantástica histórica de repressão. Norman O.
Brown explora esta mesma temática, a partir de Freud, no
seu livro Life Against Death, indicando não apenas que a
civilização tem suas origens nos mecanismos neuróticos de
repressão, como também que ela, por isto mesmo, funciona
como mecanismo repressor. Segundo Nietzsche, isto
significou que a familiaridade com as raízes mais
espontâneas da vida — característica do estilo dionisiano de
vida — foi reprimido pelo estilo apoloniano: o triunfo da
forma, do limite, sobre a vitalidade e espontaneidade. Toda
sua obra é assim um protesto contra a repressão e uma
celebração da vida? É preciso que a terra seja transformada
num local de recuperação onde o homem possa ser
devolvido àquilo que Norman Brown denominou o "sentido
erótico da vida", ou seja, a libertação do corpo para uma
relação de prazer com o mundo todo que o cerca, mundo de
cores, sons, perfumes, gostos, carícias. Ora, Nietzsche
compreendeu que toda esta estrutura de repressão que
funcionou na civilização ocidental estava inseparavelmente
ligada a uma estrutura religiosa. Em nome de Deus nega-se
um corpo; o ideal cristão é o ascetismo. Em nome de Deus
nega-se a vontade, a espontaneidade; o ideal cristão é a
obediência, o camelo que aceita todas as cargas sem
reclamar. Em nome de Deus nega-se o tempo, porque o seu
mundo é o mundo da eternidade. Em nome de Deus nega-se
a liberdade ao homem para criar um futuro novo, porque
todos os valores já haviam sido codificados no passado. É por
isto que ele anuncia o super-homem (que nenhuma relação
tem com a ideologia nazista, como se tentou fazer crer), o
homem que terá coragem para afirmar a sua vida e sua
liberdade contra todas as estruturas de repressão que nossa
civilização criou .Ora, a coroa de toda esta estrutura era o
nome de Deus. Graças a este nome a repressão se tornava
sagrada e a condição de oprimido se tornava em virtude.
Conseqüentemente, a "morte" deste nome trazia consigo
mesma o começo do fim das estruturas de repressão. Elas
perdem o seu caráter sagrado, e o homem, até então na
condição de camelo, está livre para transformar-se no leão
que haverá de destruir o dragão que o oprime. Depois disto,
então, os horizontes se abrem .O homem se reconcilia com
a terra e a fertiliza com o seu amor. É por isto que para
Nietzsche o anúncio da morte de Deus tem a qualidade de
uma "boa-nova", porque ela significa permissão para a vida,
para o mundo, para o futuro.

III. OS NOVOS NOMES DE DEUS

Por muito tempo os teólogos encararam com profundo
ressentimento a proclamação da morte de Deus. Mas desde
que se compreendeu que o que está em jogo aqui é uma
reinterpretação, por parte do homem, da sua relação com o
seu mundo, aqueles que dantes eram considerados os
assassinos de Deus passaram a ser citados como seus
profetas. A morte de Deus passou a fazer parte de um novo
universo de discurso teológico, de uma nova articulação da
experiência humana do transcendente.
Dos anos em que passou na prisão Dietrich Bonhoeffer
colocou, nas cartas que dali escreveu a amigos? Alguns
pensamentos esparsos a este respeito, que vieram a exercer
um profundo impacto não somente sobre aqueles que
buscavam, de forma desesperada, fazer lugar para Deus num
mundo que o exilara, como também sobre aqueles que,
neste mundo secularizado, se sentiam abandonados e sós.
(Nos seus escritos a secularização do mundo, que a
apologética religiosa tradicional procurava atacar, é recebida
como uma dádiva graciosa. Vivemos, diz ele, num mundo
que atingiu sua maioridade, que já não aceita a tutela de
autoridades religiosas. A religião agoniza?) Chegou ao fim a
preocupação pela salvação individual e pelo mundo
metafísico, acima do nosso. As poucas pessoas religiosas que
ainda restam — isto é, pessoas dominadas pela preocupação
principal com a salvação pessoal ou com a realidade do
mundo metafísico — são umas poucas que "sobraram da era
da cavalaria" ou "uma ou duas que são intelectualmente
desonestas".
O trágico — e por que não dizer cômico — com as pessoas
religiosas é que elas estão sempre batendo em retirada. Na
medida em que o conhecimento humano avança, elas são
forçadas a remover o seu Deus para mais além. O seu Deus
é, na realidade, um artifício usado para encher os vazios do
conhecimento humano. "As pessoas religiosas", comenta
ele, "falam de Deus quando a percepção humana
(freqüentemente por simples preguiça) chega ao fim,
quando os recursos humanos falham". Ora, o mundo adulto
aprendeu a resolver os seus problemas e a enfrentar suas
derrotas sem apelar para Deus. Esta é uma fase histórica que
nos está forçando a "abandonar um falso conceito de Deus".
O ídolo que as gerações religiosas passadas batizaram com o
nome de Deus tem de ser esquecido e enterrado para que o
homem possa encontrar-se com o Deus vivo. Para
Bonhoeffer a morte de Deus — o fim do Deus da religião —
foi provocada pelo próprio Deus. O Deus vivo assassina o
ídolo usurpador. O que Deus nos ensina através de sua
morte é "que podemos muito bem viver sem ele". Assim, se
vamos criar uma nova linguagempara articular a nossa
experiência de Deus, ela não terá lugar algum para o Deus
que faz milagres, o que resolve os nossos problemas, ao
contrário: ela falará do Deus que "é fraco e totalmente sem
poder no mundo" , sendo esta a única forma da sua presença
e seu auxílio. Assim, somos levados ao paradoxo de que a
ausência de Deus é a única forma de sua presença e sua
morte, a única expressão de sua vida. Crer em Deus é viver
como se Deus não existisse!
Tillich aponta na mesma direção ao indicar a necessidade do
ateísmo como libertação de um Deus tirano, Deus-ídolo.

O Deus do teísmo teológico é um ser ao lado de outros e
como tal é uma parte da realidade como um todo. É certo
que ele é considerado a sua parte mais importante, mas não
obstante como parte e como subordinado é estrutura do
todo... Como tal ele é determinado pela estrutura sujeito-
objeto da realidade, ele é um objeto para nós, como sujeitos.
E ao mesmo tempo nós somos objetos em relação a ele
como sujeito. E isto é decisivo para a necessidade de se
transcender o teísmo teológico. E isto porque Deus como
um sujeito me transforma num objeto que nada mais é que
um objeto. Ele me priva de minha subjetividade porque ele
é todo-poderoso e onisciente. Eu me revolto e tento
transformá-lo num objeto, mas a revolta fracassa e se
transforma em desespero. Deus se apresenta como o tirano
invencível, que faz com que todos os outros seres que com
ele se relacionam percam sua liberdade e subjetividade... Ele
se torna o modelo de tudo aquilo contra que o
existencialismo se revoltou. Este é o Deus que tinha de ser
morto, nas palavras de Nietzsche, porque ninguém pode
suportar ser transformado num mero objeto que é
conhecido e controlado de forma absoluta. Esta é a mais
profunda raiz do ateísmo. Ê um ateísmo que se justifica
como reação contra o teísmo teológico e suas implicações
perturbadoras.
No universo teofânico, todas as coisas fazem sentido,
quando contempladas sub specie aeternitatis. As
dissonâncias que agora sentimos se revelam como acordes
de uma grande sinfonia. Até a morte e o sofrimento são
negados e transfigurados — aufgehoben — porque no
universo teofänico nada se perde, tudo se transforma.
Esta é uma visão que já não podemos ter. No universo da
ciência não existe um contemplar da realidade sob a
perspectiva da eternidade. Como Philip Rieff observou, a
ciência é uma rebelião contra a transcendência. A realidade
é um todo fechado sobre si mesmo e auto-explicativo. Não
se pode ir além para se descobrir a significação do aqui. O
aqui se esgota no aqui. Nos seus primórdios isto não parecia
trágico, porque a ciência cria que ela seria capaz de resolver
todos os problemas da vida humana. No pesadelo de Huxley
e na visão futurológica de Toffler, o sentido vem
empacotado em produtos químicos que tornam os homens
felizes. Revela-se a técnica como "ópio do povo". Toffler
denomina esta transformação, no otimismo que caracteriza
os futurólogos, de espiritualização da economia. ..
Acontece, porém, que a tragédia da existência não segue o
"script" das novelas radiofônicas. Os gregos tinham uma
aguda consciência do trágico: a fatalidade brinca com os
homens de sorte que o grande final se revela como o triunfo
do absurdo sobre as aspirações humanas. Parece que aos
poucos estamos recuperando o senso do trágico que chega
aos limites do senso do demoníaco: estamos à mercê de po-
deres irracionais, absurdos, contra os quais nos sentimos
totalmente impotentes. Esta é a razão por que, no cotidiano,
está se tornando cada vez mais sem sentido falar sobre Deus.
O cotidiano é a experiência do absurdo, mas a linguagem
sobre Deus é a linguagem sobre o sentido.
Que nos resta? A aceitação da falta de sentido? Isto é uma
impossibilidade. Só existe uma atitude coerente com a falta
de sentido: o suicídio. Mas aqui está o curioso da expe-
riência: não tendo mais nas mãos os porquês que justifica-
vam a sua existência, gritamos um apesar de e com ele nos
agarramos à existência com uma paixão infinita. É a coragem
de Tillich. Coragem é afirmação de sentido apesar de. Reve-
la-se aqui uma dimensão transcendente da existência. Só é
possível ter coragem porque o homem, nas suas
profundezas, é uma combinação de mágico, criança e
sonhador, que proclama, contrariamente a tudo o que a
ciência tem dito, que os limites do possível são mais amplos
que os limites do real.
Deus morreu? Ou morreu o homem que podia balbuciar este
nome inefável? Onde quer que, entretanto, se revele a ânsia
pelo sentido, ali estão os deuses sendo gerados por nós ou —
quem sabe? — ali estamos nós sendo gerados pelos deuses.
Não sabemos ainda como nos referir a este processo. As
palavras de que dispomos estão carregadas de toda uma
tradição e dificilmente podem ser usadas. A morte de Deus
se revela, assim, como a impossibilidade de falar. Porque, "o
que não se pode falar, deve-se calar". Mas a coragem silen-
ciosa emerge das profundezas obscuras do ser, como bolha
que sobe do fundo do mar. Coragem para afirmar a vida
quando não há razões objetivas para tal. Coragem que
permanece mesmo quando o homem, depois de olhar atrás
das estrelas (Nietzsche), descobre que não há certezas
eternas para ampará-lo. Coragem de ser apesar de os poderes
do não-ser tomarem todos os horizontes da experiência.
Coragem que não se deriva de uma fé em Deus, mas que
persiste apesar da morte de Deus. Tillich dá o nome de fé
absoluta a esta afirmação incondicional: fé, simplesmente fé,
não relacionada com objeto algum, absoluta. Deus
desaparece como objeto. Desde Kant nossa linguagem não
faz mais lugar para ele. Mas a sua presença continua de
forma mais estranha, porque ela se anuncia numa
consciência de ausência, na saudade de um bem-amado que
nos deixou ou que ainda não veio. E a consciência de Deus
como objeto se transforma em esperança: não mais
consciência de algo, mas no simples tender da consciência
para um imenso vazio que a enche de nostalgia. Nas linhas
de Ernst Bloch, temos então de afirmar que onde quer que
exista a esperança, ali existe a religião, porque aí se revela a
nossa nostalgia pelo Reino de Deus, o grande projeto
utópico que a humanidade não cessa de sonhar mesmo
quando, de olhos abertos, ela não tenha condições para ver.

ESPERANÇA E OBJETIVIDADE: UMA CRÍTICA
DA CIÊNCIA

Não será verdade que toda ciência, no final, se reduz a um
tipo de mitologia?
(De uma carta de Freud a Einstein em 1932).

Quando a lua apareceu ontem imaginei que ela queria dar à
luz um sol: tão grande, tão grávida, no horizonte. Mas ela
me mentiu, com sua gravidez... Isto é parábola que ofereço a
vós, hipócritas sentimentais, vós que pretendeis ver as coisas
tais como elas são... Mas, sobre vós cai uma maldição: nunca
darei à luz, ainda que apareçais gordos e grávidos, no
horizonte. Sois estéreis: porque os seus sonhos proféticos e
os seus sinais astrais e fé na fé...
Friedrich Nietzche

As ciências que se instauraram no mundo ocidental têm-se
inclinado a classificar a religião como uma forma de falsa
consciência e como uma força conservadora. "A religião é a
consciência-de-si e o como-sentir-se do homem que ou
ainda não se encontrou ou que voltou a perder-se", nos diz
Marx. Ela é a flor com que o homem cobre a corrente que o
aprisiona de forma que, não mais vendo a corrente, ele se
imagina num jardim. E jardins não devem ser destruídos.
Jardins devem ser cultivados, preservados, defendidos. Em
decorrência disto, a religião teria uma função
permanentemente conservadora: os homens "devem
reconhecer e aceitar como uma concessão dos céus o
próprio fato de serem eles dominados, controlados,
possuídos".
Dentro de certos limites este diagnóstico é correto.
Entretanto, creio que é necessário fazer a Marx uma reserva
crítica muito próxima daquela que ele fez a Feuerbach.( Não
se pode falar de uma essência do homem, em abstrato. De
forma idêntica, não se pode falar de uma essência da religião,
como se ela fosse um fenômeno simples, permanentemente
idêntico consigo mesmo, exercendo sempre as mesmas
funções. É verdade que a religião é freqüentemente
dominada pelos sacerdotes. Mas é necessário ter em mente
que os profetas que se levantam contra os sacerdotes
também falam em nome da religião. Seria possível
identificar sacerdotes e profetas? Não creio. Antes, por ter
ela um agudo senso de discriminação entre amigos e
inimigos. Os sacerdotes se movem pelos corredores e salas
dos palácios. Os profetas são aprisionados em calabouços.
O fenômeno religioso é ambíguo e ambivalente. A própria
religião reconhece este fato. Ela se refere a deuses e
demônios, à fé e à idolatria — o que indica que ela se dá
conta das dinâmicas contraditórias que se movem no seu
próprio meio.É verdade que a religião tem-se prestado a uma
função sacralizadora do status quo, sendo assim a ideologia
de uma ordem que se estabeleceu pelo poder. Mas é verdade
também que a religião, em nome dos ideais de justiça, de
fraternidade e amor, tem sido uma fonte de críticas
proféticas de ordem instauradas, seja de direita, seja de
esquerda. A esperança do Reino de Deusqualquer que
seja a forma que ela tenha assumido, tem sido sempre um
horizonte de expectativa sob cuja luz as rotinas coercitivas
do cotidiano que caracterizam todas as ordens sociais
estabelecidas se revelam como um absurdo, um negativo a
ser negado.
As ciências em geral e as ciências do comportamento
humano em particular, entretanto, não têm aplicado a si
próprias a mesma crítica que elas lançaram contra a religião.
Os cientistas tendem a operar a partir da "pressuposição
humana, mas elitista, de que os outros crêem por causa de
necessidades, enquanto que eles crêem em decorrência dos
ditames da lógica e da razão". Uma vez aceita tal
pressuposição, torna-se impossível perceber que, num
mundo que aparentemente se secularizou, a ciência passou a
desempenhar, em grande medida, as funções dantes
desempenhadas pela religião tradicional em decadência. É
minha hipótese que a ciência se constitui — num mundo
em que as religiões tradicionais perderam a sua
respeitabilidade — numa "alternativa funcional" ou um
"equivalente funcional" da religião. Pesquisas realizadas
indicam que uma porcentagem significativa de cientistas do
comportamento consideraram, num período anterior de sua
vida, tornarem-se clérigos de uma religião ou outra. Por que
abandonaram a religião e se "converteram" à ciência? A
resposta mais fácil seria que eles romperam com a falsa
consciência, disseram adeus às suas ilusões e ingressaram na
instituição que detém o monopólio dos métodos de se ver
corretamente. Parece-me, entretanto, que tal explicação é
altamente ideológica e... religiosa. Na verdade, um conver-
tido religioso explica sempre nestes termos a sua própria ex-
periência! Temos de considerar uma outra hipótese: a de que
a substituição da religião pela ciência tenha sido algo seme-
lhante à troca de uma mágica fraca por uma mágica forte, de
uma mágica destituída de status e progressivamente
marginalizada, por uma mágica que dá status e que ocupa o
lugar central da sociedade.
Uma das ironias da história é a alternância das funções que
certos itens culturais exercem.(Como K. Mannheim observa,
universos simbólicos que num certo período histórico
funcionaram de forma utópica passam a exercer, no período
que se segue, uma função conservadora. Explosões
carismáticas se domesticam em rotinas burocráticas, profetas
se metamorfoseiam em sacerdotes, revolucionários, uma vez
no poder, se tornam conservadores. A ciência, sem dúvida
alguma, exerceu uma função altamente crítica e
revolucionária quando do seu surgimento. Sua metafísica,
seus métodos e suas alianças sociais colidiam frontalmente
com aqueles da ordem hierárquica, religiosa e estática
dominante. Entretanto, uma vez demolido este mundo, a
ciência perdeu, progressivamente, o seu gume crítico. O seu
poder manipulador cresceu na razão inversa do seu poder
questionador. Com o advento da civilização utilitária e
pragmática, a ciência, como especialista na manipulação de
coisas e pessoas; tornou-se numa peça indispensável deste
lado. A nossa sociedade não se tornou mais científica por ter
mais cientistas, observa Paul Goodman. O contrário é a
verdade. Temos mais cientistas hoje que durante todo o
resto da história porque os interesses econômicos
conseguiram colocar a ciência a seu serviço. A sociedade
não se tornou mais científica. A ciência se transformou
numa função explorável.
Estou sugerindo, segundo linhas já indicadas por Freud, que
é perfeitamente possível inverter os "papéis" que religião e
ciência têm representado no "script" histórico-social criado
pela ciência: a ciência pode muito bem ser vista como um
fator funcional e legitimador das ordens instauradas e a
religião pode ser exatamente um fator disfuncional e
portanto, ainda que num nível simbólico, crítico da
realidade.
Segundo Freud, a religião nasce fundamentalmente de uma
recusa, por parte da consciência, em aceitar a "realidade". É
ela um ato de rebelião pelo qual o princípio do prazer nega à
realidade instaurada o status de realidade, substituindo-a por
um mundo imaginário que realmente represente os impulsos
eróticos reprimidos pela civilização, mundo este que passa a
funcionar, para a consciência, como realidade. Ora, tal
atitude da consciência — a que Freud denominou neurose
— e as construções que dela emergem, são, segundo o pai da
psicanálise, fundamentalmente disfuncionais frente à
sociedade. Por isto, elas devem ser reprimidas ou pela força
ou voluntariamente. "Na obra da civilização", ele nos diz, "é
tanto impossível operar sem o controle das massas por uma
minoria, quanto dispensar a coerção". Os arranjos da
civilização estão em direta oposição às exigências do amor.
As massas preguiçosas e destituídas de inteligência, não se
apercebem disto. Por isto "não serão convencidas por meio
de argumentos acerca da inevitabilidade da repressão dos
instintos". Em outras palavras: elas não se ajustarão, não se
tornarão funcionais, voluntariamente. Este resultado se
conseguirá pela mediação de uma liderança esclarecida.
Existe um grupo que já abandonou a religião e o
comportamento disfuncional que ela implica e se ajustou
adequadamente às regras da civilização: os cientistas. "A
civilização tem muito pouco a temer das pessoas educadas e
dos que trabalham com os cérebros. Nelas os motivos são
substituídos, sem problemas, pelo comportamento civilizado
(isto é, o comportamento segundo as regras do princípio da
realidade) e pelos motivos seculares. Além disto, estas
pessoas são veículos da civilização".
O que Freud nos diz é extremamente interessante porque
ele inverte o que é freqüentemente afirmado. Diz-se que a
religião, por ser uma construção da imaginação e uma fuga
da realidade, é essencialmente alienante e produz um
comportamento funcional e conservador. A ciência, ao
contrário, por se dedicar à análise objetiva do real, é o
pressuposto para o pensamento e o comportamento crítico.
Segundo o pai da psicanálise a verdade é exatamente o
oposto. Somente o pensamento não-objetivo, isto é, que se
recusa a manter-se dentro dos limites do dado e toma a
imaginação como o seu horizonte de referências, pode ser
disfuncional. Somente o neurótico tem coragem para agir
em oposição às regras estabelecidas. Concluiríamos que uma
transformação qualitativa da realidade (em oposição à sua
mera expansão quantitativa exigiria que o pensamento
desiderativo, não-objetivo, estabelecesse os pontos de
referência imaginários para a ação. O pensamento objetivo,
ao contrário, por se manter dentro dos limites do dado, não
tem, enquanto tal, condições para se referir a um possível
que seja descontínuo em relação ao atualífA ciência, assim,
não se tornou conservadora e funcional por acidente. É o
próprio espírito da ciência, tal como foi definido na
civilização ocidental, que faz com que ela seja
necessariamente funcional.
Esta última afirmação necessita ser elucidada. Comece-mos
destacando três das facetas mais importantes, a nosso
ver, do espírito da ciência. São elas: 1) o dogma da
objetividade, 2) o dogma da estrutura matemática do objeto
e 3) o dogma da verificabilidade.
Parece-me que tais pressupostos são adequados para qua-
lificar o universo físico. Estrelas, eclipses, pedras, vulcões —
estas são realidades que existem quer queiramos ou não. O
ato de tomar delas consciência em nada altera a sua presença
no universo. Muito antes que o homem tivesse surgido e
muito depois de haver ele desaparecido, a sua presença
esteve e estará aí, indiferente e não alterada pelo nosso
olhar.
A segunda pressuposição tem a ver com o conhecimento. 0
que é conhecer? Se a realidade é dada, independe da
consciência e é autônoma, conhecer nada mais é que um ato
de voluntária submissão da consciência ao objeto. O objeto
é ativo. A consciência passiva. O dado impõe-se. A
consciência ajusta-se.
Exige-se, portanto, que a consciência que observa coloque a
si mesma entre parêntesis; que a lógica que lhe é imanente
— a lógica do princípio do prazer e das emoções — seja
reduzida ao silêncio. E isto porque a lógica da imaginação,
como Sartre muito bem observa , é a lógica da magia: ela
pressupõe que a realidade poderia ser qualitativamente
diferente do que ela A esperança de que a realidade possa ser
qualitativamente diferente do que é, assim, nenhum
fundamento real possui. A realidade é fria e determinista,
indiferente às aspirações da vontade. Se encontramos tal
esperança na consciência, portanto, isto só é devido
possivelmente a uma perturbação no ato cognitivo. O ideal
da consciência científica, assim, é a consciência totalmente
receptiva, que só registra e trabalha o objeto e as suas
determinações.
Percebeu-se desde o início, entretanto, que tal critério é
insuficiente. A consciência apreende, como pertencendo ao
objeto, uma série de informações que, embora pareçam
provir dele, na realidade não se referem às suas
determinações. Ao olhar para uma flor ela me parece
colorida, tem um perfume, contém um néctar adocicado, e
quando o vento passa por ela ouço um leve ruído. A ciência
se apressou a indicar que tais qualidades não pertencem
realmente ao objeto. Não são qualidades da coisa. São antes
interpretações psicológicas, traduções mentais de outras
qualidades mais fundamentais. Gosto, cheiro, som, cor, não
existem no objeto mas na mente. Estas são "qualidades
secundárias", que devem ser desprezadas. Variam de pessoa
para pessoa. Não são abertas à verificação inter-subjetiva. O
que importa são as qualidades primárias que constituem o
substrato mesmo do objeto — e o que as caracteriza é o fato
de serem passíveis de ser representadas matematicamente.
"O livro da filosofia", observava Galileu, "é o livro da
natureza, livro que aparece aberto constantemente diante
dos nossos olhos, mas que poucos sabem decifrar e ler,
porque está escrito com sinais que diferem daqueles do
nosso alfabeto, em triângulos e quadrados, em círculos e
esferas, em cones e pirâmides". O objeto de que fala a ciên-
cia moderna não é, portanto, a cópia colorida que os
sentidos não dão, mas antes uma construção matemática. É
no campo das relações matemáticas que, segundo o espírito
da ciência, encontramos a essência do objeto, da qual as
qualidades secundárias não são bem expressões e nem
revelações, pois que não há meios de se induzir, a partir
destas últimas, a estrutura matemática do objeto. Para todos
os efeitos práticos e metafísicos, as qualidades secundárias
podem e devem ser colocadas entre parêntesis, como não
pertencendo ao objeto. Não se trata simplesmente de medir
a natureza. A medida em si, não explica. Explicar é
descrever as relações funcionais que permanecem
constantes entre as várias variáveis que interferem num
fenômeno.
Que é que isto significa para a metafísica da ciência?
(Se a estrutura da realidade é matemática, a realidade é um
sistema fechado, auto-explicativo e totalmente
determinado).
Não há lugar para o imprevisível, para o não-esperado, para
o novo. Nas palavras de Laplace, uma inteligência que
conhecesse num momento dado do tempo ("todas as forças
por meio das quais a natureza é animada e as posições
respectivas das entidades que a compõem, abarcaria numa
mesma fórmula os movimentos dos corpos maiores do
universo e aqueles do mais leve átomo: nada seria incerto
para ela, e o futuro, como o passado, estaria presente diante
dos seus olhos". As incógnitas da equação só são incógnitas
para o sujeito que ainda não a resolveu, porque dentro da
lógica da equação as incógnitas estão rigorosamente
determinadas- Se assim é, estamos diante de um universo
em que o futuro só pode conter uma nova configuração de
uma identidade estrutural imutável.
Compreende-se, assim, a afirmação de Thomas S. Kuhn de
que a "ciência normal não tem por objetivo descobrir
novida-des de teoria e de fato e, quando bem sucedida, não
as
encontra".
Sobre estes dois pressupostos constrói-se o critério de
verificação. Uma hipótese é verificada se é somente se ela
nos permite prever o comportamento da coisa no futuro. O
critério da verificação assenta-se sobre o pressuposto da
continuidade e da uniformidade do real: a forma e os limites
do experimentado, no presente, determinam a forma e os
limites do experimentável, do possível em resumo, do
futuro. Isto exige que a ciência seja radicalmente
futurológica e radicalmente anti-utópica.
As ciências do comportamento se construíram a partir da
inveja dos filósofos sociais diante dos cientistas da natureza.
No sentido de construir uma ciência que se aproximasse em
exatidão das ciências da natureza tomaram emprestados os
seus métodos e, consciente ou inconscientemente os seus
pressupostos metafísicos acerca da natureza do real. Nas
palavras de Albert Carnus, "métodos implicam metafísica;
inconscientemente eles revelam conclusões que
freqüentemente afirmam não conhecer ainda". Assim, "na
medida em que as ciências sociais tomaram como seus
modelos as ciências físicas, elas contém a pressuposição
(domain assumption) de que pessoas são coisas. A natureza
da explicação do comportamento das pessoas identifica-se
com a natureza da explicação do comportamento das coisas.
Toma-se por assentado que, como na natureza, a "coisa"
humana é um contínuo uniforme, fechado e auto-
explicativo, que se move em conseqüência de uma lógica
imanente na qual não há lugar para interrupções e saltos, de
sorte que o futuro é o resultado do "desenvolvimento" do
passado e do presente.
O título do último livro de B. F. Skinner é muito sugestivo:
Beyond Freedom and Dignity (tradução para o português O
Mito da Liberdade). Deixando de lado o desenvolvimento do
argumento de Skinner não posso discutir os seus
pressupostos dentro dos limites deste trabalho, parece-me
que o seu título se prestaria bem como moto da ciência que
se institucionalizou no Ocidente. A pressuposição de que o
objeto se move por meio de uma lógica inconsciente, seja
no nível natural, seja no nível humano, conduz
inevitavelmente — parece-me — a uma destruição da
vontade como fator criador. Na melhor das hipóteses,
quando a vontade parece assumir uma eficácia histórica, é
porque ela coincide ou expressa os elementos realmente
motores da realidade — que não são,de forma alguma, eles
mesmos, de natureza volicional, mas antes estrutural e
inconsciente. Chegamos, assim, à conclusão de que ao
critério epistemológico de objetividade corresponde,
inevitavelmente, o critério psicológico de ajustamento. Em
outras palavras; a objetividade, longe de ser uma atitude
neutra, ao postular a autonomia do real em face dos valores,
exige uma submissão da consciência aos fatos e à sua lógica
imanente, elevando-os, desta forma, à condição de valores.
A ciência tenderia, assim, ainda que conscientemente o
negue, a uma sacralização da realidade. Não faz mais uso de
um transcendente, como o seu "God-term", e se encontra
prisioneira de um "God-term" imanente. Ainda que não o
desejo, funciona como religião. Parafraseando aquilo que
Carnus disse de Marx, sinto-me tentado a dizer que
destruídos os deuses transcendentes, a religião se
transforrnou em ciência.) Na vida intelectual das
sociedades", observa Leszek Kolakowski, "a maquinaria das
velhas crenças se enferruja, novos mitos vêm a existir,
criados em massa a partir do progresso técnico e das
realizações científicas".
Poderíamos concordar com Philip Rieff? Penso que sim. "A
ciência tem os seus próprios mistérios e entusiasmos; ligada
por um cordão umbilical à tecnologia, a ciência só se move
ao sabor do poder da sociedade. Pelo menos os clérigos têm
uma tradição de hostilidade ao estado que está por detrás
deles. De suas consolações transcendentais o sentimento
religioso tem pelo menos a possibilidade de criticar a ordem
social, enquanto que as energias científicas, por meio de
uma fácil transformação da objetividade que é necessária à
ciência em 'neutralidade-face-a-valores' ou 'independência-
de-valores', são facilmente recrutadas para servir aos
propósitos da sociedade, quaisquer que sejam eles".
Invertem-se as posições. A ciência tem negado
sistematicamente às representações religiosas o status de
conhecimento do real. E o faz de forma coerente com suas
pressuposições acerca do que é conhecer. As várias 'ciências'
da religião, que são elas senão, em última análise, esforço
para desvendar o significado real da religião, significado este
que se encontra em estruturas psíquicas sociais, econômicas,
etc., elas mesmas ocultas à consciência religiosa?
A religião é considerada "a priori", como pressuposto de
investigação, como uma linguagem que ignora sobre que ela
fala. Ora, a ciência exige que a linguagem, como expressão
de conhecimento, se "ajuste" à realidade experimentada, isto
é, que a cada sinal corresponda algo, no campo dos
fenômenos. Nas representações religiosas nada disso
encontramos. Os símbolos religiosos não são reduplicações
de fatos, mas antes construções da imaginação. E a
imaginação é uma negação do objeto imediatamente dado,
em nome das emoções e da vontade. Não podemos,
entretanto, nos deter no que foi dito. Como sugeriu S.
Kierkegaard, a significação tem a ver com o como que
acompanha silencioso o falar. É necessário perguntar,
como sugeriu Wittgenstein, acerca dos "acordos silen-
ciosos" que se encontram por detrás da linguagem. Sugeri-
mos que, na ciência, o acordo implica numa sacralização do
dado. Desejo sugerir que a linguagem religiosa, ao contrário,
contém sempre um protesto contra a sacralização do dado,
uma recusa em aceitar como realidade a ordem instaurada aí,
como "coisa" acessível à observação. E que, portanto, ela é
sempre uma crítica de uma ordem destituída de significação,
e um perguntar sobre uma outra ordem não dada, o não
extraível da experiência imediata. A religião é uma expressão
de esperança. Nas palavras de Ernst Bloch, "onde está a
esperança aí está a religião". Mas a esperança em nada se
assemelha às projeções futurológicas, peculiares à ciência,
que se assentam sobre o pressuposto metafísico da
uniformidade e continuidade do real, e da sua resistência à
criatividade e à liberdade — que a linguagem religiosa
preservou sob a forma mítica da crença no milagre. Como
Feuerbach observou, a crença no milagre é a crença no
poder da imaginação , ou seja, a esperança da emergência
do inesperado e do novo, a confiança no poder da vontade
— não apenas como epifenômeno de infra-estrutura
determinística — uma aspiração pela utopia que, segundo
Mannheim se transforma em comportamento crítico e
transformador.
Não posso apresentar tais reflexões sob a forma de con-
clusões. Na verdade elas não o são. São antes a forma como
certas "suspeitas" estão tomando corpo em minha mente.
Incapazes de ignorar as funções latentes da ciência e a sua
evidente contradição com as intenções conscientemente
confessadas pelos cientistas, estes têm procurado resolver o
problema transferindo a responsabilidade para a política.
"Nós, cientistas, produzimos conhecimentos puro, neutro. O
seu uso é algo que foge à nossa responsabilidade e função".
Sugiro que não é bem assim. A ciência se tornou
conservadora e comprometida com as tendências mais
desumanas de nossa civilização não em decorrência de
acidentes históricos, mas em decorrência da própria
metafísica da ciência.
É necessário entender o que a ciência diz, no seu silêncio,
ao falar sobre a religião. Pois este silêncio revela o espírito
daquela que fala. E é necessário entender os "acordos
silenciosos" que se escondem e se revelam na linguagem
religiosa, quando ela fala sobre "coisas" que não podemos
entender. Talvez, para surpresa nossa, perceberemos que o
"ópio" se revela como visão profética reprimida, pronta a
explodir. E talvez que a fria e objetiva linguagem da
ciência, tão coisa do seu status, se revele como a linguagem
de uma nova classe sacerdotal, tão bem descrita nas palavras
de Max Weber:

"Especialistas sem espírito, sensualistas sem coração.
Esta nulidade imagina haver atingido um nível de civilização
nunca dantes alcançado".


TECNOLOGIA E HUMANIZAÇÃO

"Como o dinossauro, tinha poder sem a habilidade de
mudar, força sem a capacidade de aprender."
Rollo May

"A maior invenção do século XIX", comenta Alfred N.
Whitehead, "foi a invenção de um método de invenção. Um
novo método entrou na vida. A fim de entendei nossa
época, podemos ignorar todos os detalhes da mudança, tais
como estradas de ferro, telégrafos, rádios, máquinas de
tecelagem, tintas sintéticas. Temos de nos concentrar no
método em si; foi esta a autêntica novidade que quebrou os
alicerces da velha civilização". Antes disto "o processo de
mudanças era vagaroso, inconsciente e inesperado. No
século XIX o processo se tornou rápido, consciente e
esperado".
As relações do homem com a natureza, até então no nível
de acaso, passam a se subordinar à intenção e ao projeto
humano. É óbvio que isto significa uma era radicalmente
nova na história, porque agora fa razão descobriu a maneira
de penetrar na natureza. Ela não mais contempla a ordem
natural apenas como objeto de apreciação estética, nem
simplesmente como um conjunto de exemplos particulares
de leis gerais. Agora o homem submete a natureza à sua
intencionalidade. São as tarefas históricas de controle e
domínio que irão determinar as linhas gerais do
desenvolvimento teórico. Não se trata, nas palavras de
Thomas Kuhn, de aprendizagem de acordo com um modelo
"evolução-a-partir-do-que-conhecemos" mas antes
"evolução-na-direção-daquilo-que-desejamos-conhecer".
No século XIX a subordinação da natureza aos propósitos
que a razão estabelece para si mesma se transforma em
método, em ciência.
É preciso que se entenda que o advento da tecnologia
conscientemente planificada não é, de forma alguma, a
simples aplicação prática de conhecimentos teóricos. Como
se, de repente, o homem tivesse descoberto a forma de
transformar em máquinas os conhecimentos armazenados.
A tecnologia é, em si, uma compreensão nova das condições
em que é possível o conhecimento científico: uma nova
epistemologia, uma nova teoria do conhecimento. Antes
disto o cientista era o observador e catalogador da natureza.
Desta tarefa de colheita de dados o homem abstrai e
generaliza, chegando à formulação de leis. Hume
demonstrou, entretanto, que não há garantias teóricas para
tal tipo de conhecimento, porque o homem não tem
instrumentos para provar que os mecanismos psicológicos
de associação de idéias — dos quais ele extrai as formulações
a que dá o nome de leis — expressem, realmente, a estrutura
e as relações do mundo objetivo. Kant apontou na mesma
direção quando indicou que os dados da observação, em si,
são cegos e totalmente desprovidos de qualquer sentido, se
não forem ativamente organizados e interpretados pela
razão, numa atividade em que ela não é mera máquina
fotográfica — reprodutora do objetivo — mas antes criadora,
construtora de um mundo. Ora, o que a tecnologia
pressupõe é que conhecemos em função da atividade da
razão que estabelece determinados projetos ou tarefas. Não
partimos assim de onde estamos, mas de onde queremos
chegar. E a validação do nosso conhecimento não se
encontra numa teoria epistemológica, mas antes na práxis,
na eficiência da técnica para transpor o espaço que separa a
situação-problema, onde nos encontramos, da situação-
resposta aonde desejamos chegar. A verdade é assim
funcional.
Por outro lado, a tecnologia vai oferecer as bases históricas
para uma filosofia do otimismo que crê que finalmente se
resolveu a milenar contradição entre um homem que teme e
um mundo que ameaça. O homem que teme se transforma
no homem que controla e domina. E o mundo que ameaça
passa a ser o mundo que serve. Isto significou, fundamental-
mente, a secularização da teologia da história da
cristandade, cujas linhas básicas haviam sido indicadas por
Agostinho. O seu problema era responder à perplexidade
que assolava Roma, ante a incapacidade da "polis" humana
para perpetuar-se na direção do futuro. O homem constrói,
mas aos poucos sua cidade eterna racha-se ante o impacto de
forças irracionais. Conflito entre "intencionalidade", razão
ativa, o homem no ato de construir, de um lado, e o destino,
o irracional, o imprevisível, do outro. Evidência do fracasso
do homem como "técnico" da mediação entre o seu
presente e o seu projeto. Agostinho oferece uma solução
pela qual a função de "técnico" é transferida das mãos do
homem para as mãos de Deus. O futuro lhe pertence e por
isto Ele é que reúne a sabedoria e o poder para fazer a
história chegar à solução das suas contradições. Os fracassos
da história humana simplesmente indicam o divórcio entre a
intencionalidade divina transcendente que orienta de fato a
história, e a intencionalidade humana imanente que,
realmente, não conduz a história para o seu futuro. O
"Logos" divino é, assim, o princípio de inteligibilidade e a
causa eficiente (a tecnologia!) da história e,
conseqüentemente, a única fonte de esperança para o
homem. Ora, o advento da tecnologia revelou ao homem
um novo "Logos" que resolva o problema da mediação entre
o seu presente e o seu futuro, "Logos" que reunia em si a
"sabedoria" do conhecimento teórico com o "poder" da
eficácia histórica. Agora o homem "deixa o céu para os anjos
e os pardais" e se volta para o Deus — "Logos" científico,
"que atenderá a todos os desejos que a natureza fora de nós
permitir". A escatologia se imanentiza e a tecnologia se
transforma em tecnologismo: o messianismo da técnica. É
lógico. Se a técnica é capaz de transformar em fato histórico
o projeto humano, um novo mundo pode então ser criado
— que não mais é simples natureza alienada, lá fora do
homem, em oposição a ele — que traz em si as marcas da
criatividade e liberdade humanas. Logicamente um mundo
mais humano, mais amigo. A tecnologia, assim, é a filha de
um homem adulto, que se decide a construir a história, e por
isto mesmo instrumento para sua libertação. Mark Twain
dirigiu umacarta de deliciosa candidez a Walt Whitman,
quando este fez setenta anos, descrevendo a esperança —
não, as certezas — que a tecnologia trazia. Após fazer um
catálogo de conquistas científicas, conclui com estas
palavras:
Sem dúvida tendes visto muito. . . Demorai porém um
pouco, porque o mais grandioso ainda está para vir. Esperai
trinta anos, e então olhai para a terra com olhos de ver!
Vereis maravilhas sobre maravilhas somadas àquelas a cujo
nascimento vindes assistindo; e em volta delas, claramente
visto, havereis de ver-lhe o formidável Resultado — o
homem quase atingindo enfim seu total desenvolvimento —
e continuando ainda a crescer, visivelmente crescendo, sob
vossos olhos. . . Esperai até verdes surgir essa grande figura,
e surpreendei o brilho remoto do sol sobre o seu lábaro;
então podereis partir satisfeito,' ciente de terdes visto aquele
para quem foi feita a terra, e com a certeza de que ele há de
proclamar que o trigo humano é mais importante do que o
humano joio, e passará a organizar os valores humanos nessa
base.
Quer queiramos ou não, somos filhos desta esperança. Os
desapontamentos que o século XX nos trouxe não apagaram
esta memória. Ao contrário, a esperança se renova com cada
nova conquista da técnica. Realmente, para a tecnologia
basta que se equacione um problema para que uma solução
seja formulada. No seu sentido mais lato ela é "know how"
— a transposição da situação-problema para a solução. A
tecnologia continua a afirmar, assim, que ela tem os
instrumentos de análise e sabe como solucionar os
problemas humanos. Se uma das contradições do nosso
mundo atual está em que dois terços da humanidade estão
num estado de permanente fome ou subalimentação, os
profetas do messianismo tecnológico anunciam que vivemos
"no limiar de uma nova era na história humana, uma era em
que uma abundância nunca dantes sonhada pode eliminar a
escassez e a necessidade de competir por recursos
escassos". "Nós podemos produzir o suficiente para que
todos partilhem dos produtos da terra". Uma ótica para se
entender a escassez de alimentos é o excesso de bocas. Daí a
fórmula: fome = explosão de população. Fórmula que pode
ser lida nos dois sentidos. A tecnologia declara que ela
possui a solução para tal problema. Pelos métodos de
controle de natalidade ela promete libertar o amor sexual do
medo da gravidez e da sobrecarga econômica que uma prole
numerosa traz consigo, possibilitando assim uma fase nova
de equilíbrio entre população e recursos naturais. Com a
solução do problema da fome e das conquistas da técnica
médica, o homem poderá não somente viver bem como
viver mais. E tudo isto ocorre num mundo que se modifica
tão rapidamente que as próprias condições estruturais se
transformam para que o homem possa viver mais humana-
mente. Até agora o homem tem experimentado a vida como
trabalho. Num futuro próximo ele poderá experimentá-la
como lazer. Se no passado a máquina era o instrumento para
a exploração do operário, no futuro ela permitirá o nasci-
mento do "homo ludens", o homem que brinca. E isto
porque, dizem os profetas do messianismo tecnológico, com
o advento da revolução cibernética que ligou o computador
à máquina, o papel humano no processo de produção fica
reduzido simplesmente à programação e à manutenção de
equipamento. "Haverá muito menos emprego e os empregos
restantes exigirão uma especialização cada vez mais alta:
mas, como resultado, poderemos pela primeira vez produzir
bens de consumo e serviços de tal forma que nenhuma
pessoa necessitará viver em pobreza e privação". "Não será
mais necessário forçar as pessoas a trabalhar naquilo que o
mercado define como importante; poderemos liberá-las para
que elas façam o que quiserem". Com esta independência do
processo de produção da colaboração da massa operária,
àqueles que uma vez foram operários terão de ser pagos para
não trabalhar. Isto é lógico — pois caso contrário eles se
tornariam numa classe revolucionária!... "Isto significa que
aqueles que desejassem trabalhar nos empregos definidos
pelo mercado poderiam fazê-lo e aqueles cujos talentos não
podem ser vendidos sem prostituir os seus dons... A divisão
tradicional entre trabalho e brinquedo, trabalho e lazer,
terminaria".
A conseqüência lógica da humanização das relações entre o
homem e o seu mundo seria a criação de uma nova psico-
logia. O homem experimentaria a transição do medo para a
confiança. "Uma psicologia de abundância", comenta Erich
Fromm, "produz iniciativa, fé na vida, solidariedade. O fato é
que a maioria dos homens funciona psicologicamente em
termos do fato da escassez exatamente no momento em que
o mundo industrial está entrando numa nova era de abun-
dância econômica. (Como conseqüência) do salário
garantido os problemas espirituais e religiosos da existência
humana se tornariam reais e imperativos. Até agora o
homem tem estado ocupado com o seu trabalho (ou muito
cansado depois dele) para se preocupar seriamente com
problemas tais como "Qual é o sentido da vida?", "Em que é
que eu creio?", "Quais são os meus valores?", "Quem sou
eu?", etc. Se o homem não tem mais o trabalho como sua
ocupação principal ele ou irá livremente se defrontar
seriamente com tais problemas, ou ficará meio louco de
tédio direto ou compensado. Deduz-se de tudo isto que a
abundância econômica e a libertação do medo de morrer de
fome marcariam a transição de uma sociedade pré-humana
para uma verdadeiramente humana". Fromm sugere que,
no final das contas, o mundo das estruturas e da organização,
que para os pensadores existencialistas era o grande inimigo
da subjetividade e da autenticidade, termina por criar as
condições para a libertação do homem com vistas à
descoberta de si mesmo. Conclusão semelhante a de
Teilhard de Chardin, que vê o mundo tecnológico como
expressão de "maior e mais complexa organização da huma-
nidade, um tipo de "mega-síntese", que corresponde a um
processo de espiritualização e de "maior intensificação da
temperatura psíquica da noosfera". Como fase do processo
evolutivo da história na direção do ponto ômega, a síntese
final do amor, as estruturas da tecnologia seriam o lado
externo da ascensão da realidade na direção de uma
consciência reflexiva, na direção do Espírito.
Outros sugerem, por outro lado, que o advento do mundo
tecnológico-científico oferece ao homem, finalmente, uma
possibilidade de se livrar das formas ideológicas de
pensamento. A ideologia, como pensamento condicionado
historicamente, refletindo as condições de espaço e tempo
em que se encontra o homem, sofreria de todas as distorções
de uma visão provinciana. Mas a ciência, por conter, no
próprio ato de equacionar os problemas, a sua solução,
dispensaria com a ideologia. Ela seria, realmente, o fim do
"know why" porque este se resolveria no nível do "know
how". A velha questão da relação entre fins e meios assume
agora uma nova forma: os meios (tecnologia) contêm e
resolvem o problema dos fins. Marshall McLuhan, no seu
livro Undestanding Media: The Extensions of Man, mostra
de forma muito convincente, a partir de uma análise da
estrutura e do funcionamento do mundo tecnológico que
neste, realmente, os fins não são os produtos criados pelo
sistema mas o sistema em si. Referindo-se especialmente aos
meios de comunicação ele diz: "a mensagem é o meio".
Afirmação que é válida para todo o sistema tecnológico e
que significa que o fim do sistema tecnológico não é algo
além dele mesmo, algo que ele possa produzir, mas as
próprias estruturas — comumente chamadas meios. Assim,
o fim dos "meios" de produção não é o produto que se
encontra no fim da linha de montagem, mas antes o próprio
funcionamento dos meios. Da mesma forma como o fim dos
meios de comunicação não é a mensagem que eles trans-
mitem de forma clara, mas o funcionamento daquela
estrutura toda de comunicação que unifica público e meios.
Assim, os fins são p funcionamento. Cria-se, desta forma,
um sistema global que funciona de acordo com uma lógica
de eficácia, ou seja, uma lógica de excelência funcional, na
qual produção, consumo e o homem se articulam num todo
que os unifica. O mundo se transforma em organização e as
formas utópicas — conforme Karl Manheim as entende — e
ideológicas de pensamento simplesmente desaparecem, por
nenhum papel poderem desempenhar num sistema
funcional.
Dentro destas pressuposições que, queiramos ou não, são
ideológicas, é fácil compreender por que é que a problemá-
tica do Terceiro Mundo tem sido interpretada em termos da
pergunta: Como efetuar a transição de uma sociedade feudal,
pré-tecnológica, para uma tecnologia? Os profetas do
tecnologismo têm indicado que o problema do Terceiro
Mundo é que suas culturas são, em grande medida, não
simplesmente pré-tecnológicas. Elas expressam uma
compreensão afuncional do mundo que ofereceria sérios
obstáculos à estrutura mental que o mundo tecnológico —
ou mundo moderno — requer. Assim, a transição de
subdesenvolvimento (como condição de sociedades pré e
antitécnica) para desenvolvimento significaria não somente
a implantação da estrutura funcional da tecnologia através de
um processo de industrialização, como também a destruição
de uma cultura que nem pode resistir nem pode subsistir
lado a lado com o estilo de vida funcional. O processo de
implantação de tecnologia teria como resultado a solução das
várias contradições fundamentais que caracterizam a nossa
vida. A primeira delas, que já indicamos, seria a contradição
entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. A
tecnologia tornaria esta distinção inadequada, porque um
sistema tecnológico global tomaria o lugar da contradição:
ambos os pólos se uniriam numa mesma estrutura de
funcionamento. A segunda delas seria a contradição entre as
elites tecnológicas, portadoras do estilo funcional de vida e
pensamento, se constituiriam na classe realmente
revolucionária. Os grupos marginalizados, ao contrário,
ainda prisioneiros de uma cultura e tradição antifuncionais,
seriam as classes mais conservadoras, pela impossibilidade de
se integrarem, funcionalmente, no novo mundo.
Permanecem assim, às margens, como peso morto. Surge
então a necessidade de controlar os marginalizados, em
nome do futuro. Torna-se necessário estabelecer um
período de transição controlado por uma "ética de ínterim",
no qual seria necessário estabelecer a ditadura dos
tecnocratas. Parece lógico: se se busca uma sociedade
tecnológica o período de transição tem de ser governado
pelos tecnocratas. Mas isto é feito na certeza de que a
presente contradição se resolverá. As crises de transição são,
assim, as dores de integração. A terceira das contradições,
entre a cidade e o campo, se resolveria naturalmente. E isto
porque o sistema tecnológico teria um movimento
amebóide particular que, por meio de uma expansão
progressiva, termina por incorporar e integrar dentro de si
aqueles setores que permaneciam marginalizados no
"ínterim". Evidentemente as revoluções chegariam ao seu
fim. Não mais seriam necessárias. Quando os "fins" são
imanentes nos "meios" não se necessita nenhuma
reestruturação radical da sociedade. Os progressos são feitos
por ajustamentos funcionais dentro do sistema.
O Marxismo, ao contrário, analisa a tecnologia com olhos
profundamente críticos. Examinando-a na sua função dentro
da história, descobre que ela não existe abstratamente; é
determinada pelas relações de produção dominantes dentro
de uma sociedade. Assim, ela não pode ser compreendida
simplesmente como ferramenta para dominar a natureza.
Mais do que isto: a máquina é um instrumento que perpetua
um mundo em que os donos dos meios de produção
exploram os deserdados. É esta ambivalência que cria a
contradição entre um mundo de excelência técnica que
extrai suas forças de um mundo em que não há liberdade.
Excelência e eficácia funcional nem requerem e nem criam
um mundo de liberdade. O inverso é que é verdadeiro. Se os
profetas do tecnologismo apontam para a tecnologia como a
solução das contradições da sociedade, Marx a acusa como
instrumento na perpetuação das mesmas.
Contradição entre o operário e o seu trabalho. Trabalho que
não é criatividade, mas desumanização A Trabalho que não
é, por isto mesmo, necessidade humana, mas simples meio
para que o operário possa conseguir o dinheiro para satis-
fazer aquilo que considera suas necessidades reais, sempre
fora de sua atividade de produção.
Contradição entre o homem e o seu mundo. Um sistema
tecnológico dirigido exclusivamente para o consumo cria
um mundo em queijo "ser" é destruído pelo "ter". O homem
atrofia todos os seus meios não possessivos de
relacionamento com o mundo, os seus sentidos.
Contradição entre o homem e o homem, derivada da
concentração de poder econômico nas mãos daqueles que
possuem os meios de produção.
Contradições internacionais, com a divisão do mundo em
nações que possuem os meios de produção e nações
operárias, colônias.
Vivemos assim numa pré-história em que a própria tec-
nologia está em cativeiro. Mas o Marxismo crê que, mesmo
sob esta condição, a tecnologia está gerando um novo
Sujeito histórico que haverá de libertar-se, e neste mesmo
ato libertará os meios de produção para sua função de
instrumentos da liberdade. Se para os profetas do
tecnologismo a sociedade tecnológica é o fim das
revoluções, para o Marxismo ela é o seu início.
No seu livro Christianity in World History A. Th. Van
Leeuwen oferece uma contribuição nesta linha. Ele constata
que historicamente a tecnologia tem criado o germe da
revolução. Introduzida nos países da Ásia e África como
instrumento dos propósitos exploradores da expansão
colonialista das nações industrializadas da Europa, ela criou
ali um fermento de movimento que terminou por explodir
as estruturas que os mantinham presos a um passado de
imobilidade. Van Leeuwen conclui que a tecnologia tem,
assim, um caráter his-torizante por criar uma consciência
que rejeita o passado e se sente livre para o futuro e a
experimentação.
Mas é necessário que se note o seguinte:, na perspectiva
marxista não é a tecnologia em si que é criticada. Tecnologia
permanece como meio, como instrumento que reflete as
relações sociais entre os homens. Libertada a sociedade, a
tecnologia se libertaria também. Transformar-se-ia na
ferramenta nas mãos de homens livres no ato de construção
da História que então se inicia. Por isto, o modelo da
sociedade pós-revolução é a sociedade de eficiência
funcional. Em relação à tecnologia em si não há muita
diferença. Se capitalistas crêem no seu messianismo, os
marxistas, na pior das hipóteses, crêem na sua neutralidade.
McLuhan, no livro que já mencionamos, cita o trecho do
discurso feito por alguém, na ocasião em que recebia um
grau honorário da Universidade de Notre Dame: "Acharflos
muito fácil fazer dos instrumentos tecnológicos bodes expia-
tórios para os pecados daqueles que os usam. Os produtos da
ciência moderna não são nem bons nem maus em si mes-
mos; é a maneira por que são usados que determina o seu
valor". O autor então comenta. "Esta é a voz do sonambulis-
mo que anda por aí. Imaginem que nós dissemos: "Uma
torta de maçã não é, em si mesma, nem boa nem má; é a
maneira como é usada que determina o seu valor". Ou... "as
armas de fogo não são em si mesmas nem boas nem más; é a
maneira como são usadas que determina o seu valor". Isto é,
se as balas atingem as pessoas certas, as armas de fogo são
boas. A declaração acima, McLuhan conclui, não resiste ao
menor exame, "porque ela ignora a natureza do instrumento
tecnológico". O que ele tem em mente é que pensar em
tecnologia em termos de meios, isto é, como simples
possibilidade de eficácia, a ser ativada a cada momento por
decisões livres e sempre novas do homem, é errado, porque
o que caracteriza a tecnologia é que os meios são, em si
mesmos, os fins. Como dissemos antes, é o funcionamento
dos meios, e não o seu produto, que realmente conta. Se isto
é verdade é necessário abandonar a idéia da neutralidade da
tecnologia — McLuhan e Marcuse concordam —, deixar de
encará-la através da ótica ideológica da sociedade em que ela
se encontra e inverter o processo todo. A tecnologia e a sua
necessidade de eficiência funcional seria a geradora de um
novo estilo de vida, de uma nova ideologia, de uma nova
forma de pensar que, em última instância, dissolveria (ainda
que de forma não confessada) as diferenças ideológicas que
historicamente dividem o mundo comunista do mundo
capitalista. O que é que isto significa, fundamentalmente?
Significa que não podemos falar em meios de produção. Se
tecnologia é idêntica a meios de produção, isto significa que
ela existe em função das necessidades humanas: ela
produziria aquilo de que o homem necessitaria. Entretanto,
porque o funcionamento do sistema se transformou em fim,
são as necessidades humanas que se transformaram em
meios. O sistema busca o que é funcional em relação a si
mesmo. As atividades humanas de produção e consumo não
são então aquelas que vão determinar o sistema. Ao
contrário, são as necessidades de funcionamento eficaz que
determinarão aquilo que deve ser produzido e aquilo que
deve ser consumido. Para o sistema o fator necessidade,
definido em termos humanos, é em si absolutamente sem
significação funcional alguma. Ele somente será funcional se
puder ser traduzido em termos de capacidade de comprar,
capacidade de consumir, capacidade para manter o sistema
em operação. O sistema tecnológico, portanto, funciona
somente em relação àqueles fatores que são funcionais em
relação a ele. Esta é a razão por que, nos países
subdesenvolvidos, o processo de industrialização ou
modernização simplesmente não sabe como equacionar o
tremendo problema humano das populações marginais. São
marginais porque não podem "funcionar". E logicamente o
sistema terá de selecionar sempre, em nome da eficácia
funcional, os setores que podem desempenhar as duas
únicas tarefas que ele prevê: produção e consumo. Nos
países desenvolvidos a obsolescência planificada é mais
funcional que produtos de valor permanente. Por isto
constroem-se automóveis que em cinco anos parecerão
peças de museu, forçando desta forma a compra de outros
modelos, que por sua vez ficarão logo velhos. É o
desperdício planificado que faz o sistema andar. De igual
forma a guerra é muito mais funcional que a paz. A este
respeito foi publicado nos Estados Unidos um livro
interessantíssimo: Report from the Irom Mountain. Trata-se
de uma coletânea de relatórios produzidos, de acordo com o
autor, por uma comissão especial encarregada de estudar o
seguinte problema: Quais seriam as novas estruturas que
deveriam ser construídas para que a sociedade americana
continue a funcionar eficazmente, caso o mundo venha a
experimentar um período de paz? A conclusão fundamental
é que, do ponto de vista da funcionalidade daquela sociedade
tecnológica, a guerra é muito mais eficaz que a paz. Ela
oferece os estímulos psicológicos que a paz não ofereceria e
proporciona as oportunidades para produção permanente no
setor bélico — setor que não requer mercado e cujos
produtos se tornam obsoletos com vertiginosa rapidez.
Todos os relatórios são apresentados dentro da mais fria
objetividade científica. O autor permanece incógnito. Pena,
porque há uma pergunta que todos levantam: "Isto é
verdade ou ficção?" Penso que este foi um dos objetivos do
autor: deixar o leitor suspenso justamente no ponto onde
ficção e realidade são indistinguíveis, onde o absurdo, do
ponto de vista humano e o lógico, do ponto de vista da
racionalidade funcional, se confundem.
Quando passamos a encarar a tecnologia como sistema,
torna-se clara a razão por que afirmamos que ela não pode
mais ser analisada como simples meio ou instrumento: as
exigências da eficácia funcional integram o homem dentro
de sua lógica. Natureza e homem se unificam numa mesma
organização. E o lugar do homem na sociedade — capitalista
ou comunista — se define de forma idêntica: funcionário do
sistemados valores sociais se definem como integração e
ajustamento e, conseqüentemente, a filosofia de educação
seleciona como sua diretriz fundamental a necessidade de
transformar a inteligência individual numa parte da estrutura
lógica do sistema todo. Nas palavras de Clark, a universidade
é "uma fábrica para produção de conhecimento e de
técnicos para servir as muitas burocracias da sociedade".
O próprio universo de pensamento passa a refletir a exi-
gência de adaptação. Larcuse se refere ao império de "um
positivismo que, na sua negação dos elementos
transcendentes da Razão, se constitui na expressão
correlativa do comportamento socialmente exigido. "E ele
indica mais que, por isto mesmo, tanto no Oeste como no
Leste "idéias não-operacionais", isto é, que não refletem o
funcionamento e a lógica do sistema, são consideradas como
"subversivas". Sua conclusão é que esta insistência em
"conceitos operacionais e funcionais milita contra todos os
esforços para libertar o pensamento e o comportamento do
domínio da realidade dada, para aquelas alternativas que,
dentro do seu domínio, estão suprimidas.
O cientista protege-se dentro do seu mundo supostamente
objetivo, descritivo de funções e comportamentos, em
nome da ciência, ignorando que tal opção é, em si, reflexo
do mundo funcional, organização, em que vive. Paul
Goodman observa com muita perspicácia que "a explicação
mais simples da proposição de que "hoje há mais cientistas
que durante todo o resto da história" está em que os
interesses econômicos conseguiram colocar também a
ciência a seu serviço. Não é que a nossa sociedade tenha
chegado a ser uma sociedade mais científica, mas que o
cientista chegou a ser uma das funções mais exploráveis".
Poderíamos sugerir então a hipótese de que a suposta
"objetividade" do cientista nada mais é que pensamento que
ainda não passou pela psicanálise, pensamento que reprime a
memória da sua origem real... a afirmação de que a ideologia
chegou ao fim na sociedade tecnológica significa, portanto,
(não uma transição para uma sociedade científica, mas antes
que a ciência, sob a exigência da funcionalidade, é forçada a
abdicar de suas funções críticas. "A maioria dos nossos
cientistas políticos, sociólogos, economistas e historiadores
projeta um modelo do mundo em que as normas de
comportamento são a estabilidade, o ajustamento e a anuên-
cia a um status quo controlado por uma elite", comenta B.
Du Boff. "Aos seus olhos qualquer tipo de conflito social
pode ser resolvido por administradores ou técnicos. Técnica
e não ideologia é o que é necessário. Na realidade este é o
fim da ideologia. O que isto realmente representa é o fim da
história". O cientista é então colocado numa estranha
posição. Se sua função é a análise e solução de problemas
funcionais, o seu método de operação não requer que ele
seja informado dos propósitos históricos e políticos das
pesquisas em que ele trabalha. Ocorre então,
freqüentemente, o seguinte fenômeno curioso: por medidas
de segurança militar, os ideólogos do sistema fracionam os
projetos científicos em tantas partes funcionais quantas
possíveis, entregando sua solução a grupos separados. O
cientista trabalha, desta forma, numa total ignorância do
"para que" do seu projeto. De fato: no seu campo de trabalho
a ideologia não é encontrada. Não porque ela tenha sido
eliminada pela crítica científica, mas porque o cientista se
recusa a tomar consciência das determinantes ideológicas
reais que regem o seu funcionamento, como parte de um
sistema total.
O que caracteriza este padrão de conformidade na sociedade
tecnológica é que ele não é imposto pela violência aberta. Já
em 1953, portanto cerca de dez anos antes da crítica da
sociedade tecnológica do Oeste e do Leste articulada por
Marcuse, Paul Tillich fazia o seguinte comentário:

A sociedade tecnológica ocidental criou métodos para
ajustar as pessoas às suas exigências de produção e consumo
que são menos brutais, mas que, a longo termo, são mais
eficazes que a repressão totalitária. Eles despersonalizam não
porque exijam mas porque eles oferecem, dão, exatamente
aquelas coisas que tornam supérflua a criatividade humana.
Os elementos críticos são conquistados não pela repressão
aberta mas pela domesticação. A relação funcional não causa
dor mas antes prazer: ela é unia vida "confortável, e por que
não dizer mesmo 'boa'"? Pelo menos é muito melhor do que
antes. Como se opor a um sistema que arrancou o homem
da penúria da vida do campo e o levou para a cidade? Como
se opor a um sistema que lhe permite "ter" — se não agora,
pelo menos como promessa? Pela sua capacidade de
produzir, a sociedade tecnológica integra funcionalmente
em si aqueles que têm capacidade para consumir. Aquela
esperança que Marx tinha de que dos meios de produção
sairia uma consciência revolucionária, dissolve-se. Agora "os
consumidores se unem de forma mais ou menos agradável
aos produtores e, através destes últimos, ao todo..." Há o
perigo de uma ilusão de ótica: pensar que a dissolução da
crítica se deve à solução das contradições da sociedade. Se
assim fosse, a sociedade tecnológica seria a sociedade
pacificada, humana. O fato, entretanto, é que esta sociedade
consegue isto não por se submeter à crítica dos elementos
transcendentes da razão, mas, ao contrário, por reduzir a
razão a uma simples função de suas estruturas. Não é que a
sociedade seja criada à imagem e semelhança do homem,
mas que ela consegue criar um homem à sua imagem e
semelhança. Se a primeira alternativa fosse a verdadeira,
veríamos eficácia funcional caminhando lado a lado com
participação humana; na realidade, como uma função desta.
Acontece, na verdade, exatamente o contrário: a parti-
cipação humana crítica é substituída pela funcionalidade.
Elas não se relacionam dialeticamente. Excluem-se.
Defrontamo-nos, assim com uma sociedade em que as
necessidades humanas não determinam o funcionamento do
sistema (isto o haveria de forçar a permanecer como "meio
de produção"). São as necessidades funcionais do sistema —
agora promovidas afins em si — que irão determinar e criar
novas necessidades humanas. Marcuse observa com muita
propriedade que nesta sociedade "o complexo produtivo
tende a se tornar totalitário, pois que ele determina não
apenas os empregos, técnicas e atitudes necessárias, como
também as necessidades e aspirações individuais". Ao invés
de as necessidades humanas definirem as necessidades de
produção — o que seria a norma para uma sociedade
verdadeiramente humana — são as necessidades do
funcionamento do sistema que irão criar as "falsas necessida-
des" de consumo... E o sistema criou o homem à sua
imagem e semelhança e lhe disse: Não terás outros deuses
diante de mim!
Logicamente, como já indicamos atrás, participação é
substituída por funcionamento: ser em função de.
Etimologicamente participação significa ser parte de. Neste
sentido é possível participar da sociedade tecnológica,
porque a parte se subordina ao todo. Entretanto, participação
como relação dialética entre o homem e o todo, relação em
que o homem submete o todo à sua crítica, sentindo-se,
portanto, livre para transformá-lo, está ausente. Ausente por
ser desnecessária. Desnecessária por não ser funcional. Já
indicamos atrás dois setores onde se evidencia o declínio de
participação com o aumento da eficiência. Primeiro, o setor
da educação, na medida em que ela faz; de sua filosofia a
produção de técnicos, isto é, a criação de inteligência
funcional. O segundo setor, diretamente relacionado com
este, é a atividade científica, na medida em que ela pretende
ser raramente descritiva, funcional, pós-ideológica, objetiva.
Uma terceira área é a das comunicações. Sua filosofía,
segundo a análise de McLuhan, seria que o que é importante
é estar em sintonia com o sistema. As informações, imagens,
arte, etc., ganham significação não de seu próprio conteúdo,
mas do fato de que são mediados, patrocinados, por um
sistema global. "Se os meios de comunicação misturam
harmoniosamente e, freqüentemente, de forma
imperceptível, arte, política, religião e filosofia com
anúncios, eles comunicam todos estes reinos da cultura sob
um denominador comum: a forma de mercadoria". "Isto
significa que estes conteúdos se tornam "mercadorias"
culturais, vendidas e compradas depois de a paixão que
determinou sua criação haver sido eliminada. Deixam de ser
uma questão de ser ou não ser para a pessoa. Tornam-se em
matéria para diversão, sensação, sentimentalidade,
aprendizagem, armas para competição e prestígio social, e
perdem, desta forma, o poder de mediar um centro
espiritual à pessoa. Perdem seus perigos potenciais para a
conformidade que se requer para o funcionamento da
sociedade tecnológica. ! Realmente não se trata de meios de
comunicação, porque toda comunicação verdadeira tem
uma dimensão crítica. São segundo Ellul, meios de
"diversão" — no seu sentido original: levar a razão a não se
concentrar nos problemas reais — uma forma de
entorpecente, de ópio do povo. O quarto setor que chama a
nossa atenção está apenas se anunciando nas sociedades já
transformadas em sistema tecnológico. Nos países
subdesenvolvidos esta tendência assume um aspecto um
pouco diferente. Trata-se da promessa de salário garantido a
que já nos referimos. Segundo a interpretação dos profetas
do tecnologismo isto seria uma nova fase na história da
libertação do homem: libertação do trabalho para o lazer. Os
problemas técnicos ficariam nas mãos de um pequeno grupo
— uma elite tecnocrática — enquanto o povo estaria livre
para criar! Parece-nos, entretanto, que isto aponta para a
tendência da dinâmica da sociedade tecnológica: fim de
participação. Realiza-se o sonho dos proprietários:
finalmente, estão livres dos operários. Agora o operário —
como possível causa decertas disfuncionalidades no sistema
— é transformado simplesmente em mercado. Completam-
se os ajustamentos para a máxima eficácia funcional das
estruturas tecnológicas. E a ditadura dos tecnocratas, que nos
países subdesenvolvidos faz parte de uma "ética de ínterim",
aqui se apresenta como a fase final da historia, como a
resolução definitiva de suas contradições. Realiza-se
finalmente o ideal de Platão do Rei-Filósofo.
O que muitos estão sentindo, entretanto, é que não temos
aqui a solução das contradições históricas: vivemos no fim
da própria história. Esta é a nota mais marcante no protesto
estudantil nos países de tecnologia avançada. Protestam
contra um sistema que exige a eliminação da criatividade por
operar somente em termos de eficiência funcional.
Protestam contra uma universidade que faz parte de tal
estrutura e contra os burocratas que a fazem funcionar. "A
concepção que os burocratas têm", comenta Mário Sávio, "é
que a historia, na realidade, chegou ao fim".
Com isto Henri Lefebvre concorda ao indicar que: com o
reino da pura tecnicidade e dos tecnocratas, com a
cibernetização da sociedade, não teríamos mais futuro no
sentido histórico, nem temporalidade no sentido habitual. O
passado se reduz à memória: ao armazenamento das
combinações utilizadas. É um passado simultâneo e sem
historiai'. O futuro e o possível se reduzem às combinações
não empregadas, em número sempre finito. O futuro
informacional e cibernético é um futuro sem história.
Entraríamos numa espécie de eterno presente,
provavelmente muito aborrecido, o das máquinas, das
combinações, dos arranjos e permutações dos elementos
dados. Não haveria outros acontecimentos senão às introdu-
ções de técnicas novas..." O homem histórico, criador, se
resolve no homem econômico, funcional.
Gostaria de resumir as conclusões em três teses.
1) A tecnologia não é neutra. Não é meio. É fim. É sistema.
Como tal toma o critério de eficiência funcional como sua
norma básica. A lógica da funcionalidade — ou melhor, a
ideologia da funcionalidade — cria um novo homem: o
homem "função" do sistema. A ideologia da funcionalidade
determina a seguinte relação entre o sistema e o humano: a
eficácia funcional do sistema é inversamente proporcional à
participação crítica do homem. Como conseqüência o
sistema tecnológico tende a ser um sistema de dominação
em que a história chega ao seu fim.
2) Por isto mesmo é necessário reformular a filosofia do
desenvolvimento. Tanto uma filosofia capitalista como uma
marxista parecem eleger a "tecnologização" da sociedade
como seu propósito primário. É por isto que Marcuse indica
as similaridades entre o desenvolvimento do capitalismo e
do comunismo: as diferenças ideológicas sucumbem ante os
imperativos das exigências da excelência funcional.
3) Temos, portanto, de examinar outras alternativas para as
sociedades que ainda não foram capturadas pela estrutura
funcional do sistema. E aqui duas coisas me parecem
prioritárias:
a) A reformulação da relação entre eficiência e participação,
e a criação de relações de participação. É necessário que nos
lembremos que a sociedade latino-americana,
tradicionalmente feudal, não dava lugar à participação
crítica. A tarefa que temos diante de nós não é a transição de
uma sociedade não-participatória-afuncional para uma não-
participatória-funcional, mas fundamentalmente para uma
sociedade em que as exigências de eficácia estejam
subordinadas e orientadas pelas relações de participação.
b) É necessário que se recupere aquilo que Mannheim
chama "pensamento utópico", isto é, pensamento que se
move fora da lógica da sociedade presente. Ele define
pensamento utópico citando Droysen:

Os pensamentos constituem a crítica do que é e, no entanto,
não é como deveria ser. Na medida em que eles são capazes
de arrastar as condições para o seu nível, expandindo-se
depois e tornando-se rígidos de acordo com o costume, faz-
se necessária uma nova crítica e assim indefinidamente. A
tarefa do homem (portanto) consiste em fazer com que
certas condições surjam nos novos pensamentos e nos pen-
samentos novas condições.
As exigências funcionais que o sistema tecnológico impõe
sobre a razão implicam exatamente no fim do pensamento
utópico, isto é, pensamento que mantém a sociedade aberta
para o futuro. Mannheim anteviu esta possibilidade:

É possível, diz ele, que no juturo, num mundo em que
nunca haja nada de novo, em que tudo esteja terminado e
cada momento seja uma repetição do passado (isto é, o
mundo cibernético descrito por Lefebvre), possa existir uma
condição em que o pensamento seja completamente
desprovido de elementos ideológicos e utópicos. Mas esta
eliminação completa dos elementos transcendentes à
realidade, em nosso mundo, conduz a um "objetivismo" que
em última análise significaria a decomposição da vontade
humana. A desaparição da utopia traz consigo uma
estagnação em que o próprio homem se transforma em
coisa. Teríamos de enfrentar o maior paradoxo imaginável,
ou seja, o de que o homem que, tendo atingido o mais alto
grau de domínio racional da existência, vê-se abandonado
por todo ideal, tornando-se simples joguete de impulsos.
Assim, ao cabo de um desenvolvimento longo e tortuoso,
mas heróico, exatamente no apogeu da consciência, quando
a história deixa de ser destino cego e vai-se tornando cada
vez mais uma criação humana, com o abandono das utopias,
o homem perderia a vontade de plasmar a história e, com
ela, a capacidade de compreendê-la.

Parece que nossa situação é tal que todos os horizontes do
pensamento utópico estão tomados pelo ideal da sociedade
tecnológica e a necessidade de modernização. É preciso, ao
contrário, pensar uma sociedade em que a participação e a
criatividade do homem sejam as mãos que desmantelam a
tecnologia como sistema para imediatamente depois
empunhá-la como ferramenta. Este pode parecer um ideal
utópico impossível. Mas somente pensando o impossível, o
disfuncional, seremos capazes de nos libertar do fim da
história. Não podemos esquecer-nos de que "as utopias
amiúde não passam de verdades prematuras" (Lamartine).

A METAMORFOSE DA CONSCIÊNCIA:
CONVERSÃO

"Sim", ele disse mansamente depois de uma longa pausa.
"Um de nós tem de mudar, e depressa. Um de nós tem de
aprender que a morte é a caçadora, e que ela se encontra
sempre ao nosso lado esquerdo. Um de nós tem de pedir a
sabedoria da morte e por um fim à maldita mesquinharia que
mora nos homens que vivem a sua vida como se a morte
nunca fosse tocá-los..."
D. Juan, o feiticeiro Iaqui.

I. O MOMENTO RELIGIOSO DA
CONSCIÊNCIA

As origens históricas da religião estão cobertas por um denso
mistério. Não sabemos nem onde e nem quando o homem
teve, pela primeira vez, uma experiência religiosa. Cremos,
entretanto, que a primeira experiência religiosa marca a
transição do macaco nu para o homem. Surgiu, naquele
momento, de forma inexplicável, uma nova maneira de ser
perante o mundo, um novo tipo de consciência.
Diferentemente do animal que aceita a natureza como o seu
limite e adapta-se a ela, o homem passa a rejeitá-la como
estrutura final em cuja interioridade se encontra preso. O
"princípio do prazer" torna-se mais ambicioso. É promovido
à condição de tendência e horizonte da realidade. Assume o
"status de paixão infinita" (Kierkegaard), de "ultimate
concern" (Tillich), de norma final diante da qual a própria
realidade deve se curvar. Uma nova lógica de vida emerge.
A facilidade bruta do mundo imediatamente dado é rejeitada
e a imaginação passa a se constituir na tela que representa,
para o homem, o mundo que é objeto de sua busca.
Muito embora este momento primordial de transição escape
ao nosso conhecimento histórico, ele se repete diante dos
nossos olhos na experiência da conversão. A conversão é o
momento religioso da consciência.(Freqüentemente a
análise científica da religião prefere tomar como seu objeto
as suas formas institucionais ou suas cristalizações
dogmáticas. Entretanto, freqüentemente estas nada mais são
que monumentos de uma experiência esquecida! E quando
isto ocorre o qualificativo "religioso" é puro engano, pois tais
objetivações institucionais e intelectuais já não exercem uma
função religiosa.
Na experiência da conversão, entretanto, contemplamos a
religião no seu momento de nascimento. Aqui a
subjetividade está envolvida de forma total e irrestrita. Bem
que poderíamos denominar a conversão de metamorfose da
subjetividade. Estruturas inteiras caem por terra. Centros
emocionais se deslocam. As zonas quentes da personalidade
e as suas matrizes emocionais deixam de sê-lo. E ao mesmo
tempo novas emoções passam a se constituir no objeto da
paixão infinita do homem, enquanto um novo mundo é
construído pela subjetividade. Ser convertido é morrer para
nascer de novo. "Metanóia": experimentar a dissolução das
estruturas normativas da razão, para logo em seguida ver
surgir uma nova razão, organizada segundo categorias
radicalmente diferentes. À primeira vista isto pode parecer
muito estranho. Não estamos acostumados a pensar nà razão
como algo que se faz e desfaz. Portanto, eu gostaria de fazer
um desvio por outros caminhos, antes de iniciar
propriamente a descrição da conversão, pois penso que isto
nos ajudaria.

II. MODELOS AUXILIARES PARA A
COMPREENSÃO DO MOMENTO RELIGIOSO
DA CONSCIÊNCIA

a) A experiência do belo
Pensemos um pouco sobre a essência da experiência esté-
tica. Este é um modelo que poderá nos esclarecer. A
experiência religiosa e a estética estão muito próximas.
Ambas têm a ver com a imaginação. E como Freud muito
bem indicou, a arte e a religião são expressões de uma
mesma dinâmica emocional.
Qual é a essência da experiência estética? Por que nos
comovemos, seja diante de uma noite enluarada, de um
jardim, de um poema, de um quadro ou de uma peça
musical? O pianista começa a tocar. Ê uma sonata de Mozart.
Tão simples, tão curta, tão completa. Sentimos que é bela.
Mas não sabemos por quê. Nossa experiência não pode ser
reduzida à linguagem. O belo é inefável. Sim, é verdade que
podemos dizer: "Como é bela!" Mas esta afirmação é incapaz
de comunicar as emoções que sentimos. Ela sugere, ao nosso
interlocutor, que estamos experimentando certos
sentimentos ao ouvir aquela peça musical. Mas o como, a
qualidade da subjetividade naquele momento não pode ser
colocado em palavras. "Para apontar para a lua necessitamos
de um dedo. Mas ai daquele que tomar o dedo pela lua".
Esta é uma analogia da filosofia zen que se aplica
perfeitamente ao nosso caso. Quando nos encontramos no
domínio da estética a linguagem pode apontar e sugerir, mas
ela é importante para conter e comunicar.
Que é a beleza? De onde vem ela?
Peçamos a um físico que nos ajude. Afinal de contas, ele é
um especialista em sons. Com o auxílio de seu aparato teó-
rico desnudará o som das vestes psíquicas com que ele se
apresenta à consciência. Sons são vibrações, dotadas de fre-
qüência e intensidade. Operando sob a pressuposição de que
"todo conhecimento que não pode ser expresso em números
é de qualidade pobre e insatisfatória" (Lord Kelvin), ele
transformará o som em símbolos matemáticos. Através de
gráficos será capaz de representar não só a estrutura da obra
como também as peculiaridades da interpretação do artista.
Então lhe perguntamos: "E a beleza? O que nos importa é a
experiência estética que esta música nos produziu. O que é
ela? Como se apresenta sob seus instrumentos de análise
objetiva?" Não haverá resposta. O belo não é uma das
propriedades físicas do objeto. Não é uma qualidade a mais
que encontramos ao lado da freqüência e intensidade das
vibrações. Na verdade, o conhecimento do som, de uma
perspectiva física, em nada ajuda a experiência estética. Não
me consta que os físicos tenham uma sensibilidade especial
para o belo. E nem que 'Mozart tivesse tido vislumbres
científicos ao trabalhar os sons. Se o belo fosse uma
propriedade do objeto, então todos, de forma idêntica,
teriam de senti-lo. Mas isto não acontece. Se o belo não é
uma qualidade do objeto, será ele uma condição da
subjetividade pura? Se assim fosse, poderíamos imaginar o
grande absurdo do amante da música deixando de ir para
sempre a concertos e se contentando com a memória de
seus êxtases estéticos passados. Mas isto não ocorre. A
consciência só sente o belo quando tocada por algo que lhe
vem de fora. O prazer estético é uma resposta emocional de
um sujeito a um objeto. O belo não se encontra, assim, nem
no sujeito e nem no objeto, mas no momento em que a
dicotomia que os separava se dissolve. No êxtase estético
sujeito e objeto se unificam numa mesma estrutura
significativa.
Que queremos dizer então, quando exclamamos: "Como é
bela esta sonata!"? Estamos afirmando: "Sinto, neste
momento, um prazer que não pode ser traduzido em
palavras. É inefável. Meu eu encontrou, ainda que num
momento fugaz, um objeto que corresponde à sua busca.
Imerso no cotidiano, defronto-me com uma realidade cruel,
grotesca, entretanto, ainda que por breves momentos, todas
essas limitações foram abolidas. Sou envolvido por um
objeto, e eu o envolvo. Eu e o mundo somos um". Revela-se
o Espírito: esta síntese imprevisível e milagrosa que nos
surpreende, dissolvendo as tensões da rotina social, e
recuperando a unidade paradisíaca perdida. Esta é a razão
por que a experiência estética continua a fascinar o homem,
num mundo que mede todas as coisas em termos de
produção. Termina a sonata. Nada ficou. Nada produziu.
Nenhum vestígio objetivo de sua passagem. Desvanece-se
no ar. Não produz coisas, mas produz a mais alta forma de
prazer: o prazer do sentido.

b) O brinquedo
Tomemos um outro modelo, o brinquedo, a experiência
lúdica muito se parece com a estética."; É significativo que
certas línguas usem um mesmo verbo para se referir a ambas
(play, no inglês; spielen, no alemão). Huizinga chama a
nossa atenção para "a qualidade profundamente estética" do
brinquedo. Como na experiência do belo, que não é uma
simples resposta fisiológica a um estímulo físico, também no
brinquedo o prazer que nele encontramos tem a ver com
"algo que transcende as necessidades imediatas da vida e dá
sentido à ação. Todo brinquedo significa algo. O simples fato
de que o brinquedo tem um sentido implica uma qualidade
não material em sua própria natureza ". "Do ponto de vista
de um mundo totalmente determinado pela operação de
forças cegas", continua ele "o brinquedo seria totalmente
supérfluo" (como a arte). "O brinquedo só se torna possível,
pensável e compreensível quando um influxo de mente
rompe o determinismo absoluto do cosmo". "A própria
existência do brinquedo confirma a natureza supralógica da
situação humana". Como a arte, o brinquedo não produz
coisa alguma. Só o prazer. No brinquedo a imaginação cria
um mundo segundo a lógica do princípio do prazer. Como
na música. Mas enquanto na música o corpo é levado a uma
atitude receptiva, contemplativa, mística, no brinquedo
somente há prazer se o homem se envolver nele de corpo e
alma. Mas mesmo esta distinção é precária, pois ela não se
aplicaria à dança, por exemplo, onde expressão artística e
lúdica se confundem. O corpo dança os seus sentimentos, e
neste dançar transcende as limitações que lhe são impostas
pelas rotinas do cotidiano.

c) Além da dicotomia objetividade-subjetividade
O prazer da experiência lúdica e da experiência estética não
pode ser analisado como se fosse um objeto. Ele não é nem
efeito de um objeto e nem produto interno da consciência.
Ele tem a ver, ao contrário, com "algo" que se constitui
entre ambos. Como Martin Buber observa, "não é o objeto
que está à frente [do homem], mas a maneira pela qual o
homem se relaciona com este objeto" que determina o
mundo humano." Assim, é necessário suspender por um
momento a nossa maneira ordinária de fazer distinções e
focalizar a nossa atenção não nos objetos isolados e suas
relações causais mas sobre as relações entre coisas, o
dazwischen, o 'ali, na esfera do entre'. No princípio é a
relação, e somente mais tarde a relação é partida entre o Eu
e a coisa. O mundo humano não é constituído por uma
infinidade de objetos e pessoas — soltos no espaço —
átomos caindo no vazio. Estes elementos nada mais são que
a matéria-prima que o Espírito toma para organizar um todo
significativo .Mas esta ordem não existe como um dado do
mundo natural. Ela é uma criação da intenção, da vontade,
da emoção, em resumo, da imaginação.
d) Êxtases do cotidiano

A experiência estética e a lúdica são êxtases, suspensões da
vida cotidiana. Etimologicamente, êxtase significa "estar fora
de". Não é exatamente isto que ocorre quando entramos no
mundo da beleza? Vai iniciar-se a sinfonia. Silêncio. Vozes e
ruídos cessam. Cada intromissão do cotidiano é uma dis-
tração e uma profanação. Apagam-se as luzes. É necessário
que a presença do mundo seja reduzida a um mínimo.
Iniciam-se os primeiros acordes. A mágica ocorre. O
cotidiano é colocado entre parênteses e suspenso. Suas
regras são abolidas. Por um momento o princípio do prazer
coloca diante de nós a sua criação que nos envolve
carinhosamente. O mundo real parou. Desfez-se. Do seu
ventre estéril surge uma nova realidade com que nos
embriagamos misticamente.
Entretanto, não nos abandona a consciência do caráter
efêmero do belo que amamos. Nossos pés continuam na
terra. O êxtase estético (como o lúdico) é uma suspensão
provisória do princípio da realidade. Trata-se de parênteses
que o cotidiano abre dentro de si, para permitir que o
homem desfrute dos impulsos eróticos que permanecem
reprimidos no dia-a-dia. Momentos de sublimação: ocorrem
em meio da realidade social, e por oferecer canais de
expressão para o libido com ela irreconciliada, contribuem
para a sua manutenção. Acabada a música, terminado o
brinquedo, acordamos do sonho. Baixamos do mundo
mágico, dos papéis que assumimos, da hipocrisia, da coerção
social e do medo. Este é o mundo real. A ele pertencemos, e
com nossas mãos contribuímos para a sua preservação. A
mente voou por momentos. Mas suas asas eram imaginárias.
Sonhos. Exceções permitidas. O cotidiano não pode ser
vivido como uma continuação dos êxtases estético e lúdico.
Estes permanecem, com a imaginação, confinados à espera
do irreal.
Suponhamos agora, apenas como uma hipótese provisória,
que a experiência de êxtase seja de tal amplitude que dissolva
a realidade mesma em que nos encontramos. Suponhamos
que o parêntese seja tão vasto que acabe por colocar entre
parênteses a própria realidade em cuja interioridade deveria
se manter. Suponhamos que o êxtase interno sé transforme
em abismo sem fundo dentro do qual o real se precipita.
Suponhamos que a suspensão da realidade, ao invés de se
manter dentro do espaço e do tempo definidos pelo
cotidiano, seja de tal magnitude que engula o próprio
cotidiano. Se isto, acontecer, os fundamentos da
experiência, as estruturas racionais que ele criou e de que
depende, se dissolveriam. O eu se descobriria,
repentinamente, solto no ar, sem terra firme para onde
retornar. A realidade deixaria de ser realidade e se trans-
formaria em irreal. Desejo sugerir que esta experiência é o
primeiro momento do momento religioso da consciência.
Mas para que possamos dar algum fundamento a esta
sugestão é necessário mostrar que nossa hipótese provisória
é mais que um artifício retórico e que ela aponta para uma
possibilidade onipresente em todo o campo da experiência
humana.

III. O COTIDIANO

a) Rotinas práticas

A vida cotidiana é constituída por sistemas de rotinas de
interação entre pessoas, coisas e instituições. Interação,
como o nome indica, tem a ver com ações recíprocas: o que
fazemos com as coisas e o que elas fazem conosco, o que
fazemos com as pessoas e o que elas fazem conosco, o que
fazemos com as instituições e o que elas fazem conosco.
Mundo essencialmente prático, definido pelas relações de
uso e programado segundo uma lógica estrutural. Apenas
uma ilustração. Se estamos viajando e nosso companheiro,
estranho, nos pergunta, como início de conversa: "O que é o
Senhor?" Nossa resposta: "Sou uma pessoa estranha. Não me
entendo a mim mesmo. Meio neurótica. Freqüentemente
tenho pesadelos. Gosto de guiar em alta velocidade porque
isto me dá uma sensação de liberdade. Gosto de orquídeas e
tenho dois cachorros. Sou louco por Scarlatti. E além disto
tenho medo de morrer". É muito provável que nosso amigo
se encolhesse assustado e que a conversa parasse aí. Não era
esta a resposta que ele esperava. Ah! Mas que grande papo
teria começado se disséssemos: "Sou professor" ou "Sou
agente funerário". Qual o problema na primeira resposta?
Muito embora ela fosse a mais honesta e autêntica, ela não
contou ao meu vizinho o que faço. Não me definiu como
papel, como conjunto de comportamentos práticos ajustados
ao sistema social. No mundo do cotidiano somos o que
fazemos. Papéis são uniformes que usamos. E freqüen-
temente papéis chegam a definir a nossa identidade. É
necessário saber o papel do outro para saber que tipo de
comportamento devo adotar. Para reis, "Vossa Majestade",
para altos dignitários, "Vossa Excelência", para garçons,
"Ei..." Papéis simplificam o comportamento, por
simplificar o outro. Livram-nos do problema de encontrar
cada pessoa como um Tu único e reduzem os homens a
tipos, havendo para cada um deles uma receita precisa
acerca do que fazer. Isto é válido para toda a realidade social.
As rotinas sociais são, na realidade,, um conjunto de receitas
que programam nosso agir e pensar. Há receitas para todas as
coisas, que vão desde como pegar no garfo até como morrer
com dignidade. Esta é uma realidade objetiva, rotineira,
previsível, resistente a mudanças, e que pode ser estudada
"como se fosse uma coisa" (Durkheim).

b) Repetição, Lógica, Ontologia

Desdmond Morris faz uma fascinante observação que
relaciona o efeito embalador e hipnótico do ritmo binário)—
como, por exemplo, quando ninamos uma criança — com a
experiência intra-uterina de segurança, que foi sempre
acompanhada pelo bater binário do coração da mãe.
Extrapolando para uma área mais ampla, ele afirma: Quanto
mais uma fórmula estereotipada for repetida, tanto mais ela
se tornará como um pulsar do coração materno,
artificialmente produzido. A sua significação amistosa
crescerá e crescerá até tornar-se virtualmente irreversível.
O sucesso das rotinas sociais tem efeito idêntico. Como o
coração da mãe, elas nos garantem que o mundo está sob
controle. Na medida em que o cotidiano se repete
indefinidamente, sem interrupções, o homem pode estar
tranqüilo, protegido no quente e confortante ventre
materno.
Como resultado deste processo, a consciência passa a
identificar o prático e funcional com o verdadeiro. A
repetição cria a lógica. E aquilo que é indefinidamente
repetido, sempre com os mesmos resultados práticos, torna-
se ontologia. Como Berger e Luckmann observam, na
medida em que o meu conhecimento funciona de forma
satisfatória sinto-me inclinado a suspender minhas dúvidas a
seu respeito
As rotinas sociais transformam-se então no modelo segundo
o qual o homem organiza a sua visão de mundo. Ora, rotinas
sociais são sedimentações de experiências passadas. Isto
significa que, da interioridade do seu mundo prático, o
homem se comporta como se o futuro fosse um
prolongamento do passado. Vendo o futuro através do
modelo do passado, o homem pode caminhar
tranqüilamente sem angústias, na certeza de que as rotinas
do cotidiano são mais que suficientes para resolver todos os
problemas que porventura possam aparecer.
c) Linguagem

A lógica do cotidiano é a lógica da linguagem. A gramática
nos revela a forma pela qual o mundo se organiza para o
homem. Por um ato de abstração seria possível imaginar o
bicho homem a contemplar o universo físico sem ter uma
estrutura lingüística a organizar-lhe as sensações em
percepções. Não sabemos, entretanto, o que tal situação
significou, pois ela não nos é acessível à experiência comum.
Desde que a criança vem ao mundo "as coisas lhe vêm
vestidas em linguagem, não em sua nudez física; e estas
vestes de comunicação a tornam participantes nas crenças
daqueles que a rodeiam". "Para o homem social o universo
físico só existe por meio da sociedade e conseqüentemente
por meio da linguagem". Aquilo a que damos o nome de
razão, e que durante muito tempo foi considerada como algo
histórico e universal, parece, assim, estreitamente ligada à
lógica da linguagem. Pensamos como falamos. Na
linguagem, observa Dewey, encontramos "categorias de
relação e unificação, tão importantes como aquelas de Kant,
mas agora empíricas e não mitológicas".
Assim, não vemos a realidade física, face a face. Nossos
olhos são programados pela linguagem. Como Robert K.
Merton observa "a nossa linguagem conceptual tende a fixar
nossas percepções e, de forma derivada, nosso pensamento e
comportamento. Os conceitos definem a situação". E,
conseqüentemente, "os limites da minha linguagem
denotam os limites do meu mundo".

d) O caráter "enfeitiçante" da lógica do cotidiano

Como membros da sociedade não podemos ver sem o auxí-
lio desta lógica da realidade que a sociedade criou. O verso
da moeda, entretanto, é que ao definir o nosso mundo a
linguagem realmente estabelece os seus fins e limites. Ela
impede que nos apercebamos daquelas dimensões do real
que não são previstas (ou são indesejáveis) pelo nosso
aparato conceptual. A linguagem nos permite ver, dentro
dos seus limites, mas nos torna cegos para tudo aquilo que a
transcende. Da mesma forma como o microscópio abre ao
cientista um mundo maravilhoso e invisível aos olhos
desarmados, e o torna incapaz de ver, enquanto debruçado
sobre o mesmo, as estrelas do céu.
A linguagem, assim, funciona de uma forma ambivalente.
Ela dá visão e cega ao mesmo tempo. Ilumina e obscurece.
Esta é a razão por que Wittgenstein se refere à função enfei-
tiçante da linguagem. Ela nos torna prisioneiros de seu mun-
do, excluindo os outros mundos possíveis. De passagem,
entretanto, temos de nos lembrar de que "os homens não
estão permanentemente aprisionados dentro das estruturas
de conceitos que eles usam; eles podem não só romper esta
estrutura e sair, como também podem criar uma nova". O
feitiço pode ser quebrado.
A consciência, entretanto, imersa nas suas rotinas práticas,
em nenhum momento suspeita que o seu verdadeiro seja
apenas uma expressão de uma ordem transitória e precária.
Toda lógica se impõe com pretensões ontológicas. Como
Durkheim observa, "o pensamento lógico é sempre
pensamento impessoal". Pretende estar livre do relativismo
que caracteriza a situação humana. "um pensamento sub
specie aeternitatis — como se fosse para todos os tempos".
Por isto a consciência tende sempre a identificar a ordem
social presente cóm o real, ao mesmo tempo que todas as
possibilidades que Hão se enquadram nos estereótipos que
governam a vida prática e que implicam numa inversão de
"receitas" são confinadas automaticamente fora dos limites
do real, como loucura, utopia, heresia. O mundo é vivido
como tendo origens divinas — ainda que as liturgias que se
lhe celebram sejam seculares. No seu interior não há lugar
para dúvidas, mas só para certezas. O meu mundo é o centro
e o destino do universo.

c) O caráter precário do cotidiano

A verdade, entretanto, é que (os fatos sociais não têm o
mesmo status ontológico que o universo físico. Durkheim
indicou que, na observação dos fatos sociais, "a regra
primeira e mais fundamental é: Considere os fatos sociais
como se fossem coisas"?? Permitam-me, entretanto,
perguntar: "Não é exatamente assim que se comporta a
consciência ingênua, que ainda não percebeu que 'a
realidade social é uma construção humana?" Não é isto um
paradoxo, que o homem seja capaz de produzir um mundo e
depois experimentá-lo como algo diferente de um produto
humano? Para todos os efeitos práticos, para o homem que
anda pelas ruas e que nunca pensou criticamente o seu
mundo, a ordem social tem a mesma dureza, a mesma
consistência, o mesmo "status" que os fatos danatureza.
Portanto, se alguém toma o como se fossem coisas de
Durkheim como uma afirmação ontológica de identidade
fato social-coisa, e não como um artifício metodológico
provisório, perderá a possibilidade de ver a ordem social
naquilo que lhe é mais fundamental: seu caráter de
construção humana. E é isto que a torna problemática, de
um ponto de vista existencial. A maravilha da sua existência,
do seu estar-aí, é envolvida pelo horror de que ela
eventualmente não esteja-aí. O cosmo é assombrado pela
possibilidade e certeza do caos; a estrutura vital ameaçada
pelo terror de sua dissolução. "Toda realidade social é
essencialmente precária. Todas as sociedades são
construções em face do caos". ''Toda sociedade humana é,
em última análise, um bando de homens reunidos diante da
morte".

f) A necessidade de "esquecer"

Se o homem, em suas rotinas cotidianas, estivesse cons-
ciente deste fato, ele seria tomado como prisioneiro pelo
terror. Suas atividades seriam paralisadas pela angústia. E isto
colocaria em perigo a própria sobrevivencia. Por isto é ne-
cessário que este fato seja banido da consciência. É
necessário "esquecer" que a realidade social em que
habitamos é um produto das ações históricas dos homens, e
que ela está destinada, inevitavelmente, à dissolução. Os
fatos sociais devem ser tomados como se fossem coisas.
Todo processo de socialização contém em si os mecanismos
de obscurecimento das origens.. Quando ensinamos aos
nossos filhos as regras do jogo, no processo de socialização
primária, nós lhes dizemos como as coisas são. Mas as crian-
ças não se contentam com isto. E perguntam: Por quê? E
nossas respostas, inevitavelmente, tendem a explicar o como
por referência a uma realidade última. Deus, determinismo
social, determinismo biológico, instinto, determinismo
econômico, história — todos estes são horizontes
metafísicos ("Godterms", na expressão de Kenneth Burke ),
fundamentos explicativos últimos de tudo o que é.
Poder-se-ia pensar que estamos equivocados. Poder-se-ia
dizer: ("O homem ignora não porque tenha esquecido, mas
porque nunca conheceu". Isto estaria bem na linha de
Aristóteles, que identificava no homem "um impulso para
adquirir conhecimento". Mas a psicanálise e também a
sociologia acrescentariam: "Todos os homens têm um
impulso para se esquecer do que sabem O Absurdo? Não.
Freqüentemente o conhecimento é disfuncional. Provoca
condições emocionais indesejáveis. Esquecer é tão vital
quanto conhecer. "A ignorância", observa Gunnar Myrdal,
"como o conhecimento, é dirigida por um propósito". Se
estivéssemos constantemente conscientes da precariedade
das regras do nosso jogo e do solo em que pisamos não
poderíamos caminhar. A angústia nos paralisaria. Os
mecanismos psicossociais de obscurecimento da
precariedade do nosso mundo têm a função de nos
enfeitiçar para que vivamos como se o precário fosse
permanente, como se os fatos sociais fossem coisas. "Todas
as vezes que as legitimações que obscurecem esta
precariedade são ameaçadas ou entram em colapso a
constante possibilidade do terror anêmico se torna real".

g) Por que nos lembramos? A quebra do feitiço

Por que nos lembramos? Se tudo conspira para que nos
esqueçamos, que condições nos levam a quebrar o feitiço
que havia obscurecido as origens do nosso mundo?
A consciência é uma estrutura de equilíbrio precário. E isto
porque o micro e o macrocosmo que a envolvem, a civi-
lização e o universo físico, contradizem e frustram as suas
aspirações. Esta é a tensão permanente que, nas linhas psica-
nalíticas, constituem o fundamento da neurose. "Por um
lado", observa Freud, "o amor está em oposição aos
interesses da civilização; e por outro, a civilização ameaça o
amor com restrições substanciais". Quando tensões não
podem ser resolvidas em harmonia, o caminho mais fácil é a
busca de uma fórmula de coexistência pacífica. E é isto que
ocorre. A condição existencial do homem, em suas rotinas
cotidianas, é uma de trégua provisória entre o princípio do
prazer e o princípio da realidade. Uma vez estabelecido tal
modus vivendi, ele concorda em renunciar as suas
aspirações em troca das vantagens práticas que a sociedade
lhe oferece? Por que ser um artista visionário, se é muito
mais vantajoso ser um eficiente funcionário? Se o homem
renuncia ser o excêntrico nas instituições sociais, ele será
recompensado com a liberdade de ser o que quiser no seu
mundo privado. A repressão do instinto, em prol da
excelência funcional, cria a possibilidade da sublimação, ou
seja, da expressão do mesmo instinto naquelas esferas que a
sociedade para isto separou.
Mas o equilíbrio não dura indefinidamente. Sabemos que as
instituições não permanecem estáveis. Uma vez estabele-
cidas elas se tornam autônomas, desenvolvem uma dinâmica
própria, independente das intenções dos homens que nelas
funcionam. E elas passam a produzir efeitos radicalmente
diferentes daqueles que estavam na mente dos que as
construíram. Apenas para dar um exemplo: a tecnologia foi
criada para criar melhores condições de vida, mas produziu,
como subprodutos, maiores possibilidades de morte. Esta
contradição pode ser observada em todas as instituições. Ao
lado de suas funções manifestas, que coincidem com as
intenções do homem, surgem as funções latentes,
freqüentemente mais poderosas, incontroláveis, que
frustram as esperanças que levaram os homens a forjá-las.
Quando as instituições criam subprodutos diferentes
daqueles em relação aos quais o princípio do prazer havia
concordado com uma fórmula de coexistência pacífica, o
equilíbrio se parte. A realidade quebrou o trato. O ego se
rebela então contra a sociedade. E com este ato, rompem-se
os mecanismos de obscurecimento que identificavam o
social com o natural. Quebra-se o feitiço. A realidade é
então destituída de suas pretensões ontológicas, roubada de
suas roupagens divinas.
Neste momento o êxtase é total. Nas experiências estética e
lúdica era sempre possível voltar a pisar a terra firme. O
sonho chegava ao fim. 0 brinquedo terminava. E o homem
se encontrava de novo no mundo real. Mas quando o real se
torna transparente, e a consciência contempla a sua
precariedade, para onde voltar? Em que outros mundos
acordar?
Seria esta uma possibilidade excepcional? Será que somente
nas situações de cataclismos sociais é que aparece o terror
anômico? Não creio. A consciência do precário está sempre
latente na própria interioridade da consciência. A razão,
como Kant demonstrou, é definida por limites rigorosos.
Além destes limites jaz uma terra de ninguém, uma zona de
escuridão e caos, um torvelinho que engole a razão que se
atreve a penetrar em suas águas. Os pontos demarcatórios da
racionalidade de um sistema flutuam além da racionalidade
normativa na interioridade deste mesmo sistema. Como se
voássemos numa aeronave. Mas temos vertigens das alturas.
Não podemos evitar o terror que o estarmos soltos no ar nos
produz. Fechamos as janelas. Colocamos entre parênteses
nossa situação existencial. E nos comportamos como se os
limites da aeronave fossem os limites do universo. Sempre
que o feitiço se quebra o homem vê o seu definitivo
colocado entre parênteses pelo provisório. Ontologia se
dissolve em convenção. Desestrutura-se um mundo e as
estruturas racionais que o explicavam.

IV. ESTE É O PRIMEIRO MOMENTO DA
EXPERIÊNCIA DA CONVERSÃO

a) Os mitos cosmogónicos

Talvez uma das mais fascinantes descrições simbólicas deste
momento se encontre nosjfmitos cosmogónicos bíblicos —
aqueles que descrevem a origem dos céus e da terra.
Por muito tempo o sentido dos mitos esteve oculto à nossa
compreensão. Somos uma civilização "científica".
Aprendemos que a única significação possível da linguagem
é ou o seu conteúdo lógico ou as coisas e fatos que estão lá
fora, objetivamente, dizia Hume: "Todos os objetivos da
investigação e da razão podem ser naturalmente divididos
em dois tipos, a saber, "relações de idéias" e "matérias de
fato". "Do primeiro tipo", continua ele, "são as ciências da
Geometria, Álgebra e Aritmética e, em resumo, todas as
afirmações que são ou intuitivamente ou
demonstrativamente certas". "Do segundo tipo são todas as
afirmações que se referem às nossas experiências do mundo
material". Temos aqui um inventário da realidade e,
conseqüentemente, um critério para se distinguir o que faz
sentido daquilo que não faz. "Quando percorremos nossas
bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição te-
mos de fazer. Se tomamos em nossas mãos qualquer volume
— de teologia ou metafísica, por exemplo — perguntamos:
Contém ele raciocínios abstratos relativos a quantidade ou
número? Não. Contém ele raciocínios relativos a matérias de
fato e ao existente? Não. Então, lancemo-lo ao fogo, porque
o que ele contém é nada mais que sofisma e ilusão'".
Ora, os mitos nada dizem de números. E mais, com as
teorias científicas acerca das origens do universo ficou
patente que eles não correspondem aos fatos. Os mitos
foram, em conseqüência, reduzidos a curiosidades
antropológicas, a produtos fantasiosos da mente infantil do
homem primitivo, ainda não educado pelo rigor da ciência.
Acontece, entretanto, que este inventário do mundo é
muito pobre. Não só pobre, mas falso. E isto porque ele
ignora totalmente a "esfera do entre" (o "dazwischen"), o
mundo das relações, da emoção, da maneira de ser do
homem em frente ao mundo. Se os critérios de objetividade
fossem aplicados aos sonhos eles teriam o mesmo destino
que os mitos. E foi isto que sucedeu por muito tempo. Foi
necessário que Freud demonstrasse que os sonhos, que não
contêm nem relações lógico-matemáticas e nem reduplicam
o mundo sensível, contêm uma significação. O seu sentido é
a maneira de ser do homem em relação ao seu mundo, a sua
condição existencial. Temos de aplicar aos mitos uma
hermenêutica semelhante àquela usada na interpretação dos
sonhos. Mitos são sonhos de grupos humanos. Eles
expressam experiências coletivas que escapam e
transcendem a dicotomia sujeito-objeto. Como bem observa
Jung, "os mitos são, antes de mais nada, manifestações
psíquicas que refletem a natureza da alma". Esta é arazão
por que aquilo que os mitos descrevem numa relação
temporal de antes e depois, de causa e efeito, como
pertencendo à realidade natural, tem de ser entendido
atemporalmente. Os "processos mentais inconscientes são
em si mesmos a-temporais. No Id nada há que corresponda à
idéia de tempo". A significação do tempo mítico é a
estrutura oculta sob a superfície da consciência, experiência
religiosa fundamental é curiosamente semelhante ao drama
mitológico. Parece ser uma repetição existencial do mesmo.
Sabe-se que o mito bíblico é muito influenciado pelo poema
épico babiloniano Enuma Elish. Ele se inicia com uma
descrição do caos primitivo, quando Apsu, o abismo
primordial, a origem dos deuses e amante de Tiamat, o mar,
que deu à luz todos eles, ainda misturavam suas águas uma
com a outra. Apsu e Tiamat formam, juntos, a realidade
teogônica e cosmogónica que, pela misteriosa união de
elementos masculinos e femininos, cria a totalidade do ser:
os deuses, o mundo e a raça humana. O mito bíblico
modifica esta trama, ao colocar o abismo e o mar,
personificações de caos, de início, como matéria-prima nas
mãos de um princípio de ordem. A terminologia do verso 2
do capítulo 1 de Gênesis é muito significativa. "A terra era
tohu e bohu". A palavra tohu é provavelmente um eco do
Tiamat babiloniano; enquanto que bohu (que no Velho
Testamento aparece invariavelmente ligado a tohu) pode ser
uma forma de Bau, nome da deusa fenício-babiloniana da
noite e a mãe primordial do homem. No Velho Testamento
estes termos significam "vazio", "sem valor", "efêmero".
Tohu algumas vezes tem o mesmo sentido que tehom — o
caos que jaz debaixo do mundo habitado. Mas o caos
também se encontra sobre a terra, além da região dos
homens. Tohu, portanto, é também o deserto, a terra de
ninguém, o lugar amaldiçoado.
O quadro é sinistro. Envolvendo o belo mundo em que
vivemos, que julgamos sólido e estabelecido, jazem as forças
do caos. "A terra era sem forma e vazia". Podemos pensar
algo a um tempo sem forma e vazio? Apenas o Nada. Mas
não o Nada da matemática, simbolizado pelo zero ou pelo
conjunto vazio. Trata-se de um poder, uma ameaça. "Havia
trevas sobre a face do abismo e um forte vento varria a
superfície das águas" (Gên 1,1-2). O abismo, as trevas, as
águas, o vento forte: símbolos de destruição e morte. Não se
trata de uma fotografia de tempos imemoriais. Como já
observamos, o inconsciente não conhece o tempo.
Poderíamos, portanto, traduzir o princípio temporal como a
arché grega: o princípio ontológico, o fundamento da
realidade. Se esta interpretação é correta, então o mito nos
está dizendo que, por detrás e debaixo do mundo sólido em
que vivemos, há um vazio, um abismo que escancara a sua
boca, trevas que não permitem ver e o vento que engolfa o
espaço nos seus turbilhões. O cosmos se constitui a partir de
uma Palavra (Dabar) criadora, e uma vez cessada a Palavra,
nada há que garanta a estabilidade do estável. A certeza
ingênua da consciência comum, que pressupõe que o
sentido do cotidiano lhe é imanente, é destruída. A
tranqüilidade existencial que colore a superfície do dia-a-dia,
confirmada pelas certezas das repetições rítmicas da vida
institucionalizada, é colocada entre parênteses pela radical
negatividade que qualifica todos os dados positivos do
cotidiano. Uma vez contempladas as águas escuras e o
abismo, o sentido imanente se revela como ilusão, ficção,
feitiço, falsa consciência.

b) "Parar o mundo"

O primeiro momento da conversão é o mito vivido de trás
para diante. O caos engole o cosmo. Desmoronam as
estruturas normativas da personalidade. A harmonia entre o
eu e o mundo entra em colapso e o eu se torna presa de
anomia.
Interessante notar que a experiência da conversão se dá com
mais freqüência ou em situações de desorganização dos
esquemas culturais de interpretação (choques culturais, o
impacto da urbanização sobre regiões agrárias), em crises
pessoais profundas ou em situações de anomia global,
quando a ideologia de uma nação ou de uma civilização se
desmorona (teremos aqui uma pista para entender o
reavivamento religioso que se observa no Ocidente?). Em
todos estes casos há um elemento comum: os padrões de
interpretação e de sentido, até então normativos, entram em
crise. E o mundo se desmorona.
Imagine a confusão de um camponês que nunca saiu do
meio dos seus e que de repente se muda para a grande
cidade. Tudo é diferente. A maneira como as pessoas se
vestem, como falam, o anonimato, ninguém conhece
ninguém. O tempo já não é mais medido pelo ritmo da
natureza mas pelas rotinas mecânicas da vida urbana. Aquele
que tinha um nome, que conhecia seu espaço melhor que
seu próprio corpo, descobre-se agora destituído de
identidade e de dignidade, e totalmente incapaz de se
orientar na nova situação. Resta-lhe, entretanto, a
possibilidade de voltar para o local de onde viera. Ali,
provavelmente, as coisas continuam como dantes. A sua
anomia, por ter sido o resultado de um movimento no
espaço, pode ser vencida se se trilhar o caminho inverso. Na
crise da conversão, entretanto, já não há mais para onde
voltar. A anomia é metafísica. Não resulta de um
deslocamento no espaço, mas da desintegração da própria
estrutura da consciência. Para onde quer que vá o homem
sua enfermidade o seguirá. Expulso do paraíso, em meio a
uma realidade hostil que não faz sentido, desesperadamente
tentando encontrar o caminho de volta ao Éden. Mas como,
se o seu mapa do real se perdeu? A sociedade havia
sedimentado, através de uma longa experiência histórica,
uma vasta tradição de conhecimentos, que se cristalizaram
numa linguagem, em instituições, religiões, ciência.
Enciclopédia viva que dava certeza ao homem de que todos
os problemas possíveis no futuro já haviam sido resolvidos
pelo passado. Agora, entretanto, tudo isto é um cadáver. A
realidade dissolve-se e se apresenta agora como ilusão. Não é
que as coisas deixem de existir. Ali estão elas, como dantes.
Mas já não fazem sentido. Encontram-se desestruturadas,
desorganizadas. O cotidiano se apresenta então em toda a
sua nudez, como uma síntese precária, vazia de eternidades
divinas. O mundo foi forçado a parar. "Parar o mundo":
"umaforma muito sugestiva de se referir a certos estados de
consciência em que a realidade da vida cotidiana é alterada
porque o fluxo de interpretação, que ordinariamente corre
de forma ininterrupta, foi parado por uma série de
circunstâncias estranhas àquele fluxo".
Estamos diante de uma conclusão surpreendente. É lugar-
comum em sociologia dizer que a religião é uma função da
sociedade, ou seja, que ela contribui para a sua preservação.
Nas palavras de Berger, a religião tem uma função de
"manutenção do mundo". "A religião", continua ele,
"legitimiza as instituições sociais, conferindo-lhes um status
ontológico absolutamente válido, ao localizá-las dentro de
uma estrutura de referência cósmica sagrada". Não é possível
negar que isto é em parte verdade. Quando se investiga, por
exemplo, as instituições religiosas já cristalizadas,
verificamos que elas tendem — embora nem sempre — a
criar padrões de pensamento e conduta adaptativos à ordem
estabelecida. Quando, ao contrário, examinamos a
experiência da conversão, observamos que no seu primeiro
momento ela é uma crise de sistemas de referência. O
mundo das rotinas é forçado a parar. O homem se defronta
com o Nada envolvendo o Ser, com a falta de fundamento
dos próprios fundamentos. Com ela processa-se a dissolução
do mundo, ou seja, a destruição de suas pretensões divinas.
Permitam-se agora sugerir que o momento de
desestruturação da conversão estabelece as bases para a
esperança utópica. Ou mais precisamente: por implicar a
desintegração do topos em que o homem se encontrava, ela
torna a visão utópica necessária.
Na linguagem comum e mesmo na linguagem científica a
palavra utopia é usada, na maioria das vezes, de forma
pejorativa. Utopias são ilusões sociais, sonhos de um futuro
glorioso que nunca passarão de meros sonhos. Foi Sir
Thomas More quem criou esta palavra. E para tornar bem
claro o que tinha em mente, indicou, num pequeno verso
introdutório,que utopia podia referir-se ou ao grego
"eutopia", que significa bom lugar, ou a "outopia", que
significa nenhum lugar. O problema da utopia é idêntico ao
problema da imaginação. Qual a razão por que o homem se
esquece dos espaços já conquistados e se lança para um
futuro imaginário? Que estranhas causas o levam a emigrar
da realidade que o encerra, para um espaço além da
experiência, que existe apenas como uma construção da
esperança ? Podemos dizer das utopias o mesmo que Claude
Lévi-Strauss disse dos mitos cosmogônicos. Na verdade, se
tivermos presente na mente que o tempo não existe para a
estrutura inconsciente, veremos que os mitos das origens
exprimem o mesmo que os mitos do futuro. A diferença
fundamental não se encontra na sua significação, mas no
horizonte temporal sobre o qual a mesma significação é
projetada. Num caso, o passado, no outro, o futuro. "A
diversidade aos caminhos que levaram J. J. Rousseau cons-
cientemente, e inconscientemente os índios sul-americanos,
a fazer as mesmas especulações sobre um passado muito
remoto não prova nada, sem dúvida, a respeito deste
passado, mas prova muito acerca do homem. Ora, se o
homem é tal que não pode escapar, apesar da diversidade
dos tempos e lugares, à necessidade de imaginar de maneira
igual as suas próprias origens, esta não pode ter estado em
contradição com uma natureza humana que se afirma
através das idéias recorrentes que aqui e acolá os homens
entretém sobre o seu passado.38 Fazemos nossas as palavras
de Lévi-Strauss, ampliando-as para incluir as utopias.
Como justificar a afirmação de que a conversão contém um
elemento utópico? Permitam-me fazer uma sugestão: a
consciência só emigra para "bons lugares" que são "nenhum
lugar", trocando a realidade por um futuro problemático,
quando o presente se tornou mais problemático que o
imaginário. Somente saltamos de pára-quedas se o avião está
em chamas. O bom lugar futuro emerge na consciência
quando ela experimenta a dissolução do "topos" sob os seus
pés. Assim, a "eutopia" e a "outopia" existem numa relação
dialética. E a experiência religiosa primordial é exatamente
aquela na qual o homem sente a desintegração do seu
mundo. O espaço garantido passa a ser espaço em
decomposição. Realidade infestada pelo nada e que,
portanto, se revela como irrealidade. O lugar presente se
revela como nenhum lugar.
c) Esta experiência tem conseqüências radicais para o
processo de cognição

Nossa experiência cognitiva normal é o resultado de uma
interação sintética entre as estruturas da razão e os dados dos
sentidos. Como Kant, a psicologia gestáltica e o estruturalis-
mo têm demonstrado, para haver conhecimento é
necessário que as informações sensórias sejam organizadas
por certas estruturas que as antecedem. Que aconteceria se
tais estruturas se desestruturassem? O conhecimento se
tornaria impossível. Mergulharíamos numa situação
irracional, sem pontos de referência, e a organização da
experiência e do comportamento se tornaria impossível. As
coisas continuam ali, diante do homem. Mas o que
significam elas? Que opções tomar? Observem a relação
entre nomos e cosmo. Desintegrado o nomos, o cosmo —
isto é, o mundo organizado, que faz sentido — se desintegra
também. Deixa de ser objeto de conhecimento.

d) A experiência religiosa fundamental, neste momento de
desestruturação, caracteriza-se pela angústia. Talvez que a
melhor maneira de compreender o que ela significa seria por
meio de uma comparação com o medo.
O medo é uma emoção que ocorre na interioridade de
estruturas significativas. Ele contém um elemento de
cognição e de interpretação. No medo tomamos consciência
de algo que nos ameaça: uma enfermidade, uma arma, um
problema econômico. Ali está o que me coloca em perigo. E
conseqüentemente o medo implica uma organização do
comportamento. Fugir? Atacar? Esperar? Além disto, o
medo é acidental, e não estrutural. Ele ocorre em resposta ao
aparecimento de certas condições que colocam em perigo a
situação de equilíbrio entre o sujeito e o meio ambiente.
Não é isto, entretanto, que caracteriza a angústia. A angústia
é a reação emocional da consciência quando seu "nomos" e
seu cosmo se desintegram. Não se trata de uma resposta a
objetos ameaçadores. A angústia ignora o que a causa. E por
isto a consciência não tem meios de organizar o seu
comportamento. Tudo a ameaça e nada a ameaça. Que fazer?
Para onde ir? Não há respostas para tais perguntas. Enquanto
que o medo nos informa de perturbações acidentais na
interioridade de um cosmo significativo, a angústia nos
informa da própria desintegração das estruturas do cosmo
significativo. E por isto, ainda que tudo esteja aparentemente
em ordem, ainda que não haja objetos ameaçadores dentro
do meu campo vital, tudo adquire uma tonalidade sinistra.
Na angústia, observa Heidegger, "a pessoa se sente
'unheimlich'. Não consegui descobrir uma palavra em por-
tuguês que correspondesse ao alemão. Literalmente "não-
estar-em-casa" (das Nichtzuhause-sei). A angústia é a
emoção que emerge quando "a familiaridade do cotidiano
entra em colapso".

e) Na angústia a consciência toma consciência de que os
seus fundamentos são destituídos de fundamentos. O fenô-
meno da angústia, assim, abre as janelas do ontológico. Por
isto, continua Heidegger, 'o não-estar-em-casa', de um
ponto de vista ontológico-existencial, deve ser concebido
como o mais primordial dos fenômenos. Nas linhas do mito
hebraico da queda, estamos aqui diante de um evento
primorial de ruptura de consciência que transubstancia um
mundo acolhedor (lar, 'Heim'), numa realidade sinistra
("unheimlich"). Homem e mulher comem do fruto da
"árvore do conhecimento do bem e do mal" que lhes havia
sido vedado comer. Conhecimento implicaria em morte.
"Abriram-se, então, os olhos de ambos". Mas já não estavam
abertos? O fato é que aqui os olhos são qualitativamente
modificados. Eles vêem de uma forma diferente. A mesma
realidade que era amiga passa a ser ameaçadora. Dantes
estavam nus, e não se envergonhavam. Sua total abertura e
desproteção em frente ao outro não lhes causava embaraço.
O reino do "entre" (o "dazwischen") se constituía sobre
uma confiança e abandonos absolutos. Agora, entretanto,
aquilo que era dádiva graciosa se torna problema. A morte
biológica, destino de toda a criação, como fim do organismo,
sai de sua distância futura e passa a habitar o presentero
homem é o único ser que sente vergonha. Vergonha é a
emoção que anuncia o meu desconforto aos olhos do outro.
Contradição: a experiência do conhecimento cria a
necessidade de evitar ser conhecido. É necessário esconder-
se da Presença. Surgem os mecanismos de obscurecimento.
"Quando ouviram a voz do Senhor Deus que andava no
jardim pela viração do dia, esconderam-se por entre as
árvores do jardim". Não é por acidente que a consciência
religiosa tem insistido em representar Deus como o grande
olho. O divino metamorfoseia-se no demoníaco: o
abandono livre à vida se transforma na consciência da
radical negatividade que se esconde e se revela na existência.
"Onde estás?" Ele respondeu: "Ouvi a tua voz no jardim, e
porque estava nu, tive medo e escondi". Resposta que é um
esconder-se: mentira. Por que a nudez, que dantes não
causava embaraço, agora provoca o medo? Mudou a nudez?
Mudou o paraíso? Mudou Deus? A resposta revela uma
metamorfose: o homem já não via o mundo com os mesmos
olhos. Perdeu-se o paraíso por um ato de "abrir de olhos".
Os olhos estão infestados de morte e por isto mesmo o
paraíso cheira a decomposição.
Dali para diante o mundo deixa de ser dádiva divina e passa a
ser construção humana. Maldita é a terra por tua causa; em
fadiga obterás dela o sustento durante os dias, de tua vida.
No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à
terra... O mito da torre de Babel irá retomar a mesma
temática, mas de forma invertida: o homem tentando tomar
os céus de assalto. É necessário reconstituir o cordão
umbilical que unia céus e terra. Mas um mundo que se cons-
trói pelo trabalho de um homem dominado pela angústia
será sempre uma objetivação desta mesma angústia. Por mais
titânico que seja o seu esforço ele nunca poderá superar a
angústia existencial sobre a qual ele se constrói. "A
contingência do mundo aparece à realidade humana na
medida em que a realidade humana se estabeleceu a si
mesma sobre o nada...", observa Sartre. "O mundo está
'suspenso' no nada".
"O nada jaz encolhido no ventre do ser, como um verme". E
por isto "o nada assombra o ser".
f) O homem se descobre entregue à sua própria sorte.
Solidão absoluta. Os seus gemidos têm como resposta apenas
o silêncio insensível do vazio infinito. "O silêncio dos céus
eternos me horroriza", comentava Pascal. Não mais se ouve
a voz do Verbo Criador. A realidade deixou de ser portadora
de significações. Esmagado pelo silêncio, o homem volta
seus olhos para o futuro. Quem sabe haverá alguma luz? Mas
que vê ele? Apenas o vazio escuro, o vento frio que anuncia
a aproximação da inevitável dissolução: a morte.
Abandonada ao seu próprio titanismo, a consciência sabe
com certeza absoluta e horrenda, tão absoulta e tão horrenda
que é necessário esquecer — que a Sua criação não é mais
que um espasmo do Nada que habita em seu Ser e dele se
alimenta.

g) Sentimento de impotência: o poder do homem não vai
além dos seus braços e os seus braços não vão além da
morte.
Talvez Kafka tenha sido aquele, entre nossos
contemporâneos, que melhor expressou tal condição. Tanto
em O Castelo quanto em O Processo a trama é uma só: o
homem, à mercê de poderes que o manipulam, jogado daqui
para ali, tentando desesperadamente entender o que está
acontecendo, mas inutilmente. A realidade onipotente não
dá nenhuma resposta às suas perguntas acerca do sentido e
está fora do alcance dos seus braços.

h) Desaparecem os horizontes, desaparecem as certezas,
desorganiza-se o comportamento,, inúteis as súplicas, inútil
olhar para o futuro, inútil lutar. Só se ouve o silêncio, só se
contempla o vazio, só se sente uma ausência. Chegamos a
uma
conclusão paradoxal. No seu primeiro momento, a
experiência religiosa primordial, longe de ser uma visão de
Deus, é o sentimento da dissolução do divino: morte de
Deus, eclipse de Deus, ausência de Deus. É significativo que
tanto no Paraíso quanto na Nova Jerusalém não haja
templos. Num mundo divino não há lugar para a consciência
religiosa. Somente sente a nostalgia religiosa ou aquele que
foi expulso do Paraíso ou aquele que ainda não entrou na
Nova Jerusalém. Consciência de uma Ausência. E a
consciência da Ausência é mais terrível que a consciência da
Presença. A consciência da Presença pode causar medo. Mas
a consciência da ausência é a experiência da angústia.
Mesmo Nietzsche, que anunciou a morte de Deus, sabia que
nos encontrávamos diante de um evento trágico:
Não ouvistes do louco que acendeu uma lanterna em meio à
luz da manhã, correu ao mercado, e gritava sem parar: "Eu
busco Deus! Eu busco Deus!"? Como estivessem por ali,
naquele momento, muitos daqueles que não crêem em
Deus, houve muito riso. "Por que será que ele se perdeu?",
disse um. "Será que ele errou o caminho como uma
criança?", disse outro. "Ou estará ele se escondendo?" "Com
medo de nós?" "Será que ele viajou, ou emigrou?" Assim,
gritavam eles e riam. O louco saltou no seu meio e partiu-os
com o seu olhar. "Para onde foi Deus?", gritou ele. Vou
dizer-vos: Nós o matamos. Todos nós somos seus assassinos.
Mas como fizemos isto? Como fomos capazes de beber o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte in-
teiro? Que fizemos nós quando quebramos a corrente que
ligava esta terra ao seu sol? Para onde vai ela agora? Para
onde vamos nós agora? Para longe de todos os sóis? Não
estamos mergulhando sem cessar? Para trás, para o lado, para
a frente, em todas as direções? Será que ainda nos resta o
para cima e o para baixo? Não estamos vagando ao sabor de
um nada infinito? Não sentimos o hálito do espaço infinito?
Não está ficando mais frio? Parece que a noite está chegando
antes da hora. Lanternas já têm de ser acesas pela manhã.
Quem quer que tenha lido e amado Nietzsche sabe onde ele
se encontra. Os frios racionalistas do mercado são seus
inimigos. O louco, talvez seja ele próprio. Sentir a morte de
Deus e ser louco se identificam. Catástrofe. Que nos resta?
Um universo frio e escuro, sem horizontes e pontos de
referência. Já não podemos viver como dantes. Flutuamos à
mercê do caos que nos engoliu.
Já não estamos ouvindo o barulho dos coveiros que estão
enterrando Deus? Não sentimos o cheiro de sua
decomposição? Deuses também entram em decomposição.
Deus está morto. Deus permanece morto. E nós o matamos.
Como poderemos nós, os assassinos dos assassinos,
confortar-nos a nós mesmos? Aquilo que era mais santo e
mais poderoso que f tudo o que o mundo já conheceu
sangrou até à morte sob os nossos punhais. Quem nos
limpará deste sangue?

i) O homem não sabe como foi capaz de fazê-lo, mas sabe-
se culpado pela morte de Deus. A experiência religiosa
fundamental localiza-se, assim, não apenas no domínio
estético. Não se trata de uma contemplação passiva de uma
ordem que rui por terra. O homem vive a certeza de que, de
alguma forma, o ruir do cosmo foi deflagrado por ele
mesmo. Por isto ele se sente pecador.,Mas que ação
provocou tal catástrofe? Que ato libertou a morte?
Nenhuma ação. Nenhum ato. Não é possível localizar o
momento, a decisão, a origem do fim do mundo. Não foi um
ato punctiliar do Eu, mas a própria existência do Eu./É o
meu Ser e não o meu fazer que está em jogo. Por isto não
basta dizer eu pequei. É necessário confessar: sou pecador.
"Desgraçado homem sou. Não faço o que prefiro, mas sim o
que detesto. O querer o bem está em mim, não, porém, o
efetuá-lo. Então, ao querer fazer o bem encontro a lei de
que o mal reside em mim" (Rom 7).
Fizemos uma distinção entre a angústia e o medo. Temos de
fazer o mesmo em relação ao sentimento ontológico de
culpa e ao sentimento ético de culpa. Em nossa experiência
cotidiana movemo-nos na interioridade de um mundo
estruturado. As suas receitas institucionalizadas se
constituem na moral, isto é, naquilo que devemos e naquilo
que não devemos fazer. Nesta esfera a moralidade se
identifica com o funcional. Moral é o que contribui para a
preservação da estrutura. Neste nível a culpa é a consciência
de que o meu fazer está em contradição com o meu dever
tal como a "realidade" o define. Cada ato que colide com o
"real" é imoral e criminoso: é uma punhalada na realidade
social. E a punição deverá vir, inexoravelmente, seja através
do desprezo e da vergonha, seja através da justiça. Em todo
este processo, entretanto, o homem está consciente de estar
se chocando com uma realidade que é normativa. Aqui o
sentimento de culpa só emerge quando a consciência
reconhece e afirma tal limite. A culpa afirma o "nomos" e o
cosmo. Torna-os mais sólidos ainda.
Na culpa ontológica, entretanto, a situação é diferente. Não
estamos diante de uma ação que colide com a realidade e
que deve por ela ser julgada e expiada. Ao contrário:
defrontamo-nos com um ato que dissolveu a realidade e que,
portanto, não tem mais nenhuma norma autoritativa para
julgá-la. Experiência de liberdade absoluta. Ser flutuando no
Nada, Ser que não se defronta com limites, Ser que conhece
apenas a si mesmo como norma, Ser que não mais se
encontra em frente a um Outro para confirmá-lo ou acusá-
lo. Como seria confortador ouvir uma voz que acusa. Pelo
menos o homem não se sentiria só. Dissolvida a realidade,
desaparecem os pontos de referência que tornariam a culpa
moral possível. Culpa que advém da impossibilidade de ter
culpa. Culpa para sempre imperdoável, pois não há mais
deuses a quem oferecer sacrifícios propiciatórios, não há
mais a justiça que nos reconciliaria com o real. A autonomia
se revela como anomia: o fim da consciência moral. Na
culpa moral eu transgrido a ordem, mas esta permanece
intacta. Por isto, ao ser punido restabelece-se a harmonia
entre o Eu e o Cosmo. A punição é sempre um ato de graça.
Na culpa ontológica o Eu destruiu o Cosmo e matou Deus. E
como conseqüência, o ato é final e irremediável. Todos os
cosmos e todos os deuses que o homem vier a construir
serão produtos de sua própria desordem. Serão ídolos:
produtos humanos cujas origens humanas foram esquecidas
e que são adorados como se fossem reais quando, na
realidade, nada mais são que travestis: o Nada fantasiado de
real.
j) É o momento do desespero: o eclipse da esperança.

A consciência é uma teoria da realidade. A sua matriz
emocional contém a exigência de que a própria estrutura da
realidade esteja em harmonia com os seus valores. As coisas
têm de fazer sentido. Mas os fatos brutos de sua experiência
colidem com os seus valores. O homem é neurótico porque
ele vive a contradição permanente entre os fatos da
realidade e os valores da personalidade. Doença incurável.
"Consciente de que ele é um doente crônico, o homem
psicológico sabe que cada cura o exporá a uma nova
enfermidade".
Surge então a pergunta: como é possível ao homem manter-
se numa situação destas? Por que mecanismos consegue ele
manter os seus valores em meio a uma realidade que os
nega? Como transcende a brutalidade dos fatos? Que o leva a
resistir? Como sobrevive como espírito?
Não sabemos. O fato é que ele resiste. E na sua consciência,
a resistência se apresenta sob a forma de esperança.
Esperança é uma teoria da realidade: uma suspeita de que os
valores, mesmo na sua não-existência fatual presente, são
mais reais que os fatos imediatamente dados. Esperança é a
suspeita de que o que é importante agora se revelará como
poderoso no futuro. É uma rejeição do positivismo. Por isto
o homem é capaz de enfrentar a dor e o sofrimento. Ele os
vive como acidentes provisórios, a serem conquistados no
futuro. Enquanto permanecer a esperança, a estrutura da
personalidade permanecerá também. Quando, entretanto, a
esperança entra em colapso, a personalidade se desintegra.
Porque o colapso da esperança é o mesmo que reconhecer
os valores como ilusões e a brutalidade dos fatos sem sentido
como realidade. Só lhe resta então entregar-se às estruturas
de poder do seu tempo-presente, que são a negação dela
mesma.
Ora, que é Deus? O símbolo da plausibilidade dos meus
valores, a promessa da salvação, a realidade onipotente dos
meus anseios, o poder da minha fraqueza. Deus é o símbolo
da esperança: a esperança corporificada na imaginação.
Destruída a esperança, morrem os deuses. Destruídos os
deuses, morre a esperança. Não é mais possível manter a
estrutura da personalidade, porque ela foi roubada daquele
tênue fio de suspeita que lhe permitia resistir o presente na
expectativa do futuro.

k) Quando isto ocorre, a morte se torna mais graciosa que a
vida. Viver é oferecer o meu corpo à realidade que me
envolve. Mas se a realidade zomba dos valores que danço
com meu corpo, o viver não será uma forma de prostituição?
A única saída: retirar-me do real. "Quando a morte é o maior
perigo", dizia Kierkegaard, "então espera-se pela vida. Mas
quando alguém conheceu um perigo ainda mais horrendo,
espera-se pela morte". O suicídio é o último ato de
afirmação de sentido, o último ato de protesto, o último ato
de rebelião: o resultado da tristeza sem fim que se respira
num mundo onde Deus morreu e onde o cosmo e o
"nomos" se dissolveram.
1) Encontramo-nos numa fronteira em que a experiência
religiosa fundamental muito se aproxima da loucura. Sinto-
me tentado a sugerir que se a experiência da conversão se
mantivesse em sua primeira fase, não haveria formas de
distingui-la da loucura. Ou, inversamente, que a loucura é
uma crise religiosa que não conseguiu transcender a
desestruturação que ela implica. Não é por acidente que a
sociedade chama os loucos de alienados e que a ciência que
esta mesma sociedade criou denomine a religião de
alienação. No sentido etimológico: alienar-se, tornar-se
outro, tornar-se diferente, localizar-se fora dos limites
socialmente definidos como "realidade".
O problema, entretanto, está em que, ao proceder assim, a
sociedade se recusa a perguntar-se a si mesma acerca do seu
próprio "status". Ela não ouve e não entende — e não
poderia ser de outra forma — a pergunta que a loucura e a
exeperiência religiosa lhe dirigem. De forma tranqüila e
acrítica ela aceita, sem maiores dúvidas, que a realidade que
ela descreve possui a mesma dureza que as coisas. No êxtase
religioso, entretanto, dissolve-se esta certeza. A alienação é
inevitável. Mas da interioridade da experiência religiosa, esta
é nada mais que a alienação de uma alienação, o separar-se
de um ídolo, o tomar distância de uma ilusão.

V. O SEGUNDO MOMENTO DA EXPERIÊNCIA
DA CONVERSÃO

a) Inesperadamente, entretanto, um milagre acontece. O
momento de crise e desestruturação da personalidade
encontra uma solução. A consciência ressuscita,
transfigurada, como uma nova estrutura em que tanto os
conteúdos emotivos quanto os cognitivos são radicalmente
novos. A experiência tem o caráter de milagre porque
parece impossível descobrir um nexo entre o seu antes e o
seu depois. O homem se sente possuído por uma inebriante
sensação de paz e alegria. As tensões são resolvidas. Sem
saber como isto ocorreu, descobre-se transportado do Nada
para o Ser, das Trevas para a
Luz, do Fim para o Princípio, da Morte para a Vida.
Encontrou a salvação. Ou, mais precisamente, foi por ela
arrebatado. Experiência preservada nos mitos cosmogónicos
no miraculoso e inexplicável salto do caos para a ordem, dos
abismos para a terra seca, do turbilhão para o jardim, das
águas do mar para o rio da vida.
Diante dos seus olhos maravilhados a consciência vê desfilar
um mundo totalmente novo. Nada foi acrescentado ou
subtraído. As mesmas coisas, os mesmos céus e campos, as
mesmas pessoas e cenários, as mesmas tarefas e sofrimentos.
Mas tudo se organiza de forma nova. Experiência
calidoscópica: os fragmentos feios e destituídos de
significação se revelam como estruturas simétricas e
permanentemente belas quando contempladas através de
um novo meio de reflexão. Mudaram as coisas? Não. Mudou
a maneira de ver as coisas. E, portanto, todas as coisas
mudaram. "As coisas velhas já passaram. Eis que tudo se fez
novo (2 Cor 5,17). O zen-budismo denomina tal experiência
de "satori", iluminação, o abrir-se de um "terceiro olho". A
realidade se torna diferente porque a consciência a
contempla sob uma nova luz e com novos olhos.
Modificado o jogo de luzes sob o qual víamos o mundo,
percebemos que as zonas de sombra que nos amedrontavam
são exatamente as mais amigas e que as zonas que antes nos
pareciam amigas nada mais eram que desertos disfarçados
em jardins.
Nada foi acrescentado ou subtraído. Mas tudo foi
reestruturado. E se é a estrutura que determina a
significação, encontramo-nos diante da gênese de um novo
universo significativo!'; Sempre que contemplamos o
nascimento de um novo universo significativo, estamos
diante do momento religioso da consciência — ainda que ela
não faça uso de palavras que a tradição cristalizou como
religiosas, para descrevê-lo. Repete-se o momento
cosmogónico. O homem e o mundo têm um novo começo,
"ex-nihilo".
Que ocorreu? Que mágica transformação se processou? Que
milagre é este que transubstancia o mundo? Como
transubstanciação, se todas as coisas permaneceram as
mesmas, na sua facticidade?

b) O mundo humano: criação da imaginação

Acontece que o homem não vive num mundo de fatos
brutos, mas num mundo de valores. Recordamos o que diz
Dewey: empiricamente as coisas não são neutras. Não vive-
mos num mundo de objetos inertes. Para o homem cada
coisa é um valor — algo que me atrai e faz promessas, algo
que me repele e ameaça. O mundo humano — queiramos
ou não — se estrutura em torno dos nossos sonhos, e um
"mundo de sonhos que se organiza em função do sucesso ou
da frustração dos desejos que constituem a sua essência".
Freqüentemente somos levados a pensar que o mundo
construído pelas emoções é uma ilusão do homem comum,
uma forma de feitiço peculiar à consciência que ainda não
passou pela iluminação científica. Os sociólogos", observa A.
Gouldner, bem como todos os que aplicam a si mesmos o
pomposo título de cientistas, "devem abandonar a
pressuposição humana mas elitista de que os outros crêem
por causa de suas necessidades, enquanto que eles crêem em
conseqüência dos imperativos da lógica e da razão". Como
Gunnar Myrdal observa, "os fatos não se organizam em
conceitos e teorias simplesmente por olharmos para eles
(...). Perguntas devem ser "feitas antes que respostas sejam
dadas. E as perguntas são todas expressões do nosso interesse
no mundo. No fundo, eles são valorações". E citando Louis
Wirth: "Sem valorações não temos nenhum interesse ou
sentido de relevância ou de significação e,
conseqüentemente, nenhum objeto". Nossos valores são o
centro do nosso mundo. No campo da terapia isto é de
fundamental importância. "O principal problema na
psicologia", escreve Prescott Lecky, "não é simplesmente o
de mudar a atitude do paciente para com um detalhe
especial da experiência, mas antes de rever a sua velha
filosofia e de desenvolver uma nova perspectivasse um valor
é assimilado na organização ou expelido dela, o processo não
é um de simples adição ou subtração, mas antes de revisão
geral e reorganização". O mundo se constitui a partir das
valorações, a objetividade a partir da emoção. Não é possível
desenvolver esta linha de pensamento nos limites deste
trabalho. Queremos apenas sugerir que, na medida em que a
ciência ocidental constituiu um novo universo, por detrás
dela, no seu momento de gênese, se encontra um momento
de conversão, isto é, uma reestruturação do sujeito e do
mundo em torno de novos valores. Por detrás de cada
microscópio se esconde um altar. Por detrás de cada fórmula
abstrata, um momento de êxtase. Temos de perguntar, com
Freud, numa carta que escreveu a Einstein em 1932: "Não é
verdade que toda ciência, no final, se reduz a um tipo de
mitologia?
c) Estamos diante de um momento mágico em que a
consciência se constitui em torno de um novo centro
emotivo, a partir do qual o mundo toma um novo sentido.
Os estímulos materiais são transformados, como o raio que é
filtrado pelo prisma, revelando cores dantes não vistas.
Como o artista que toma o mármore bruto e lhe dá uma
forma estética. Como, talvez, na forma mais primitiva da
cultura, o homem que submete o cru ao fogo e o transforma
em objeto cultural, o cozido, que vai se constituir numa
nova experiência biológica, estética e litúrgica. A
experiência religiosa primordial é o prisma, o artista, o fogo.
Só que agora sua matéria-prima não é mais um objeto, mas a
realidade toda.

d) É a experiência da fé. Ter fé não é ver coisas que os
outros não vêem, mas ver as coisas que todos vêem com
outros olhos. Questão de perspectiva. "A fé", observa
Tillich, "não é a afirmação teórica de alguma coisa incerta.
Ela é a aceitação existencial de algo que transcende a
experiência ordinária. Fé não é uma opinião mas um estado")
"Ela é simplesmente fé, não dirigida para algo, absoluta". Da
mesma forma como não é o objeto que cria a estrutura mas
antes a estrutura que faz o objeto se constituir, a fé não é ver
mais um objeto, mas antes a perspectiva que coloca todos os
objetos num contexto significativo novo. "É a experiência
mais simples porque ela é a base de todas as experiências".

e) A reestruturação do mundo é concomitante com a
reestruturação da consciência. O mundo se tornou diferente
no momento em que o sujeito se tornou diferente. A
conversão marca, assim, a transição de um "homem velho"
para um "homem novo". Nas cerimônias primitivas de
iniciação os neófitos eram saudados como recém-nascidos e
a sua vida adulta passava a ser considerada como totalmente
nova. Nos mistérios gregos, "aqueles que haviam sido
adotados pela divindade eram considerados 'deuteropotmoi',
'aqueles a quem um segundo destino havia sido dado'. A
simbologia do batismo preserva a mesma idéia. A submersão
nas águas é morte, dissolução no caos primitivo. O passado,
juntamente com o Eu, é reduzido ao Nada. E o emergir das
águas é o milagre de uma vida recém-formada, que
nenhuma ligação tem com o anterior, o símbolo do "novo
nascimento".

f) Se o que caracterizou a primeira fase da conversão foi a
experiência da falta de sentido, no seu segundo momento ela
é a redescoberta do sentido. Talvez este seja o elemento
mais significativo da experiência religiosa primordial. Como
observa Buber, "a essência religiosa de toda religião é a
certeza de que o sentido da existência está aberto e é
acessível em meio às condições concretas da vida".
Que constitui a experiência de sentido? Nas palavras de
Schleiermacher, "é a consciência imediata da existência uni-
versal de todas as coisas finitas, em e através do infinito, e de
todas as coisas temporais em e através do Eterno".
Recuperação de uma unidade perdida, redescoberta de
harmonia em que os valores da subjetividade e as condições
da objetividade são partes de uma mesma sinfonia. A
realidade se transforma em um sorriso. Se o que caracterizou
a experiência da falta de sentido foi o "não estar em casa", o
estremecer em face de uma realidade sinistra e hostil, agora
a consciência se sente, na sugestiva linguagem do zen, como
que "retornando ao seu próprio lar" — que esteve ali todo o
tempo, amigo e convidativo, escondido aos olhos daqueles
que ainda não haviam passado pelo "satori", o abrir do
terceiro olho. "Sentimento oceânico", "sendo de
participação no mistério do infinito" e, mais do que isto, a
certeza de que o infinito é a favor do homem.

g) A realidade se torna sacramento. O mundo se transforma
em hostia (T. de Chardin). As coisas se tornam expressões,
revelações, portadoras e instrumentos das significações
nutridas pelo coração. A opacidade do material é rompida e,
através de sua transparência, vê-se o sagrado que se revela
através do profano.
"Deus mesmo tem de estar presente em cada criatura", diz
Lutero, "no mais íntimo e no mais exterior do seu ser, em
todos os lados, através dele, abaixo e acima, atrás e à frente,
assim que nada pode estar mais verdadeiramente presente
dentro de todas as criaturas que Deus mesmo e o seu poder".
Ou nas palavras de Blake:

Ver um mundo num grão de areia
E um céu numa flor silvestre,
Segurar o infinito na palma da mão
E a eternidade em uma hora.

Na experiência religiosa primordial expressa-se algo que
pensamos ser a mais profunda aspiração do Ego: que o
mundo todo seja uma expressão do "princípio do prazer". O
universo inteiro tem de ser um objeto do amor: a mais ambi-
ciosa obra estética, a experiência lúdica mais universal. "A
vocação especial do homem", comenta Schleiermacher, "é
que sua vida seja uma melodia. Mas esta melodia seria pobre
e simples série de notas, a menos que a religião, com a sua
variedade infinita, a acompanhe com todas as notas e a eleve
de simples canção à gloriosa condição de harmonia polifôni-
ca. Da experiência religiosa irão surgir "os universos simbó-
licos que proclamam que toda realidade é humanamente
significativa" e para isto eles "invocam todo o cosmo para
expressar a validade da existência humana
h) Uma objeção poderia ser levantada aqui. E isto porque
freqüentemente a religião parece estar ligada a uma negação
do mundo. Não cria ela, quase sempre, outros mundos no
além? Não se nutre ela destes mundos? E não será isto, em
última análise, uma negação da vida? A este respeito, Max
Weber faz uma observação que me parece muito apropriada.
Diz ele: "Estes valores sagrados extra-mundanos de forma
alguma eram apenas valores do além. Este não era o caso
nem mesmo quando os que deles participavam assim o
entendiam. De um ponto de vista psicológico, o homem em
busca de salvação está primariamente preocupado com
atitudes relativas ao aqui e ao agora". No instante em que ele
é capaz de viver o profano, o aqui e o agora, como funções
do sagrado e do eterno, a vida e o mundo adquirem uma
nova significação, a partir de um ponto que o transcende. A
negação religiosa do mundo é sempre o resultado da certeza
de que o sentido da vida não lhe é imanente — porque tanto
a realidade do mundo quanto a realidade da vida se
constroem sobre o Nada e estão destinados à morte.
Emerge uma atitude fundamentalmente nova perante a vida.
Dizia Louis Pasteur perante a Académie Française: "Os
gregos compreenderam o poder misterioso do lado
escondido das coisas. Eles nos legaram uma das mais belas
palavras em nossa linguagem: a palavra entusiasmo' — "en
theos" — um deus dentro... Feliz é o homem que tem um
deus dentro de si". Na experiência religiosa primordial o
homem se sente cheio do divino, cheio do Espírito, em
comunhão com o transcendente, um participante do eterno
e do infinito. No absurdo da experiência anômica o homem
se descobriu só e impotente perante a vida. Agora,
entretanto, o divino o enche, e por isto ele pode caminhar
tranqüilo.
Experiência de poder. Não mais sozinho em frente a uma
realidade que o aniquila. Os limites do seu poder já não são
os limites dos seus braços. Em comunhão com o Absoluto,
restaurou-se o cordão umbilical dantes rompido. Pode viver
e morrer na certeza de que a Realidade o afirma. Não mais
um solitário que solta gemidos que se perdem no vazio. O
tempo e o espaço se enchem de vozes que o confortam e
animam. Ele pode orar. Orar: vibrar harmonicamente com o
Infinito. Sabe que as articulações conscientes de sua oração
são inadequadas para exprimir a riqueza da experiência
vivida. Mas isto não importa. O que importa é o
incognoscível amigo que recebe e ecoa nossa incapacidade
de exprimir. "Gememos em nosso íntimo", diz Paulo. "Não
sabemos orar como convém. Mas o mesmo Espírito
intercede por nós, com gemidos que não podem ser
traduzidos em palavras" (Rom 8,23.26).
O senso de estar sintonizado com o real funciona como um
catalisador que libera energias dantes paralisadas pelo medo.
Agora, cada ato, por mais singelo, é vivido com a certeza e
executado com a paixão de se estar executando no tempo os
movimentos da eternidade. Kierkegaard sugere como isto
ocorre na sua descrição do "Cavaleiro da Fé".

Aproximo-me dele, observando seus mínimos movimentos,
para ver se porventura não existe nele uma pequena
mensagem telegráfica heterogênea do infinito, um olhar,
uma expressão, um gesto, uma nota de tristeza, um sorriso
que traia o infinito na sua heterogeneidade com o finito.
Mas não! Examino esta figura de cabeça aos pés para ver se
descubro uma fresta por onde o infinito esteja olhando. Mas
não! Ele é totalmente sólido. Seu andar? Vigoroso, perten-
cendo inteiramente ao finito. E, não obstante, este homem
fez e está fazendo a cada instante os movimentos da
infinitude. E não obstante, a finitude tem para ele um sabor
tão bom como para aquele que nunca provou nada mais
alto... E há aquele senso de segurança ao gozá-lo, como se
a vida finita fosse a coisa mais certa de todas. E, não
obstante, a forma totalmente terrena que ele exibe é uma
nova criação, pelo poder do absurdo. Ele abriu mão de todas
as coisas, infinitamente, e então se apossou de todas pelo
poder do absurdo.
As condições objetivas da vida não mudaram. Mudaram as
condições subjetivas. "O crente que está em comunhão com
o seu deus", observa Durkheim, "não é apenas um homem
que vê novas verdades que o não-crente ignora; ele é um
homem mais forte. Ele sente dentro de si mais força, seja
para suportar os sofrimentos da existência, seja para
conquistá-los. Tillich denomina coragem de ser a esta nova
condição da subjetividade, coragem que vai ao extremo de
"tomar sobre si mesma até mesmo a ansiedade da falta de
sentido".
j) Agora é preciso perguntar: como foi que esta metamor-
fose ocorreu? Que causas fizeram com que a consciência que
se sentia totalmente impotente se sinta agora cheia de
poder?
O homem que passou pela experiencia da iluminação sabe
apenas de uma coisa: não foi ele a causa eficiente, o sujeito
desta transformação. Não foi o poder de sua impotência que
gerou a sua força. Seu poder vem de uma fonte que não é o
seu eu. Não nasce do seu interior, como liberação de energia
ali acumulada. Ao contrário, tudo se passa como se ele
tivesse sido repentinamente apanhado por um torvelinho de
poder que lhe é exterior. Mesmo as tradições em que a
experiência religiosa é interpretada como o emergir de
energias latentes nos níveis mais profundos da alma, afirma-
se que não foi o Ego que as libertou. Foi necessário, ao
contrário, que o Ego se quebrasse, pelo contacto mágico
com uma centelha que lhe é externa, para que o novo poder
se apoderasse da personalidade.
Na sua obra clássica sobre o assunto, William James explica o
fenômeno em termos da dialética entre os processos
inconscientes e a dinâmica subconsciente da mente. No
momento, não desejamos nem criticar e nem subscrever sua
explicação. Sua descrição fenomenológica, entretanto, é
significativa. Sabe-se, com efeito, que a operação consciente
do Eu, freqüentemente, ao invés de libertar, inibe. Atos que
executamos tranqüila e despreocupadamente se tornam
problemáticos no instante em que deles tomamos
consciência. O artista que se prepara para tocar em público
sabe disto. Uma coisa é tocar na descontração e no transe de
sua sala de estudos. Ali, ele se abandona ao sabor dos
mecanismos automáticos e inconscientes. Diante do
público, entretanto, a consciência interfere para ajudar. E o
efeito é inibir e atrapalhar. Nas investigações que fizeram
sobre problemas sexuais, Masters e Johnson chegaram à
conclusão de que a incapacidade sexual está ligada ao desejo
de controlar racionalmente o ato do amor. E é exatamente
isto que o frustra. A arte do amor, como a execução do
artista, estão ligados a um abandono confiante aos níveis não
conscientes da personalidade. Quando entramos no campo
da experiência de desestruturação emocional e
reestruturação da personalidade defrontamo-nos com o
mesmo processo. James entende que o novo centro da
personalidade é gerado subconscientemente durante o
período de crise — como um feto no ventre da mãe. E
"quando o novo centro de energia pessoal já foi incubado o
tempo suficiente para estar pronto para abrir como uma flor,
a única palavra de ordem é: 'Tire as mãos'. Em outras
palavras: a nova personalidade nasce sem o auxílio dos
nossos processos conscientes. Esta descrição, a meu ver, é
adequada. Nas situações em que a consciência entra em
colapso e se desorganiza, não se pode esperar que qualquer
ação que se origine dela seja capaz de produzir qualquer
coisa diferente da desorganização de onde ela emerge.
Conclusão contraditória: atinge-se o resultado quando se
abandona a esperança de alcançá-lo. Resolve-se o problema
quando se desiste de resolvê-lo. Ganha-se o poder quando se
desiste de procurá-lo.
Voltemos ao mito: o titanismo que pretendia tomar os céus
de assalto só provoca a invasão do caos. O "sereis como
deuses" do mito da queda vai reverberar no "construamos
uma torre cujo topo atinja os céus", do mito de Babel. Em
ambos os casos o resultado da ação foi o oposto de sua inten-
ção. Com isto concorda a teoria psicanalítica da história.
'Sendo uma objetivação da neurose humana, a história e a
busca da felicidade que nela se exprimem só conseguem
produzir novas formas de neurose e de infelicidade. É o
esforço do homem para se libertar de seu predicamento que
o mergulha cada vez mais no seu absurdo.
A teologia luterana elaborou este paradoxo na doutrina da
salvação pela fé em oposição à salvação pelas obras. Quanto
mais se tentar transformar o existencial pelo fazer, mais o
existencial se fixará em suas próprias contradições. É
necessário abandonar o fazer para que o existencial
experimente uma transformação qualitativa. "Pare de tentar
e a coisa se fará por si".

k) A consciência de poder, assim, relaciona-se
dialeticamente com um sentimento de absoluta
dependência. O poder que é experimentado resulta de uma
"rendição dos poderes próprios do homem a um outro poder
que o vence". Poder é graça: pura dádiva, cuja realidade não
pode ser explicada por referência a uma ação humana
anterior que o tenha produzido.
Para aquele que passou por esta experiência religiosa, um
fato é incontestável: a mudança radical de suas condições
subjetivas e conseqüentemente a transfiguração do mundo.
O homem sabe que isto se deu. Mas não sabe como se deu.
Há um abismo radical, uma incomensurabilidade absoluta
entre o que veio antes e o que veio depois, entre o
demoníaco e o divino. O que veio antes não pode ser
invocado como causa do que veio depois. Poder-se-ia
apontar para a desintegração do cosmo, para os sentimentos
de culpa, angústia e impotência, como os responsáveis pelo
novo cosmo surgido e pelos sentimentos de paz,
tranqüilidade e poder? No entanto, esta polaridade está
sempre presente na experiência religiosa primordial. A luz
aparece depois de se descer às profundidades das trevas. Os
picos e os horizontes emergem no fundo do abismo. A voz
de Deus se ouve na sua ausência absoluta, quando no ventre
do monstro marinho o homem se sente engolido pela
escuridão, pelas águas, pelo silêncio.

Do ventre do abismo gritei. . .
Todas as tuas ondas e as tuas vagas passaram sobre mim.
As águas me cercaram até a alma e o abismo me rodeou e as
algas se enrolaram na minha cabeça até os fundamentos dos
montes.
Mergulhei num mundo cujos ferrolhos correram sobre mim,
para sempre.
Contudo, fizeste subir da sepultura a minha vida (Jon 2).

I) Como foi que lhe ocorreu a iluminação? Qual a lógica que
se esconde neste processo de desestruturação? O homem
responderá: "Não sei". Poderemos invocar um sem-número
de fatores psíquicos e sociais que atuaram como catalisadores
da desestruturação. Mas qual foi a causa eficiente da nova
síntese? De que modelos a consciência lançou mão para se
reconstruir? Não há fatores explicativos. A consciência falará
de revelação. Num abrir e fechar de olhos se transformaram.
Ela não construiu o seu mundo — porque a sua condição era
exatamente a experiência de colapso de todos os modelos de
que dispunha. A nova experiência lhe foi dada. Veio de fora.
Milagre. Criação do Espírito. "Como pode o homem nascer
sendo velho?" "O vento sopra onde quer, ouves a sua voz,
mas não sabes donde vem nem para onde vai. Assim é todo
o que é nascido do Espírito" (Jo 3,4-8).
Não há mediações lógicas de que possamos lançar mão. A
iluminação é um fato novo — "creatio ex-nihilo" — que
podemos apenas constatar e descrever, sem, contudo, saber
como explicar. Talvez possamos aplicar a esta situação o que
Jung disse acerca dos processos criativos da mente: "O ato
criativo escapará, para sempre, à compreensão humana".
Porque compreensão, como a entendemos, exige
continuidade lógica. Enquanto que aqui estamos diante de
uma ruptura.

m) O problema, entretanto, vai além do domínio da lógica.
Que nos revela o colapso da lógica? O caráter precário e
provisório dos nossos modelos teóricos, quando se trata de
compreender a realidade. Uma das estranhas contradições
de nossa tradição científica está em que ela preservou as
pretensões ontológicas da filosofia grega e da teologia
medieval, que identificavam a necessidade lógica com a
necessidade ontológica: o lógico deve ser real. Somente
agora alguns cientistas estão começando a perceber que suas
teorias não são visões daquilo que é, mas apenas palpites
mais ou menos competentes acerca do real, inevitavelmente
destinados a ser ultrapassados. "O velho ideal científico de
episteme de conhecimento absolutamente certo e
demonstrável", observa Popper, "provou ser um ídolo. A
exigência da objetividade científica torna inevitável que
todas as proposições científicas devam permanecer
tentativas, para sempre". Há uma descontinuidade entre o
racional e o real. A realidade é mais complexa do que
pensamos. Não nos encontramos sobre um plano unidi-
mensional, que pode ser projetado ad infinitum, mas antes
no ponto de interseção de uma infinidade de planos que se
interrompem, que se negam, que se superam. Não é
possível, portanto, manter-se a idéia de uma realidade
totalmente previsível, racional. O que Mannheim observou
em relação a cosmovisões pode ser aplicado aqui: "Em certas
circunstâncias nada contém impulsos mais irracionais que
uma visão de mundo intelectualista e plenamente auto-
suficiente".

n) o colapso da lógica nos defronta com uma dimensão
misteriosa da experiência. Mistério é uma palavra cujas
origens ignoramos em nossa linguagem comum. Muito
embora a lingüística tenha mostrado que o sentido é dado
pela estrutura e não pela etimologia, freqüentemente a
etimologia nos revela uma significação que é proibida pela
lógica da linguagem presentemente falada. Mistério deriva-
se do grego "muein", fechando os olhos ou fechando a boca.
Comentando a significação desta palavra, Tillich observa: "a
fim de termos o conhecimento ordinário é necessário abrir
os olhos para aprender o objeto e abrir a boca para nos
comunicar com outras pessoas a fim de testar o nosso
'insight'. Um mistério genuíno, entretanto, é experimentado
numa atitude que contradiz a atitude de cognição ordinária.
Os olhos estão fechados, porque o genuíno mistério
transcende o ato de ver, de confrontar os objetos cujas
estruturas e relações se apresentam ao sujeito para o seu
conhecimento. O mistério caracteriza uma dimensão que
'precede' a relação sujeito-objeto". Os olhos estão fechados
porque as visões anteriores já não são mais válidas, e agora
novos olhos estão sendo gerados.
Na linguagem comum mistério tem a ver com aquilo que
ainda não conhecemos. Mistérios tornam-se claros, deixam
de ser mistérios, ao serem decifrados pela razão. O mistério
da experiência religiosa, entretanto, é algo diferente. Não se
trata de um enigma ainda não submetido à razão, mas antes
da dissolução das estruturas da razão que tornariam sua
decifração possível. A experiência do mistério é idêntica à
experiência dos limites da razão. É olhar e ouvir aquilo que
está para além do cosmo definido e limitado pela razão, e
que portanto escapa a todas as suas tentativas totalizantes e
de assimilação. Por isto, a palavra 'mistério' não deveria ser
aplicada a algo que deixa de ser mistério depois de revelado.
Nada que pode ser descoberto por meio de uma abordagem
cognitiva deveria ser chamado de 'mistério'. A revelação
daquilo que é essencial e necessariamente misterioso
significa a manifestação de algo dentro do contexto da expe-
riência ordinária que transcende o contexto ordinário da
experiência". A experiência cotidiana pressupõe sempre a
possibilidade de assimilação (tornar semelhante a si, tornar
doméstico). Agora, entretanto, ela é deslocada pelo
encontro com algo "estranho" que resiste à assimilação. Algo
"totalmente Outro" (R. Otto): "aquilo que está além da esfera
do usual, do inteligível, do familiar, e que jaz totalmente fora
dos limites da 'sabedoria prática' e a ela se opõe, enchendo a
mente de estupefação e perplexidade", que no momento
demoníaco se identifica com o terror e a angústia, e no
momento divino da experiência religiosa com a fascinação
da união erótico-mística.
Não se trata da contemplação de um objeto misterioso. A
crítica que se faz da religião comete freqüentemente este
engano. Freud, por exemplo, faz um sumário da religião
dizendo: "Idéias religiosas são ensinos e afirmações sobre
fatos e condições da realidade externa e interna que dão a
alguém informações que não foram descobertas por este
alguém e que exigem que sejam cridas". A religião teria
pretensões científicas, pretenderia oferecer conhecimento
de objetos misteriosos que não podem ser investigados pela
ciência. Coisasemelhante encontramos em Marx. Ao analisar
a relação entre a religião e o mundo do homem ele afirma:
"Religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio
enciclopédico, e sua lógica em forma popular..."
Não há dúvidas de que se pode optar por uma abordagem
destas. Entretanto, descrever a experiência religiosa to-
mando suas cristalizações institucionais e dogmáticas como
ponto de referência é o mesmo que tentar compreender a
vida através do cadáver. Existe um abismo entre as formas
reificadas da religião e a experiência que lhes deu origem.
Poder-se-á compreender o amor pela instituição do
casamento? Poderá reduzir-se o amor à instituição do
casamento? O mesmo podemos dizer da infinita distância
que separa a experiência religiosa, essencialmente emocional
e existencial, dos objetos que eventualmente surgiram desta
experiência.
Retomemos nossa linha de pensamento: não se trata da
contemplação de um objeto misterioso. É a nova maneira de
ser-em-relação-ao-mundo que é misteriosa. O mistério não é
uma coisa, mas uma dimensão da experiência. Algo
semelhante à experiência estética. A linguagem daquele que
experimentou o belo emerge desta experiência. Mas ela não
é capaz de exprimir a beleza, como se fosse um objeto. O
belo não é nem uma propriedade do objeto e nem uma
condição do sujeito, mas antes uma maneira de
experimentar a relação sujeito-objeto. O belo permanece
como o fundamento emocional de onde surge a linguagem,
mas não pode nunca ser objeto nesta mesma linguagem.
Você está com ele unido, num ato de verdadeira comunhão:
e você conhece o segredo do seu ser, de forma profunda e
inesquecível e, não obstante isto, numa forma que você
nunca pode esperar exprimir..." Por isto, observa
Schleiermacher em relação à experiência do divino,
"transferir a idéia de Deus para qualquer objeto perceptível é
sempre uma corrupção". Deus não está aqui, não está aí, mas
está "entre" (Buber). A experiência do divino é a experiência
de uma nova forma de consciência que se constitui não
autonomamente sobre si mesma, mas antes sobre um trans-
cendente que ela mesma não contém. Talvez encontremos
aqui as razões mais profundas para a proibição radical que
pesava sobre o israelita de jamais pronunciar o nome do seu
Deus. O nome chegou a ser esquecido. Resta-nos apenas o
tetragrama YHWH. Ou talvez, numa interpretação lata do
segundo mandamento, que proibia a confecção de imagens,
possamos ver uma interdição do esforço que caracterizou a
tradição grega e ocidental de construir uma teologia, que se
constituísse no princípio fundamental de uma visão
científica do mundo. Dar um nome significa definir, incluir
num discurso lógico, subordinar a uma gramática. Como
bem observou Tersteengen, numa frase que R. Otto colocou
ao início de sua análise do "mysterium", "Ein begriffener
Gott is kein Gott" — um Deus que se compreende não é
Deus^Em linhas semelhantes, a tradição zembudista
entende que o ponto fundamental da experiência religiosa é
a interrupção do fluxo lógico da linguagem. "O pior inimigo
da experiência zen é o intelecto, que consiste em
discriminar o sujeito do objeto". A experiência religiosa e
inefável. Talvez uma das mais interessantes expressões desta
compreensão da experiência religiosa tenha sido a "teologia
negativa", que afirmava que podemos verdadeiramente
conhecer apenas o que Deus não é, e que não podemos
conhecer o que ele é, positivamente. O conteúdo da
revelação é existencial e pessoal. Ele tem a ver com minha
maneira de ser em relação ao mundo. E portanto não posso
me referir a ele seja como parte do sujeito, isoladamente,
seja como propriedade de um objeto. Assim, a experiência
do divino é essencialmente e não acidentalmente misteriosa
e secreta. "O conteúdo inteiro e essencial do pensamento
subjetivo é essencialmente um segredo, porque ele não pode
ser comunicado diretamente".
A experiência da conversão, com vestes religiosas ou não, é
uma possibilidade permanentemente aberta ao homem e,
como tal, um sintoma da permanente inquietação que nos
caracteriza existencialmente e da permanente precariedade
do mundo em que habitamos. Quando o mundo objetivo se
estabiliza, em decorrência de arranjos institucionais, jaz
latentena consciência a inquietação que não lhe permite
descansar nas certezas conquistadas. O homem se
caracteriza pelo seu "cor inquietum". Intuição teológica?
Esperança equivocada? Neurose? Não sei responder. Apenas
constato o fato. E quando, por quaisquer motivos, a
consciência parece encontrar sentido no seu mundo, corrói-
a a certeza da precaridade do seu corpo e do seu mundo,
construídos sobre o Nada, para a morte. Conflito
permanente, insolúvel, entre valores e fatos, entre o que
deve ser e o que é, entre o existencial e o objetivo.
Personalidade: síntese impossível entre o infinito que vive
no homem como aspiração, e o finito, que define os limites
do cognoscível. Se a insatisfação revela a falsidade do real, a
transitoriedade da vida revela a precariedade da felicidade e
dos equilíbrios construídos. Expressa-se aqui aquela caracte-
rística do homem que o distingue de todos os demais seres:
"O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é".
Rebelião ontológica, radical, que se insere no mundo
humano e que não pode ser eliminada. Por mais "alienada"
que seja uma dada experiência religiosa, ela é sempre um
protesto contra as condições da existência. Nas lindas
palavras de Marx: "O sofrimento religioso é ao mesmo
tempo expressão de um sofrimento real e um protesto
contra ele. Religião é o suspiro da criatura oprimida, o
coração de um mundo sem coração, o espírito de uma
situação sem espírito".
As metamorfoses se operaram pela mágica da imaginação. E
como a imaginação é filha da emoção, podemos concluir
que a experiência religiosa primordial é fundamentalmente
emotiva.
Há muito que sentimentos e emoções foram banidos daquilo
que se convencionou chamar de "realidade". As ciências do
homem, fascinadas pela objetividade, movidas pelo ideal de
um conhecimento exato, e na medida em que "insistem em
fazer uso de um método tomado da física", foram levadas a
ignorar todas as dimensões da realidade não passíveis de
simbolização matemática. Como as emoções não são objetos,
como sentimentos não podem ser quantificáveis, por
exprimir fundamentalmente uma maneira de ser em relação
ao mundo, emoções e sentimentos deixaram de ser
significativos. Epifenômenos que não pertencem ao real.
Contradição: ciências humanas obcecadas por um ideal
epistêmico anti-humanista! Entretanto, quando os
sentimentos foram colocados entre parênteses, a própria
vida foi colocada entre parênteses. Porque, do ponto de vista
do organismo, para o qual a prioridade última é sobreviver, o
mundo não é constituído de objetos inertes. Cada objeto é
uma promessa ou uma ameaça de morte. Por detrás do mito
da objetividade esconde-se o eclipse da própria vida. Sempre
que a existência está em jogo o conhecimento "deve ser
ansiosamente apaixonado. Paixão implica relação com a vida,
com a realidade da existência pessoal... A erudição
indiferente, na sua distância, longe de ser séria... é uma
piada, nada", observou Kierkegaard.
Quando tomamos a realidade da vida como nosso ponto de
partida verificamos que "sentimentos não são impulsos
isolados, mas evidências estruturadas da realidade, ou seja, da
interação do campo organismo/ambiente, para a qual não
existe nenhuma outra evidência direta a não ser o sentimen-
to Na emoção se revela a minha maneira de ser em relação
ao mundo e a maneira de ser do mundo em relação a mim.
Ela é o sintoma da própria vida. Como bem observou
Heidegger, "um sentimento revela o como de uma pessoa, e
a maneira do seu tornar-se (wie einem ist und wird). A
emoção, que constitui o campo invisível da realidade
estética, que foi a pré-condição para a ocorrência do evento
lúdico, de igual forma constitui a maneira de ser do homem
em relação ao mundo. E é esta realidade invisível, inefável,
misteriosa, que se expressa na experiência religiosa que
desajeitadamente se revelará e se esconderá nos símbolos
que a imaginação irá criar para comunicar-se.
Se as estruturas significativas fossem propriedades dos
objetos, o mundo dos animais não se distinguiria do mundo
dos homens. Bastaria que a consciência fosse rigorosamente
objetiva, que simplesmente reduplicasse os fatos, para então
emergir, de forma definitiva, na subjetividade, a visão do
sentido. Homem e mundo, consciência e objetividade
estariam unificados, harmonizados. Nunca em conflito. O
processo de desestruturação e estruturação só é possível
porque as estruturas não são dadas no real, mas projetadas
sobre ele elas somente existem pela mediação da
imaginação. E como a imaginação é filha do Eros, expressão
do amor, função da emoção, somos levados a concluir que a
racionalidade estrutural tem sempre raízes não-racionais.
Concordamos com Max Weber: "Todas as grandes maneiras
de viver uma vida racional e metódica" — inclusive a
científica — "têm sido caracterizadas por pressuposições
irracionais". Conclusão semelhante à de Durkheim: "As
categorias fundamentais do pensamento, inclusive as da
ciência, têm uma origem religiosa". Nas linhas da psicanálise
podemos dizer que na razão encontramos as emoções em
busca de um fundamento lógico. Se é verdade, como Pascal
afirmava, que "o coração tem razões que a própria razão
desconhece", verdade é também que o coração cria a razão
como sua aliada. Razão, pequena razão, brinquedo e
instrumento da Grande Razão, o corpo (Nietzsche ). Se isto
é verdade, torna-se necessário concluir que a racionalidade
se assenta sobre fundamentos que não podem ser
esclarecidos por esta mesma racionalidade.
Vejo aqui a grande tragédia do momento em que vivemos.
Reduzida a religião à condição de neurose e de falsa
consciência pela ciência, a ciência mesma não pode ver os
pressupostos valorativos e, portanto, religiosos que se
encontram na sua própria gênese. E por isto não pode
compreender-se e regenerar-se. Prisioneira de sua lógica irá,
talvez, manter-se obstinadamente fiel a ela, até ser
consumida por suas contradições internas. Incapaz de
morrer, não poderá renascer. Incapaz de reconhecer a
anomia que se esconde no seu nomos, não terá a liberdade
para se reestruturar na direção de uma nova síntese, em
torno de novos valores.
MISTICISMO: A EMIGRAÇÃO DOS QUE NÃO
TÊM PODER

"A redescoberta do sobrenatural será, sobretudo, uma
reconquista da abertura em nossa percepção da realidade".
P. Berger

Borboleta,
asas contra o vidro:
inútil...
Mas continuam,
testemunho de uma visão:
há todo um mundo do outro lado...

Até há pouco tempo eram poucas as pessoas, dentre aquelas
que estudavam um pouco de sociologia, ou que haviam lido
alguns dos textos da literatura psicanalítica, que duvidavam
que a religião estivesse vivendo seus últimos dias. Havia
algumas exceções: uns poucos ainda levavam a religião a
sério. Mas exceções parecem simplesmente confirmar a
regra. Tratava-se de fósseis vivos de uma pré-história já
ultrapassada. Os poucos religiosos que ainda restam, dizia
Bonhoeffer, são alguns "sobreviventes da era da cavalaria, ou
um ou dois que são desonestos intelectualmente". Com a
marcha inexorável da ciência as explicações religiosas se
tornariam inevitavelmente supérfluas e obsoletas. Mas mais
do que isto: previa-se que o homem experimentaria uma
metamorfose no seu próprio ser, tornando-se radicalmente
secular. A consciência religiosa se constrói sobre a
pressuposição da existência de uma dimensão misteriosa na
realidade, dimensão de transcendência vertical, que
estrutura o real em níveis qualitativamente distintos, que
não podem ser apreendidos por meio de um mesmo ato
cognitivo. A ciência, ao contrário, afirma que a realidade é
um todo contínuo, uniforme, auto-explicativo, que contém
dentro de si mesmo as pistas para a sua própria
inteligibilidade. Ela crê mais, que os sentidos e a razão, como
partes constitutivas do real, e que dele emergiram, são ins-
trumentos adequados e suficientes para desvendar a trama
dos eventos, seja no nível natural, seja na ordem humana.
Não há mistérios. A tarefa que a ciência se propõe, nas pala-
vras de B. F. Skinner, é a "destruição do mistério", porque
ela se assenta sobre a convicção de que mistério é simples-
mente o enigma que ainda não foi desvendado. A questão
não é um simples acúmulo quantitativo de conhecimento.
Como matéria de fato, "o selvagem conhece
incomparavelmente mais acerca dos seus instrumentos" que
nós conhecemos acerca dos nossos. O que está em jogo é
antes "o conhecimento ou a crença de que se alguém quiser
poderá conhecer, a qualquer tempo", as condições sob que
vive... Não há forças misteriosas e incalculáveis em jogo.
Isto significa que o mundo foi desencantado". Que é a
religião no mundo de hoje? Um resíduo do comportamento
infantil num mundo que se libertou da tutela e ficou adulto,
uma 'sobrevivência' da ilusão mágica do homem primitivo
que cria na "onipotência do pensamento" a "neurose
obsessiva da humanidade". Mas a mesma inevitabilidade
com que os girinos perdem a cauda ao se tornarem adultos,
o homem abandonaria a religião ao submeter-se à "educação
para a realidade", cujos processos iniciatórios estavam agora
sob os cuidados da ciência. O mistério, a transcendência
vertical, a crença no novo e no utópico 'impossível' são
classificados como contos de fada. Em Freud a religião se
resolve na análise. Em Marx ela se resolve na política.
Mesmo os profissionais da religião, clérigos e teólogos,
acreditaram nesta profecia a partir da distinção que K. Barth
fez entre religião e fé, retomada por Dietrich Bonhoeffer, a
teologia dos últimos vinte anos lutou desesperadamente por
resolver o problema: como salvar uma tradição religiosa
num mundo que se torna, a cada dia que passa, mais anti-
religioso? A teologia da secularização, a teologia da morte de
Deus, os diálogos entre cristãos e marxistas (especialmente
na Europa), a teologia da libertação, com a sua substituição
da transcendência vertical por uma transcendência
horizontal, exprimível em termos de futuro, e em última
análise o próprio concílio do Vaticano II — que são estes
momentos de pensar e do viver da fé senão um repensar da
tradição, sob a ameaça apocalíptica do fim de uma era que
tinha na religião um dos eixos em torno do qual ela havia
construído a compreensão de si mesma?
Parece, entretanto, que algo andou errado com os profetas e
as suas profecias. Porque bem no meio dos funerais de Deus
e do réquiem à religião, uma chuva de novos deuses
começou a cair e um novo aroma religioso encheu os nossos
espaços e o nosso tempo. Parece-me que não se pode
contestar que as formas cristalizadas e institucionalizadas da
religião estão em declínio. Por outro lado, entretanto, não se
pode negar o surto de um novo fervor religioso, assumindo
agora formas novas e inesperadas. Durkheim, se estivesse
vivo, sorriria ao ver a sua curiosa previsão se cumprir. "Os
antigos deuses estão ficando velhos ou já morreram, e outros
ainda não nasceram... Um dia virá quando as nossas
sociedades conhecerão de novo horas de efervescência
criadora, no transcorrer das quais novas idéias emergem e
novas fórmulas são encontradas, que servem, por um pouco,
como guias da humanidade". Porque "há algo de eterno na
religião que está destinado a sobreviver a todos os símbolos
particulares com que o pensamento religioso sucessivamente
se cobriu". O que existe de estranho e inesperado nessa nova
situação é que a previsão foi contrariada não nas suas
margens, mas no seu próprio centro. Seria de esperar que os
grupos ou classes sociais que ainda não haviam sofrido o
impacto da ciência e da tecnologia continuassem sendo
religiosos ou que formulassem novas religiões. Porque, afinal
de contas, o seu mundo ainda não havia sido desencantado.
O crescimento do Pentecostalismo, por exemplo, fenômeno
que atraiu a atenção de um grande número de sociólogos
durante os últimos anos, de forma alguma se constituía
numa surpresa. Fenômeno de classes, pobres, ou de zonas
rurais ou de primeira geração em centros urbanos, podia ser
facilmente explicado como comportamento esperado de
grupos que ainda não haviam passado por uma elucidação
ideológica ou por uma experiência política. O mesmo se
aplicaria aos cultos afro-brasileiros, como a umbanda. O que
não se podia prever é que o novo fervor religioso viesse a se
manifestar justamente nos centros onde a secularização, a
burocratização e as instituições educacionais e científicas se
haviam estabelecido de forma mais forte. Mas é exatamente
isto que parece estar acontecendo. Não se permite, nos
limites de um enfoque sociológico, invocar indivíduos para
se comprovar uma tese. Opções individuais podem sempre
ser nada mais que resultados de neuroses individuais. Com
isto em mente, entretanto, eu gostaria apenas de mencionar
as ligações de Carl Friedrich Friherr von Weizsäcker, físico
e diretor do Instituto Max-Plank para as Ciências da Vida,
com a filosofia hindu; a volta de Roger Garaudy do partido
comunista francês aos círculos cristãos; e a recente ligação
de Arthur Koestler com investigações "místicas". Nada
desejo provar com estes casos. Desejo, entretanto, sugerir
que é bem possível que justamente nos limites da
consciência do desencantamento do mundo, nos limites da
exploração de suas possibilidades horizontais e imanentes,
estejamos nos dando conta de que talvez haja uma loucura
na secularização e uma cegueira na ciência. Em Nietzche, o
homem que anuncia a morte de Deus é o louco. Como K.
Mannheim observa, "nada mais afastado dos acontecimentos
reais do que o sistema racional fechado. Em certas
circunstâncias, nada contém impulsos mais irracionais que
uma visão do mundo intelectualista e plenamente auto-
suficiente". Pode bem ser que as rãs presas no fundo do
poço da parábola de Roszak tenham compreendido que a sua
racionalidade e ciência nada mais eram que racionalidades e
ciências de "fundo de poço", e que estejam começando a
suspeitar que talvez a cotovia que as visitava de vez em
quando, e falava de um mundo de espaços infinitos, estrelas,
montanhas, árvores e fontes cristalinas, tenha sido mais que
um trovador louco, e que tenha falado de horizontes que
realmente existem! Porque, afinal de contas, a nossa
consciência do possível é condicionada por nossa
experiência do imediatamente dado. Mas quem nos autoriza
a dogmatizar que os limites da nossa experiência definem os
limites do possível! Não é o fenômeno da "cultura das
drogas" — fenômeno de países ricos, e de classes abastadas e
escolarizadas — um fenômeno religioso? Havendo passado
pelos cerimoniais iniciatórios da vida racional, científica e
secular, os moços se voltam para uma exploração das
dimensões ocultas da consciência, para as viagens (é
interessante notar que a palavra "trip", viagem, seja usada
para descrever a experiência psicodélica!) pelos espaços e
tempos que lhe são interiores. É fácil simplesmente nos
descartarmos do fenômeno como uma fuga ou alienação.
Mas por detrás de tal julgamento não está a pressuposição de
que um imenso setor de experiências possíveis deve ser
colocado entre parêntesis como ilusório? Mas como negar o
que é dado à experiência? A religião da "cultura das drogas"
retrucaria que a racionalidade que se instaurou no mundo
ocidental domesticou e reprimiu uma vasta área das nossas
experiências, colocou vendas nos nossos olhos interiores
para que pudéssemos apenas contemplar os objetos
exteriores, e com isto criou uma realidade truncada e
empobrecida, e que chegamos a uma situação tal de
condicionamento que somente o sacramento químico pode
libertar as asas da imaginação. As disciplinas e filosofias
orientais, até há bem pouco tempo consideradas como
curiosidades de culturas retrógradas, invadiram os espaços
respeitáveis de nossa civilização secularizada. Loucura
coletiva? Regressão a níveis pré-científicos de consciência?
A loucura tem também a sua lógica. Para o louco ela se
apresenta sempre como razão. Suponhamos que a nossa
civilização seja uma forma institucionalizada de loucura. Há
evidências de sobra para consubstanciar esta hipótese.
Então, a racionalidade de nossa civilização, não seria ela a
racionalização de uma forma de desarranjo? E da
interioridade de tal estrutura, todas as outras opções não
parecerão loucura? Pode-se crer no julgamento de um louco,
quando ele chama uma outra pessoa de louca? Mas não é isto
que fazemos ao descartar o misticismo oriental como uma
opção irracional? Concordo com a observação de
Weizsäcker: "temos de nos distanciar de nossa própria
ingenuidade (a científica) a fim de compreender os
'insights' potenciais de um outro tipo de ingenuidade (a re-
ligiosa)". Como interpretar o abandono da racionalidade
científica e política e este inesperado voltar-se para opções
místicas e a busca de uma dimensão misteriosa da realidade?
Talvez a etimologia nos ajude um pouco. Mistério deriva-se
de um verbo grego muein, que significa "fechar os olhos" e
"fechar a boca". Ele indica uma experiência que está fora da
nossa cognição normal. Mas a nossa cognição normal é
condicionada pela linguagem. Eu vejo aquilo que as minhas
estruturas lingüísticas me permitem ver. Objetos que não
são previstos pela linguagem não podem ser realmente visto
pelos olhos. Como o disse Wittgenstein, "os limites da
minha linguagem denotam os limites do meu mundo". Mas a
linguagem define uma forma, e não mais do que uma, de
agarrar o real (o que não impede que usemos, em
momentos diferentes, diferentes linguagens). A linguagem é
uma técnica, uma ferramenta de captação, e quando ela
capta a "coisa", é a forma como a "coisa" é captada que a
define como objeto de conhecimento. Para todos os efeitos
práticos, entretanto, tendemos a considerar o objeto assim
construído como se fosse idêntico à realidade. Trata-se de
uma opção exclusiva, que classifica as outras como "falsas".
Por isto mesmo, se a linguagem nos permite ver de certa
forma, ela nos torna cegos para outras formas de agarrar a
mesma coisa, formas estas que a construiriam como um
objeto diferente. Por isto que a primeira lição de D. Juan ao
seu aprendiz de feiticeiro foi que "para um feiticeiro, o
mundo da vida cotidiana não é real, ou algo lá fora, como
pensamos. Para o feiticeiro a realidade, ou o mundo como
todos o conhecemos, é apenas uma descrição". E necessário
"fazer o mundo parar" — isto é, interromper a lógica da
linguagem que o define de uma certa forma e que assim nos
mantém "enfeitiçados" (Wittgenstein), — para então, e
somente então, podermos "ver": isto é, "respondermos às
solicitações perceptuais do mundo independentemente da
descrição que aprendemos a denominar realidade"}!3 A
experiência mística não tem primariamente a ver com a
contemplação de outras coisas (os próprios místicos
negariam isto), mas com a repentina e inesperada sensação
de não se sentir em casa naquilo que era antes considerado
como familiar, abrangente, total, real. A racionalidade do
cotidiano se revela como irracionalidade por se apresentar
como resultado de uma construção arbitrária das nossas
descrições.
Temos de nos perguntar agora acerca das razões por que a
calma familiaridade com o real que caracteriza a consciência
nas suas rotinas cotidianas está sendo rompida, de forma
inesperada. Sabemos que este rompimento não se dá
voluntariamente. A consciência não opta, por sua livre
vontade, pela anomia. O "mundo não pára" pela mágica de
uma decisão consciente. Há razões estruturais para isto.
Concordo com Prescott Lecky, quando ele afirma que a
personalidade "é um sistema que resiste a mudanças, em
decorrência da necessidade de preservar a sua integração e
unidade essenciais. Assim, as razões para o fenômeno que
nos ocupa se encontram no mundo concreto que o homem
habita. Na medida em que as relações entre homem e
mundo são apreendidas como harmônicas, a consciência
não se sente problematizada. Como Peter Berger e Thomas
Luckmann indicam, "na medida em que o meu
conhecimento funciona de forma satisfatória, sinto-me
inclinado a suspender minhas dúvidas a seu respeito. A
opção mística indica, por outro lado, que o equilíbrio foi
rompido. Se não fosse assim, a consciência não emigraria
para fora da realidade institucionalizada. Quais as condições
que perturbaram o equilíbrio? Quando é que meu
conhecimento deixou de funcionar de forma satisfatória.
A minha hipótese é que o sentimento da irracionalidade da
racionalidade institucionalizada ou a suspeita da irrealidade
do real socialmente construído emergem na medida em que
a consciência passa a sentir que existe um conflito irresoluto
entre as suas aspirações e valores, de um lado, e as
produções institucionais, de outro. Numa linguagem freudia-
na: quando o "princípio do prazer" experimenta o poder
coercivo e repressivo do "princípio da realidade" ela não se
ajusta a este último. Num ato de rebelião ele proclama que o
real não é real, e emigra para o tempo e os espaços interiores
à consciência, construindo aí uma realidade alternada onde
as aspirações e valores do ego encontram a sua realização. Se
a nossa hipótese for correta teremos de ver nas novas formas
de religiosidade que agora emergem sintomas de uma
realidade concretamente vivida. Mas de forma alguma
poderemos reduzi-las a um "simples epifenômeno de sua
base morfológica". A consciência religiosa é um sintoma mas
não um reflexo da realidade instaurada, pois que ela implica
numa negação de suas pretensões de realidade e numa
rejeição de sua racionalidade. O curioso e o estranho das
novas formas de religião é que elas implicam num
rompimento com a "visão de mundo intelectualista e
plenamente auto-suficiente" a que se referia Mannheim. O
místico — o conhecimento que está para além dos olhos
abertos e que não pode ser expresso por meio da palavra
articulada — parece-nos, assim, ser uma quebra do feitiço da
linguagem que a sociedade cristalizou e, portanto, uma
abertura aos níveis da realidade que escapam às previsões da
nossa linguagem.) Concordo com Peter Berger: "a
redescoberta do sobrenatural (é), sobretudo, uma
reconquista da abertura de nossa percepção da realidade".
É lógico que, do ponto de vista da racionalidade científica aí
instaurada, estas são novas formas de fuga e alienação.
Confesso que a palavra alienação me causa cada vez
maisproblemas. E isto porque ela só pode ser aplicada a
alguém ou a um movimento na medida em que aquele que a
usa pretende já a haver vencido, e de dispor dos critérios
corretos do conhecer e do agir. Este é, talvez, o pecado
original do cientista: a pressuposição de que os outros
pensam a partir de interesses enquanto que ele, ao contrário,
pensa em obediência à evidência e à lógica. A mesma coisa
ocorre quando se faz uma separação entre comportamento
normal e comportamento neurótico. A psicanálise considera
a religião como uma forma de neurose, ou seja, como
pensamento e comportamento patológicos. Este diagnóstico,
entretanto, depende de uma definição da normalidade em
termos de ajustamento! Profetas, artistas e místicos são
candidatos potenciais ao divã, enquanto que advogados,
banqueiros e técnicos se alinham entre os normais. Como
Prescott Lecky observou, de uma perspectiva psicanalítica
"presume-se que a pessoa normal, se ela existisse, não
acharia nada errado e aceitaria todas as coisas".
A consciência mística pressupõe que a realidade se encontra
para além dos olhos abertos e para além da palavra
articulada. Ou seja, ela afirma que o real que está diante dos
olhos como objeto e a sua racionalidade verbalizável nada
mais são que um real falso — um ídolo — a ser ultrapassado.
Em outras palavras: o misticismo implica numa obstrução de
um certo tipo de conhecimento, a que damos nome de
"fuga" do real e da alienação." Não nos podemos esquecer,
entretanto, de que a "ignorância" não é uma simples questão
de imbecilidade, ou falta de informações ou estupidez. O ato
de cognição é motivado por problemas práticos. É
freqüentemente "ignorar" mais funcional que "saber", da
mesma foçma que "fugir" pode servir melhor à
sobrevivência que "lutar". Existe uma estreita correlação
entre o ato de conhecer e a consciência de poder. Sempre
que o homem se julga importante para resolver um
problema, a consciência se retrai. E inversamente, somente
lutamos com um problema quando temos consciência de
que temos poder para destrinchá-lo e resolvê-lo.
Por detrás dos vôos místicos que caracterizam muitas das
formas emergentes de religiosidade descobrimos sempre
aconsciência da radical contradição entre os valores e
aspirações da personalidade, de um lado, e os produtos
institucionais, de outro. Se assim não fora, a consciência não
se sentiria compelida a emigrar do mundo concreto para os
espaços da imaginação. Mas o sentimento de contradição,
em si, não explica o vôo místico. Quando acompanhada de
um senso de poder (ainda que não exista poder real), a
consciência da contradição se expressa como
comportamento transformador. O homem sai de si, lança-se
sobre o mundo, luta com ele, para aboli-lo na sua forma
atual de existência, para fecundá-lo com as sementes de suas
aspirações e esperanças. A consciência da contradição,
quando combinada com um senso de poder, expressa-se
sempre como pensamento e comportamentos dialéticos.
Mas quando o senso da contradição é acompanhado pelo
senso da impotência, o projeto de transformação é
substituído pelo projeto de emigração.
E não é o sentimento de impotência, talvez, o novo
ingrediente da presente situação da civilização
contemporânea? Anos atrás imaginávamos num momento
de Êxodo. A religião foi substituída pela política, a teologia
da "explicação do mundo" deu lugar à "teologia da
libertação". Entretanto, sem que assim o desejássemos,
estamo-nos descobrindo totalmente impotentes diante do
mundo. Basta notar a mudança sofrida pela política. Até há
bem pouco tempo pensávamos que o poder estava colocado
nas mãos de homens. E, portanto, a política era uma luta
contra homens que detinham o poder. Hoje, entretanto, que
pessoas detêm o poder? Ninguém. O poder não está em
mãos de pessoas, mas de grandes estruturas burocráticas,
tecnocráticas, econômicas? Há batalhas a serem travadas.
Contra quem? Não se sabe. E mais trágico do que isto:
sentimos que não podemos. Somos impotentes. Como se a
nossa civilização estivesse possuída por demônios — forças
irracionais, impessoais, que conspiram contra as aspirações
humanas, que nos dominam e em frente às quais nada
podemos fazer. Já li um sem-número de críticas arrasadoras
da novela O Exorcista. Entretanto creio que o que importa
não é o que a novela diz, mas antes as reações de massa
diante do que foi dito. Insanidade coletiva? É possível.
Entretanto eu me pergunto se a razão fundamental para o
êxito da novela não se encontra no fato de ela articular
certas suspeitas que existem em nosso inconsciente social,
suspeitas que não surgiram do ar, mas antes das dolorosas
experiências da impotência das aspirações e esperanças mais
humanas que tomos capazes de formular, em frente aos
poderes ocultos e demoníacos que nos empurram para um
futuro que nos horroriza.
Os que imaginaram que o momento era de Êxodo se
equivocaram. Em lugar do Êxodo, o Exílio. A questão é:
quais são as opções que se abrem no Exílio ? Logicamente,
não há lugar para heroísmos. Uma possibilidade é o
ajustamento: tornarmo-nos realistas e objetivos. Aceitar a
realidade socialmente construída como sendo, de fato, a
realidade. A outra possibilidade é manter a suspeita de que o
real não seja real, e guardar, no espaço e no tempo que nos
são interiores, os valores e aspirações para os quais não há
lugar no mundo utópicos. Mas quando fazemos esta opção já
nos colocamos lado a lado com o místico, porque tratamos o
que é como se não fosse, e o que não é como se fosse. Fuga?
De uma perspectiva imediatista, sim. Certos organismos
aprenderam que em certas condições a única possbilidade de
sobreviver é enquistar. É o enquistamento no presente que
permite um eventual renascimento no futuro. Como bem
indicou K. Mannheim, "mesmo quando interiorizada a
experiência estática constitui um perigo para a ordem
vigente, pois está sempre na iminência de se expressar
exteriormente, e só a disciplina e a repressão constantes
transformam-na em quietismo". Pode muito bem ser que as
esperanças para o futuro da humanidade dependam mais dos
místicos e visionários que dos cientistas. Como o disse certa
vez aos realistas dos seus dias o místico sem religião que foi
Nietzsche:
Segundo a vossa opinião, todas as outras eras simplesmente
falaram coisas sem nexo. Mas os sonhos e as coisas sem nexo
que disseram foram mais reais que o vosso desper tar. Vós
sois estéreis. Esta é a razão por que não tendes fé. Mas todos
aqueles que tiveram de criar tiveram também os seus sonhos
proféticos e sinais astrais — e fé na fé.
Kant, Immanuel: "What is Enlightenment?", em Foundations of the Meta-
physics of Morals (Nova York, Bobbs-Merrill, 1959), p. 85s.
2 R. Kroner se refere, assim, ao permanente "problema habitacional" que se criou
para Deus. Speculation and Revelation in Modern Philosophy (Philadelphia. The
Westminster Press, 1961), p. 47, citando Helrich Rickert.
Kant, I.: Crítica da Razão Pura, B. xxxi.
Bonhoeffer, D.: op. cif., p. 163.
Ibid., p. 165.
Ibid., p. 220.
Ibid., p. 219s.
Ibid., p. 176.
1 Marx & Engels: On Religion (Nova York, Schocken Books, 1964), p. 41.
2 Ibid., p. 44-45.
3 Ibid., p. 41-42.
Goodman, Paul: "La Moralidad de la Tecnología Científica", em Testimonium,
XII (Montevidéu).
Freud, S.: Totem and Taboo (Nova York, Vintage Books, 1946), p. 98-129 e
The Future of an Illusion (Garden City, N.Y., Doubleday & Co., 1964).

ibid., p. 5-6.
Ibid.. p. 63-64.
Sartre, Jean-Paul: The Psychology of Imagination (Nova York, Washington
Square Press, 1968), p. 159.
Galilei, Galileu: Carta de Janeiro de 1641.
Kuhn, Thomas S.: The Structure of Scientific Revolutions (Chicago, The
University of Chicago Press, 1966), p. 52.
Camus, Albert: The Myth of Sisyphus, op. cit, p. 9.
Gouldner, A.: Op. cit., p. 50.
Skinner, B. F.: Beyond Freedom and Dignity (Nova York, Alfred Knopf, 1971).
9 20 Quando a Ciência colocou entre parêntesis o elemento vontade e intenção, ela não fez uso apenas
de um artifício metodológico. Este ato de se colocar entre parêntesis assenta-se sobre a convicção de que,
em última instância, a vontade não faz diferença. Importam as grandes estruturas, que se movem pela força
de uma dinâmica própria imanente, indiferentemente à consciência que dela tenhamos. Aceitos tais
pressupostos metafísicos, a ciência tem, coerentemente, de se declarar radicalmente anti-humanista. São
muito significativos os trechos que se seguem, considerando-se as origens diversas de onde provêm:
"As filosofias metafísica e teológica ainda fazem sentir a sua influência hoje somente no sistema de estudos
sociais. Elas devem ser desalojadas deste refúgio final. E isto será levado a cabo, especialmente, através
da interpretação de que o movimento social é necessariamente subordinado a leis físicas invariáveis, ao invés de ser
governado por uma espécie de vontade". Augusto Comte, Coins de Philosophie Positive, 4.a edição, vol. IV (Paris,
1877), p. 267.
"A primeira regra e a mais fundamental é: Considere os fatos sociais como coisas". Emile Durkheim, The Rules of
Sociological Method (Nova York, The Free Press, 1964), p. 14.
"Não importa o que este proletário diretamente imagina, e nem mesmo o proletariado inteiro. O que importa
é o que é que se verá obrigado historicamente a fazer por esta realidade". Marx (A Sagrada Família).
"Uma outra razão pela qual esta hipótese foi a primeira a tornar possível uma sociologia 'científica' foi que a
redução das relações sociais a relações de produção... ofereceu uma firme base para a concepção de que
o desenvolvimento das formações sociais é um processo de história natural (m/ ênfase), "Lenin, What the
'Frieds of the People' Are", Selected Works (Nova York, International Publishers, 1943, vol. XI, p. 421). "A
small part of the universe is enclosed within a human skin.lt would be foolish to deny the existence of that
private world, but it is also folish to assert that because of its privacy it is of a different nature from the
world outside. The difference is not in the stuff of which the private world is composed, but in its
accessibility". "A scientific analysis of bahaviou disposesses autonomous man and turns the control he has
said to exert over to the environment". B. F. Skinner, Beyond Freedom and Dignity (Nova York, Knopf, 1971),
p. 191-205.
Citado por Philip Rieff: refere-se a um conceito último, uma primeira causa, a um
tempo fundamental à experiência e inacessível a ela.
Kolakowski, L.: Op. cit., p. 325.
Rieff, Philip: Freud: The Mind of the Moralist (Garden City, N.Y., Dou-bleday, 1961),
p. 327.
Kierkegaard, Sõren: Concluding Unscientific Post-script (Princeton, Princeton
University Press, 1968), p. 181.
Wittgenstein, Ludwig: Tractatus Logico-Philosophicus (São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1961), p. 70, § 4.002.
Ver Ernst Bloch, Man on His Own (Nova York, Harper & Row, '971).
Feuerbach, Ludwig: The Essence of Christianity (Nova York, Harper & Row, 1957),
p. 130.
Mannheim, K.: Op. cit., p. 221: "Mesmo quando interiorizada, a experiência extática constitui um perigo
para a ordem vigente, pois está sempre na iminência de se expressar exteriormente, e só a disciplina e a
repressão constantes transformam-na em quietismo".
Whitehead, Alfred North: Science and lhe Modem World (The Free Press, Nova York,
1967), p. 96.
Kuhn, Thomas S.: The Structure of Scientific Revolutions (The University of Chicago
Press, Chicago, Londres, 1966), p. 170.
Freud, S.: The Future of an Illusion (Doubleday Co., Anchor Books, Garden City,
Nova York, 1964), p. 82 e 88. A primeira referência é uma citação do poema
Deutschland, de Heine: "Den Himmel überlassen wir / Den Engeln und den Spatzen".
Clark, Henry: "Value Questions and Policy Proposals for a Society of Abun-dance", in
Union Seminary Quarterly Review (Lay, 1966), p. 403.
Cox, H.: The Secular City (The Macmillan Co., Nova York, 1965), p. 184.
Koestner, Nicolai: "The Real Problem of Underdevelopment", em Swiss Review of
World Affairs (outubro, 1956): "O problema que se conhece como
subdesenvolvimento... é um problema de excesso de população..."
Cox, H,: Op. cit., p. 184, 187, 188.
Fromm, Erich: "The Psychological Aspects of the Guaranteed Income", em Robert
Theobald (ed.), Guaranteed Income — Next Step in Economic Revoluti (Doubleday Co.,
Garden City, Nova York, 1966), p. 176, 177.
McLuhan, Marshall: Undestanding Media: The Extensions of Man (McGraw-Hill Book
Co., Nova York, Londres, Sidnei, Toronto, 1964), p. 7s.
Leeuwen, A. Th. van: Christianity in World History (Edinburgh Houw Press,
Londres, 1965).
McLuhan, M.: Op. Cit., p. 11.
Lipset, S. M. e Wolin, S. S.: The Berkeley Student Revolt. Facts and Inter-pretations
(Anchor Books, Doubleday & Co. Inc., Garden City, Nova York, 1965), p. 213.
Marcuse, H.: Op. cit.
Ibid., xv.
Marcuse, H.: Op. cit., p. 57.
Tillich, Paul: Op. cit., p. 20.
Lipset, S. M. e Wolin, S. S.: Op. cit., p. 217.
Lefebvre, Henri: "Reflexões sobre o Estruturalismo e a História", em O Método
Estruturalista, Carlos Henrique Escobar (ed.), (Zabar, Rio de Janeiro, 1967), p. 82-89.
Suzuki, D. T.: Zen Buddishm (1956), 8.
Huisinga, Johan: Homo Ludens (1968), 2.
Ibid., 3.
Ibid., 3-4.
Morris, Desdmond: The Naked Ape (1970), 117.
Lefebvre, Henry: Lenguaje y Sociedad (1957), 105.
Dewey: Op. cit., 92.
Merton, Robert, K. On Theoretical Sociology (1967), 145.
Merton, Robert K.: Op. cit., 146.
Durkheim, Emile: The Elementary Forms of the Religious Life (1969), 484.
Para uma discussão em detalhes deste processo, ver Berger & Luckmann, op. cit.
Berger & Luckmann: Op. cit., 103.
Berger, Peter: The Sacred Canopy (1967), 52.
Citado por Philip Rieff, Freud: The Mind of the Moralist (1961), 35.
Myrdal, Ounnar: Objectivy in Social Research (1969),29.
Berger & Luckmann: The Social Construction of Reality, 103.
Freud. Sigmundo: Civilization and Its Discontents (1962). 50.
Md. 173.
Jung, C. G.: Arquétipos e Inconsciente Colectivo (1970), 12. Título muito mais
sugestivo no original: Von den Wurzeln des Bewusstseins — Acerca das Raízes da
Consciência.
Brown, Norman O.: Op. cit., 94.
Ver Leeuwen, Arend Th. van: Christianity in World History (1965), 63-64.
Castañeda, Carlos: Journey to íxtlan.(1972).
Berger, Peter: The Sacred Canopy, op. cit., 29s.
Mumford, Lewis: The Story of Utopias (1962), 1.
Heidegger, Martin: Being and Time (1962), 233.
Sartre. Jean Paul: Being and Nothingness (1956), 16, 18, 21.
Rieff, Philip: Op. cií., 392.
Kierkegaard. S.: Op. cit.. 151.
Suzuki. D. I. Op. ri».. 3.
Gouldner, Alvin: The Coming Crisis of Western Sociology (1971), 26.






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Edgar Madruga
Salvador/BA




 
 
 
 
Lançamento Gênesis do Conhecimento
O Enigma da Religião - Rubem Alves
 
 
 
 
 
 
digitalização - Vitório
formatação e revisão - Lucia Garcia
 
 
 
Sinopse:
 
Como sobreviver com esperança em situações muito adversas? Religião - a teimosa obstinação que continua a ter esperança, a despeito de tudo. 'O enigma da religião' é um ensaio precisamente sobre essa questão - nós, diferentemente dos animais, recusamo-nos a aceitar o veredicto dos fatos. E acrescentamos algo a eles, sejam os jardins, as bandeiras, os poemas, as sinfonias, os altares, as utopias... Por que, se nada disso é retrato das coisas que estão aí? Por que, se nada disso é ciência? E é inútil dizer que os deuses morreram. Se morreram, outros nascerão de dentro de nós. Nós os geraremos, porque não podemos viver num mundo em que os bancos, a política, os cascos e as prisões têm a última palavra.
 
 
 
 
 

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